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BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITARIO

COLEÇÃO RECLAMADA PELAS NECESSIDADES


ATUAIS DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA

MARTIN HEIDEGGER/Introduçío i Metafísica


MARTIN HEIDEGGER/Sobrc o Humanismo
JEAN VIET/Métodos Estruturalistas nas Ciências Sociais
CLAUDE LÉVI-STRAUSS/Antropologia Estrutural tampo lirmllnlio
MAURICE MERLEAU-PONT Y/Humanismo e Terror
MICHEL FOUCAULT/Doença Mental e Psicologia
GASTON BACHELARD/Novo Espirito Cientifico
ABRAHAM MOLES/Tcoria da Informação e PercepçSo Estética
JOSÉ GUILHERME MERQUIOR/Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin
EMIL STAIGER/Conceitos Fundamentais da Poética
HANS-ALBERT STEGER/As Universidades no Desenvolvimento Social da América Latina
HENRI EY (Direção d e ) / 0 Inconsciente - Volume I (Colóquio de Bonneval) Colaborações de CL. BLANC, R.
Biblioteca
Tempo Universitário
DIATKINE S FOLLIN, A. GREEN, G. C. LAIRY, G. LANTÉRI-LAURA, J. LAPLANCHE, S. RICOEUR, C. STEIN
e A. DE WAELHENS e a participação de P. GIRAUD, JEAN HYPPOLITE, JACQUES LACAN, JvIAURICE
MERLEAU-PONTY, E. MINKOWSKI, entre outros.
KOSTAS AXELOS/Introdução ao Pensamento Futuro
LUIZ AMARALfTécnica de Jornal e Periódico
JACQUES GUILLAUMAUD/Cibernética e Materialismo Dialético
EDUARDO PORTELLA/Tcona da Comunicação Literária
5
HELMAR FRANK/Cibcrnética e Filosofia
CLÁUDIO SOUTO/Introauçao ao Direito como Ciência Social
CLAUDE LÉVI-STRAUSS/Áníropologia Estrutural Dois
MUNIZ SODRÉ/Teoria da Literatura de Massa
KARL POPPER/Lógica das Ciências Sociais
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA//A Sociologia do Brasil Indígena
EDUARDO PORTELLA/Fundamento da Investigação Literária
ERNEST BLOCH/Thomas Münzer teólogo da revolução
ALEXANDER MITSCHERLICH/A Cidade do Futuro
THEODOR W. ADORNO/Notas de Literatura
EDWIN B. WILLIAMS/Do Latim ao Português
DIETER SENGHAAS, WOLF-DIETER NARR e FRIEDER NASCHOLD/Análise de Sistemas, Tecnocracia e
Democracia
JOSÉ GUILHERME MERQUIOR/A Estética de Lévi-Strauss
WALTER BENJAMIN/A Modernidade e os Modernos
E D U A R D O PORTELLA, JOSÉ GUILHERME MERQUIOR, HELENA PARENTE CUNHA, ANAZILDO
VASCONCELOS DA SILVA, MARIA DO CARMO PANDOLFO, MANUEL,ANTÔNIO DE CASTRO, MUNIZ
SODRÉ/Teoria Literária
HANS-PETER DREITZEL, GÜNTER ROPOHL, CLAUS OFFE. JTJRGEN FRANK, HANS LENK/Tecnocracia e
Ideologia
ANTÔNIO PAUvt/A Querela do Estatismo
VOGT FRANK OFFE/Estado e Capitalismo
JÜRGEN HABERMAS/A Crise de Legitimação do Capitalismo Tardio
ANTÔNIO PAIM/A UDF e a Idéia de Universidade
ABRAHAM A. MOLES/Teoria dos Objetos
SÉRGIO PAULO ROUANET/Édipo e o Anjo
ROLAND BARTHES/Sollers escritor
SÉRGIO PAULO ROUANET/Teoria Critica e Psicanálise
SCHAFER, SCHALLER/Ciência Educadora Crítica e Didática Comunicativa
FÜRST, KLEMMER, ZIMERMANN/Política Econômica Regional
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA/Enigmas e Soluções
KOSTAS AXELOS/Horizontes do Mundo,
HANS-GEORG GADAMER/A Razão na Época da Ciência
JÜRGEN HABERMAS/Mudança Estrutural da Esfera Pública
ARNOLD GEHLEN/Moral e Hipermoral
CLAUS OFFE/Problcmas Estruturais do Estado Capitalista
SARTRE et alii/Marxismo e Existencialismo
HELMUT REICHELT, EIKE HENNIG, GERT SCHAFER, JOACHIM HIRSCH/A Teoria do Estado - Materiais para a
reconstrução da teoria marxista do Estado
CLAUS OFFE/Trabalho e Sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da "Sociedade do Trabalho" -
Volume I - A crise
CLAUS OFFE/Trabalho e Sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da "Sociedade do Trabalho" -
volume II - Perspectivas
HANS LENK/Razão Pragmática - A Filosofia entre a Ciência e a Praxis
SIEGFRIED I SCHMIDT, HEIDRUN KRIEGER OLINTO, PETER FINKE, REINHOLD
VIEHOFF, NORBERT GROEBEN, REINHOLD WOLFF/Ciência da Literatura Empírica - Uma alternativa
JÜRGEN HABERMAS/Consciência Moral e Agir Comunicativo
JÜRGEN HABERMAS/Pensamento Pós-Metaíísico
JÜRGEN HABERMAS/Passado como Futuro
NIKLAS LUHMAN/A Sociologia do Direito I
NIKLAS LUHMAN/A Sociologia do Direito II
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA/Sobre o Pensamento Antropológico
I. KANT/Lógica
WERNER MARKERT (Org.)/Teorias de Educação do Iluminismo
cura lazer a experiência do destino do ho-
SOBRE O HUMANISMO
mem sem pátria. Esse princípio de supera-
DE
ção, no entanto, preparado na poesia dc Hoe-
derlin, se viu, logo, transformado numa for-
MARTIN HEIDEGGER
ma invertida de humanismo, pelos "marxis-
tas".

Libertar a humanização do homem dos Sabir o Humanismo espelha um aprofun-


limites d? humanismo é o que se propõe a damento do Caminho que seguiu o autor de
Analítica da Existência em Ser e Tempo. 0 Ser t Tempo desde 1916. Com a radicalidade
texto da presente Carta se detém largamente imposta pelo questionamento do Sentido do
em evidenciar esse propósito. E' assim a cha- Ser, HEIDEGGER empreende uma discussão
ve para um entendimento do lugar ocupado temática do Humanismo em suas possibili-
por HEIDEGGER na primeira fase de seu dades de humaniz.açãc: cm suas múltiplas
itinerário filosófico. vertentes, os valores do humanismo possibili-
tam realmente uma libertação do homem
Desse longo Caminho, Sobre o Humanismo para sua própria humanidade? Uma pergunta
retira perspectivas que possibilitam redi- que invariavelmente os reporta « questão
mensionar problemas fundamentais da exis- sobre a humanidade do homem. Cada huma-
tência referentes ao pensamento dos valores, nismo se edifica numa interpretação d o | e t d o
à normatividade ética, à Historicidade da homem. Dai a necessidade de se porem n u
história e ã permanência e mutabilidade do questão as interpretações do homem ,1..-, > .i
ser humano no mundo. Quase todas as ques-
rios humanismos. De uma formi OU A
tões, que ocupam a última reflexão de 1119-
tra todos eles são variações do projpl In
DHGOEU, são acenadas condensadamente nas
físico que, desde cedo, nr vel ...M.l lu
poucas paginas dessa Carla. A riqueza de
no percurso [ilstortoo do OtildlHtll
perspectivas reflexivas, que sua meditação
proporciona, nos dá uma consciência cada 0 priineh-o ItUItlUIlll Mplldll II
vez mais aguda da problcinaticidade de nosso tio, é urna OOUNgUfMtiAo <'.' / " " ' ' < i>. h. l
tempo histórico. cujas raljEOl se I m p l n n l n m m i m< I n I I« h <i pin
tónica. A Inversão .Ir l'liiln.. pela lu ii
As Edições Tempo Hrasilalro esperam mo existencialista continua m> campo do
contribuir, com esta categorizada tradução cas da metafísica. I'.' que vlnii u m principio
do Professor EMMANUEL CARNEIRO LEÃO, nieiafísico permanece um movimento meia
para unia consciência mais viva c uma vida físico.
mais consciente do desafio dessa problema-:
tJcidade. Decisões Históricas não se elaboram O mesmo ocorre no humanismo crislão.
do nada. Preparam-se por uma consciência no fazer, do homem, filho de Deus, que, em
sempre mais aguda das situações que torna Cristo, ouve c aceita o apelo do Pal.
as decisões inevitáveis.
O primeiro movimento de uma superação
radical do humanismo principia com o pen-
samento de Marx, que, na alienação, pro-
t.b.
M A R T I N H E I D E G G E R

SOBRE 0 HUMANISMO

INTRODUÇÃO, TRADUÇÃO B NOTAS

DE

EMMANUEL CARNEIRO LEÃO


a
2. edição

Tempo Brasileiro
1995
BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITARIO — 5

Esta Coleção, dirigida por renomaãos professores


universitários, destina-se à apresentação de textos
rigorosamente científicos, visando às necessidades
da investigação universitária no Brasil. SUMÁRIO

CAPA DE
I Introdução
EMMANUEL CARNEIRO LEÃO 7
MAURICIO JOSÉ MARCHECSVFKY
II SÔbre o Humanismo
MARTIN HEIDEGGER . . 21

TRADUZIDO DO ORIGINAL ALEMÄO

Über de Humanismus
DA FRANCKE A . C . , BERNA

Direitos reservado às
EDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO LTDA.
Rua Gago Coutinho, 61 - Tel.: 205-5949 - Fax: 225-9382
Caixa Postal 16099 - CEP: 22221-070
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
INTRODUÇÃO
Juntamente com uma interpretação da Ale-
goria da Caverna de Platão, o opúsculo Sobre o
Humanismo, ora traduzido para o português, foi
publicado em 1947 na Suíça pela editora Francke.
Apresenta o texto reelaborado de uma carta de
1946, em que Martin Heidegger responde a umas
perguntas de Jean Beaiifret. Ainda em 1947, apa-
receu na Alemanha uma outra edição de Vütorio
Klostermann em que se troca o texto final do
quarto último parágrafo.
Sobre o Humanismo é de uma composição
muito bem estudada. Das questões propostas por
Beaufret escolhe Heidegger, para tema de sua
resposta, a mais fundamental, relativa ao huma-
nismo: Comment redonner un sens au mot "Hu-
manisme"?
A discussão de seus pressupostos abre tôda
uma outra dimensão de pensamento: a dimensão
do Pensamento Essencial, que, reconduzindo a vi-
gência Histórica do humanismo às suas raízes na
metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe
a necessidade de questioná-la em seus fundamen-
tos. O humanismo deixa de ser um valor indis-
cutível e, portanto, um trauma para o pensamento.
Transforma-se na maior provocação para pensar filosofia, como essência, existência, substância,
na medida em que força o esforço pelo homem na Dasein, ente, ser etc, como sujeito, participio, ob-
direção das vicissitudes Históricas da Verdade do jeto, genitivo subjetivo e objetivo etc. Mas o
Ser. Redimensionar o humanismo significa então emprego desses termos e dessa gramática tem
superar-lhe as raízes num pensamento que é Es- uma função bem precisa. Visa acionar o supe-
sencial por pensar a proveniência de sua própria ramento da metafísica. Isso veio provocar uma
Essência, i.é, por pensar a proveniência da Essên- situação fundamental e intencionalmente am-
cia do homem. Por não des-cobrir e sim, antes, bígua. A desconsideração dessa ambigüidade le-
en-cobrir essa proveniência, o humanismo, não só vou a "erros" palmares de interpretação e enten-
como designação, mas principalmente como visão dimento. É que a compreensão dessa linguagem
e esforço, é um lucus a non lucendo. "intencionalmente ambígua" exige que, ao esforço
No itinerário do pensamento heideggeria- de apreender-lhe o sentido habitual, corresponda
1
no i ), Sobre o Humanismo serve ao segundo mo- um esforço de superá-la num pensamento que
mento de sua marcha dialética de pro-gresso e ponha em questão a própria Essência da lingua-
re-gresso para superar a metafísica. Nesse serviço gem. A ambigüidade da linguagem reflete em si
desempenha uma função didática, esclarecendo o mesma a dialética inerente ao movimento de su-
sentido do primeiro momento, exposto em Sein peração. Por isso toda tentativa de se determinar
und Zeit e nas primeiras obras. Como introdução o sentido dos termos e das funções gramaticais
à leitura, vamos ressaltar aqui três pontos princi- fora do contexto de pensamento, em que se arti-
pais dessa contribuição. culam, tranca-se a qualquer possibilidade de en-
1. Sobre o Humanismo e a Essência do Ho- tendimento.
mem. Ao preparar o questionamento do problema
sobre o Sentido do Ser, Sein und Zeit se propõe, Foi o que se deu com a maioria das interpre-
por motivos inerentes à própria tarefa, re-pensar tações de Sein und Zeit. Ao invés de re-pensarem
a Essência do homem a partir da "experiência os termos e a gramática pela coisa a ser pensada,
fundamental do esquecimento do Ser". Para isso muitos leitores procuraram entender a coisa a ser
se serve dos termos e da gramática vigentes na pensada pela lógica e pela gramática tradicionais.
Ora, de vez que a lógica e a gramática da tradição
(1) Sobre as constantes do itinerário do pensamento de são as formas em que o esquecimento da metafí-
Heidegger e a dialética de re-gresso e pro-gresso da sica se apoderou da linguagem, a interpretação
sua marcha veja-se a apresentação feita para a nossa
assim alcançada fica sempre à margem da questão
tradução de Martin Heidegger, Introdução à Metafísica,
Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1966, pp. 7ss. e do propósito de Sein und Zeit

10 11
Sobre o Humanismo vem remediar essa in- nismo. Procuram antes pensar a essencialização
compreensão, esclarecendo em que direção Sein do homem dentro da referência do Ser e o fazem,
und Zeit procura pensar a Essência do homem. como o espaço de articulação (Da-) da Verdade do
Todo humanismo, em suas diversas modali- Ser (Sein) . Ora, uma vez que, de um lado, a gran-
dades — desde o humanismo romano, passando deza e a dignidade do homem se essencializam
pelo humanismo cristão e renascentista até o hu- originariamente nessa re-ferência e, de outro, o
manismo socialista e existencialista — se funda humanismo, em sua virulência metafísica, não a
sempre na interpretação metafísica do homem. questiona nem a pensa, a tarefa imposta a um
Articulado no binômio de essência e existência, Pensamento Essencial é abandonar o humanismo,
determina o ser do homem como a realização
para, pensando a Verdade do Ser, tornar-se Essen-
(existência) das possibilidades (essência) de ani-
cialmente humano. Na preparação dessa tarefa
malidade e racionalidade, quer confira o primado
concentram-se as investigações de Sein und Zeit.
à essência, quer faça prevalecer a existência em
suas várias dimensões. Uma determinação que Por tais esclarecimentos Sobre o Humanismo é o
não surgiu e se impôs por acaso. Vigora, ao con- passaporte para a dimensão onde se move o pen-
trário, na força de uma de-cisão do Sentido do samento de Heidegger ao nível da Analítica Exis-
Ser, como tal. tencial .
Mas a metafísica não questiona a articulação 2. Sobre o Humanismo e a Essência da
desse vigor em que ela repousa. Sua determina- História: Dentro da originariedade de um Pensa-
ção do ser do homem se funda numa interpretação mento Essencial o homem não é um sujeito cuja
do Sentido do Ser que não é posta em questão. "subjetidade" consiste em sujeitar às forças de
Daí a tese de Sein und Zeit de que, edificando-se suas pro-spectativas técnicas o ser dos entes,
num esquecimento do Ser, a metafísica exige ser transformando-o na objetividade de simples ob-
re-pensada no fundamento de sua possibilidade e jetos. No vigor de sua essencialização o homem
assim superada em seu esquecimento. O primei- é a locanda, em cujo espaço se desdobra a verdade
ro esforço nesse sentido é procurar arrancar o ser dos entes. É no homem, como locanda do Ser,
do homem à interpretação metafísica, re-pensan- que os entes encontram lugar para serem o que
do-o em relação ao Ser. Assim os lermos, Essência, são. Pois tanto a abertura da locanda como o
Existência, Dasein, Substância, usados em Sein desdobramento das possibilidades dos entes são
und Zeit não visam a pensar o homem por seus instalados pela dinâmica de estruturação do Ser.
significados metafísicos e em conseqüência não O Ser é como Ser, estruturando a verdade dos
se identificam com a essentia, a existentia, o entes na essencialização do homem, enquanto re-
Dasein e a substância da metafísica e do huma- ferência do Ser.

12 13
do Ser, e isso significa: ao dar lugar ao conjunto
A Essência da História é a dinâmica dessa
das referências de ser e ente. Essencialmente,
estruturação. Heidegger a pensa como ges-
pensar não é, portanto, exercer uma faculdade da
chieh — destino. O que nos convida a pensar
consciência, entendida como sujeito, nem falar é
com e nessa palavra, apresenta-se na essenciali-
exprimir a atividade e o conteúdo desse exercício.
zação de seus significados. Trata-se de uma pa-
Pensar e falar é articular o destino do Ser. Por
lavra derivada do verbo schicken, que possui um
isso só o homem pensa. Só o homem fala. Só
largo espetro significativo ao longo da evolução
o homem é histórico. E é histórico, enquanto faz
semântica do alemão. Seus três significados
r e é feito pela História.
fundamentais são estruturar, dispor, enviar. ( )
No substantivo, Ge-schick, esses três significados Por ser Essencialmente destino, o Ser, ao des-
são reunidos num conjunto pelo prefixo Ge- (como tinar-se no homem, se retém e esconde como des-
em Ge-birge = "conjunto de montes"). É na tino. Essa retenção é o próprio vigor em que se
unidade desses três significados que Ge-schick destina. Heidegger pensa tal dialética de dar-se
articula o sentido originário de geschehen, a e retrair-se no termo epoché, oriundo da momen-
saber: vonstatten gehen lassen = "fazer ter lugar" clatura da Stoá. De epoché ele forma o adjetivo,
e por conseguinte, "dar-se", "acontecer". Ge- epochal = "epocal", que diz o vigor dialético do
schichte, substantivo de geschehen é a História. destinar-se do Ser.

Agora se torna, talvez, mais claro o que é No destino se dispõem estruturas que arti-
História, Geschichte, para um Pensamento Essen- culam possibilidades de referência entre ser e
cial: a essencialização da História é o Geschick, ente. E é justamente para destinar-se em estru-
turas de possibilidades que o Ser não se destina
("o destino") do Ser, enquanto envio dispositivo
mas se retém como a totalidade de todas as possi-
de estruturas, que se faz lugar no homem no con-
bilidades. A História se essencializa assim em
junto das re-ferências de ser e ente. Se se pensa
vicissitudes de destinações e ao mesmo tempo de
a palavra "destino", nesse sentido, então, em sua
retenções do Ser como totalidade. O ritmo desse
Essência, a História é o destinar-se do Ser no
vigor é a Essência do tempo, como temporalidade
homem. Isso quer dizer: é no destinar-se do Ser
do Ser. Nele repousa a continuidade e desconti-
que o homem se hominiza — isto é, que o homem
nuidade das épocas históricas. O futuro, o pas-
se constitui como homem — ao articular o destino
sado e o presente, enquanto momentos do tempo,
se fundem, sem se confundirem, no vigor do des-
(1) Desses três sentidos a palavra portuguesa, destino, tino do Ser. A presença do passado no presente
só expressa de per si os dois últimos, dispor e enviar; é a necessidade do futuro. É no destino "epocal"
todavia, se lhe acrescentarmos o primeiro, tem-se boa tra- do Ser que se essencializa a história dos homens.
dução para Ge-schick.

15
3. Sobre o Humanismo e os Pensadores na subjetividade do homem. O homem só é ho-
Essenciais: o homem é o lugar de que necessita mem, quando realiza sua humanidade como o
e, por conseguinte, cria o Ser, destinando-se "sujeito" da objetividade. A objetividade é tanto
"epocalmente", isto é, sendo o Ser. A consolidação mais objetiva quanto mais fôr controlada e esta-
da necessidade, que assim se destina, é a lingua- belecida em sua objetividade, vale dizer, quanto
gem onde mora o homem. A custodia desse ser mais o homem fôr "subjetividade". Correlativa-
da linguagem se dá originariamente na palavra mente, o ente só é ente quando afirma sua enti-
do poeta e no pensamento dos pensadores, que dade como objeto da subjetividade, isto é, no grau
articulam o destino "epocal" do Ser. Nesse sen- em que se presta ao controle exato da subjetivi-
tido a linguagem "é a casa do Ser" e "os poetas dade. A objetividade é o supremo valor. A arte,
e pensadores são os seus vigias". a poesia, a religião, a filosofia só possuem valor,
se passarem no controle de objetividade. A vi-
Pensar é articular o destino do Ser, e esse se gência da correlação de subjetividade e objetivi-
dá num vigor "epocal". O pensamento dos pen- dade, que hoje vai atingindo seu paroxismo, é,
sadores não é, em sua Essência, a estrutura em pensada como "época", o destinar-se do Ser no
que eles pensam as referências de ser e ente. É esquecimento. Nesse esquecimento moderno, isto
o que eles procuram articular com essa estrutura. é, nas fases de progresso da técnica e da ciência, se
Em tudo que dizem, eles querem dizer a Essência derrama a escuridão da "Noite Histórica" na qual
do pensamento que se lhes destinou. Daí ser um o homem, perdendo os fundamentos de sua huma-
desconhecimento da dialética "epocal" do destino nidade, "erra", sem pátria, no turbilhão de uma
todo e qualquer esforço de se refutar um pensa- objetividade sempre mais absorvente de subjetivi-
mento bem como toda tentativa de entendê-lo dade. A "época" da técnica e da ciência é o im-
fora de sua Essência, segundo qualquer jogo de pério do homem a- pátrida em sua Essência.
interesses alheios à sua articulação destinada. E
É essa a-patridade Essencial que opera no
se trata de um desconhecimento que se ignora
vigor de planetarização do mundo moderno.
como desconhecimento, por ser já, em si mesmo,
Heidegger vê nela as raízes Históricas da expe-
um destino "epocal" do esquecimento do Ser.
riência da alienação feita no pensamento de Marx;
É o tipo de desconhecimento que, predominante-
O que Marx quis pensar na alienação era o des-
mente, se impõe, como conhecimento, na época
tinar-se do Ser na a-patridade, acirrada na "épo-
da Técnica e da Ciência.
ca" da Primeira Revolução Industrial. Sabre o
A época da Técnica e da Ciência se essencia- Humanismo o ressalta sem possibilidade de equí-
liza numa "época" em que o Ser como Ser é nada, vocos: "Porque, ao fazer a experiência da aliena-
por se destinar tanto na objetividade do ente como ção, Marx alcança uma dimensão Essencial da

16 11
História, a visão marxista da História é superior êle se articula. Do contrário se tranforma biso-
às restantes interpretações da história (Historie)". nhamente num esforço quixotesco de arremeter
O desenvolvimento dessa interpretação foi iniciado contra moinhos de vento.
num seminário (fechado aliás pelo serviço de se-
gurança do nazismo) ministrado para um pequeno Em abrir a dimensão originária, onde um
círculo de professores universitários no inverno de Pensamento Essencial pode questionar a Essência
1939-1940 a propósito do livro de E. Jünger, Der do homem, a Essência da História e a Essência
Arbeiter (O Trabalhador) e completado logo de- do Pensamento, está a principal contribuição des-
pois num longo seminário sobre Marx. É nesse sa Carta sobre o Humanismo. Mas se trata de uma
último que Heidegger* faz a distinção entre o con-tribuição que só se nos a-tribui, se aliarmos,
marxismo e comunismo como partido e concepção à leitura do texto, o exercício do Pensamento.
de mundo e o marxismo e comunismo como pen-
samento. A essa distinção alude Sobre o Huma- Rio de Janeiro, março, 1967.
nismo quando diz: "Como quer que se tome posi-
ção frente às doutrinas do comunismo e suas fun- EMMANUEL CARNEIRO LEÃO
damentações, no plano da História do Ser não
há dúvida de que nele se exprime uma experiência
elementar da História do mundo. Quem toma
o comunismo apeinas como "partido" ou como
"concepção de mundo", pensa tão curto como
quem, com a etiqueta de "americanismo", entende
apenas — e de modo pejorativo — um estilo de
vida particular.

Para se atingir a dimensão onde se move o


diálogo com o pensamento de Marx, não basta
tomar notícia das alusões que alguns textos de
Heidegger fazem; principalmente quando se en-
tendem e interpretam tais alusões fora da arti-
culação do Pensamento Essencial, segundo inte-
resses que lhe passam, e sem o saberem, à mar-
gem. Uma condição indispensável de todo diá-
logo frutífero de pensamento é colocar-se lá onde

18 19
De há muito que ainda não se pensa, com
1
bastante decisão, a Essência do agir. Só se co-
nhece o agir como a produção de um efeito, cuja
2
efetividade se avalia por sua utilidade. A Es-

1) A Essência = das Wesen: o substantivo alemão,


Wesen deriva-se do verbo, wesen, hoje usado ape-
nas em algumas formas, como gewesen (sido), áb-
wesenâ (ausente), an-wesend (presente) e Wesen (es-
sência, natureza, qüididade). Esse substantivo não de-
signa no texto essência, natureza, qüidade, mas a es-
trutura em que vigora, i . é . , desenvolve a força de seu
vigor, o agir. Para exprimir esse sentido, escreve-se a
palavra Essência sempre com maiúscula.
2) Efetividade = Wirklichkeit: nessa segunda frase
Heidegger caracteriza o modo em que se tem in-
terpretado o agir, jogando com o radical, wirk, em seu
tríplice emprego: como verbo, wirken ( = causar efeito,
desenvolver a força de uma eficiência no sistema de
causa e efeito), como substantivo concreto, Wirkung
( = o efeito, resultado da eficiência causal) e como subs-
tantivo abstrato, Wirklichkeit ( = a realidade do efei-
to) . Com isso se visa a exprimir que as três modalida-
des pertencem à mesma interpretação. Pode-se tradu-
zir essa sistemática da causalidade do seguinte modo:
"só se conhece o agir como a efetuação de um efeito, cuja
efetividade se avalia por sua utilidade".

23
3
sência do agir, no entanto, está em con-sumar .
Con-sumar quer dizer: conduzir uma coisa ao pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua
8
sumo, à plenitude de sua Essência. Levá-la a vigília é con-sumar a manifestação do Ser, por-
essa plenitude, producere.* quanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a
Por isso, em sentido próprio, só pode ser con- conservam na linguagem.
-sumado o que já é Ora, o que é, antes de tudo, O pensamento não se transforma em ação
5
é o Ser. O pensamento con-suma a referência por dele emanar um efeito ou por vir a ser apli-
do Ser à Essência do homem. Não a produz nem cado. O pensamento age enquanto pensa. Seu
a efetua. O pensamento apenas a restitui ao Ser, agir é de certo o que há de mais simples e elevado,
como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser. por afetar a re-ferência do Ser ao homem. Toda
Essa restituição consiste em que, no pensamento, produção se funda no Ser e se dirige ao ente. O
6
o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa pensamento ao contrário se deixa requisitar pelo
7
do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os
Ser a fim de proferir-lhe a Verdade. O pensa-
mento con-suma esse deixar-se. Pensar é "l'enga-
3) Con-sumar == Volí-bringen: Essa é uma palavra gement par l'Etre pour l'Etre". Não sei, se,
composta do verbo, bringen ( = levar, conduzir) e do linguisticamente, é possível dizerem-se ambas as
adjetivo, voll ( = completo, pleno, cheio). Na composi-
coisas (par et pour) numa só expressão, a saber:
ção exprime o processo de se levar uma coisa à sua ple-
nitude. É o que se traduz com o verbo "con-sumar". "penser c'est l'engagement de l'Etre". A forma
do genitivo, "de deve exprimir que o geni-
4) Pro-ducere: veja-se Martin Heidegger, Introdução
à Metafísica, Rio, Edições Tempo Brasileiro, 1966, tivo é, ao mesmo tempo, "genitivus subjectivus"
pg. 98, Nota 16. e "objectivus". Não obstante sejam "sujeito" e
5) Re-ferência = Bezug: veja-se Martin Heidegger, In- "objeto" títulos insuficientes da metafísica, que,
trodução à Metafísica, 1. c , pg. 99, Nota 21. desde cedo, na forma da "lógica" e "gramática"
6) tornar-se linguagem — zur Sprache kommen: Essa
ocidentais, se apoderou da interpretação da lin-
expressão alemã (literalmente — vir, chegar à lin- guagem . O que se esconde nesse processo, só
guagem), significa no uso corrente: pôr à discussão. hoje podemos suspeitar. Libertar a linguagem
Heidegger, porém, a emprega na sua acepção etimoló- da gramática, para um contexto Essencial mais
gica de chegar, i.é., tornar-se linguagem-

7) Habitação = Behausung: Em alemão casa é das


Haus. Daí se formou o verbo, hausen, que exprime 8) Manifestação — Offenbarkeit: compõe-se ds offen
a função exercida pela casa, que é dar abrigo, prestar (aberto) e do sufixo bar, que diz a qualidade do
morada e habitação. O substantivo do texto é constituí- que está aberto, manifesto, patente. Do adjetivo offenbar
do por um verbo derivado de hausen, a saber be-hausen. (manifesto) se formou o substantivo, Offenbarkeit (ma-
nifestação) .

25
9
elevando-se à condição de ciência. Ora, esse
originário, está reservado ao pensar e poetizar. esforço é o abandono da Essência do pensamento.
O pensamento não é apenas "l'engagement dans A filosofia é perseguida pelo medo de perder em
l'action" para e pelo ente no sentido do real da prestigio e importância, caso não seja ciência. O
situação presente. O pensamento é "l'engagement" que se considera uma deficiência, idêntica à in-
10
pela e para a Verdade do Ser, cuja História ciência (Unwissenschaftlichkeit). Na interpreta-
nunca passou e sim sempre está por vir. A Histó- ção técnica do pensamento, se abandona o Ser
ria do Ser carrega e determina tôda "condition et como o elemento do pensar. A partir da Sofística
situation humaine". e de Platão, a "lógica" é a sanção dessa interpre-
Para aprendermos a experimentar em sua tação. Julga-se o pensar com uma medida que
pureza — e isto significa também levar à pleni- lhe é inadequada. Um tal julgamento equivale
tude — essa Essência do pensar, devemos liber- ao processo que procura avaliar a natureza e as
tar-nos da interpretação técnica do pensamento. possibilidades do peixe pela capacidade de viver
Seus primórdios remontam até Platão e Aristó- no seco. De há muito, demasiado muito, o pen-
samento vive no seco. Será que se pode chamar
teles. Para eles o pensamento é, em si mesmo,
"irracionalismo" o esforço de repor o pensamento
uma techne, o processo de calcular a serviço do
em seu elemento?
fazer e operar. Nesse processo já se toma o cál-»
culo em função e com vistas à praxis e à poesis. As perguntas de sua carta poder-se-iam escla-
Por isso, quando considerado em si, o pensamento recer melhor numa conversa direta. Por escrito,
não é prático. A caracterização do pensamento o pensamento perde facilmente a dinâmica de seu
como theoria, e a determinação do conhecimento movimento. E sobretudo dificilmente poderá
como atitude "teórica" já se processam dentro da conservar a pluridimensionalidade própria de sua
interpretação "técnica" do pensar. É um esforço envergadura. Diferente das ciências, o rigor do
reativo, visando preservar, também para o pensa- pensamento não reside apenas a exatidão arti-
mento, autonomia face. ao fazer e a $ r . Desde ficial, isto é, técnico-teórica dos conceitos. O
então, a "filosofia" sente, constantemente, a ne- rigor do pensamento se edifica na medida em que
cessidade de justificar sua existência diante das seu dizer permanece, exclusivamente, no ele-
"ciências". E crê fazê-lo, da forma mais segura, mento do Ser e deixa vigorar a simplicidade de
suas múltiplas dimensões. Mas, por outro lado,
a forma escrita impõe a necessidade salutar de
9) Poetizar = Dichten: veja-se Introdução à Metafí- formulações pensadas. Por hoje, queria escolher
sica, l . c , pg. 282, Nota 2.
apenas uma de suas perguntas, cuja colocação
10) História Geschichte: veja-se Introdução à Meta- lançará uma luz, talvez, também sobre as outras.
física, l . C , pg. 96, Nota 7.

27
26
12
Enquanto, auscultando, pertence ao Ser, o pen-
O senhor pergunta: Comment redonner un
samento é de acordo com a pro-veniência de sua
sens au mot Humanisme?". Essa pergunta pro-
Essência. O pensamento é, isso significa: o Ser
vém do propósito de conservar a palavra "huma- 13
se apegou, num destino Histórico, à sua Essên-
nismo". Pergunto-me, se é necessário. Será mes-
cia. Apegar-se a uma "coisa" ou "pessoa" em sua
mo que ainda não está bastante clara a desgra- Essência, quer dizer: amá-la, querê-la. Pensando
ça que provocam todos os títulos dessa espécie? de modo mais originário, querer significa essen-
Sem duvida, há muito que se desconfia dos "ís- cializar, dar Essência. Esse querer é que consti-
mos". Mas o mercado da opinião pública exige 14
tui a própria Essência do p o d e r , que não so-
sempre novos. E sempre se está disposto a cobrir mente pode realizar isso ou aquilo mas também
a demanda. Também os nomes, "Lógica", "Ética", deixa uma coisa "vigorar" em sua pro-veniência,
"Física", só surgiram quando o pensamento origi- isto é, deixa que ela seja. O poder do querer é
nário chegou ao fim. Em seus grandes tempos, aquilo em cuja "força" uma coisa pode propria-
os gregos pensaram sem esses títulos. Nem mes- mente ser. Esse poder é o "possível" em sentido
mo de "filosofia" chamaram o pensamento. Este próprio, a saber, aquilo cuja Essência se funda no
chega sempre ao fim, quando se afasta de seu querer. É por esse querer que o Ser pode pensar.
elemento. 0 elemento é aquilo a partir do qual
o pensamento pode ser pensamento. 0 elemen- 12) Auscultando... pertence = hoerend... gehoert:
to é o propriamente poderoso: o poder. Êle aqui se faz referência à interdependência dos dois
verbos, hoeren (ouvir, auscultar) gehoeren (pertencer), a
se apega ao pensamento e assim o conduz à
um mesmo radical.
sua Essência. Dito sem rodeios, o pensamento é
13) Destino Histórico = geschicklich: da palavra, Ge-
o pensamento do Ser. O genitivo exprime duas schick (destino) formou Heidegger o adjetivo, ges-
coisas. O pensamento é do Ser, enquanto, pro-vo- chick-lich, que não existe no alemão corrente. Geshick
11
cado pelo Ser em sua propriedade, pertence ao (destino) deriva-se de schicken (enviar, destinar). Den-
tro do pensamento Heideggeriano, Geschick (destino) é
Ser. O pensamento é ainda pensamento do Ser, tomado em sentido ativo, como o que destina e assim dá
enquanto, pertencendo ao Ser, ausculta o Ser. origem ã História (.Geschichte). Por isso o adjetivo do
texto é traduzido por: "num destino histórico".
14) Esse querer é que constitui a própria Essência do
11) Pro-vocar em sua propriedade = ereignen: trata-se poder... = solches Moegen ist das eigentliche We-
de um verbo composto de eigen (próprio) que, em sen des Vermoegens... : o verbo moegen, que significa
seu uso corrente, significa acontecer, dar-se. No entan- querer e gostar, possui um derivado, ver-moegen, que
to, Heidegger o empregado de acordo com o radical (pró- diz poder. Heidegger determina a Essência propria de
prio) no sentido de fazer com que uma coisa seja o que ver-moegen (poder) e de moeg-lich (possível), pelo sen-
ela propriamente é. tido originário de moegen (querer). Querer é poder.

28 29
15
O Ser possibilita o pensar. Querer poderoso, o explicação pelas últimas causas. Já não se pensa,.
Ser c.o "possível". Como o elemento, o Ser é "a Ocupa-se de "filosofia". Na porfia da concorrência,
força silenciosa" do poder que quer, isto é, do tais ocupações se apresentam publicamente como
possível. ísmos e procuram sobrepujar uma à outra. O
Sem dúvida, sob o domínio da "lógica" e da domínio desses títulos não é um acaso. Baseia-se,
"metafísica", só se pensam as palavras "possível" principalmente nos tempos modernos, na ditadura
e "possibilidade" em oposição a "realidade" ,isto é, toda particular da publicidade. Mas a chamada
a partir de determinada interpretação do Ser, qual "existência privada" também não constitui o ser-
seja, da interpretação metafísica do Ser, como -homem Essencial, quero dizer, livre. Ela, sim-
actus e potentia. Essa interpretação se iden- plesmente, se enrigece numa negação do que é pú-
tifica com a distinção de existentia. e essentia. blico. É um despojo dependente que se nutre da
Quando falo da "força silenciosa do possível", não simples fuga diante dele. Assim, contra a própria
me refiro ao possibile de uma possibilitas mera- vontade, dá testemunho de sua escravidão ao que
18
mente representada nem a potentia como essen- é público. Esse, por sua vez, não é outra coisa
tia de um actus de existentia. Refiro-me ao Ser do que a instituição e a absorção, condicionadas
mesmo que, querendo, tem poder sobre o pensa- metafisicamente, — de vez que proveniente do
17
mento e assim sobre a Essência do homem, o que domínio da subjetividade ,— da abertura Ido
significa, sobre a re-ferência do homem ao Ser. ente na objetivação incondicional de tudo. Por
Poder alguma coisa significa: pre-servá-la em sua isso, a linguagem é posta a serviço da transmissão
Essência, con-servá-la em seu elemento. dos meios de troca. Aqui, desconhecendo qual-
quer limite, a objetivação, como o acesso unifor-
Quando o pensamento, saindo de seu elemen-
me de tudo para todos, se expande. A linguagem
to, chega ao fim, compensa essa perda, valorizan-
cai sob a ditadura da publicidade. É essa que,
do-se como techne, isto é, instrumento de formação,
de antemão, decide o que é compreensível e o que
para se tornar, com isso, atividade acadêmica e,
deve ser rejeitado como incompreensível.
posteriormente, atividade cultural. A filosofia se
vai transformando, aos poucos, numa técnica de O que se diz em Ser e Tempo (1927), §§ 27
18
e 35 sobre o "impessoal" não pretende ser, de
15) Querer poderoso = das Vermoegenã — Moegenãe:
nessa locução se exprime que a Essência primária 17) Abertura = Offenheit: um outro substantivo foi-
do "possível" é a estrutura Instaurada pela dialética do mado de offen (aberto).
vigor originário de querer (moegen) e poder (ver-moe- 18) "o impessoal" = "das man": Heidegger substantiva
gen). aqui o pronome, man, que exprime o impessoal. E'
16) Representado — vorgestellt: esse verbo tem aqui o o on francês. Com essa substantlvação pretende expri-
sentido de: concebido como idéia. mir o domínio do impessoal.

30
forma alguma, uma simples contribuição inciden- Essencial. Ao contrário. Poderia, hoje, até, sig-
tal para a sociologia. Igualmente, o "impessoal" nificar que não vemos o perigo ou mesmo que
não significa apenas a oposição ético-existen- nem somos capazes de vê-lo, por ainda não nos
19
t i v a ao ser próprio da pessoa. O que aí se 2 0
havermos ex-posto à sua fisionomia. A decadên-
diz, contém, antes, uma indicação, pensada a par- cia da linguagem, ultimamente muito comentada
tir da questão sobre a Verdade do Ser, de que, — e com bastante atraso — não é a causa, mas
originariamente, a palavra pertence ao Ser. Essa já uma conseqüência do processo no qual a lin-
re-ferência permanece oculta, onde domina a sub- guagem, sob o domínio da moderna metafísica da
jetividade, que se apresenta como publicidade. subjetividade, decai quase inevitavelmente de seu
Tão logo que a Verdade do Ser se torna para o elemento. A linguagem continua a recusar-nos a
pensamento digna de ser pensada, a meditação sua Essência, a saber, que é a casa da Verdade do
sóbrc a Essência da linguagem tem que atingir um Ser. Ao invés, ela se entrega, simplesmente como
outro nível. Já não pode ser apenas uma sim- um instrumento para o domínio do ente, a nosso
ples filosofia da linguagem. É só por isso que querer e às nossas atividades.
Ser e Tempo (§ 34) inclui uma indicação sobre a
dimensão Essencial da linguagem e toca na ques- O próprio enle se dá. como efetivo, no sistema
2 1

tão simples do modo de ser, em que a linguagem, de causa e efeito. O ente, entendido assim
cada vez, "se essencializa", como linguagem. como o efetivo, é encontrado através de cálculos
e manipulações, bem como, na ciência e na filo-
O esvaziamento da linguagem, que prolifera sofia, através de explicações e fundamentações. A
rápido por toda parte, não corrói apenas a respon- essas pertence também garantir que uma coisa
sabilidade estética e moral, vigente em todo em- é inexplicável. Com isso cremos estar diante do
prego da linguagem. Provém de uma ameaça à mistério. Como se já estivesse estabelecido que a
Essência do homem. Um estilo apurado, somente, Verdade do Ser se pudesse' edificar sobre causas
ainda não demonstra termos evitado esse perigo e razões explicativas ou, o que dá no mesmo, sobre
a impossibilidade de sua apreensão.

19) Existentivo = existenti&ll: já Ser e Tempo i n t r o -


Caso o homem ainda deva encontrar o cami-
duz na A n a l í t i c a do Dasein a d i s t i n ç ã o e n t r e das nho da proximidade do Ser, terá de aprender pri-
existenziale e das existentielle. A p r i m e i r a e x p r e s s ã o se
r e f e r e à e s t r u t u r a o n t o l ó g i c a da e x i s t ê n c i a e n q u a n t o a
21) Sistema de causa e efeito =. im Gewirk von Ursache
s e g u n d a diz r e s p e i t o à s s u a s f o r m a s ô n t i c a s . Para tra-
und Wirkung: já v i m o s a c i m a , N o t a (2) que, na
duzir e s s a ú l t i m a e m p r e g a - s e o n e o l o g i s m o existentivo.
reflexão m e t a f í s i c a , a r e a l i d a d e é i n t e r p r e t a d a c o m o um
20) O Ser-próprio = das Selbstsein: v e j a - s e Introdu- s i s t e m a de eficiência e n t r e c a u s a e e f e i t o . Esse s i s t e m a
ção à Metafísica l . c . p g . 285 N o t a 2 3 . se e x p r i m e aqui c o m a p a l a v r a Geioirrc.

32 33
2 2
meiro a existir no inefável. Terá que conhecer mano" seja conhecido e reeonhecido. Êle o en-
23
o extravio do público como também a impotên- contra na "sociedade": O homem "social" é para
cia do privado. Antes de falar, o homem terá que êle o "homem natural". Na "sociedade" se asse-
deixar-se apelar pelo Ser mesmo com o risco de, gura equitativamente a "natureza" do homem,
sob um tal apelo, ter pouco ou ter raramento algo isto é, a totalidade de suas "necessidades naturais"
a dizer. Somente assim, se restituirá à palavra
(alimentação, vestuário, reprodução, subsistência
a preciosidade de sua Essência e ao homem, a ha-
econômica). O cristão vê a humanidade do ho-
bitação para morar na Verdade do Ser.
mem — a humanitas do homo — a partir de sua
Não haverá nesse apelo ao homem, não ha- distinção da Deitas. Na história da salvação êle
verá na tentativa de preparar o homem para tal é homem como "filho de Deus", que, em Cristo,
apelo, um esforço pelo homem? Para onde ,se percebe e assume o apelo do Pai. O homem não
24
dirige "a Cura" senão no sentido de reconduzir é deste mundo, na medida em que o "mundo",
o homem de volta à sua Essência. O que isso sig- pensado segundo a teoria de Platão, é apenas uma
nifica senão tornar o homem (homo) humano passagem transitória para o além.
(humanus) ? Destarte é a humanitas a preocupa-
É ao tempo da República Romana que, pela
ção de um tal pensamento. Pois humanismus é
curar e cuidar que o homem seja humano e não primeira vez, e expressamente com seu nome pró-
inumano, isto é, estranho à sua Essência. Todavia prio, se pensa e aspira a humanitas. O homo
em que consiste a humanidade do homem? Ela humanus se opõe ao homo barbarus. O homo
repousa em sua Essência. humanus é aqui o romano que exalta e enobrece
a virtus romana, pela "incorporação" da paideia
A partir de que e como se determina a Es- tomada dos gregos. Os gregos são os gregos do
sência do homem? Marx exige que o "homem hu- Helenismo, cuja formação se fizera nas escolas
filosóficas. Ela se refere à eruditio et institutio
22) "o inefável =^ das Namenlose: propriamente das in tonas artes. A paideia assim entendida se
Namenlose significa o sem nome, o que não tem
traduz por humanitas. A romanüas propria-
nome.
mente dita do homo romanus consiste nessa
23) Extravio = Verführung: Essa palavra designa a
humanitas. É em Roma que encontramos o
ação tendente a levar para fora do caminho devido.
Daí a tradução por extravio. primeiro humanismo. Em sua Essência, por-
tanto, o humanismo permanece um fenômeno
24) "a Cura" = "die Sorge": E' um termo característico
da Analítica Existencial desenvolvida em Sein und
especificamente romano, que nasce do encontro
Zeit. Exprime a estrutura ontológica que unifica todos da romanidade com a cultura do helenismo. A
os momentos constitutivos do "Ser-no-mundo". chamada Renascença dos séculos XIV e XV na

35
Itália é uma renascentiu vomanitatis. Porque o mo. Nesse sentido amplo, também o Cristianismo
que interessa é a romanitas, trata-se da humanitas é um humanismo de vez que, na doutrina cristã,
e, por conseguinte, da paideia grega. Mas o tudo se dirige à salvação (sahis aeterna) do ho-
grego aqui é sempre o grego em sua forma pos- mem, e a história da humanidade aparece dentro
terior e esta ainda assim, à romana. Também o da história da salvação. Por mais diversas que
sejam, segundo suas finalidades e seus fundamen-
homo romarias da Renascença está numa oposi-
tos, quanto aos modos e meios de suas realizações
ção ao homo barbaras. Todavia, o in-umano é
específicas ou consoante a forma de suas doutri-
agora o pretenso barbarismo da escolástica gótica
nas, essas espécies de humanismo, na realidade,
da Idade Média. Por isso, ao humanismo, enten-
coincidem no fato de todas elas determinarem a
dido historicamente, sempre pertence um stadium
humanitas do homo humanus a partir de uma
humanitatis que, num certo e determinado modo, interpretação já assente da natureza, da história,
retoma a antigüidade e assim se torna cada vez do mundo, do fundamento do mundo, isto é, a
um reviver da Grécia. É o que se mostra em nos- partir de uma interpretação já assente do ente em
so humanismo do século XVIII, empreendido e sua totalidade.
sustentado por Winckelmann, Goethe e Schiller.
Hoelderlin, porém, não pertence ao "humanismo". Todo humanismo ou se funda numa metafí-
E não pertence, porque êle pensa o destino da 2S
sica ou se converte a si mesmo em fundamento
Essência do homem mais originariamente do que de uma metafísica. Toda determinação da Es-
é capaz de fazer esse "humanismo". sência do homem, que já pressupõe, em si mesma,
uma interpretação do ente sem investigar — quer
Se, no entanto, por humanismo em sentido o saiba quer não — a questão sobre a Verdade do
geral, se entende o esforço tendente a tornar o Ser, é metafísica. Por isso a característica pró-
homem livre para a sua humanidade e a levá-lo a pria de toda metafísica — e precisamente no to-
encontrar nessa liberdade sua dignidade, então o
cante ao modo em que se determina a Essência do
humanismo se diferenciará segundo a concepção
homem — é ser "humanista". Em conseqüência,
de "liberdade" e de "natureza" do homem. Do
todo humanismo permanecerá sempre metafísico.
mesmo modo, serão diferentes as vias de sua rea-
lização. 0 humanismo de Marx não necessita de Ao determinar a humanidade do homem, o hu-
uma volta à Antigüidade nem tampouco o huma- manismo não só não questiona a re-ferência do
nismo, concebido, por Sartre, como existencialis- Ser à Essência do homem. Êle até impede tal
questionamento uma vez que, devido à sua pro-ve-
niência da metafísica, nem o conhece nem o en-
25) O destino = das Geschick: veja-se Introdução à
Metafísica, I . e . , pg. 98, Nota 14. tende. Mas, por outro lado, a necessidade e a

36 37
índole própria da questão sobre a Verdade do Ser, Ê certo que a metafísica representa o ente28

esquecida na e pela metafísica, só poderá vir à em seu ser e pensa assim o ser do ente. Todavia,
luz, se, no meio do império da metafísica, se co- ela não pensa a diferença entre eles (Cfr. Vom
locar a questão: "O que é metafísica?". Até ini- Wesen des Grundes — Da Essencialização do
cialmente, todo questionamento do "Ser", inclusive Fundamento —- 1929, p. 8, além de Kant und das
a questão sobre a Verdade do Ser, só se pode in- Problem der Metaphysik — Kant e o Problema da
troduzir "metaf isicamente". Metafísica, 1929, p. 225, e ainda, Sein und Zeit —
O primeiro humanismo, o romano, e todo hu- Ser e Tempo —, p. 230). A metafísica não ques-
manismo, que, desde então, tem surgido, pressu- tiona o Verdade do Ser era si mesmo. Daí tam-
põem evidente a "essência" universal do homem. bém nunca colocar a questão, de que modo a Es-
O homem é considerado como animal raíionale. sência do homem pertence à Verdade do Ser.
Tal determinação não é apenas a tradução latina Essa questão, a metafísica não apenas ainda não
do Zoon logon exon grego mas também uma inter- colocou. Ela é inaccessível à metafísica, enquanto
pretação metafísica. Essa determinação da Es- metafísica. O Ser continua a esperar, que Êle
sência do homem não é falsa. Todavia, é condi- mesmo se torne, para o homem, digno de ser
cionada pela metafísica. A proveniência de sua pensado.
Essência e não somente suas limitações torna- Como quer que se determine, com respeito à
28
ram-se dignas-de-serem-questionadas em Ser e determinação da Essência do homem, a ratio do
Tempo. 0 digno-de-ser-questionado é o que, an- animal e a razão do ser vivo, seja como "faculdade
tes de tudo, se dá ao pensamento com o que há dos princípios", ou como "faculdade das catego-
27
de ser pensado , e de forma alguma, como o que rias" ou de outro modo qualquer, sempre a Essên-
submerge na voracidade de uma mania de dúvida. cia da razão se funda em que o Ser em si mesmo
já se iluminou e aconteceu em sua Verdade em
20

26) "dignas de serem questionadas = frag-würãig: Esse toda percepção do ente em seu ser. Igual-
é um adjetivo composto de fragen (questionar) e mente, no animal, Z.oon, já se põe uma interpre-
würdig (digno, merecedor). A composição de ambos in-
dica o que, por si mesmo, se impõe como digno de ser
28) representa = vorstellen: Veja-se, acima, a Nota 16.
questionado.
27) o que há de ser pensado — das Zu-Denkende. Em 29) percepção = Vernehmen: Trata-se de um compos-
alemão uma das maneiras de se exprimir a idéia to de nehmen (tomar). O prefixo, ver — ajunta
de tarefa e dever é uma locução composta do auxiliar ser ao radical o sentido de intensidade, penetração e profun-
(sein) ou ter (haben) e da preposição, para (zu) com o didade. Daí vernehmen significa: entender, perceber e
infinito. Heidegger substantiva essa locução, das Zu- auscultar. E' desse verbo que se deriva a palavra alemã
Denkende — o a pensar. para dizer razão, die Vernunft.

38 39
tação da "vida", que, necessariamente, se baseia A metafísica se tranca ao dado Essencial
numa interpretação do ente como Zoe e Physis, simples, de que o homem só vige em sua Essência,
na qual o ser vivo aparece. Além disso — e antes enquanto é interpelado pelo Ser. Unicamente a
de tudo — resta perguntar, por fim, se origina- partir dessa interpelação êle "encontrou" onde
riamente e antecedendo, decisivamente, a tudo, a mora sua Essência. Somente a partir desse mo-
Essência do homem repousa na dimensão da ani- rar, "tem" êle "linguagem", como a morada, que
malitas. Estaremos num bom caminho para a pre-serva o ec-stático para sua Essência. Chamo
Essência do homem, quando e enquanto dis-tin- ec-sistência do homem o estar na clareira do Ser.
guirmos o homem, como um ser vivo entre outros, Esse modo de ser só é próprio do homem. Assim
da planta, do animal e de Deus? Sem dúvida, entendida, a ec-sistência não é apenas o funda-
assim também se poderá proceder; dessa maneira mento de possibilidade da razão, ratio. É tam-
será possível situar o homem dentro do ente, co- bém onde a Essência do homem con-serva a pro-
mo um ente entre outros. E, ao fazê-lo, sempre -veniência de sua determinação.
se há de conseguir afirmar algo correto do homem.
Só se pode dizer ec-sistência da Essência do
Todavia, também dever-se-ia ter sempre em mente,
homem, isto é, do modo humano de "ser", pois
que, assim, o homem permanecerá definitivamente
somente o homem, até onde alcança nossa expe-
relegado ao âmbito de vigor da animatitas, mesmo
riência, foi introduzido no destino da ec-sistência.
no caso de não vir a ser identificado com o animal
Por isso também a ec-sistência nunca pode ser
mas de se lhe atribuir uma diferença específica
pensada como uma espécie particular entre outras
Em princípio, se pensa sempre o homo animalis
80
espécies de seres vivos, suposto, naturalmente, que
ainda quando se põe anima , como animus uive foi destinado ao homem pensar a Essência de seu
meus e essa, como sujeito, como pessoa, como es- ser e não, apenas, fazer relatórios sobre a natureza
pírito. Esse pôr é o modo próprio da metafísica. e a história de sua constituição e de suas ativi-
Desse modo, a Essência do homem é apoucada e dades. Assim, na Essência da ec-sistência, se funda
nunca pensada em sua pro-veniência. . A prove- também o que, em comparação com o "animal",
niência da Essência do homem permanecerá sem- se atribui ao homem, como animalitas. O corpo
pre para a humanidade Histórica seu por-vir Es- dü homem é algo Essencialmente diferente de um
sencial. A metafísica pensa o homem a partir da organismo animal. Não se supera o e r r o do 3 1

animalitas. Ela não o pensa na direção de sua biologismo, ajuntando-se ao corpo do homem a
humanitas. alma e à alma, o espírito e ao espírito, o existen-

30) Anima: H e i d e g g e r a l u d e aqui à c o n e x ã o da p a l a - 31) Erro = Irre: v e j a - s e Introdução à Metafísica, l . c .


vra, animal, c o m a p a l a v r a , anima. p g . 99, N o t a 26.

47
32
l i v o , nem por se proclamar mais alto do que significa realidade. Em Ser e Tempo (p. 42)
33

antes, o apreço pelo espírito, para, logo a se- acha-se grifada a frase: "A essência do Dasein
guir, reduzir tudo à vivência da vida, garantindo-se está na existência." Pois não se trata de uma con-
numa advertência, que, com seus conceitos rígidos, traposição de existentia e essentia de vez que não
o pensamento destrói o fluxo da vida e o pensa- estão em questão essas duas determinações metafí-
mento do Ser deturpa a existência. Que a fisio- ticas do Ser e muito menos, suas relações. Ainda
logia e a química fisiológica possam investigar o menos contém a frase uma afirmação geral sobre
homem, como organismo, à maneira das ciências o Dasein no sentido em que esse termo, cunhado
naturais, ainda não prova que a Essência do ho- no século XVIII para designar objeto (Gegenstand),
mem esteja nesse "orgânico", isto é, no corpo ex- pretendia exprimir o conceito metafísico da rea-
plicado cientificamente. Isso é tão pouco exato, lidade do real. Ao invés, a frase quer dizer: o
como julgar-se que na energia atômica reside a homem se essencializa, de tal sorte que êle é o "lu-
Essência da natureza. Pois pode muito bem ser gar" (Da), isto é, a clareira do Ser. Esse "ser"
que a natureza esconda sua Essência precisamente do lugar (Da), e só êle, possui o caráter funda-
no lado em que se presta ao controle técnico do mental (Grundzug) de ec-sistência, isto é, da in-
homem. Assim como a Essência do homem não sistência ec-stática na Verdade do Ser. A Es-
consiste em ter êle um organismo animal, assim sência ec-stática do homem repousa na ec-sistên-
também não se pode eliminar ou compensar essa cia, que é e permanece diferente da existentia
determinação insuficiente da Essência do homem, pensada metafisicamente. Essa última é enten-
dotando-o de uma alma imortal ou da força da dida pela filosofia medieval como actualitas.
razão ou do caráter de pessoa. Sempre, em todos Kant apresenta a existentia como sendo realidade,
esses casos, se passa à margem — e em razão do
no sentido de objetividade da experiência. Hegel
mesmo projeto metafísico — da Essência do
homem.
33) Dasein: Trata-se de um vocábulo em que Heidegger
O que o homem é, — isso significa, ha lin- procura dizer a Essência do homem pensada origi-
guagem tradicional da metafísica, a "essência" nariamente. E' formado de sein (ser) e de da (aqui, lá,
do homem — repousa na ec-sistência. Mas a como advérbio, e o aqui, o lugar, como substantivo).
ec-sistência aqui pensada não se identifica com o Assim Dasein diz o aqui, o lugar, do Ser, i . é . , a dimen-
são instituída pelo Ser onde o Ser se manifesta. Do
conceito tradicional de existentia que, distinguin- ponto de vista etimológico, a melhor tradução portuguesa
do-se de essentia, concebida como possibilidade. seria presença, de vez que o prefixo, pre-, do latim
prae-, dá também a idéia de lugar e localização, en-
quanto o radical, sença, do latim' sentia, implica o verbc
32) o existentivo = das existentielle: veja-se, acima,
Nota 19. esse, ser.

42 43
determina a existentia, como a idéia da subjetivi- encontram-se suspensos sem mundo no seu am-
dade absoluta, que se sabe a si mesma. Nietzsche biente. É realmente nessa palavra, "ambiente",
concebe a existentia, como o eterno retorno do que se concentra todo o enigma do ser vivo. Em
mesmo. Sem dúvida, ainda fica aberta a questão, sua Essência, a linguagem não é nem a exteriori-
se, por meio da existentia, entendida como reali- zação de um organismo, nem a expressão de um
dade, em suas diversas interrpetações — só à pri- ser vivo. Por isso também ela nunca pode ser
meira vista, distintas entre si — já se pensa sufi- pensada, de acordo com sua Essência, a partir de
cientemente o ser da pedra ou mesmo a vida, como seu caráter semasiológico, nem talvez mesmo a
o ser do vegetal e do animal. Em todo caso, os partir de seu caráter significativo. A linguagem
seres vivos são, assim como são, sem que, a partir é o advento do próprio Ser que se clareia e se
de seu ser, como tal, estejam na Verdade do Ser esconde.
e nesse estar pre-servem a essencialização (das Pensada de maneira ec-stática, a ec-sistência
Wesende) de seu ser. Pode-se presumir que, de não coincide com existentia nem quanto ao con-
todos os entes, que são, o ser vivo, é para nós, o teúdo nem quanto à forma. Em seu conteúdo,
mais difícil de ser pensado. Pois, se de um lado, 34
ec-sistência significa exportar a Verdade do Ser.
êle nos é o mais próximo, de outro lado, está se- Existentia (existence) diz, ao contrário, actualitas,
parado de nossa Essência ec-sistente por um abis- realidade, distinguindo-se da simples possibilidade
mo. Quer-nos parecer até que a Essência do Di- concebida como idéia. Ec-sistência evoca a. deter-
vino nos seja mais próxima do que o estranho ser minação do que o homem é no destino do Verdade
vivo; mais próxima, a saber, numa distância de do Ser. Existência permanece o nome para a rea-
Essência, que, como distância, é mais familiar a lização do que uma coisa é, enquanto aparece em
nossa Essência ec-sistente do que o parentesco sua idéia. A frase "o homem ec-siste" não res-
abismal de nosso corpo com o animal, que mal po- ponde à pergunta, se o homem é ou não real.
deremos pensar completamente. Essas reflexões Ela responde à pergunta pela "Essência" do ho-
lançam uma luz estranha sobre a maneira cor-
rente, e, por isso mesmo, sempre apressada de ca-
racterizar o homem, como animal rationale. Por- 34) ex-portar = hinaus-stehen: E' uma locução com-
que os vegetais e os animais, embora se achem posta do verbo, stehen (estar, encontrar-se) e da
preposição, hinaus (para fora de, fora). A preposição
numa tensão com seu ambiente, nunca estão pos- como a regência empregada (acusativo) dão à idéia de
tos livremente na clareira do Ser — e só essa é estar fora uma conotação de dinamismo e movimento.
"mundo" —, por isso lhes falta a linguagem. E Por isso se traduziu pelo verbo, ex-portar, ressaltando-se
não, ao contrário, por lhes ser negada a linguagem, a idéia de movimento para fora pela separação do pre-
fixo, ex-.

44 45
mem. Essa pergunta costumamos fazê-la de atividade da subjetividade. Nesse caso, porém,
modo igualmente indevido, tanto perguntando, o não é pensado da única maneira em que a "com-
que é o homem, como perguntando, quem é o ho- preensão do Ser" pode ser pensada no âmbito da
mem. Pois no "quem?" ou no "O queV jã bus- "Analítica existencial" do "Ser-no-mundo", a saber,
camos uma pessoa ou um objeto. Ora, o pessoal como a re-ferência ec-stática à clareira do Ser.
não erra nem, ao mesmo tempo, obstrui menos a A tarefa de se repetir e acompanhar de modo sa-
essencialização (das Wessende) da ec-sistência na tisfatório esse outro modo de pensar, que abandona
História do Ser (seinsgeschichtlich) do que o obje- a subjetividade, foi, na verdade, dificultada pelo
tivo. Por isso na frase citada de Ser e Tempo (p. fato de se haver retido, na publicação de Ser e
52), se escreveu, de propósito, a palavra "Essência" Tempo, a terceira secção da primeira parte, inti-
entre aspas. Com isso se quer indicar que não se tulada Tempo e Ser (Cf. Ser e Tempo, p. 39).
determina a "Essência" nem a partir do esse es- Aqui tudo se inverte. Essa secção foi retida, por-
sentiae nem a partir do esse existentiae mas a que o pensamento não chegou a exprimir de modo
partir do ec-stático do Dasein. Enquanto ec-sis- suficiente essa inversão e com a ajuda da lingua-
tente, o homem suporta o Da-sein, assumindo na gem da metafísica não conseguiu executá-la. A
"Cura" o lugar (Da), como a clareira do Ser. O conferência, Da Essência da Verdade, que, embora
Da-Éein mesmo, porém, se essencializa num "lan- pensada e pronunciada em 1930, só foi impressa
çamento". Êle se essencializa no lance do Ser, em 1943, deixa entrever, de certo modo, o pensa-
que, destinando-se, instaura o destino. mento da inversão de Ser e Tempo para Tempo r
Ser. Essa inversão não constitui uma mudança na
0 cúmulo do extravio seria pretender-se ex- posição de Ser e Tempo mas é nela que o pensa-
plicar a frase sobre a Essência ec-sistente do ho- mento aí tentado alcança o lugar da dimensão, a
mem, como uma transposição secularizada, para partir da qual se fêz a experiência de Ser e Tempo,
o homem, de uma idéia sobre Deus da teologia e se fêz a partir da experiência fundamental do
cristã (Deus est suum esse). Pois a ec-sistência
esquecimento do Ser.
nem é a realização de uma essência nem produz e
35
põe por si mesma o essencial . Entendido como Sartre, ao contrário, expressa o princípio fun-
ato "positivo" de representação, o "projeto" mencio- damental do Existencialismo do seguinte modo:
nado em Ser e Tempo é considerado como uma a existência precede a essência. Êle toma aqui
existentia e essentia no sentido da metafísica, que
desde Platão diz: a essentia antecede a existentia.
35) o Essencial = das Essentielle: Deve-se tomar Es- Sartre inverte os termos dessa frase. Ora, a
sencial aqui no sentido do que pertence à Essên-
cia. inversão de uma frase metafísica continua sendo

46 47
uma frase metafísica. Assim como sua frase, que ficou dito — de um modo bastante acanhado.
continua êle, com a metafísica, no esquecimento Talvez o que ainda hoje está por se dizer, poderia
converter-se num estímulo tendente a levar a Es-
da Verdade do Ser. Pois como quer que a filo-
sência do homem a considerar, pensando, a di-
sofia determine as relações de essentia e existentia,
mensão da Verdade do Ser, que a penetra e do-
seja no sentido das controvérsias da Idade Média,
mina com seu vigor. Todavia, também isso só
seja no sentido de Leibniz ou de outra maneira
poderá dar-se em prol da dignidade do Ser e em
qualquer, ela deve primeiro perguntar antes de benefício do Da-sein, que o homem, ec-sistindo,
mais nada: a partir de que destino do Ser se chega suporta, não, porém, em função do homem, para
a pensar no Ser essa distinção de esse essentiae que através de suas criações se façam valer civili-
e de esse existeníiae. Resta a pensar, por que a zação e cultura.
questão sobre esse destino do Ser nunca foi ques-
tionada e por que ela jamais pôde ser pensada. A fim de alcançarmos a dimensão da Verdade
Ou o fato de assim achar-se o distinção de essentia do Ser, para podermos pensá-la, temos primeiro
e existentia não será um sinal de esquecimento do que esclarecer, como o Ser atinge o homem e o
Ser? Podemos supor, que esse destino não se requisita. Essa experiência Essencial, nós a fa-
funda numa simples negligência do pensamento zemos quando nos ocorre que o homem é, en-
humano, menos ainda numa menor capacidade quanto ec-siste. Dito inicialmente na linguagem
do pensamento ocidental do passado. A distinção da tradição, isso se exprime nas palavras: a ec-
— escondida quanto à proveniência de sua Es- sistência do homem é a sua substância. Por
sência — de essentia (quididade) e existentia (rea- isso, em Ser e Tempo, sempre de novo retorna a
lidade) domina o destino da História ocidental e frase: "A "substância" do homem é a existência"
(pp. 117, 212, 314). Mas "substância", pensada
de toda a História determinada pela Europa.
dentro da História do Ser, já é uma tradução, que
A frase capital de Sartre sobre a precedência encobre o sentido, de ousia, palavra que evoca a
da existentia frente à essentia justifica, sem em- 36
essencialidade do que se essencializa , mas que,
bargo, o nome de "Existencialismo" como um por uma misteriosa equivocidade, significa, na
título adequado a essa filosofia. A frase do maioria das vezes, o que se essencializa. Se pen-
"Existencialismo", no entanto, não tem nada de sarmos o termo metafísico "substância" nesse
comum com a frase de Ser e Tempo; mesmo pres- sentido — que Ser e Tempo, de acordo com a
cindindo de que, em Ser e Tempo, ainda não se
poderia pronunciar uma frase sobre a relação de
essentia e existentia. Pois se trata de preparar 36) se essencializa = west: veja-se Introdução à Me-
algo ainda prévio, o que se faz — como se vê pelo tafísica, l . c , pg. 283, Nota 9.

48
"destruição fenomenológica" realizada, já tem em
c os deuses, a História e a natureza ingressam, se
mente (cf. p . 25) — então a frase, "a substância"
apresentam e se ausentam da clareira do Ser, isso
do homem é a existência" não diz outra coisa se-
não c o homem quem decide. O advento do ente
não: o modo em que o homem, em sua própria
repousa no destino do Ser. Para o homem, a
Essência, se essencializa, com referência ao Ser, é 37
questão é, se êle encontra o que é "destinado"
in-sistir ec-stàticamente na Verdade do Ser. Com
essa determinação da Essência do homem não se à sua Essência, correspondente ao destino do Ser.
declaram falsas nem se rejeitam as interpretações Pois é de acordo com esse destino, que, como ec-
humanistas do homem, como animal rationale, -sistente, êle tem de guardar a Verdade do Ser.
como "pessoa", como ser dotado de alma, espírito 0 homem é o pastor do Ser. É somente nessa
e corpo. Ao contrário, o único pensamento a se direção que pensa Ser e Tempo, ao fazer, "na
exprimir é que as determinações humanistas da Cura", a experiência da ec-sistência ec-stática.
Essência do homem, ainda mesmo as mais elevadas, (Cf. § 44a, pp. 226 ss).
não chegam a fazer a experiência do que é propria- Mas o Ser — o que é o Ser? É Êle mesmo.
mente a dignidade do homem. Nesse sentido o O pensamento vindouro terá de aprender a fazer
pensamento de Ser e Tempo é contra o humanis- essa experiência e a dizê-la. O "Ser" não é nem
mo. Essa oposição, todavia, não significa que um Deus nem um fundamento do mundo. O Ser está
tal pensamento bandeie para o lado oposto do mais distante do que todo ente e, não obstante,
humano e preconize o inumano, defenda a des- está mais próximo do homem do que qualquer
umanidade e degrade a dignidade do homem. Ao ente, seja um rochedo, um animal, uma obra
contrário. Pensa-se contra o humanismo porque d'arte, uma máquina, seja um anjo ou Deus. O
o humanismo não coloca bastante alto a humani- Ser é o mais próximo. E, todavia, para o homem
tas do homem. De fato, a grandeza da Essência é a proximidade o que lhe está mais distante. Em
do homem não consiste em ser êle, como "sujeito", primeira aproximação, o homem se atém sempre,
a substância do ente, para, na qualidade de dés- e somente, ao ente. Sem dúvida, sempre que o
pota do Ser, fazer com que a entidade (Seiendsein) pensamento se representa o ente como ente, refe-
do ente se reduza à tão celebrada "objetividade". re-se ao Ser. No entanto, não pensa, na verdade,
senão o ente como tal e nunca o Ser como tal.
Ao invés, o homem foi "lançado" pelo próprio A "questão do Ser" continua sendo a questão sobre
Ser na Verdade do Ser, a fim de que, ec-sistindo o ente. A questão do Ser não é, de forma alguma,
nesse lançamento, guarde a Verdade do Ser; a fim o que designa esse título capcioso: a questão sobre
de que, na luz do Ser, o ente apareça como o ente
que é. Se e como o ente aparece, se e como Deus
37) destinado = schicklich: veja-se, acima, a Nota 13.
50
51
• •

o Ser. A filosofia, mesmo quando se faz "crítica" cepção se tornou um propor-diante-de-se (Vor-sich-
como em Descartes e Kant, segue sempre a esteira -Herstellen) na perceptio da res cogitans, como
da representação metafísica. Ela pensa a partir subiectum da certitudo.
do ente e na direção do ente através de uma visão
Supondo que nos seja permitido pergun-
sobre o Ser. Pois já é na luz do Ser que sempre
tar dessa maneira, como se conduz o Ser fren-
se processa todo movimento a partir do ente, como
te à ec-sistência? O próprio Ser é a conduta
todo retorno para o ente.
(Verhältnis), porquanto êle conduz e reúne em
A metafísica só conhece a clareira do Ser ou si a ec-sistência, em sua Essência ec-sistencial,
simplesmente como o v i s o que oferece, em seu 38
isto é, ec-stática, como o lugar da Verdade do Ser
"aspecto" (idea), o presente (das Auwesende) ou no meio do ente. Porque, enquanto ec-sistente, o
criticamente como o visado na pro-spectiva da 3 9
homem chega a estar nessa conduta (Verhältnis),
representação categorial por parte da subjetivi- em que o próprio Ser se destina, na medida em
dade. Isso quer dizer: a Verdade do Ser, como que o homem o suporta ec-stàticamente, isto é,
a própria clareira, permanente oculta à metafísica. na medida em que o homem o assume na Cura,
Esse estar-oculto, porém, não é uma deficiência da por isso, em primeira aproximação, êle desconhece
metafísica mas o tesouro de sua riqueza, que lhe o mais próximo e se atém ao menos próximo (das
é recusado e sem embargo lhe é oferecido. A pró- Vebernächste). Pensa até que o menos próximo
pria clareira é o Ser. É ela que, dentro do destino é o mais próximo. E, no entanto, mais próximo
do Ser, outorga à metafísica a perspectiva (An- do que o mais próximo, e, ao mesmo tempo, mais
blick), a partir da qual o pre-sente afeta o homem distante, para o pensamento comum, do que o
que se lhe apresenta, de sorte que, na percepção que para esse pensamento é o mais distante, é a
(noein), o próprio homem pode atingir o Ser própria proximidade: a Verdade do Ser.
(thigein, Aristóteles, Met. VIII, 10). É a pers-
pectiva (Anblick) que suscita pro-specção (Hin- O esquecimento da Verdade do Ser em favor
-sichl) . Aquela se entrega a essa, quando a per- da avalanche do ente, não pensado em sua Es-
sência, é o sentido da "decadência", mencionada
em Ser e Tempo. A palavra, "decadência", não
38) o viso = der Her-blick: S u b s t a n t i v o c o m p o s t o de
significa uma queda no pecado do homem, enten-
blicken ( o l h a r ) e her (para c á ) , q u e i n d i c a a s s i m a
f i s i o n o m i a que u m a coisa a p r e s e n t a e oferece e m sua p r e -
dida segundo a "filosofia moral" mas ao mesmo
sença . tempo, num sentido secularizado. Ela designa
39) pro-spectiva = Hinsicht: E' o â n g u l o de v i s ã o sob
uma referência Essencial do homem com o Ser
o qual a c o n c e p ç ã o m e t a f í s i c a do e n t e se coloca dentro da referência do Ser à Essência do homem.
p a r a r e p r e s e n t á - l o s e g u n d o o e s q u e m a das c a t e g o r i a s . Em conseqüência, os titulos, "propriedade" e "im-

52 53
\

propriedade", que preludiam a decadência, não homem, assim também a interpretação metafísico-
significam uma distinção moral-existentiva nem 40
-animal da linguagem encobre-lhe a Essência; na
"antropológica" mas a referência "ec-stática" da História do Ser. De acordo com essa Essência,
Essência do homem à Verdade do Ser, referência a linguagem é a casa do Ser, edificada em sua
41

essa, que, antes de tudo, resta ainda a pensar, propriedade pelo Ser e disposta a partir do Ser.
Por isso urge pensar a Essência da linguagem
porque, até agora, permaneceu oculta à filosofia.
numa correspondência ao Ser e como uma tal cor-
Mas não é em razão da ec-sistência que essa refe-
respondência, isto é, como a morada da Essência
rência é assim como ela é. É, ao contrário, a Es-
do homem.
sência da ec-sistência que provém ec-stàtica-ec-
-sistencialmente da Essência da Verdade do Ser. O homem não é apenas um ser vivo, que, en-
tre outras faculdades, possui também a lingua-
O que o pensamento, que, pela primeira vez, gem . Muito mais do que isso. A linguagem é a casa
procurou expressar-se em Ser e Tempo, pretende do Ser. Nela morando, o homem ec-siste na me-
alcançar, é algo de muito simples. Por ser sim- dida em que pertence à Verdade do Ser, prote-
ples, o Ser permanece misterioso, a proximidade gendo-a e guardando-a.
calma de um vigor (Walten), que não se impõe Destarte, na determinação da humanidade do
à força. Essa proximidade se essencializa como a homem, como ec-sistência, o que importa é que
linguagem. Mas a linguagem não é meramente não é o homem o Essencial mas o Ser, como a
linguagem, no sentido em que a concebemos, dimensão do ec-stático da ec-sistência. Todavia
quando muito, como a unidade de fonema (gra- não se deve entender aqui dimensão no sentido
fema), melodia e ritmo e significação (sentido) . conhecido de espaço. Ao contrário, tudo que é
E pensamos no fonema e no grafema o corpo, na espacial e todo espaço-tempo se essencializa no
melodia e no ritmo a alma e na significação (das dimensional, no qual o Ser mesmo é.
Bedeutungsmüssige) o espírito da linguagem
O pensamento se concentra na consideração
Assim, de ordinário, pensamos a linguagem numa
dessas simples referências. Para elas procura a
correspondência à Essência do homem, no sentido
palavra devida dentro da linguagem de há muito
em que essa última é representada como animal
tradicional da metafísica e de sua gramática.
rationale, isto é, como a unidade de corpo-alma-
Suposto que um título tivesse alguma importân-
-espírito. No entanto, assim como na humanitas
cia, será que esse pensamento ainda poderia ser
do homo animalis fica oculta a ec-sistência e com
designado como humanismo? De certo que não,
a ec-sistência a referência da Verdade do Ser ao
41) edi)içada em sua propriedade = ereignet: veja-se
40) existentiva = existentiell: veja-se, acima, a Nota 19. acima Nota 11.

54 55
enquanto o humanismo pensa metafisieamente. a dizer o Ser em sua Verdade, ao invés de expli-
Certamente não, se fôr existencialismo e defender cá-lo como um ente, tem que ficar aberta, para
a frase, que Sartre assim exprime: "précisément o desvelo cuidadoso do pensamento, a questão, se
nous sommes sur un plan où il y a seulement des e como o Ser é.
hommes". (L'Existencialisme est un humanisme,
Até hoje ainda não foi pensado o est in gar ei-
p . 36). Em vez disso, dever-se-ia dizer, pensan-
nai de Parmênides. Por aí se pode medir, como se
do-se segundo Ser e Tempo: "précisément nous
dá o progresso da filosofia. Ela — se levar em
sommes sur un plan où il y a principalement
consideração sua Essência — não pro-gride de
l'Etre". Mas, donde provém, e o que é le plan?
forma alguma. Ela pisa sempre no mesmo lugar
"L'Etre et le plan" são o mesmo. É de propósito
para pensar sempre o mesmo. Pro-gredir, no
e com cautela que se diz em "Sem e Tempo" (p.
sentido de abandonar seu lugar, é um erro, que
212): il y a l'Etre: "es gibt" o Ser. 0 "il y a" acompanha o pensamento como a sombra que êle
traduz inexatamente o es gibt". Pois o "es" que mesmo projeta. Porque o Ser ainda não foi pen-
aqui "gibt" (dá), é o próprio Ser. O "gibt" sado, por isso também, em Ser e Tempo, se diz do
(dá) evoca a Essência do Ser, que se doa, con- Ser: "es gibt" (se dá) . Mas sobre esse "il y a"
cedendo a sua Verdade. O dar-se a si mesmo com não se poderá especular diretamente e sem am-
a abertura à abertura é o próprio Ser. paro. Esse "es gibt" vige e vigora como o destino
Ao mesmo tempo, emprega-se o "es gibt" (se do Ser, cuja História chega a ser linguagem na
palavra dos pensadores Essenciais. Daí, o pensa-
dá), para evitar, por enquanto, a locução: "o Ser
mento que pensa a Verdade do Ser, é, como pen-
é"; pois o é se diz comumente daquilo que é. E
samento, Histórico. Não há um pensamento "sis
isso chamamos de ente. Ora, o Ser não é o ente.
temático" e a seu lado para ilustração, uma histo-
Por isso, se se diz o é, sem ulteriores explicações,
riografia das opiniões passadas. Mas também não
do Ser, então facilmente se entende o Ser como há apenas, como pensa Hegel, uma sistemáti-
um ente, à maneira dos entes conhecidos, que ca, que pudesse fazer da lei de seu pensamento
como causa produzem efeito ou como efeito são a lei da História, absorvendo-a no sistema. 42

produzidos. Sem embargo, já nos primórdios do


pensamento, diz Parmênides : estin gar einai, "é,
42) absorvendo no sistema = in das System aufgeho-
pois, o Ser". Nessa palavra se esconde para todo ben: Aufheben é um verbo c o m três s i g n i f i c a ç õ e s
pensamento o mistério originário. Talvez o é só p r i n c i p a i s : suprimir, elevar, c o n s e r v a r . E' n a dialética
possa ser dito de maneira adequada do Ser, de d e s s a s três s i g n i f i c a ç õ e s que se t o r n o u t e r m o t é c n i c o da
sorte que, em sentido próprio, nenhum ente é. filosofia de H e g e l . H e i d e g g e r o e m p r e g a aqui n e s s a a c e p -
ção técnica. Absorver c o n s t i t u i a m e l h o r c o r r e s p o n d ê n -
Todavia, porque o pensamento ainda deve chegar
cia p o r t u g u e s a , e x p r e s s a n u m a p a l a v r a .

56 57
tória da Verdade do Ser. O que dela provém, não
Dá-se — se se pensa mais originariamente — a se pode atingir ou eliminar por meio de refuta-
História do Ser, à qual pertence o pensamento, ções. Só se pode a-colhêr na medida em que sua
43
como a m e m ó r i a dessa História, por cujo pro- verdade é protegida mais originariamente, retor-
cesso o pensamento se edifica em sua proprie- nando ao próprio Ser, e desvinculada do domínio
4 4
dade. A memória se distingue essencialmente de uma opinião simplesmente humana. No âm-
do presentificar posterior da história no sentido bito do pensamento Essencial toda refutação é
do que transcorreu no passado. A História não uma nesciedade. A disputa entre pensadores é
se processa primordialmente como acontecimento. 45
a "disputa diligente" da causa em si mesma. É
E esse não é transcorrer. O processar-se da His- ela que lhes facilita alternadamente pertencerem
tória se essencializa como o destino da Verdade à mesma causa, a partir da qual eles encontram o
do Ser a partir desse próprio destino (Cf. a Con- que lhes é destinado, no destino do Ser.
ferência sobre o hino de Hoelderlin, "Wie wenn
Suposto que, no porvir, o homem possa pensar
am Feiertage..." , (Como quando em dia de
f e s t a . . . ) , 1941, p. 31). Destino de-vém o Ser, a Verdade do Ser, então êle pensará a partir da
quando Êle, o Ser, se dá. Isso, porém, pensado ec-sistência. Pois ó ec-sistindo que êle está no
consoante o destino, quer dizer: Êle se dá e se destino do Ser. A ec-sistência do homem é, como
recusa simultaneamente. Não obstante, não é ec-sistência, Histórica e não somente ou até mes-
não-verdadeira a determinação da História de mo exclusivamente, porque, no curso do tempo,
Hegel, como o des-envolvimento do "Espírito". acontece com o homem e com as coisas humanas
Mas também ela não é em parte correta, em parte toda sorte de ocorrências. Porque se trata de pen-
falsa. É tão verdadeira, como a metafísica é ver- sar a ec-sistência do Da-sein, por isso importa tan-
dadeira, cuja Essência, pensada absolutamente, se to ao pensamento de Ser e Tempo, que a Histori-
fêz linguagem no sistema pela primeira vez em cidade do Dasein seja experimentada.
Hegel. Incluindo suas inversões em Marx e en Mas não se diz em Ser e Tempo (p. 212) pre-
Nietzsche, a metafísica absoluta pertence à His- cisamente lá onde se fala do "es gibt" (se d á ) :
"só enquanto é o Dasein, dá-se Ser"? Realmente.
43) memória — Andenken: essa palavra se compõe do
verbo, denken (pensar) e da preposição, an (em, ao 45) "disputa diligente" = "der liebende Streit": liebend,
lado de, junto a ) , daí seu sentido corrente de recordação, o qualificativo dessa disputa, é o particípio presente
lembrança. Heidegger o toma em sua acepção originá- do verbo lieben (amar), mas Heidegger o toma no sen-
ria de pensar em. E' também esse o significado origi- tido explicado no início do texto. Emprega-se na tradu-
nário de memória. ção o adjetivo, diligente, para se evitarem as conotações
44) por cujo processo... edifica em sua propriedade... do adjetivo "amorosa".
= von ihr selbst ereignet: veja-se, acima, Nota 11.
59
58
E isso significa: só enquanto se a-propria a cla-46 clareira do ente, como tal, é, e permanece, inevi-
reira do Ser, é que o Ser se entrega, no que êle é tável para o exórdio de um pensamento que pre-
propriamente, ao homem. Que, porém, o Da para a questão sobre a Verdade do Ser. Dessa
(lugar), a clareira, como Verdade do próprio Ser. maneira, o pensamento testemunha sua Essência
se a-proprie, é destinação do próprio Ser. É o destinada (geschicklich). A presunção de querer
destino da clareira. A frase não significa: O começar tudo de início e declarar falsa toda filo-
Dasein do homem, no sentido tradicional de exis- sofia anterior, lhe é estranha. Quanto, porém, a
tentia, e pensado modernamente, como a realida- saber, se a determinação do Ser, como o ab-soluta-
de do ego cogito, é aquele ente por meio do qual mente transcendem, já evoca a Essência simples
o Ser é criado. A frase não diz, que o Ser é da Verdade do Ser, isso e só isso constitui a pri-
um produto do homem. Na introdução de Ser e meira questão para um pensamento, que procura
Tempo (p. 38) está clara e simplesmente, e até pensar a Verdade do Ser. É por isso que, à pá-
grifado: "0 Ser é o ab-solutamente (schlechthin) gina 230 de Ser e Tempo, se diz que somente a
transcendem". Assim como a abertura da pro- partir do "Sentido", isto é, da Verdade do Ser se
ximidade espacial transcende, vista da perspectiva pode compreender, como o Ser é. O Ser se clareia
das coisas que lhe são próximas e distantes, essas para o homem no projeto ec-stático. Todavia,
mesmas coisas, assim também o Ser está essencial- esse projeto não cria o Ser.
mente mais distante do que qualquer ente, poi-
Ademais, o projeto é Essencialmente um
sei- Êle a própria clareira. Todavia, de acordo
com o ponto de partida (Ansatz), inicialmente, projeto lançado. O que lança no projeto, não
inevitável situado dentro do domínio da metafí- é o homem mas o próprio Ser. Esse des-
sica, o Ser é pensando a partir do ente. Somente tina o homem na ec-sistência do Da-sein,
47
desta perspectiva é que o Ser se apresenta numa como sua Essência. O destino se a-propria,
transcendência e como transcendência. como a clareira do Ser, que é, enquanto clareia.
É a clareira que outorga a proximidade do Ser.
A determinação introdutória, "o Ser" é o ab- Nessa proximidade, na clareira do "Da" (lugar),
-solutamente transcendem", reúne numa simples mora o homem, como ec-sistente, sem que êle
frase o modo em que, até agora, a Essência do já hoje possa experimentar e assumir esse
Ser se tem clareado ao homem. Essa determina- morar. A proximidade do Ser, que é o "Dá"
ção retrospectiva da Essência do Ser, a partir da (lugar) do Dasein, o discurso sobre a elegia
de Hoelderlin, Heimkunft (Regresso) (1943) a
46) se a-propria = ereignet: tem aqui o significado ex-
plicado, acima, na Nota 11, de chegar à sua pro-
priedade. 47) se a-propria = ereignet: veja-se a Nota anterior

60 61
pensa segundo Ser e Tempo; a percebe mais ex- tamente com eles, a História do mundo (Vide
plicitamente pela poesia do Poeta e a chama, de sobre a poesia de Hoelderlin, Andenken, a Tübinger
acordo com a experiência do esquecimento do Ser, Gedenkschrift, 1943, p. 322). A Pátria dessa
de Pátria (Heimat). Pensa-se aqui essa palavra morada Histórica é a proximidade ao Ser.
num sentido Essencial, a saber, não no sentido
patriótico nem nacionalista, mas no sentido da Nessa proximidade se consuma, caso chegue
História do Ser. um dia a consumar-se, a decisão acerca de, se e
como Deus e os deuses se negam e continua a
Ao mesmo tempo, a Essência da Pátria é evo- noite, se e como amanhece o dia da salvação , se 48

cada com o propósito de pensar a A-patridade e como na aurora da salvação podem novamente
(Heimatlosigkeit) do homem moderno pela Es- aparecer Deus e os deuses. Ora, a salvação, que
sência da História do Ser. Nietzsche foi o último
é o espaço de essencialização da divindade, a qual,
que fêz a experiência dessa A-patridade, mas, den-
por sua vez, instaura a dimensão para os deuses
tro da metafísica, êle não pôde encontrar-lhe ou-
e para Deus, só chega a resplandecer, se, antes e
tra saída do que a inversão da metafísica. Ora
numa longa preparação, o Ser em si mesmo se
com isso êle trancou toda possibilidade de sair dela
clareou e foi experimentado em sua Verdade.
(Ausweglosigkeit) . Hoelderlin, ao contrário, ao
Somente assim, a partir do Ser, se começa a su-
poetizar a Heimkunft (Regresso) se preocupa que
perar a A-patridade na qual erram extraviados
seus "conterrâneos" encontrem o caminho de
não apenas os homens mas a Essência do homem.
sua Essência. E essa, êle não a procura num
egoísmo de seu povo. Êle a vê, antes, na perti- A A-patridade, a ser pensada nessa perspec-
nência ao destino do Ocidente. Mas Ocidente não tiva, repousa no abandono do Ser (Seinsverlas-
é pesado regionalmente em oposição ao Oriente. scnheit) em que se encontra o ente. Ela é o
Não é pensado simplesmente como Europa e sim, sinal do esquecimento do Ser. Em conseqüência,
dentro da História do mundo, pela proximidade à
origem. Mal começamos a pensar as referências
48) salvação == Heilen: A palavra, heilen, significa sa-
misteriosas com o Oeste, que se tornaram palavra
nar, curar, sarar, salvar, mas também preservar a
na poesia (Dichtung) de Hoelderlin (Cf. Der Ister integridade, garantir a totalidade. Esse último é um dos
a
e também Die Wanderung, 3. estrofe e seg.). sentidos mais antigos do radical adjetivo, presente hoje
O "Alemão" não é dito ao mundo, para o mundo se ainda em algumas formas, como heilfroh (totalmente,
restabelecer no modo de ser alemão. É dito aos inteiramente alegre). E' com essa conotação que Heideg-
gsr o emprega no texto, pensando a salvação como a in-
alemães para que eles, em virtude do destino, que
tegração da totalidade, que é também um dos momento?
os faz pertencer aos outros povos, integrem, jun- da experiência de pensamento do sagrado.

62 63
a Verdade do Ser continua não sendo pensada. partindo de Hegel, reconheceu, num sentido Es-
É o que se mostra, indiretamente, no fato de que sencial e significativo, como sendo a alienação
o homem só considera e só trabalha o ente. Ora, (Entfremdung) do homem, atingem a A-patridade
como, nesse afã pelo ente, o homem não pode do homem moderno. Essa é provocada — e
deixar de conceber, de alguma maneira, o Ser, isso pelo destino do Ser — nà forma da metafí-
por isso se declara o Ser o conceito "mais geral" sica, que a consolida ao mesmo tempo que a dis-
e, em conseqüência, o que engloba o ente, ou en- simula, como A-patridade. Porque ao fazer a
tão uma criação do ente supremo ou, ainda, o experiência da alienação, Marx alcança uma di-
produto (das Gemaechte) de um sujeito finito. mensão Essencial da História, a visão marxista da
Ao mesmo tempo, e isso de há muito, "o Ser" é
História é superior às restantes interpretações da
tomado pelo "ente" e vice-versa o ente pelo Ser,
história (Historie). Ao contrário, uma vez que
ambos como que empurrados no redemoinho de
nem Husserl nem, quanto saiba até agora, Sartre
uma confusão estranha e ainda não pensada.
chegam a reconhecer que o histórico tem sua Es-
O Ser, como o destino que destina a Verdade, sencialidade no Ser, tanto a fenomenologia quan-
continua oculto. Mas o destino do mundo se to o existencialismo não alcançam a dimensão
anuncia na poesia sem, no entanto, manifestar-se em que é possível um diálogo fecundo com o mar-
como História do Ser. O pensamento de Hoel- xismo .
derlin, que se eleva à dimensão da História do
mundo e se faz palavra na poesia Andenken Mas, para isso, é necessário, naturalmente,
(Memória), é, por esse motivo, Essencialmente libertar-se de idéias ingênuas sobre o materialismo
mais originário e, como tal, mais porvindouro e das refutações baratas que pretendem atingi-lo.
do que o mero cosmopolitismo de Goethe,. Por A Essência do materialismo não está na afirmação
essa mesma razão a referência de Hoelderlin de que tudo é apenas e somente matéria e sim
para com os gregos (GriechentUm) é algo Essen- numa determinação metafísica, segundo a qual
cialmente diferente do humanismo. É esse tam- todo ente aparece como material de trabalho. A
bém o motivo porque os jovens alemães, que sa- Essência metafísico-moderna do trabalho já foi
biam de Hoelderlin, pensaram e viveram, em face pensada na Phaenomenologie des Geistes (Feno-
da morte, coisa muito diferente do que o que a menologia do Espirito) de Hegel, como o processo
opinião pública apresentava como sendo a posição que se instaura a si mesmo, da produção incon-
alemã. dicionada, isto é, da objetivação do real pelo ho-
A A-patridade se torna um destino do mundo mem, experimentado como subjetividade. A Es-
todo. Daí se fazer necessário pensar esse destino sência do materialismo se esconde na Essência da
pela História do Sor. As raízes do que Marx, técnica sobre a qual muito se escreve mas pouco

64 65
se pensa. Em sua Essência, a técnica é um des-
o destino, e isso significa: pode atingir e reunir
tino — instaurado na História do Ser — da Ver-
no pensamento o que agora é num pleno sentido
dade do Ser relegada ao esquecimento. Pois a de Ser.
técnica não remonta apenas, quanto ao nome, à
techne dos gregos. Na história de sua Essência Diante da A-patridade que lhe afeta a Essên-
ela provém da techne, como um modo de ale- cia, o destino vindouro do homem se apresenta ao
theuein, isto é, de re-velação do ente. Uma figura pensamento da História do Ser no fato de o ho-
da Verdade, a técnica se funda na História da me- mem ter de encontrar a Verdade do Ser e pôr-se
tafísica. Essa é, em si mesma, uma fase marcante a caminho para esse encontro. Todo nacionalis-
da História do Ser e, até agora, a única da qual mo é metafisicamente um antropologismo e, como
podemos ter uma visão de conjunto (übersehbar). tal, subjetivismo. Pelo simples internacionalismo
não se supera o nacionalismo, mas apenas se es-
Como quer que se tome posição frente às dou- tende e erige em sistema. Pelo internacionalismo
trinas do comunismo e suas fundamentações, no o nacionalismo é tão pouco superado (aufgehoben)
plano da História do Ser não há dúvida que, nele, e conduzido à humanitas como o individualismo,
se exprime uma experiência elementar da História pelo coletivismo sem História (geschichtslos).
do mundo. Quem toma o comunismo apenas Esse e a subjetividade do homem na totalidade.
como "partido" ou como "concepção de mundo", Êle realiza a auto-afirmação incondicionada da
pensa tão curto como quem, com a etiqueta de subjetividade. Essa afirmação não pode ser res-
"americanismo" entende apenas — e de modo cindida. Nem sequer se pode experimentá-la, de
pejorativo — um estilo de vida particular. Po- modo suficiente, por um pensamento que não lhe
de-se presumir que o perigo para onde é empur- transmita senão um lado. Por toda a parte, o
rado, de modo sempre mais claro, o que tem sido homem, expelido da Verdade do Sei-, gira em torno
a Europa, consiste em que, principalmente, seu de si mesmo como o anímale rationale.
pensamento — outrora sua grandeza — não
A Essência do homem, no entanto, consiste
acompanha a marcha de essencialização do novo
em ser êle mais do que homem só, no sentido em
(anbrechcnd) destino do mundo, o qual, no en-
que se concebe o homem, a saber, como ser vivo
tanto, nos traços fundamentais de sua proveniên-
cia Essencial, continua determinado pela Europa. racional, ftsse "mais" não se deve entender adi-
Nenhuma metafísica — seja ela idealista, mate- tivamente, como se a definição tradicional do ho-
rialista ou cristã — pode alcançar, em razão de mem devesse ficar a determinação fundamental,
sua própria Essência e, de forma alguma, apenas para, a seguir, ser completada pela adição do exis-
em razão dos esforços tendentes a desenvolvê-la, tentivo. "Mais" significa: mais originário e, por
isso, em sua Essência, mais Essencial. E é aqui
66
67
que se mostra o enigma: o homem é no ser-lançado Em Ser e Tempo se diz (p. 38) que toda
(Geworfenheit). Como a réplica (Gegenwurf) questão da filosofia "repercute na existência".
ec-sistente do Ser, o homem é mais do que o Mas a existência, de que se fala, não é a realidade
animal rationale na medida em que êle é menos do ego cogito. Como também não é apenas a
do que o homem que se apreende e concebe pela realidade dos sujeitos, que, atuando em conjunto
subjetividade. O homem não é o amo e senhor uns para os outros, chegam a si mesmos. Dife-
do ente. O homem é o pastor do Ser. Nesse "me- rente de toda existentia e existence, a ec-sistência
nos" o homem não perde nada. Êle ganha por é o morar ec-stático na proximidade do Ser. É
chegar à Verdade do Ser. Ganha a pobreza a vigília, isto é, o cuidado com (Sorge für) o Ser.
Essencial do pastor, cuja dignidade consiste em De vez que, nesse pensamento, se trata de pensar
ser convocado pelo próprio Ser para a guarda e algo muito simples, por isso êle é difícil para a
proteção de sua Verdade. Essa convocação advém filosofia tradicional, para quem pensar é repre-
no lançamento (Wurf), donde provém o ser-lan- sentar. E toda dificuldade não está em ter que
çado (die Geworfenheit) do Da-sein. Em sua emaranhar-se em considerações profundas nem
Essência no plano da História do Ser, o homem é formar conceitos intrincados. Ela se esconde no
o ente, cujo ser consiste, como ec-sistência, em regresso (Schrittzuriiclc) que faz o pensamento
morar na vizinhança do Ser. O homem é o vi- ingressar num questionamento que provoca expe-
zinho do Ser. riências e o leva a abandonar as opiniões habituais
da filosofia.
Mas — e isso o Senhor já há muito terá que-
rido objetar-me — um tal pensamento não pensa Por toda parte se opina que a tentativa de
Ser e Tempo entrou num beco sem saída. Dei-
precisamente a Humanistas do homo humanus?
xemos essa opinião entregue a si mesma. O pen-
E não pensa essa humanitas num sentido tão de-
samento, que, no livro assim intitulado, tentou al-
cisivo como nenhuma metafísica jamais pensou
guns passos, ainda hoje não foi além de Ser e
nem poderá, algum dia, pensar? Não é isso "Hu-
Tempo. Mas entrementes, talvez, haja penetrado
manismo" no sentido mais elevado? Certamente. 49
mais em sua c a u s a . Enquanto a filosofia só se
É o humanismo que pensa a humanidade do ho-
ocupar em obstruir constantemente a possibili-
mem pela proximidade do Ser. Todavia é tam-
dade de empenhar-se na causa (Sache) do pen-
bém o humanismo em que não está em jogo e
homem mas a Essência Histórica do homem em
sua proveniência da Verdade do Ser. Mas então 49) causa = Sache: a palavra portuguesa, causa, só
traduz Sache, se tomada em seu sentido primitivo
nesse jogo não cai e fica de pé também a ec-sis- de assunto, tarefa, ainda hoje vigente em expressões como
tência do homem? Sem dúvida alguma. "ganho de causa".

68 60
samento, qual seja a Verdade do Ser, ela estará As causas promissoras, ainda que não se destinem
assegurada, fora do perigo de, um dia, rebentar-se à eternidade, chegam a tempo mesmo com o má-
na dureza de sua causa. Por isso um abismo ximo de atraso.
separa o "filosofar" sobre o fracasso de um pensa- Só depois de haver procurado percorrer por
mento que fracassa. Se a graça de um tal pen- si mesmo o caminho indicado ou, o que seria me-
samento fosse, algum dia, concedida a um homem, lhor ainda, depois de haver procurado abrir um
não lhe teria acontecido então nenhuma desgraça. caminho melhor, isto é, mais correspondente à
Ao contrário, seria dele a única dádiva, que do questão, cada um julgue se o domínio da Verdade
Ser pode ad-vir ao pensamento. do Ser é um beco sem saída ou o espaço livre,
onde a liberdade reserva a sua Essência. Na pe-
Todavia, também isso é importante, não se
núltima página de Ser e Tempo (p. 437) encon-
alcança a causa do pensamento pelo fato de se
tram-se as frases: "A disputa relativa à interpre-
pôr em curso uma "arenga" (Gerede) sobre a
tação do Ser (e isso não significa nem do ente,
"Verdade do Ser" e sobre a "História do Ser".
nem também do ser do homem) não pode ser di-
Tudo depende unicamente de a própria Verdade
rimida, porque ainda não foi nem mesmo des-
do Ser se fazer linguagem e de o pensamento con-
-envolvida. E, por fim, ela não se deixa improvisar
seguir chegar a essa linguagem. Talvez a lin-
(vom Zaun brechen) e sim necessita de uma pre-
guagem exija muito menos pronunciamentos pre-
paração prévia. Só para isso, está a caminho a
cipitados do que, muito mais, o devido silêncio.
presente investigação". Essas palavras valem
Mas qual de nós, homens de hoje, poderia preten-
ainda hoje, dois decênios depois. Continuemos,
der que seus esforços para pensar já estariam
também nos dias vindouros, viandantes a caminho
familiarizados e em casa, (heimisch) no caminho
da vizinhança do Ser. A pergunta, que o Senhor
do silêncio? Quando muito, nosso pensamento
levanta, ajuda a iluminar o caminho.
poderia talvez indicar (hinweisen auf) a Verdade
do Ser, como o que deve ser pensado (das Zu-den- O Senhor pergunta: "Comment redonner un
kende). Mais do que de outra maneira, a Ver- sens au mot 'Humanisme'?" "De que maneira se
dade do Ser ficaria, assim, subtraída à simples pode restituir um sentido à palavra, "humanis-
adivinhação e ao simples opinar, e entregue à ta- mo'?" Sua pergunta não pressupõe somente que
n o
refa (Hand-werk) que se faz rara, da escrita.
mas alude à Essência originária da obra da mão, que-não
50) tarefa = Hand-werk: tarefa não é uma boa tradu- reside na materialidade e no efeito de sua produção e sim
ção de Hand-werk, se fôr entendida em sua acepção na con-sumação de uma re-ferência à Verdade do Ser
corrente. Pois Hand-werk não só é tomado aqui no sen- E' o que Heidegger desenvolve no livro, Was heisst Ben-
tido de sua composição 'de Hanã (mão) e Werk (obra), ken? às págs. 50s e 53s.

70 11
o Senhor pretende conservar a palavra "huma- dessa que depende Essencialmente, isto é, de
nismo". Ela implica também o reconhecimento acordo com o próprio Ser, a medida em que o Ser
51
que essa palavra perdeu o seu sentido. a-propria o homem a ec-sistir na Verdade do
Ser para a vigília de Sua própria Verdade. No
E o perdeu por se haver percebido que a Es-
caso de decidirmos manter a palavra, humanis-
sência do humanismo é metafísica, e isso significa -
m o " significa, então. a Essência do homem é
agora, por se haver percebido que a metafísica
Essencial para a Verdade do Ser, mas de tal sorte
não só não coloca a questão sobre a Verdade do que o mais importante não seja o homem simples-
Ser mas a obstrui, enquanto persiste no esqueci- mente como tal. Nesse sentido pensamos um
mento do Ser. Ora, o próprio pensamento, que humanismo todo especial (seltsamer Art). A
leva a perceber a Essência questionável ( = digna palavra indica um título que é um "locus a non
de ser posta em questão) do humanismo, também lucendo".
nos conduziu a pensar, mais originariamente, a
Essência do homem. Com essa Humanitas mais Será que ainda se pode chamar de "humanis-
Essencial do homo humamis se dá a possibilidade mo" esse "humanismo", que se pronuncia contra
de restituir à palavra "humanismo" um sentido todo humanismo vigente, mas sem advogar, de ma-
Histórico mais antigo do que aquele que lhe possam neira alguma, o inumano? E somente para, tal-
atribuir os cálculos historiográficos. Essa restitui- vez participando no uso do título, nadar nas cor-
ção de sentido, no entanto, não é para se entender rentes em voga, que se afogam no subjetivismo
como se a palavra "humanismo" fosse, simplesmen- metafísico e submergem no esquecimento do Ser?
te destituida de sentido, um mero flatus voeis. Pois Ou não será que o pensamento, por meio de uma
na palavra "humanismo" o hiimanus indica a hu- oposição aberta ao humanismo, não deve antes
manitas, a Essência do homem. O ismo indica que suscitar um escândalo, capaz de despertar, pri-
a Essência do homem é para ser concebida Essen- meiro, a atenção sobre a humanitas do homo hu-
cialmente. Esse é o sentido da palavrá "huma- manus e sua fundamentação? Desse modo —
nismo", como palavra. Por isso, restituir-lhe um mesmo que o momento atual da História do
sentido só pode significar: redimensionar o sen- mundo já não provocasse por si mesmo — poder-
tido da palavra. Ora, isso requer duas coisas: -se-ia promover uma meditação, que pensasse não
tanto que se experimente a Essência do homem de somente sobre o homem mas sobre a "natureza"
modo mais originário, quanto que se mostre a do homem, e não só sobre a natureza e sim, de
medida em que essa Essência é, a seu modo, des- modo mais originário ainda, sobre a dimensão,
tinada Historicamente (geschicklich). Ora, re-
pousando a Essência do homem na ec-sistência, é
51) se a-propria — ereignet: veja-se, acima, a Nota 11.

72 13
Porque se diz que o ser do homem consiste
onde, determinada pelo próprio Ser, mora (hei- em "ser-no-mundo", acha-se que o homem foi de-
misch) a Essência do homem! Será que não de- gradado, reduzido a um ser meramente mundano
veríamos suportar, ainda por algum tempo, os (diesseitig), com o que a filosofia cai no positivis-
mal-entendidos, a que vem sendo exposto o cami- mo. Pois, o que é "mais lógico" do que isto: quem
nho de pensamento no elemento de Ser e Tempo, afirma a mundaneidade do ser do homem, só dá
e deixar que se gastem lentamente? Esses mal-en- valor ao mundano, nega o Além (das Jenseitige)
tendidos são, naturalmente, interpretações do que e renuncia a toda "transcendência"?
se lê ou mesmo do que se pretende ter lido, segun-
do o que se crê já saber antes da leitura. Todos Porque se faz alusão à palavra de Nietzsche
eles apresentam a mesma estrutura e o mesmo sobre a "morte de Deus", proclama-se tal atitude
fundamento. ateísmo. Pois, o que é "mais lógico" do que isto:
quem fêz a experiência da "morte de Deus", é um
Porque se fala contra o "humanismo", teme-se sem Deus (Gott-los) ?
que se defenda o inumano e se glorifique a bru-
Porque, em tudo isso, sempre se fala contra
talidade e barbaridade. Pois, o que é "mais
o que é (glit) sagrado e elevado para a humani-
lógico" do que isto: quem nega o humanismo, não
dade, tal filosofia ensina um niilismo irresponsável
lhe resta senão afirmar a desumanidade?
e destruidor. Pois, o que é "mais lógico" do que
Porque se fala contra a "lógica", crê-se que isto: quem, assim, sempre nega o ente verdadeiro
se pretenda renunciar ao rigor do pensamento, (das wahrhaft Seiende), coloca-se do lado do não-
para entronizar em seu lugar a arbitrariedade -ente e prega, com isso, que o simples Nada é o
dos impulsos e sentimentos, e, assim, proclamar, sentido da realidade?
como o verdadeiro, o "irracionalismo". Pois o que O que acontece aqui? Ouve-se falar de "hu-
é "mais lógico" do que isto: quem fala contra o manismo", de "lógica", de "valores", de mundo",
lógico, defende o ilógico? de "Deus". Ouve-se falar de uma oposição. To-
ma-se e se admite o que se menciona, como sendo
Porque se fala contra os "valores" surge uma
o positivo. Tudo que falar contra, mesmo de um
indignação em face de uma filosofia que — assim
modo, que, pelo ouvir dizer, não pode ser pensado
se pretende — se atreve a desprezar os bens mais
com rigor, toma-se logo como uma negação e essa,
elevados da humanidade. Pois, o que é "mais
como "negativa", no sentido de destrutiva. Em
lógico" do que isto: um pensamento que nega os algum lugar de Ser e Tempo fala-se até de uma
valores, terá necessariamente que declarar tudo "destruição fenomenológica". Então, com a ajuda
sem valor?
75
74
da lógica e da Ratio, tão invocadas, julga-se que nismo", longe de incluir uma defesa do inumano,
o que não é positivo, é negativo e, como tal, de- abre, ao contrário, outras perspectivas.
prava a razão, merecendo, por isso, ser queimado
como depravação. Está-se tão cheio de "lógica", A "lógica" entende o pensamento como a re-
que se contabiliza (verrechnen) logo como oposi- presentação do ente em seu ser, enquanto a re-
ção condenável, o que se opuser à indolência da presentação se apresenta (sich zustellt) o ser do
ente na "universalidade" do conceito. Mas o que
simples opinião. Tudo que não se enquadrar na
acontece com a reflexão sobre o Ser em si mesmo,
bitola do positivo que se quer e se conhece, é lan-
e isso significa com o pensamento, que pensa a
çado na vala já adrede preparada da simples ne-
Verdade do Ser? É esse pensamento que atinge
gação, que, negando tudo, termina no Nada e as-
a Essência originária do logos, a qual, em Platão
sim completa o "niilismo". Por esse caminho ló-
e Aristóteles — o fundador da "lógica" — já se
gico, tudo sucumbe ao niilismo, mas num niilismo
entulhara e perdera. Pensar contra "a lógica",
que se inventou com a ajuda da própria lógica. não significa quebrar lança em favor do ilógico.
Será mesmo que a "oposição" (das Gegen), Significa apenas repensar (nachdenken) o logos
que um pensamento promove diante das opiniões e sua Essência, que se manifestou nas origens
habituais, conduz necessariamente à simples ne- (Friihzeit) do pensamento. Significa empenhar-
gação e ao negativo? Isso só acontece — mas s e e esforçar-se na preparação desse re-pen-
então, realmente, de modo inevitável e definitivo, samento. De que nos servem todos os sistemas
isto é, sem nenhuma outra perspectiva libertadora de lógica, mesmo os mais extensos, se eles, sem
saberem o que fazem, se subtraem à tarefa prévia
— quando já de antemão se põe o que se opina,
de questionarem a Essência do logos? Se se qui-
como "o positivo" e, com êle, se decide, absoluta e
sesse retribuir objeções — o que, sem dúvida, é
negativamente, sobre o âmbito de toda e qualquer
estéril —, com maior razão poder-se-ia dizer que
oposição. Por trás de tal modo de proceder es-
o irracionalismo, no sentido de renúncia à ratio,
conde-se a recusa de se expor a uma reflexão o
reina, desconhecido e incontrastado, na defesa da
que já se pretende "positivo", juntamente com a "lógica", que crê poder esquivar-se a uma reflexão
posição e oposição nas quais se crê poder salvar-se. sobre o logos e sobre a Essência da razão, nele
Com o constante recurso ao lógico dá-se a impres- fundada.
são de que se empenha em pensar, quando, na
verdade, se abjurou o pensamento. O pensamento contra "os valores" não afirma
ser sem valor tudo que se considera como "va-
Com o que ficou dito, já se terá tornado, de-
lores", a saber, a "cultura", a arte", a "ciência",
certo modo, mais claro que a oposição ao "huma- a "dignidade humana", o mundo" e "Deus". Ao

76 77
contrário. Trata-se de se compreender de uma cendente é o ente supra-sensível, considerado o
vez por todas, que, ao caracterizar algo como um ente supremo no sentido da causa primeira de todo
"valor", se lhe rouba a dignidade. O que quer ente. Pensa-se Deus como essa causa primeira.
dizer: ao se avaliar uma coisa como valor, só se Ora, "mundo", na expressão, "Ser-no-mundo", não
admite o que assim se valoriza, como objeto de significa, de forma alguma, ente terreno em opo-
uma avaliação do homem. Ora, o que u m a coisa sição ao celeste nem "mundano" em oposição ao
é, em seu ser, não se esgota em sua ob-jetividade "espiritual". "Mundo" não significa nenhum ente
e principalmente quando a ob-jetividade possui o ou domínio de entes mas a abertura do Ser.
caráter de valor. Toda valorização, mesmo quan- O homem é — e é homem — na medida em que
do valoriza positivamente, é uma subjetivação. é o ec-sistente. O homem está ex-posto à aber-
Pois ela não deixa o ente ser mas deixa apenas que tura do Ser, que é como abertura. Sendo o lance,
o ente valha, como objeto de sua atividade (Turí). (Wurf), o Ser lançou para si a Essência do ho-
O esforço extravagante, de se provar a objetividade
mem na "Cura". Lançado desse modo, o homem
dos valores, não sabe o que faz. Dizer-se que
está "na" abertura do Ser. "Mundo" é a clareira
"Deus" é "o valor supremo", é uma degradação
do Ser, à qual o homem se ex-põe por sua Essência
da Essência de Deus. Pensar em termos de valor
lançada. O "Ser-no-mundo" evoca a Essência da
é aqui — como alhures — a maior blasfêmia, que
ec-sistência no tocante (í/ri Hinblick auf) à di-
jamais se possa pensar com relação ao Ser. Pen-
mensão clareada, a partir da qual se essencializa
sar contra os valores não significa, por conseguin-
o "ec-" da ec-sistência. Pensado a partir da ec-
te, tocar os tambores da desvalorização (Wertlo-
-sistência, o "mundo" é, de certo modo, o além
sigkeit) e da nulidade (Nichtigkeit) do ente mas
(das Jenseitige) dentro e para a ec-sistência. O
significa: pro-pôr ao pensamento, contra a subje-
homem nunca é homem, aquém do mundo, como
tivação do ente, como simples ob-jeto, a clareira
um "sujeito", quer se entenda sujeito como "eu"
da Verdade do Ser.
ou como "nós". Nem tampouco o homem é pri-
A indicação do "Ser-no-mundo", como sendo meiro e somente sujeito enquanto se refere sempre
o traço fundamental da humanitas do homo hu- a objetos, de sorte que sua Essência esteja na re-
manus não afirma que o homem é, meramente, lação sujeito-objeto. Ao contrário, o homem é,
um ser "mundano" no sentido cristão do termo, em sua Essência, primeiro ec-sistente na abertura
qual seja, apartado de Deus e desligado da "trans- do Ser. E é o que se abre na abertura (das
cendência". Procura-se exprimir com a palavra Offene), que clareia o meio" (das "Zwischen") no
"transcendência" o que, com maior clareza, deveria qual pode "ser" uma "relação" do sujeito para o
ser chamado de transcendente. Pois o trans- objeto.

78 79
A frase: a Essência do homem repousa no
Ser-no-mundo, também não contém nenhuma de- Mas será que a observação citada ensina mes-
cisão, se, tomando o termo em sentido teológico- mo o indiferentismo? Por que então nela se im-
-metafísico, o homem é apenas um ser desse primiram grifadas determinadas palavras e não
mundo (diesseitig) ou um ser do outro mundo outras quaisquer? Sem dúvida somente para
(jenseitig). indicar que o pensamento, que pensa a partir da
questão sobre a Verdade do Ser, questiona de modo
Por isso, com a determinação existencial da mais originário do que a metafísica pode ques-
Essência do homem, ainda não se decidiu nada so- tionar. Somente a partir da Verdade do Ser
bre a existência de Deus ou sobre o seu "não- pode-se pensar a Essência do sagrado. Somente
-ser", nem tampouco sobre a possibilidade ou im- a partir da Essência do sagrado pode-se pensar a
possibilidade de deuses. Assim, não é somente Essência da divindade. Somente na luz da Es-
apressado mas até mesmo extraviado sustentar sência da divindade pode-se pensar e dizer o que
que a interpretação da Essência do homem por sua a palavra "Deus" pretende significar. Ou ,será
re-ferência à Verdade do Ser é .ateísmo. Ade- que não devemos, primeiro, saber ouvir e compre-
mais, essa classificação arbitrária ainda peca por ender cuidadosamente todas essas palavras, para
falta de atenção na leitura. Pois não faz caso podermos, como homens, isto é, como seres ec-
de que, desde 1929, se pode ler no escrito Vom sistentes, fazer a experiência da re-ferência de
Wesen des Grundes (p. 28, nota 1), o seguinte: Deus com o homem? Como o homem da História
"Com a interpretação ontológica do Dasein, como atual do mundo poderia simplesmente questionar
Ser-no-mundo, não se decidiu nada nem positiva de modo sério e rigoroso, se Deus se aproxima ou
nem negativamente sobre um possível ser para se afasta, se se omite pensar primeiro dentro da
Deus. E sim é com o esclarecimento da transcen- dimensão na qual somente aquela questão pode
dência, que se ganha um conceito suficiente do ser questionada? Ora, essa é a dimensão do sa-
Dasein, com respeito ao qual se poderá então ques- grado, que, até já como dimensão, permanece
tionar, como se encontra ontologicamente a re- inacessível, se a abertura (das Offene) do Ser não
lação com Deus do Dasein". Ora, pensada parva- se tiver clareado e em sua clareira não estiver
mente, como de costume, tal observação será as- próxima do homem. Talvez o que distingue nos-
sim explicada: essa filosofia não se decide nem sa época (dieses Weltalter) é ser-lhe inacessível
contra nem a favor da existência de Deus. Con- a dimensão da graça (des Heilen). Talvez seja
serva-se numa indiferença. E, por conseguinte, isso a única desgraça (Unheil).
não lhe importa a questão religiosa. Um tal indi-
ferentismo decai, de fato, no niilismo. Todavia, com essa indicação, o pensamento,
que aponta à Verdade do Ser como sendo o que
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81
pragmatismo. Pensar a Verdade do Ser significa
deve ser pensado, não deseja, de forma alguma, igualmente: pensar a humanitas do homo hu-
decidir-se pelo teísmo. Pois êle não pode ser nem manus. Trata-se de pôr a humanitas a serviço
teísta nem ateísta. Não, porém, em razão de uma da Verdade do Ser, mas sem. o humanismo em
atitude de indiferentismo, e sim por respeitar os sentido metafísico.
limites impostos ao pensamento, como pensa-
mento, e impostos pelo que se lhe dá como sendo Se, porém, a humanitas está tão Essencial-
o que deve ser pensado, a saber, pela Verdade do mente no campo de visão do pensamento do Ser,
Ser. Na medida em que o pensamento se con- não terá então a "ontologia" de ser completada
tenta com sua tarefa, êle dá, no instante do des- pela "é/tica"? Não será, então, inteiramente Es-
tino atual do mundo, ao homem a dimensão ori- sencial o esforço que o Senhor exprime na frase:
ginária de sua estadia (Aufenthalt) Histórica. "Ce que je cherche à faire, depuis longtemps déjà,
Dizendo, dessa forma, a Verdade do Ser, o pensa- c'est préciser le rapport de l'ontologie avec une
mento se entregou e confiou ao que é mais Essen- éthique possible"?
cial do que todos os valores e qualquer ente. O Logo após a publicação de Ser e Tempo, per-
pensamento não supera a metafísica, enquanto, guntou-me um jovem amigo: "Quando é que o
alçando-se mais alto, a transcende e, em algum Senhor vai escrever uma ética?". É que, quando
lugar, (irgendwohin) a suprime, a conserva e a se pensa a Essência do homem de modo tão Essen-
eleva (aufhebt). O pensamento supera a metafí- cial — a saber, unicamente a partir da questão so-
sica, enquanto, re-gressando, desce à proximidade bre a Verdade do Ser —, sem se fazer dele, no
do próximo. Descer, principalmente, quando o entanto, o centro do ente, sente-se também a ne-
5 2
homem se perdeu nas alturas da subjetividade, cessidade de se indicarem preceitos e regras, que
é mais difícil e perigoso do que alçar-se. A des- digam, como o homem, experimentado a partir
cida leva à pobreza da ec-sistência do homo hu- da ec-sistência para o Ser, há de viver Historica-
manus. Na ec-sistência abandona-se o âmbito do mente. A exigência de uma ética tanto mais se
homo animalis da metafísica. 0 império e predo- impõe quanto mais cresce desmedidamente a de-
mínio desse âmbito é o fundamento mediato e
sorientação (Ratlosigkeit) do homem tanto a
profundo (weitziiriickreichend) da obliteração e
oculta como a manifesta. Uma vez que só se pode
da arbitrariedade do que se designa como biolo-
confiar numa estabilidade do homem da técnica,
gismo, mas também do que se conhece pelo título
entregue à massificação (Massenwesen), plane-
jando e organizando em conjunto seus planos e
52) ...se perdeu nas alturas... = sieh vertiegen hat: suas atividades, por isso se devem dedicar todos
o verbo, sich versteigen diz perder-se subindo, dal os cuidados e esforços à obrigatoriedade ética.
a tradução circunlocutiva.

83
82
Quem teria o direito de desconhecer a indi- própria ciência se transformou numa tarefa
gência dessa situação (Notlage) ? Não deveríamos, (Sache) de Escolas e de atividades "escolásticas"
então, manter (schonen) e garantir as obrigações (Schulbetrieb). Através da filosofia, assim en-
vigentes, mesmo que elas só conservem reunida tendida, nasceu a ciência e pereceu o pensamento.
em si a essencialização do homem de modo precá- Antes desse tempo, os pensadores não conheciam
rio e apenas limitado às condições atuais? Sem nem "lógica" nem ética" nem "física". Todavia,
dúvida! Mas, por outro lado, será que essa indi- seu pensamento não era nem ilógico nem imoral.
gência dispensa o pensamento de pensar (gedenkt)
E a physis, eles a pensaram numa profundidade e
o que constitui, antes de mais nada (zumal), o
envergadura que toda "física" posterior nunca
que deve ser pensado e, como o Ser, permanece
mais conseguiu atingir. Caso seja permitida se-
sendo, antes de todo e qualquer ente, o Penhor
melhante comparação, o dizer das tragédias de
e a Verdade? Será que o pensamento pode conti-
Sófocles con-serva e encerra o ethos mais origi-
nuar esquivando-se a pensar o Ser, que, depois
nariamente do que as preleções de Aristóteles so-
de se haver retido, encoberto num longo esqueci-
bre a "ética". Uma sentença de Heráclito, que se
mento, se anuncia agora, no momento atual do
compõe de três palavras apenas, evoca um vigor
mundo, pela comoção geral de todos os entes?
tão simples que faz resplandecer diretamente a
Antes de se tentar determinar, com maior Essência do Ethos.
exatidão, as relações entre "a ontologia" e "a
Diz a sentença de Heráclinto (Fragmento 119):
ética", faz-se necessário pensar, se o que ambos
ethos anthrópo daimon. Geralmente se costuma
os títulos evocam, ainda permanece na medida e
traduzir: "a individualidade é o demônio do ho-
na proximidade do que se impôs ao pensamento,
mem". Essa tradução pensa de maneira moder-
que, como pensamento, tem de pensar, antes de
na, não de maneira grega. Pois Zthos significa
tudo, a Verdade do Ser! Pois, se, juntamente com
estada (Aufenthalt), lugar de morada. Evoca o
todo pensamento segundo disciplinas, "a ontologia"
espaço aberto onde mora o homem. É a aber-
e "a ética" já tivessem caducado e, com isso, nosso
tura da estada que faz aparecer o que ad-vém,
pensamento já se houvesse tornado mais discipli-
con-venientemente, à Essência do homem e, assim
nado, o que então, sucederia à questão sobre as
ad-vindo, se mantém em sua proximidade. A
relações entre essas duas disciplinas da filosofia?
estada do homem retém o ad-vento daquilo, ao
Com a "lógica" e a "física", a "ética" aparece, qual o homem, em sua Essência, pertence. Isso
pela primeira vez, na Escola de Platão. Surgiram é o Heráclito chama de daimon, o Deus. A sen-
no tempo, em que o pensamento se tornou "filo- tença diz pois: o homem mora, enquanto homem,
sofia", a filosofia se fêz episteme (ciência) e a na proximidade do Deus.

85
Com essa sentença concorda uma história, re- já viram e ouviram alguém de quem sempre de
latada por Aristóteles (De part, anim., A 5, 645 a novo se diz ser um pensador.
17): Herakleitos légetai prós toüs xênous eipein
toüs bouloménous entychein auto, oi, epeide pro- Ao contrário, os visitantes curiosos encontram
sióntes eidon autòn therómenon prós tõ ipnõ, Heráclito junto ao forno. Um lugar banal e
èstesan, ekélene gàr autoàs eisienai tharroiintas: muito comum. Todavia, é nele que se assa o pão.
einai gàr kai entaütha theoús. Mas Heráclito não está ocupado em assar pão.
Êle se está aquecendo. Com o que êle demonstra
"De Heráclito se contam umas palavras, ditas — e ademais num lugar banal — toda a indigên-
por êie a um grupo de estranhos que desejavam cia de sua vida. A visão de um pensador com frio
visitá-lo. Ao aproximarem-se, viram-no aquecen- oferece muito pouca coisa de interessante. Os
do-se junto ao forno. Destiveram-se surpresos, curiosos perdem logo a vontade de entrar. Para
sobretudo porque Heráclito ainda os encorajou — quê? Pois esse fato corriqueiro e nada excitante
a eles que hesitavam —, fazendo-os entrar com as de alguém estar com frio e achegar-se a um forno,
palavras: "pois também aqui deuses estão pre- qualquer um pode presenciar, quando quiser, em
sentes". casa. Para isso, não é necessário visitar um pen-
Essa história fala por si mesma. No entanto, sador. Os visitantes se aprestam a retirar-se.
Heráclito lê em suas fisionomias a curiosidade
convém destacar alguns momentos.
frustrada. Sabe que, como em toda massa, a
Com o que vê logo à chegada, o grupo de visi- simples ausência de uma sensação esperada é su-
tantes desconhecidos fica frustrado e desconcer- ficiente para fazer voltar os que acabam de che-
tado na curiosidade que os levara ao pensador. gar. Por isso infunde-lhes coragem, convidando-os
Acredita ter de encontrá-lo em circunstâncias, que, a entrar com as palavras: "Também aqui os deu-
ao contrário do modo de viver comum dos homens, ses estão presentes".
fossem excepcionais, raras e, por isso mesmo, emo-
Essas palavras põem num outra luz a mo-
cionantes. Trazem a esperança de descobrir coi-
rada e comportamento do pensador. A história
sas que, ao menos por um certo tempo, sirvam de não diz se os visitantes logo o entenderam ou
assunto para uma conversa animada. Esperam mesmo se o entenderam um dia, e assim passaram
surpreender, talvez, o pensador justamente no a ver tudo nessa outra luz. O fato, porém, de a
momento em que, mergulhado em profundas re- história ter sido contada e haver chegado até nós,
flexões, êle pensa. Querem "viver" esse momento, testemunha que o seu conteúdo provém e carac-
mas não, de certo, para serem atingidos pelo pen- teriza a atmosfera em que vivia o pensador. "Tam-
samento e sim, apenas, para poderem dizer que bém aqui" no forno, nesse lugar banal onde todas

8f, 87
as coisas e circunstâncias, todo agir e pensar são só consegue transformar em linguagem um pouco
familiares e corriqueiros, isto c, ordinários, "tam- da outra dimensão totalmente diferente. Essa ain-
bém aqui, portanto, no âmbito do ordinário, estão da se falsifica a si mesma na medida em que não
presentes os deuses". consegue conservar a ajuda Essencial da visão
Ethos anthrópo daímon diz o próprio Hará- fenomenológica e ao mesmo tempo abandonar, por
clito: "a morada (ordinária) constitui para o ho- ser descabida, toda preocupação de "Ciência" e de
mem a dimensão onde se essencializa o Deus (o "Pesquisa". Ora, para fazer conhecida essa tenta-
extra-ordinário)." tiva do pensamento e torná-la compreensível den-
tro dos quadros da filosofia vigente, só se podia
Se, pois, de acordo com o sentido fundamental falar, de início, a partir do horizonte dado e usan-
da palavra, Gthos, o nome, ética, quiser exprimir do dos títulos neles correntes.
que a ética pensa a morada do homem, então o
pensamento que pensa a Verdade do Ser, como o Entrementes, porém, cheguei a compreender
elemento fundamental, onde o homem ec-siste, que precisamente esses títulos induziam inevitável
já é a ética originária. Mas então, tal pensa- e diretamente em erro (Irre) . Pois tanto eles
mento não é apenas ética por ser ontologia, de vez quanto a sua linguagem conceituai não eram re-
que a ontologia só pensa o ente (on) em seu ser. -pensados pelos leitores de acordo com a causa
Ora, enquanto não fôr pensada a Verdade do Ser, (Sache) a ser pensada mas essa é que era con-
toda ontologia fica sem fundamento. Por isso o cebida de acordo com o sentido habitual dos títu-
pensamento que, em Ser e Tempo, tentou prepa- los estabelecidos. O pensamento, que questiona a
rar-se para pensar (vordenken) a Verdade do Ser, Verdade do Ser e com isso determina a morada da
foi intinulado Ontologia Fundamental. Essa pro- Essência do homem a partir e na direção do Ser,
cura retornar ao fundamento Essencial donde pro- não é nem ética nem ontologia. Daí não haver
vém o pensamento da Verdade do Ser. Já no
lugar nele para a questão sobre as relações de
ponto de partida desse outro modo de questionar,
ambas as disciplinas. Todavia, pensada origina-
afasta-se êle da "ontologia" metafísica (mesmo
riamente, a pergunta do Senhor conserva um sen-
da de Kant). Pois "a ontologia", seja transcen-
tido e uma importância Essencial.
dental seja pre-critica, está sujeita, à crítica não
por pensar o ser do ente e, assim, forçar o Ser no Pois se tem de perguntar: Se o pensamento,
conceito, mas por não pensar a Verdade do Ser e pensando a Verdade do Ser, determina a Essência
assim desconhecer que há um pensamento mais ri- da humanitas, como ec-sistência, a partir da de-
goroso do que o conceituai. O pensamento, que pendência (Zugehörigkeit) dessa para com o Ser,
procura preparar-se a pensar (vordenken) a Ver- será que um tal pensamento permanece apenas
dade do Ser, na indigência de seu primeiro esforço, uma representação teórica do Ser e do homem?

88 89
p . 54) . A indicação que aí se faz do "Ser-no-
Ou será que, desse conhecimento, se pode reti-
-mundo" como sendo "morar" não é um simples
rar e prescrever indicações para a vida prática?
jogo etimológico. A referência, feita na Confe-
A resposta é uma só: um tal pensamento não rência de 1936, à palavra de Hoelderlin, "cheio de
é nem teórico nem prático. É antes dessa distin- méritos, todavia, é poeticamente que mora o ho-
53
ção do teórico e prático que êle se a - p r o p r i a . mem sobre essa terra'\ não é enfeite para um pen-
Na medida em que êle é êle mesmo, um tal pen- samento, que se salva, fugindo da ciência para a
54
samento não é senão a memória do Ser e nada poesia. Falar-se da casa do Ser não é uma trans-
mais. Pertencendo ao Ser, por ter sido lançado posição da imagem da "casa" para o Ser mas é
pelo Ser na guarda e proteção de sua Verdade e
a partir da Essência do Ser, pensada devidamente
assim para ela requisitado, pensa êle o Ser. Um
(sachgemaes) que, um dia, poderemos então pen-
tal pensar não dá resultado. Não tem efeito. Êle
sar o que é "casa" e "morar".
se basta à sua Essência, sendo. Ora, êle é, di-
zendo a sua causa (Sache). À causa do pensa- Sem embargo, o pensamento nunca cria a
mento pertence, e sempre Historicamente, um sc casa do Ser. Êle apenas acompanha a ec-sis-
dizer, o dizer de acordo com a Essência de sua tência Histórica, isto é, a humanitas do homo
05
c a u s a . Cuja constringência, por se ater à sua humanus, para o domínio onde surge o salvo (das
66
c a u s a , é Essencialmente superior à validade das Heile).
ciências, por ser mais livre. Pois êle deixa o
Ser — ser. Com o salvo, principalmente, aparece na cla-
reira do Ser, o mal, cuja Essência não está na
O pensamento constrói na casa do Ser. simples ruindade da ação humana mas repousa
Nessa, e como tal, as junturas (die Fuge) do Ser na maldade da grima (Grimm). Ambos, o salvo
dis-põem numa con-juntura, sempre de acordo e a grima, contudo, só se podem essencializar no
com o destino Histórico, a Essência do homem a Ser, enquanto o próprio Ser é a disputa (das
morar na Verdade do Ser. Esse morar constitui a Strittige). É aqui que se esconde a proveniência
76
Essência do Ser-no-mundo" (Cf. Ser e Tempo. Essencial do vigor do não (Nichten) . O que vi-

53) se a-propria = ereignet: veja-se, acima, a Nota 11. 57) do vigor do não = des Nichtens: Em alemão não
54) a memória = das Andenken: veja-se, acima, a existe o verbo nichten. Existe um seu composto,
Nota 43. ver-nichten (aniquilar, reduzir a n a d a ) . Heidegger o
introduz para expressar nele o vigor nulificante que per-
55) Causa — Sache: veja-se, acima, a Nota 49. T
tence Essencialmente à ec-sistência. Esse 'igor se con-
56) Causa = Sache: veja-se, acima, a Nota 49. suma no pensamento e na linguagem do não. Ora, em

90 91
gora como o não, se clareia como o que é deter- Porque o vigor do não (das Nichten) se essencia-
6 8
minado pelo não. Essa determinação se pode liza no Ser, por isso nós não o poderemos perceber
exprimir no dizer "Não". O vigor do não (das como algo de ente no ente. A indicação dessa
Nicht) não surge, de forma alguma, do dizer-Não impossibilidade não prova nunca, que o vigor do
da negação. Todo dizer "Não", que não se de- não procede e provém do dizer-Não. Isso só seria
turpar, interpretando-se como uma imposição de uma aparência de prova, se, de saída, se pusesse
si mesma da força de constituição da subjetividade, o ente como o objetivo da subjetividade. Pois
mas continuar um deixar-ser da ec-sistência, cor- então se concluiria da alternativa, ou objetivo ou
responde ao apelo do vigor do não (Nichten) que subjetivo, que todo vigor do não, por nunca apa-
se clareou. Todo dizer-Não é apenas a afirmação recer como algo objetivo, deveria ser inelutàvel-
do não (Nicht) que vigora. Toda afirmação re- mente produto de um ato do sujeito. Se, porém,
pousa num reconhecimento, que deixa aquilo, a é o dizer-Não que põe o vigor do não (dás Nicht)
que se refere, chegar a ser êle mesmo. Crê-se como algo simplesmente pensado ou se é o vigor
que não se pode encontrar em parte alguma, no do não (das Nichten) que requisita e usa o dizer-
ente, o vigor do não (das Nichten). É exato, quan- -Não, como o que é para ser dito (das zu Sagende)
do se quer procurá-lo como um ente, como uma, no deixar-ser do ente, isso naturalmente não pode
propriedade entitativa do ente. É que, procurando ser decidido a partir de uma reflexão subjetiva so-
assim, não se procura o vigor do não (das Nichten). bre o pensamento, tomado de antemão como subje-
Também o Ser não é uma propriedade entitativa tividade. Com uma tal reflexão nem se alcança a
que se pudesse estabelecer e constatar no ente. dimensão em que se pode colocar a questão na
E, no entanto, o Ser é mais do que qualquer ente. forma devida. Resta a perguntar, se todo dizer
-Sim e todo dizer-Não, suposto que o pensamento
alemão se exprime o não por duas palavras: nicht e nein,
pertença à ec-sistência, não é já ec-sistente na
correspondentes às suas congêneres francesas e inglesas: Verdade do Ser. Nesse caso, então, o dizer-Sim e
ne... pas e non, not e no. Nicht se emprega junto a o dizer-Não já auscultam, para serem o que são,
verbos, adjetivos, advérbios, e t c , enquanto nein se usa o Ser. E como tal, nunca poderão estabelecer
como resposta negativa, no dizer não. Na tradução se
aquilo ao qual eles pertencem em si mesmos.
usa vigor do não ou vigorar como o não para se designar
o Nichten, Nicht e nichten (verbo) do original, reservando
a locução, dizer não, para Nein. 0 vigor do não (cias Nichten) se essencaliza
no próprio Ser e, de maneira alguma, no pensa-
58) determinado pelo não — das Nichthafte: Da palavra
mento do homem, pensado como a subjetividade
nicht forma Heidegger o adjetivo substantivado das
Nichthafte, que diz o que se refere, participa e assim é do ego cogito. O Dasein não instaura o vigor do
determinado pelo não. não (nichtet), enquanto o homem realiza, como

.92 93
sujeito, uma negação (Nichtung) no sentido de mente essa disposição pode trazer e instaurar obri
uma recusa. O Da-sein instaura o vigor do não gações. Do contrário, toda lei permanecerá e
(nichtet), na medida em que êle, como a Essência, continuará apenas um produto (das Gemâchte)
onde o homem ec-siste, pertence em si mesmo à da razão humana. Mais Essencial para o homem
Essência do Ser. 0 Ser instaura o nada — como do que todo e qualquer estabelecimento de regras
Ser. Por isso é que, no Idealismo Absoluto, em é encontrar um caminho para a morada na Ver-
Hegel e Schelling, o "Não" aparece na Essência do dade do Ser. Pois é essa morada que assegura a
Ser como a negatividade da negação. A Essência experiência do que propicia amparo e sustento.
do Ser é pensada aqui como a vontade incondicio- O apoio para toda atitude concede a Verdade do
nada no sentido de realidade absoluta. Essa von- Ser. "Apoio" (Halt) significa, em alemão, o
tade se quer a si mesma e se quer a si mesma como "amparo", "a guarda". O Ser é a guarda que
a vontade do saber e do amor. É nessa vontade resguarda o homem, em sua Essência ec-sistente,
que se oculta o Ser, como a vontade de potência para a Verdade do Ser a ponto de fazer a ec-sis-
(Wille zur Macht) . Por que, no entanto, a ne- tência habitar (behausen) na linguagem. Por isso
gatividade da subjetividade absoluta é "dialética" a linguagem é conjuntamente (zumal) a casa do
e por que na dialética o vigor do não (das Niehten), Ser e a habitação da Essência do homem. E só
embora aparecendo, se oculta, ao mesmo tempo, por ser a linguagem a habitação da Essência do
em sua Essência, isso não pode ser discutido aqui. homem é que as comunidades Históricas dos ho-
mens e os homens Históricos podem não habitar
O que, no Ser, vige e vigora como o não, é a na sua linguagem, a ponto de a linguagem se tor-
Essência do que chamo o Nada. Por isso, por nar para eles um recipiente (Gehaeuse) de seus
pensar o Ser, o pensamento pensa o Nada. É o afazeres.
Ser que concede ao salvo (das Heile) vigorar na
Em que relação, porém, se acha o pensamento
proteção do favor (Huid) e à grima o impulso
do Ser com o comportamento teórico e prático?
para a desgraça (Unheil) . Somente na medida
Êle ultrapassa qualquer consideração, por se
em que o homem, ec-sistindo na Verdade do Ser,
ocupar da luz na qual se pode mover e manter a
pertence ao Ser, é que pode provir do próprio Ser
visão da teoria. O pensamento se atém à clareira
a recomendação das prescrições que tornar-se-ão
do Ser, inserindo seu dizer do Ser na linguagem,
para o homem lei e regra. Em grego, recomen-
como a habitação da ec-sistência. Assim o pen-
dar é némein. O nomos não é apenas a lei, po-
samento é um atuar. Mas um atuar que, ao
rém, mais originariamente, a recomendação pro-
mesmo tempo, ultrapassa toda prática. O pen-
tegida pelo destinar-se do Ser. Só essa recomen-
samento não supera o operar e produzir pela mag-
dação pode dispor o homem para o Ser. E sò-

95
nitude de sua eficiência nem pelas conseqüências prestígio na História do mundo, na forma de algo
de sua eficácia (Wirken) mas pela pouca monta tão incomum que só é accessível a iniciados. Ao
(das Geringe) de seu con-sumar, desprovido de mesmo tempo concebemos o pensamento segundo
efeito e sucesso. o conhecimento científico e seus esforços de pes-
quisas. Medimos a atuação pela eficiência im-
Em seu dizer, o pensamento eleva apenas à
pressionante e bem sucedida na prática. Ora, a
linguagem a palavra impronunciada do Ser. A
atuação do pensamento não é nem teórica nem
expressão, "elevar à linguagem", deve ser tomada
prática, nem tampouco a conjugação de ambas as
aqui em seu sentido rigorosamente literal. Cla- atitudes.
reando-se, o Ser chega à linguagem. Êle está sem-
pe o caminho da linguagem. Assim a lingua- Devido à sua Essência simples, o pensamento
gem é elevada à clareira do Ser. Somente assim se torna para nós irreconhecível. Todavia, se nos
a linguagem é naquele modo misterioso, que nos familiarizarmos com o que é simples, a que não
atravessa sempre com seu vigor. É na medida somos habituados, logo nos assalta uma outra di-
em que a linguagem, levada, destarte, à pleni- ficuldade (Bedraengnis). Cresce a suspeita de que
tude de sua Essência, fôr Histórica, que o Ser se o pensamento do Ser sucumbe à arbitrariedade
conserva na memória (Andenken). É pensando, uma vez que êle não se pode ater ao ente. Donde
que a ec-sistência habita a casa do Ser. E tudo então retira o pensamento sua medida e seu cri-
isso se dá, como se nada houvesse acontecido com tério? Qual é a lei de sua atuação?
o dizer do pensamento. aqui que se deve auscultar a terceira per-
Há pouco se nos mostrou um exemplo dessa gunta de sua carta: "comment saiwer Vélément
atuação invisível (unscheinbar) do pensamento. d'aventure que comporte toute. recherche sons
Pois, ao pensarmos, propriamente, a expressão, faire de Ia philosophie une simples aventurière?"
"elevar à linguagem", — só isso e nada mais — Só de passagem, evoquemos a poesia. Ela se aclra
que foi destinada para a linguagem, ao retermos diante da mesma questão do mesmo modo que o
o que aí se pensa, sob a guarda do dizer como o pensamento. Ainda são sempre válidas as pala-
que no por-vir há de se pensar sempre, elevamos vras tão pouco pensadas da Poética de. Aristóteles.
à linguagem algo da Essência do próprio Ser. segundo as quais poetizar é mais verdadeiro do
que investigar o ente.
O estranho no pensamento do Ser é a simpli-
cidade. É precisamente essa que nos afasta dele. Todavia, não é só por procurar e perguntar
Pois estamos acostumados a procurar o pensa- pelo não-pensado que o pensamento é une aven-
mento, que, com o nome de "Filosofia", alcançou ture. Em sua Essência como pensamento do Ser,

96 07
o pensamento é requisitado pelo próprio Ser. O
pies — a que se referiu acima — não haveria de
pensamento se acha referido e dependente do Ser
permanecer, não em si mesmo mas para o ho-
como o que está ad-vindo (l'avenant) . () pensa-
mem, o mais perigoso? Pensemos sempre nas pa-
mento está preso ao ad-vento do Ser, ao Ser como
lavras de Hoelderlin sobre a linguagem, no frag-
ad-vento. O Ser já se destinou sempre ao pensa-
mento, "Aber in Hütten wohnet der Mensch"
mento. O Ser é como o destino do pensamento.
("Mas é em choças que habita o homem). O Poeta
O destino, porém, é em si mesmo Histórico. Sua
chama a linguagem "o mais perigoso dos bens".
Historia já chegou, no dizer dos pensadores, à
linguagem. A primeira lei do pensamento não são as re-
gras da lógica. A primeira lei do pensamento é
Transformar em linguagem cada vez êssc
destinar o dizer do Ser, como o destino da Ver-
ad-vento permanente do Ser que, em sua perma-
nência, espera pelo homem, é a única causa dade. Pois é pela lei do Ser que as regras da lógica
(Sache) do pensamento. É por isso que os pensa- chegam a ser regras. Prezar o que está destinado
dores Essenciais dizem sempre o mesmo (das no dizer do pensamento, não inclui apenas, que
Selbe); isso, no entanto, não significa que digam reflitamos cada vez sobre como e o que é para se
sempre coisas iguais (das Gleiche). Sem dúvida, dizer do Ser. Igualmente Essencial é pensar-se,
eles só o dizem a quem se empenha em re-pensá- se e até que ponto o qüe há para pensar deve ser
-los. Enquanto o pensamento, re-memorando His- dito; em que instante da História do Ser; em que
toricamente, preza o destino do Ser, êle já se pren- diálogo com essa e a partir de qual apelo êle deve
deu ao destinado (das Schickliche), que se acorda ser dito. Aquelas três coisas, que uma carta an-
com o destino. Todavia, o elemento de aventura terior mencionava, se determinam em sua mútua
(das Abenteuerliche) continua sendo o perigo conexão a partir da lei da destinação (Schicklich-
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constante do pensamento. Por que então o sim- keit) do pensamento, inscrito na História do Ser:
o rigor da reflexão, o cuidado (Sorgfalt) do dizer, a
59) As frases que se s e g u e m a t é o f i m do p a r á g r a f o ,
poupança da palavra.
a p a r e c e r a m m o d i f i c a d a s n a e d i ç ã o f e i t a por Vittorio
Já é tempo de se perder o costume de sobre-
K l o s t e r m a n n em 1947 ( F r a n k f u r t am M a i n , A l e m a n h a ) .
Esse n o v o t e x t o é o s e g u i n t e : In das Gleiche flüchten ist estimar a filosofia e, com isso, sobrecarregá-la.
unge)'aehrlich. Sich in die Zwietracht wagen, um das Na atual indigência do mundo o que se faz neces-
Selbe zu sagen, ist die Gefahr. Ziceideutigkeit droht und sário é menos filosofia e mais cuidado em pensar;
der blosse Zwist". Em p o r t u g u ê s : " R e f u g i a r - s e no igual
menos literatura e mais cultivo das letras.
n ã o é perigoso. O perigo é arriscar-se na d i s - p u t a p a r a
dizer o m e s m o (das Selbe) . Pois se está s o b a a m e a ç a O pensamento por vir já não é filosofia, por-
da e q u i v o c a ç ã o e da s i m p l e s discórdia".
que êle pensará mais originariamente do que a
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metafísica, que é a mesma coisa (de filosofia).
Mas também o pensamento vindouro já não po-
derá, como queria Hegel, depor o nome de "amor
à sabedoria" e se tornar a própria sabedoria na
forma do saber absoluto. O pensamento se encon-
tra na descida para a pobreza de sua Essência
prévia. O pensamento recolhe e concentra a lin-
guagem no dizer simples. E assim a linguagem
é a linguagem do Ser, como as nuvens são as nu-
vens do céu. Com seu dizer o pensamento abre
sulcos invisíveis na linguagem. Eles são mais in-
visíveis do que os sulcos que rasga, no campo, o
camponês de andar vagaroso.

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