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PRÓLOGO

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PRÓLOGO

A situação em que me coloquei ao empreender a demonstração


perante os públicos e, particularmente a comunidade científica, da validade
universal de modelos construídos a propósito do caso particular do mundo
rural português, permitiu orientar-me em direcção ao que creio ser o
essencial do meu trabalho, e que por minha culpa, escapa algumas vezes
aos leitores e críticos, ainda que bem intencionados, ou seja, o mais
elementar e o mais fundamental do conhecimento antropológico.
Trata-se de uma ciência que poderá dizer-se relacional, na medida em
que concede a primazia às relações, se bem que na óptica de Cassirer ou
até Bachelard, este é o objectivo de todas as ciências modernas. Apega-se
de modo muito directo ao pensamento corrente do mundo social, joga com
realidades substanciais, indivíduos, grupos, etc., interessando-se por
relações objectivas que não podemos nem apontar nem tocar com o dedo e
que precisamos de conquistar, construir e validar através do conhecimento
científico. Depois, trata-se de uma ciência de acção, e cada vez mais se
afirma como tal, designada por vezes como disposicional e que dá conta
das potencialidades inscritas nos actores sociais e na estrutura das
situações em que eles agem, mais exactamente na relação entre eles. Esta
ciência, que se acha condensada num pequeno número de conceitos
fundamentais, que tem como chave de abóbada a relação de sentido entre
as estruturas objectivas (campos e espaços sociais) e as estruturas
incorporadas (habitus e identidade), opondo-se ao irracionalismo de toda a
acção ou representação que não seja engendrada pelas razões
explicitamente estabelecidas por um colectivo consciente das suas
motivações. Não se opõe ao extremo de um certo estruturalismo, ao aceitar
reduzir os actores sociais, que considera eminentemente activos e
actuantes. Esta ciência afirma-se, rompendo com múltiplas noções de
patente registada que foram introduzidas no discurso científico. Noções
estas opostas e socialmente muito poderosas, indivíduo/sociedade,
individual/colectivo, consciente/inconsciente, objectivo/subjectivo,
teórico/prático, etc., que são constitutivas de qualquer espírito normalmente
constituído.
Tenho consciência de serem poucas as probabilidades de conseguir
transmitir realmente, através do discurso, os princípios reguladores deste
pensamento e as disposições práticas em que eles encarnam. Pior, sei que
designando-os pelo nome de científicos, numa concessão aos usos
correntes, me exponho a vê-los transformados em proposições teóricas,
sob a alçada de possíveis discussões teóricas, de molde a levantarem
novos obstáculos à transmissão das maneiras controladas de agir e de
pensar que são constitutivas de um método. Mas quero esperar que

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poderei, pelo menos, contribuir para dissipar os mal-entendidos mais
tenazes que persistem em propósito do meu trabalho, sobretudo os que são
alimentados deliberadamente pela repetição incansável das mesmas
objecções sem objecto, das mesmas reduções involuntárias ou voluntárias
ao absurdo. Estou a pensar em, por exemplo, acusações elitistas de
lacunas, ou de utilitarismo racional e em outras categorizações categóricas
engendradas pelo pensamento classificatório dos mestres ou impaciência
redutora do público.
Parece-me que a resistência colocada por certos intelectuais a esta
análise antropológica, sempre suspeita e reducionista, coloca raízes numa
espécie de ponto de honra deslocado, que os impede aceitar a
representação realista da acção humana, a qual é, condição primeira para
um conhecimento científico do mundo social, ou, mais exactamente, numa
ideia inteiramente inadequada da sua dignidade de sujeitos, que os faz ver
na análise científica das práticas um atentado à sua “liberdade” ou ao seu
“desinteresse”.
É verdade que a análise antropológica não faz concessões ao
narcisismo e que opera uma ruptura radical com a imagem profundamente
complacente da existência humana defendida pelos que querem a todo o
custo pensar-se como “os mais sublimes dos seres”. Mas não é menos
verdade que permanece um dos mais fortes instrumentos do nosso
autoconhecimento enquanto actores singulares. Se por um lado, põe em
questão as liberdades ilusórias que possuem os que vêem nesta forma do
conhecimento de si “uma descida aos infernos”, que aclamam
periodicamente o último alcance do dia da “antropologia da liberdade”, por
outro, alimenta o acesso aos mais eficazes meios de liberdade, que o
conhecimento dos determinismos sociais permite conquistar contra os
determinismos singulares.

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INTRODUÇÃO

«Não há que recear ou esperar, mas procurar novas armas».

Gilles Deleuze

1.A perspectivação e análise da unidade e diversidade das instituições,


das organizações e dos processos sociais e culturais, constituem um dos
objectivos fundamentais da ciência antropológica. Os fenómenos sociais
estudados são comportamentos observados em actores sociais com os
quais se vive. Se esta característica é ponto comum adquirido entre todos
os antropólogos, as dificuldades e divisões, porém, surgem quanto aos
modos de expressão e de transmissão desta unidade múltipla, dos materiais
de observação e da experiência vivida. A justificação desta obra, prende-se
com o interesse específico da antropologia em Portugal, designadamente no
“meio rural”, tendo como peça fundamental as relações sociais e inclusão de
um estudo sobre as ideologias do campesinato.
Uma primeira dificuldade reside ao nível dos conceitos. Tratando-se de
uma ciência recente, e não de uma disciplina constituída como as ciências
naturais, a própria designação de antropologia é polissémica e polimorfa,
situando-se em níveis diferentes: etnologia e ou antropologia, antropologia
social, antropologia cultural, antropologia cultural e social. A tradição
terminológica francesa insiste na primeira designação e, consequentemente,
na pluralidade irredutível das etnias e das culturas. A tradição anglo-
saxónica acentua a segunda designação e, consequentemente privilegia a
unidade do género humano. Não obstante estes atritos, a designação de
antropologia cultural e social entronca na tradição terminológica francesa
mais unânime, onde a palavra etnologia oscila entre o sentido restrito de
classificação histórica dos povos através dos seus traços culturais e do
estudo das semelhanças e diferenças entre a sociedade e a cultura, na
base de dados recolhidos etnograficamente, e num sentido mais amplo e
compreensivo, da definição das propriedades gerais da vida social e cultural
das sociedades humanas e da explicação da sua diversidade. Trata-se

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portanto de três abordagens ou melhor, de três momentos da mesma
abordagem dentro da mesma ciência: etnografia, etnologia e antropologia. A
primeira consiste na recolha e descrição sistemática, directa e o mais
pormenorizada possível dos fenómenos observados no trabalho de campo.
A segunda analisa, num primeiro nível de abstracção, os materiais
recolhidos pela etnografia, fazendo emergir a lógica específica da sociedade
ou grupo estudados; por último, a antropologia explica, num segundo nível
de inteligibilidade e numa abordagem generalizante, as prioridades gerais
da vida social e cultural, construindo modelos que permitam comparar as
sociedades entre si, e mais importante ainda, privilegiar a interpretação dos
factos sociais e culturais como unidades integrantes de todo o sistema de
relações que se geram entre os indivíduos. Uma dificuldade porém reside
na disjunção e na classificação da investigação fundamental e da chamada
“antropologia da acção”, aplicada a uma antropologia regional ou rural, e
fixando os respectivos objectivos. Esta questão está sempre ligada à
problemática das especializações regionais, das especializações fundadas
em níveis e em domínios de estudo ou ainda em afinidades com outras
disciplinas das ciências humanas. Após a fase da “antropologia primitiva”,
assiste-se, cada vez mais, a uma colaboração estreita e a uma coabitação
pacífica entre historiadores, sociólogos, psicólogos e antropólogos no
estudo das comunidades tradicionais e das sociedades modernas
industrializadas e tecnológicas.
As fronteiras entre as diversas ciências humanas são fluídas. Variam
segundo as fases do desenvolvimento de cada uma delas, e segundo as
preocupações dominantes, a partir das quais cada ciência se define num
dado momento histórico. Cada ciência contribui para o desenvolvimento de
outras, sob a forma de dados e de conceitos, abrindo-lhes novas
perspectivas. O saber científico sobre o homem, em comparação com o
saber científico sobre a natureza, encontra-se numa fase de
desenvolvimento progressivo, mas muito lento e apenas por aproximações
sucessivas. Deste facto resulta a importância da investigação fundamental
em antropologia. Os defensores da antropologia da acção são confrontados
com a ambiguidade deste conceito e com a diversidade de ideologias
sucessivamente defendidas. Por exemplo, Margaret Mead 1, ao estudar a
educação e o desenvolvimento da personalidade nas populações das ilhas
Samoa, pensava que os seus trabalhos deviam permitir estabelecer uma
sociedade melhor e aplicar uma pedagogia menos frustrante à sociedade
americana. Os antropólogos, assim como todos os cientistas sociais, estão
directamente confrontados, na sociedade moderna, com um movimento de
1
Margaret Mead, Male and Female, Greenwood Press, Westport, 1977.
É importante referir que esta autora, pertence à geração de antropólogos americanos
que privilegiam o estudo dos comportamentos (antropologia cultural), utilizando o
apoio da linguística e semiótica na análise difuso-interpretativa das comunidades
humanas.
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homogeneização sem precedentes na história, ou seja, com o
desenvolvimento de uma forma cultural aliada ao crescimento neoliberal da
industrialização e urbanismo, bem como, por arrastamento, de uma
personificação do pensamento do racionalismo social da sociedade global.
A questão que me perturba actualmente, é saber como uma sociedade pode
chegar a um estádio de desenvolvimento como o actual, sem choques
dramáticos e sem riscos de despersonificação, de desestruturação e de
negação da sua própria identidade e unidade. Se houve rupturas, localizá-
las, conhecê-las e interpretá-las dentro do respectivo contexto histórico. Um
dos objectivos essenciais da antropologia é ajudar os actores sociais a
compreenderem este desenvolvimento actual e permitir a uma determinada
cultura a explicitação da sua diferença. Não me parece, porém, que ela
própria como ciência deva ter como objectivo capital desempenhar um papel
para benefício da humanidade inteira, ou como objectivo organizar política,
económica e socialmente o desenvolvimento dessas diferenças. No entanto,
pode contribuir para que esses objectivos se concretizem a posteriori. Não
se trata de demarcar posições, mas de as tentar conjugar num projecto
interdisciplinar para tentar uma antropologia de desenvolvimento plural
adaptado às realidades, aos recursos, e particularmente neste caso, aos
saberes locais e regionais. A tradição metodológica da antropologia na
pesquisa sobre unidades étnicas-territoriais, que por muito diversificada que
apareça na sua componente teórica e analítica, tem como característica
principal reivindicar o estudo das sociedades primitivas. De acordo com as
correntes e sub-correntes em que se dobra e desdobra a funcionalista, a
estruturalista, a dinamista, a neo-marxista, a substantivista, etc., que muito
têm contribuído para a construção desta ciência, o maior contributo prestado
continua a ser o conhecimento dos povos e das culturas. A ciência
antropológica tem direcções que per si constituem hipóteses de trabalho,
com detalhes que se podem encaminhar no sentido da afirmação e
reafirmação das linhas orientadoras como disciplina científica. Numa
posição de exclusividade no tratamento e dados recolhidos, descobri que
também o “nós” é objecto antropológico. A exploração duma tradição de
modernidade, de progresso e civilização, conduziu ao “outro” próximo, numa
tentativa de rever os outros em nós próprios, uma espécie de face to face,
que permite discriminar o que nas sociedades ocidentais é a acomodação à
novidade e sujeição ao passado. Tratar-se-á de um desvio apenas, como
pretende Balandier2, ou uma alternativa na óptica de Yañez-Casal 3. Na
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Georges Balandier, Le Détour, Fayard, Paris, 1985. Antropólogo francês que na
década de 60 imprimiu com impacto, nos meios universitários franceses, uma
corrente antropológica denominada de dinamista.
3
Adolfo Yañez-Casal, Antropologia e Desenvolvimento, in revista Etnologia,
Janeiro/Junho de 1991. Aqui, uma referência particular ao Professor Doutor que me
leccionou duas disciplinas durante a formação académica e meu orientador
científico. Um excelente mestre, claudicou como orientador. Contudo, os meus
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minha interpretação, ao enveredar por um processo de reconversão
metodológica e teórica, a antropologia pode permitir análises próprias e
específicas dos problemas significativos do mundo actual. As atitudes, ou a
mudança de atitudes face a um objecto de investigação, não o tornam mais
inteligível, torná-lo-ão mais manipulável, abrindo novas linhas de orientação
para futuras investigações. No entanto, temos que estar apreensivos para o
facto de poderem existir algumas limitações de foro científico. Tratar os
factos sociais como se fossem coisas continua a ser regra de ouro na
prática de investigação em ciências sociais. Não interessa discutir de que
lado se deve colocar o antropólogo ou a antropologia. A investigação deve
circunscrever-se a um código de valores éticos, ao qual o antropólogo
estaria sujeito relativamente à sua prática na investigação em si. Em todo o
caso, o posicionamento teórico do investigador implica sempre uma
deformação da realidade, seja qual for o seu ângulo de visão. O que importa
é saber se a antropologia na sua maior ou menor componente científica,
(que de uma forma geral lhe é reconhecida e cada vez mais afirmada), tem
ou não capacidade teórica e metodológica para estudar e analisar a
problemática das sociedades actuais, partindo em pé de igualdade com
outras disciplinas sociais, confirmando uma dimensão interdisciplinar.
A corrente dinamista de Balandier, reconciliou a antropologia com o
seu verdadeiro objecto: as sociedades históricas no seu processo de
estruturação, desestruturação e reestruturação. O projecto de Balandier não
teve a sequência e continuidade que se previa. A dialéctica da
tradição/modernidade, de que o seu pensamento estava imbuído, aliado ao
fervor neo-marxista da época pós-estalinista, fez reagir alguns dos seus
discípulos, os quais acabariam por promover uma antropologia de perfil
claramente marxista, baseado em conceitos de modos de produção e
articulação de modos de produção. A renovação teórica neo-marxista
introduzida por estes autores, provocou tensões e debates entre
antropólogos, que se revelaram muito importantes, quer do ponto de vista
da renovação geral da antropologia, quer do ponto de vista metodológico e
teórico circunscrito. Existiam aspectos concretos nas sociedades modernas
negligenciados pela antropologia clássica, o económico por exemplo,
enquanto outros eram excessivamente valorizados como o parentesco. Na
área das relações económicas, a antropologia acumulou conhecimentos e
testou hipóteses que podem contribuir de forma decisiva para a
compreensão e explicação de fenómenos ainda ignorados na prática social.
Coube sobretudo à antropologia anglo-saxónica, particularmente a sua
corrente substantivista, o mérito de ter desenvolvido a maior parte dos
conhecimentos relativos aos sistemas económicos das sociedades ditas
“primitivas”. Karl Polanyi4, ao estudar a crise do liberalismo económico dos
anos 30-40, foi conduzido a separar o económico das restantes funções

sinceros agradecimentos.
4
Karl Polanyi, La Grande Transformation, Gallimard, Paris, 1983.
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sociais, projectando para o aparecimento de um mercado auto-regulador e
independente da sociedade que apareceu na Europa com a Revolução
Industrial. A inserção do económico no social, constituindo uma totalidade
integrada, é característico das sociedades pré-mercantis estudadas pela
antropologia. Nelas, o económico produção de subsistências, circulação e
distribuição de bens, consiste num processo instituído de interacções entre
o homem e o seu meio físico, sujeito a vários princípios de integração social:
reciprocidade, redistribuição e troca directa, funcionando numa esfera
horizontal ao nível do parentesco e vizinhança e vertical entre estratos
sociais diferenciados hierarquicamente. No caso particular da minha
investigação feita numa sociedade semelhante 5, entre os camponeses e
respectivas famílias (consanguíneos e afins), a economia funciona num
nível horizontal e praticamente em termos de igualdade de troca. O nível
simbólico das trocas revela-se e está adjacente ao clientelismo e às dívidas
para com os patronos e instituições locais, onde códigos de conduta estão
bem impregnados nas relações sociais intergrupo. Ao atingirmos uma base
de teorização sólida, procura-se interpretar e compreender a autonomia
latente no meio rural, facto que necessita de ser analisado a partir de
dentro, com um conhecimento integrado do meio físico e humano
envolvente. É com o intuito de desenvolver a problemática da antropologia e
desenvolvimento que o económico, com todas as suas linhas orientadoras
para o social e vida colectiva, é objecto de abordagem neste trabalho. A
problemática do desenvolvimento serve para dar forma e conteúdo à
encruzilhada das dinâmicas internas e externas, horizontais e verticais,
subjacentes a qualquer modelo económico, mais significativo no meio rural.
É aqui onde se podem compreender os diferentes princípios de estruturação
e de organização social, política e económica, e ainda onde se procede às
principais clivagens entre as práticas sociais concretas e as estratégias
conflituais entre os indivíduos.

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Informo o leitor que se trata de uma comunidade onde me integrei e onde partilho
laços de parentesco, o que facilitou o acesso e conhecimento do funcionamento das
instituições locais (Comissão da Igreja, Assembleia da partilha de recursos hídricos
e órgãos da Junta de Freguesia), bem como os modelos de integração no meio do
campesinato e relações sociais inerentes. Para evitar riscos de etnocentrismo, senso
comum e empirismo excessivo, os temas terão uma abordagem histórica, onde as
informações mais importantes foram recolhidas de fontes escritas, sem menosprezar
a oralidade e transmissão de conhecimentos e factos concretos referenciados por
indivíduos mais idosos, informantes privilegiados. No estudo levado a cabo nesta
freguesia, apenas os camponeses, jornaleiros e patronos são objecto de análise como
elementos constituintes de um todo económico classificativo. As produções e
relações de produção serão apenas assuntos para um possível tratamento posteriori.
No entanto, e se houvesse a necessidade de integrar esta micro-comunidade num
todo económico integralista, classificava-a como pré-mercantil.
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Relativamente ao mundo rural, a antropologia parece estar bem
posicionada para formular hipóteses sérias que permitam avançar neste tipo
de análise. Pode-se enunciar logo à partida a tendência que têm as
populações rurais para salvaguardar a sua autonomia, que é tanto maior,
quanto maiores forem as ameaças exteriores de desintegração ou conflito
social. Quando se pretende interpretar os comportamentos dos
camponeses6 perante o exterior ou inovações impostas pelo mundo dito
“civilizado”, a demonstração da importância dos factores económicos são
evidentes e o conceito de autonomia está circunscrito à auto-subsistência e
policultura intensiva integradas num ciclo isolado de relações de troca e
venda com os vizinhos, as aldeias e lugares circundantes, compondo o todo
das relações. A partir de hipóteses deste tipo, muitas outras podem ser
facilmente deduzidas e pesquisadas, tentando descobrir quais os objectivos
ideológicos, políticos e económicos que as comunidades rurais,
enquadradas num determinado processo de desenvolvimento, esperam ver
respeitados e tornados realidade. Vários foram os investigadores que em
Portugal levaram a cabo trabalhos de vulto e que contribuíram para o
crescimento e despertar do interesse antropológico para a interpretação e
explicitação dos comportamentos culturais e sociais das micro-comunidades
aldeãs.7
Considerando a inúmera produção de estudos realizados em Portugal
por antropólogos de formação académica, particularmente de matriz anglo-
saxónica, devemos a título de exemplo privilegiar e incidir o trabalho a
desenvolver no campo da investigação o nosso território. O estudo de
Emílio Willems (1955) sobre a família em Portugal, o estudo de Robert
Rowland com a mesma abordagem, a monografia de Joyce Riegelhaupt
(tese de doutoramento de 1964 que permanece inédita) sobre a aldeia
estremenha de S. João de Lampas, e os trabalhos de Colette Callier-
Boisvert sobre Soajo (1966) e sobre o sistema de parentesco português
(1968), são demonstrativos da importância que a sociedade portuguesa tem
no contexto antropológico como fonte e objecto de análise. É todavia com a
obra de José Cutileiro – A Portuguese Rural Society – que os “terrenos
portugueses” passam a incorporar e a participar no debate científico da
antropologia em geral.

6
O termo camponeses (parcelares)/campesinato, subsumindo diversas camadas
hierarquizadas, engloba uma classe social, composta de homens e mulheres que,
organizados em unidades domésticas e baseados exclusivamente na força de
trabalho familiar, dispondo do cultivo de um ou vários pedaços de terra, próprios ou
arrendados, vivendo, eventualmente em complementaridade com outras fontes de
rendimento, apenas ou sobretudo do produto do seu trabalho.
7
Exemplo de Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, e mais recentemente Fernando
Galhano, Benjamim Pereira, Margot Dias, Manuel Sobral, Joice Riegelhaupt, entre
outros.
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A gestação da matriz de comunicação do homem tradicional, que
sucede ao “antigo”, na sociedade rural portuguesa é cada vez mais
solidificada, assumindo contornos diferentes na contextualização espaço-
tempo, mais fragmentária e sobretudo difusa e polimorfa. Projectos
universalistas, compromissos comunitários, identidades colectivas, cruzam-
se com liberdades e identidades individuais, com afirmações de diferença e
alteridade no seio de uma realidade social e cultural sincrética.

2.Duas formas racionais de análise objectiva decorrem a priori, por um


lado razões eminentemente teóricas, por outro, as razões eminentemente
práticas. As primeiras aliam-se às relações de produção no campo (através
da distinção entre propriedade e relações de disposição/controlo dos meios
de produção através de relações clientelares e de parentesco. Estas
relações podem oferecer-nos logo à partida elementos essenciais para uma
divisão teoricamente fundada do campesinato em classes. A correcta
definição do lugar ocupado pelas várias classes e facções de classe do
campesinato no conjunto de relações ideológicas da formação social
apresenta-se também como componente indispensável na determinação
estrutural. As razões práticas surgem a partir das formas de inteligibilidade
características do “meio rural”, no qual todo o processo de investigação
adquire sentido. É ainda a partir das acções práticas destinadas a avaliar as
relações sociais que se compreenderão determinadas
alterações/transformações decorrentes do conceito de “rural”. Quanto à
evolução cultural e respectiva transformação profunda cuja urgência se vem
afirmando, por se tratar de uma transformação de “consciência” dos
indivíduos não poderá fazer-se na ausência de um conhecimento rigoroso
das ideologias que lhes são adjacentes.
Se aceitarmos que a caracterização da “natureza” do ideológico é
inseparável da sua articulação com todos os níveis do social,
nomeadamente com o económico que em última instância o determina,
devemos pressupor que só no âmbito de uma análise materialista é possível
construir uma teoria válida. Estruturalmente, a problemática da “acção
humana” não coloca as ideologias como problema. Contudo, o
conhecimento científico ainda não produziu uma rede conceptual adequada
a um conhecimento válido entre circunstâncias ligadas à “base material” das
sociedades e suas “formas de consciência”. Estão por construir os
operadores teóricos que articulem ambas numa matriz de causalidade
estrutural. Assumir em todos os momentos do trabalho de investigação a
intenção metodológica contida na cláusula “determinação em última
instância”, é pois, assumi-la como condição necessária para a definição das
razões teóricas e práticas da razão de ser do campesinato e da sua
economia. Esta máxima marxista como verdadeiro recalcamento da
questão, ligada à articulação de instâncias, pode em benefício e eficácia,
ser utilizada na óptica da reprodução das relações de produção. Ter em

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conta a especificidade do funcionamento do económico é condição
necessária também para construir-mos uma possível teoria sobre as
ideologias. A identificação entre ideologias (sistemas ideológicos) e o
conjunto heterogéneo das manifestações observáveis numa formação social
é um erro, pois estabelece a confusão entre o que é do plano da produção e
o que é do plano da expressão, tratando-se estes de planos
especificamente diferenciados. Como tal, aponta-se para o que é específico
do processo de socialização/instância adicional ou formação social, e
caracteriza-se a o processo de produção (investimento de sentido nas
matérias significantes) impondo a análise de elementos como a matéria
prima, meios técnicos, produtos, etc., que o integram. Porquê definir a
especificidade do trabalho de pesquisa a partir do conhecimento empírico e
confrontá-lo com as ideologias?
Se se admite que as relações sociais do sujeitos bem como as suas
reais condições de existência é, em última instância determinada por estas
ideologias, importa começar por estabelecer todo o tipo de regularidades
sociais que as restituam e demonstrem, distinguindo no mínimo, as que
directamente se reportam ao processo de trabalho e relações de produção
das que se referem ao modo de articulação objectiva das manifestações do
processo de socialização. Para que tal objectivo se cumpra, deverá
privilegiar-se a utilização de técnicas de observação. Não se deve apelar
para as formas de inteligibilidade dos sujeitos, evitar os discursos destes
sobre as suas reais condições de existência. É fundamental restituir a
significação explicita do material no contexto da investigação empírica, esta
é uma técnica da especificidade quantitativa.
Ao procurarmos conhecer e analisar os parâmetros socio-económicos
do campesinato, o que procuramos é a decifração do(s) sistema(s) de
relações que os integram como factores de conjuntura historicamente
referenciados e das estruturas de uma dada configuração do sistema social.
É a partir de uma lógica interna de transformação ou continuidade e sua
plasticidade que este sistema ou sistemas podem ser apreendidos. A
hipótese mais clara reside no modo de colocar o problema a partir da
melhor compreensão dos mecanismos, dos limites e das potencialidades
das diversas vias do desenvolvimento económico. E quais são estas vias?
Parte desta pesquisa debruçou-se sobre alguns aspectos da sócio-
economia rural e suas diferentes demonstrações. A principal razão desta
procura residiu no facto de estes comportamentos económicos não estarem
sujeitos aos princípios universais da racionalidade, tal como a ciência
económica os formula sobretudo nas sociedades complexas modernas.
Encontrou-se uma economia invisível de quantificação, reportando-se às
mútuas ajudas, favores e contrapartidas em géneros ou apenas simbólicas.
Por defeito, para os antropólogos, o económico constituiria um objecto
inadequado face às múltiplas preocupações e teorias antropológicas e

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mesmo assim aqui o considerei como determinação em última instância 8,
apesar de e inversamente ser um dos principais aspectos da pesquisa. Mas
estes dois extremos completam-se uma vez que a “não-antropologização”
do económico, deixa em aberto a pertinência da perspectiva localizada no
espaço mediatizado onde o económico é confrontado com o social, o
político e o simbólico. Assim, a problemática económica é uma problemática
antropológica, a dependência técnica a que estão sujeitas as sociedades
constituem uma preocupação primordial na antropologia. O económico
formulado antropologicamente transcende necessariamente os modelos da
ciência económica e adquire outras dimensões dentro do social. O
aparecimento da antropologia do económico, trouxe uma maior solidez às
ciências sociais na lide com os fenómenos humanos. A grande generalidade
que a antropologia económica “instituiu”, foi a igualdade humana, ou seja, o
alargamento das noções científicas fora dos limites europeus. Esta questão
vem permitir às ciências sociais fazerem referências micro e macro-
espaciais, de analisarem em conjunto várias culturas sugerindo o relativismo
cultural e o desenvolvimento do particularismo histórico. Pois, mesmo que
as culturas pareçam totalmente estranhas umas às outras, são todas
construídas e reproduzidas pelo homem, são todas humanas. Todas as
sociedades humanas passam a ser objecto de estudo. Digamos que
Polanyi9, quando encontrou sociedades com sistemas económicos
institucionalizados em orientações simbólicas e relações de afectividade
tradicional, fundada em laços de parentesco, não encontrou uma sociedade
total, nem sequer um todo organizado, mas acções formais,
convencionadas com a tradição, uma solidariedade de facto. Polanyi
encontrou a articulação entre formas mnemónicas tradicionais
comemoradas e manifestadas de forma institucionalizada, isto é, sob a
forma de rituais.
Tal como entendia Polanyi, o estudo das instituições consideradas
como modelos de classificação das sociedades, a pensar em termos de
desenvolvimento, considerando-se então, em antropologia económica, que
por este prisma todas as sociedades seriam desenvolvidas. O grau de
desenvolvimento medir-se-ia pela eficácia – esta eficácia teria que ser
entendida de acordo com as necessidades do grupo. Assim, poder-se-ia
adiantar que quase todas as sociedades ditas “primitivas” que se conheciam
suprimiam de forma institucionalizada as suas necessidades económicas,
considerando-se até como sociedades de abundância, tal como salientou
Sahlins10. São estas formas institucionalizadas de economia simbólica que
trataremos no decorrer deste trabalho, explorando as áreas das relações
8
Assumir em todos os momentos da investigação a intenção metodológica contida
na cláusula da “determinação em última instância”, será pois, condição necessária
para a definição das “razões de ser” (Marx) das ideologias.
9
Polanyi, K. Trade and Marquet in the Early Empires, The Free Press, Chicago,
1957.
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económicas para podermos compreender e explicar fenómenos ainda
obscuros da prática social no desenvolvimento do mundo rural. Coube à
antropologia anglo-saxónica, particularmente a sua corrente substantivista,
o mérito de ter desenvolvido a maior parte dos conhecimentos relativos aos
sistemas económicos das sociedades agrárias.
Na base da formulação inicial desta investigação, esteve um trabalho
monográfico11 – estudo de caso – realizado numa micro-comunidade aldeã
no Alto Trás-os-Montes. Tinha à partida como objectivo constituir uma
tentativa de análise das práticas culturais e processos simbólicos
associados à emergência de novas estruturas sociais e estratégias políticas
conjuntas com o económico. Tratou-se de um estudo de caso onde se
conseguiu compreender a inter-relação entre componentes culturais e
sociais, dependentes do meio e da relação do camponês com as suas
estratégias de sobrevivência. Depois de alguns estudos concretos nesta
comunidade constatou-se que é nas práticas culturais mais elementares que
se revelam as complexas fracturas sociais resultantes do conflito e da
dinâmica dos comportamentos dos indivíduos. O processo normativo de
funções e integração do grupo e das instituições na comunidade implica um
conjunto de processos simbólicos que insistem na coerência de valores
subjectivos que circulam entre “homem/honra” e “violência/vingança”
associadas à diferença e coerência entre a identidade colectiva e memória
colectiva.
Marcada por uma concepção tematicamente alargada, a antropologia,
aberta ao conjunto de influências teóricas que a caracterizam, é decisiva
para restituir as ambições mais amplas – de natureza ideológica e cultural –
que presidiram à génese e ao desenvolvimento inicial do saber popular. É
fundamental conferir uma determinada ênfase a questões de natureza
etnológica, por detrás das quais se perfila justamente a preocupação em
enraizar a identidade grupal na longa tradição comunitária. A unidade de
pesquisa, na sua referenciação ao espaço, as formas de apropriação social
e os sentidos produzidos pelo grupo, são de particular interesse para abrir
caminho numa reflexão sobre o que podemos designar de dimensão
corrente da pesquisa etnológica que, para facilitar, se desenvolve no quadro
da comunidade local.
Mas qual é a natureza e quais são os contornos específicos desta
comunidade? O que a diferencia e a aproxima de outras comunidades
estudadas? Quais os padrões culturais que as diferenciam? Questões como
estas e muitas outras podem ser colocadas. No entanto é mister dar a
10
Sahlins, M. On the Sociology of Primitive Exchange, in Stone-Age Economics,
Chicago (111), Aldine 1972.
11
Esta monografia que teve como título Camponeses Parcelares, Patrocinato e
Conservadorismo, foi apresentada em Dezembro de 98 como trabalho de
investigação realizado no âmbito de Seminário do curso de Antropologia da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da U.N.L.
13
14
conhecer esta comunidade e sua composição. Este estudo foi feito de perto,
com base num trabalho de recolha directa, e, propõe-se algumas vezes,
trazer para o conhecimento fatias dos real descuradas ou desconhecidas.
Tudo realizado tendo em conta os limites de uma área interdisciplinar, que é
a antropologia e as ciências sociais.

14
15

I – A QUESTÃO METODOLÓGICA

A QUESTÃO METODOLÓGICA

Na segunda metade do século XX, operou-se uma autêntica e profunda


viragem teórica, conceptual e metodológica no domínio da antropologia. Foi

15
16
sobretudo no âmbito do estudo do dinamismo do sistema social e das suas
transformações, numa ruptura total com a tendência dita intelectualista e
meta-antropológica da etnologia francesa, e ainda, com o funcionalismo nos
seus pressupostos a-históricos das necessidades e finalidades.
Apresentaremos aqui as características fundamentais, teóricas e
metodológicas da análise sistémica, cultural e do interaccionismo simbólico.
Não é possível analisar aqui, a grande riqueza e diversidade de
investigações que se desenvolveram e se desenvolvem actualmente, no
domínio da análise sistémica, da análise cultural e da análise dinâmica, no
âmbito da chamada “antropologia da modernidade”. Georges Balandier,
Roger Bastide, Claude Rivière, Edgar Morin, Joel de Rosnay, entre outros
da Escola Francesa; Erving Goffman, Edward Hall, Paul Watzlawick, entre
outros da Escola Americana de Palo Alto, lançaram as bases das teorias
antropológicas da mudança social e do dinamismo da cultura e da
comunicação. Os primeiros autores acentuam a realidade conflitual de
situações de dependência económica, tecnológica e política, estudam as
relações sociais de dominação, ligadas à “situação colonial”, e analisam as
mudanças sociais ligadas à dinâmica própria duma determinada cultura. Os
segundos, numa abordagem pluridisciplinar e numa perspectiva sistémica,
que reúne antropólogos, semiólogos, geneticistas, biólogos, e outros
especialistas das ciências humanas e sociais, analisam as teorias modernas
do interaccionismo simbólico e da comunicação, à luz das noções de
cultura, de grupo social ou de valores sociais, no movimento constante onde
emergem novas informações e acentuadas diferenças.
A antropologia clássica foi dominada pelo paradigma teórico de tipo
holístico e sincrónico, característico da perspectiva funcionalista e
durkeimiana. Transposto do princípio de causalidade da física clássica e
enxertado na tradição positivista durkeimiana, este paradigma assentou no
pressuposto do primado do social em relação aos comportamentos
individuais, que são resultado de constrangimentos impostos pelas
estruturas sociais, estruturadas num tempo diacrónico e relativamente
estável, que lhes dão sentido e significado. Trata-se de um modelo teórico
de pensamento e de um quadro conceptual globalizante, de tipo normativo
que explica as práticas individuais pelas estruturas sociais globais, de
natureza diferente daquelas que por meio de “representações” traduzem a
interiorização do social nas consciências e nos comportamentos individuais.
O seu objectivo consiste em descrever e explicar o funcionamento
específico das estruturas produzidas pelas instituições e reproduzidas pelos
diversos grupos sociais.
Na antropologia contemporânea predomina o paradigma teórico, de
tipo atomístico e diacrónico, consubstanciado na compreensão e na
interpretação da significação e do sentido produzido pelos indivíduos como
actores sociais em interacção. Este modelo, que assenta na tradição do
interaccionismo de G. Simmel e na fenomenologia de A. Schultz, explica a

16
17
produção do social pela acção dos indivíduos que interagem entre si,
através de formas e conteúdos constrangentes de relações sociais,
resultantes da adopção colectiva de inovações ou da adaptação às
modificações operadas no meio ambiente. São privilegiados os conceitos de
“comunicação”, a matriz social da vida moderna, a relatividade das normas
socioculturais e o contexto do meio ambiente ou espaço físico 12.

1 A ANÁLISE SISTÉMICA

O paradigma sistémico afigura-se como um modelo pertinente e


adequado na análise das complexidades e propriedades dinâmicas do
sistema sociocultural, tais como conflitos, desvios, comportamentos
colectivos, poder coercitivo e mudança social. Assim, no campo das
ciências sociais e humanas, a partir dos anos 60, à ideia de teoria geral ou
específica dos sistemas, substituiu-se a ideia de um paradigma sistémico,
cujo fundamento já fora expresso por Pascal: “é tão impossível conhecer as
partes sem o todo, como conhecer o todo sem conhecer as partes”. O
conceito de sistema, que exprime a unidade complexa e o carácter
fenomenal do todo, bem como o complexo de relações entre o todo e as
partes é indissociável de outros conceitos fundamentais, tais como a
interdependência, a totalidade, a organização e a complexidade. A
“interdependência” é o princípio que indica que numa unidade sistémica
qualquer modificação numa das partes ou variáveis tem efeitos directos ou
indirectos, latentes ou manifestos, sobre todas as outras partes
constitutivas. A “totalidade” não é uma soma de elementos, segundo o
paradigma racionalista cartesiano; o sistema é um todo não redutível às
suas partes: o todo é mais que uma forma global, pois implica o
aparecimento de qualidades emergentes que as partes podem não possuir.
O grau de “complexidade” de um sistema depende do número e do tipo de
relações que ligam entre si elementos que o compõem. Estes elementos
são dotados de características principais que se desdobram entre a
organização no espaço (estrutural) e no tempo (funcional), sendo ainda de
acrescentar uma certa estabilidade adjacente a qualquer sistema. No
entanto a “complexidade” caracteriza a originalidade do sistema e mede a
riqueza de informação que contém. Joel de Rosnay propôs uma análise
macroscópica dos sistemas para se apreender esta complexidade. Todo o
sistema está confrontado com alguns problemas fundamentais: a sua
relação com o meio ambiente, a sua organização hierárquica, a sua
conservação e a necessidade de variação. Cada sistema tem o seu
12
Nesta relação homem/meio, ver a propósito a obra de P. Watzlawick, L’invention
de la réalité, Paris, Seuil, 1988, pp. 19-43.
17
18
ambiente próprio, constituído pelo conjunto de subsistemas com os quais se
relaciona. As interacções entre o sistema e o ambiente (que pode ser o
ecossistema) são representadas como inputs ou outputs que podem ser
constituídos por matéria, energia e informação. Os sistemas estão
organizados internamente segundo uma certa hierarquia, no entanto a partir
de um sistema fechado (aquele que se pretende apresentar), as
inalterações entre unidade sistémica e unidade ambiental não apresentam,
em função do nível de investigação, qualquer significado importante.

Paradigma sistémico

SISTEMA SISTEMA
POLÍTICO EMPÍRICO
(social - Dinâmica dos (habitus e
sistemas meios de
ideológico) produção)

SISTEMA DE

REPRESENTA
ÇÕES
(simbólico e
religião)

Em meu entender, a abordagem sistémica não é uma teoria, ou seja,


um conjunto logicamente coerente de proposições explicativas fundadas em
alguns postulados fundamentais e não falsificáveis ( no sentido popperiano
do termo) pela experiência metódica. Não é igualmente um paradigma
teórico, ou seja, um conjunto de proposições construídas para fundamentar
um modelo de explicações, enxertado na tradição positivista durkeimiana e
transposto para o princípio da causalidade da física clássica.

18
19
Ela é aquilo a que Raymond Boudon chama de paradigma
conceptual13, e não apenas como indica este autor, um vocabulário de
enunciação de proposições explicativas, mas também, um conjunto de
instrumentos operatórios para analisar os dinamismos socioculturais de uma
sociedade complexa, simplificando a análise dos seus mecanismos sem
reduzir os diferentes processos aleatórios e inerentes.
Ao focar uma análise sistémica, no nosso campo de investigação,
temos que a enunciar como parte metodológica e a partir deste princípio
podemos considerar que todo o conjunto social é constituído pelo
relacionamento interaccional de três sistemas. Por sistema entendemos
“todo o objecto complexo, formado por elementos componentes distintos
ligados entre si por um determinado número de relações.” 14 Estes três
sistemas são: o sistema empírico, o sistema político e o sistema de
representações. O primeiro, compreende a organização por parte do grupo
local, do ecossitema, dos recursos, da população, das necessidades para a
sua sobrevivência; abrangendo os processos pelos quais uma população se
mantém em vida (modus operandi) e se reproduz, os processos pelos quais
habita, dispõe e ordena a terra conjuntamente com outras populações e, os
processos pelo quais produz a troca de bens. O segundo, o sistema político,
define e coordena as oposições e a cooperação na comunidade controlando
o sistema empírico de modo que evolua segundo estádios ideologicamente
preferidos. Na ligação sempre problemática entre estas duas ordens de
realidade, ou entre dois sistemas, é imaginado um terceiro sistema de
representações, que compreende os processos culturais (mais
particularmente, e segundo os casos, os processos míticos, místicos,
religiosos e simbólicos), pelos quais a comunidade ou grupo assume os
outros dois sistemas.
Estes três sistemas relativamente autónomos no sentido de que são
capazes de auto-regulação, tendo as suas leis próprias, não são essências
independentes porque estão sempre em interacção na totalidade concreta
do grupo ou comunidade. Não se estabelece à priori uma hierarquia entre
estes três sistemas. Segundo os momentos históricos ou segundo os
momentos de análise, um sistema regula o funcionamento dos outros e
coordena as suas interacções complexas. É deste jogo de interacções entre
os sistemas constitutivos do real comunitário (dinâmica endógena) e entre
estes e os da sociedade tradicional (dinâmica exógena integradora), que
resulta o invólucro do social.15
13
Boudon, R. Notes sur la notion de theorie dans les sciences sociales, in archives
europeénes de sociologie, 11,2, 1970, pp. 203-219.
14
Bucley, W. A Sociologia e a Moderna Teoria dos Sistemas, S. Paulo, Cultrix,
1976, pp. 75 e seg.
15
A este propósito ver: Bastide, Roger La causalité externe et la causalité interne
dans les explications sociologiques, in cahiers internationaux de sociologie, 21,
1956, pp. 77-99.
19
20
Numa primeira etapa, tentaremos reconstituir graças aos dados
históricos sobre a comunidade, esta dinâmica endógena, ou seja, as
relações tradicionais dos três sistemas apoiados em relações de
clientelismo e patrocinato (relações na vertical). Numa segunda etapa,
examina-se a dinâmica exógena, as modificações ou estagnações que
afectaram estes sistemas nas relações da sociedade tradicional com
expoente máximo no conservadorismo. Por fim, o paradigma conceptual do
modelo sistémico, instrumento que nos ajudará no decorrer desta
abordagem, para ser operatório, deve justificar os dinamismos socioculturais
de uma comunidade activa (que funciona), estruturada e evolutiva, bem
como a sua inter-relação com o meio físico envolvente e suas finalidades.
Este modelo, constitui um ponto de partida da investigação e não se
recorrerá a uma explicação para a ele adoptar uma realidade social. Este
instrumento, é dialecticamente confrontado com a realidade social para o
questionamento desta mesma realidade, a fim de se poder ter um
conhecimento, pelo menos relativo, cuja explicação não seja distorção e
cuja a acção não seja manifestação.
Por paradoxal que pareça, e numa alusão ao conhecimento conceptual
da comunidade científica, o modelo aqui apresentado, afasta-se do modelo
da teoria geral dos sistemas apresentado por L. Von Bertalenffy 16. E isto
porque, este cientista, continua amarrado e não se afasta do formalismo e
determinismo clássico aliado à complexidade de um sistema linear e causal.
Do mesmo modo, os modelos funcionalistas definem a função do sistema,
procurando detectar os princípios do seu funcionamento, o “como”, a
explicação do exterior ao nível das formas directamente observáveis. Refuto
à partida esta teoria, considero estes princípios inadequados para o
tratamento, análise e interpretação da nossa problemática.

16
Bertalenffy, L. Von General sistem theory, Nova Iorque, Braziller, 1968.
20
21

II - IDENTIDADES SOCIO-TERRITORIAIS

IDENTIDADES SOCIOTERRITORIAIS

Abstraindo-nos de eventuais fenómenos de sincretismo religioso que


possam ter estado na origem de características estruturais precisas da
sociedade, tais como as interacções, tanto no plano interno

21
22
(endógeno/horizontal), como no plano externo (exógeno/vertical), dos
processos de morfogenese social e cultural, nos quais aparecem fenómenos
correspondentes ao fecho das sociedades locais e as suas respectivas
identidades particularistas, o princípio estrutural de integração que elas
subentendem, é aquele que se pode designar por princípio de identidade,
por oposição ao princípio de correspondência que predomina na
estruturação das sociedades industriais modernas.
As interacções endógenas, interregionais, a complexificação do
universo sociocultural envolvente e a incorporação de elementos culturais
descontextualizados vem contribuir para a diferenciação das micro-
sociedades que compõem os diferentes espaços regionais. O metabolismo
social e cultural determina a centralidade das relações sociais fundadas
sobre o interconhecimento e o pessoalismo (relações em situação de frente
a frente), a que subjazem processos precisos de cognição e de assimilação
da complexidade do universo envolvente. Uma das manifestações mais
visíveis destes fenómenos de morfogenese cultural e social é a permanente
reactivação da cultura oral no espaço rural. A imbricação da prática e do
conhecimento, vinculada pela oralidade e pela apreensão visual, traduz o
tipo de mediações cognitivo-relacionais que operam a internalização dos
elementos exógenos nas diferentes culturas tradicionais locais constitutivas
da sociedade. Melhor ainda, a oralidade enquanto medium privilegiado de
cognição e de reconhecimento recíproco dos actores sociais, não constitui
um fenómeno de recessão cultural, antes pelo contrário, vista pelo lado das
funções interculturais que ela preenche, pode ser considerada como um dos
dispositivos comunicacionais fundamentais dos processos de acomodação,
de assimilação e de internalização às alteridades que emergem dos próprios
processos de diferenciação sociocultural, bem como o género e a
intensidade das trocas simbólicas que ela subentende.
A segmentação e heterogeneidade dos tecidos sociais territorializados,
identificados como unidades socio-espaciais, indica uma constitucionalidade
sociocultural específica, caracterizada pela autonomia relativa que as
comunidades ou grupos locais possuem em relação à sociedade
envolvente, sendo esta definida pela interacção das mesmas. Transpostos
num outro plano, esses fenómenos subentendem também a
constitucionalidade socio-política de tipo unionista, dotada de uma
capacidade extraordinária de resistência histórica. Orientadas por este
princípio estrutural de identidade no qual predominam os tópicos de
proximidade, de similariedade e de analogia, as ordens institucionais
tendem a imbricar-se umas nas outras à maneira da imbricação do
pensamento e da acção que ocorre nas culturas orais. Nas sociedades
tradicionais de espaços múltiplos, das quais a sociedade portuguesa é um
bom exemplo, o princípio estrutural da correspondência, que compreende a
diferenciação das instituições, aparece em posição de subordinação ao
princípio de identidade. A articulação dos dois princípios estabelecida por

22
23
uma relação de ordem, faz com que a integração social se processe em
diferenciação socio-territorial, a partir da qual as instituições se diferenciam
por produções de espaços socioculturais distintos, cada qual apresentando
a sua própria configuração institucional relativamente indiferenciada e, por
conseguinte, onde persistem tendências para a não diversificação das
actividades económicas.
Na medida em que este aspecto se prende directamente com a lógica
de evolução do sistema social, designadamente através das separações
institucionalizadas entre esferas de actividade económica e esferas da vida,
importa explicitá-lo para fazer aparecer aquilo que designo por modus
vivendi do campesinato. Na sociedade portuguesa tradicional, pluri-espacial
e pluri-cultural, são os mecanismos de regulação da vida social que estão
na origem do facto social que nos interessa isolar. Ao invés do que acontece
nas sociedades liberais, nas quais a lei do mais forte comanda a lógica de
evolução do sistema social. Nas sociedades de espaços culturais múltiplos
e territorializados, representadas no nosso caso, essa lógica evolutiva,
obedece à lei do mais fraco, isto é, às possibilidades afectivas de que
dispõem os grupos sociais mais desprovidos de recursos para penhorar os
grupos mais poderosos e arquitectar estratégias de defesa apoiadas em
relações de dominação e exploração. Neste sentido, quanto mais importante
for a componente oral da comunicação intercultural, mais a lei do mais fraco
condiciona a estruturação e a evolução do sistema social. Dado que, a
oralidade implica para os membros das comunidades que a subentendem
um estar e um ir juntos ou, como se prefira, a participação de todos na
construção social do destino colectivo. Uma outra manifestação desses
fenómenos de morfogenese social e cultural prende-se com as formas de
aprendizagem e com as modalidades de difusão do saber fazer e com as
técnicas nas sociedades tradicionais. Os espaços culturais delimitados e
diferenciados por saberes transmitidos pela expressividade oral e gestual
constituem-se em simbiose com as tradições das diversas componentes
socio-territoriais da sociedade de espaços múltiplos, enquanto dispositivos
de defesa de identidades colectivas territorializadas, cujas respectivas
coesões internas são permanentemente reactivadas por reacção aos efeitos
disruptores da proximidade da sociedade envolvente. Na mobilização
interna dos recursos cognitivo-relacionais, efectuada nessas crispações
defensivas, esses grupos de identidade adquirem uma excepcional
plasticidade adaptativa. No entanto, a defesa constante das identidades
colectivas locais que constituem o mosaico sociocultural, representa
também a esterilização de importantes potencialidades de inovação e de
desenvolvimento endógeno, a qual reverte em atraso e em
subdesenvolvimento.
Do lado da agricultura, a especulação sobre os solos provocada pela
extensão da área geográfica, o recurso estratégico da agricultura tradicional
familiar, colocou insolúveis problemas de gestão às explorações agrícolas,

23
24
os quais obstam à modernização das mesmas. O espaço físico rural,
representa uma extensão sujeita a fragmentações. Os terrenos de cultura,
as explorações, as próprias aldeias, as parcelas, os cantões, as áreas de
produção, as zonas de atracção, fazem parte dessas segmentações.

A NATUREZA INTERPRETATIVA DA CIÊNCIA ANTROPOLÓGICA

A aventura etnográfica na antropologia consiste essencialmente na


“ampliação do universo do discurso humano” 17. Na investigação etnográfica,
o antropólogo mergulha num contexto cultural, num sistema de signos já
interpretados pelos observados, mas reinterpretáveis pelo observador. O
objecto de estudo antropológico é uma determinada cultura, mas o estudo
desse objecto é uma outra coisa bem distinta, é uma interpretação de
interpretações. O ponto central da análise antropológica localiza-se na
acção social onde se articula a “lógica informal da vida real” 18perspassada
pelas várias formas culturais e as diferentes significações dos factos
observados. A coerência de uma acção ou de uma narrativa é uma coisa e
o significado contido nessa acção ou narrativa é outro. Quando a
interpretação de uma história, de um acontecimento, de um texto, de um
ritual, etc., nos conduz a qualquer outro lugar que não seja a sua
significação, o trabalho de interpretação falha o seu alvo. O que realmente
interessa ao antropólogo é fixar ou inscrever o discurso social relatado em
factos ou em palavras, o dito, o enunciado. A descrição etnográfica
interpretativa é microscópica, circunscrita, particular, mas está aberta a
interpretações mais amplas e a questões mais abstratas. Geertz admite que
a passagem de um contexto doméstico, de um concreto espacio-temporal,
para áreas, épocas e questões de dimensão superior, constitui sempre um
importante problema metodológico-científico da antropologia. A solução que
o modelo microcósmico sustenta baseia-se na ideia de que a essência das
grandes questões, das grandes coisas, sociedades ou culturas nacionais,
civilizações, religiões ou identidades, se encontra em tamanho reduzido nas
pequenas aldeias. O equívoco deste pressuposto, segundo Geertz, reside
na confusão que se estabeleceu entre “o local de estudo e o objecto de
estudo”19. Os antropólogos não estudam locais, aldeias ou tribos, os
antropólogos estudam em locais, aldeias e tribos, a vida sociocultural que
decorre nesses locais, aldeias e tribos. Não se pretende extrapolar os
conhecimentos obtidos numa aldeia para o resto de um país ou para um
continente, ou tão pouco, generalizá-lo para a humanidade. O antropólogo

17
Yañez-Casal, Adolfo Para uma Questão Epistemológica do Discurso e da Prática
Antropológica, Ed. Cosmos, Antropologia, Lisboa, 1996.
18
Idem.
19
Geertz, Clifford La Interpretation de las Culturas, Ed. Gedisa, Barcelona, 1992.
24
25
pode abordar os mesmos temas que a história, a economia ou a sociologia,
mas fá-lo de ópticas diferentes, fá-lo a partir de conhecimentos
extraordinariamente abundantes sobre questões extremamente pequenas,
embora de essência semelhante. Questões relativas ao poder, à violência,
ao prestígio, ao trabalho ou à sexualidade, são abordadas pelo cientista de
forma particularizada, existencial, concreta e localizada. No entanto, a
apologia do concreto, do micro, não elimina – sublinha Geertz – o problema
metodológico do universal.
O universal, o geral, o global continua a ser objecto da antropologia,
como o é de qualquer ciência.
A vocação essencial da antropologia interpretativa não é dar respostas
às nossas questões mais profundas, mas a de registar densamente o que
os outros dizem sobre si mesmos e o que nós, antropólogos, queremos
dizer sobre eles. A perspectiva interpretativa é complexa, embora admita
formulações aparentemente simples. Trata-se de ter acesso ao mundo
conceptual dos homens com a finalidade de poder conversar com eles. Os
chamados relatos de vida que designam as histórias de uma vida, tal como
são contadas pelos sujeitos que as vivem, apresentam-se como relatos de
práticas limitadas no tempo, sequências de momentos inseridos na
cronologia pessoal; entrevistas biográficas que implicam uma visão geral da
vida do narrador; mini-histórias de vida, auto-apresentações, reconstruções
biográficas com composição das informações por parte do analista,
autobiografias desprovidas da ritualização da transmissão oral exigida pelo
ouvinte; histórias de vida social cujo relato comporta a comparação e
hierarquização das instituições e a avaliação dos acontecimentos feita por
narradores que assumem este papel em função de determinados valores
sociais e culturais. Uma das características fundamentais dos relatos ou
histórias de vida social consiste na tomada de consciência do devir do
narrador a partir de uma experiência que se julga decisiva e que provocou
uma mudança sentida. Esta experiência decisiva permite ao narrador
comparar e avaliar os momentos da sua vida à luz da sua realização
pessoal, bem como ordenar os elementos que ao analista possam parecer
díspares e multiformes.
Uma outra característica refere-se à ritualização da transmissão do
relato, que permite a afirmação do devir individual e a possibilidade de o
exprimir socialmente. O relato é introduzido por uma auto-apresentação das
linhas directivas a ser desenvolvidas nas entrevistas subsequentes e é
dirigido pelo próprio narrador, sem qualquer intervenção importante por
parte do analista. Este tipo de relato caracteriza-se ainda pela forma de
participação colectiva de familiares, ascendentes, descendentes e dos
amigos, que são a concretização das relações que estão a ser relatadas.
Assim, o aspecto mais interessante na análise biográfica é a “possibilidade
que os narradores têm de reflectir, de fazer o auto-exame das suas próprias

25
26
práticas”.20 Ainda na sequência deste tipo de análise, podemos referir a
etnobiografia, cujo objectivo consiste na investigação de modelos culturais
colectivos, e não apenas das aventuras individuais. Isto é, por meio da visão
crítica das relações entre membros do grupo e da relativização das
informações, através de entrevistas paralelas. A perspectiva etnobiográfica
implica a restituição da memória social e dos modelos culturais a partir dos
testemunhos recolhidos; assim, pretende-se chegar por meio dos
informadores, ao conhecimento dos modos de vida e de pensamento que
caracterizam um determinado grupo. A forma privilegiada da etnobiografia
consiste nos relatos de vida acumulados em que a temática, escolhida à
partida, restringe os relatos a uma escolha estratégica de determinados
fenómenos. Esta técnica implica a necessidade absoluta do controlo da
informação por meio da análise crítica dos testemunhos, da investigação
documental e análises de conteúdo. Quer nas autobiografias, quer nos
relatos de vida etnográficos, as questões de interpretação dos dados
obtidos são de âmbito psicológico e de âmbito social. É através da duração
das entrevistas e da recorrência das informações concretas e multiformes
que se constrói a estrutura implícita do relato indicada pelos factos
constantes. A abundância e recorrência de informações reenvia as escolhas
sociais, isto porque, as numerosas referências à vida quotidiana permitem
evidenciar não apenas as características pessoais, como também os modos
de vida e os valores sociais e culturais transmitidos pelos ancestrais e
contemporâneos que são avalizados pela vida quotidiana. A primeira forma
de verificação da unidade ideológica dos relatos de vida opera-se no interior
dos próprios relatos. Assim, por meio da coerência renovada das escolhas,
cujas condições são especificadas pelo narrador tendo como base a
coerência da memória que reproduz, de múltiplas e diferentes formas, opta
pelos mesmos critérios de escolha. A segunda forma de verificação é
realizada pelas entrevistas com os contemporâneos do narrador, que
permitem uma convergência que reenvia directamente ao sistema de
valores, sempre que surgem as mesmas escolhas em situações diferentes
mas igualmente especificadas; os relatos ilustram as linhas de força do
referente social que é o mesmo. A observação participante constitui uma
terceira forma de verificação.
A técnica da análise biográfica como instrumento privilegiado de
recolha de dados no trabalho de campo, é muito antiga e diversificada na
antropologia. É de salientar a longa tradição da sua utilização na escola de
Chicago, sobretudo na interpretação de fenómenos de desvio sociocultural e
a escola francesa com Marcel Mauss. No seu manual de etnografia, refere
que este método deu excelentes resultados. Foi seguido por Lévi-Strauss,
que refere que o principal mérito dos trabalhos baseados nas autobiografias
consiste na “função de catarse”, porque permitem resolver, por eliminação,
20
D. Desmarais e p. Grell, Les récits de Vie, Méthode et Trajectoires Types,
Montreal, Les Editions Saint-Martin, 1986, p.178.
26
27
numerosos problemas resultantes da aparência da realidade inerente à
artificialidade do observador externo. Roger Bastide inclusive, vai mais
longe ao afirmar que este método é fundamental para uma melhor
compreensão do funcionamento da organização social e dos seus aspectos
subjectivos. As vantagens incidem na compreensão da interacção dos
sistemas, evitando um recorte arbitrário da realidade e minimização dos
efeitos da subjectividade do observador que tem acesso aos significantes do
observado.

COMUNIDADE, ESPAÇO E LOCALIDADE

A sociedade rural tem sido um referente por excelência dos conceitos


de comunidade. Os pequenos conjuntos sociais unidos por solidariedades
em que mesmo a existência de uma hierarquia social implicaria
reciprocidades entre os mais poderosos e os que não detinham poder.
Trata-se de universos sociais marcados pelo conhecimento mútuo e pela
importância dos laços de parentesco, pela afinidade em termos de modo de
vida da maioria – é um mundo de uma autoridade legitimada pela tradição.
O conceito de comunidade desenvolveu-se num contexto dicotómico
em que o mundo rural é visto como símbolo fundamental de comunidade,
perante um tipo de sociedade – produzido pela transformação política
iniciada com a mudança revolucionária e o liberalismo, a industrialização e o
capitalismo – que aparece como o seu contrário. Podemos detectar a
presença de um contraste, que não coincide obviamente com a
generalização simplificadora que acabámos de fazer, mas que remete para
alguns dos seus traços. Tonnies21, terá sido, de todos os clássicos da
sociologia, aquele que mais terá influenciado os estudos de comunidades e
a dicotomia que estabeleceu entre gemeinschaft (comunidade) e
gesellschaft (associação), frequentemente abordada em outros estudos de
terreno. Na comunidade de que cita como exemplos os agregados
familiares e os engendrados pela vizinhança, vê-se um grupo a que se
pertence naturalmente. Para este sociólogo, “a possibilidade da comunidade
apoia-se em primeiro lugar, na estreiteza da relação consanguínea e na
mistura de sangue. Em segundo lugar, na proximidade física e, por último –
para os seres humanos – na proximidade intelectual.” Através de
caracterizações como as mencionadas e por intermédio de uma
representação mais vaga da sociedade rural tradicional, a que se alude,
veio a delinear-se uma imagem do mundo rural como universo de
comunidades, sendo estas definidas também, por exemplo, pela pequena
dimensão, homogeneidade, auto-suficiência em termos de satisfação das
necessidades básicas reprodutivas dos que as compõem - consciência de

21
Tonnies, Ferdinand (trad. Castelhana), Comunidad y Asociación, Barcelona,
Ediciones Península, 1979.
27
28
uma identidade própria.22Esta imagem foi questionada em tempos mais
recentes no sentido de que as comunidades não eram propriamente
estruturas sociais concretas, antes construções simbólicas de identidade,
definidoras de um “nós”.23
A classe é a base da comunidade. Este conceito permite o
estabelecimento de uma distinção entre localidade e comunidade. Com
efeito, se estas podem em certos contextos ter um certo grau de
coincidência, isto sempre que haja um determinado grau de homogeneidade
social, a maior parte das vezes tal está longe de ocorrer. A contiguidade
espacial não implica relacionamento social. Pelo contrário, no território de
uma qualquer povoação podemos encontrar limites e forte segregação em
termos sociais ou socio-espaciais. Neste entendimento de comunidade
figura o espaço. Simplesmente, não se trata do mesmo espaço para todos
os que habitam uma determinada localidade. Enquanto para alguns o
essencial do seu relacionamento pode decorrer na localidade e localidades
vizinhas, para outros, emigrantes e sobretudo membros de classes
dominantes, o espaço da sua prática social pode ser o do estado-nação ou
ir além das fronteiras nacionais.
O espaço e o tempo são elementos constitutivos da acção social.
Qualquer tipo de relacionamento tem um carácter espacio-temporal. Um
lugar não é apenas um meio, um suporte de vida humana, uma entidade
separada do que existe nele. O espaço, não sendo um determinante
absoluto, coloca pelas suas características físicas ou naturais,
constrangimentos, ao mesmo tempo que oferece determinadas
possibilidades à actividade humana. É parte da sua vida. Uma vida
estruturada por ritmos temporais, associados à distribuição espacial das
diversas actividades sociais. Espaço e tempo, são constitutivos das
estruturas e práticas sociais do passado que se revelam na memória e nos
hábitos, existem sob a forma incorporada. Espaço e o tempo têm sido
trabalhados na pesquisa das sociedades desde os primórdios das ciências
sociais e humanas. Não podemos esquecer que o impacte da geografia
humana, com a sua atenção sobre as paisagens e/ou territórios moldados
pela acção humana no tempo, nem uma historiografia construída em íntimo
convívio com a mesma – em particular, a conhecida Escola dos Annales –
que insistiu no carácter histórico e construído dos espaços e no modo como
estes se relacionavam com a actividade humana. Na antropologia e na
sociologia, também é discernível alguma atenção a estas dimensões da vida
social.24Porém, mais recentemente tem vindo a conferir-se uma atenção
22
Esta caracterização é de Robert Redfield, produzida em “The Little Community”,
University of Chicago Press, 1973, pag.4.
23
Cohen, A. P. The Symbólic Constrution of Community, Chichester e Londres, Ellis
Horwood e Tavistock, 1985.
24
Estas considerações não assentam propriamente numa leitura exaustiva destas
ciências sociais. Baseiam-se fundamentalmente na ponderação de obras como as dos
28
29
específica à articulação entre espacialidade e temporalidade e o seu papel
constitutivo e regulador da vida social. 25As diferenças sociais inscritas na
estruturação do território, são correlativas de uma distribuição espacio-
temporal dos grupos sociais, daquilo a que poderemos chamar a sua
“regionalização”, que contempla distinções entre zonas de trabalho e zonas
de lazer ou repouso, zonas públicas e privadas, com as quais os diferentes
grupos locais mantêm relações desiguais. Por exemplo, em completa
segregação face aos restantes, os grandes proprietários, não frequentam os
lugares comuns: largos, raramente a via pública, lugares de socialização,
etc., onde podemos com facilidade encontrar outros habitantes, em
particular os mais pobres. O espaço público continua, contudo a ter um
papel determinante e essencial na sociabilidade dos grupos rurais. Aí se
encontram, cruzando os seus itinerários particulares.

O CONCEITO DE COMUNIDADE

A pertinência de um conceito relacional de comunidade poderá servir


para denotar o relacionamento específico entre os membros de uma dada
colectividade social, ligada por laços múltiplos de importância crucial para os
que nela se inserem, de grande intensidade e que se sobrepõem. O vizinho
pode ser ao mesmo tempo o parente, o amigo, o companheiro de trabalho.
Estas redes de relações são formadas pelos que têm a mesma posição de
classe ou posições próximas no espaço social. Comunidade neste sentido
distingue-se da noção de local, bem como da realidade concreta da
localidade, pois só se aplica a componentes essenciais do sistema social
local, como as classes dominantes. Embora o conceito de comunidade
pressuponha relações dotadas de uma dada instabilidade socio-temporal e
um determinado território, procura designar uma realidade com história
própria, sujeita a dinâmicas de sentido oposto, centrípedas e centrífugas.
Entre as primeiras estarão a afinidade ou proximidade em termos socio-
espaciais, propiciadas por posições sociais idênticas ou não muito afastadas
por hábitos partilhados, actos de solideriedade, serviços prestados, partilhar

historiadores Lucien Fébvre, La Terre et L’Evolution Humaine, Paris, Editions


Albin Michel, 1970; e Marc Bloch, Les Caractères Originaux de L’Histoire
RuraleFrancaise, Paris, Armand Colin, 1968.
25
Anthony Giddens, tem sido uma figura saliente nesta teorização, envolvendo
nomeadamente na sua reflexão os contributos da geografia no tempo. A este
propósito ver: A Comtemporary Critique of Historical Materialism, Londres, The
Macmillan Press, 1981; “Time, Space and Regionalization”, in The Constitution of
Society, Cambridge, Polity Press, 1987, pp. 110-161 e “Time and Social
Organization”, in Social Theory and Modern Sociology, Cambridge, Polity Press,
1987, pp. 140-165.
29
30
das mútuas venturas e desventuras quotidianas. São apenas exemplos de
gestos e atitudes que se podem observar e que implicam uma reciprocidade
diária e constante, que sustenta o relacionamento de longa duração. Mas,
devem inserir-se entre esses factores o peso da opinião pública, com uma
força particular conferida pela proximidade espacial, tão frequente no
discurso crítico da taberna ou café, que constitui um factor de conformismo,
constrangendo a um determinado tipo de atitudes, e que é sentido como
opressor por todos os que se sentem atingidos pela mesma. Entre as
segundas dinâmicas encontra-se o acentuar de clivagens ao nível das
trajectórias sociais, por vezes entre os descendentes de um mesmo casal,
as divergências de opiniões, as desigualdades de classe, as diferenças
entre estilos de vida, as assimetrias em termos de poder – as clivagens
ligadas à dominação social e simbólica inscrita no espaço e nos discursos
sobre o mesmo, ou seja, o agudizar de conflitos inerentes a qualquer
colectivo.
Este sentido de comunidade tem em conta alguns dados da tradição
sociológica, cuja validade heurística permanece. Apenas a título de exemplo
da pertinência de formulações dos “clássicos”, recordem-se as reflexões do
autor que exerce provavelmente a maior influência na teorização da
comunidade, o já referenciado Tonnies. As suas observações sobre o papel
da memória, do hábito e do costume como características das comunidades
afiguram-se ainda hoje fecundas. O que permite falar em comunidade são
as relações sustentadas pelos que cresceram, se formaram e se
conheceram num mesmo espaço. Aqueles que aprenderam a trabalhar o
campo juntos, que frequentaram a mesma escola, a mesma igreja, as
mesmas tabernas, bailes e festas. Aqui, encontraram as suas parceiras
conjugais e aqui decorreram as suas vidas. Estas relações reproduzem-se
nos contactos repetidos do quotidiano, na taberna, nas festas, na memória.
Nos seus espaços da sociedade, no apego a um discurso identitário que a
condição social liga, uma situação local como sucede na representação que
a maioria constroi de si.

30
31

III - O PARENTESCO

31
32
O DOMÍNIO DO PARENTESCO

Desde o início da disciplina, os estudos do parentesco constituem um


domínio privilegiado da investigação etnológica. Os primeiros trabalhos
existem há mais de um século: Primitive Marriage de J. MacLennon, que
data de 1863; Ancien Law de H. Maine em 1861 e o célebre Systems of
Consanguinity and Affinity of the Human Family de Morgan em 1871. Se os
estudos feitos por estes autores mostraram os seus limites, a importância
concedida ao parentesco não cessou de se afirmar e alimentar uma
abundante produção etnográfica e teórica. R. Fox, no prefácio da sua obra
Anthropologie de la Parenté, escreve: “O parentesco está para a
antropologia, assim como a lógica para a filosofia ou o estudo do nu para as
artes plásticas: a disciplina base.” (Fox, 1972). Os estudos do parentesco
afirmam-se como um exercício obrigatório a todas as démarches
etnológicas, sendo indispensável nos estudos do terreno, incontornável na
formação e necessários para a aquisição de lettres de noblesse em
antropologia.
Mas o que é a família? As relações que prevalecem são naturais,
apenas porque biológicas? O lugar que cada membro ocupa e os seus
direitos podem ser postos em causa? Sabe-se bem, pela história social, que
na sociedade burguesa do séc. XIX, algumas questões forma alvo de
debate. Os juristas foram os primeiros a avançar com as análises e estudos
da família dentro da estrutura social e sua função económica. As
interrogações e pertinências, iam justificando o interesse que a disciplina
tinha em relação à família, pois, tratava-se de um domínio onde se
observava precisamente a maior articulação entre a natureza e a cultura, o
biológico e o social. Com efeito, as relações de parentesco aparecem à luz
do pensamento como relações naturais, seguindo um modelo de
reprodução específica: as relações pais/filhos, por exemplo, é considerada
nas sociedades como algo de fisiológico. Ora, a família acima de tudo é
uma instituição social, ela determina os direitos e status, rege a transmissão
de bens, assegura uma parte da socialização dos indivíduos e contribui
poderosamente para a reprodução da ordem social.
Efectuando uma retrospectiva pelas sociedades exóticas, os primeiros
etnólogos foram levados a reflectir mais além. Não raro, ou seja, é
frequente, dentro das sociedades tradicionais – o caso dos trobiands de B.
Malinowski – o papel biológico do pai dentro da procriação não é posto em
causa, bem como o progenitor não tem uma relação privilegiada com o seu
filho. O papel social do pai pode ser assegurado por outra pessoa, por
exemplo o irmão da mãe: o tio. Os primeiros etnólogos eram ignorantes
quanto à concepção de progenitor nas sociedades indígenas, bem como
existia uma lacuna acerca do papel de um parceiro masculino dentro da
procriação. No entanto, quando a antropologia soube subverter os seus
preconceitos sobre o atraso dos selvagens, veio constatar que as

32
33
representações a conduziam a uma lógica simbólica e não a um qualquer
defeito do conhecimento humano.
O universo social é submisso a uma classificação que distingue as
mulheres casadoiras daquelas que não o são, os grupos de parentesco
(consanguíneos), dos grupos de alianças (afins). Mas estas categorias não
obedecem a uma restrita determinação biológica, elas conhecem uma
variação infinita nas sociedades e sistemas de parentesco demonstrando as
realizações particulares da organização das relações sociais. Esta
surpreendente diversidade faz-se acompanhar de uma demonstração
constante: a importância nas sociedades tradicionais das alianças nas
relações de parentesco. Contrariamente às sociedades modernas, onde o
círculo de relações familiares, muito reduzidas, se completam por um
conjunto de relações amigáveis, profissionais, onde o interesse não repousa
em nada sobre a proximidade genealógica, o indivíduo nas sociedades
tradicionais define-se essencialmente pelo lugar que ocupa num sistema de
parentesco, que vai determinar ao mesmo tempo o seu estatuto e o seu
papel e por fim as suas obrigações. Este processo não se estende aos
grupos de vizinhança que não são identificados em termos genealógicos.
Um mito muito divulgado entre as populações montanhosas do Sul da China
e do Norte da Indochina, põe em comum a natureza dos diversos grupos
étnicos e clãs, como unidade de base de parentesco: de uma abóbora
emergem sucessivamente juntas etnias conhecidas, depois, os diferentes
clãs presentes na sociedade.
Não podemos pensar o social sem interrogar ou por em causa as
estruturas de parentesco. O interesse dos etnólogos é também o reflexo do
lugar concedido ao parentesco nas sociedades tradicionais. Assim
constituiu-se um domínio de estudo, onde a preocupação de comparar, de
generalizar e formalizar foi posta na etnologia como em mais nenhuma
ciência. O estudo do parentesco engloba a estruturação de grupos sociais
definidos pela proximidade genealógica, real ou fictícia, os direitos e
deveres inerentes a cada um em função do grupo de pertença e as relações
dos grupos entre eles. Enfim, a reprodução desses grupos (regras
matrimoniais e transmissão de direitos e obrigações). Pode acentuar-se
ainda mais a análise de sistemas de parentesco, como um conjunto das
regras apreendidas, entre outras, através das nomenclaturas ou conjunturas
ou comportamentos pré-definidos que organizam o universo do social em
termos de parentesco, ou ainda sobre a incidência dessas classificações
sociais sobre a vida económica (divisão do trabalho, repartição de bens
sobre uma base parental) ou religiosa. Mesmo assim, o parentesco não se
define como um domínio distinto da vida social. Paradoxalmente, o espaço
do parentesco no estudo das sociedades tradicionais produziu uma
dissolução do seu próprio conceito. “Eu não nego a utilidade da palavra
parentesco. Desejo ainda menos, reformular o vocabulário da nossa
profissão restringindo a definição do termo ou em abençoar o seu uso.

33
34
Limito-me a dizer que ele não designa uma classe distinta de fenómenos
nem uma teoria específica (...), para falar claro, o parentesco não existe,
porque não cabe em nenhuma teoria de parentesco.” (Needham, 1977).
Esta tomada de posição radical de R. Needham (partilhada à sua maneira
por Edmund Leach), demonstra claramente a heterogeneidade das práticas
abrangidas pelos conceitos do parentesco, em reconhecimento do seu uso
antropológico. Assim, vamos debruçarmo-nos em limitar e definir alguns dos
seus conceitos e aspectos mais pertinentes. O termo filiação, designa a
aliança que um indivíduo tem com os seus pais biológicos ou supostos. O
grupo de filiação, define-se como um conjunto de consanguíneos ( ou
culturalmente identificados como tal) que se reclamam de um ancestral
comum; personagem real (a linhagem), ou entidade mítica (o clã). Esses
grupos de filiação chamam-se unilineares, uma vez que a aproximação é
determinada a partir da referência de um só parente: pai (patrilinear) ou mãe
(matrilinear). A filiação bilinear é definida por uma dupla transmissão
combinando paralelamente os direitos provenientes do pai ou da mãe. A
filiação é cognática ou indiferenciada quer do lado paternal, quer do lado
maternal. Estas definições têm um valor tipológico e não são suficientes
para generalizar as realidades (e diversidades) etnográficas. As mutações
dos grupos não são exclusivas a um senso restrito, de tal modo que outros
critérios são tidos em linha de conta para caracterizar – principalmente a
residência. Com efeito, as regras de residência podem variar num mesmo
tipo de filiação: Fox, distingue por exemplo para as sociedades matrilineares
as organizações matrilocais (residência em casa da mãe), das organizações
avunlocais (residência em casa do tio, o avunculado, designa a relação
tio/sobrinho). Mas, acima de tudo, a filiação e residência não se sobrepõem
necessariamente: uma comunidade local pode se composta por várias
linhagens (descendências), no entanto, uma pode ser dispersa por um
determinado território. No caso dos Nuer, Evans-Pritchard pormenorizou,
detalhou e incidiu sobre tal complexidade. Outra ilustração: em algumas
sociedades da Polinésia, existe filiação cognática, a terra herda-se de
maneira indiferenciada da parte do pai ou da mãe. No entanto, quando um
indivíduo se instala numa parcela que lhe pertence de direito, ele renuncia a
pretensões que pode exercer sobre outras propriedades transmissíveis
sobre o mesmo princípio de filiação indiferenciada. Concretizar um direito de
herança através da residência e fixação, exclui o poder de reivindicar –
mesmo se teoricamente é possível – outros bens de raiz. Quanto à aliança,
Lévi-Strauss, entendia-a como um conjunto de regras que consistia na
“circulação de mulheres” que se caracterizam como desposáveis. Os
sistemas matrimoniais, caracterizam-se sempre por interdições, certas
mulheres nunca podem ser desposáveis. Por prescrições internas, em
função da sua posição no sistema de parentesco, este apresenta quais as
mulheres que são desposáveis. Os sistemas matrimoniais com prescrições,
são chamados elementares, enquanto que aqueles que não fazem senão

34
35
informar essas interdições formam os sistemas complexos. Todavia, esta
tipologia não se apercebe perfeitamente das práticas: dos etnólogos, como
F. Héritier, que trabalharam e desenvolveram durante muito tempo na
esteira de Lévi-Strauss sobre os sistemas semi-complexos, onde as
proibições eram particularmente numerosas no seio de grupos reduzidos de
população, concluíram que conduziam quase ao casamento prescritivo.
Mesmo dentro dos sistemas complexos como os nossos, que deixam em
aberto a escolha do cônjuge à excepção de alguns parentes, a sociologia da
família e a etnologia europeia demonstram que o campo das esposas
potenciais é algo determinado pela sua classe social, a prática religiosa, a
proximidade da residência; enfim, uns certos parâmetros que são
explicativos das escolhas matrimoniais. No entanto, a aliança não se reduz
em caso algum a regras matrimoniais: ela abraça fenómenos que nos
colocam numa concepção própria de sociedade. O casamento estabelece
de maneira mais ou menos duradoira uma relação entre duas ou mais
pessoas (alguns sistemas permitem a poligamia ou a poliandria) que
constituem o grupo de descendentes. Mas, para além dos indivíduos, são
também os grupos sociais que, são englobados em ciclos, muito complexos
de prestações e de reciprocidade, ritualizados, simbólicos, onde circulam as
mulheres e também bens materiais, prestígio, direitos, e onde são
reafirmados os princípios cosmológicos e os fundamentos da organização
social. As terminologias de parentesco constituem um objecto de estudo
essencial na descrição e compreensão dos sistemas de parentesco. Depois
de uma achega teórica conceptual na disciplina do parentesco, para nós
muito importante, vamos conhecer a sua composição, proximidade
genealógica e função no social.

: homem

: mulher

: aliança
(casamento)

: consanguinidade

: filiação

(Átomo do parentesco)

35
36
A FAMÍLIA NA HISTÓRIA ORAL

O recurso padronizado da história oral é utilizado pelos pais para


reforçar a disciplina familiar, usam os tempos antigos como uma ameaça. A
incidência não implica necessariamente que a família seja a célula básica a
partir da qual se formam todas as outras organizações sociais – igreja,
estado, comunidade local, etc. . No entanto é significativo que as pessoas
interpretem as suas experiências no longo prazo histórico em termos de
família. As famílias parecem ter funcionado como unidades económicas
fundamentais, funcionando como unidade básica de consumo, tal como de
produção. Os filhos entregavam as suas eventuais economias aos chefes
de família, até se tornarem eles próprios chefes de família com orçamentos
e carreiras familiares independentes, quer ramificando-se da sua família
natal, quer herdando o agregado por morte do anterior chefe. Um casal sem
filhos e sem terra era considerado condenado á estagnação económica,
senão mesmo à pobreza, por muito que trabalhasse e poupasse. Segundo
alguns historiadores, entre os quais Marx, este tipo de economia doméstica
é característica das sociedades camponesas. A utilização do antigamente
como ameaça tácita aponta para outra característica importante desses
relatos da história oral, na medida em que o enredo de praticamente todos
eles girar à volta da mobilidade ascendente ou melhoramento social.
Tendo a monografia familiar como fonte básica de informação e as
formas tradicionais da família e sistemas de herança igualitários, afirma
Poinsard: “... la forme de la propriété détermine dans une grande mesure
l’organization familiale – le mode de transmission de la propriété la rend
stable ou instable, la conserve ou la divise ...” 26. O ponto de partida leva-nos
a pressupor que em circunstâncias “normais” os sistemas familiares, as
formas de posse da terra e as práticas de herança estariam intimamente
ligados. Se as formas da família não reflectissem uma preocupação relativa
à manutenção e à transmissão da propriedade, isso constituiria uma prova
da sua dissolução, e claro, a organização familiar dos não proprietários seria
um reflexo da sua forma desenraizada de existência social. Mais
recentemente, Massimo Livi Bacci27, invocou a propriedade da terra e as
práticas de herança como factores que podem explicar as variações
regionais da nupcialidade. Argumenta que a baixa nupcialidade no Norte,
manifesta no casamento tardio e num nível elevado de celibato definitivo, é
reflexo de tentativas para evitar uma maior fragmentação da propriedade.
Num trabalho realizado sobre a família portuguesa, o sociólogo brasileiro
Emílio Willens28,argumenta que no Norte “... na maior parte dos seus
26
Poinsard, Léon Le Portugal Inconnu, Paris, 1910.
27
Livi Bacci, Massimo A Century of Portuguese Fertility, Princeton, 1971.
28
Willens, Emílio On Portuguese Family Structure, International Journal of
Comparative Sociology III, 1, 1962.
36
37
aspectos, a estrutura familiar encontra-se subordinada ao modo como se
conserva ou se expande a propriedade familiar. Se isto poderá ser
conseguido retendo na exploração agrícola os filhos solteiros, a expansão
da propriedade familiar (com suas recompensas em termos de prestígio e
de melhoramento do estatuto social), passa a ser reconhecida como o
objectivo supremo a atingir em detrimento de objectivos individuais. O
casamento tardio é mais regra do que excepção entre os camponeses.”
Ainda de acordo com Livi Bacci e Willens, a organização familiar é
determinada pela forma que revestem as relações de propriedade. O
princípio em si não é original, está implícito em grande parte da bibliografia
dedicada à famille souche – Bourdieu.29
Existe uma relação clara entre a economia camponesa e a estrutura
dos agregados domésticos. Quanto maior é a proporção de camponeses na
população activa, tanto maior é a proporção de agregados familiares
múltiplos, e menor a dos agregados familiares simples, ou famílias
nucleares. Seria obviamente ilegítimo concluir, a partir destes dados, que os
camponeses tendem a viver em agregados domésticos de estrutura mais
complexa que os dos não-camponeses. As correlações indicam apenas que
os agregados de estrutura complexa são um traço característico de áreas
em que predomina a economia camponesa, mas não permitem quealquer
conclusão a respeito da estrutura dos agregados domésticos de
camponeses e não-camponeses no meio rural. Estas dificuldades só
poderiam ser evitadas se se dispusesse de informação a respeito da
estrutura dos agregados domésticos por categorias profissionais. Mas os
eventuais efeitos de diferenças entre sistemas culturais regionais, pelo
menos, podem ser controlados através de uma análise da estrutura dos
agregados domésticos no interior de diferentes regiões culturalmente
homogéneas. À medida que o número de observações é maior, é possível
recorrer a correlações parciais para isolar aspectos particulares desse tipo
de economia agrária. Nós isolamos os seguintes aspectos: a) o efeito
específico da proporção relativa de “possuidores de terra” (proprietários,
rendeiros e parceiros) e de outros trabalhadores agrícolas (assalariados e
familiares não remunerados) na população activa agrícola; b) o efeito
específico da proporção de proprietários no conjunto dos “possuidores de
terra”; c) o efeito específico da agricultura familiar (proporção de isolados no
conjunto dos proprietários). A posse de terra em si, independentemente do
título de posse (propriedade, arrendamento, etc.), tem efeitos limitados
sobre a estrutura dos agregados domésticos. As correlações parecem
confirmar que um sistema de famille souche está associado à propriedade
da terra e a uma preocupação com problemas de herança. Estes dados e os
que se seguem resultam de estudos de âmbito local efectuados a partir de
matrizes das finanças locais, registos paroquiais, róis de confessados e
fontes análogas.
29
Bourdieu, Pierre Célibat et Condition Paysanne, Études Rurales, 5-6, 1962.
37
38
O tratamento das relações familiares, no que concerne à casa 30ou
assumindo esta como centro, é um assunto algo embrionário e nada
pacífico. Abordada em diversos ângulos por historiadores, sociólogos e
antropólogos, estes divergem efectivamente não só no prisma de análise
como, inclusivamente, refere Pina Cabral, nos diferentes termos utilizados:
linhagem, família, lar, casa. Se Radcliff-Brown 31analisa a família e o
parentesco em termos da sua função no todo da estrutura social ou Fortes
acentua o seu aspecto corporativo-jurídico, enquanto fonte de direitos reais
e pessoais virtualmente transmissíveis, outros como Lévi-Strauss sem
excluir a noção de casa, assinalam a importância dos padrões de residência
e das relações sociais estabelecidas através das trocas matrimoniais.
Outros ainda entre os quais se destacam Frield, Goody e Bourdieu,
assumem o carácter colectivo do património da família, salientam mais a
sua capacidade de controlo e gestão da propriedade fundiária e demais
recursos domésticos. Esta linha explicativa, explorada em termos mais
globais por Bader e Benchop, remete-nos para a concepção weberiana
centrada na análise das relações de autoridade e poder no seio dos grupos
domésticos. Nesta óptica, a antropologia ou a sociologia da família,
constitui-se num campo específico de estudo, surge todavia
interdependente face à sociologia do poder, abordagem esta igualmente
posta em relevo por Bourdieu, segundo o qual as relações de autoridade e
poder no interior das famílias pressupõem a existência de concorrência
geradora de tensões e conflitos que ameaçam a unidade e a coesão
domésticas. Uma das vertentes da conflituosidade doméstica centra-se na
polarização marido-esposa, à qual se associam determinadas dicotomias,
tais como domínio da esfera pública ou formal pelo homem face ao reduto
privado ou resguardado decisório informal por parte da mulher ou, ainda,
emotividade espontânea e natural feminina face á componente
racionalizante e cultivada masculina. Sem anular ou subavaliar a relevante
polaridade homem/mulher, a começar pelo fenótipo sexual biológico, a partir
daí são todavia acentuados ou construídos arquétipos que, culturalmente
incorporados necessitam de ser reequacionados, na medida em que são
susceptíveis de reforçar ou legitimar um esvasiamento patricêntrico que
30
O termo grego “oikos” ou romano “domus” abrangia nas sociedades grega e
romana, não só o conjunto de bens, como também o grupo de domésticos
submetidos à autoridade patriarcal do paterfamilias: a mulher, os servos e os
escravos.
Sobre a evolução e institucionalização da “oikos”, ver: Max Weber, Economy and
Society, editado por G. Roth e C. Wittich, Berckeley, Los Angeles; University of
California Press, 1978, p. 358 e segs; e , Piergiorgio Solinas, “A Família” in F.
Braudel e G. Duby (org.) O Mediterrâneo: os Homens e a Herança, pp. 59-84,
Teorema, Lisboa.
31
Radcliff-Brown e Darryl Forde (orgs) Sistemas Políticos Africanos de parentesco
e casamento, Lisboa, 1974, Fundação Calouste Gulbenkian.
38
39
tende a compartimentar o formal e o informal e a sobrevalorizar a esfera
pública em detrimento da doméstica, tida por periférica e banal.
Sobre o poder doméstico no espaço rural galego, o espanhol Iturra,
aduzindo respectivamente a tónica androcêntrica nas prescrições legais e
sobretudo nas práticas sociais, designadamente o comportamento
submisso, respeitoso e por vezes, deferente da mulher face ao marido
(tratando-o, por exemplo, “você” ou “senhor”), salientou como traço
dominante a autoridade masculina, ou mesmo patriarcal, em casas
camponesas na Galiza. Num pólo oposto, autores como Willens, com base
em observações etnográficas de tipo monográfico e, mais recentemente
Espírito Santo32apelando aos argumentos de tipo psicanalítico na variante
do “inconsciente colectivo” de Jung, reconhece o poder patriarcal mas
salienta ou sublima a telúrica matricentralidade das relações sociais das
comunidades camponesas. Por fim, Pina Cabral, baseando-se em
argumentos de tipo simbólico-valorativo e linguístico-interaccional (por
exemplo, designação de “patroa” pelo marido), mantém sobre o poder
conjugal uma problemática de ambiguidade.
Se práticas tais como o local de residência, a transmissão do nome e
dos bens, as interacções conjugais devem ser tidas em conta, mais
importante se torna, articulando-as, incidindo o foco de análise no modo
como a composição dos grupos domésticos e sobretudo a redistribuição do
poder doméstico e eventuais conflitos daí resultantes são afectados e
condicionados pelo grau e tipo de recursos materiais e simbólicos que cada
nubente (pessoa que está para casar) traz consigo e/ou adquire na
dependência do empreendimento doméstico: bens patrimoniais, atributos
estéticos ou eróticos, experiência e força física, habilidades, saberes e
qualificações, honra, prestigio ou poder local. Neste quadro, importa
distinguir até que ponto a ideologia de subordinação sexual vai ou não de
par com o efectivo controlo sobre os recursos e a capacidade de decisão, o
que inclui, além do domínio sobre a força de trabalho familiar e alheia –
quando presente ou convocada – a planificação e a execução de
actividades e repercurtindo-se em assuntos tais como a procriação e
educação dos filhos, as opções matrimoniais e profissionais destes ou a
devolução de bens. Por outro lado, o facto de as dinâmicas dos actores
domésticos, não constituírem o objecto central deste trabalho, não se pode
ignorar que nos grupos domésticos se articulam e co-estruturam impactos
nacionais e internacionais, designadamente efeitos de vectores económicos
da sociedade global e determinações estatais na esfera político-jurídica.No
entanto, os ciclos de formação, recomposição, desenvolvimento e fissão das
casas, enquanto locais e núcleos de reprodução social, assim como a
imbricação dos interesses e das emoções com as respectivas interacções
estratégicas no seio das famílias, formam a matriz dinâmica e contraditória
32
Espírito Santo, Moisés A Religião Popular Portuguesa, 1980, Lisboa, Regra do
Jogo.
39
40
de conservação, diferenciação e transformação dos grupos sociais, bem
como das suas respectivas práticas e valores.
Embora as características dos grupos domésticos exijam um
tratamento diferenciado do grupo social, o facto de a maioria dos grupos
domésticos possuírem casa própria e deterem o mínimo de recursos
próprios, permite sublinhar um núcleo de elementos comuns à realidade
institucional da família centrada na casa: Uma construção física formando
uma unidade económica e sexual sob a autoridade doméstica capaz de
coordenar as pessoas aí co-residentes e gerir a totalidade de bens: casa e,
eventualmente terra, gado e outros bens. Enquanto unidade básica de
produção, ela constitui o espaço onde se organizam e distribuem as tarefas
pelos diversos membros e, enquanto suporte de subsistência e reprodução
da família, nela se centram as condições e os resultados da produção, não
obstante as trocas complementares com outras casas. Por sua vez, aos
deveres de contribuição proporcional na reprodução passada, presente ou
futura da casa, corresponde o direito de inclusão real e simbolicamente
expresso da comensalidade. Por fim, além de local de residência e sede de
representatividade face às demais casas, a casa constitui o quadro de
referências não só economico-assistêncial como cultural-afectivo dos seus
membros.
Se a definição ideal-típica de casa e/ou a sua representação implicam
um mínimo de autonomia doméstica, dadas todavia as lógicas diferenciadas
de reprodução e propriedade e/ou força de trabalho, poder-se-ão, para
efeitos classificatórios, distinguir três tipos de casas presentes na sociedade
rural: patrimonial, remediada e não-corpórea. Enquanto a casa patrimonial,
sendo apanágio de lavradores e proprietários é hierarquizada e fortemente
condicionada pelo imperativo de (re)produção, expansão e transmissão de
propriedade, a casa remediada e a não-corpórea, englobando
respectivamente os jornaleiros e o grosso dos pequenos camponeses-
artesãos ou operários, tendem a reconstituir-se como unidades pluriactivas
e predominantemente voltadas para a reprodução simples e satisfação das
necessidades quotidianas. Nesta óptica, não só o exterior como o interior de
cada tipo de casa exibem marcas sociais distintas como o substrato das
regras do poder doméstico, assim como o carácter deste, as vias de solução
de eventuais oposições também se diferenciam por tipo de casa e inserção
no grupo social. Assim, se na casa remediada e sobretudo patrimonial há
bens a gerir que exigem uma definição clara de quem detém o quê, já na
casa simples “pobre”, a preocupação básica consiste não tanto em gerir
eventuais magros recursos, mas em decidir sobre a repartição de encargos
a fim de obter os meios de subsistência familiar. Na casa remediada
designadamente camponesa, a coordenação de tarefas, quando a luta pela
sobrevivência e pela melhoria das condições de vida o impõe, exigem, em
regra, a interdependência e a unidade dos membros da família, o que é
frequente ocorrer até que surjam ou se procurem alternativas.

40
41

POPULAÇÃO E FAMÍLIA

Procurei consolidar esta linha de investigação através da exploração de


dois tipos de fontes muito requisitados neste género de pesquisa: os
registos paroquiais e os róis de casamentos e baptizados. Estes registos,
constituem um base indispensável para a construção de genealogias, para a
identificação de indivíduos e para a determinação do papel do parentesco
na estruturação das relações sociais. Para não fugir à regra, numa primeira
fase foi dada prioridade ao levantamento e à análise sistemática destes dois
tipos de fontes, bem como ao aprofundamento das questões metodológicas
colocadas pela sua utilização em estudos micro-históricos de comunidade.
Já se tornou lugar-comum nas ciências sociais, recordar que o estudo
das instituições e dos aspectos da vida social que se encontram na base da
nossa própria concepção do mundo é de todos o mais difícil. Isto porque,
nestes casos as nossas categorias fazem parte da própria realidade que
através delas (instituições) procuramos representar. O estudo da família não
constitui excepção. Talvez por se referir a uma realidade imediata e “natural”
– já se colocou inclusive a questão do seu carácter de “instituição universal”
– o conceito de família foi por muito tempo, na cultura ocidental e nas
ciências sociais, objecto de aceitação implícita e por isso, essencialmente
acrítica. Quando se estudava a família, não era para a constituir em sistema
autónomo de análise e investigar a sua estrutura e dinâmica por si mesmas.
O estudo da família concebia-se, antes, em termos instrumentais e
esperava-se que a análise do seu funcionamento e das suas patologias
fornecessem a chave para a compreensão de aspectos significativos e
problemáticos da realidade social. Esta concepção instrumental do estudo
da família é característica da sociologia e da análise sociológica das
sociedades ocidentais, e a sua influência faz-se sentir também em algumas
outras ciências sociais, como a história económica e social ou a demografia.
Assim, não deixa de ser significativo que foi acima de tudo no contexto do
estudo das sociedades exóticas, que se começou a investigar a família
enquanto instituição e a considerá-la como objecto possível de análise
específica e autónoma. Precisamente, a explosão de estudos de história da
família nas últimas décadas, reflecte e influência exercida sobre a história
pela antropologia social.
Desde a sua constituição como disciplina científica, a antropologia tem
vindo a privilegiar o estudo dos sistemas de parentesco das sociedades
ditas “primitivas”. Isto deve-se em parte à importância relativamente superior
que a família e o parentesco tem em todas as sociedades pré-industriais –
sejam elas europeias ou exóticas, tribais ou camponesas. Nesta medida, o
facto não faz mais do que reflectir a diferença entre os objectos respectivos
da sociologia e da antropologia. Mas, a atenção dedicada ao parentesco
41
42
pelos antropólogos deve ser atribuída também, a sobretudo, ao facto de nas
sociedades “primitivas”, o parentesco ser não apenas uma instituição entre
outras, mas a instituição fundamental, cujas categorias se encontram na
base de toda a organização social. Foi por isso determinante para o
desenvolvimento da antropologia social a descoberta, por L. Henry Morgan,
do carácter classificatório dos termos de parentesco nas sociedades
primitivas e do reconhecimento que nessas sociedades as categorias do
sistema de parentesco não correspondem directamente às relações de
parentesco biológico entre os indivíduos. Essas categorias são utilizadas
como base para um sistema de classificação que representa e determina as
relações entre o conjunto dos grupos e indivíduos que constituem a
sociedade. As relações entre grupos e entre indivíduos, seja de natureza
económica, política ou simbólica, são pensadas como se fossem relações
de parentesco e é desse facto que derivam os direitos e as obrigações que
definem essas relações. É neste sentido que se tem considerado o sistema
de parentesco como base da organização social nas sociedades ditas
primitivas.
O parentesco enquanto princípio de organização, é um sistema de
relações, e a antropologia tem procurado reconstruir a lógica dos inúmeros
sistemas conhecidos. Deste ponto de vista, a família, mais do que causa, é
consequência das relações de parentesco, e os antropólogos, mesmo
estudando-a com atenção, atribuíram-lhe um papel secundário enquanto
objecto de análise. O lugar que ocupa e a importância que adquiriu nas suas
estratégias de investigação deve-se sobretudo ao facto de ser um lugar de
condensação e cristalização de aspectos fundamentais da organização
social – e em particular do sistema de parentesco – e não tanto a qualquer
interesse específico pela sua estrutura, dinâmica ou funcionamento.
Paradoxalmente, só quando a composição da família, isto é, do grupo
doméstico co-residente, deixa de poder ser deduzida a partir de das regras
do sistema de parentesco, é que esse grupo passa a constituir um objecto
específico de análise e que a antropologia começa a tentar explicar as suas
características observáveis. A procura de explicações mais concretas,
baseadas nas funções económicas, políticas ou essências da família na
comunidade em causa, traduz-se na diferença significativa entre família em
sentido estrito do termo, enquanto elemento do sistema de parentesco; ou
household, que se pode traduzir como agregado doméstico ou talvez, em
alguns contextos como simplesmente casa. Refere-se a uma unidade
familiar plurifuncional cujas características específicas em cada sociedade
devem ser atribuídas precisamente a essa pluralidade de funções. O estudo
do grupo doméstico, traduz-se assim na análise da intersecção e
interdependência funcionais entre o sistema de parentesco e as restantes
esferas da vida social. Na chamada antropologia das sociedades complexas
– em que uma economia camponesa, a influência do mercado e presença
do Estado implicam, em comparação com as sociedades primitivas, uma

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43
diminuição da importância relativa do sistema de parentesco – o estudo do
grupo doméstico e das suas múltiplas funções adquire uma importância
central. Esta multiplicidade de funções nas sociedades pré-industriais
implicou o estudo da família, ou melhor, do agregado doméstico. Aqui, por
exemplo, demonstra-se a perda de funções mais amplas, em consequência
de um processo de diferenciação estrutural, transformando a família nuclear
numa instituição residual, especializada na formação da personalidade dos
seus membros.
A mera disponibilidade de enquadramentos conceptuais apropriados
não teria sido suficiente, por si só, para permitir o desenvolvimento do
estudo histórico da família. A definição do objecto de uma análise histórica
faz-se integrando num quadro conceptual adequado informações por vezes
fragmentárias, retiradas das fontes que o antropólogo tem à sua disposição
ou que soube tornar utilizáveis. No caso de uma história da família, as
fontes de tipo convencional, como por exemplo diários, livros de memórias
ou histórias orais, são limitativas, permitindo o estudo da família em
contextos sociais restritos e nem sempre representativos, ou encorajando
uma análise das representações da família mais do que das realidades
sociais que lhes serviam de suporte. Foi por isso fundamental para a história
da família, o desenvolvimento da demografia histórica, e em particular da
microdemografia paroquial. Esta permitiu e estimulou a utilização dos
registos paroquiais como fonte para uma história da família deste tipo, na
qual o recurso a métodos quantitativos se aliava a preocupações com a
representatividade e com os enquadramento indiferenciado de distintos
grupos sociais, inclusive, daqueles que normalmente não se encontram
representados em fontes de tipo tradicional. O método dito de reconstituição
de famílias, cujos principais divulgadores foram os historiadores-demógrafos
da escola francesa, acaba no entanto, e ao contrário do que seria de
esperar, por ser de utilidade apenas indirecta para a história da família. O
método traduz-se na construção de um objecto – “família”. Essa família, é a
família conjugal biológica, constituída por um casamento e modificada pela
sequência de nascimentos, casamentos e mortes dos seus membros. Não
corresponde necessariamente a qualquer forma de grupo social concreto,
porque não só estão incluídos nela os filhos ausentes (desde que vivos ou
solteiros), como também se encontram excluídos todos os eventuais
parentes co-residentes que não façam parte do núcleo conjugal imediato.
Em algumas sociedades, uma tal família tem muito pouco a ver com
qualquer tipo de realidade antropológica observável.

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44

IV - A ECONOMIA DOS BENS SIMBÓLICOS

A ECONOMIA DOS BENS SIMBÓLICOS

44
45
A antropologia económica como um campo da antropologia geral,
define-se consagrando o seu objecto no estudo da actividade económica. À
partida, esta definição tem o “mérito” de a neutralizar. Mas, ela própria
permanece autónoma, de tal forma que ainda não respondeu a uma
questão que resuma, com efeito, inteiramente a problemática constituinte
deste domínio de investigação: o que é a actividade económica? O
resultado é felizmente menos vazio de conteúdo informativo, quando
comparado com a economia do cálculo. Toda a definição da antropologia
económica mostra uma teoria geral da economia, o que nos dá a conhecer
o problema da universalização das categorias que os economistas
elaboraram sobre a base de uma análise da economia mercantilista, ou
mesmo a actual neoliberal.
A antropologia económica tem vindo a ser um domínio de investigação
que se afirmou entre as duas grandes guerras mundiais. Todavia, o diálogo
entre os antropólogos e os economistas tem um “nó” (ruptura) desde os
primórdios da antropologia científica, que foi buscar o seu objecto às
sociedades ditas primitivas. Divulgado o discurso dos primeiros economistas
do séc. XVIII, para os europeus, que desde os sécs. XVI e XVII descobriram
as tribus indígenas, em particular na América, considerando-as num estadio
de vida primordial. Eram considerados selvagens e não conheciam uma
economia natural. Sob a influência da filosofia das luzes, a ideia impôs-se a
esses povos que se situavam fora da história, estando mesmo
historicamente em atraso. Os antropólogos descobriram nos povos
primitivos a economia, tendo mesmo vindo esta noção de economia a ser
mais correctamente utilizada. Por mais significativo que tenha sido
filosoficamente, a mudança de vocabulário não modificou em nada a ideia
que se fazia das economias ditas primitivas (fossem elas pré-agrícolas ou
fundadas sob uma agricultura itinerante). Em conformidade com o
paradigma evolutivo predominante nos primórdios da antropologia, estamos
convencidos que o humanismo dos meios técnicos limitados não podem
aceder a mais do que uma economia de subsistência, na qual uma falta
duradoura deve levar e origina, uma falta de mudança, logo à falta de
qualquer forma de dinheiro (moeda) ou de capital. Esta visão simplificada é
uma caricatura da realidade, não implicando uma sujeição da noção própria
de economia primitiva; porque, depois de Adam Smith, os economistas
admitiram uma definição do feito (ou facto) económico que Karl Polanyi
classificou um século e meio depois de “substantivista”, no qual, é
económica toda a acção que leva à produção, à circulação ou consumo de
bens. Uma definição destas é suficientemente generalista para se aplicar
tanto a uma economia de caçadores-recolectores, como a uma economia de
mercado. Não restam dúvidas que a economia primitiva se definiu de
maneira inteiramente negativa, pela ausência da maior parte das
características que constituem o objecto de estudo da economia política. A
análise da vida económica nas sociedades primitivas reduz-se, em

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46
consequência, a uma descrição à qual Morgan chamou “artes e
malabarismos de subsistência”. Ela confunde-se com efeito, com uma
descrição da vida material (desenvolvimento, técnicas de produção e
repartição de tarefas) e, propriamente falando, não há lugar, no campo
teórico, para uma antropologia económica. E porquê? Não há objecto? Não
há conceitos? Numa óptica objectivista, material, palpável, não. Mas existe
um campo subjectivo que regula os comportamentos dos grupos sejam eles
primitivos ou complexos, e que os economistas, não desconhecendo,
ignoram e minimalizam – dizem que se trata de um common knowledge33,
que explicitarei mais adiante. Encontramos uma etapa em que os bens
simbólicos e a economia da alquimia simbólica adquire sentido. Trata-se de
uma questão pertinente e que se me coloca desde que iniciei a investigação
científica em antropologia. Compreender a importância atribuída a pequenas
trocas que se efectuam e que depois de examinadas, nos transportam para
o dom e contradom da antropologia levi-straussiana. Como funciona a
economia invisível, não palpável de influências e favores entre classes
dispostas hierarquicamente. Como mostrar que com os mesmos
instrumentos podem existir coisas tão diferentes como as trocas de honra
numa comunidade pré-mercantil, as trocas entre gerações no interior da
família e as trocas entre famílias; trocas de favores, de influências e até de
disposição de nubentes para selar a união entre famílias.
Os bens simbólicos, apesar de constituírem uma parte do lado extra
sensível, ou extra material, são perfeitamente apreendidos na análise
científica. Para tanto, basta que sejam realizados entre homens que se
cruzam numa realidade concreta e perceptível, se bem que dificilmente
materializada. São importantes e mais manifestas, por exemplo, as trocas
na economia doméstica, no interior da família, entre membros da casa e
entre as gerações. É uma espécie de denegação do económico no sentido
em que nós o entendemos e no sentido em que os economistas o
concebem. A esta economia chamou Pierre Bourdieu 34”a economia da
oferenda”, realidades de agentes sociais que têm no seu interior interesse
no “desinteresse”, o que constitui um paradoxo se atendermos aos vectores
do economismo marxista, capitalista ou da economia do cálculo. Não se
tratando também inversamente a Bourdieu, de uma economia não
económica. Primeiro, porque apesar de desinteressada, reveste-se de um
cariz moral e ético na conduta dos indivíduos e que os caracteriza ou regula
na sua vivência e quotidiano – a honra e a vergonha. Segundo, porque se
reveste sempre de uma troca, e nunca uma dádiva desinteressada, pois
obriga o outro agente a retribuir seja em que circunstâncias for – a começar
pela troca de dons – senão vejamos: Mauss descrevia a troca de dons como
33
Zelizer, V Pricing the Priceless Children, The Social Meaning of Money, Nova
Iorque, Basic Boocks, 1987.
34
Bourdieu, Pierre Razões Práticas – Sobre a teoria da acção, ed. Portuguesa, Celta
Editora, Oeiras, 1997, p. 122.
46
47
uma sucessão descontínua de actos generosos; Lévi-Strauss definia-a
como uma estrutura de reciprocidade transcendente aos actos de troca
directa, em que o dom remete para o contradom. Mas qualquer agente
social pode gratuitamente conceder o dom, sem que se destine a obter um
pagamento, pode não haver retribuição, para além de a liberdade de não
retribuir ser ínfima. A diferença socialmente persiste, enquanto aquele que
não retribui viver o preço de um dom, que apenas pode ser gratuito quando
determinado pelo seu contradom. Partindo da realidade estrutural de Lévi-
Strauss, “... o dom é a desgraça, no fim acaba por ter que existir o
contradom”, é a necessidade de retribuição a florir, porque se trata de
palcos micros, onde o actor representa os valores da comunidade e adquire
as regras por esta imposta. Quando assim não se comporta passa a Ter um
comportamento desviante. O acto primeiro (dom) é um atentado à liberdade
daquele que recebe. Possui um desafio e uma ameaça: obriga a retribuir, e
a retribuir mais, cria obrigações e é uma maneira de persistir. Esta verdade
estrutural è recalcada colectivamente. Uma mistificação cujo fundamento se
inscreve nas estruturas objectivas, por exemplo a lógica da honra que
governa todas as trocas, de palavras, bens ou dons – e estruturas mentais,
excluindo comportamentos desviantes ou pensamentos em agir de modo
inverso que não seja a automistificação. Como podemos observar, existe
uma economia simbólica que interage entre as realidades objectivas do
indivíduo e o seu subjectivo, constituindo um objecto analítico e de inserção
na antropologia do económico, existe uma espécie de tabu nesta economia,
que existe e é perceptível à luz do conhecimento científico. Os indivíduos
são ao mesmo tempo mistificadores de si próprios e dos outros, e
misitficados porque mergulhados desde a infância num cosmos, onde a
troca de dons se acha socialmente instituída em disposições e crenças ou
ordem de valores. Tanto o que dá como o que recebe, foram preparados e
predispostos, por todo o trabalho de socialização, sem intenção nem cálculo
de ganho na troca generosa – mas numa dívida – cuja lógica é inteiramente
objectiva. Assim, o dom gratuito não existe, ou é impossível, uma vez que
só podemos pensar os indivíduos como calculadores que se fixam no
projecto subjectivo de fazerem o que objectivamente fazem, no modelo lévi-
straussiano, uma troca obedece à lógica da reciprocidade.
Num outro plano, deparamo-nos outra propriedade da economia das
trocas simbólicas: o tabu da explicitação35cuja forma por excelência é o
preço. Dizer a verdade da troca ou a “verdade dos preços”, é aniquilar a
troca. Há comportamentos na troca de dons que têm de permanecer tácitos,
não ditos, sob a pena de serem destruídos enquanto dons. Ao introduzir-se
o preço nas trocas simbólicas, destruímos o tabu da explicitação, isto
porque, o preço que caracteriza a economia das trocas económicas por
oposição à economia dos bens simbólicos, funciona como expressão do
consenso sobre a taxa de câmbio implicado sobre qualquer produto. Na
35
Idem, p. 124
47
48
troca de dons, o preço deve ser deixado implícito: não querendo saber a
verdade dos preços e não querendo que o outro a saiba. Tudo se passa
como se os agentes sociais se pusessem de acordo em evitar
explicitamente o valor relativo das coisas trocadas, recusando toda e
qualquer definição prévia dos termos de troca, quer dizer, do preço. O pai
não paga um salário a um filho pelo serviço prestado, a esposa não cobra
ao marido os serviços que lhe presta ou vice-versa, quando eventualmente
acontece, é pejorativo quando socialmente interpretado – isto dentro do
grupo doméstico. Socialmente, não se dá a conhecer o preço objectivo de
uma prenda oferecida num casamento ou aniversário, cuidadosamente, tem
todo o sentido retirar a etiqueta que manifesta o preço.
O silêncio sobre a verdade da troca, é um silêncio partilhado. Os
economistas não concebem esta acção não racional, falam antes de
common knowledge; isto é, cada um sabe ou possui informação sobre o
valor implícito do dom, ou ainda: “sei que tu sabes que, quando te dou, sei
que tu me retribuirás”. No entanto permanece um tabu explícito, mas não
manifesto. Há mecanismos sociais enraizados, mesmo objectivos,
incorporados em cada indivíduo que fazem com que a ideia de divulgar o tal
segredo seja socialmente impensável, tanto que, quanto mais tradicionais
são as comunidades, mais se acentua. É de salientar que nas comunidades
rurais, este estádio simbólico das trocas, funciona muito ao nível dos
proprietários e das famílias dominadoras, no entanto este capital simbólico é
comum a todos os membros do grupo. Pelo facto de ser um ser-percebido 36,
que existe na relação entre propriedades, detidas por indivíduos e
categorias de percepção (hierarquicamente dispostas), que enquanto tais,
constituem e constróem categorias sociais (homens/mulheres,
grandes/pequenos, ricos/pobres) assente na união (a aliança, a
comensalidade, o casamento) e a separação (o tabu do contacto, o mau
casamento, a não partilha de espaços sociais), liga-se a grupos, nome de
famílias, distinguindo até os grupos como muito ou pouco dotados,
utilizando estratégias para inferiorizar grupos estigmatizados. Nunca um
proprietário casaria com uma criada ou jornaleira, mesmo que esta tivesse
até mais do que um filho deste. Era socialmente mais aceite a ilegitimação
da(s) criança(s) do que o casamento entre duas personagens de classes tão
diferenciadas. Uma das dimensões do capital simbólico, nas sociedades
diferenciadas e estratificadas, é a identidade da família, que, juntamente
com o nome, é um percipi, um ser-percebido, funcionando como um capital
simbólico positivo ou negativo. Pelo facto de as estruturas de percepção e
de apreciação serem, no essencial, produto da incorporação das estruturas
objectivas, a estrutura da distribuição do capital simbólico tende a
apresentar uma estabilidade muito grande, constituindo inclusivamente por
vezes um factor de inércia. A família como unidade integrada, é ameaçada
36
O ser-percebido, é um entendimento entre as partes que dispõem da troca ou
envolvidas nesta.
48
49
pela lógica da economia do cálculo. Funcionando como um agrupamento
monopolista definido pela apropriação exclusiva de uma classe determinada
de bens (a terra, o nome, etc.), é ao mesmo tempo unida pela propriedade e
dividida pela propriedade.
A lógica do universo económico introduz no interior da família o verme
do cálculo, que rói os sentimentos. Unida pelo património, a família é o lugar
de uma concorrência pela posse e poder desse mesmo património. Mas
essa concorrência ameaça continuamente de destruição esse capital,
arruinando o fundamento da sua perpetuação, quer dizer, a unidade, a
coesão, a integração, impondo comportamentos destinados a perpetuar o
património, perpetuando a unidade dos herdeiros, que se dividem a seu
propósito. Podemos lembrar aqui, a análise do sistema de estratégias de
reprodução de que fala a demografia social, estratégias que se encontram
sob formas diferentes, com pesos relativos diferentes, dependendo dos
grupos e que têm por princípio essa espécie de conatus, de pulsão da
família, da casa, visando perpetuar-se ao perpetuar a sua unidade contra os
factores de divisão, e em particular contra os que são inerentes à
concorrência em torno da propriedade que funda a unidade da família.
Enquanto sendo um corpos dotado de um espírito de fraternities, a família
serve de modelo e arquétipo para todos os grupos preocupados em
funcionarem como um corpo, mesmo que submetida a dois sistemas de
forças contraditórias: por um lado, as forças da economia que introduzem
tensões, contradições e conflitos; por outro, as forças de coesão que se
ligam em parte ao facto de a reprodução do capital sob as suas diferentes
formas, depender em grande parte da unidade familiar.

O VALOR VENAL DO ESPAÇO PRODUTIVO

“A inserção do económico no social, constituindo uma totalidade


integrada, é característico das sociedades pré-mercantis estudadas pela
antropologia. Nelas, o económico produção de subsistências, circulação e
distribuição de bens, nas palavras de Karl Polanyi, consiste num processo
instituído de interacções entre o homem e o seu meio físico, sujeito a vários
princípios de integração social: reciprocidade, redistribuição e troca directa.
É um pouco a linha iniciada por um grande antropólogo francês, muito
referenciado, mas pouco seguido, Marcel Mauss, ao sublinhar a natureza de
determinados fenómenos económicos das sociedades ameríndias, como
factos sociais totais”37No mundo rural, a antropologia pode formular
hipóteses aceites e válidas quanto à problemática do desenvolvimento

37
Yañez-Casal, Adolfo “Antropologia e Desenvolvimento” in Ethnologia, Revista
do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da
U.N.L., Janeiro/Junho 1991, p.30.
49
50
socio-económico dos lugares e do relacionamento produzido entre os
indivíduos que partilham do mesmo meio e do mesmo espaço. As práticas
sociais seguidas por estes actores deve constituir objecto de análise,
tornando-se inteligível apenas a partir do seu interior. O espaço rural é de
imediato, um espaço de produção agrícola, quase exclusivamente, podendo
ter também uma função residencial e albergar outras actividades além da
produção de produtos agrícolas ou agro-pecuários. É característico também,
além de uma ou outras actividade de comércio local e exploração industrial
de matérias primas derivadas de madeiras; o cultivo da horta, do socalco, a
silvicultura e vinicultura, ocupam o grosso da população. Este espaço social
constitui uma realidade pouco complexa, mesmo tendo em conta a
multiplicidade de aspectos relacionados com o económico. Numa primeira
abordagem, identificam-se os proprietários de terrenos de maior dimensão,
aqueles que à priori podem produzir em maior quantidade. Se não
produzem os legítimos proprietários, identifica-se quem as explora e quais
são os termos de troca ou de arrendamento; conhecer as características do
contrato. Um economista, pode apresentar alguns aspectos mais relevantes,
ou mais coerentes de uma economia do espaço rural. Para eles, o espaço
rural constitui-se de imediato por solos compostos de terras aráveis,
representando um potencial produtivo – a quantidade. Logo à partida,
confunde-se neste ponto de vista com a superfície agrícola útil. Isto leva-nos
à noção de capital predial (valor do imóvel) desde que a capacidade
produtiva do solo não se deva unicamente às características naturais, mas
seja imputável pelo menos em parte ao trabalho humano. Em segundo
lugar, podemos considerar a distância a percorrer. Somos obrigados a ligar
dois pontos deste espaço, ou um ponto localizado neste espaço, outro fora
dele; temos de ter em conta o custo de transporte e a perda de tempo na
deslocação, a proximidade e a vizinhança podem determinar certas
localizações com o fim de aproveitar o rendimento da localização. A
distância a percorrer pode influenciar as diferenças de densidade na
localização das actividades e dos homens. Em terceiro lugar, o espaço
físico rural representa, uma extensão sujeita a fragmentações. Os terrenos
de cultura, as explorações, as próprias aldeias, as parcelas, os cantões, as
áreas de produção, as zonas de atracção fazem parte destas
segmentações. A fertilidade das terras é desigual e as suas aptidões
agrárias diversas. O primeiro destes dois fenómenos dá origem a rendas
prediais (estas dependem da qualidade das terras, da quantidade de
produção anual); o segundo determina as áreas de produção (representa a
manta de retalhos de produções variadas). A compartimentação do espaço
cria a diversos níveis problemas de talhe e dimensão. Além disso, a maior
parte das fracções ou parcelas fazem parte de um património – individual ou
colectivo. O espaço rural enquanto quadro de vida pode ser considerado um
bem de consumo, as características particulares deste espaço são
preservadas e planeadas, podendo satisfazer quem os trabalha ou o próprio

50
51
proprietário. Existe um conjunto de relações de um tipo muito particular
entre os indivíduos e o seu meio. Este meio ou espaço é um bem, mas é um
bem onde a mesma unidade pode apresentar diversos aspectos. A terra é
um bem de produção, mas tanto participa como um simples suporte, como
intervém no próprio processo produtivo. O solo é igualmente um elemento
de património e tem lugar nos activos que possuem os sujeitos económicos.
O espaço tem um valor, porque é produtor de bens ou gerador de
satisfação. Existe um mercado predial todas as vezes que as diversas
fracções do espaço podem ser apropriadas. O valor venal de uma terra não
está sempre ligado ao valor económico calculado segundo o que produz, o
desejo da terra ou outros elementos podem provocar um aumento do valor
venal que o torna superior ao económico. Elemento de património, a terra
pode ser considerada como um valor refúgio. Mais do que isso, é um
património que origina rendimento. Rendimentos diferenciais que se
imputam à desigualdade de fertilidade das terras e à diversidade das suas
aptidões agrárias. Os rendimentos da localização, podem provir da
proximidade de uma fonte produtiva, como um curso de água que permita
uma irrigação pouco dispendiosa, ou da proximidade de uma via de
circulação que permita o escoamento ou outras situações favoráveis como a
utilização de maquinaria de grande porte.
É evidente que os fenómenos económicos não esgotam as suas
características ao nível do espaço. Encontramos nas comunidades agrárias
o carácter religioso e hierarquia social que têm sido predominantes. O
terreno apenas assegura a continuidade do grupo. Um conjunto de práticas
e de ritos acompanha o uso do terreno, com a finalidade de afirmar que,
através do terreno, a comunidade se liga com as gerações passadas e com
as que lhe sucederão.

51
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V - RECALCAMENTO TEÓRICO DO CONSERVADORISMO

RECALCAMENTO TEÓRICO DO CONSERVADORISMO

A pouca atenção prestada ao conservadorismo dos camponeses,


nomeadamente em Portugal (pois encontramos algumas pesquisas
efectuadas no Europa Mediterrânica), assim como o seu recalcamento
teórico levou a dedicar uma parte desta obra a um item que apelido de -
52
53
sistema político – não só sobre a economia campesina e desenvolvimento
de que temos vindo a falar, mas também sobre a acção socio-política dos
seus agentes sociais no campo. Fixando-nos respectivamente, numa época
pós 25 de Abril, poder-se-ia dizer que o movimento das forças armadas não
fora contrariada pelos camponeses, sendo até recebida com certo alívio,
logo que se aperceberam que os seus filhos estariam livres da guerra
colonial ou voltariam da Europa onde se encontravam como desterrados.
Porém, contrariamente à dinâmica vivida nas urbes e nos campos do sul,
reinava nas aldeias do norte certa “apatia”. No entanto, foi neste contexto
que paradoxalmente, teve lugar particularmente nas regiões de norte e
centro uma avalanche de levantamentos locais. Atendendo a que, quer os
levantamentos locais, quer mais tarde, os resultados eleitorais contribuíram
para fazer inclinar à direita o peso instável das relações de força, trata-se,
porém actualmente, não tanto constatar e explicar este fenómeno, aliás não
específico da situação portuguesa, mas antes conhecer o enraizamento e a
inacção do campesinato. Aliás se quiséssemos explicar a acção campesina,
teríamos que recorrer a modelos teóricos e avaliar as correntes em que se
inseriam não só em Portugal como também na Europa.
No entanto, em meu entender, o comportamento campesino reside na
conjugação de dois factores estreitamente inter-relacionados: por um lado, a
predominância da economia agrário-campesina, por outro, as relações de
dependência pela maior parte dos moradores não só face à comunidade
envolvente (classes e instituições), como no seio da própria família e
parentesco. Por exemplo, as relações patrocinais, mais ocorrentes neste
tipo de formações agrárias, se bem que possuindo uma dinâmica própria,
estão intimamente ligadas ao tipo de economia local artesanal-campesina,
ainda relativamente autónoma e fechada até aproximadamente 1960. A
desigualdade no controlo de recursos ora directos (terra, gado, alfaias), ora
indirectos (prestígio, poder), subjaze às relações de patrocinato e
caciquismo, as quais, por sua vez, sendo ainda hoje uma realidade
manifesta que condicionam fortemente o comportamento dos indivíduos
mais desfavorecidos e dependentes. Estas relações verticais,
individualizadas, entre patronos e clientes têm contribuído para evitar que
latentes situações de conflito se polarizem e manifestem. Contrariamente a
concepções funcionalistas que, esbatendo as relações de desigualdade e
desequilíbrio socio-político analisam as relações patrocinais em termos de
relativa simetria e reciprocidade, isto, na esteira de autores como Bailey,
Wolf, Boissevain, Bloch, entre outros, patrocinato implica relação de poder,
de dominação e, por vezes de exploração em que, embora o patrono
conceda favores e preste alguns serviços, retira do cliente, além do seu
assentimento socio-político personalizado, maiores vantagens já
directamente económicas, outras indirectas como prestígio, influência e
poder. Esta última modalidade é conhecida entre nós sobe a designação de
caciquismo, o qual, enquanto forma específica de patrocinato, pressupõe

53
54
que certos chefes e notáveis locais exerçam poder através de contactos
mantidos com o aparelho camarário burocrático ou com os líderes
partidários concelhios, distritais e até nacionais. Se a história social confirma
um certo consenso sobre a constatação do clientelismo sob a I República, já
porém, quanto ao Estado Novo tem sido afirmado com frequência,
nomeadamente pela elite salazarista, que o clientelismo teria sido varrido ou
suspenso. Se bem que o caciquismo de base partidária desaparecera,
permaneceram os mecanismos de patrocianto local, os quais sendo quase
monopolizados pelos servidores locais do regime, tornaram-se mais
eficazes para a manutenção do status quo que os próprios aparelhos de
repressão do Estado central. Com o surgir do Estado Novo, a Igreja,
contribuindo para alimentar o regime com a base social de apoio
campesino-artesanal, foi adquirindo como contrapartida cada vez mais
poder nos aparelhos do Estado, gozando, em consequência, de
determinados privilégios. Através da concordata, adquiriu isenção de
censura, pagamento de impostos, prestação de serviço militar, inclusive
adquiriu poder de incursão no direito da família, nomeadamente no
impedimento do divórcio.
O povo rural, desprovido que era de recursos suficientes, era
dependente e subserviente face aos “benfeitores”. Se a ausência e
deficiência das infraestruturas (electricidade, caminhos, estradas,
transportes) assim como a inacessibilidade de meios de comunicação,
contribuíam para o relativo isolamento geo-social, esta lacuna era
aproveitada por outros para disporem a seu belo prazer. No entanto, mesmo
que precária e desigualmente, no perímetro da aldeia e no seio da família,
as suas necessidades materiais e culturais eram preenchidas: alimentação
e habitação, sexo e reprodução, auto-afirmação, comunicação e segurança.
A socialização das crianças era orientada com um forte pendor familiar.
De um modo geral, poder-se-ia dizer que, quanto mais pobres eram os
indivíduos mais se encontravam entregues à “boa vontade” ou “confiança”
dos proprietários mais abastados. Por vezes sucedia criadas e jornaleiras
acederem aos desejos sexuais dos seus patrões/patronos, a fim de lhe cair
nas boas graças e, senão comprometendo-os numa estratégia matrimonial,
pelo menos, garantir o trabalho e consequentemente, a subsistência para si
e suas famílias. A dádiva era contudo uma forma de controlo social e
político, sendo o preço de tais favores bastante elevado. Sucedia
frequentemente que as famílias de jornaleiros executavam trabalhos para
patronos em troca de uma ou duas refeições para si e eventualmente para
os seus filhos. Mesmo neste caso teriam de ficar gratos, pois o facto de
poder servir e trabalhar na casa de um proprietário constituía um sinal de
preferência e protecção, significando que este estaria disposto a ajudar a
família necessitada. Esta atitude não era contudo uma simples expressão
de “falsa de consciência”, mas uma estratégia calculada, realista, suporte do
mal menor, cujo objectivo central era a sua sobrevivência. Só no fim da

54
55
década de 60, com o aumento do movimento migratório para a Europa, é
que diminuiu um pouco a dependência dos jornaleiros e camponeses
pobres. Ou seja, a emigração constituindo válvula de escape para um
ambiente cada vez mais tenso a nível local, veio aliviar bastante, não só os
indivíduos desfavorecidos que partiram, como os que ficaram, usufruindo de
mais trabalho por falta de mão de obra, que começou a exigir pagamentos
em moeda corrente. A sobranceria e arrogância de alguns proprietários
mais abastados foi diminuindo pouco a pouco, sendo obrigados a pagar
salários pedidos ou exigidos pelos jornaleiros.

A IGREJA E O COMPORTAMENTO POLÍTICO/IDEOLÓGICO

A bem dizer, nas explicações de carácter ideológico e moral, não só é


ignorado ou subestimado o funcionamento da economia campesina, como
também os próprios camponeses são vistos como seres amorfos, sem
cultura e história próprias e instrumentos passivos de forças cegas e
pérfidas. O campesinato é frequentemente analisado a partir de fora, como
“classe objecto”, e não a partir de dentro, da sua posição. Neste sentido, é
importante recorrer-se ao método weberiano da compreensão (verstehen)
como instrumento para poder compreender e explicar a acção teológica,
empaticamente inteligível e racional das comunidades campesinas. Procurar
compreender e explicar o comportamento socio-político dos camponeses a
partir de dentro, implica não só a sua compreensão, como também o seu
conhecimento e reinterpretação da interpretação que eles fazem desse
conhecimento, explicar e explicitar a sua racionalidade e estratégias,
comportamentos e atitudes perante um passado e um quotidiano – eis o
que, à luz de um trabalho de análise e elaboração de campo, se conseguiu
como elementos de investigação histórico-sócio-políticos teóricos. A
referência política dos camponeses em relação aos seus patronos e
caciques locais, perspectivando as normas e valores grupais no quadro das
relações de poder, sem dar especial papel parapolítico e ideológico da
Igreja, era esquecermo-nos de algo adjacente e inevitável no estudo da
antropologia em meio rural. Embora com desigual intensidade, os modelos
de explicação através de conceitos como cultura, sentimento e poder
respectivamente, são rejeitados e criticados, pois ultrapassam os seus
limites empíricos e são elevados a categorias explicativas de carácter
universal constitutivo – o que se revela incompleto e insuficiente para a
perspectivação teórica que abordamos.
Políticos e ideólogos conservadores, têm considerado os camponeses
portadores de virtudes conservadoras, tais como discrição, prudência e
equilíbrio. Esta maneira de pensar tem sido desenvolvida pela corrente
funcionalista, que tenta explicar formas de acção campesina, agrupando-as
na concepção clássica de cultura. Como tal, elas devem ser explicadas
55
56
organicamente em si próprias e exclusiva ou predominantemente a partir de
si próprias, na sua totalidade cultural integradora (laços de parentesco,
língua, religião, folclore), sem qualquer referência à polarização de grupos
ou classes sociais ou mesmo a relação destes com o Estado. Numa breve
retrospectiva histórica das inúmeras revoltas campesinas é, só por si,
suficiente para desfazer esta abordagem a-histórica, idealista, e mostrar os
seus aspectos político-ideológicos tendenciosos, em proveito da
manutenção da desigualdade social/estrutural. A passividade ou a explosão
colectiva não podem ser deduzidas da soma dos indivíduos satisfeitos ou
insatisfeitos, nem tão pouco do estatuto que possuem na ordem social. Isto
implica que não há necessariamente uma relação directa de causa-efeito
entre a pobreza e a revolta. O conservadorismo campesino não é, de modo
algum, resultante nem da abundância de terra, nem de um nível de vida
confortável. Para os camponeses nortenhos, o que revoltava eram as
diferenças internas no seio das aldeias, e sobretudo as extorções do
excedente através de impostos, rendas e por vezes juros.
A orientação sociológico-política, que parte das relações para explicar
a acção dos camponeses, tem uma base mais realista que as explicações
anteriores. Não obstante o conceito de poder, ser entendido num sentido
demasiado lato, o modelo estratégico de poder oferece certamente
elementos válidos para interpretar e explicar a acção dos camponeses. O
patrocinato38, enquanto expressão de poder e controlo sobre os recursos, é
sem dúvida, uma base que permite aos seus detentores não só dispor das
fontes de riqueza, entre as quais a força de trabalho, mas também organizar
a distribuição dos bens de consumo, o que consequentemente, reforça a
sua própria posição económica. Nas primeiras tentativas de emancipação
campesina da servidão durante os levantamentos no séc.XIX (Maria da
Fonte) e nas relações políticas sob a I República jogou um papel decisivo
nas estratégias de sobrevivência e de resistência dos camponeses num
equilíbrio instável, causado pelas contradições entre facções políticas
dominante e subdominantes. Há contudo a notar, que o modelo de poder
parte implicitamente do pressuposto de que cada classe e seus membros
sabem, em sentidos estratégico e táctico, o que melhor lhes convém, como
se na base estivesse sempre subjacente uma espécie de sabedoria política
ou astúcia calculada. De modo geral, as classes camponesas sabem bem,
empiricamente, quais são os seus próprios interesses. No entanto, por
interferência de factores normativos, ideológicos, religiosos, podem também
equivocar-se quanto ao carácter político dos seus protectores locais e
sebastianistas nacionais, bem como quanto à força dos seus adversários.

38
Patrocinato: mecanismo de vinculação pessoal ou dependência do cliente em
relação a pessoa socialmente influente denominada patrono. Trata-se de um conceito
explicativo da desigualdade social tendo por base o modelo de controlo sobre
recursos directos ou indirectos.
56
57
O conservadorismo das comunidades camponesas é determinado
socialmente, e neste sentido, coincidem com a abordagem histórico-
materialista. Porém, metodologicamente considerada e tendo como princípio
a compreensão de Max Weber, a acção conservadora não é redutível à
acção social compreensível por este cientista. Isto significa que os limites da
teoria da acção weberiana se esgotam neste conceito de acção racional que
é o compreensível, que por sua vez, se encontra irrevogavelmente
abrangedor ao inserir relações sociais estruturais, que por seu turno não se
deixam reduzir à acção do “compreensível”. Com efeito, verificam-se no
chamado conservadorismo rural actos não intencionados que provindo de, e
sendo determinados por factores endógenos estruturais, não são redutíveis
à acção “compreensível”. Desde que os camponeses se encontrem
relativamente libertos do domínio de tipo feudal, sem estarem integrados no
modo de produção capitalista – ou se estiverem em grau muito reduzido –
será verosímil verificar uma atitude política passiva e esquiva. A existência
de uma relação entre as características básicas da sociedade camponesa e
a sua resistência passiva parece ser evidente. Quer os resultados obtidos
no trabalho de campo, quer os elementos recolhidos da historiografia
portuguesa, apontam para as seguintes hipóteses: os camponeses, sendo
hostis ao risco, esforçam-se por sobreviver e obter o mínimo de segurança
existencial através do controlo dos recursos disponíveis, nomeadamente
conquistando ou preservando através dos meios ao seu alcance; deitar mão
de todas as oportunidades palpáveis, a fim de melhorar as suas condições
de vida e consolidar a sua posição, bem como a dos seus descendentes.
Não obstante as limitações que implica oferecer uma esquematização da
economia ou do modo de produção rural em relação ao seu funcionamento
concreto em determinado tempo e lugar, torna-se pertinente referir algumas
características-tipo da economia campesina tradicional, tornando-se assim
um instrumento analítico importante para conhecer, compreender e
interpretar a acção campesina. Contudo, e contrariamente à concepção
evolucionista linear, partilhada pelas teorias da modernização e que
pressupõem a existência de um continuum entre a aldeia atrasada e a
cidade civilizada, o agir dos indivíduos no campo apresenta uma
racionalidade específica que nem totalmente é dominada por um qualquer
poderoso sistema exterior. A negação ou subestimação da economia na
racionalidade campesina, bem como os seus estrategemas de resistência,
conduziu a que cientistas sociais, políticos e historiadores,
sobrevalorizassem a racionalidade formal moderna, inerente à origem e
desenvolvimento do capitalismo, rotulando os camponeses como atrasados,
ignorantes, parolos e selvagens, remetendo as suas normas e valores para
o campo do irracional e do mágico, do supersticioso e do religioso. As
múltiplas estratégias destes entrecruzam-se numa gama variada de
comportamentos e de formas de acção, que de modo algum são redutíveis
à lógica da economia de mercado, cujos elementos, embora presentes, nem

57
58
sempre são dominantes ao nível microcósmico do mundo rural. É nesta
linha que o campesinato é considerado, por um lado, um estrato intermédio,
uma fracção da pequena burguesia tradicional, ou então, é equiparado
substancialmente ao proletariado, não obstante o manto jurídico, entendido
como puramente formal, da propriedade familiar. Nada de admirar que em
consequência da atribuição de categorias derivadas dos sistemas feudal e
capitalista, o mundo rural permaneça efectivamente, na expressão de Marx:
“ Um hieróglifo indecifrável para a razão do homem civilizado.”
A título ilustrativo, na formação social portuguesa de 1930-60/70 não se
verifica a proletarização, para a qual teriam contribuído as estratégias de
sobrevivência e resistência do campesinato, reforçadas aliás, pela linha
político-ideológica do nacionalismo salazarista, ruralista, adverso ao
processo de industrialização moderna. Em princípio é plausível a tese de
que quanto mais dependentes são os camponeses, maiores são as suas
possibilidades de resistência e maior a sua força de negociação perante
outros parceiros sócio-políticos. E, quanto menores forem as suas
capacidades de se organizarem e a sua influência no jogo eleitoral
parlamentar, tanto mais forte será a sua tendência para esperar a sua
“salvação” em instituições como a Igreja, o exército ou individualidades na
área do poder, favorecendo soluções bonapartistas, reflexo por sua vez das
relações patriarcais presentes em grande parte das economias domésticas
campesinas. O que se observa, é que princípios e dogmas proclamados
pelos citadinos republicanos, esbarraram com tradições imersas na
sociedade rural. A política dos republicanos, assim como os seus
interesses e valores, afrontavam directamente os camponeses. Por outro
lado, se o envio de camponeses-soldados para os campos de batalha da
Primeira Guerra Mundial, fazia aumentar o descontentamento entre as
populações rurais, a racionalidade dos “iluminados” republicanos, inclusive
dos radicais da Seara Nova, induzia-os não só a não compreender, mas
também a estigmatizar a dita “irracionalidade das crenças e das
superstições religiosas” dos camponeses, levando o regime a reprimir, pela
acção dos carbonários, moral e fisicamente os padres, o que impedia a
expressão livre das práticas religiosas. Posteriormente, o corporativismo e o
ruralismo salazarista revigoraram o bloco agrário-comercial, reforçando
deste modo a hierarquia e a desigualdade estruturais monárquicas.
Inspirando-se na filosofia escolástico-tomista, assim como nas encíclicas
papais anti-racionalistas e anti-modernistas do séc.XIX 39, o salazarismo
jogou com os sentimentos de descontentamento e angústia dos produtores
artesãos e camponeses envolvidos num quadro não capitalista, transpondo
para um cenário mistificador determinados valores da realidade rural, como
a família e dever, pátria e crença, poupança e glorificação do trabalho rural,
da sua história e tradições. Estes elementos não eram, contudo, apenas
imaginários nem faziam unicamente parte da retórica salazarista, antes,
39
Diuturnum, Syllabus e particularmente Rerum Novarum.
58
59
reflectiam os traços da realidade do Portugal agrário, designadamente das
chamadas camadas médias, e particularmente dos camponeses. Isto,
arrastou consigo um efeito de reconhecimento junto das famílias rurais, que
aos seus olhos, o regime surgia e agia como legítimo. Este aspecto
sintetizou-o Eduardo Lourenço do seguinte modo: “Para os camponeses,
Salazar era o legítimo representante da nação.” No que concerne às classes
dominantes, a ideologia e política do salazarismo contribuíram de maneira
astuta para ultrapassar as contradições internas no seio destas, permitindo
uma transição controlada, sem abalos abruptos, da sociedade agrária para
a industrial, que desde a década de 1950/60, começou a despontar.
Relativamente ao desenvolvimento das formações sociais
mercantilistas no meio rural, a tese de Max Weber, parece a mais
adequada, compartilhada e adequadamente expressa por Meillassoux: “A
ruptura entre a feudalidade e o capitalismo comercial parece secundária,
contrariamente da senhoriagem, entendida como sistema de exercício do
poder e de exploração de terra e recursos.” 40 A maior parte dos autores
portugueses e sobretudo economistas, obcecados pela análises macro-
económicas, perdem de vista não só a economia rural, como também as
estratégias familiares, em vista tanto a uma sobrevivência, como de uma
melhoria das condições de vida. Mais, podemos afirmar que, até meados do
séc.XX, a sociedade portuguesa configura-se ainda como proto-industrial e
agrária.
Enquanto instituição, a Igreja através da acção pastoral, desempenhou
não só uma função de inculcação ideológica, mas também um papel de
liderança já religioso, parapolítico, que na trajectória histórica portuguesa
tem servido desde a Idade Média da legitimação da autoridade tradicional.
Tais relações de domínio são reforçadas pelos laços hierocráticos, inerentes
a agrupamentos de tipo corporativo-religioso como a Igreja, que Weber
denomina de anstalt, bem como pela origem e ligação sócio-cultural que os
padres possuíam com os crentes, funcionando frequentemente como seus
patronos visíveis, conselheiros e líderes naturais saídos do seio do mundo
rural. O facto de a crença e a simbologia religiosas dominarem e
absorverem uma parte não negligenciável do quotidiano rural, assim como o
de a Igreja, nas suas esforçadas elaborações doutrinárias, persistir e
transpor para um quadro teológico da vontade divina, da origem e do
desenvolvimento sobrenaturais os ritos de passagem do ciclo de
desenvolvimento de unidades rurais, levou alguns autores a considerar a
religião como factor explicativo da conduta dos indivíduos em meio rural.
Porém, afigura-se-me que a metodologia de Julien Freund oferece uma
abordagem mais ajustada: “Convém que reparemos primeiramente na
política e depois na religião, vendo esta como exercício duma forma
particular de poder, em vez de nos fixarmos na religião fora do contexto

40
Meillassoux, Claude Mulheres, Celeiros e Capitais, Afrontamento, Porto, 1977.
59
60
político e a considerarmos como forma de explicação da acção.” 41Por outro
lado, dado que as crenças e as acções dos camponeses se afastam, por
vezes consideravelmente, da moral e da religião oficiais, este autor
distingue justamente a religião católica da religião popular. O catolicismo,
contrariamente ao calvinismo, por exemplo, tem evidenciado uma enorme
capacidade de adaptação e transigência em relação a desvios doutrinais,
retomando e integrando elementos animistas e antropomórficos da
chamada religião pagã popular rural, tais como a atribuição de valor e
eficácia aos ritos e preces, amuletos e água benta, numa palavra, às formas
de religiosidade popular. Dentro do grupo, cada uma da facções, reunidas e
apoiadas na influência familiar, procura disputar a seu favor a anuência, a
colaboração ou até a cumplicidade do pároco para os seus próprios
objectivos estratégicos. Enquanto dominadores políticos locais,
monopolizavam, particularmente durante o Estado Novo, toda a espécie de
transacções, distribuição de sinecuras e obtenção de arranjos no labirinto
administrativo.

CACIQUES42 E CLIENTELISMO

Entre os obstáculos mais viscosos e duradouros que, de modo


corrente, se têm verificado em diversas sociedades, designadamente na
portuguesa, sobressai o clientelismo.
Não tendo em conta este sistema de vinculação e dependência do
cliente face a uma pessoa influente, denominada patrono, a acção dos
camponeses e demais actores locais, particularmente a sua posição de
alinhamento sócio-político tradicional, e, em regra conservador, não podia
ser compreendida e explicada. Embora em contextos e sob formas
diferentes, o sistema patrocinal, sem constituir um fenómeno ubíquo e
universal, tem sido co-presente em diferentes tipo de sociedades. Seriam à
priori, os elementos da elite local, enquanto possuidores de recursos
materiais, educacionais e simbólicos, que se tornariam os inovadores e
difusores de processos de modernização sócio-económica e política das
colectividades impregnadas dos valores de pequena tradição. Podemos
fazer uma abordagem histórica da evolução do papel dos subordinadores na
tradição oral: 1) a defesa da autonomia aldeã, em que os patronos e
mediadores locais, embora conjunturalmente possam servir de elos de
contacto com instituições camarárias e centrais, funcionavam basicamente
como contrapontos catalisadores da resistência por parte das colectividades

41
Freund, Julien L’Essence du Politique, Paris, Sirey, 1965.
42
A respeito da evolução política contemporânea em Espanha, Romero-Maura,
afirma que o caciquismo enquanto forma de exercício de poder, situar-se-ia no reino
da discricionaridade, ou seja, nos antípodas da democracia e da liberdade.
60
61
e grupos relativamente isolados; 2) algumas famílias mais influentes,
designadamente os representantes do poder local, amortecendo as
reivindicações ou protestos locais, mas sem eliminar tensões que
justificassem a sua acção, assumiam o papel relevante de mediar, regular e
controlar as comunidades socialmente segmentadas; 3) a relativa
incorporação, em que os pequenos mediadores, gladiando-se pelo controlo
da gestão dos recursos públicos, funcionavam mais como simples agentes
de entidades eclesiásticas, camarárias e partidárias que os recrutavam e
conheciam, assumiam um papel repressivo.
Diversos estudos empíricos e respectivas elaborações teóricas,
nomeadamente referentes à área mediterrânica, têm mostrado que os
fortemente enraizados sistemas de patrocinato são co-determinantes do agir
submisso e resignado dos grupos rurais. Se numa perspectiva estrutural-
funcionalista, essencialmente com uma ênfase psicossociológica, autores
como Parsons e Write, caracterizam as relações patrocinais como difusas e
particularistas, não contratuais e perpassadas de relativa simetria e
reciprocidade, outros como Mauss, Pitt-Rivers e sobretudo Eisenstadt e
Roninger, reformulando premissas estruturo-funcionais, incorporam
elementos provindos de outras correntes teóricas (instrumentalidade,
coerção e assimetria), enxertadas num fundo moral de confiança e
solidariedade, aliás basicamente voluntárias, entre patrono e cliente. A
análise das relações patrocinais tem sido envolvida e particularmente
reivindicada pelas correntes configuracionista, transaccionalista e simbólico-
interaccionalista, as quais, perante a rigidez, a estaticidade e opacidade do
modelo estruturalista, destacam a função (re)estruturadora e dinâmica dos
sujeitos-actores na vida social. Numerosos são os autores para quem a
diádica ou poliádica transacção patrocinal se encontra imbuída de relações,
ora latentes, ora manifestas, da assimetria de dominação e por vezes de
exploração. Embora o patrono conceda protecção e preste alguns favores e
serviços, retira normalmente do cliente, além do seu assentimento sócio-
político personalizado, maiores vantagens. É justamente este saldo positivo
em favor do patrono entre serviços prestados por este, e os benefícios
materiais ou simbólicos colhidos do cliente, que imprime a esta relação o
carácter de negócio e pode eventualmente traduzir um determinado grau de
exploração e opressão deste por aquele.
Nas sociedades rurais tradicionais, as relações de desigualdade e de
dependência são contidas por laços diádicos e personalizados de
vinculação parental, compadria ou hierocrática. Na medida em que patrono
e cliente partilham de orientações cognitivas, valores e regras comuns, as
relações verticais individualizadas entre ambos são percebidas como
legítimas e por vezes acompanhadas de um determinado grau de
afectividade. Neste sentido, as acções dos clientes legitimam processos
dirigidos à obtenção de estigma social, e como tal distinguir-se-iam,
segundo Weber, de outras baseadas em motivações de classe. Por seu

61
62
lado, os patronos em determinadas sociedades como a portuguesa, o modo
de operar é aparentemente pacífico, subtil, travestindo-se como diz
Bourdieu, sob a forma de “violência simbólica, doce e invisível” 43. Tais
relações têm contribuído para o conformismo clientelar, evitando que,
latentes situações de conflito se polarizem, impedindo uma organização de
classe em base horizontal. O patrocinato não constitui um atributo inerente à
natureza humana, nem tão pouco um traço que não se pode apagar de
determinada cultura nacional ou regional. É antes, historicamente
condicionado e como tal, é susceptível de modificações, readaptações e até
desaparecer devido a novas situações ocorridas na sociedade moderna.
No contexto agrário, com recursos limitados, rigidez estatutária e uma
mobilidade (geo) social inexistente ou restrita, as aparentes ou reais atitudes
de apoio ou lealdade sócio-política e religiosa dos clientes face aos patronos
e também mediadores, obedeciam a imperativos racionais de sobrevivência,
segurança ou melhoria de posição social. É justamente na função mediática
mais personalizada com o grupo envolvente que as relações patrocinais,
prolongando, ainda que de modo diferente, as demais relações sociais de
parentesco e vizinhança, possuem dinâmica própria – frequentemente
envolta sob um manto moral, religioso e cada vez mais partidário – contudo
não estão desligadas das economias locais e correlativas diferenciações
sociais. O comportamento mutável de actores-clientes, assim como os
reajustamentos político-ideológicos dos seus patronos, dever-se-ão articular
com as reestruturações e mudanças no tecido sócio-económico e com a
dinâmica da micropolítica local, nomeadamente o facto de surgirem novos
canais alternativos de poder e protecção. Se a implementação do regime
pluripartidário enfraqueceu o patrocinato tradicional, tal não envolveu
necessariamente o seu desaparecimento, mas antes a sua transformação e
diluição nos arranjos institucionais, de modo a coexistir com solidariedades
de tipo horizontal. De qualquer modo verifica-se uma diminuição do papel
dos tradicionais patronos nos meios rurais em geral e na sociedade rural
transmontana em particular. À medida que se realiza o processo de
incorporação da economia rural na economia e sociedade global, as
entidades institucionais de modo subtil e mediado, não interferindo, vão
exercendo as suas funções de integração e controlo sobre as comunidades
locais. Esta é a realidade das formas políticas de acção na manobra de
valores e comportamentos inerentes aos indivíduos nos grupos rurais.

43
Bourdieu, Pierre La Distinction, Éditions du Seuil, Paris, 1979, p.45.
62
63

CONCLUSÃO

As ciências sociais e humanas, tentam conhecer aqueles aspectos da


realidade que em razão do ideal lógico generalizante das ciências
nomotéticas, não podem ser captados pelo seu método positivo. Trata-se de
acontecimentos e fenómenos concretos e singulares cujo conhecimento
necessita de meios lógicos específicos, isto é, conceitos de pequena
extensão e de grande conteúdo. Ao optar-mos pela tentativa de uma análise

63
64
empírica, visou-se precisamente dar uma imensidão de respostas a
conhecimentos concretos de uma realidade social, interpretando e
reinterpretando conhecimentos, analisando comportamentos, observando o
quotidiano e prestando particular atenção à história oral e linguagem. A
partir do terreno, o laboratório por excelência, procura-se compreender
quase tudo – a sociedade, não só envolvente, mas uma forma teórica de
partir do singular, do micro, da comunidade, para o plural, o macro, a
sociedade complexa. “Todo o objecto social de estudo é, entre muitos
possíveis, um fragmento da realidade, escolhido em função da sua
significação, do interesse e do valor que os indivíduos lhe atribuem.” 44A
acção tradicional determinada pelos hábitos e costumes dos indivíduos de
um mesmo grupo mesmo grupo local, representa o seu processo identitário,
mental e racional. “O processo de experiências e vivências fundamenta a
compreensão dos diferentes mundos constitutivos num espaço e num
período determinados: o mundo dos contemporâneos, o mundo dos
antepassados, o mundo dos pares, o mundo dos outros; um todo que
constitui o mundo da vida ou da vivência, raiz de todas as situações
societárias.”45
“Os objectos, valores, saberes – contêm o sentido que o processo de
interacção social lhes atribui, possibilitando a interpretação dessa realidade
construída e reconstruída par cada actor social. As práticas sociais são o
que os actores sobre elas sabem, compreendem e relatam. Ao cientista
social resta-lhe descrever e reinterpretar, tornando inteligível o que os
actores sociais sabem fazer, dizer saber e sabem dizer.” 46
Ao perspectivar-mos uma antropologia rural, associada a uma
antropologia do desenvolvimento, partindo de uma análise tripartida de
sistemas, procurou-se não apenas fazer uma divisão relativa do trabalho e
abordagens teóricas em si, mas também uma tentativa de aplicação de um
estudo do desenvolvimento das comunidades rurais no contexto regional,
particularmente em Trás-os-Montes. Várias questões podem ser colocadas
mesmo dentro de cada sistema individualizado, uma vez que, e
aleatoriamente, a abordagem de representações surge num contexto de
transmissão de conhecimento pela oralidade, com algumas intervenções
simbólicas de interacção e práticas quotidianas. O sistema empírico é de
carácter indutivo e contém duas etapas: a da exploração e a da inspecção.
Pela exploração, o cientista levanta o véu que cobre a realidade particular
que se investiga, permitindo assim identificar problemas, formular questões
e seleccionar dados. Pela inspecção desenvolve relações e correlações,
elabora conceitos e interpreta os resultados. Esta abordagem metodológica
exposta, privilegia determinados dispositivos técnicos de pesquisa, tais
44
Yañez-Casal, Adolfo Para uma Epistemologia do Discurso e da Prática
Antropológica, Edições Cosmos, Lisboa, 1996.
45
Idem.
46
Ibidem.
64
65
como a observação directa, o trabalho de campo, os estudos de caso, as
histórias de vida, isto é, com os métodos que o mundo da vida pode ser
captado na sua própria expressão, representatividade e realidade – o vivido
dos indivíduos. O sistema político e ideológico, é associado ao peso
histórico de vivências e comportamentos adquiridos e manifestos, latencia e
passividade política, obediência e clientelismo. No entanto, é de salientar
que é na interrelação entre os três sistemas e dinâmica destes, que o
económico e o desenvolvimento, são elementos manifestos e que lhes
proporcionam relações de acção e interpretação teórica, estando presentes
em toda a investigação e realização de qualquer estudo social. “...c’est sur
la logique de l’économique que nous devons agir, en l’integrant dans le fait
social-culturel total, d’aprés differents modèles, selon les differents cultures
chaque ensemble formant un modèle intégré: modèle de développement qui
sera aussi modèle de démocratisation économique, politique, des activités
locales, régionales et universelles, du travail en tant que valeur à égalité
avec le loisir-créateur.”47
A antropologia das sociedades rurais da Europa pode ser considerada
como um desafio para as várias teorias, particularmente do parentesco e da
organização social por exemplo, porque é muito difícil definir a realidade dos
grupos de parentesco nos termos usuais da teoria da filiação e porque as
particularidades das formas de casamento, na hipótese de uma identificação
clara, não parecem permitir uma análise estrutural clássica. A teoria da
filiação e a teoria da aliança devem ter em consideração observações que
nunca foram encaradas como pertinentes por essa teorias. O
desenvolvimento das pesquisas sobre as sociedades rurais europeias
durante os últimos vinte anos, oferece informações de primeira importância
que, todavia, contribuem para criar novos problemas, muito mais do que
resolvê-los. Talvez por isso possa ser considerada como uma riqueza
potencial. Parece-me que uma possibilidade de tratar estes factos consiste
numa análise das transmissões entre gerações, transmissões de património,
tal como das coisas imateriais: autoridade, poder e prestígio. O homem rural
é frequentemente muito feroz na defesa da sua própria identidade. A
comunidade e grupo são restritos, sendo a competição com fins económicos
e de prestígio muito intensa. A existência de uma tendência desagregadora
é reconhecida e deplorada, pois é considerada como um poderoso
obstáculo à realização dos ideais de vida do lugar de grupo. Assim, os
residentes de lugar recorrem a um conjunto de instituições, prescrições e
proibições, cujo propósito é controlar a experiência de comunidade, uma
componente muito estimada e importante da visão do mundo rural. O
significado do termo comunidade tanto pode referir um complexo de
relações sociais, como um complexo de ideias e sentimentos.

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Magalhães Godinho, Vitorino Les Finalités Culturelles du Développement, in
Revista de História Económica e Social, 8, 1981, p.10.
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O quotidiano do mundo rural, condicionado que é por factores que
transcendem o querer e as possibilidades dos indivíduos e das famílias,
potencializa as virtualidades da cooperação, entreajuda e permuta de
serviços. Estas circunstâncias tornam emergente a realização de
actividades em comum, o aproveitamento colectivo de curtos bens e o uso
comunitário de certos bens, infraestruturas e utensilagens. Estas práticas
são características de pequenos grupos. O primado das iniciativas decorre
quase em absoluto dos próprios vizinhos, que através da auto-organização
consubstanciam não só os seus direitos tradicionais, como afastam o
intervencionismo de autoridades e indivíduos alheios ao seu microcosmo, o
que constitui uma clara afirmação de localidade e autonomia, contrapostas
aos protagonismos das instituições formais que os pudessem substituir ou
enquadrar. Mesmo assim, o arroteamento, a apropriação e a alienação
através dos tempos, por parte de particulares e entidades públicas, incluindo
instituições administrativas (inclusive a Igreja), que em muitos casos
obtiveram a sua gerência, explicam a sucessiva redução de amplitude
comunitária.
Atendendo aos valores centrais que, implícita ou explicitamente, pelo
seu quadro cultural, as comunidades rurais desenvolvem, pelo menos ao
nível da sociedade tradicional, uma concepção nitidamente económica ou
tecnocrata. Os outros sectores da vida, tais como a família (nuclear ou
extensa) e os fenómenos simbólico-religiosos, revelam-se no domínio
indivídual, não passando de epifenómenos secundários ou periféricos, cujas
formas de evolução são determinadas pela realidade mais tangível e
identificável do sistema económico.
Estará a antropologia a distanciar-se do ruralismo por falta de conceitos
e formulações clássicas que lhe concedam uma estrutura básica de
análise? Ou por outro lado, será mais conveniente conceber e estudar
grupos definidos e quantitativamente quantificados, recorrendo a inquéritos
do género sociológico para investigar-mos as sociedades complexas.
Porque continuarmos a aproximarmo-nos de sociedades simples e
elementares, quando possuímos uma imensidão de objectos de estudo nas
nossas sociedades, principalmente as identidades particularistas e
regionais? Qual a diferença entre dedicarmo-nos um grupo de camponeses
europeus ou uma tribo indígena? Ambos são objectos e ambos são
antropológicos. Poderá a antropologia contribuir para um conhecimento e
desenvolvimento harmonioso da sociedade global? Suponho que sim, mas
primeiro é necessário estudá-la. A Europa em geral e Portugal em particular,
são autênticos puzzles culturais, interpretemo-los.

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