Você está na página 1de 7

Tratamento 2020

TUDO É
PERENE
Argumento André Plez –
roteiro Coelho De Moraes
Personagens:
Homem velho, pessoas 1 e 2, Mulher
velha
marcoantoniocoelhodemoraes@gmail.com
1.

CENA 1
INT. CASA. TARDE
Homem arfante, rasteja a velha chinela de couro
carcomido e gasto, cansado, estala as costas, anda
batendo o pé no assoalho de taco gasto.

HOMEM
Já estou velho.

CLIENTE
Jovem, barba rala, sorriso largo, põe o paletó.

Tudo é perene

CLIENTE sai / HOMEM olha ao léu, mudo.

HOMEM (voz off)


Perene?
Qual o sentido dessa palavra?
Afinal, o que significava aquilo?
Devia ser muito inteligente...
pois guarda em si palavras estranhas.

O Homem anda pelo cômodo.


(Voz on)

Perene.
Se tudo era isso, já que sou velho,
talvez eu tenha a solução para o
grande enigma da vida...

Suspira.

Na velhice se descobre tudo,


até mesmo as respostas nunca antes
respondidas.

Para e olha ao léu / revê o passado na parede e no teto.

CENA 2
Cortes sucessivos. O passado.

CRIANÇA
Qual é o segredo, mãe?
2.

MÃE
Fica quieto moleque!

CRIANÇA
Qual é... Qual é, mãe?

Na missa / meio às outras crianças / olha pro altar.

Qual é o grande segredo?

MÃE
Puxa a orelha do menino.

Fica quieto, diabo!

CENA 3
INT. CASA. NOITE
retorno à atualidade

HOMEM
Livra-se dos pensamentos balançando a cabeça.
Sorri. Fala para si.

Tinha medo e raiva dos puxões,


mas hoje... tenho até saudades,
até mesmo da dor queimando a orelha.

Insere-se o olhar da mãe, de reproche,


projetado na parede.
O Homem levanta os braços como se pedisse calma.
O Homem anda pelo corredor.
Estalos nas costas / chinelas.
Varredura pela casa vemos panelas velhas
e fogão vermelho com detalhes pretos...
O homem olha tudo aquilo e se mostra cansado.

Sinto-me perene...

CENA 4
INT – CASA - NOITE
O Homem juntou seu caixote de sapateiros, ajeitou as
costas, caminha pelos fracos tacos, toma banho, enxuga-
se com a toalha embolorada / enquanto se enxuga olha ao
léu / olha a aliança, surge a imagem de Joana, projetada
3.

na parede, ao lado de um gato / corte para um enterro /


corte para o gato que foge.
O Homem esquenta o resto de refeição, senta-se no sofá,
come, ajusta a dentadura, olha a TV desligada, está
queimada, vemos fios arrebentados e soltos, sobre ela
um vaso sem flores.
O Homem come lentamente, dormita enquanto come, deixa
o prato sobre o sofá, arrasta-se para a cama, toma no
escuro do quarto os remédios sobre a cômoda. Dorme.
Fade out longo.

CENA 5
INT. QUARTO. MANHÃ
Homem acorda sonolento, braço sobre a testa.

HOMEM
(VOZ OFF)
Tenho que decifrar de uma vez por
todas aquela coisa do perene.

Senta-se na cama e olha para os pés.

O que será?
Alegre? Coisa de Deus?
Misericórdia, alguma coisa linda...

Com muxoxo suspeitoso põe os chinelos.

Perene... perene... perene...

Levanta-se e lava o rosto banheiro.


Sons amplos de água que escorre.

No dicionário tem aos montes...

Ensaboa o rosto / os olhos ardem /o Homem resmunga uns


‘ai ai ai’... limpa-se com a toalha / abre a toalha e
olha para si no espelho velho.

O fato é que se tudo é perene,


tudo é de Deus, tudo é alegre.

Sorri, o esforço o fez levar as mãos ao rosto.

CENA 6
4.

EXT.PARA A RUA. DIA.


O Homem pega do caixote, pega um naco de pão da mesa e
sai, passos lentos, mas, determinados.
Cortes para seu trabalho de engraxate nas ruas / homens
bem vestidos de terno e gravata são seus clientes.
CORTE PARA?
uma determinada pessoa bem vestida atendida / o Homem
observa debaixo do braço do cliente / olha o sol / olha
o braço da pessoa / limpa o próprio suor / olha o sol e
olha debaixo de seu braço / continua seu trabalho /
graxa sobre sapato / brilhos / flanelas / bate o pano,
cospe, limpa / faz brilhar e o toque final.

HOMEM
Pronto meu siô!

CLIENTE 1
O jovem, com cavanhaque.
Olha o trabalho.

Muito bom... muito bom mesmo

HOMEM
Anos e anos...
acabei pegano prática até dimais.

O cliente paga satisfeito.

Tudo de perene procê, meu siô.

Um cliente ao lado ouviu e reagiu.

CLIENTE 2
Homem de rosto rechonchudo, com colarinho preso no
pescoço, virou-se / sorriso / olhar astuto.

Tudo de perene?
Eu não quero não.

CLIENTE 1

Sorri para o Homem engraxate.

Então, meu senhor,


Essa palavra... perene...
isso quer dizer eterno,
duradouro.
5.

Faz menção ao Cliente 2.

Nós gostamos daquilo que é duradouro.


Mas preferimos tudo aquilo que mude.
Que se transforme.

Saíram os dois clientes, gesticulam e falam e dobram a


esquina das ruas sob a observação do Homem engraxate.

CENA 7
EXT. RUA. DIA

Está boquiaberto, segura as notas de dinheiro entre os


dedos / Engole em seco, senta-se em um dos bancos da
praça /
CORTES RÁPIDOS:
O Homem olha pra todo canto / o dinheiro / a caixa de
trabalho / a mulher com o gato / ele com a orelha na
mão da mãe / ele menino e sua caixa nas costas.

Tudo é perene.
Mas a vida muda o tempo todo.
Eu é que não mudei...
Como sou bobo...
a vida é assim mesmo.

Triste. Cabisbaixo.

Tudo é perene.

O Homem, engraxate fala consigo.


Enquanto isso os transeuntes o olham.
O Homem engraxate recosta no banco. Descansa.
Junta a caixa e fez o caminho contrário / cabisbaixo /
sensação de peso dos anos / a caixa com graxa pesa mais
/ moedas tilintam no bolso largo / O Homem engraxate
bate na perna com a mão como punição.

(voz off)
...tanta coisa... que peso...
o peso dos trocados no bolso...
o peso de pagar comida...
comida e aluguel...
pagar a energia...
6.

Olha para a trama de fios da rua, incompreensíveis /


Cansa-se. Chega em casa, olha para o vaso sem flores,
bate, tremulamente, a mão, no vaso / o vaso cai e se
espatifa / olha demoradamente sem muita reação / cacos
espalhados / olhar / cacos / sorri.

Perene..

Fecha o sorriso.

Perene.

Senta-se no sofá, passa a mão pela barriga / sente a


saliva / faz muxoxo / um tanto de ânsia / sente uma dor
no pulso esquerdo / a dor vai subindo e a mão acompanha
sobre o braço / aperta o lado do ombro / respira ofegante
/ suor em gotas pela testa / Joana, a esposa, surge na
porta, diáfana, manta branca, estende-lhe as mãos /
sorri.

JOANA
Vem, pois a vida é perene.
Vem ser perene comigo.

Você também pode gostar