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= = 5 8 3 o 3 ee a RO Cesare Brandi Introdugao & edigao portuguesa vnnnnn vii Breve perfil de Cesare Brandi Prefacio & primeira edigao. Prefacio & segunda edicao.... Cariruvos 1 Oconceito do restauro ... 2 Amatéria da obra de arte - 3 Aunidade potencial da obra de arte... 4 Otempo em relacdo a obra de arte e ao restauro.. 5 Orestauro segundo a instdncia da historicidade 6 7 O restauro segundo a instancia estética O espaco da obra de arte... 8 Orestauro preventivo, Apénvices, 1 Falsificagao... . 2 Apostila teérica para o tratamento das lacunas. 3. Principios para o restauro dos monumentos 4 Orestauro da pintura antiga.. 5 Limpeza das pinturas em relacao a patina, 0s vernizes eas velaturas.. 6 Some factual observations about varnishes and glA20S von . 7 Retirar ou conservar as molduras como problema de restauro... 107 123, ‘ANExOS 1 Carta de restauro, 1972. 2 Su Alvaro Pirez... 3. Apasso d'uomo: Portogallo... % Omanuelino CAPITULO 1 ‘omummente entende-se por restauro qualquer interven¢ao ddestinada a repor a eficiéncia de um produto da actividade humana. Nesta concepgdo comum do restauro, que se identi- fica com aquilo que de forma mais exacta se deve denominar esquema preconceptual’, ja se encontra enucleada a nocao de uma intervengao sobre um produto da actividade humana: ‘qualquer outra intervencao, seja na esfera bioldgica, seja na fi- sica, nem sequer entra, portanto, na nogdo comum de restau- ro. Assim sendo, no progredir do esquema preconceptual de Testauro a0 conceito, é inevitavel que a conceptualizacio surja com referéncia a variedade dos produtos da actividade huma- nna aos quais se deve aplicar a intervencao especifica a que se chama restauro, Ter-se-4, portanto, um restauro relativo aos ar- tefactos industriais ¢ um restauro relativo as obras de arte: mas, se o primeiro acabard por se tomar sinénimo de repara¢io ou de restituigao @ um estado anterior, o segundo sera diferente, € no 86 pela diversidade das operacoes a levar a cabo. De facto, ‘enquanto se tratar de produtos industriais, entendendo-se isto nna mais ampla escala, que parte do mais diminuto artesanato, © objectivo do restauro sera evidentemente o de restabelecer a funcionalidade do produto, estando por isso a natureza da intervencio de restauro ligada de forma exclusiva a realizacao desse objective. Mas, pelo contrério, quando se tratar de obra de arte, mesmo que entre as obras de arte haja algumas que tenham estrutural- ‘mente um objectivo funcional, como as obras de arquitectura €,em geral, os objectos das chamadas artes decorativas, toma-se Para oconceito de esquema preconceptual veja-se CESARE BRANDI, Gelso 0 dela Poesia Trim: Einaudi, 1937, pp. 37 3g. claro que o restabelecimento da funcionalidacle, embora entie na intervencao de restauro, nao representard, dlefinitivamente, sendo um lado, ou secundério ou concomitante, e nunca 0 pri- mario e fundamental que diz respeito a obra de arte enquanto obra de arte Entdo, revelar-se-4 de imediato que o produto especial da ac- tividade humana a que se dé o nome de obra de arte assim 0 € pelo facto de um singular reconhecimento que se da na consci- éncia: reconhecimento duplamente singular, seja pelo facto de ever sempre ser efectuado por um individuo singular, seja por nao poder ser motivado de outra forma a nao ser pelo reconhe- cimento que o individuo singular faz.dele. O produto humano a0 qual se da esse reconhecimento encontra-se ali, diante de de ser classificado de modo genérico entre jade humana, até que o reconhecimento ‘que a consciéncia faz dele como obra de arte o exclua, definiti- vamente, do comum dos outros produtos. F esta, seguramente, a caracteristica peculiar da obra de arte, enquanto nao se ques- tiona na sua esséncia e no processo criativo que a produziu, mas ‘quando comeca a fazer parte do mundo, do particular estar no mundo de cada individuo. Uma tal peculiaridade nao depende das premissas filos6ficas de que se parte, mas sejam elas quais forem, fica logo esclarecida se aceitarmos a arte como tum pro- duto da espirituatidade humana Nao se creia que por isso seja necessério partir de uma con- cepcao idealista, porque mesmo colocando-se no seu pélo posto, num ponto de vista pragmatico, € igualmente essencial para a obra de arte o seu reconhecimento como obra de arte. ‘Se nos referirmos a Dewey*, encontrat-se-4 esta caracteristica laramente indicada: «Uma obra de arte, ndo importa quao an- tiga e classica, é realmente, e nao apenas potencialmente, uma ‘obra de arte quando vive em qualquer experiencia individuali- zada. Enquanto pedaco de pergaminho, de marmore, de tela, permanece (sujeita, porém, as devastacoes «lo tempo) ide a si mesma através dos anos. Mas como obra de arte, é recriada todas as vezes que é experimentada esteticamente». O que sig- nifica que, até que essa recriagdo ou reconhecimento nao ocorte, a obra de arte obra de arte $6 potencialmente, ou, como escre- vemos, nao existe senao enquanto subsiste, ou seja, como resulta também da passagem de Dewey, enquanto € um pedaco de pergaminho, de marmore, de tela. 2 JOFIN DEWEY, Art as Experience, New York, 1934; fz-sereferéncia, por co smodidade de confiontacao, 2 taducio italiana de Maltese, Arte come Espe ‘enza, Forenea: La Nuova ltalia, 1951, p. 130 Uma ver esclarecido este ponto, nao sera fonte de surpresa cextrair o seguinte corolério: qualquer comportamento em rela- fo a obra de arte, incluindo af a intervencdo de restauro, de- pende de ter havido o reconhecimento ou nao da obra de arte como obra de arte. Mas se o comportamento em relacio a obra de arte esté es- treitamente ligado ao juizo de artisticidade? - que a isto leva 0 reconhecimento ~ também a qualidade da intervencao nao seré menos estreitamente por ele determinada. O que significa que também aquela fase do restauro, que a obra de arte pode ter em_ comum com outros produtos da actividade humana, nao repre- senta senao uma fase complementar em relacdo com a quali cacao que a intervengao recebe pelo facto de dever ser realizada sobre uma obra de arte. Dai deriva também a l lade por causa desta singularidade inconfundivel, de exceptuar 0 restau- ro, enquanto restauro de obra de arte, da acepcio corrente de restauro que foi explicitada acima, e a necessidade de articular ‘© conceito, ja nao com base nos procedimentos praticos que caracterizam 0 restauro de facto, mas com base no conceit da obra de arte do qual recebe a qualificacao. CChega-se, deste modo, ao reconhecimento da ligacao indis- soltivel que existe entre 0 restauro e a obra de arte, na medida em que a obra de arte condiciona o restauro e ndo o oposto. ‘Mas vimos que essencial para a obra de arte 0 seu reconhe- cimento como tal, € que nesse momento se dé o reingresso da obra de arte no mundo. A ligacio entre restauro e obra de arte institui-se, portanto, no acto do reconhecimento, e continuaré a desenvolver-se em seguida, mas é no acto do reconhecimento que adquire as suas premissas e as suas condicdes. A partir desse reconhecimento entrar em considera¢ao nao apenas a matéria pela qual a obra de arte subsiste, mas também a bipolaridade com que a obra de arte se oferece a consciéncia. Como produto da actividade humana, a obra de arte co- loca, de facto, uma dupla instancia: a instancia estética que corresponde ao facto basilar da artisticidade pela qual a obra € obra de arte; a instancia hist6rica que Ihe compete como pro- duto humano realizado num certo tempo e lugar e que num. certo tempo e lugar se encontra, Como se vé, ndo € sequer necessadtio acrescentar a instancia da utensilidade’, que, em definitivo, € a tnica aplicavel aos outros produtos humanos, porque esta utilidade, se presente, como na arquitectura, na FN. Os neologismos de Cesare Brandi foram mantis pela sua express vidade efdelidade a texto original 4 N.T.~ eUtensidades neologismo de C. Brandi, de vtensiio, qualidade de 3 OConcero oe Restaura obra de arte nao poderd ser levada em considleragio por si pr6. ria mas com base na consisténcia lisica € nas «uas instancias fundamentais, com que se estrutura a obra de arte na recepcio que a consciencia dela faz, 0 ter reconduzido 0 restauro a relagdo directa com o reco- nhecimento da obra de arte enquanto tal, permite agora dar a sua definiggo: o restauro constitui © momento metodolégico do reconhecimento da obra de arte, na sua consisténcia fisica e na sua dupe polaridade estética e historica, com vista a sua transmissdo para 0 futuro, Desta estrutura fundamental da obra de arte, na recepsdo que dela faz a consciéncia individual, deverio naturalmente derivar também 0s prinefpios nos quais sera necessario que o restauro se inspire na sua actua¢ao pritica A consisténcia fisica da obra deve necessariamente ter a pre- cedencia, porque representa o proprio lugar da manifestagao da imagem, assegura a transmissio da imagem ao futuro e garan. te, assim, a sua recepcio na consciéncia humana, Por isso, se do ponto de vista do reconhecimento da obra de arte como tal tem predominio absoluto o lado artistico, na medida em que 0 reconhecimento visa a conservar para o futuro a possibilidade dessa revelacdo, a consisténcia fisica adquire uma importancia primordial. De facto, mesmo que o reconhecimento deva sempre aconte- cer na consciéncia singular, naquele mesmo momento pertence consciéncia universal eo individuo que frui daquela revelacao imediata impde a si proprio o imperativo, categérico como 0 imperativo moral, da conservacio. A conservacio desenrola-se ‘numa gama infinita, que vai do simples respeito & intervencao mais radical, como acontece no caso do destaque de frescos, transporte de pinturas sobre madeira ou sobre tela Mas € claro, se bem que o imperativo da conservacdo se di- rija genericamente 3 obra de arte na sua complexa estrutura, tem especialmente a ver com a consisténcia material na qual se manifesta a imagem. Por esta consisténcia material deverao ser feitos todos os esforcos e investigacbes para que possa durar 0 mais longo tempo possivel Mas serd também, qualquer que seja a intervencio conside- rada, 0 tinico sempre legitimo e imperativo; 0 tinico que deve explictarse com a mais vasta gama de subsidios cient{ficos; € © primeiro, se nao o tinico, que a obra de arte verdadeiramente consinta e reivindique na sua fixa e irrepetivel subsistencia da imagem, Assim se elaritica 6 primeiro axioma: sé se restau a matévia dda obra de arte Mas os meios fisicos aos quais confiada a transmissio da nao Ihe sao adjacentes, s4o pelo contrério uma sua ex- o: no existe a matéria de um lado e a imagem do outro. Fr-no entanto, por mais co-extensfveis que sejam 2 imagem, essa covextensividade’ nao poder manifestar-se totalmente no inte- rior da imagem, Uma certa parte destes meios fisicos funcionara como suporte para 0s outros, aos quais sera mais propriamente conliada a transmissio da imagem, ainda que estes tiltimos de- les necessitem por razdes estreitamente ligadas 4 subsisténcia da imagem. Assim é com as fundagSes para uma arquitectura, uma tabua ou a tela para uma pintura e assim por diante Quando as condigdes da obra de arte se revelarem tais que exijam o sacrificio de uma parte da sua consistencia material, o sucrificio ou em qualquer caso a intervencao deverd ser realiza- dla segundo o que exige a instancia estética. E sera esta instancia «primeira em qualquer caso, porque a singularidade da obra dle arte em relagao aos outros produtos humanos nao depende dla sua consistencia material e nem sequer da sua dupla histor cidade, mas da sua artisticidade, donde, uma vez esta perdida, nigo resta mais do que um destro¢o. Por outro lado também nao poder ser subavaliada a ins- Lancia hist6rica. Foi dito que a obra de arte goza de uma dupla historicidade, ou seja, aquela que coincide com 0 acto que a formulou, 0 acto da criacao, e refere-se, portanto, a um artista, 2 um tempo e a um lugar, e a uma segunda historicidade que provém do facto de petsistir no presente de uma consciéncia, € portanto, uma historicidade que se refere ao tempo € ao lugar onde naquele momento se encontra, Voltaremos, mais porme- norizadamente ao tempo e suas relagbes com a obra de arte, ‘mas, por ora, a distincao dos dois momentos ¢ suficiente. periodo intermédio entre o tempo em que a obra foi cria- da eeste presente historico, que continuamente se destoca para a frente, sera constituido por outros tantos presentes hist6ricos que se tomaram passado, mas de cujo transito a obra podera ter conservado as marcas. Mas também do lugar onde a obra foi criada ou para onde foi destinada e aquele onde se encontra no momento da nova recepcao na consciéncia, poderao ter ficado marcas na propria esséncia da obra. Ora a instancia histérica nao se refere apenas a primeira his- toricidade, mas também a segunda 5 NT = Neologimo. O ConcenooF Resrauto 5 © equilibrio entre as duas instancias representa a dialéctica do restauro, precisamente como momento metodolégico do re- conhecimento da obra de arte enquanto tal. Consequentemente, pode-se enunciar o segundo principio do restauro: 0 restauro deve visar o restabelecimento da wnidade po- tencial da obra de arte, desde que isto seja possvel sem cometer um falso artistico ou um falso histrico, e sem apagar nenhum sinal da passagem da obra de arte no tempo. CAPITULO P as at A ODI GE AIte primeiro axioma relativo a matéria da obra de arte, como lobjecto tinico da intervencio de restauro, exige 0 apro- fundamento do conceito de matéria em relacio & obra de arte. © facto de os meios fisicos, de que a imagem necessita para se manifestar, representarem um meio e nao um fim, nao deve eximir da andlise de que coisa constitua a matéria em relacio a imagem, andlise que a Estética idealista acreditou, em ge- ral, poder ignorar, mas que a andlise da obra iniludivelmente representa, De resto, ja Hegel nao pode evitar de se referir a0 samaterial externo e determinadoe, se bem que nao tenha apre sentado uma conceptualizacao da matéria em relagdo a obra de arte, Nesta relacio, a matéria adquire uma fisionomia precisa € € com base em tal relacao que deve, entdo, ser definida, pois seria de todo inoperante adoptar um ponto de vista ontol6gico, ou gnosioldgico, ou epistemolégico. Sera s6 num segundo mo- ‘mento, quando se chegar a intervencao pratica de restauro, que serd necessério também um conhecimento cientifico da matéria na sua constituicao fisica. Mas, preliminarmente e sobretudo em relagao ao restauro, deve-se definir que coisa é a matéria, na medida em que ela representa, simultaneamente, o tempo e © lugar da intervencao de restauro. Por isso, no nos podemos servir sendo de um ponto de vista fenomenol6gico ¢, sob este aspecto, a matéria manifesta-se como «aquilo que serve 3 epi- fania da imagem». Uma tal definicio reflecte um procedimen- to andlogo aquele que conduz a definicio do belo, definivel ‘20-86 pela via fenomenolégica, como ja o fizera a Escolistica: «quod visum placets. 1 NT — eAguilo que agrada a0 olhan. [A matéria como epifania da imagem dé, entio, a chave do desdobramento que jé se vislumbrara ¢ que agora se define como estrutura e aspect. A distincao destas duas acepgoes fundamentais poe, também, ‘ conceito da matéria na obra de arte, nao de forma diversa, mas ainda mais inseparavelmente do que & 0 verso e 0 reverso pata a ‘medalha. £ claro que ser aspecto em prevaléncia ou em prevalén- cia estrutura sero duas fungdes da matéria na obra de arte, em que, normalmente, uma nao contradiré a outra, sem que com isso se possa excluir um conflito. Um tal conflito, como para a instancia estética em contraste com a instancia hist6rica, ndo poderé ser resolvido senao com a prevaléncia do aspecto sobre aestrutura, quando nao puder ser conciliado de outra forma ‘Tome-se o exemplo mais evidente de uma pintura sobre ma- deira [Figura 1], em que a madeira esteja de tal modo porosa a0 ponto de ja nao oferecer um suporte conveniente; a pintura ser entao a matéria como aspecto, a madeira a matéria como es- ‘rutura, ainda que a divisao possa resultar muito menos nitida, porque o facto de ser pintada sobre madeira confere a pintura ‘aracteristicas especificas que poderiam desaparecer ao retirar- ‘se a madeira. E, portanto, a distingao entre aspecto e estrutura revela-se muito mais subtil do que pode parecer a primeira vis- tae nem sempre, para fins praticos, sera inteiramente posstvel Veja-se agora um outro exemplo, o de um edificio que, parcial- mente derrubado por um terramoto, se presta, no entanto, a uma reconstrugao ou anastilose [Figuras 2 ¢ 3]. Neste caso, 0 aspecto nao pode ser considerado 86 como a superficie externa dos blocos, mas estes deverdo permanecer como blocos, nao 36 em superficie; no entanto, a estrutura parietal interna poderd mudat, para se precaver contra futuros terramotos e até mes- mo a estrutura intema das colunas, quando existem, podera ser substituida, desde que com isso nao se altere o aspecto da matéria. Mas também aqui sera necessaria uma sensibilidade refinada para assegurar que a estrutura alterada nao se repercuta no aspecto. Muitos ertos funestos e destrutivos derivaram do proprio facto de nao se ter indagado a matéria da obra de arte na sua bipolaridade de aspecto e de estrutura. Lima ilusio enraizada que, para os fins da arte, poderia chamar-se ilusao de imanén- cia, fez. considerar como idénticos, por exemplo, 0 marmore ainda nao desbastado de uma pedreira e aquele que se tornou estatua; enquanto 0 matmore nao desbastado possui somente Figura 1 Génova, Palécio Spinola, Antonello da Messina: Ecce Homo (verso do quads). 9 AMartnis Obes oe Aete Figuras 2 3 Alba Fucense, 5, Pedro: interior, pos o restauro, Allba Fucense, S. Pedro: dbside, ‘pds 0 restauro. sua constituicao fisica, o marmore da estétua sofreu a trans: formacao radical de ser veiculo de uma imagem, historicizou-se pela vontade e acco do homem e, entre o seu subsistir como carbonato de calcio e o seu ser imagem, abriu-se uma descon- tinuidade insuperavel. Donde, como imagem, desdobra-se em aspecto e estrutura e poe a estrutura subordinada ao aspecto. Quem entio acreditasse, pelo simples facto de ter identificado a pedreira de onde foi extraido o material para um monumento antigo, estar autorizado a extraf-la uma vez. mais para a recons- trugdo do préprio monumento, onde se trate de reconstrug3o fe nao de restauro, nao veria justificada a sua pretensto pelo facto de a matéria ser a mesma: a matéria nao sera totalmente a mesma, mas, enquanto historicizada pela obra actual do ho: mem, pertencera a esta época € nao aquela mais longinqua, € ainda que seja quimicamente a mesma, sera diversa e acabara, do mesmo modo, por constituir um falso histético e estético [Figuras 4 e 5) Um outto erto, ainda em alguns radicado e que deriva, da ‘mesma forma, do insuficiente questionamento sobre o que re- presenta a matéria na obra de art, instala-se na concep¢ao, cara a0 positivismo de Semper e de Taine, de que seria a matéria que geraria ou, de qualquer modo, determminaria o estilo. Esta caro «que semethante sofisma deriva da falta de distingao entre aes trutura e 0 aspecto e da assimilacio da matéria, como veiculo tla forma, a propria forma. Chegava-se, definitivamente, a con- siderar o aspecto que a matéria assume na obra de arte como foncao da estratura. No pélo oposto, o ter descurado, como acontece nas esté- ticas idealists, 0 papel da matéria na imagem, deriva de nao ter sido reconhecida a importancia da matéria como estrutura Chegando 20 mesmo resultado de assimilar 0 aspecto a forma, mas dissolvendo-a como matéria. {A distingao basilar entre o aspecto € a estrutura pode chegar por vezes @ uma dissociagao tal que 0 aspecto acaba pot, para- Foxalmente, preceder a estrutura, mas somente nos casos ein que a obra de arte nao pertenca ao grupo das ditas figurativas, Como a poesia e a mbsica, nas quais a escrita ~ que, alids, nao €o meio fisico proprio daquelas artes, mas o caminho ~ faz. ‘specto precedet, embora de forma simbélica, a producao efec- tiva do som, da nota, ou da palavra {Uma outra concepcao erx6nea da matéria na obra de arte li snita esta citima consistencia material de que resulta a propria cobra, E uma concepcio que parece dificil de desmontar, mas Figura 4 Atenas, Agora. Stoit de Attalo: recons ‘rugao (foto Scuola ‘Americana, em Enc dell Arte Antica, 1). Figura 5 Atenas, Agora (foto Bonacasa, em Enc dell Arte Antica, 1) ‘que, para 0 fazer, basta contrapé-la a nocao de que a matéria permite a expressao da imagem e que a imagem nao limita a sua espacialidade ao invélucro da matéria transformada em ima- gem: poderio ser assumidos como meios fisicos de transmissio da imagem também outros elementos intermediérios entre a obra e 0 observador. Em primeirissimo lugar, situam-se ento a qualidade da atmosfera e da luz. Mesmo uma certa atmosfera Iimpida e certa luz fulgurante podem ter sido assumidas como © prdprio lugar de manifestacio da imagem, a titulo nao infe. rior ao do marmore, do bronze ou de outra matéria. Dai, seria inexacto sustentar que para 0 Partenon foi usado como meio fisico apenas 0 pentélico”, porque ndo menos do que 0 penté- lico, é matéria a atmosfera e a luz em que se encontra. Donde a remogao de uma obra de arte de seu lugar de origem devers ser motivada pela tinica e superior causa da sua conservacao. 2 NIT. — Marmore pentelico, Co We Be) sclarecido o significado e os limites a atribuir & matéria como inerentes a epifania da obra de arte, deve agora ser investigado o conceito de unidade, ao qual € necessario fazer referéncia para definir os limites do restauro. Comecar-se-é por excluir que a unidade realizada pela o! de arte possa ser concebida como a unidade organica e funcio- nal que caracteriza 0 mundo fisico, desde 0 nticleo atémico a0 homem. E, neste sentido, bastaria assim definir a unidade da obra de arte enquanto unidade qualitativa e ndo quantitativa porém isto nao serviria para separar claramente a unidade da obra de arte da unidade orginico-funcional, dado que o fend- meno da vida nao € quantitativo, mas qualitativo. Devernos,inicialmente, sondar a inderrogabilidade' da atri buigao do caracter de unidade a obra de arte e, precisamente, a unidade que diz respeito ao inteito, e no a unidade que se alcanca no total. Se, de facto, a obra de arte nao devesse conce: berse como um inteiro, deveria ser considerada como um o- tal e, consequentemente, resultar composta de partes: daqui se chegaria a um conceito geométrico da obra de arte, semelhante 0 conceito geométrico do belo, e para isto valeria, como para 0 belo, critica a que ja 0 conceito foi submetido por Plotino. Assim, se a obra de arte for composta de partes que sejam cada ‘uma em si uma obra de arte, na tealidade deveremos conclui {que ou aquelas partes, singularmente, nao so 40 autonomas TNT. termo existe em portagués, com aplicacaojusica, send sey Fignifcado «a impossibilidade de anular uma norma ou preceito» sim fare mais comum o termo «irevogabilidades. Como criterio geal de ta ‘clo manteve-se»palavea em portugues fonctcamente mais proxina dt italiano, atendendo a expressividade quase posta do discurso de Cesan Brandi como se queria €a partigho tem valor de ritmo, ou que, no con- {exo em que aparecem, perdem aquele valor individual para serem reabsorvidas pela obra que as contém. Ou a obra de arte que as contém € uma colectanea e nao uma obra de arte unita- ria, ou entao as obras de arte singulares atenuam, no complexo em que sao inseridas, a individualidade que faz delas, cada uma em si, uma obra auténoma. Esta especial atraccao que a obra de arte exerce sobre as suas partes, quando esta se apresenta com- posta por partes, jf € a negacao implicita das partes enquanto constitutivas da obra de arte. Mas imagine-se agora 0 caso de uma obra de arte que seja «efectivamente composta de partes, as quais, comadas cada uma de per si, nao tenham nenhuma primazia estética particular, a indo ser aquela de um genérico hedonismo ligado 3 beleza da materia, a pureza do corte ¢ assim por diante. Tomemos, pois, 0 caso do mosaico para a pintura, assim como os elementos ~ 08 tijolos, as pedras - para a arquitectura, Sem que nos detenha- ‘mos agora sobte o problema, que para nds é aqui colateral, do valor de ritmo que pode ser procurado e explorado pelo artista na fragmentacio da matéria de que se serve para formular a imagem, permanece o facto de que tanto as tesselas do mosaico como 08 blocos, uma vez. soltos da concatenagao formal que © artista Ihes impos, ficam inertes e néo conservam nenhum taco eficiente da unidade para a qual tinham sido conduzidos pelo artista, Ser como ler palavras num diciondtio, as mesmas palavras que o poeta havia agrupado num verso e que, soltas do ‘verso, retornam a grupos de sons semanticos e nada mais, Portanto, 0 mosaico, e a construgio feita de blocos sepa rados, 0 caso que de forma mais eloquente demonstra a im- possibilidade de a obra de arte ser concebida como um total, ‘quando, a0 contrario, deve realizar um inteiro, Mas, uma vez aceite para a obra de arte a «unidade do inte 10», sera necessério questionar se esta unidade nao reproduz a uunidade orginica ou funcional, que € fundamentada continua- ‘mente pela experiencia. Aqui, as coisas que formam a natuteza nao subsistem como ménadas independentes: a folha chama ‘© ramo, o ramo a drvore; as patas ¢ as cabecas cortadas que se vvéem nos talhos ainda fazem parte do animal; ¢ até mesmo os indumentos, se bem que sejam apresentados nas pregas estere otipadas da confeccao, se referem indubitavelmente ao homem, Na base da nossa experiencia, ou seja, no nosso quotidiano es- tar no mundo, esta precisamente a exigencia de reconhecer as li- gacbes que conectem entre si as coisas existentes e de reduzit a0 19 ou eliminar as coisas intiteis, ou seja, aquelas cujos ne- os com a nossa existéncia ou sao ignorados ou, de certa forma, raldos em desuso. f claro que esta conexio existencial das coi- ss € fungao propria do conhecimento e € 0 primeiro momento dla ciencia: com base nesta elaboracao cientitica, estabelecem-se s eis ¢ (ornam-se possiveis as previsdes, Pelo que ninguém du- vikla, ao ver a cabeca de um cordeitinho sobre o balcio de um lallio, que este tivesse, quando vivo, quatro patas. Mas na imagem que a obra de arte formula, este mundo da experiéncia aparece reduzido unicamente a uma Fungo cogni: Liv no seio da figuratividade da imagem: qualquer postulado tle integridade organica dissolve-se. A imagem & verdadeiramen- © somente aquilo que aparece: a reducao fenomenol6gica que serve para indagar 0 existente, torna-se, na Estética, © proprio uaxioma que define a esséncia da imagem. Por isso, a imagem tle um homem do qual, numa pintura, se vé apenas um bra- 0, possuii apenas um braco nem por isso se pode considerar tnutilada, porque, na verdade, ndo possui nenhum braco, visto que o wbraco-que-se-vé-pintado» nao é um braco, mas somen- te uma fungdo semantica relativa ao contexto figurativo que a imagem desenvolve. A suposicao do outro braco, ou seja, da- quele que nao esta pintado, ja nao pertence a contemplacao da obra de arte, mas & operacao inversa daquela através da qual ‘obra de arte foi criada, ou seja, a0 retrocesso da obra de arte nquanto reprodugdo de objecto natural, pelo que o objecto natural nela representado, o animal-homem neste caso, deveria possuir outro braco. (Ora, se bem que inicialmente cada um possa estar convenci- dodo contrério, ou melhor, quem olha o retrato de um homem hho qual se vé apenas um braco, reproduz instintivamente em si a unidade organica de um homem com dois bragos, vice-versa, ‘recepcao intuitiva e espontanea da obra de arte d-se exacta mente do modo por nds indicado, limitando a substancia cog, nitiva da imagem, ou seja, o seu valor semantico, aquele dado pela imagem € nao mais do que isso. Desta observacao pode. tos dar provas indirectas. Imagine-se uma pessoa que se depa- a.com uma mao cortada ou, até, com uma cabega humana: no horror que sentiria, nem por um instante poderia duvidar que pertencessem a um individuo. Mas a representacao em escul- tura de uma mao isolada ou de uma cabeca, a menos que seja feita para simular restos humanos, nao apenas nao suscitaré ne- bum horror, como nem sequer sugerird 0 pensamento de que se representam partes de um organismo decepadas desse or- ganismo. Tanto que s30 necessarios expedientes especiais para que a representagao em escultura de uma cabeca isolada possa ser interpretada, sem anfibologia, como uma cabeca destacada do busto. A iconografia de Sao Joao Baptista ou de Sao Diont- sio ensina-o, Com isto se demonstra que a unidade organico- -funcional da realidade existencial reside nas fungoes logicas do. imtelecto, enquanto que a unidade figurativa da obra de arte se ‘manifesta una com a intuigdo da imagem como obra de arte. Chegados a este ponto, estamos na posse de duas proposi- Bes, que sio definidas para estabelecer os termos do restauro, isto é regular uma praxis. Verificamos, de facto, que a obra de arte goza de uma sin- gularissima unidade, pelo que ndo pode ser considerada como composta de partes; em segundo lugar, que esta unidade nao pode ser equiparada a unidade organico-funcional da realidade existencial. Donde derivam dois corolatios. Para 0 primeiro, deduzimos que a obra de arte, nao sendo constituida de partes, ainda que fisicamente fragmentada, de- vera continuar a subsistir potencialmente como um todo em cada tum dos seus fragmentos e esta potencialidade sera exigivel numa proposicao directamente ligada a traca formal remanescente, em cada fragmento, a desagregacao da materia, Para o segundo, infere-se que se a «formar de cada obra de ante singular € indivisfvel, se por acaso a obra de arte estiver ma- terialmente dividida, dever-se-a procurar desenvolver a potencial ‘unidade original que cada um dos fragmentos contém, propor- ese para o nosso Carmine o dlls Pura, Vallecch, Firenze, 1947, Lina Torino 1962, de Giotto ou de Rafael, de Correggio ou de Brunelleschi, e as niegagdes absolutas, bem como as exaltagdes absolutas que al lernaram com os tempos. Estas altemnancias nao sdo certamente Indignas de histéria, mas justapostas sto historia e histéria da cultura, entendida como gosto actualista, escolha interessada para certos fins e, naquele momento, em consonancia com esse pensamento. [ssa historia sera, com certeza, legitima e indiscutivelmente iil e poder ser campo de consideracoes preciosas para fins da propria leitura da forma, mas nunca seré hist6ria da art. Porque a historia da ate é a hist6ria que se volta, ainda que na uicessdo temporal das expressoes artisticas, para o momento extratemporal do tempo que se encerra no ritmo; enquanto que esta historia do gosto ¢ historia do tempo temporal que colhe no eu fluxo a obra de arte conclutda e imutavel No entanto, a confusdo entre tempo extratemporal ou inter- no da obra de arte e tempo histérico do observador, torna-se {alvez mais grave e danosa quando acontece ~ € quase sempre lacontece ~ com as obras da propria actualidade em que vive mos; para as quais parece legitima e impreterivel a consubs- {ancialidade em relagdo as aspiracdes, aos fins, & moralidade € | sociabilidade da época ou de certa fraccéo dela, que se deve reconhecer como legitima, mas nao perempt6ria, a nao ser que sentida pelo artista como premissa para o acto de individualiza- glo simbolica do objecto. No entanto, fora da esfera liminar do processo criativo, nao se pode pedir nem exigir mais do artista inodero do que do antigo. Mas viu-se que o fempo se insete {ambém num segundo momento, representado pelo intervalo {que se interpée entre o fim do processo criativo, ou seja, da formulagao conclu‘da, eo momento em que a formulagao vem gir na consciéncia actual do observador. Esse lapso de tempo pareceria, no entanto, nao poder entrar hia consideracdo da obta como objecto estético, porquanto a obra de arte € imutavel e invaridvel, a menos que se transfor- ine numa outta obra de arte, e, por isso, 0 cmputo do tempo decorrido entre a sua conclusdo e a sua reactualizagao nao in- cide, antes desliza sobre a realidade da obra. Esta consideracao poderia parecer incontestavel, mas nao o é, porque nao tem fem conta a fiscidade de que a imagem necessita para atingir fa consciéncia. A fisicidade pode ser minima, mas, no entanto, subsiste sempre, mesmo onde virtualmente desaparece. Objec- 1-8e-4, por exemplo, que uma poesia, se lida com os olhos € jo em voz alta, nao necessita de meios fisicos, porque a escrita € apenas um expediente convencional para indicar certos sons, pelo que, em teoria, deveria ser possivel reconhecer como poe- (0 Teno em Rrsagto A Osea o€ Ane 40 REsTAURO 3 sia também uma série de sinais de que se ignora a proniincia e se conhece apenas o significado. Mas seria uma falacia, A igno- rancia do som a que corresponde o sinal nao implica que o som seja supérfluo na consisténcia da imagem poética, que nao serd menos diminufda na sua figuratividade? do que o que acontece com as composicdes célebres da pintura antiga, de que se co- nnhece a descricdo, mas néo a imagem. Anecessidade do som subsiste e o som, ainda que nio pro- ferido, vive na imagem da lingua, na sua totalidade, que todo.o ser falante possui em poténcia e concretiza em si de modo pro- Bressivo. Ora, nesta concretizagao, embora tacita, tem grande importancia 0 lapso de tempo decorrido entre 0 momento em ue a poesia foi escrita ~ e a lingua era entdo pronunciada de lum certo modo ~ ¢ 0 tempo em que a poesia é lida e que ja nao se pronunciarg daquele mesmo modo, dado que s6 as linguas mortas, artificiosamente fixadas na prontincia e no léxico, po- dem ser consideradas como estaveis no tempo; ¢ em rigor, nem ‘mesmo estas, uma vez que a influéncia da prontincia também se reflectiré nelas, se bem que em menor grau. E.a quem acusas- se de excessiva subtileza estas observacdes, bastaria relembrar as fases da prontincia do francés, pois nao recitamos a Chanson de geste’, mas nem mesmo Pascal pronunciamos 20 modo de Pascal; ou o espanhol, no qual o valor diverso do jota altera Profundamente a leitura da prosa e da poesia seiscentista, E, portanto, também para essas obras de arte, que pareceriam mais ao abrigo do tempo ~ as poesias - 0 tempo passa e nao tem menor incidéncia do que nas cores das pinturas ou nas to. nalidades dos marmores. Nem o é menos para a mtisica, em que os instrumentos anti {05 se modificaram de tal modo para o som, e nao menos para © diapasio, que talvez nada seja tao apenas aproximado como © som com que um érgio actual transmite Bach, ou até mesmo como um violino antigo, mas com cordas metilicas, faz soar Corelli ou Paganini. Neste sentido, mesmo se a consideracio do tempo decorrido se situar apenas apos a iluminacao do instante ue faz vibrar na consciéncia a obra de atte, essa consideracao no serd puramente historica, mas integrar-se-a inevitavelmen. {eno juizo que fazemos da obra, ¢ iluminé-lo-d de um modo certamente nao supérfluo ou marginal, como também nao € ‘marginal ou supérfluo conhecer as variagdes € as flutuacdes de ignificado sofridas pela palavra nos séculos. Chegados a este 2 N.T.~ Neologismo. 3 Bim ances no original ponto, poder-se-ia também perguntar em que pode servir esta e resposta seré ime- ‘andlise para uma teoria do restauro: mas a respost diata e evidente, Era necessério, com efeito, estabelecer 08 mo- mentos que caracterizam a insercao da obra de arte no tempo Narco para poder definirem qual dees momentos podem locorter as condigdes necessérias a essa intervencao especifica a que se chama restauro, € em qual destes momentos ¢ licita tal intervengio. Claro esta que nao se poder falar de restauro durante o pe- Hlodo que vai da constituigéo do objecto a conclusdo da sua formalagio. Psecrd ser rextauro, dado qe a operagio conte ce sobre uma imagem por sua vez. concluida, mas na realidade, tratar-se-A de uma refusdo da imagem numa outra imagem, de uum acto sintético e criativo que esfurma a primeira imagem e a cencerra numa nova, E também nao faltar4, nem certamente tera faltado, quem tenha querido inserit o restauro até na delicadis- sima ¢ irrepetivel fase do processo artistico. Ba mais grave heresia do restauro: 6 o restauro de fantasia [Figuras 4 e 5; 17 a.22). Por mais absurdo que também possa parecer, poder-se-4 tentar fazer cair 0 restauro no lapso de tempo entre a conclu- sao da obra e o presente; ¢ também isto foi feito e possui um nome, £ 0 restauro de repristinagio, que quer abolir aquele lapso de tempo. Se agora, neste ponto, se recordar que o restauro chamado arqueolégico, por mais que o seu respeito seja louvavel, nao coneretiza a aspiracéo fundamental da consciéncia em relacao a obra de arte, ou seja, a de reconstituira sua unidade potencial, ‘mas desta representa quando muito a primeira operacio, onde forcosamente deverd parar 0 restauro sempre que as reliquias remanescentes daquilo que foi uma obra de arte nao consen- 3 Ff 4 que nao pode haver osci trem integracbes plausiveis; ver-se-4 que nao pi ci lagdes ou dtividas sobre a via a escolher, dado que outras nao existem além da indicada e das refutadas. Nio ser, entdo, necesiia maior inisténca par afimar que 0 Ginico momento legitimo que se apresenta a accdo de restauro € 0 do proprio presente da consciéncia observante, em que a obra de arte esta no momento ¢ & presente hist6- rico, mas que € também passado e que, com risco, por outro lado, de nao pertencer & consciéncia humana, esta na histéria. © restauro, para representar uma operacao legitima, nao de- ‘verd pressupor nem o tempo como reversivel, nem a aboligao da histéria. A accio de restauro, além disso, ¢ pela mesma exigencia que impde o respeito pela complexa historicidade 33. O Tewso.em Recto A Osea o¢ Arr ¢ ao RestavRo Figura 17 Milo, Castelo Sfor- zesco: Torre del Fila- rete (foto Anderson). cat ti Sage yg LI, LE Lille Figura 19 Bolonha, lgeja de S. Francisco: dbside e igreja, antes do e restauro (do arquivo Figura 38 fotogrifico dace Tivoli, Vila Adriana: 4d Risparmio, em campo, depois da Bolonka), reconstrugdo. Figura 20 Bolonha, Igreja de S. Francisco: campand= rio e abside, antes do restau (do arguivo Jotogrifico da Cassa 4 Risparmio, em Bolonka), Figura 2 Bolonha, Ire de S. Francisco: vista geral ‘apts o restauro (do uivo fotografico da Cassa di Risparmio, ‘em Bolonha). Figura 22 Bolona, Igreja de S. Francisco: abside, estado actual, apés 0 restauro (do arquivo fotogrifico da Cassa i Risparmio, em Bolonha). devido 4 obra de arte, nao se deverd apresentar como secreta fe quase fora do tempo, antes devera apresentar-se de modo a ser caracterizada como evento hist6rico que é pelo facto de ser acto humano e de se inserir no processo de transmiss0 da obra de arte ao futuro. Na actuacao pratica, esta exigéncia historica dever-se-s traduzir nao apenas na diferenciagdo das zonas integradas, j4 explicitada quando se tratou do restabe- lecimento da unidade potencial, mas também no respeito pela patina [Figura 23], que pode entender-se como 0 pri prio sedimentar do tempo sobre a obra, e na conservacao de amostras do estado anterior ao restauro e, ainda, das partes ‘nao coevas, que representam a mesma translagao da obra no tempo, Naturalmente, para esta tiltima exigencia, nao se pode ir além de enunciado geral, porquanto seré oportuno avaliar Figura 23, Siena, Museu da Obra do Duomo: DUCCIO DI BUONINSEGNA: Storie del Nuovo Testamaneto, Orazione nellorto. A seta indica a remocao, naquele ponto, do verniz antigo, conservado no restante da pintura, como parte es mncial da patina. aso a caso, mas jamais com desrespeito pela instancia estéti- a, qual compete sempre a precedéncia, No que diz. respeito a patina, ainda que na pratica seja ques- to a ser examinada e resolvida caso a caso, exige-se, no entanto, uma elaboracio te6rica que a tire, como ponto essencial para o restauro e para a conservacao das obras de arte, do dominio do gosto edo opinavel, CAPITULO ‘om os capitulos que precedem, a teoria fundamental do jestauro fica enfim delineada Mas, entre a explicitagao dos principios que devem reger 0 restauro e a intervencio efectiva de restauro, falta ainda colma: tar um intervalo que corresponde ao que, juridicamente, repre- senta o regulamento. Isto é, ficando estabelecido que, seja pelo proprio conceito de obra de arte como um unicum, seja pela sin- gularidade nao repetivel da vicissitude histérica, cada caso de restauro serd um caso & parte e nao um elemento de uma série de casos semelhantes poder-se-do, contudo, detimitar alguns vvastos agrupamentos de obras de arte, exactamente com base no sistema de referéncia pelo qual uma obra de arte é uma obra de arte, enquanto monumento! histérico e enquanto forma, Na passagem da norma para a aplicacdo, estes agrupamen- tos devem servir como ponto de referencia, do mesmo modo que o instrumento para actuacio da norma juridica € dado pelo regulamento. Além do mais, estes pontos de referéncia teagru- pario um nimero indefinido de casos singulares com base em caracteristicas 0 mais generalizadas possivel, € servirio, nao ja como norma, mas como subsidio hermenéutico a aplicagao da norma verdadeira e propria. Nesse sentido, é necessétio iniciar ‘ exposicio partindo-se da instancia hist6rica relativa a obra de arte enquanto objecto susceptivel de restauro. Visto que a obra de arte é em primeiro lugar uma resultante do fazer humano e, enquanto tal, nao deve depender para 0 seu reconhecimento das alternancias de gosto ou de moda, impoe-se, no entanto, uma prioridade da consideracao hist6- rica em relacao a estética, Portanto, e enquanto monumento 1 NT No sentido de documento, 39 historico, deveremos, pois, iniciar a consideracito exactamente pelo limite extremo, ou seja, por aquele em que o selo formal Impresso na matéria possa estar prestes a desaparecer e 0 prd: prio monumento quase reduzido a um residuo da materia de que foi composto. Ou seja, devemos examinar as modalidades de conservagao da ruina. No entamto, erraria quem acreditasse que da efectiva real dade da ruina pudessem ser extrafdas as leis da sua conserva. G0, dado que, com a ruina, ndo se define uma mera realidade ‘empfrica, mas enuncia-se uma qualficagdo que compete a algo ue deva ser pensado simultaneamente sob 0 angulo da histo. Tia e da conservacdo, ou seja, nao apenas e limitadamente na sua consisténcia presente, mas no seu passado ~ do qual a sa Presenga actual, em si desprovida de, ou com escassisimo va- Tor, extraio seu tnico valor ~ e no futuro, para 0 qual deve ser assegurada: como vestigio ou testemunho de obra humana € Ponto de partida da accao de conservacdo. Donde nio se po- dera chamar de ruina sento a algo que testemunke um tempo hhumano, mesmo que nao sea exclusivamente referente a uina forma perdida erecebida da actividade humana. Nesse sentido, no se poderia chamar ruina ao carvao fossil, enquantoresidug de uma floresta pré-humana, ou ao esqueleto de uin animal antediluviano, mas séo-4 carvalho seco sob cuja sombra es- teve Tasso, ou, se ainda exisisse,e existsse gasto © seixo com © qual David matou Golias. Ruina sera, pois, tudo aquilo que & tetemunho da hiséia humana, mas Com aspeco bastante verso e quase ireconhecivel em relacao aquele de que se te vestia antes, Com tudo isso, esta definico, no passado eno pre. sente ficariaincompleta sea modalidade singular da existencia, ue na ruina se encontra individualizada, nao se projectasse no futuro com a deducio implicita da conservacio ¢ da transmis. so de tal testemunho histérico, Daf resulta que a obsa de arte redurida ao estado de ruina, depende maximamente pata a sua onseragao,enquantosuina, do juzo histrico que «evolve jonde a sua equiparacio, no plano pritico, aos produtos da actvidade humana que nao foram arte, mas que, mesmo na sua actual ineficiéncia, mantém, no entanto, pelo menos uma parte de seu potencialhistérico, o que, na obra de arte. com a destruicao dos vestigios esiticos, aparece, ao contriio, como resultado de uma desclassificagdo. Por isso, o restauro, quando voltado para a muna, s6 pode sera consolidacao e conservacdo do status quo ou, enti, aruina no era uma ruina, mas una obra que continha ainda uma vitalidade implicita que justif. cava uma reintegracio da unidade potencialorigindria O reco. nhecimento da qualificagdo de ruina telacionasse, entdo, com © primeizo grau de restauzo que se pode individualizar no res {auro preventivo, ou seja, a mera conservacdo, salvaguarda do saius quo, e tepresenta um reconhecimento que implicitamente ‘exclui a possibilidade de outra intervencio directa que nao seja a vigilancia conservativa e a consolidacao da matéria, de modo {que na qualificagao de ruina, jé se exprime o juizo de equipara- {glo entre a ruina da obra de arte e a rufna puramente hist6rica, Togicamente postas em situagdes equivalentes. ‘Além da intervengao directa, assim delimitada, existe, ainda, a intervengio indirecta que envolve o espaco-ambiente da ruina fe que, para a arquitectura, se toma um problema urbanistico; para a pintura e escultura, é um problema de apresentacao e de fenquadramento. Mas uma vez que isso envolve 0 «espaco» da obra de arte, sera objecto de uma abordagem posterior. Nada listo € dbvio, dado que é tenaz e recorrente a ilusio de poder fazer a rufna retomar a forma, Nao basta saber, mesmo se com a mais vasta ¢ minuciosa documentasio, como a obra era antes de se tornar uma ruina. ‘Areconstrucio, a repristinacio, a cépia nao podem nem sequer ser tratadas como tematica de restauro, de que naturalmente exorbitam para entrar unicamente no campo da legitimidade ‘ou ndo da reprodugdo a frio dos procedimentos da formulaga0 da obra de art. Daquilo que precede resulta que, se € facil estender & ruina de um monumento histOrico o mesmo respeito que & ruina de uma obra de arte, na medida em que esse respeito se traduziré tunicamente na conservagao e na consolidacao da matéria, nao é pelo contrério, fécil definir quando, na obra de arte, cessa a obra de arte e aparece a ruina. No caso da Igreja de Santa Clara, em Napoles, bombardeada e incendiada na tltima guerra, pelo facto de terem reaparecido os vestigios da Igreja gotica angevi- na, parecia ter permanecido mais do que uma rufna; mas, justa- ‘mente porque pareciam conspicuos os vestigios reaparecidos, 0 problema deveria ter sido colocado sob o angulo que veremos nna posterior deduczo do conceito de ruina pela instancia ar- tfstica: sob este aspecto 0 problema deveria ser considerado, € consideré-lo-emos, se a evocagio do primitivo estado da Igreja teria sido mais eficaz com a conservacio sob a forma de ruina histérica do que com a tepristinacao [Figuras 24 a 26]. Pela dii- plice instancia da historicidade e da artisticidade, nao € neces- sirio forcar o restabelecimento da unidade potencial da obra até ao ponto de destruir a autenticidade, ou seja, sobrepor & antiga uma nova realidade hist6rica nao auténtica, absoluta- mente prevalecente. De momento devemo-nos limitar a aceitar na ruina re- manescente de um monumento histérico ou artistico que nao (0 Restauno Seco A nstanct od Hi a 42 Figuras 24 ¢ 25 Napotes, S, Clara interior, apos 0 bombardeamento. pode permanecer sendo aquilo que é caso em que 0 restauro Rgo podera consistir endo na sua conservacdo, com 0s proce imentos téenicos que exige. A legitimidade da conservacio da ruina estd, pois, No juizo hist6rico que dela se faz, como teste- Tmunho mutilado, porém ainda reconhecivel, de uma obra ¢ de ‘um evento humano. Com a raina, portanto, iniciamos também o exame da obra de arte para os fin do restauro, do primeirissimo grau, para lem do qual a matéria que jé conformou a obra de arte voltou aiset materia bruta. Esse é portanto, também o primeirissimo giau do restauro que, para prospeciar a obra de arte, nao jé na Siesagem da sua fabulacko interior 3 sua exteririzacdo, mas pmo id exteriorizada e no mundo, se deve comevar exactamen: Figura 26 Napotes, S. Clara: interior, ‘aps o restau te onde @ obra de arte acaba, ou seja, naquele momento-limit (€ € limite tanto no espaco como no tempo) em que a obi de arte, reduzida a poucos vestigios de si mesma, esta prestes recat no informe. No entanto, 0 caso da rufna nao é 0 tinico a colocar mesmo plano da conservacao da obra de arte também al ma coisa que obra de arte nao é e nem sequer representa U produto do fazer humano, De facto, hd 0 caso das chamad: belezas naturais que, apesar de merecerem um exame pat dada a riquissima casuistica que apresentam, merecem d de j ser elencadas entre 08 casos em que 0 restauro, cot restauro preventivo € como interven¢ao conservativa, deve estendido também aquilo que nao é produto directo do. humano, mas cuja consideracao, no campo do juizo, deriva uma equiparacio a obra de arte. O respeito por uma vista, salvaguarda de um panorama, a integridade de certos asp. naturais ligados a uma determinada cultura (bosque, prac alqueives), requeridos sob uma base analégica de aspiracao forma, intencionalmente objectivada nesses aspectos natural por uma particular consciéncia hist6rica e individual, cor tuem outros tantos casos de devida extensio do conceito restauiro preventivo e de conservacdo a algo que subsiste facto, cujo aspecto nao é fruto (ou 0 € apenas de modo, ial) do fazer humano, Claro est que essa exigéncia de conservacao, como nao rogaa instancia estética,tAo pouco derroga a instAncia histor porque aquilo que se quer conservar e preservar nao € um p daco de natureza em si e por si, mas aquela parcela de natur = que sofieu ou ndo modificagées humanas - como € vista, ou seja, proposta, isolada do contexto, e intencionada como aspi= ragdo a forma pela consciéncia humana. Por isso nao existird designacao de tal espécie que no seja ligada a uma fase especial dda cultura humana. Assim como até ao tempo de Madame de Staél era considerada horrivel a paisagem montanhosa da Suica, também a campina romana na sua desolada vastidao nao teve fautores antes do Romantismo que ali se «classicizava», enquan- to que no tempo da verdadeira paisagem classica romana, de Poussin ao primeiro Corot, a beleza da campina romana foram as singulares arborizac6es, e os montes, e a atmosfera vastissic ma ¢ profunda, os lagos iméveis, as rufnas dos aquedutos e os templos, Por isso, a conservacdo desses aspectos deve ser feita ‘mais pot respeito a instancia histérica do que a uma valoracao actual dos mesmos ¢, se instancia existe, refere-se nao a uma actualidade, mas a uma fase hist6rica do gosto: donde ser neste Ponto que se juistificava falar disso. Continuando agora o exame segundo a instancia da histo- ficidade, aqui se apresenta, tornando ao proprio ambito das bobras de arte, primeiro 0 duplo problema da conservacao ou dla remogao das adicées e, em segundo lugar, o da conservagio fou «la remogao dos refazimentos. E se, remontando da obra de ste reduzida a ruina a obra de arte que sofreu adigoes ou refazi- Inentos, poders parecer que seja impossivel manter-se de modo figldo somente sob a instancia hist6rica, advertimos que ndo lencionamos, de modo algum, resolver o mesmo problema de ‘uas maneiras, mas somente examinar a legitimidade ou nao tla conservacao ou da remogao das adicbes ¢ dos refazimentos, do ponto de vista historico, ver até que ponto valem a razdo Iistorica e a razdo estética, e buscar pelo menos uma linha so- bre a qual conciliar a eventual discrepancia, Levantando-se-nos o problema da legitimidade da conserva- ‘glo ou da remocéo, jd superdmos, evidentemente, 0 obstacu- Jo de quem acreditasse nao poder fundamentar a legitimidade {la conservacéo seno sobre o valor de testemunho hist6rico: pois, se assim o fosse, nao seria menos de respeitar incondicio- halmente a destruicao barbara do vandalo do que a integracao atstica, e nao de restauro, que uma obra tenha recebido no faurso dos séculos. Nem ¢ de excluir que uma e outra possam her respeitadas. Mas como a obra de arte se apresenta com a hipolaridade da historicidade e da estética, a conservagao © a remosao nio poderio ser feitas nem a despeito de uma, nem no desconhecimento da outra. Por isso, sob a instancia hist6rica, devemos propor-nos em primeiro lugar o problema de se € legitimo conservar ou remover ‘eventual adigao que uma obra de arte tena recebido: se, por ‘outras palavras, independentemente do facto de o juizo estético poder ser positivo apenas conservando ou removendo a adicao, € legitimo conservar ou remover a adicio ta0-86 do ponto de vista hist6rico, © que leva desde logo a indagat, sob este Angulo, 0 conceito de adicao. Do ponto de vista hist6rico, a adigio softida por uma obra de arte ndo é senao um novo testemunho do fazer humano e, portanto, da histéria: neste sentido, a adicao nao dife- re da cepa originéria e tem os mesmos direitos de ser conservada. ‘Aremocio, a0 contratio, apesar de também resultar de um acto € de, porisso, se inserir qualmente na historia, na realidade destr6i um documento e nao se documenta a si pr6pria, donde levaria & hegagdo e destruicdo de uma passagem hist6rica e a falsificacdo do dado. Daqui deriva que, do ponto de vista hist6rico, s6 € in- condicionalmente leg(tima a conservagio da adigdo, enquanto a remocio deve sempre ser justificada e, em qualquer caso, deve ser Teita de modo a deixar tragos de si mesma e na prépria obra. (0 Resrauno Secunoo a Isriacia oe HisromcoADe 45 ada normal; excepcional, a remocio. ‘totalmente o cont daquilo que o empiismo oitocentista aconselhava para os tauros. Poder-se-ia, todavia, objectar que existe uma adigio do representa necessariamente 0 produto de um fazer, que a alteracao ou a sobreposicio conhecida sob o nome de tina. Foi dito ndo necessariamente, porque é indubitavel qu artista possa também ter contado com um certo ajustam ue o tempo produziria na matéria das cores, do marmore, bronze, das pedras: neste caso, € pacifico que a conser € a eventual integracao da patina sio parte intrinseca do eito pela unidade potencial da obra de arte a que o resta almeja. Mas devemos perspectivar também 0 caso da obra de ara a qual o artista nao tenha necessariamente previsto 0 Ihecimento como modo de a sua obra se concluir no temps ‘um acabamento a prazo. Ora 0 problema é aqui levantado, mi nao pode ser resolvido integralmente em sede hist6rica, d quea instancia estética € prevalecente. Todavia, do ponto de {a hist6rico, devemos reconhecer que é um modo de falsifcar: historia se os testemunhos hist6ricos forem privados, por assim dizer, da sua antiguidade, isto é se se forca a matéria a readquitis ‘uma frescura, um corte preciso, uma evidéncia tal que contradi- 88a antiguidade que ela testemunha, Qualquer prevaléncia da matéria sobre a actividade do homem que a moldou nao pode set admitida pela consciéncia hist6rica, j4 que a obra vale pela actividade humana que a moldou e nio pelo valor intrinseco da matéria, de modo que até o ouro e as pedras preciosas recebern novo valor através da obra humana que delas se serve. Do ponto de vista hist6rico, portanto, a conservacao da patina, ou daque- le particular ofuscamento que a matéria nova recebe através do tempo e que é, portanto, testemunho do tempo transcorrido, ‘nao somente é admissivel, mas é taxativamente requerida. Poder-se-4 pensar que o problema nio muda muito para 98 refazimentos, Também um refazimento testemunha a in- tervencto humana, e também ao refazimento ha que atribuir um momento da historia. Mas um refazimento nao € 0 mesmo que uma adicéo. A adicéo pode completar, ou pode desenvol. ver, sobretudo na arquitectura, fungdes diversas das iniciais; na adigao, nio se recalca, antes se desenvolve ou se enxerta. O re- fazimento, ao contrario, pretende remodelar a obra, intervir no Processo criativo de maneira andloga ao modo como se desen. Tolou 0 processo criativo originario, refundis o velho e o novo de modo a nao se distinguirem ea abolir ou reduzic ao minimo intervalo de tempo que aparta os dois momentos. A diferenca 180 gritante. —— ‘Apressuposicao explicita ou implicta do refazimento € sem- 1a de abolir um lapso de tempo, seja porque a tltima inter- Pent em dat, mn due consisicoeiainerto se quia fazer Similar ao predso tempo em que obrs naceu sa pore to contrario, se quera refundir por completo na actualidade do telazimento também o tempo precedente. Temos entio, para a Innciahistrca, dois casos absolutamenteopostos: sia enquanto o primeiro caso, aquele em que a ; {ho quer serreodatada representa um fl histico e m0 a interven- pode jamais ser admissivel, o segundo caso, aquele em que fefazimento quer absorver e transformar sem deixar vestigios a ‘obra preexistente, apesar de ndo entrar no campo do restauro, pode ser perfeitamente legitimo, mesmo do ponto de vista rico, é snho auténtico do presente de um fazer porque é sempre testemunho auténtico do ew fhumano e, como tal, documento? nao dubio da hist Se, entdo, nos reportarmos a altemativa da conservacio ou. da remocao, sob 0 ponto de vista hist6tico, acharemos certo que um monumento sa reconduzdo, quando possivel, aque Ic estado imperfeito em que durante 0 processo hist6rico fora deixado e que repristinagoes desajustadas haviam completado, enquanto que devs se sempre respeitada a nos unidade que independentemente da veleidade das repristinacdes, tenha sido alcancada na obra de arte com uma refusdo que, quanto mais Concemir 3 arte, mais seri também matéra de hist6ria e teste munho nao duibio. Por isso, a adiglo serd tanto pior quanto mais se aproximar do tefisimento,€ 0 refazimento etd tanto Tals consentido quanto mais se afastar da adigao e visar constituir uma unidade nova sobre a velha. Poder-se-4 observar, todavia, que, por péssimos que sejam, 6s refazimentos documentam, também eles, nem que seja um erro da actividade humana, mas sempre fazem parte, quan- mais nao seja como erros, da hist6ria humana: donde nao tem sia inslncia pareceria hstricamente irepreensve, se no causasse na realidade uma conviecao de inautenticidade, de falso, para toda a obra, em que ¢ posta em discussio a pr6- pria veracidade do monumento como monumento histérico: 6 que nio pode ser consentido em texmos de ertica floldgica, Ft send gar uma instancia similar de conseracao Inte JN Prcfemu-se documenta em relagio ao termno original smonumento. ‘Secu A Instaxcia 04 Hi ral, para todos os estados através dos quais a obra passou, nfo deve transgtedir a instancia estética. £ sob este angulo que se examinard 0 problema no capitulo seguinte. CAPITULO SN jeg eae material € tio- -pouco um qualquer remanescente de um produto da acco humana, mas que a designacio técnica de ruéna, para os fins do restauro, traz implicitamente 0 reconhecimento e a exigén- ia de uma acco a ser desenvolvida para a sua conservacio. Esse conceito técnico de ruina foi por nds explicitado no que diz respeito & histricidade, como 0 ponto mais remoto a que poderiamos remontar, no raio de acgdo do restauro, em rela- a0 aquilo que se revelasse de realizagao humana. Fiéis & nossa tese, nao poderiamos antepor para qualidade primeira que este remanescente ligado a actividade humana também tivesse sido uma obra de arte. Devemos ainda examiné-lo sob esta segunda instancia. Mas, logo que proposta, tal pesquisa parece supér- flua, no sentido em que, segundo o rigor da légica, pareceria que, enquanto vestigios de artisticidade permanecerem num produto, ainda que mutilado, da actividade humana, nao se deve falar de ruina e que, vice-versa, se aqueles vestigios esto de facto perdidos, nao pode mais tratar-se de aristicidade, mas apenas de historicidade; por isso, a questio da ruina, do ponto de vista estético, nao pode ser posta sem uma profunda con- tradicao. Argumentemos de sibito que tal rigor seria extremo, porque do ponto de vista estético nao somos forcados a definir a drea conceptual da ruina da mesma maneira que do ponto de vista histOrico, pelo facto de, para nés, ser esteticamente uma rufna qualquer remanescente de obra de arte que ndo possa ser reconduzido a unidade potencial sem que a obra se torne uma c6pia ou um falso de si propria. E aqui seria também absurdo exigir uma maior aproximacio, na medida em que, onde todo © caso € tinico e individual, como para a obra de arte, ndo se 1 sBoleim do Tinto Centrale del Restaura», 13, 1953, pp. 49 Figura 27 Bolonha, Paldcio Bevilacqua: porto (fo1o Anderson), pode pensar em converter um juizo de qualidade em quanti dade e aspirar, desse modo, & certeza matemitico-empitica da tébua pitagorica Entre os exemplos mais tipicos de ruinas que nao podem ser integradas, mas que na medida do possivel devem ser conserva- das, citam-se: as esculturas do Palacio Bevilacqua e da Madonna. de Galliera em Bolonha [Figuras 27 ¢ 28]; a Vénus Marinha do. Museu de Rodes; 0s frescos do Hospital do Ceppo de Prato, 08 frescos de Sodoma e de Sassetta e Sano di Pietro na Porta Roma: nna e na Porta Pispini, em Siena [Figuras 29 ¢ 30]; 0s frescos da Loggetta del Bigallo, em Florenca, etc. Mas 0 conceito de ruina do ponto de vista artistico apresenta complicagdes que nao podemos deixar atts, ou seja, contem- pla a eventualidade de que a rufna se integre num determinado conjunto, monumental ou paisagistico, ou determine o caracter cde uma zona. Isto que pode parecer mera excepcao empirica e ‘ocasional, na realidade nao o é, dado que a delimitacao nega- iva do conceito de rufna, como remanescente de obra de arte que ndo pode ser devolvida a unidade potencial, se contrapoe a determinagao positiva de remanescente de obra de arte que, sem poder ser reconduzida a unidade potencial, se associe a foutra obra de arte, da qual recebe ¢ a qual impoe uma quali ficagao espacial particular, ou que adequa a si uma dada zona paisagistica, A delimitacao da eficiéncia da ruina, neste sentido, pode ser muito importante porque se, sob o aspecto negativo, a acco a desenvolver para a sua conservacdo € a mesma, ow Scja,estritamente conservativa, como para a instancia historica, quando a rufna jd néo for s6 residuo, mas estiver relacionada, Figura 28 Bolonha, igreja da Senhora di Galle 1a ou dos Padri Filippini: pormenor a fachada (foto Alinari. (0 Restaueo Sesunoo a lsriwcn ESTERCA 51 Figura 29 Siena, Porta Ro- ‘mana. SASSETTA (e Sano di Pietro) Incoronazione. com uma qualificagao positiva, poderia questionar-se se, nesse aso, nao deva prevalecet a sua mais recente ligacao e, conse- ‘quentemente, pelo facto de qualificar um espaco natural, nao deva prevalecer esta qualificagao sobre o respeito do remanes- cente enquanto nufna, ‘Vejam-se, entdo, os casos do Arco de Augusto em Rimini [Fi- gguras 31 a 33], que ainda estava inserido entre as duas torres, como porta de cidade e, portanto, ligado ao conjunto edificado que surgiu sobre as muralhas, 0 caso do Foro de Trajano, com 08 acréscimos do Hospicio dos Cavaleiros de Rodes [Figura 34], a ruina do Clementino, 0 Templo da Sibila em Tivoli (Figura 35], a Casa dos Crescenzi na Via del Mare [Figuras 36 a 38], 0 Templo descoberto na Via delle Botteghe Oscure [Figura 39], as escavaces da Argentina’, etc Ora, a ligacao da ruina a outro conjunto, sem ou com sol io de continuidade, é facto que nao muda os termos da con- servasao in vita, como e onde permanece, sem completamentos de qualquer espécie. Pois que, se se trata de uma obra de arte em que a ruina foi reabsorvida, é entao a segunda obra de arte que tem o direito de prevalecer. Assim, ndo se deveria repristi- nar o poliforio medieval no centro do Paldcio maneirista da FN. - Praca da Torre Argentina, me Praca dos Cavaleiros, em Pisa [Figura 40]; a rufna da Muda es- {ava incorporada no Palacio quinhentista e teria, entéo, apenas tum fraco eco histérico pelo qual uma lapide seria suficiente, nada mais acrescentando & mirifica realidade pura do Canto do Conde Ugolino o falso polifério de Pisa que o restaurador reabriu e completou de modo fantasioso. Diverso em aparén- cia, mas idéntico em substancia, o problema da conservacio da chamada casa de Cola di Rienzo ou dos Crescenzi na Via del Mare, em que vinha sendo historicamente respeitada a ligago com outros e sucessivos edificios, mas secundarizado por um novo, completamente arbitrario e fortuito, que sufocou a ruina, des- truiu a drea espacial que Ihe pertencia, sem conseguir atrai-la a si proprio, & qual repugna como uma verruga ou uma sectecio indevida. Nesse caso dever-se-ia conservar nao apenas a rufna do monumento, mas 0 Ambito ao qual estava ligado e que era, pela ruina, qualificado. Igual foi o caso da rufna do Clementino®, deixada como um instil obsticulo nas margens do Tibre, que o expele, sem conseguir ignoré-lo. ‘Mas se, pelo contrério, reconhecendo a importincia que assume a ruina na possibilidade de atrair para si e de indivi- 7” NIT — Colégio de Clemente Vill Figura 30 zione dei pastori. Figura 32 Rimini, Arco de Au- ‘gusto (lado norte): antes do arranjo actual (oto Anderson). dualizar 0 ambiente circunvizinho, um pouco como o acento tonico que suporta as silabas étonas da palavra, se pensasse que isto aconteceria tanto mais se a obra, que agora vale bas- tante mais por esse suporte da sintaxe paisagistica e urbanistica do que pela sua real consisténcia, pudesse ser completada, re- dimida, pois, da sua condicio de ruina, também esta hipotese deveria ser evitada e rejeitada. Porque a obra de arte reduzida a ruina, na medida em que qualifica uma paisagem ou uma zona urbana, consuma entao esta obra na consciéncia de quem nela reconhece a sua validade, de quem, por outras palavtas, a reconhece activa nesse sentido, que nao esta de modo al- gum ligado a sua primitiva unidade e integtidade, mas sim & sta mutilacéo actual. Nessa sua mutilag3o, a obra determina uma resolugao ambiental no plano pictérico, ou seja, ndo no plano estrito da obra de arte, mas no que se dirige a uma certa é es Figuras 32 € 33, Rimini, Arco de Au- gusto: apés o arranjo ‘actual. Figura 34 Roma, Forum Traja- no com a galeria dos Cavaleiros de Rodes (foto Anderson). proposicdo do objecto, disposto, iluminado, artfcializado se- gundo um particular esquema formal. A obra de arte mutilada redescende, portanto, a objecto constituido, mas constitufdo no dado e no facto real da sua actual consisténcia mutilada e da sua presenca conjunta com outros objectos. Foi assim que foram compreendidas e utilizadas as ruinas romanas na jardi nagem € na paisagem de Seiscentos em diante e até ao limiat do nosso tempo. O Templo de Castor e Pélux, no Férum ¢ 0 ‘Templo da Sibila, no Tivoli, sio ambos casos tipicos de mo- numentos que adquiriram um facies indissolivel, na sua mu- tilagdo, daquilo que é o ambiente paisagistico a eles ligado. E por isso um erro crer que todas as colunas partidas possam set legitimamente reerguidas e reconstruidas quando, pelo con- tratio, o ambiente onde isso deveria acontecer jé atingiu, his- toricamente e esteticamente, tum ajustamento que nao deve ser destruido nem para a historia nem para a arte. Assim, é sempre uum erro 0 atranjo arqueolégico de zonas de Roma que a estra tificagdo das epocas havia ajustado de modo a integrar a ruina na espacialidade de uma obra e nao naquele espaco abstracto, no vazio que tolamente se cria em tomo de um monumento, E com tudo isto, e omitindo mirfades de outros exemplos, nao podemos sendo repetir 0 conceito de que a ruina, também para a instancia estética, deve ser tratada como rufna € que a acgao a conduzir deve permanecer conservatina € nao integrativa. Vee que também sobre esse ponto a instancia hist6rica e a instancia estética coincidem na hermenéutica da obra a empre- ender sob a forma de restauro. ‘Trata-se agora de levantar de novo o problema da conserva cao e da remocao das adigdes, tendo-se presente, neste ponto, Figura 35, Tivoli, Templo de Sibila (Gabinetto Fotografico Nazio- ale) rucao da rua del Mare Figura 39 Roma, Rua delle Botteghe Oscure: ‘Templo. que nao se trata apenas de uma ruina, mas que se pode tratar, € «tratar-se-4 a maior parte das vezes, de adicdes feitas sobre obras de arte que poderiam reencontrar a unidade origindria e ndo apenas a potencial, se as adicdes fossem, onde possfvel, removi- das, Apercebemo-nos entao de que, por este lado do problema, do ponto de vista da Estética, a importancia se inverte em rela- «a0 a instancia histérica, que colocava em primeiro lugar a con. servacao das adic6es, Para a instancia que nasce da artisticidade da obra de ante, a adicao reclama a remosao. Perfila-se, portan- 10, a possibilidade de um contlito com as exigéncias conservati- vvas avangadas pela instancia hist6rica. Tal conflito, naturalmen- te, pode ser apenas esquematizado em sede teorica, sendo este contencioso 0 mais individual e, por assim dizer, irrepetivel que possa acontecer, Mas a resolucao nao pode ser justificada como sendo de autoridade: deve ser a instancia que tem maior peso sugeri-la. E como a esséncia da obra de arte € ser vista no facto de constituir uma obra de arte ¢ s6 numa segunda instancia no facto hist6rico que caracteriza, € claro que, se a adicio deturpa, desvirtua, ofusca, oculta parcialmente a visio da obra de arte, essa adicao deve ser removida e apenas se deverd procurar, tan to quanto possivel, a sua conservagio a parte, a documentacao 0 registo do periodo histérico que, deste modo, é removido € apagado do corpo vivo da obra. Desse modo, devem ser remo- vidas incondicionalmente as coroas colocadas sobre a cabesa das imagens Sacras; e é este 0 caso talvez mais tipico € mais simples da remogao das adic6es. Mas o problema nao se apresentaré sempre tdo simples € , tendo-se optedo pela traducio literal deixando a0 letor a sua propria iter- pretacio actualidade do querer com que ela se determina como impera- tivo da consciéncia. Isto é a operacao pritica de restauro estard para o restauro como a pena para a norma, necesséria para a eficiéncia, mas nao indispensével para a validade universal da propria norma, F por isso que a primeira intervencéo que deveremos consi- derar nao seré a dirigida & propria matéria da obra, mas a que € destinada a assegurar as condigOes necessérias para que a espacialidade da obra ndo encontre obstculos no afirmar-se dentro do espaco fisico da existéncia. Desta proposicao resulta que também 0 acto através do qual um quadro é pendurado numa parede nfo indicia apenas uma fase da decoragao? mas, em primeiro lugar, constitui a enucleagao da espacialidade da cobra, 0 seu reconhecimento, que s40, portanto, os expedien: tes tomados para que seja tutelado peto espaco fisico. Pendurar lum quadro numa parede, retirar-Ihe ou colocar-Ihe uma mol- dura; colocar ou retirar um pedestal de uma estatua, tird-lo do seu lugar ou criar-lhe um novo; abrir um espaco ou um largo junto de uma obra de arquitectura, ou mesmo desmonté-la e tomar a erigi-la noutro lugar; eis outras tantas operagoes que se apresentam como outras tantas acgoes de restauro e natural- "mente nem sempre como ac¢des positivas, antes pelo contratio, a maior parte das vezes como decididamente negativas, como 6 ligados a desmontagem de uma obra arquitecténica e & sua remontagem noutro lugar. .-Anedamenton, no original, também pode sigaifcaro que habitus! ‘mente designamos por projecto de arquitectura de imeiotes, por design de Interiores ou por projecto de equipamento de interiores. 69 O EseAcoon Oana 06 Aare cCaP(TULa Reaeeprsrenivg éuma expresso insta que podria st induzir no erro de fazer crer que possa existir uma espécie de profilaxia que, aplicada como vacinacio, possa imunizar a obra de arte no seu percurso no tempo. Essa profilaxia, diga- ‘mo-lo ja, nao existe nem pode existir, porquanto a obra de arte, do monumento a miniatura, nao pode ser entendida como um otganismo vivo, mas sim na sua realidade estética e material, na qual subsiste e que serve de agente para a manifestacao da obra como realidade pura. Acbra de arte, do monumento a miniatura, é, de facto, com- posta de um certo mimero e quantidade de matérias que, na sua conjugacao e por um indeterminado e indeterminavel con- curso de circunstancias e de agentes especificos, podem sofrer alteragées de varios géneros que, nocivas & imagem, & matéria ouaambas, determinam as intervengies de restauro, A possibi- lidade, entao, de prevenir essas alteragGes depende precisamente das caracteristicasfisicas e quimicas das matérias de que ¢ feita a obra de arte e ndo negamos que as prevencdes para algunas eventuais alteragbes poderio revelar-se também contrarias, no todo ou em parte, as exigencias que se reconhecem na obra de arte enquanto obra de arte; ou seja, a obra de arte, porque fei- ta de uma certa matéria ou de um certo conjunto de matérias, pode ter, no que respeita & sua conservacao, exigéncias contri- rias ou de algum modo limitativas em relacao aquelas que s40 reconhecidas para a sua fruicdo como obra de arte. A possibi- lidade de um tal conflito nao hipotética e isto sera visto em seguida. Neste aspecto, trata-se de delimitar a area daquilo que se deva entender por restauro preventivo e explicar por que fala- ‘mos de restauro preventivo ¢ nao simplesmente de prevencio. n ‘A expressilo restatiro preventivo relaciona-se, necessari mente, com a nogio de restauro por nds elaborada. Defi ‘mos, com efeito, o restauro como #0 momento metodol: do reconhecimento da obra de arte na sua dupla polarid estética € histérica», O que significa, entao, momento me légico? © reconhecimento da obra de arte como obra de acontece de modo intuitivo na consciéncia individual e este teconhecimento esté na base de todo o futuro comportamen= to em relagéo a obra de arte como tal. Donde se deduz que o comportamento do individu que reconhece a obra de arte como tal, personifica instantaneamente a consciéncia univer- sal, a qual se exige a accao de conservar e transmitir a obra de arte para o futuro, Esta acgio, que o reconhecimento da obra de arte impoe a quem a reconhece como tal, apresenta-se como imperativo ca- tegérico, a par do moral, e neste proprio apresentar-se como imperativo determina a érea do restauto preventivo, como pro: tecsio, remocao de perigos, garantia de condicées favoraveis. Mas para que estas condig6es sejam efectivas e nao permane- ‘cam como pretensdes abstractas, € necessario que a obra de arte seja examinada, em primeito lugar, em relacio a eficiéncia da imagem que nela se concretiza e, em segundo lugar, em relacao ao estado de conservagao das matérias de que ¢ feita, Eis como esta anilise se posiciona como metodologia flolégica e cientfi- a, a Gnica a partir da qual se poderao clavficar a autenticidade com que a imagem tera sido transmitida até nés ¢ 0 estado de consisténcia da matéria le que resulta, Sem esta precisa andlise filol6gicae cientifica, nem a autenticidade da obra enquanto tal poderd considerat-se confirmada na reflexio, nem garantida m: sua consisténcia a obra para o futuro, Qualquer que seja a accio a empreender para restituit, nos seus elementos remanescentes, aquilo que resta da imagem ori- gindria ou garantir a conservagao das matérias as quais a sua manifestagio como imagem é confiada, sera condicionada pelo cumprimento da dupla anilise inicial; e é por isso que as ac- Ges praticas subsequentes, em que podera ou devera consistir © restauro vulgarmente considerado, nao sao senao 0 aspecto Prético do restauro, assim como a matéria da obra de arte, a qual se dirige o restauro pritico, é subordinada a forma da obra de arte. Por isso, definindo o restauro como o momento metodolé- gico do reconhecimento da obra de arte enquanto tal, vimos a reconhecé-lo naquele momento do processo critico no qual, somente, poder basear a sua legitimidade, fora do qual qual- quer interven¢ao sobre a obra de arte € arbitraria e injustificivel ‘Alem do mais, libertamos para sempre o restauro do empiis- no dos procedimentos e integramo-lo na histéria, como cons- tlincia critica e cientifica do momento em que a intervencao de testauiro se produz, Mas, definindo o restauro nos principios tesricos em vez de hha pritica empirica, nao fazemos diferente do que na definicao do direito ao prescindir da sangio, porquanto a legitimidade do diteito deve fundamentar a legitimidade da sangao e, vice- versa, da sangao nao se pode obter a legitimidade de a impor ‘que seria a mais evidente peticao de principio, Com isto nao rebaixamos a pritica, pelo contrario, elevamo- Ja ao mesmo nivel da teoria, dado que € claro que a teoria ndo teria sentido se ndo devesse necessariamente ser confirmada hha actuacio, de modo que a execugdo dos actos considerados indispensaveis em sede do exame preliminar esta implicita no reconhecimento da sua necessidade. Por conseguinte, como o restauro nao consiste apenas das in- tervencées priticas executadas sobre a propria matéria da obra de arte, assim também nao ficarélimitado aquelas intervenes, qualquer procedimento destinado a garantir no futuro a con- servacio da obra de arte como imagem e como matéria na qual estd contextualizada a imagem € igualmente um procedimento que entra no conceit de restauro, Por isso, € $6 a titulo pratico que se distingue um restauro preventivo de um restauro efecti vvo executado sobre uma pintura, porque tanto um como outro vvalem pelo tinico e indivisivel imperativo que a consciéncia se impose no acto do reconhecimento da obra de arte na sua dupla polatidade estética e histérica e que conduz a sua salvaguarda como imagem e como matéria. ‘Tinhamos de declarar com toda a firmeza necessétia a vali- dade intrinseca do conceito de restauro também nesta acepcio de restauro preventivo, uma vez que, ao considerd-lo uma sim- ples extensdo humanistica do conceito de restauro, poderiamos ser tentados a mostrar uma indulgéncia culposa nos casos em {que surja um conflito entre as proprias exigencias que a fri estética da obra requer e as exigidas pela conservacao da mat ria a que é confiada, Em segundo lugar, as medidas de preven- sao, implicitas no conceito de restauro preventivo, nao sao em geral de menor valia e implica muitas vezes maiores custos do que 0s que sao exigidos pelo restauro de facto da obra de arte. Maior razao para afirmar a necessidade perempt6ria dessas me- didas e custos, contrariando a mentalidade corrente que deseja ria limitar-se as intervencOes de extrema urgencia, de inadiavel cemergencia O Resraveo Prevewnvo 73 restauro preventivo é mesmo mais iinperativo, se no necessério, do que o de extrema urgencia, porque se destina, facto, a impedir este ultimo, que dificilmente poderé result num salvamento completo da obra de arte. Portanto, se se concorda com esta visio de restauro, fica claro: que 0 maximo empenho da pessoa ou do 6rgio a que € con= fiada a obra de arte deva em primeiro lugar concentrar-se no restauro preventivo, Mas quetemos responder a um opositor imagindrio que possa objectar com o conceito de restauro por 16s explicitado, Que fique bem claro que 6 pode existit uma objeccio vilida: aquela que nao reconhecesse a obra de arte o direito ~ nao da obra, bem entendido, mas da consciéncia uni versal a que pertence ~ de sobreviver, Mas é igualmente claro «que uma tal negacao nega ao mesmo tempo a obra de arte no seu valor universal por nés reconhecido e, por conseguinte, des- Gi 0 problema do restauro pela base. Se nao existe obra de arte, ndo pode existir, ndo faz sentido, um restauro entendido ‘na dupla corroborante actividade flologica e cientifica, de acor- do com 0 que explicamos. E € por isso que nao nos quisemos limitar a examinar o restauro na passagem a nivel pritico das intervengSes em obra, mas institui-lo no proprio momento da manifestacao da obra de arte enquanto tal na consciéncia de cada um, Na reflexio que surge com aquela revelacio stbita, 0 Festauro encontra origem, justificacao, necessidade. Donde po- demos passar a examinar brevemente o restauro preventivo nos Famos em que necessariamente se subdivide. Nao seria este, todavia, o lugar para descer as muitas espe- cializagoes dos monumentos, frescos, estatuas, pinturas sobre suportes varios, mas tata-se apenas de estahelecer directivas de analise que scam comans a todas as obras de arte e que nos ajudem a reconhecer, quer as prevencées a fazer, quet as even- twalidades a evitar . “I A definigao destas directivas de andlise deverd ainda ser de. duzida da natureza da obra de arte, na sua especifica situagao, de exterioridade em relacdo a consciéncia que a reconhece como tal, Dado que a obra de arte se define, em primeiro lugar, pela sua dupa polaidae esta e historic primeira decade anglise sera a que visa a determinacao das condigdes necessérias para a fruicio da obra como imagem e como facto historico, Em segundo lugar, a obra de arte define-se pela matéria ou matérias de que € composta; e aqui a analise devers ser orienta dda para o estado de consistencia da matéria e, de seguida, para as condigdes ambientais, na medida em que permitam, tornem precdria ou ameacem directamente a conservacio. Com isso, ficam jé definidas trés directivas fundamentais que poderao en- ‘caminhar as andlises referentes a realizacdo pratica das medidas preventivas, cautelares e proibitivas Naturalmente, cada um dos grandes agrupamentos das obras de arte figurativas dard origem a uma série de analises, de proce- dimentos e de proibicbes que, ainda que tipicos, nem por isso serio sempre idénticos. Importa, de qualquer modo, traté-los ‘em grandes secces, mas nunca esquecendo que toda a obra de arte € um unicum, que como tal deve set considerada que por isso a stia mé conservacao, a sua deterioragao ou o seu desapa- recimento nao podem nunca ser compensados pela boa conser- vyagio de outra obra de arte considerada semelhante & primeira, Portanto, também as andlises a realizar, 08 levantamentos, os cuidados, nunca serao os mesmos, nem sequer para um monu- mento. O que parece dbvio, e infelizmente nao o € de facto, a verificar pelos dados da experiencia, também recente. Voltemos, entio, as nossas trés grandes divisoes, e particular- mente a primeira. Ea andlise relativa a determinar as condigdes necessarias para a fruicao da obra como imagem ¢ como facto histérico. Uma vez que tratamos do tema de restauro preventi- vo, € claro que tal anilise nao € entendida, deste ponto de vista, sequer como um restauro de remogao de eventuais obstéculos & fruigio da obra. Sob este ponto de vista, supde-se a obra perfei- tamente apreciavel quer como imagem, quer como monumen- to historico. E visto que nao se pode prever tudo, nem se deixar arrastar num jogo inttil de hipéteses, poder-se-ia crer que essa primeira anélise é em resumo, obvia, e dispensavel, Por isso, sera necessétio um exemple ‘Tomemos, pois, a fachada de Sant’ Andrea della Valle [Figuras 43 a 4d], como estava antes que se abrisse o largo que inicia © Corso del Rinascimento. © que € que foi danificado com a abertura do largo e da rua? Materialmente nada, figurativamen- te muito. A principal particularidade da fachada, do ponto de vista da espacialidade arquitectonica, ¢ dada pelas colunas encastradas. Fssa particularidade, bastante rara, deriva do dttio de Miche- langelo da Laurenziana, ¢ implica uma funcao, na cortina da fachada, bem diversa da do plano de fundo. De um determina: do lado, com efeito, o fundo, plasticamente concebido, emerge, projecta-se na direccao de quem olha; do outro, a coluna afun- dase, permanecendo, contudo, cilindrica, sem ficar reduzida, como quem diz, a meia coluna, mas, a0 contrétio, defendida por uma subtil lamina de vazio (entre o fuste da coluna e 0 O Restaino Peeve 75 Teoma 00 Restauno 76 Figura 42. Roma, S. Andrea della Valle oy igh) bein inh sagt ee silar de que tal particulatidade produ a espacalidade propria datacom See ae ede ce oe uma distania liitad, como pono de localizarto do observa ees fixa, intransponivel, para lé da ci 9 felts previno jf nfo se prods, ri ctamente pore er ee lémina de vazio se torna uma mera banda e: : See ge eee ee eae Trae erence ae iear dl 4 ee a plata. Com efeito, Michelangelo wo ento na envolvente do trio da La ° mento nae yurenziana, «com ee ea arise Valle foco fo» era obtido savaguardado pela lagu rs eds pono deste ane , para quem observa a fachada, rece m: 4 aie eee a e omo poderia empenhar-se o resta . : restauro preventivo? Numa io profundamentealleado nos seus dados espacial 4 nao ser pelo desaparecimento de um ou mais elementos, a reconstituicdo destes por meio de cOpias, que apesar de, em si, constituirem um falso, podera ser admitida com base na reconstituicdo espacial do ambiente, se nao na impossivel revivescéncia do monumento? F claro que a resolugdo desses quesitos s6 pode ocorrer den, 10 do quadro dos principios gerais do restauro, porque dedu: zZidos da propria esséncia da obra de arte. Com a orientacio destes principios, deve-se responder a primeira questao que ser sempre de procurar reconduzir os dados espaciais do sitio a um estado 0 mais proximo possivel dos originais; mas que o monumento nao devera ser removido, mesmo que a alteragio dos dados espaciais seja iremedivel A consciéncia de autenticidade que sugere 0 monumento nao Pacinos Pato Restauno pos Monunexros 3 removido deverd sempre antepor-se a consciéncia hedonistic do proprio monumento, Para a solusio da segunda questao ¢ necessério distinguir imediatamente se os elementos desaparecidos, cuja supressio veio alterara espacialidade do ambiente original, sA0 em si pr: prios monumentos ou nao. Se nao constituem monumentos em si, poderd até ser admitida uma reconstituicio, pois, mes: ‘mo que sejam falsos, nao sendo obras de arte, reconstituem, no entanto, os dados espaciais; mas exactamente porque nao s80 obras de arte, nao diminuem a qualidade artistica do ambiente em que se inserem, apenas funcionam como limites espaciais genericamente qualificados. O exemplo mais adequado € 0 das casas reconstrufdas na Praca Navona, Naturalmente que com isto nao se exclui que novas obras de arquitectura pudessem ter sido inseridas, mas esse ndo é um problema de restauro mas, amtes, de criagio, que nao se resolve com base em principios, ‘mas, sim, com a elaboragio, de maneira original, de uma ima gem nova, Se, pelo contrario, os elementos desaparecidos tiverem sido em si obras de arte, entao € absolutamente de excluirse que Possam reconstituir-se como e6pias. O ambiente devera set re- constituido com base nos dados espaciais e nao nos formais do monumento que desapareceu. Assim, deveria ter sido recons- truido um campanario em Sao Marcos em Veneza, mas ndo 0 campandrio caido; assim, deveria ter sido reconstruida uma Ponte, em Santa Trinité, mas ndo a ponte de Ammannati s prineipios e os problemas acima expostos abarcam toda a problematica do restauro monumental, enquanto relacionado com a especial estrutura espacial da arquitectura. Para todo 0 resto, a problematica que lhe diz respeito é comum & das obras de arte; da distingao entre aspecto e estrutura a conserva¢ao da Patina e das fases histéricas pelas quais passou o monumento. om principio, oretauodapntura antiga ~entendendo Ceres denouinacto,aplnure anne ade Meda Bye rasesa oo aap T a Trin um to lau. namo tone ace que poser na medina acura em ret tapas ee nso nplican imerensSe gio 2 sei du pin eqn Sth Bo evalso Pain am tule que nde baile dag queues gucer pines taut 6 Galen Aa onto sence, banat cu moder Sea pone em endade contapor ques Pi Mipuenlna sen medteranes com's primes Calfado i ints acspneenta com crac tenis dives postamente diferentes daquilo que se conhece da pintura pos- a deposicio de Rmulo Augusto, quisermos fazer remontar a Idade Média. Mas, mesmo admitindo essa diversidade, nao se- Com base na exigéncia contratia, que nao aceitamos, seria possivel indicar, como justificagdo, a incerteza que ainda hoje reina acerca da técnica usada para as pinturas, quer sobre rocha, quer sobre reboco, madeira ou tela, a comecar do Paleolitico superior até ao limiar da [dade Média. Esta incerteza existe ain- da hoje, e existira, acreditamos, por muito tempo, enquanto as téenicas de analise cientifica produzidas até hoje nao oferece: rem certeza absoluta acerca dos media das modalidades usadas, em as limitadas noticias dos autores, mesmo para o periodo 1 Comonicagio apresentada no Vil Congresto Intemacional de Arqueolo- ‘Clissica, Roma-Napoles Setembro de 1958, publicada em «Bollenino fell stituto Centrale del Restauros, 1958, n.33, pp. 3-8. 95 nicas com base nas confusas receitas transmitidas itidas por Plinio,, itrivio € por autores mais tardios, até Herdclio ou jr ios, até Herdclio ou aos Mappae Mas a incerteza em relagdo a técnica das pinturas antigas 10s pode eximir do seu restauro, Damon ma ae pee seg essa incerteza pudesse ser resolvida por completo, nao é seguro ue 0 restauro beneficiasse muito com isso. Por muita surpresa aie Possa suscita esta afrmacio,¢ importante verfcé-la sublic pando alguns pontos que erdaeiramente se deve declaar © primeiro refere-se a matéria de que é feita a obra de arte, em caja denominacio de matéria incluimos também procedi, ‘mentos técnicos que levaram a elaboracio das diversas maté. ras para fins da figuratividade da imagem. Se se pudesse, entao, descobrir no processo de deterioracio, decadéncia, degradacao da matéria, a possibilidade de um procedimento de retrocesso ou de regeneracdo, nao ha diivida que o conhecimento exacto da técnica que levou a uma certa configuracao da matéria e da intura seria fundamental. Desgracadamente essa possibilidade de regeneracao da matéria, de uma teversibilidade no seio da Propria imagem e nao in vitro, demonstrou-se até agora quase Sempre uma utopia ou, ainda pior, um perigo gravissimo para @ obra de arte. No caso, até agora mais feliz, dos procedimnen: {0s electrotiticos para os metais, é também inegavel que tenha ccasionado os maiores desasttes, de modo que $6 num raio de accio restrito € com aplicagdes muito atentas e prudentes se conseguc uma ct catia no milagrosa, mas satan, perimentados para os vernizes nn seenerantes ec Se portant osresitadsakanadosneseacanporsiomo. denon nose sem dina eguces eS crac om popst posesparce meteealgh ade dustomeal defn urscanasa dont ae com mata doa de cntnadec Haney estoy Crtades cong ds pn se es Esses compostos, mesmo no ambito restrit : Ambito restrito, pelo menos no ue se refere a complexidade das novas descobertas da quimica moderna, que podia apresentar a Antiguidade e a Idade Media, ‘opdem uma tal resistencia & anélise que ainda, para ir a uma ¢poca relativamente préxima como 0 inicio do Séc. XV, nao se cesta de modo nenhum seguro da técnica ~ isto é, quer do proce- dimento, quer do medium usado por Jan Van Eyck - que, assim como misteriosamente surgiu, desapareceu pouco mais de um século depois. Mas quem, com base nessa incerteza, se recusas- se a tratar, ou seja, a restaurar as obras flamengas, nao realizaria sendo um paralogismo. Naquilo que se refere ao Instituto Central de Restauro, ten- tou-se obter em dois casos uma regeneragio da matéria, ex- cluindo destes dois casos tudo aquilo que diz respeito as técni ‘as electroliticas e a0s metais primeiro caso foi aquele no qual se tentou obter a rever- sao, do preto ao branco, do alvaiade oxidado dos frescos de Cimabue em Assis: © processo que dava Optimos resultados in vitro, falhou por completo na realidade da obra © segundo referiu-se & reversio do cinabrio enegrecido das pinturas antigas, inconveniente bastante conhecido desde Vite vio. Neste caso 0 procedimento, que se pode ver aplicado em algumas pinturas murais da Faresina (agora no Museu Nacio- nal Romano) deu resultados notaveis do ponto de vista do de: saparecimento das zonas enegrecidas. Em nosso entender, por mais notivel que fosse esse resultado, nao compensava, no en- tanto, o enfraquecimento de tom que sucedia sempre nas zonas submetidas a0 tratamento e, por isso, nao foi posteriormente utilizado, Mas também por uma outra consideragio que nao entra na apreciacio do resultado. De facto, onde a alteracio que se produziu na matéria da obra de arte nao se apresentar como resultado de um processo ainda activo e que, portanto, deva ser travado a qualquer custo, mas como um proceso jé conclut do e sem outro perigo para a subsisténcia da obra, a instancia historica, que deve sempre ser tida em devida conta no que diz, respeito a obra de arte, exige que nao se apague na propria obra a passagem do tempo, que € a propria historicidade da obra {que foi transmitida até nés. Esta, que é também a base tebrica para o respeito da patina das obras de arte e dos monumentos, oferece o nivel mais seguro para estabelecer 0 graute a extensa0 da interven¢ao na obra de arte, relativamente a sua subsisténcia no presente e & sua transmissio para o futuro, ¢ isto indepen. dentemente da instancia estética que, todavia, tem por direito a primazia sobre a hist6rica, Na realidade, 0 primeiro principio do restauro € aquele pelo qual se restaura apenas a matéria da obra de arte. Esta matéria € a efectiva matéria de que consta, e nao em abstracto, a obra de arte; pelo qual, digamos que o bronze do Koutos de Selinunte (0 Resto Pune Arica 97 estd no bronze nao apenas resultante dessa mesma liga, m também naquele particular e estado actual: donde ume int vvencao de restauro ¢ admissivel apenas para impedira sua even- tual degradacao da qual poderia derivar uma posterior diminui- ‘do grave da forma. Um bronze com liga igual, que se pudesse encontrar em estado bruto na fundigao, no é 0 mesmo bronze daquele do Kouros, no sentido em que, tendo a forma primazia sobre a matéria, a matéria traduzida numa determinada forma no pode ser considerada no mesmo plano da que esté informe, nem mesmo para o tratamento conservative. Ora0 problema que se poe para as pinturas antigas é da mes- ma espécie. Nao se trata de refrescar as suas cores, nem de as le- var a um hipotético e indemonstravel estado primitivo, mas de asseguar a transmissao para o futuro da matéria de que resulta a concretizacao da imagem. Nao se trata de regenerd-las, de re- produzir 0 processo técnico pelo qual as pinturas foram execu- {adas, Para isso, o conhecimento, mesmo que apenas aproxima- tivo desses processos técnicos, nao é um obstéculo fundamental ara o restauro. Ja foi dito que esse conhecimento imperfeito nao é um obstéculo fundamental, nem mesmo para a pintura flamenga. Diremos mais: onde esse conhecimento for de outro modo clarificado, como para o fresco, para a témpera medieval, ou para a pintura a dleo moderna, seria loucura querer basear © restauro numa teprodugao do processo técnico original. Nem tum fresco se restaura a fresco, nem uma témpera a tempera, nem uma pintura a dleo com nova pintura a 6leo. Quando isto feito, comete-se um erro grosseto, Um segundo preconceito que vigora para o restauro da pi tura, mas nio 56 para esta, deriva da falta de distingio entre aspecto e estrutura, confusdo que esté na base de boa parte das teorias erradas de restauro, sobretudo nas do restauto arquitec- t6nico, mas também em boa parte para o pict6rico. Se, com efeito, a imagem conta pela forma que recebeu a matétia e se esta tiltima ndo € sendo 0 vefculo da imagem, é claro que aquilo que serd indispensavel conservar da matéria que passou a ima- {gem consistira naquilo que determina directamente o aspecto, enquanto tudo aquilo que constitui a estrutura intema ou su. porte poderd ser substituido. Naturalmente, para a instancia historica, também aquilo que nao colabora directamente para 0 aspecto da imagem deve ser conservado, mas s6 quando a con- servacao integral da matéria-suporte for consentida, por assim dizet, pelas condigoes sanitarias da pintura. Por isso, nem uma pintura mural cujas condicdes exijam 0 descolamento devera ser recolocada sobre uma parede, nem uma pintura sobre rocha deverd ser reposta sobre a rocha. Nao s6, mas também o suporte rigido nao sera obrigatorio, porque o que € necessério € manter {integro o aspecto e nao tanto a estrutura. As pinturas olham-se endo se tocam: € a0 olhar e no 2o tacto que se oferecem e se experimentam, E necessario, com efeito, considerar que o objectivo essen- cial do restauro nao ¢ apenas assegurar a subsisténcia da obra no presente, mas também assegurar a transmisso para 0 fu- turo: e dado que nunca ninguém poder estar seguro de que ‘obra nao tera necessidade de outras intervengdes no futuro, ‘mesmo que simplesmente conservativas, deve-se facilitar € nao impedir as eventuais intervencdes sucessivas. Entao quan- do se tratar de pinturas murais cujo estrato pict6rico seja fino, a transposicao sobre tela é 0 meio mais simples, mais idéneo mais adequado para a conservacio, nao apenas porque nao impede nenhuma outra eventual transposigao ou aplicacio sobre suporte diferente, mas porque, qualquer que seja o ma terial rigido escolhido, é sempre aos estratos sobrepostos de tela que é atribuido o dever de primeiro e directo suporte. Ou pelo menos, nenhum outro sistema mais seguro e mais c6 ‘modo foi descoberto até agora. O importante € assegurar uma tensio constante com o variar das condicdes atmosféricas isso foi alcangado de um modo automitico com 0 novo s tema descoberto pelo Instituto Central de Restauro, que pode ser visto aplicado no Tiimulo dos Atletas, ha pouco tempo removido da Tarquinia [Figuras 46 ¢ 47]. Mas mesmo quando o sistema de tensio tinha que ser regulado de vez. em quando, obtiveram-se resultados satisfatorios, confirmados, sem que 0 Instituto, para dizer a verdade, quisesse essa nova prova, pelas viagens que dois dos ttimulos tarquinienses tealizaram para a Exposigdo Etrusca: de facto, a volta a Europa Na realidade, se quisermos salvar a pintura antiga, devere- ‘mos estender ao maximo o destaque. A demonstracao disso € dada nao 86 pelas pinturas pompeianas e herculanenses, desco- adas desde os tempos bourbénicos ¢ conservadas no Museu de Naples, enquanto que a maior parte das encontradas no mes- mo periodo esta agora deteriorada ou destruida, mas também pela rapidez, em parte explicdvel, em parte inexplicavel, com que ocorreu nas tiltimas décadas a deterioracéo das pinturas murais, sejam elas classicas, medievais ou modernas, Naturalmente, nem sempre é praticavel a transposicao sobre tela para as pinturas antigas, Pode-se antes dizer que, para qua- se todas as pinturas parietais romanas, onde se deve retirar mais do que a pelicula superficial, é necessério servir-se de suportes, rigidos, pois 0 peso do estrato pictorico que deve ser salvo nao permite que seja confiado apenas aos estratos de tela. Mas é 99. O Restauso ox Pouca Anica Figura 46 Tarquinia, Necrs- pole. Timulo degli Atleti (arte etrsca): pormenor da parede esquerda, apés o restauro. sempre com um certo pesar que se deve recorrer ao suporte rig do, pols ele permite apenas exenseslimitadas enquanto que a tela consente extens6es praticamente ilimitadas Fase ea cea eres a em Prima Porta [Fgura 48 e 4}, conseguimos divi as pare seis grandes painéis apenas; foi de facto dificil e arrisea- do. Setdveme sido poate simpeamente plik dasa tea arede ria constado de um painel apenas, Aliso Into € laradamente contratio a0 uso de novos materiais sintéticos ‘ou mesmo de aglomerados, prensados e assim por diante, dos uals 6 uma experénca de poucos quinguénios Antes de Subst um mattal de longo uso do qual se tenha a exper ncia de séculos e que, por isso, do qual se conhegam bem tanto 08 defeitos como as qualidades, deve-se ter uma certa prudén: cia, que nao sera nunca excessiva. ser ito. ¢ pensadamente, que a expecta aconselhaia a do extensiva das pinturas parietais antigas: acrescentemos agora que essa remogio também deveria ser feita para as pin. tras em boas condizBes, dado ue a aco de resiauro mio € jumattingica e € logico que se interesse, sobretudo, em con servar as pinturas em bom estado. Mas, apesar de nos tiltimos anos, com a terrivel rapidez. na deterioracdo das pinturas mu ais, muitas resistencias terem caido, continua-se, na realidade, dreclamar o destaque apenas para casos de extrema urgencia, Gom operacées a quente que, como para 0 corpo humano, so por certo as mais arriscadas. Além do maior risco ¢ das incog: hitas assustadoras que a operacio de urgéncia comporta, existe sinda um elemento basico que ndo é tido em consideracdo € que, pelo contrario, € necessério salientar. Pode-se dizer que noventa e nove por cento dos casos de dete- sioragio das pinturas murais € determinado pela humidade eesta, {quer seja por capilaridade, por infitrao ou por condensacao, € quase sempre impossivel de elimina. Ora, a accio secular da hu- nidade produz uma desagregacio da consisténcia da pintura mu Tal, desagregacao cujo mecanismo fisico ainda ndo est claro, mas ‘nao é menos evidente por isso. A cor que perde a sua consistencia ‘se torna pulverulenta ou mole como um pastel, com esta alter {doe além disso com a propria humidade, adquire uma tonalida Je diversa: por isso quando no restauro se é obrigado a fixé-la— € ‘isso tende substancialmente o restauro ~ a tonalidade da obra estaurada sera por certo diferente, mas no tanto por causa do Tigeito aumento de tom que qualquer fixador, alguns mais, outros menos, tende a provocat, mas por causa da diferente refraccao da juz que se produz numa superficie enxuta e compacta em relacdo ‘a mesma superficie pulverulenta e hnimida. Figura 47 Tarquinia, Necrd- pole. Tiimulo degli “Aileti (arte etrusca): ‘pormenor da parede dliroita, apa Teoma 00 RestAuR0 102 Figura 48 Roma Museu delle ‘Terme, Villa di Livia 4 Prima Porta (arte romana do I sec dC.) Pormenor dda parede, apos restauro Koma Museu delle Ayu Ville fi Faivia Bont (a para as pare aquela que seve hake em 3 0ee termulos violados € invadidos pela hhumidade, queT de infiltrag’o, sacao. Vice-versa ‘éexactamente : aquela tonal por acaso seja mais viva, ‘que € forcada, por assim. dizer, peias condigdes actuais. ‘O fixador usado nesses ‘casos pelo Instituto foi a goma-laca branca € ‘purificada, que 44 um ‘aumento de tom minimo, cré, aremocao em superficie. urgentes: destaque, SUPOTES: fixativos. A limpe’ wets importante, mas necessi de for iso, seria ingéauo OU GPEC I verdadelmm tonite inearas maurais wurmlares, Qe gua versadeiTa jem de permitis, contrariamente aquilo que se ‘Os problemas que abordémos 27 necessariamente os mais va nao € tema se desca a pormenores meniens eapecificos que espectalizyia0™ je modo excessivo esta ‘aposigao que, forcosamente $€ deve manter nas suas Finhas sera. Quanto As imtegFaces © problema néo se poe, de modo Brum, de maneira divers em rela6 fs obras de arte de OutTas pocas: também aqui se reali Senforme 0 caso, 0 TestausO sory integracbes, © as integracies everao ser sempre reconhe sem imeeSino mu. f necesario deterno sobre um Ponto, Geant de muito particular referee Taso da cera para refrescat artuperficie das pinuuras murals ‘yuizamos propositadamente ame mefasto verbo wFeftescar, CO de tantos estragos: a VORA see dar nova frescura eo uso da cers equivalem-se {uma interpretacao apressada da ga) da hausis e da cera puinica deve ter estado na base doe ide espalmar com cera 3S pinturas antigas: e, depois 43s ventigas, também as medievais PimModernas. Num segundo tempo, & fe ilimitada ma cera, PIO ‘ada por escolas nordicas de res para operacoes além feasadtgatante diversas, refoscoU @ See ‘Para as pinturas disso 5 uso da cera ou também da parafina € absolutamente meterio e nunca nao se fard Pastas pata o extirpar. Onde der que tenham sido wilizadas °° gu parafina ocorre Um ae qlecimento e uma opacizacio ¢ £2 pinturas permane- amnamobre 0 suporte orignal a cera Ni $6 nao detém as eflo- Como se vé, ainda no infcio de Oitocento: , infcio de Ottocentos sabia-se bastant bem o que era a velatura® e como tinha sido utilizada pel venezianos e por Rubens. Quem, entdo, ao limpar um Ril chegou a0 ponto de por a vista a cor nua e crua do fundo, ficaré convencido que o arruinou para sempre? i Além do mais, nao é dificil encontrar na literatura mais antic ‘ga as premissas teGricas da pratica da velatura, No que diz respeito a escola veneziana, a demonstracio que nos foi dada por Bellini e com um quadro de época t20 ane tiga, em parte ainda a maneira de Mantegna, coaduna-se pet feitamente com 0 conceito da cor que os proprios tratadistas venezianos desenvolveram. © tom nao é uma invencéo critica moderna, reflecte, em termos eriticos actualizados, a propria vie sao dos contemporaneos de Tiziano. Escutemos Pino": «, cada uma das cores, isolada ou composta, pode dar mais efeitos € huma cor € capaz, por propriedade sua, de fazer um mi 9 E MILIZIA, Dizinaro dele Belle Ari p.sid le Arti del Disego, Bologna, 1827, vol. 2 fo se tem, naturalmente, uma coincidéncia exacta dos termos supracitados com latina como conctoamadecido ma pedis ea eon ta ana, seria aconselhavel manter no vocabulo italiano. rd 1. P-PINO, Dialog di Pinara [1548], Venezia, Palluchini 946, pp. 109 ¢ 108. no do efeito do natural... onde € clara a diferenca que Pino {quer fazer entre a cor fsica ea cor da imagem piciérica. Com uma tistingao to precisa como se poderia ter tentado acentuar a tiéria da cor em detrimento da sua diluicdo sem vestigios na imagem? Mas em Pino existe uma passagem ainda mais tipica: « .procurar, sobre 0 todo, unir e acompanhar a diversidade das ‘cores num corpo s6». Esta, que € a pré-cognicio critica do tom, trna-se, para a técnica, o proprio suporte da velatura: aquele corpo s6» apenas sera obtido com a velatura. Mas esta distin- ao entre a cor fisica e a cor da imagem nao aparece somente em Pino; pouco depois encontra-se de modo explicito em Dolce" Nem ninguém creia que a forga da coloracio consiste na escolha das belas cores; como de belas lacas, belos azuis, belos verdes € similares; dado que essas cores so igualmente belas, mesmo sem serem utilizadas: mas consiste no sabé-las manu: sear convenientementer. Donde nao se pode ter diivida de interpretacao. A materia. lidade da cor devia desaparecer para fazé-la desaparecer de modo que a cor fosse reabsorvida na imagem havia a ajuda se- creta, complacente e quase invisivel da velatura, 0 acabamer to final, De resto, a composicao dos vernizes antigos, em que entrava amitide 0 «olio di sasso»", ou seja, a nafta, indica de forma clara que se pedia aos vernizes nao apenas, como disse Baldinucci', que aquelas partes da pintura que «por qualidade enatureza da cor tivessem secado, retomem o Lustro e revelem a profundidade dos escuros», mas também uma unificacao geral Ge tom, dado que por certo nao poderia entao existir um dleo die pedra ttansparente como a agua, e os vernizes assim obtidos davam por st proprios uma pelicula uniforme. No entanto, permaneceria em aberto a questo para a pintu: ra anterior a Quinhentos. Estava-se a restaurar, no Instituto de Restauro, a Madonna de Coppo di Marcovaldo, que por tradigao era atribuida a 1261 [Figuras 53 a 56]. A assinatura e a data, recordada no guia dito de Alexandre VI de 1625, desapareceram depois sem deixar tragos, tanto que, em 1784, Faluschi atribuia esta obra sobre madeira a Diotisalvi Petroni, Ora, removida a moldura sete- centista, encontrow-se por baixo a antiga moldura, quase em. TDL DOLCE, Dialogo della Pura [1557], rence, 1735, p. 222. 13 N.T.~sOeo de peas, era nota seguinte, do au 14 Vowabolario Toscano, op. it, p. 180; ease também ap. 10m que é definido ‘lee de pera schamnad também tata (Flinio i, 18) ou dieo petesleo, ncontra'se esse dleo no Fstado de Modena.» 3 a Lnrea ots PTUs IM RLLAGAO A n3 Figura 53 Siena, ei det Sent. COPPO DIMA ‘ arcov Bambino (1261), apés 0 restauro. vive Madonna cot perfeito estado, com a data ¢ a assinetura e com uma camada tle verniz espesso, fra claro que este verniz devia ser anterior ac teloque setecentista do quadro, mes como este néo mosteava vvestigios de restauros intermédios entre o tempo em que Duc- ig o repintou e o restauro pastichado setecentista, tudo levava ‘acter que se tratasse ainda do verniz original. Cennini fala ex- ppressa e minuciosamente, do envernizamento dos quadros so- hire madeira, de um modo tao explicito que onde se encontre ‘hum primitivo, um verniz sobre 0 ouro, se pode quase sempre cexcluir que se trate de verniz original, que nao teria sido apli- cado também sobre o fundo de ouro. De facto, em Setecentos linha sido aplicada uma nova camada de verniz"® sobre toda 4 pintura, incluindo o fundo de ouro, e esta camada foi re movida - e, note-se bem, a seco ~ sem atingit minimamente a camada do verniz antigo que se encontrou uniformemente por baixo. Mas poder-se-ia sempre objectar que aquele verniz esta jd amarelecido e que altera os tons, pelo que deveria ser igual- ‘mente removido. Era necessario, entdo, poder demonstrar que Coppo di Marcovaldo nao queria, de modo algum, manter as cores com o dspero esplendor da cor pura € que, a0 contrério, tinha procurado expressamente velé-las. A pintura deveria ofe- ‘er uma confirmacao absoluta da nossa hiptese. Retirada a lambuzadela setecentista do véu da Madonna, omado com cit- culos com as aguias, surgiu num amarelo-candrio que poderia levar a crer a um nao especialista que fosse um amarelecimento quando em origem deveria ser branco. Mas 0 exame atento de alguns riscos (que no restauro ficaram 8 vista) demonstrou que Coppo tinha, antes, pintado as sombras azuis sobre a camada preparat6ria branca, mas velando 0 todo com um verniz trans parente e colorido sobre o qual tinha pintado depois os circu- los com as éguias. Note-se: «verniz.transparente € coloridor. B, no entanto, também se tinha aqui a demonstracdo de que 6 véu devia ter sido originalmente colorido porque quando 0 seguidor de Duccio (que foi, talvez, Niccold di Segna) repintou a face da Madonna e do Menino, acrescentou por baixo um outro véu branco & Madonna, que néo teria feito sentido se ‘© véu mais antigo também ele fosse branco [Figura 54]. Em seguida, a pintura ofereceria outras surpresas. Tanto 0 manto como o vestido da Nossa Senhora se revelaram pintados sobre tum fundo de prata, que nao tepresentava um pentimento, mas 15 Das andlieswalleadas pelo Dr, Liber condlui-se que o vrniz encontrado ta moldura oxginal era composto de uma resina no muito dura, do tipo fs Dammar enquanto que o verniz eobreposto no Séc, XVIII na pincura toda era composta de urna resina dura, tipo «copa. TEORIA DO RESTAURO = Figura 54 Siena, Igreja dei Servi: COPPO DI MARCOVALDO: Madonna col Bambino (1261), pormenor depois da limpeza, durante a reintegragao. ‘0 substrato para cores igualmente previstas em transparéncia, como nos futuros esmaltes trans- uicidos. ‘Ao mesmo modo do véu, havia sido pintado 0 pano que a Madonna tem na mio por baixo do ‘Menino Jesus, com as sombras em transparéncia, ‘© verniz colorido e os bordados sobrepostos. De qualquer forma, ainda mais espantosa era a almo- fada do escabelo porque esta, composta prim ramente por quadriculado regular € muito vivaz, havia sido depois coberta na parte mediana ¢ in luce com um verniz amarelado e nas partes que de- veriam sugerir o relevo e a sombra, com um verniz vermelho-rubi transparente, de modo a obter um Lipico efeito de cor variada. Deste modo, demons- trava-se lippis et tonsoribus que Coppo se tinha ser- vido de cores puras s6 para a primeira fase, para a pteparagao da pintura, que depois a tinha comple- tado toda por meio de velaturas e de vernizes coloridos Deste procedimento extraordinatio, virfamos a encontrar a confirmacio explicita na schedula do monge Te6filo, texto bem conhecido e utilizado em toda a Idade Média europeia No capftulo XXIX «De pictura transluciday"®, Teéfilo explica 0 procedimento de que a pintura de Coppo é a aplicacao mais, ampla e integral «fit etiam pictura in ligno, quae dictur translucida, et apud quosdam, vocatur aureola, quam hoc modo compones. Tolle petulam stagni non linitam glutine nec coloratam croco sed ita simplicem et diligenser politam, et inde covpesies locum, {quem ita pingere volueris. Deinde tere colores imponendos di ligentissime oleo lini, ac valde tenues trahe eos cum pincello, sieque permitte siccare>! A tinica diferenca entre Te6filo e Coppo esté no facto de Coppo ter usado a prata em vez. do estanho e de ter estendido 0 procedimento a cada camada de cor. Do que precede demonstra-se que também para os primitivos ‘corte ter presente a eventualidade dos vernizes coloridos estarem Tf Chtamos da velha edigdo de Leipaig de 1834: THEOFILE (Diversarum Arsum Schedula) Esa sur des ars, cap. XXIX, p48. 17 NTL ~sTambém pata pintura sobre madeira se faz a chamada transhicida, poraiguos denominada auréola, ue se compe da maneira segue: eve hur fotha de estanho sem cola nem colotida com agaido, mas simples ilgentemente polda, ecubra com ela 0 espaco que desejar pintac Em Seguida misture cuidadosamente as cores em leo de linhaga e aplique-as muito tenes com 0 pincel e depois deixe-as sears Figura 55, Siona, Ireja det Servi: COPPO DI MARCOVAL- DO: Madonna cot Bambino (1261), pormenor durante a remogao do verniz aplicado sobre o ver= nz transparent. Figura 56 Siena, Igreja dei Servi: COPPO DI ‘MARCOVALDO: ‘Madonna col Bambi- no (1261), macrofo tografia da velatura do sec XIII. A seta indica 0 undo bran co sobre 0 qual existe © verniz amarelo transparente; por cima do verni foram pintadas as dguias ¢ 0s restantestragos aplicados em funcao de velatura eq exde ‘que.em vez de presumira excep. Gionalidade do procedimento, deve se pair da reauneas conte +a: em primeiro lugar, colocar sempre a instincia da velatura tase cm vei epsiose ott colton come ol rade Benozz0 Gozzoli de 1436 na nacotca de Porc ene 97 a 60}, oferece um estemunho eters de eee cadas sem verizesenao de modo unforme sobre edo te do, mas com tonalidadesvarada para ober uns svorcadc oa uma vaiaio das ina loais O interese da pinnae Pog "umm a pintura de Coppo se ootam claramente welawras aptiesdas "apenas com cor diluida e transparente, coma, por exemplon hos do ponto de vista do restauro, reside em primeiro Ingar no facto de munca ter sido envernizada, ou, s¢ 0 foi, deve ter sido enver- nizada com um verniz. muito diluido, O caso nao é raro nas pin- turas das escolas toscana e umbra: varias pinturas de Neroccio, de Francesco di Giorgio, de Boceati estdo ainda neste estado, que talvez nem fosse intencional, mas derivava do facto de a pratica exigir que passasse pelo menos um ano antes do envernizamento da pintura, As pinturas, imediatamente entregues ao intermedi rio, puderam entao permanecer sem verniz. Contudo, na pin- tura de Gozzoli sobre madeira, em questio, exstia apenas uma camada opaca, como uma névoa, devido, tanto quanto se pode examinar, a uma demao de parafina que numa época nao deter minada deve ter sido aplicada a pintura para a reanimar. Existiam também varias gotas de cera que, removidas, tinham provoca- do 0 destaque. Mas nao o destaque de toda a pintura, mas, sim, da velatura com a qual Gozzoli tinha conseguido a cor final © manto da Santa resultava, assim, originariamente, preenchido de rosa e sucessivamente velado com azul ténue de modo a tor nar-se violeta. © manto azul da Virgem esta velado em verde e por baixo revela ainda um inaltedvellépis-lazli. Em suma, nao existe uma tinica peca de vestudrio pintada neste quadro que nao tenha sido obtida com uma velatura levissima. Donde a delica- deza extrema de uma limpeza, em que se devia remover 0 estrato copaco sem atingir a delicadissima velatura que nao estava pro: tegida por uma camada de verniz. Mas o resultado, diga-se de passagem, foi 6ptimo. Podemos enfim e brevemente concluir: dada a demonstra ‘do que em cada época ¢ em cada escola, na pratica como na Figura 57 Perugia, Pinacoteca BENOZZO GO- ZZOLI: Madonna e Santi (1456), apés restauro, Figura 58 Perugia, Pinacoteca. BENOZZO GO- 7ZOLI: Madonna e Santi (1456), pormenor de S Pedro. A seta indica © ponto onde a remo fo de uma gota de cera revelou, ao ser retirada, a velatura original, de velatura e de verizes coloridos, deve-se inverter a pritica estabelecida para as limpezas e dar sempre como pressuposta a presenca de velaturas e de vernizes antigos, sempre com a obri- gagao de demonstrar 0 contrario. Em segundo lugar resulta que ‘mesmo onde se puder demonstrar a inexistencia de vernizes ane tigos ede velaturas, permanece sempre em abertoa eventualida- Ge destes terem sido removidos em restauros anteriores e que, por isso, seja sempre mais conforme ao pensamento do artistaa pintura com uma patina adquirida com o tempo do que aquela desvelada, como se obteria com a sua remosio”. 19 A tose aqui expressa fol por mim defendida e itustrada num ciclo de com ferencias realizadas em Maio de 1948 no Museu de Bnixelas, no Louvre. na Universidade de Esuasburgo, na Museumsgesellachafe de Basleia sce Figura 60 Perugia, Pinacoteca. BENOZZO GOZZO- LI: Madonna e Santi (1456), pormenor do ‘manto de S, Pedro. Asseta indica a sombra projectada provocada pelo estrato superior ~ a velatura ~ da irra, depois do destacamento da goticula de cera, “ivamente, no congresso do 1OOM em Paris em Junho de 1948, Os dados sucintos relativos as restauros de ques fala no text esti no Catalogo della V Moda di Resour vealizada no Instituto Central de Restauro em Marco de 1948, Depois de este ensai jd estar na grfica, 0 Dr. Caglano de Ave ‘vedo chamon a minha atengo para. seguintereceita de um verniz colorido ‘ave remonta ao século XV: spara fazer um veriz liquide de autra manera, PPegue numa libra de sementes de linho e coloque as num reipiente nove te vidrado, Depois, come meio-quarto de alume de rocha pulveizado e uma ‘quantidade igual de minio e de cinabrio moidos finos e meia ong de in enso bem triturado, em soguida misture todas as coisas juntas ecoloque-as ‘no dito leo e feva-ass. (Cf. O. GUERRINI eC. RICK I Cebo de color. Sgr del sec XV, Bologna [1887], p. 164). fo prova no 86 que o verniz ‘colorido era usado na lila no Séc. XV, mas que além disso, a recelta era ‘onhecida, Figura 59 Perugia, Pinacoueca, BENOZZO GO- ZZOLL: Madonna «Santi (1456), Macrofotografia da gota de cera in situ. AA gota encontra-se no bordo de desenho @ouro, entre um ramagio e outro; vé-se claramente que 4 gota nao tem qual ‘quer acumulagao de vorniz a sua volta e que 0 fundo, que se centrevé no desta ‘camento (spacco) vertical, €idéntico, como material, ao fundo da pintura cireundante, APENDICE ste titulo, que em italiano se diz Alcune Osservazioni di Fatto Jntorno a Vernici e Velature, € 0 titulo que Neil Mac Laren e Anthony Werner deram a um seu artigo publicado no ntimero de Julho de 1950 na «Burlington Magazines, titulo que recupe- ramos de bom grado visto que o artigo supracitado € pensado, arquitectado e escrito na desesperada tentativa de refutar um precedente artigo nosso publicado na mesma revista (de Julho de 1949) com o titulo «The Cleaning of Pictures in Relation to Patina, Varnish and Glazes. Dissemos, e no para dramatizar, «na desesperada tentativay: na realidade nao se disputa aqui ‘uma plausivel diversidade de pontos de vista sobre um mesmo argumento (0 que na auséncia de qualquer precedente polémi co entre as pessoas em causa teria favorecido uma exposicdo muito mais circunspecta ¢ leal), mas sim de uma defesa, in ar- ticulo mortis, das desastrosas elimpezas» da National Gallery de Londres, que foram sustentadas até agora do alto de principios apodicticos, aos quais indirectamente 0 nosso artigo desferia tum golpe mortal. Assim se explica 0 inexplicavel tom do artigo que pretende negar de uma vez s6 a Estética e a Logica, arto- gando-se a certeza confiante da Revelacio, com base em textos hist6ricos interpretados e citados ad libitum, com criticas t80 imprudentes quanto inconsistentes. Foi isto que imediatamen: te rebatemos numa carta A «Burlington», publicada no ntimezo de Outubro de 1950, Se agora voltamos ao tema, com maior desenvolvimento, é para documenta, passo a passo, do modo ‘mais exaustivo e até minucioso, a nconsistencia das criticas que nos foram dirigidas, a falta de fundamento, quer estético, quer hist6rico, da tese que nds contestamos, a interpretacio tenden- iosa, 0 continuo apelo a textos que os artigos supracitados in- vvocam, quando nao se trata simplesmente de suposicoes. 7 eBollenino delfTstuto Cenuale del Restauror, 1950, n. 3-4, pp. 9:29, INT. - eAlgumas abservacdesfactuas sobre erizese velaturase 123 As teses em oposicao, aparentemenite, reduzem-se, no campo da limpeza das pinturas, aos enunciados empiricos da neces- sidade de uma limpeza total e a oportunidade de uma limpe- za parcial. A reducdo da diferenca de opinides a estes termos empiricos favorece sem diivida alguma os defensores da tese da limpeza total, que se definem como cientistas e pretendem confinar a prOpria diferenca de opinides na opinavel esfera do gosto pessoal. Entretanto, a reducdo da diferenca de opinides @ estes termos rudimentares tende mais do que a velar, a esconder (08 pressupostos tedricos do problema, que subsistem a despeito dos empiricos, os quais, silenciando a principal premissa do six logismo, créem ter suprimido a necessidade I6gica e pretendem desinteressar-se dela. Mas 0 entimema que eles assim produzem transforma-se, nada mais nada menos, no célebre sofisma da «falsa hipotese». E dlaro que qualquer intervencao relativa a obra de arte pice t6rica nao pode prescindir do facto de que esta pintura € arte e como tal se apresenta com dois aspectos fundamentais, insu= primiveis e insepardveis, de obra de arte e de facto histrico, pelo que na sua consisténcia fisica material nao se pode € nao se deve ver outra coisa a nao ser o meio pelo qual uma imagem se revelou e um momento da historia se fixou num documento a espiritualidade humana. Dado que a premissa supracitada € inegavel, a custo de negar aquilo que faz a obra de arte set arte, negando, portanto, o proprio problema do restauro coma intervencao sobre a obra de arte, daf resulta que qualquer inter= vencio do género nao pode prescindir do facto de que a pintura a ser restaurada € uma obra de arte; donde a conclusao final de que nunca é possivel separar 0 lado pritico da intervensio de restauro das consideragoes estéticas ¢ historicas que a obra exige. Até quando se trate, ndo dizemos intervir sobre o pr6« prio aspecto da pintura, mas sobre o seu suporte, e de um modo ue ndo influa completamente sobre a fruigio estética da prépria pintura, essa intervenco, que poderia ser considerada apenas dirigida para a conservagio da matéria e por isso ligada apenas a este problema pratico especifico, deverd ter em conta o lado histérico da obra de arte enquanto documento* hist6rico e evie tar ao maximo aquelas modificagées substanciais, que somentea salus publica, ou seja, a salvagao da obra, podera justificar como suprema let, devendo-se entender que no possivel conflito entre 0 lado estético e o lado histérico da obra deverd sempre vencer aquele pelo qual a obra € arte, ou seja, 0 lado estético. 2” NT. ~«monumento» no original 3 NT, ~amonumentor no orignal Dito isto, sobre o que temos insistido ha muito tempo, tor- nase claro que pretender falar de restauro desinteressando-se dos «aesthetic aspects of the subject»*, como agradaria aos nos sos autores, é colocar-se fora da arte e da historia, E para la deste campo minado da arte e da historia, onde eles insistem em permanecer quando parece que emitem o prin- cipio mais dbvio e indiscutivel: «Basta dizer que permanece pressuposto, para 14 de qualquer discussao, que 0 objectivo de quem se deve ocupar da conservacao e do restauro das pin- turas é o de as apresentar o mais possivel no estado em que © artista queria que fossem vistas». Parece dbvio, indiscutivel, lapalissiano, e €, sobretudo no campo da pintura, a suposicao mais insidiosa que se pode formular, Nem um conservador, ‘nem um restaurador pode pretender tanto, justamente porque € uma pretensdo, uma pretensio indemonstrivel, a de poder voltar a um suposto aspecto original do qual 0 tinico teste- munho valido seria a obra quando foi conclutda, ou seja sem a passagem do tempo, ou seja um absurdo hist6rico. Mas é precisamente a esse objectivo cego que tende a limpeza inte- gral: tratar uma obra de arte como se esta estivesse fora da arte e da histéria e que pudesse ser reversivel no tempo, um ia oxidada ao qual restituir o primitivo brilho © conceito de patina, longe de se confinar numa efabulacéo romantica, se foi refinando num, conceito que tem a intencao de respeitar as razes da arte ¢ da historia, pelo que € instrumento precioso para designar, quer a passagem do tempo sobre a pintura, que péde muito bem ter sido prevista pelo artista, quer aquele novo equilfbrio em que as matérias da pintura acabam por se ajustar através do enfraquecimento de uma crueza original. Mas j4 no seu apa- recimento em Itélia, o conceito de patina se configurava nesse sentido e a citagao que referimos do Dicionério de Baldinucei demonstra-o com clareza. Na definigao de Baldinucci* chega: se, por assim dizer, & demonstracao, para além da verificagao da marca do tempo sobre a obra, também do valar estético da Patina; mas jé se deve sublinhar que também na antiguidade, apesar de nao se ter chegado a um conceito tio inclusivo, se pode extrair uma antecipacao exactamente de priticas caracte- risticas relativas a obra de arte. NT. oAspectos estéticos do assunton, 5 Vecaboleri oscano, op. ct:

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