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“Um Abismo Chama Outro

Abismo”?
Daniel Conegero

“Um abismo chama outro abismo” é uma expressão bíblica que significa uma
tribulação contínua que se estende de aflição em aflição. Em outras palavras, é uma
angústia chamando outra angústia, um problema convocando outro problema,
uma inquietação trazendo outra inquietação.
Essa expressão está registrada no Salmo 42, onde o salmista diz: “Um abismo
chama outro abismo, ao ruído das tuas catadupas; todas as tuas ondas e vagas têm
passado sobre mim” (Salmo 42:7).
É verdade que essa frase já foi interpretada e aplicada de diferentes maneiras. É
comum, por exemplo, ouvir alguém empregando a declaração: “um abismo chama
outro abismo” no contexto de uma vida pecaminosa, de modo a afirmar que um
pecado chama outro pecado.
Sem dúvida essa lógica faz sentido, pois de fato é uma verdade bíblica de que
pecado gera pecado. Isso nos lembra a história de Davi. Após cometer adultério
com Bate-Seba, o rei de Israel ainda tramou a morte do marido daquela mulher (2
Samuel 11).
Então de forma isolada e específica, até podemos usar a metáfora “um abismo
chama outro abismo” para exemplificar o poder destrutivo do pecado. Porém, é
importante saber que no contexto do Salmo 42, certamente esse não é o sentido
pretendido pelo autor bíblico.
Na verdade o salmista escreveu essas palavras durante um momento de grande
dificuldade em sua vida. Ele havia saído de Jerusalém, estava longe do Santuário e
se sentia distante do Senhor. Por outro lago, ele experimentava de perto a
perseguição de seus inimigos. Com sua alma abatida, ele se levantou em clamor
pedindo o socorro do Senhor.

Um abismo chama outro abismo


Na frase “um abismo chama outro abismo” a palavra “abismo” traduz um termo
hebraico que indica as profundezas dos oceanos. Isso quer dizer que nessa
declaração o salmista emprega essa palavra para falar das profundezas das águas
no sentido de descrever a violência das torrentes que formam ondas após ondas.
Algumas traduções bíblicas são úteis para esclarecer o significado dessa frase. A
Nova Versão Internacional (NVI), traduz esse verso da seguinte forma: “Abismo
chama abismo ao rugir das tuas cachoeiras; todas as tuas ondas e vagalhões se
abateram sobre mim”. Já a versão King James (KJA) traz: “Do abismo as águas
chamam as torrentes no troar de suas cataratas, e todos os vagalhões se precipitaram
sobre mim”.
Essa frase relembra a imagem dos primeiros estágios da criação apresentada
no livro de Gênesis, quando havia trevas sobre o abismo e o Espírito de Deus se
movia sobre a face das águas (Gênesis 1:2).
O salmista empresta essa imagem do caos e a aplica como uma figura de
linguagem para descrever seu desespero e tribulação. Ele estava enfrentando
tribulação após tribulação, angustia sobre angustia. Na perturbação de sua alma,
aquelas aflições pareciam não ter fim, era como um abismo chamando outro
abismo, isto é, adversidade convocando adversidade.

Portanto, o salmista compara suas muitas aflições aos golfos do mar, às águas
profundas do oceano, não apenas no que diz respeito a sua quantidade abundante,
mas também ao seu poder avassalador. Ele estava submerso por um mar de
sofrimentos.

João Calvino explica a declaração: “um abismo chama outro abismo” dizendo que
essas palavras expressam a profundidade e a longa continuidade das misérias que
o salmista sofreu. É como se ele dissesse ser oprimido não apenas com um tipo de
miséria, mas com vários tipos de angústias que retornavam seguidamente sobre ele
de todos os lados, de modo que essas inquietações pareciam não ter fim e nem
medida.

A confiança no Senhor
Depois de dizer que “um abismo chama outro abismo”, o salmista ainda completa
dizendo: “todas as tuas ondas e vagas têm passado sobre mim”. A imagem é a de
um homem atingido por ondas numa tempestade no meio do mar – não apenas
poucas ondas, mas todas elas crescendo e passando por cima dele sem qualquer
trégua.
Contudo, é interessante perceber a forma com que ele qualifica suas aflições. Como
diz C. H. Spurgeon, aquelas ondas que atingiam o salmista não eram ondas
comuns, mas eram as “ondas de Deus”. Conforme explica John Gill, o salmista
chama suas aflições de “águas ou vagalhões de Deus” porque elas são designadas,
ordenadas, governadas e também anuladas por Ele. A história de Jó é um exemplo
muito claro dessa verdade.
Ainda que muitas vezes não entendamos, as ondas de Deus que nos provam
também trabalham para o nosso bem. Deus pode usar o sofrimento para corrigir a
conduta, moldar o caráter e fortalecer a fé de seus filhos. O profeta Jonas, por
exemplo, foi alguém que teve de experimentar literalmente as ondas de Deus
passando por sobre ele quando precisou ser corrigido (Jonas 2:3,4).
Se Deus achar por bem derramar Suas ondas de provações sobre nós, isso não
deve ser motivo de desânimo ou murmuração. Apesar de aos nossos olhos parecer
que um abismo chama outro abismo, Deus governa todas as coisas e sua
providência não falha.

Então resta-nos somente humilharmo-nos debaixo da potente mão de Deus,


sabendo que no tempo oportuno Ele nos dará o livramento (1 Pedro 5:6). Por isso o
salmista também diz: “Contudo, o SENHOR mandará de dia a sua misericórdia, e de
noite a sua canção estará comigo: a oração ao Deus da minha vida” (Salmo 42:8).

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