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JULHO/AGOSTO 2012

ANO LXVII – Nº 469 – R$ 4,50


DIGESTO ECONÔMICO - JULHO/AGOSTO 2012 - ANO LXVII - Nº 469

O PODER
DA PALAVRA
Olavo de Carvalho
Olavo de Carvalho -
uma visão do mundo
A revista Digesto Econômico, da Associação
Comercial de São Paulo (ACSP), reúne neste
número 46 artigos publicados por Olavo de
Carvalho no Diário do Comércio, jornal da entidade. A
simples observação da diversidade dos temas abordados
revela a amplitude dos conhecimentos do autor, que trata

Masao Goto Filho/e-SIM


de assuntos de natureza tão diversa, mas sempre
lastreado em uma linha coerente de argumentação,
baseada não apenas em vasta cultura, como,
principalmente, em sua escala de valores.
Olavo de Carvalho transita da filosofia para o jornalismo
com a mesma naturalidade com que ora é o professor
didático e ora um polemista dos mais temíveis.
Uma das contribuições mais importantes do jornalista Olavo foi a divulgação da
criação e os objetivos do FORO DE SÃO PAULO por Lula e Fidel Castro em 1990, que
reunia toda esquerda latino-americana, inclusive grupos guerrilheiros, com o objetivo
de realizar ações comuns com vistas à conquista do poder no continente e à
implantação do socialismo.
Durante muitos anos a imprensa em geral ignorou a existência dessa organização,
ou minimizou sua importância, sendo o autor da denúncia considerado como
"paranoico", por vislumbrar o alcance pretendido pelo FORO e seus reais objetivos.
Hoje, com diversos países da América Latina com governos de esquerda, e com
políticas claramente voltadas para o controle do poder total, parece difícil que se
continue a ignorar não apenas a existência, como a atuação do FORO.
A leitura dos artigos de Olavo de Carvalho que o Digesto está publicando propiciará
ao leitor uma visão bastante abrangente de um cenário mundial em profundas
transformações, muitas das quais ainda despercebidas, e também da realidade
brasileira em seus múltiplos aspectos.
Pode-se concordar com todas ou com algumas das opiniões de Olavo Carvalho,
como também se pode discordar integralmente de suas posições, mas, seguramente,
a leitura de seus textos nos levará a refletir sobre os temas abordados, muitos dos quais
escaparam até o momento de nossa atenção.
Boa leitura.

Rogério Amato
Presidente da Associação Comercial de
São Paulo e da Federação das Associações
Comerciais do Estado de São Paulo.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 3


ÍNDICE

Política Nacional
10 O Foro de São Paulo, versão anestésica
Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3180-3737
CEP 01014-911 - São Paulo - SP 13 O mistério da KGB mental brasileira
home page: http://www.acsp.com.br
e-mail: acsp@acsp.com.br
17 A direita a serviço da esquerda
Presidente
Rogério Amato
20 Top-Top e Fuc-Fuc
Superintendente Institucional
Marcel Domingos Solimeo
22 Fraqueza suicida
24 Maquiavel e os bobos
25 PT, o partido dos ricos
28 O nacionalismo contra a nação
ISSN 0101-4218
29 Aritmética do engodo
Diretor-Responsável
João de Scantimburgo
Diretor de Redação
Aborto
Moisés Rabinovici
Editor-Chefe
31 Debatendo com o crime
José Guilherme Rodrigues Ferreira

Movimento Gay
Editores
Carlos Ossamu e Domingos Zamagna
Chefia de Reportagem
José Maria dos Santos
32 Consequências mais que previsíveis
Editor de Fotografia
Alex Ribeiro
Pesquisa de Imagem
36 Estupro psicológico estatal
Mirian Pimentel
Editor de Arte
José Coelho Forças Armadas
Projeto Gráfico
Evana Clicia Lisbôa Sutilo 37 Diagnóstico da situação
Diagramação
Evana Clicia Lisbôa Sutilo 38 Incomparáveis
Artes
Max e Zilberman
Gerente Executiva de Publicidade
Sonia Oliveira (soliveira@acsp.com.br) 3180-3029
Gerente de Operações
Valter Pereira de Souza

Impressão
Log & Print Gráfica e Logística S.A.
CAPA
REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE
Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 Arte: MAX
PABX (011) 3180-3737 REDAÇÃO (011) 3180-3055 A nuvem de palavras da capa destaca os
FAX (011) 3180-3046
termos que aparecem com maior frequência
www.dcomercio.com.br no texto de apresentação de Olavo de
Carvalho, que está nas páginas 6 a 9.

4 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


Liberalismo e Conservadorismo Filosofia e Cultura
40 O patinho feio da política nacional 66 A autoridade religiosa do mal
45 Fugindo à luta 70 A fórmula para enlouquecer o mundo
47 Como debater com esquerdistas 74 Afinal, lutamos contra quem?
77 URSS, a mãe do nazismo
Política Internacional
48 Pato sentado Comunismo e Marxismo
49 Demonstração de autoridade 80 Excesso de delicadeza
50 Obama, o enigma 82 O orvalho vem caindo
52 A próxima crise americana 85 Na lista negra da História
54 Breve lição de sociologia 87 A escória do mundo
55 O candidato do medo
Mídia com Máscara
57 Segredos e mentiras sem fim
88 O diário do passado
59 O surrealismo no poder
90 Burrice e Vigarice
Globalismo
Meditações Filosóficas
60 Contradições do laicismo
92 Quando a alma é pequena
61 A mão invisível do globalismo
95 A evolução da evolução
Islamização do Ocidente 97 O cume do progresso humano
63 O segredo da invasão islâmica 99 A consciência da consciência
101 Errando e aprendendo
104 Um capítulo de memórias
106 Pecadores, com a graça de Deus
109 A elite que virou massa

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A palavra do autor

É pela segunda vez que a Associação Comercial de São


Paulo, uma das instituições mais nobres do Brasil, me
honra com uma edição especial do Digesto Econômico
consagrada aos artigos que publiquei no Diário do Co-
mércio. A utilidade desta coletânea, no entanto, vai muito além
do que ela possa significar para mim pessoalmente como reco-
nhecimento de um trabalho que não reivindica outro mérito
ou sobre as doenças cardíacas do que Stálin teve sobre a popu-
lação soviética ou Mao Dzedong sobre a chinesa.
Segunda. Um dos mitos fundadores da nossa civilização é a
crença de que os progressos da ciência e da tecnologia "aumen-
tam o nosso poder sobre a natureza". Eles o fazem, sim, porém
aumentam incomparavelmente mais o poder de uns homens
sobre outros homens. Em primeiro lugar, porque só a parte me-
além do esforço e da sinceridade: ela fornece aos leitores a opor- nor e mais inofensiva dos avanços tecnológicos é posta à dis-
tunidade de sondar a unidade de pensamento por trás de opi- posição direta das massas; os equipamentos mais nobres, so-
niões que, espalhadas em fatias, à base de duas por semana, tal- fisticados e perigosos ficam para uma minoria ínfima a serviço
vez não pareçam senão a expressão escrita de impressões de mo- dos governos ou de grupos bilionários. Em segundo lugar,
mento, como o são em geral os artigos de jornal. porque a própria tecnologia cria meios cada vez mais eficientes
Para aqueles que seguem regularmente as minhas aulas e con- de controle social, dos quais a massa, na maioria dos casos,
ferências, essa unidade é autoevidente: nada escrevo na mídia nem chega a tomar conhecimento.
que não seja para ilustrar com fatos da atualidade os princípios Terceira. Independentemente da variação dos meios de
que expus na minha apostila Questões controle, a diferença de poder entre os indivíduos é uma das
de Método nas Ciên- poucas constantes históricas jamais desmentidas pelos fatos.
Ela é mesmo um traço diferencial da espécie
cias Humanas e em vá- h u m a n a . N e-
rios cursos de filosofia política, como aquele que
proferi para os alunos de pós-graduação em Administração Pú- n h u m t i-
blica na PUC do Paraná em 2004 e depois para um grupo privado gre teve jamais o poder de trucidar mi-
em Colonial Heights, Virginia, em abril de 2008 e abril de 2009. lhões de tigres com a simples assinatura de uma ordem de ser-
Para o público em geral, ela não é coisa tão facilmente visível por viço. O mais poderoso dos leões controla uma tribo de quaren-
trás da variedade de temas e de ângulos de enfoque que aparecem ta ou cinquenta membros, e mesmo assim seu poder de
nos meus artigos. Para resumi-la, digo o seguinte: trata-se, em úl- comando é diariamente contestado por desafiantes. Para ver
tima instância, de compreender a política como expressão do po- quanto sua liderança é precária, não é preciso compará-la com
der de ação concedido aos homens pela natureza das coisas. Em a de um imperador romano ou de um tirano moderno: o caci-
que consiste esse poder e como ele se manifesta na sociedade? que e o pajé são autoridades estáveis, vitalícias, com poder de
O poder pode ser definido, no sentido mais geral e abstrato, vida e morte sobre qualquer membro da tribo. Não há fenôme-
como a capacidade de ação consciente destinada a modificar no comparável em todo o reino animal.
um estado de coisas (subentendendo-se que a tentativa de evi- Com base nessas três observações, que tão logo enunciadas
tar modificações é já uma modificação, como por exemplo revelam sua obviedade, pode-se investigar o mais importante
quando se impede a disseminação de uma epidemia ou se fenômeno da história política, que é a variação das diferenças
aborta uma revolução). de poder entre as elites dominantes e a multidão dos domina-
A ação humana tem como objeto, seja os materiais forneci- dos. Essa variação resulta de diversos fatores, mas um deles es-
dos pela natureza, seja os próprios seres humanos tomados in- tá sempre presente: a posse dos meios materiais de controle so-
dividual ou coletivamente. Esta distinção já traz à mostra três bre a multidão. No seu tratado clássico, Tragedy and Hope, o
realidades fundamentais, que os teóricos da política teimam historiador americano Carroll Quigley analisa um desses
em negligenciar: meios, que é a posse das armas:
Primeira. O poder de ação dos homens sobre a natureza é
incomparavelmente menor que o poder de ação de uns ho- "Quando as armas são baratas de comprar e tão fáceis de usar que
mens sobre outros homens. A conduta animal, as mudanças do qualquer um pode usá-las após um curto período de treinamento, os exér-
clima, os terremotos e furacões, assim como uma infinidade de citos geralmente se compõem de massas de soldados amadores. A Era de
doenças, ainda resistem mais eficazmente ao controle humano Péricles na Grécia clássica e o século XIX na Civilização Ocidental foram
do que a sociedade – qualquer sociedade – resiste às investidas épocas de 'armas de amador' e de cidadãos-soldados. Mas o século XIX foi
de um grupo empenhado em sobmetê-la a domínio totalitário. precedido de uma época em que as armas eram caras e requeriam longo
A medicina tem menos poder de controle sobre o vírus da Aids período de treinamento. Períodos de 'armas de especialista' são geral-

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mente períodos de exércitos pequenos de soldados pro-
fissionais (usualmente mercenários). Num período de
'armas de especialista", a minoria que possui essas ar-
mas pode geralmente forçar à obediência a maioria que
não as tem; portanto um período de 'armas de especia-
lista' tende a dar surgimento a um período de domínio
pelas minorias e de governo autoritário. Mas um pe-
ríodo de 'armas de amador' é um período no qual todos
os homens são mais ou menos iguais em poder militar,
uma maioria pode forçar a minoria a se submeter, e en-
tão tende a surgir um governo de maioria ou mesmo
democrático. O período medieval, no qual a melhor ar-
ma era geralmente um cavaleiro montado (claramente
uma arma de especialista), foi um período de domínio
da minoria e governo autoritário. Mesmo quando o ca-
valeiro medieval foi tornado obsoleto pela invenção da
pólvora e pelo aparecimento das armas de fogo, estas
novas armas eram tão caras e tão difíceis de usar (até
1800), que o domínio da minoria e o governo autori-
tário continuaram a existir... Mas, depois de 1800, as
armas se tornaram

mais baratas e fáceis de


manejar. Por volta de 1940 um Colt custava 27 dólares,
um mosquete Springfield não mais que isso, e estas
Divulgação
eram armas tão boas quanto qualquer outra que se po-
dia adquirir naquele tempo. Assim, exércitos de massa
de cidadãos, equipados com essas armas baratas e fáceis de usar, come- bispos, que eram escolhidos pelos governantes locais, em geral
çaram a substituir os exércitos profissionais, a partir de 1800 na Europa na base do mais descarado nepotismo. Foi só com a invenção da
e mesmo antes disso na América. Ao mesmo tempo, o governo democrá- imprensa e o progresso dos correios (graças ao crescimento das
tico começou a substituir os governos autoritários." burocracias estatais nacionais, que por outro lado eram focos de
resistência à autoridade da Igreja) que o Papa conseguiu, sobre-
Isso é de uma exatidão assustadora, mas as armas, com toda a tudo após o Concílio de Trento, nomear os bispos, impor ao clero
evidência, não são os únicos instrumentos requeridos para o alguma coerência doutrinal e transformar a Igreja na moderna
controle da sociedade. Elas só entram em linha de conta nos mo- estrutura centralizada que conhecemos (e que desde o Concílio
mentos de crise e violência. No restante do tempo, funcionam Vaticano II está se desmantelando a olhos vistos).
apenas como ameaças virtuais, que operam mais pelo seu valor Isso é só um exemplo de quanto a visão popular da História é
simbólico que pela sua ação material. Mais decisivos são os quase sempre um tecido de fantasias sem nenhuma conexão
meios de comunicação. É muito fácil repetir como um papagaio com a realidade. Mas às vezes a tendência à elucubração fantás-
o lugar-comum de que "na Idade Média o Papa mandava na Eu- tica afeta os melhores cérebros, quando iludidos por ideias ge-
ropa". Mas, oito ou sete séculos atrás, um decreto papal levava rais que se sobrepõem à análise dos fatos concretos. De modo
meses ou anos para chegar a todos os membros do clero, tinha de geral, todos os amantes da democracia padecem dessa enfermi-
ser enviado a cada cidade ou paróquia por um portador indi- dade, quando acreditam que o processo histórico vai na direção
vidual, numa época em que viajar pelas estradas, a pé, a cavalo da maior liberdade e de garantias cada vez mais efetivas para os
ou de carruagem, era quase uma promessa de morte certa, ou direitos do cidadão. Sem contar o fato de que os benefícios da
pelo menos de assalto. Na verdade, o Papa não controlava nem democracia ainda não se estenderam a dois terços da humani-
mesmo a própria Igreja. Não tinha sequer o poder de nomear os dade, o fato é que o movimento da História no Ocidente moder-

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no só vai no sentido da maior liberdade se o enxergamos exclu- publicado?" A pergunta adequada seria exatamente o inverso:
sivamente desde o ponto de vista institucional e jurídico. Aí sim "Por que é tão importante que tenha de ser escondido?" Afinal,
a maioria desarmada parece melhor defendida contra a prepo- todos os antecessores de Obama nunca recusaram mostrar seus
tência dos poderosos do que o esteve em outras épocas. Mas, se documentos ao público. Ele é o primeiro que os esconde. A anor-
examinamos o progresso dos meios materiais de ação e sobre- malidade dessa conduta foi tão bem camuflada pela grande mí-
tudo de algumas ciências humanas como a psicologia das mas- dia, que, ao contrário, o desejo de saber de Obama aquilo que
sas e a engenharia social, notamos duas realidades inegáveis, sempre se soube de todos os outros presidentes é que começou a
que geralmente escapam à observação popular: parecer anormal, doentio, paranoico.
Primeira. O progresso da técnica colocou à disposição das eli- É evidente que o controle de informações não tem de ser com-
tes dominantes novos meios de ação capazes de ampliar o seu pleto e abrangente, como o é nas ditaduras totalitárias em que os
poder até níveis que o mais ambicioso tirano da Antiguidade, da meios de comunicação são propriedade do Estado. Basta, para
Idade Média ou de qualquer outra época anterior à nossa jamais os fins imediatos da política, um controle por média estatística,
teria ousado sonhar. Só para lhes dar um exemplo brutal, a to- soberanamente indiferente aos vazamentos das informações in-
talidade da "grande mídia" americana pertence hoje a apenas desejadas por meios de comunicação minoritários e politica-
seis grupos bilionários, de modo que o controle do fluxo de in- mente inócuos. Desse modo, a persistência das instituições de-
formações que chega ao público se tornou uma brincadeira de mocráticas formais torna-se perfeitamente compatível com a
criança. O horizonte de visão da massa popular é hoje um pro- supressão dos meios de exercer um direito democrático funda-
duto industrial planejado e calculado – e isso não está aconte- mental, que é o de votar sabendo em quem se vota.
cendo numa ditadura comunista, mas no país que se vê como o Segunda. A clássica expressão de Alain, le citoyen contre les
defensor e disseminador por excelência das liberdades demo- pouvoirs, que resume o ideal das lutas democráticas, é usual-
cráticas. O poder que isso confere à elite é praticamente ilimi- mente interpretada no sentido da rebelião libertária contra o po-
tado. Uma das regras mais básicas do método historiográfico der estatal. Um liberal de quatro costados como José Ortega y
ensina que a difusão dos fatos é causa de novos fatos. Controlar Gasset proclamava, nos anos 30: "El mayor enemigo, el Estado".
o horizonte de visão é controlar a conduta política das massas. Acontece que, nas condições da moderna sociedade, os cen-
Um episódio recente pode tros decisivos do poder nem sempre coincidem com o Estado.
Às vezes transcendem as fronteiras nacionais e usam os Esta-
dos como seu instrumento e camufla-
ilustrar este fenômeno com clareza
máxima. Quando a campanha de Barack Hussein Obama acu-
sou o candidato Mitt Romney de não ter apresentado ao público gem. Um exemplo trágico é a his-
sua última declaração do imposto de renda, o fato foi alardeado tória do anticomunismo americano. Seguindo meio às tontas a
em todos os grandes jornais e canais de TV, dissuadindo milhões doutrina Morgenthau, de que os agentes essenciais do cenário
de pessoas de votar no candidato republicano. Seu oponente, no politico mundial são os Estados, aquele movimento só comba-
entanto, mantém lacrados e secretos praticamente todos os seus tia a ação comunista quando enxergava nela uma vinculação
documentos – certidão de nascimento, registros médicos, pas- direta entre o agente e o governo soviético ou chinês. Todo o
saportes, histórico escolar, identidade previdenciária, etc, etc. O restante da "esquerda" parecia-lhe expressão inocente de um
atual presidente, o homem mais famoso dos Estados Unidos, "progressismo" espontâneo, livre de contaminação comunis-
continua um perfeito desconhecido. Sua vida é um mistério. Sua ta. Isso estaria certo se, desde os anos 50, o governo soviético já
biografia oficial é uma lenda, no sentido técnico que esta palavra não estivesse preparando a grande transmutação do movi-
tem nos serviços de inteligência: a construção de um persona- mento comunista mundial que viria a marcar, em todo o pla-
gem fictício para fins de desinformação geral. No entanto, como neta, a história das décadas seguintes. Refiro-me à dissolução
nenhuma palavra contra essa lenda se lê em toda a grande mí- da rígida estrutura hierárquica nos partidos comunistas e sua
dia, metade da nação continua aceitando a lenda como se fosse substituição pela organização mais flexível em "redes", mais
uma verdade de evangelho, e mostra sincera indignação quan- unificadas pela hegemonia cultural do que por uma linha for-
do alguém ousa perguntar sobre os documentos escondidos. mal de comando. Essa mutação permitiu que o movimento co-
Num recente programa de TV, um repórter, sem disfarçar uma munista, agora sob múltiplas identidades, não só sobrevivesse
ponta de irritação, perguntou a Donald Trump: "Afinal, por que à queda da URSS, mas crescesse formidavelmente em todo o
o histórico escolar de Obama é tão importante que tenha de ser mundo, contra todas as previsões de liberais, conservadores e

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anticomunistas em geral. Na verdade, o movimento comunis- cebem algo dessa unidade e entrem em especulações fantasio-
ta nunca foi apenas um "braço da URSS": ele antecedeu a URSS, sas sobre "poderes secretos", que em geral não são secretos de
ele a criou, ele a desfez e ele a está refazendo. Mas o "movimen- maneira alguma, apenas demasiado highbrow para a média da
to comunista" não é, em si, um poder estatal. Também não o são compreensão jornalística. Isso inclui os próprios serviços se-
os grandes grupos globalistas bilionários que desde o início do cretos dos diversos governos, cujos segredos acabam quase
século XX lutam pelo estabelecimento mundial de um tipo de sempre sendo relevados, porém tarde demais para que o ob-
socialismo brando, de inspiração fabiana, a ser implantado por servador vulgar junte as pontas e apreenda a unidade estra-
via burocrática e não revolucionária. Apóstolos do socialismo tégica por trás de acontecimentos que lhe parecem não ter co-
fabiano ocupam hoje posições de comando em todos os gover- nexão alguma. Em todo esse universo de fatos e investigações,
nos e partidos políticos do Ocidente, inclusive os mais "conser- o analista precisa de alguma habilidade para equilibrar-se na
vadores". Também não é um poder estatal a religião islâmica, corda bamba entre os dois extremos da estupidez jornalística
que hoje se afirma como um dos fatores mais influentes e de- imperante: a "teoria da conspiração", que só acredita em agen-
cisivos. O analista político treinado para pensar em termos de tes invisíveis onipotentes, e a "teoria da pura coincidência",
que só acredita em ações sem agente nenhum.
Um dos objetivos constantes da minha colaboração no Diário
do Comércio tem sido, justamente, o de chamar a atenção dos
leitores para esses aspectos que, por trás da "política" em sentido
banal, são os decisivos para a compreensão do atual processo
histórico. Sem nenhuma presunção, acredito que o sucesso dos
meus artigos se deva ao fato de que os leitores sentem neles al-
gum sabor de realidade. Ao conceder-me a honra desta coletâ-
nea, a Associação Comercial de São Paulo mostra que seus
membros têm amor à investigação dos fatos e ao esforço de com-
preensão, mais do que ao culto usual das miudezas "políticas" de
que se ocupa a mídia popular. É para mim um grande prazer po-
der escrever para um público inteligente,
que deseja conhe-

cimento e não diversões anestésicas.


Agradeço, nesta oportunidade, a Rogério Amato, a Guilher-
Estados, governos, leis, instituições, partidos, etc., não pode me Afif Domingos, a Moisés Rabinovici, a Marcel Solimeo, a
enxergar nunca, ao menos com clareza, essas novas estruturas Carlos Ossamu, a Vilma Pavani e a todos os que, no Diário e no
de poder que estão moldando a história do mundo ante os Digesto, têm sabido compreender a boa intenção dos meus es-
olhos cegos da multidão. forços e perdoar alguma falha nos resultados.
É também certo que, nessa ordem de investigações, é vital P. S. - Não posso encerrar este prefácio sem um depoimento
ter sempre em mente a distinção, que Georg Jellinek conside- pessoal. Já faz sete anos que escrevo semanalmente para o Diá-
rava a mais importante no estudo da política, entre os proces- rio do Comércio e de vez em quando para o Digesto Econô-
sos histórico-sociais que expressam um plano deliberado e os mico. Ao longo de todo esse tempo, jamais me veio de algum
que resultam da combinação fortuita de ações separadas e in- diretor do jornal, da revista ou da Associação Comercial de São
conexas. É natural que planos de longuíssimo prazo, como os Paulo qualquer insinuação, por mínima e sutil que fosse, quan-
do socialismo fabiano e os da islamização global, surjam à su- to ao que eu deveria dizer ou calar. Numa época em que tantos
perfície da sociedade sob a forma de fatos inconexos e espon- comentaristas de mídia se tornaram porta-vozes de interesses
tâneos, que o observador vulgar tenderá a explicar por gene- partidários, de grupos de pressão ou mesmo de agências po-
ralizações pseudo-sociológicas em vez de buscar-lhes a unida- líticas internacionais, poder expressar meus próprios pontos
de profunda e as concepções estratégicas originárias. É tam- de vista sem interferências é um raro privilégio.
bém compreensível que investigadores ousados, mas sem o
devido preparo científico, se sintam assustados quando per- Olavo de Carvalho

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POLÍTICA NACIONAL

O Foro de São Paulo,


versão anestésica
D epois de esconder por dezesseis anos a existência da
mais poderosa entidade política latino-americana,
a mídia chique deste País, vencida pela irrefreável
divulgação dos fatos na internet, trata agora de dis-
farçar, como pode, o mais torpe e criminoso vexame jornalís-
tico de todos os tempos. O expediente que usa para isso é ainda
mais depravado: caluniar, difamar, sujar a reputação daqueles
gado. E não vem por via de nenhum jornaleco de partido, de
nenhum panfleto petista. Vem pela Folha de São Paulo, pelo
Globo, pelo Estadão, pelo jornal Valor – os órgãos da burguesia
reacionária, segundo o site oficial do PT.
Que é que posso concluir disso, objetivamente, senão que a
esquerda radical conseguiu impor à grande mídia a sua escala
de mensuração ideológica e o correspondente vocabulário,
poucos que honraram os deveres do jornalismo enquanto ela agora aceitos como opinião centrista, equilibrada, mains-
não se ocupava senão de prostituir-se, vendendo silêncio em tream, enquanto as opiniões que eram da própria grande mí-
troca de verbas estatais de propaganda. dia ontem ou anteontem já não podem ser exibidas ante o pú-
Envergonhada de si mesma, ela não tem nem a dignidade de blico, porque se tornaram politicamente incorretas?
citar nominalmente essas honrosas exceções. Será extremismo de direita concluir que o ei-
Designa-as impessoalmente, fingindo supe- xo, o centro, se deslocou vertiginosamente para
rioridade, mediante pejorativos genéricos. O a esquerda, criminalizando tudo o que esteja à
mais comum é "radicais de direita". Encontro-o direita dele próprio? Será extremismo de direita
de novo no artigo "Os limites de uma onda es- concluir que a única direita admitida como de-
querdista", assinado por César Felício no jornal cente na mídia chique é o tucanismo – abortista,
Valor no último dia 12. gayzista, quotista racial, desarmamentista, po-
O autor é uma nulidade absoluta, e eu jamais Como é possível que liticamente corretíssimo, padrinho do MST e fi-
comentaria uma só linha da sua fabricação se as encontros esquerdistas liado à internacional socialista, além de bettista
nulidades não se tivessem tornado, num jorna- e boffista, quando não abertamente anticristão?
anuais repetidos ao
lismo de ocultação, os profissionais mais neces- Será extremismo direitista notar que o traço
sários e bem cotados. Por favor, não me acusem longo de uma década e mais saliente dessa direita bem comportadinha
de caçar mosquitos. Compreendam o meu dra- meia, com centenas de é a abstinência radical de qualquer veleidade
ma: nas presentes circunstâncias, a recusa de fa- participantes, entre os anticomunista? Será extremismo de direita en-
lar de nulidades me deixaria totalmente despro- quais vários chefes de tender que esse fenômeno é a manifestação lite-
vido de material nacional para esta coluna. ral e exata da hegemonia, tal como definida por
Estado, não chamem
A primeira coisa que tenho a dizer a esse mo- Antonio Gramsci? Será extremismo de direita
leque é bem simples: Radical de direita é a vó. atenção, exceto de concluir que o establishment midiático deste
Antigamente, chamava-se por esse qualificati- radicais de direita? País é, no seu conjunto, um órgão da esquerda
vo o sujeito que advogasse a matança sistemá- militante mesmo nos seus momentos de super-
tica de comunistas, como os comunistas advo- ficial irritação antipetista, quando jamais profe-
gam e praticam a matança sistemática de populações inteiras. riu contra o partido dominante uma só crítica que não viesse de
Hoje em dia, para ser carimbado como tal, basta você ser contra dentro da esquerda mesma e que não fosse previamente expur-
o aborto ou o casamento gay. Basta você achar que o Foro de São gada de qualquer vestígio de conteúdo ideológico direitista?
Paulo existe e é perigoso. Basta você fazer as contas e notar que Qualquer pessoa intelectualmente honesta sabe que um juí-
centenas de prisioneiros morreram de tortura na Guantanamo zo de fato não pode ser derrubado mediante rotulação infa-
cubana e nenhum na americana. Basta você apelar à matemá- mante. Tem de ser impugnado pelo desmentido dos fatos. Se
tica elementar e concluir que a guerra do Iraque matou muito quiser rotulá-lo, faça-o depois de provar que é falso. Não antes.
menos gente do que o regime de Saddam Hussein sob os olhos Não em substituição ao desmentido. Ora, o tal Felício, em vez
complacentes da ONU. Se você incorre em qualquer desses pe- de desmentido, fornece uma brutal confirmação. Vejam só:
cados mortais, lá vem o rótulo infamante grudar-se na sua pes- "O grupo que se reúne a partir de hoje em San Salvador... aten-
soa indelevelmente, como marca de escravo fujão ou ferrete de de pelo nome de 'Foro de São Paulo' e nasceu sob o patrocínio do

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Corbis
PT, em 1990. Os en- citando documento
contros anuais não oficial da entidade,
costumam chamar alardear que "na pri-
muita atenção, a não meira reunião do
ser de certos radicais grupo, em 1990, os
de direita no Brasil." integrantes estavam
Ora, como é possí- no governo em um
vel que encontros es- único país: Cuba.
querdistas anuais re- Hoje desfrutam o
petidos ao longo de poder na Venezuela,
uma década e meia, Brasil, Bolívia, Nica-
com centenas de rágua, Argentina,
participantes, entre Chile, Uruguai e
os quais vários che- Equador"? Você acha
fes de Estado, não mesmo que a organi-
chamem atenção, zação que planejou e
exceto de radicais de dirigiu a mais espe-
direita? Ninguém na tacular e avassalado-
esquerda prestou ra expansão esquer-
atenção ao Foro de dista já observada no
São Paulo? O sr. Lula continente é um na-
fez um discurso pre- da, um nadinha, no
sidencial inteiro a qual só radicais de
respeito sem prestar direita ou teóricos da
a mínima atenção à conspiração pode-
entidade da qual fa- riam enxergar algu-
lava? Antes disso, ma coisa?
quando presidia Na verdade, o
pessoalmente as ses- próprio Felício en-
sões da entidade até xerga ali alguma coi-
2002, não lhes pres- sa. Ele cita o docu-
tou nenhuma aten- mento oficial: "Pas-
ção? Entrava em samos a controlar
transe hipnótico e uma cota de poder,
balbuciava mensa- mas as outras cotas
gens do além, sem se continuam sob con-
lembrar de nada ao trole das classes do-
despertar? Os jorna- minantes. Os cha-
listas de esquerda mados mercados, as
que, às dezenas, grandes empresas
compareceram aos debates, foram lá por pura desatenção, dor- de comunicação, os setores da alta burocracia do Estado, os co-
miram durante as assembleias e voltaram para casa sem coisa mandos centrais das Forças Armadas, os poderes Legislativo e
nenhuma para contar? O sr. Bernardo Kucinsky, um dos fun- Judiciário, além da influência dos governos estrangeiros, com-
dadores da entidade, que emocionado assistiu ao nascimento petem com o poder que possuímos."
dela num encontro entre Fidel Castro e Lula, não prestou a mí- Ou seja: a entidade que já domina os governos de nove paí-
nima atenção àquele momento supremo da sua vida de mili- ses não admite, não suporta, não tolera que parcela alguma de
tante esquerdista? Pago com dinheiro público para relatar aos poder, por mais mínima que seja, esteja fora de suas mãos.
eleitores os atos presidenciais, calou-se por mera distração, e Nem mesmo as empresas de comunicação e o Judiciário, sem
também por mera distração guardou os fatos para contá-los cuja liberdade a democracia não sobrevive um só minuto. Com
depois no seu livro de memórias, onde só os colocou porque a maior naturalidade, como se fosse uma herança divina ine-
não tinham a mínima importância? rente à sua essência, o Foro de São Paulo, com a aprovação ri-
Ora, menino bobo, você não sabe a diferença entre a desaten- sonha do nosso partido governante, reivindica o poder dita-
ção e a atenção extrema acompanhada de um propósito delibe- torial sobre todo o continente.
rado de ocultar? Que você seja desprovido do senso da verdade, Felício lê esse documento assim: "Os limites a um poder ab-
vá lá. Sem isso não se sobe no jornalismo brasileiro. Mas será que soluto parecem incomodar os participantes do encontro." Pa-
você precisa também desprover-se do senso do ridículo ao pon- recem, apenas parecem. Quem ficaria alarmado com aparên-
to de tentar minimizar a importância do Foro e logo em seguida, cias, senão radicais de direita? Afinal, eles vivem enxergando

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 11


comunistas embaixo da cama, não é mesmo? grande porte, se alinham com essa opinião majoritária? Não
Para tranquilizar a população, Felício trata de lhe mostrar fiz nenhuma enquete, mas, por experiência pessoal, afirmo:
que no Foro não há socialismo nenhum, apenas o bom e velho poucos ou nenhum. A leitura diária dos jornais confirma isso
populismo nacionalista, tão difamado pelos agentes do impe- da maneira mais patente.
rialismo. "Um mesmo discurso estava presente na oposição a A opinião pública brasileira não é refletida nem represen-
Perón e a Getúlio nos anos 40 e 50. Reapareceu, quase igual, no tada pela grande mídia. Não tem direito a voz, a não ser por
tipo de ataque recebido ano passado por Lopez Obrador no exceção raríssima concedida a algum colaborador ocasional só
México e Evo Morales na Bolívia." para depois ser exibida como exemplo de aberração extremis-
A circunstância de que, ludibriados por milhares de Felí- ta, felizmente compensada pela pletora de articulistas serenos,
cios, até membros da oposição temam dar nome aos bois, pre- normais e equilibrados, que igualam George W. Bush a Hitler e
ferindo falar de "populismo" em vez de comunismo, é usada Abu-Ghraib a Auschwitz.
como prova de que o Foro não é A ideia mesma de que uma mídia só pode ser equilibrada
uma organização comunista. O quando reflete proporcionalmente a divisão das correntes de
fato é que as ideias e as pessoas opinião no País já desapareceu por completo da memória na-
dos velhos populistas jamais cional. O simples ato de enunciá-la tornou-se prova de direi-
aparecem citadas nos docu- tismo radical. Resultado: a elite microscópica de tagarelas es-
mentos do Foro como exem- querdistas que domina as redações (não mais de duas mil pes-
plos a ser imitados. Ao contrá- soas) se permite tomar a sua própria opinião como medida da
rio, os apelos à tradição revolu- Segundo pesquisa normalidade humana, condenando como patológicas e vir-
cionária comunista ressurgem da Folha de São tualmente criminosas as preferências gerais da nação.
a cada linha, com todos os seus Paulo, a opinião Quem se coloca em tais alturas está automaticamente libe-
heróis e símbolos, com todos os majoritária dos rado de prestar quaisquer satisfações à realidade. Não quer
cacoetes linguísticos medo- conhecê-la, quer transformá-la. Para transformá-la, não é
nhos do jargão marxista-leni-
brasileiros é
preciso mostrar os fatos às pessoas: é preciso alimentá-las de
nista mais típico e obstinado, acentuadamente crenças imbecis que as induzam a se comportar da maneira
acompanhados da declaração conservadora. mais adequada para favorecer a transformação. Da classe
explícita, infindavelmente re- empresarial que lê o jornal Valor, que é que se espera? Que
petida, de que a meta é o socia- permaneça idiotizada e passiva, embriagada de falsa segu-
lismo. Mas, decerto, todos os participantes do Foro, todos rança, incapaz de mobilizar-se em tempo para se opor à onda
aqueles tarimbados militantes revolucionários treinados em revolucionária que vai submergindo o continente. Foi para
Cuba, na China e na antiga URSS, estão equivocados quanto à isso que os Felícios lhe negaram por dezesseis anos o conhe-
sua própria ideologia e metas. Eles apenas pensam que são co- cimento do Foro de São Paulo. É para isso que, hoje, não po-
munistas, socialistas, marxistas. Felício é quem, penetrando dendo mais levar adiante a operação-sumiço, apelam à ope-
com seus olhos de raios-x no fundo das almas deles, sabe que ração-anestesia, chamando-a, cinicamente, de jornalismo. E
não são nada disso. São getulistas que se ignoram. são pagos para fazer isso pelos próprios empresários de mí-
A prova? Ele não se recusa a fornecê-la. É esta: "Antes de ser dia, aqueles mesmos cujas empresas o Foro de São Paulo pro-
uma verdadeira marcha ao socialismo, a ofensiva de Chávez... mete calar ou expropriar junto com todos os demais instru-
sugere a coroação de um processo de concentração de poder ". mentos de exercício da liber-
Entenderam a lógica profunda? Se é concentração de poder, dade, num futuro mais breve
não é socialismo. Pena que ninguém avisou disso Marx, Lênin, do que todos imaginam.
Stálin, Mao, Fidel e Che Guevara. Todos eles sempre entende-
ram, ao contrário, que a concentração de poder é a única via P. S. - Mal saiu o artigo da se-
para o socialismo, é a essência mesma do processo revolucio- mana passada, começaram a
nário. Mas talvez estivessem enganados, tanto quanto a turmi- chover na minha caixa postal
nha do Foro. Quem entende do negócio é César Felício. mensagens de amigos protes-
No tempo em que havia jornalismo no Brasil, um sujeito co- tantes que reclamavam de eu
mo esse não seria designado para cobrir nem partida de fu- haver incluído John Wycliff en-
tebol de botão. Hoje ele é uma espécie de modelo, reprodu- tre os pioneiros das ideologias
zido às centenas em todas as redações. O resultado é óbvio. revolucionárias. Eu não me
Faça um teste. Segundo pesquisa da Folha de São Paulo, a opi- lembrava de ter escrito nada de
nião majoritária dos brasileiros é acentuadamente conserva- John Wycliff, mas, quando fui
dora. É contra o casamento gay, contra o aborto, contra as quo- ver, notei, horrorizado, que o
tas raciais, contra o desarmamento civil. É contra tudo o que nome dele estava mesmo lá, em
os Felícios amam. É até a favor da pena de morte para crimes lugar do de John Knox, este sim
hediondos. E confia infinitamente mais nas Forças Armadas um revolucionário. Peço des- Diário do Comércio,
do que na classe jornalística que as difama sem cessar. Quan- culpas a todos por essa distra- 15 de janeiro de 2007
tos jornalistas, nas redações das empresas jornalísticas de ção lamentável.

12 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


O mistério da KGB
mental brasileira
T rinta anos atrás, nenhum intelectual, político
ou líder empresarial brasileiro seria cretino o
bastante para aceitar a mídia popular como
sua principal fonte de informações. A base da
nossa dieta de fatos eram os livros, as revistas espe-
cializadas, as investigações diretas em arquivos e do-
cumentos. Os jornais eram apenas artigo de consu-
sas do mesmo jornal; e, quando lê as notícias, elas con-
firmam essas mesmas opiniões. Nas universidades,
nas entrevistas de TV, nos debates do Parlamento, na-
da se ouve que não seja a ampliação, ou melhor, o in-
chaço vegetativo desse material. É tudo uma redun-
dância perfeita, circular, fechada, repetitiva e eterna-
mente autofágica. Qualquer novidade autêntica,
mo, material secundário de valor relativo ou duvido- qualquer elemento de fora que ali se introduza é ex-
so. Rádio só servia para a previsão do tempo. Televi- pelido por um batalhão de anticorpos que o devolvem
são era para empregadinhas domésticas. No mínimo, às trevas da inexistência. Ninguém sabe de nada que
havia sempre a diferença entre informação genuína e os outros já não saibam. Ninguém diz nada que os ou-
sua versão pasteurizada para o gosto do povão. Hoje, tros já não tenham dito ou estejam ansiosos para dizer.
fico besta de ver a confiança total, a credulidade beó- Curiosamente, para quem vive dentro dessa atmos-
cia com que homens letrados de primeiro escalão to- fera, a rarefação mesma do seu conteúdo é fonte de
mam os jornais e a TV como base de sua visão do mun- uma tremenda sensação de segurança. A ignorância
do, chegando a pôr em dúvida qualquer dado de fonte geral confirma as ignorâncias individuais, que por
primária que não tenha sido referendado pela Folha sua vez a confirmam de volta, produzindo uma im-
ou pelo Jornal Nacional. pressão de generalizada onissapiência. Daí esse fenô-
Uma vez, discutindo com um militar de alta paten- meno impressionante, tipicamente brasileiro, do qual
te que, para cúmulo, tinha sido oficial de informações, não se encontra similar no mundo: o intelectual aca-
lhe perguntei se tinha lido tais ou quais livros, básicos dêmico radicalmente apedeuta, semianalfabeto, ig-
para o assunto que estávamos debatendo. Não, ele norante até do idioma, que é consultado sobre mil e
não lera nenhum. "Então de onde o senhor tira suas in- um assuntos, faz discípulos e se torna uma referência
formações?", perguntei. E ele, com a cara mais biso- indispensável, um maître à penser, um guru.
nha: "Eu leio jornal, uai." Uai digo eu. Sou mesmo o re- É claro que as coisas se passam de modo diverso
manescente de uma raça extinta. Não é à toa que o meu nos EUA. Aqui as revistas de opinião e análise são
nome, de origem norueguesa, quer dizer "sobreviven- tantas que até os comentaristas de TV têm de se man-
te". Com frequência sinto que já morri, que minha al- ter mais ou menos no nível delas ou ser desmorali-
ma atravessou os mundos, que voltei do além e estou zados pelo primeiro entrevistado. E mesmo os po-
tentando conversar com indiozinhos recém-nascidos, líticos que têm interesse em reforçar o prestígio da
ainda perdidos no seu acanhado ambiente terrestre, grande mídia para ser em troca reforçados por ela
persuadidos de que a floresta é o cosmos. sabem que é tudo um teatro. Uma coisa é gostar de
Quando você abre a seção de opiniões de um jornal, aparecer no New York Times, outra coisa é tomar de-
ou mesmo a parte cultural, não encontra nada ali que cisões com base no que ele publica. E a fiscalização
não seja a tradução, em ideias – ou arremedos de ideias em cima da grande mídia é tão cerrada, que nin-
–, do universo de fatos que consta das páginas noticio- guém acima do nível médio da população vai acre-

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 13


ditar no que sai num jornal outra. E ponto final. A ideia de demonstração, de in-
ou noticiário de TV sem pri- vestigação, de prova e contraprova, já desapareceu da
meiro conferir a palavra de- cabeça do público ao ponto de qualquer tentativa de
le com a de seus respectivos argumento mais longo parecer embromação ou pe-
sites de media watch. O de- dantismo. Quando se contesta alguma coisa, são ape-
créscimo irrefreável na tira- nas preferências, um "adoro" oposto a um "abomino"
gem dos grandes jornais, pa- ou vice-versa, ou então pontos de detalhe, sem rele-
ralelo ao crescimento do jorna- vância para a discussão central. Aliás, não há nenhu-
lismo eletrônico, não reflete só ma discussão central. O que há é apenas troca de afei-
uma mudança tecnológica, mas a ções e desafeições na periferia do mundo.
preferência inevitável dada ao meio que permite a mais O pior é que, quando tento explicar isso aos ame-
rápida comparação de uma variedade de fontes e suas ricanos, eles não entendem. Eles só concebem duas
respectivas análises. Na tela do computador você pode coisas: ou uma mídia amputada, manietada e unifor-
ler uma notícia em quinze versões diferentes em ques- mizada pela censura oficial, ou a profusão variada de
tão de minutos. Nem mesmo a televisão permite isso: pontos-de-vista que se vê numa democracia normal.
os noticiários televisivos não são sincronizados, e Não atinam que num país possa haver tantos jornais,
quando o são você não pode assistir a vários deles ao tantas revistas, tantos canais de TV, tantas universida-
mesmo tempo sem perder nada. No computador você des, tantos sites de jornalismo eletrônico, e nenhuma
vai e volta entre dez, vinte, trinta páginas de notícias, discussão efetiva. Quando digo que no Brasil não só a
captando rapidamente a pluralidade das versões e dos opinião divergente é marginalizada, mas as provas
enfoques. Daí a tendência da mídia impressa de apos- que fundamentam a divergência são expulsas da dis-
tar cada vez mais nos artigos longos, de análise, cuja lei- cussão, eles me perguntam se há uma KGB controlan-
tura é mais fácil no papel do que na tela (o que não im- do tudo. Quando informo que não, eles já não sabem
pede que sejam também reproduzidos simultanea- mais do que estou falando. O puro poder da burrice, a
mente na internet), ou então nas colunas diárias, ou se- ditadura espontânea da ignorância autossatisfeita, es-
midiárias, onde o leitor se acostuma à voz e ao tom dos tá aquém da sua imaginação. A KGB mental brasileira
seus articulistas preferidos (digo voz porque muitas não pode existir no mundo conhecido: só no planeta
colunas são lidas também no rádio). E esses colunistas Brasil. É um mistério cósmico incompreensível.
são em geral ótimos, dominadores perfeitos da língua A Folha de S. Paulo é um gordo panfleto pró-comu-
inglesa, escritores na acepção plena do termo, sempre nista, mentiroso até à alucinação. Só leio essa porcaria
trazendo alguma novidade que pelo menos infunde para avaliar diariamente os progressos da mendaci-
vida na discussão geral. dade nacional, o crescimento canceroso da sem-ver-
No Brasil, ao contrário, estes artigos de página intei- gonhice intelectual brasileira. Quando esse jornal cho-
ra do Diário do Comércio são exceções notáveis. No raminga que seus direitos foram violados por agentes
geral predomina cada vez mais o jornalismo em pílu- do governo, ele se esquece de todos os serviços que ele
las, fragmentos minimalistas comprimidos nas di- próprio vem prestando à instalação de uma ditadura
mensões apropriadas a um público para o qual a lei- comunista no País, mediante a difamação incessante
tura é um suplício (e do qual o modelo supremo, de- de todo anticomunismo e a omissão sistemática de no-
clarado e confesso, é o próprio presidente da Repúbli- tícias que possam levar o leitor a perceber as coisas
ca). Nesse recinto exíguo, não há espaço para você com suas devidas proporções.
provar nada – o máximo que se pode é resumir uma O sr. Otávio Frias Filho parece querer o comunismo
opinião solta, isolada, desprovida da menor justifica- para todo mundo e o capitalismo só para ele. Talvez
ção: acho isto, acho aquilo, gosto de tal coisa, odeio tal ache possível tornar comunista o Brasil inteiro e con-

14 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


tendo 119 cadáveres. Na lista dos esquerdistas, não
faz a distinção entre os que morreram em tiroteios,
em acidentes ou assassinados nas prisões, dando
portanto a impressão de que todos foram objetos
inermes da violência estatal. Ao falar das vítimas
Na lista dos esquerdistas, não faz a distinção entre os que dos comunistas, nem de longe menciona casos como
morreram em tiroteios, em acidentes ou assassinados nas o do tenente Alberto Mendes Júnior e dos militantes
condenados como 'traidores', que morreram amar-
prisões, dando portanto a impressão de que todos foram
rados. A impressão que fica é que jovens idealistas
objetos inermes da violência estatal. de esquerda lutavam nas ruas, de peito aberto, en-
quanto o governo covarde, escondido em porões si-
nistros, se ocupava sobretudo de maltratar gente de-
sarmada. Isso não é jornalismo: é novela da Globo, é
construção ficcional, é mito.
servar uma ilha de liberdade de mercado na Alame- Como invariavelmente acontece, as instituições
da Barão de Limeira. fornecedoras de dados sobre os mortos da ditadura
Várias vezes por semana, seu jornal feito por e para são apresentadas como entidades religiosas, cultu-
meninos pó-de-arroz vem com algum novo escânda- rais ou de direitos humanos, sem qualquer alusão à
lo antimilitar ou antiamericano. Sempre e invariavel- sua identidade ideológica, mesmo quando são aber-
mente é mentira. Ou é mentira substantiva, alteração tamente partidárias e militantes, ao passo que as fon-
material dos fatos, ou é mentira qualitativa, isto é, tes de informações sobre vítimas do terrorismo são
modificação das proporções e perspectivas. Neste úl- mostradas pela cor ideológica, mesmo quando não
timo caso está a notícia alardeada naquele tom de in- têm nenhuma atividade política. O leitor sai acredi-
dignação que já se tornou no Brasil a carteirinha tando que tudo o que se diz contra a ditadura vem de
oficial do sindicato dos virtuosos: fontes neutras, imparciais e idôneas, ao passo que to-
"Documentos secretos da diploma- da acusação aos comunistas vem com a marca do viés
cia americana só agora revelados ideológico. É a exata inversão da realidade.
mostram que o governo Richard Ni- A avaliação quantitativa também é sempre erra-
xon (1969-74) sabia da tortura no da. À luz do senso das proporções, 376 baixas ao lon-
Brasil em 1973-74. O embaixador go de vinte anos de combates com um governo mi-
dos EUA em Brasília, John Crim- litar num país de extensões continentais são um nú-
mins, sugeriu que Nixon não cortasse mero incrivelmente modesto, não só em compara-
créditos ao Brasil como retaliação aos ção com qualquer guerrilha do mundo, mas em
abusos. Isso poderia atrapalhar a estraté- comparação com a repressão cubana à população
gia de 'influenciar a política brasileira' e a desarmada. Fidel Castro matava essa quantidade de
venda de armas ao País. O embaixador... re- pessoas a cada dois meses, aliás com a ajuda dos ter-
comendou que o governo Nixon não usasse contra o roristas brasileiros, que nunca viram nisso nada de
governo brasileiro o art. 32 da Lei de Assistência ao mau. Não convém esquecer que a ditadura nacional
Estrangeiro, embora o próprio relatório reconheces- não fez mais de dois mil prisioneiros políticos ao
se que isso era legalmente possível. Por essa regra, os longo de duas décadas, enquanto Cuba, com uma
EUA poderiam cortar créditos financeiros ao Brasil população muito menor que a do Brasil, chegou a ter
em retaliação a supostos abusos contra direitos hu- cem mil simultaneamente. Antes de fingir escânda-
manos... A pressão americana contrária aos abusos lo ante os números da repressão no Brasil, a Folha
só passou a ocorrer na administração de Jimmy Car- deveria considerar a alternativa que os terroristas
ter (1977-1981)." [Cf. http://www1.folha.uol. ofereciam. A alternativa democrática inexistia. A lu-
com.br/fsp/brasil/fc1401200706.htm .] ta era entre a ditadura mais sanguinária do conti-
Quer dizer: o malvado governo americano pode- nente, que financiava e coordenava as guerrilhas
ria amarrar as mãos dos torturadores brasileiros, mas desde Havana, e um governo autoritário improvi-
se recusou a fazê-lo porque estava mais interessado sado para deter, com a menor violência possível, a
em ganhar dinheiro vendendo armas para eles. ascensão comunista decidida a matar um número
Para começar, a Folha assume como verdade ob- ilimitado de pessoas "hasta la victoria siempre".
jetiva os números fornecidos pelas entidades pró- A matéria também não fornece os pontos de com-
comunistas (376 mortos), mas atribui aos "críticos paração necessários para dar aos fatos a sua signi-
dos grupos de esquerda" a contagem das vítimas do ficação devida. Os EUA jamais cortaram créditos
terrorismo. E fornece o número total dos comunis- para a URSS ou a China, onde os prisioneiros desar-
tas mortos ao longo de todo o tempo da ditadura, mados que sofriam tortura e homicídio estatal se
mas para a contagem de suas vítimas em 1974, ob- contavam aos milhões. Por que deveria fazê-lo no

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 15


caso de um país onde as supostas ví- grande valor comercial para os EUA, ao ponto de de-
timas não passavam de algumas de- terminar decisões diplomáticas por mero desejo de di-
zenas, sendo a quase totalidade deles nheiro. Esse comércio era importante porque, àquela
terroristas surpreendidos em plena altura, era o último ponto de contato onde o governo
ação homicida? americano e os militares brasi-
A perspectiva histórica dos fatos leiros tinham interesses co-
também é totalmente falsificada. A muns, sendo absolutamen-
impressão transmitida ao leitor é te necessário preservá-lo co-
que o governo de Washington, con- mo base para uma possível
trolador onipotente da ditadura bra- reconstrução das boas rela-
sileira, não fez o que podia para re- ções entre os dois países.
frear a violência de seus paus man- Qualquer embaixador com QI
dados locais, prontos a ceder à pri- Por iniciativa do superior a 12 recomendaria a seu
meira ameaça de sanções comerciais. chanceler Azeredo governo o que Crimmins recomendou a
Na verdade, o prestígio americano da Silveira, um Nixon. Tentar enxergar aí motivos de
ante o governo de Brasília estava esquerdista histórico, cobiça é malícia pueril, o equivalente
num dos pontos mais baixos da sua folhístico da inteligência.
história. Por iniciativa do chanceler
os altos postos do E Jimmy Carter não pressionou as
Azeredo da Silveira, um esquerdista Itamaraty foram autoridades brasileira por estar since-
histórico, os altos postos do Itamara- todos preenchidos ramente preocupado com os direitos
ty foram todos preenchidos por sim- por simpatizantes humanos. Ele sempre foi um protetor
patizantes comunistas – logo apeli- de ditadores comunistas sanguinários.
comunistas.
dados significativamente de "barbu- O que ele quis impedir foi a total der-
dinhos" pelos seus colegas, numa rota da guerrilha latino-americana,
alusão direta à pletora de barbas por que, graças a ele, sobreviveu ao perío-
fazer na elite revolucionária cubana. O presidente do de repressão e floresceu ilimitadamente nas déca-
Geisel, ansioso por marcar uma diferença, tendia ni- das seguintes, acabando por criar a maior força militar
tidamente a uma politica terceiromundista e antiame- latino-americana e elevar-se à condição de dominado-
ricana, aproximando-se da China, dando preferência ra monopolística do tráfico de drogas no continente
à Alemanha como fornecedora de materiais para a com a ajuda do Plano Colômbia de Bill Clinton.
construção da malfadada usina nuclear de Angra dos
Reis e, para cúmulo, fornecendo armas e dinheiro pa-
ra ajudar Cuba a invadir Angola – a decisão mais hos-
til aos EUA já tomada por um presidente brasileiro an-
tes ou depois disso, perto da qual as bravatas "nacio-
nalistas" de Jânio Quadros e João Goulart se reduzem
a meros puns diplomáticos. Sanções comerciais,
àquela altura, soariam como provocações intolerá-
veis. Longe de refrear a violência estatal, só criariam
ainda mais hostilidade para com os EUA. Nenhum
governo do mundo correria esse risco para defender
algumas dúzias de indivíduos, aliás seus inimigos. A
impressão de escândalo moral que a Folha quer criar
em torno das mensagens do embaixador Crimmins é
inteiramente forçada e artificiosa.
Quanto à venda de armas para o Brasil, que a Folha
apresenta como o motivo interesseiro por trás da de-
cisão americana de não interferir na situação local, é Diário do Comércio,
preciso ser muito idiota para acreditar que ela tivesse 22 de janeiro de 2007

16 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


A direita a
serviço da
D entre as muitas
coisas verdadei-
ras ditas pelo sr.
Fernando Henri-
que Cardoso entre uma men-
tira e outra, esta merece a
maior atenção:
esquerda
lógicos dessa situação são de-
vastadores: se o objetivo da vi-
da é a aposentadoria, o traba-
lho não é o caminho da
prosperidade e da autorrealiza-
ção, mas uma incomodidade
temporária que deve ser remo-
"Não existe direita no Brasil, vida o mais rápido possível. En-
no sentido clássico do concei- tão, o desleixo e a incompetên-
to... O pensamento conserva- cia tornam-se não apenas direi-
dor filia-se a uma tradição oci- tos, mas até deveres: como o
dental que estabelece como trabalho não tem nenhuma ou-
pilares da ordem a família, a tra finalidade senão ser abolido
propriedade, os costumes. O o quanto antes, o trabalhador
nosso conservadorismo não é esforçado é visto como um vai-
nada disso. Tem a ver com doso pedante ou como um pu-
clientelismo, patrimonialis- xa-saco do patrão.
mo, uso indevido dos recursos Estragando a população
do Estado. Ele não é composto em geral pelo mau exemplo, a
de um ideário, e sim de apro- acomodação capitalista no
veitadores. Por que a 'direita', no Brasil, apoia todos os governos, seio da burocracia corrompe ainda mais os políticos. Corrompe-os
não importa qual? Na história recente, ela apoiou os militares, por três lados ao mesmo tempo:
apoiou o Sarney, apoiou o Collor, apoiou a mim, apoia o Lula. Por- 1) Os que são seus amigos tornam-se ipso facto agentes de ne-
que seus integrantes não são de direita. Essa gente toda só quer gócios, captadores de recursos estatais para financiar – ou salvar –
estar perto do Estado, tirar vantagens dele." empresas privadas.
Só faltou ele acrescentar – e por isso acrescento eu – que esse é 2) Os inimigos, temporariamente excluídos da mamata, sentem-
o mais grave problema do Brasil. Desde logo, só a economia ca- se investidos do direito de multiplicá-la em proveito próprio tão lo-
pitalista pode gerar prosperidade, mas o sucesso dessa economia go cheguem ao poder e imaginam-se, por essa mesma razão, as
depende diretamente da conduta da classe capitalista. Ora, é pre- pessoas mais honestas do mundo. Quando, na CPI dos Anões do
cisamente a essa classe que o ex-presidente se refere. Se ela pró- Orçamento em 1993, os petistas vociferavam contra "o Estado den-
pria insiste em se tornar dependente do Estado, por interesses tro do Estado", referindo-se hiperbolicamente a vulgares negocia-
imediatistas e pela relutância covarde em se expor plenamente tas entre empreiteiros e parlamentares, ao mesmo tempo que já
aos riscos da livre concorrência, ela condena o capitalismo brasi- iam preparando o futuro Mensalão – este sim um verdadeiro Estado
leiro à atrofia perpétua. Não tem sentido um sujeito prosternar-se dentro do Estado –, não tenho a menor dúvida de que ao menos
ante a autoridade governamental e depois reclamar que ela o inconscientemente identificavam a justiça social com a distribuição
oprime com sobrecarga de impostos e de exigências burocráticas. igualitária do direito de roubar. Por isso mesmo não sentem hoje a
Se você quer independência, tem de agir com independência. No menor dor na consciência por tudo aquilo que têm feito desde que
Brasil, os ricos gritam "Enxuguem o Estado!", mas querem conti- se tornaram os novos donos do poder. Vigarice por vigarice, acham
nuar nadando na piscina das verbas oficiais. Assim não dá. mais lícita aquela que não favorece só as velhas elites, mas reparte o
Mas os efeitos da subserviência capitalista ao Estado vão muito botim entre os pobres e oprimidos – isto é, eles próprios. Caso con-
além da esfera econômica. O exemplo da classe rica se propaga por trário, não teria razão de ser a afetação de coitadice com que um
toda a população e a corrompe, fazendo de cada cidadão um virtual Lula ou uma Benedita, alçados à mais alta hierarquia do Estado, con-
pedinte de dinheiro público. O brasileiro não sonha em enriquecer tinuam se vendo como membros da classe desamparada.
com trabalho, poupança e investimento, mas em chegar o mais rá- 3) Uns e outros, amigos e inimigos, acabam tendo seus interes-
pido possível à aposentadoria. E ele não pensa assim por ser pregui- ses vitais diretamente ligados à burocracia estatal – e tudo farão
çoso, mas porque sua poupança é comida pelos impostos e a única para que ela continue crescendo, a despeito até de suas convic-
forma de investimento que resta ao seu alcance são as contribuições ções pessoais.
previdenciárias. O Brasil não é uma potência capitalista porque pre- Do ponto de vista ideológico, então, os efeitos da simbiose en-
feriu ser antes um imenso Instituto de Previdência. Os efeitos psico- tre Estado e elite empresarial raiam o monstruoso.

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Primeiro: por falta de advogados, a Não conheço, por exemplo, entre os
defesa dos "pilares da ordem, a família, a "direitistas" brasileiros, um só que não
propriedade, os costumes" , como os re- enxergue a economia, em última ins-
sumiu Fernando Henrique, é excluída tância, exatamente nos termos em que
do linguajar político decente e jogada a descreveu Karl Marx. Por menos que
para o limbo da "extrema direita". Co- gostem disso, seu cérebro está progra-
mo, por outro lado, ela expressa os mado para enxergar o capitalismo co-
ideais majoritários da população brasi- mo luta de classes e exploração da
leira, o resultado é que o Brasil se torna mais-valia. Quanto mais dizem tomar o

Maurizio Brambatti-Pool/Reuters
uma nação de excluídos políticos, onde partido da sua própria classe, mais se
a maioria não tem representantes nem tornam prisioneiros da jaula marxista.
porta-vozes. Privado dos canais nor- Também não conheço um só capi-
mais de atuação, o conservadorismo talista que não acredite na lenda es-
brasileiro recua para o inconsciente co- querdista de que Karl Marx foi "um
letivo e tem de se expressar por vias sim- grande pensador". Podem proclamar
bólicas, indiretas, analógicas. Muitos até que "o marxismo está superado",
dos eleitores de Lula votaram nele pelo mais quanto mais o depreciam da bo-
simples fato de que ele parecia um tipo ca para fora, mais lhe rendem home-
mais antigo, mais arraigado nas tradi- nagem em pensamento.
ções populares, do que seus concorren- Ora, Karl Marx não foi nenhum gê-
tes moderninhos, com ares de tecno- nio, nenhum grande pensador, ne-
cratas. O motivo da escolha não foi po- Se você é católico, não se sinta obrigado nhum cientista social notável. Foi uma
lítico nem ideológico: foi puramente es- besta quadrada, incapaz de dominar
tético. Não encontrando quem falasse
a dizer amém à declaração do Papa de os problemas filosóficos mais ele-
em seu nome, o povo votou em quem que Karl Marx "forneceu uma imagem mentares e de se orientar no meio da
se parecia com ele fisicamente, sem ter a clara do homem vitimado por bandidos". mixórdia verbal que ele próprio criou.
menor ideia de que elegia o candidato Seu único talento foi o do vigarista in-
do aborto, do desarmamento civil, do telectual capaz de angariar prestígio
casamento gay – de tudo o que podia haver de mais artificial e an- por meio do blefe, do boicote e da intimidação. Estudem a atuação
tipopular. Aí a política eleitoral se torna pura fantasia alucinatória. dele na I Internacional e verão do que estou falando.
Segundo: dentre os defensores da economia privada, muitos Mas, antes disso, examinemos um ponto essencial. Embora a tra-
têm menos horror ao esquerdismo do que à perspectiva de ser to- dição marxista condene com veemência o "abstratismo burguês",
mados por "extremistas de direita". Então, apressam-se em isolar que supostamente raciocina a partir de meros conceitos sem ter em
economia e cultura, articulando a apologia do capitalismo com a vista a praxis histórica, toda a análise que Marx faz da economia ca-
do programa cultural revolucionário, incluindo abortismo, euta- pitalista é abstratismo da espécie mais primária. Ele define o capi-
násia, liberação das drogas e anticristianismo professo ou implí- talismo como exploração da mais-valia e sai tirando conclusões des-
cito. Tornam-se assim forças auxiliares da revolução gramsciana, e sa definição sem prestar a mínima atenção às condições histórico-
toda a sua gritaria em favor da liberdade de mercado já não faz a sociais que já em sua época possibilitavam a existência do capita-
menor diferença, pois ninguém na esquerda está lutando pela so- lismo. Em sua definição, este se resume a uma determinada relação
cialização dos meios de produção; todas as tropas foram concen- entre capitalistas e operários, exploradores e explorados. Nesse es-
tradas no campo de batalha cultural. quema, não há nenhum lugar para a massa dos consumidores, a
Terceiro: se uma parte da direita não tem ideologia nenhuma e vasta classe média da qual depende a existência de capitalistas e
a outra tem uma ideologia que favorece a revolução cultural, o re- operários. Uma máquina econômica constituída apenas de explo-
sultado é que a esquerda fica com o monopólio da propaganda radores e explorados não poderia durar um só dia. Afinal, quem pa-
ideológica. Até os que a odeiam são obrigados a falar na lingua- ga a brincadeira? Partindo da sua definição de capitalismo, Marx
gem dela, o que significa que tudo o que dizem funciona, no fim acreditava que o número de consumidores iria diminuir cada vez
das contas, como propaganda esquerdista. mais, até que a máquina de exploração já não tivesse condições de
Quarto: não é possível que a própria "direita" que criou essa si- funcionar. Mas o único argumento que ele oferece em favor dessa
tuação permaneça psicologicamente imune a seus efeitos por previsão é que ela é uma decorrência lógica da sua definição de ca-
muito tempo. Ela própria acaba introjetando a cosmovisão e os pitalismo – uma definição que, a priori, já omitia a existência dos
valores da esquerda, e no fim das contas já não tem nada a alegar consumidores. Na verdade, estes é que deveriam ser o centro da de-
em favor do capitalismo senão o fato de que ele é do seu interesse. finição: o capitalismo pode até incluir exploradores e explorados,
E é exatamente assim que estamos hoje em dia: entre os opina- mas ele não consiste nem em explorar nem em ser explorado – ele
dores de plantão, não há mais quem não veja a política como a luta consiste em comprar e vender. Até mesmo a relação entre patrão e
entre "interesses" privados e "valores" coletivos. Em suma: no Bra- empregado é apenas um caso especial de compra e venda – algo
sil, entre as classes falantes, todo mundo é de esquerda – uns por- que qualquer principiante habilitado a distinguir gênero e espécie
que gostam, outros porque não sabem ser outra coisa. tem a obrigação de perceber. Em vez de definir o capitalismo pelo

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perfil real da sua existência histórica, ce de sobrevivência reside em fazer
Karl Marx preferiu reduzi-lo a uma "es- concessões cada vez maiores à mili-
sência" abstrata que pudesse ser des- tância socialista detentora do mono-
crita mediante uma só relação simples, pólio dos valores morais e das espe-
a relação entre salário e "valor". Depois, ranças de futuro.
vendo que a existência real do capita- Ou você acredita que o capitalismo
lismo não confirmava a essência, con- encarna valores morais inegociáveis e
cluiu que esta acabaria por predominar que ele é a única esperança de dias
sobre a existência. Maior "abstratismo melhores para a humanidade, ou é
burguês" não poderia haver: uma es- mais lógico você desistir logo dele e ar-
sência abstrata que pode mais do que a rumar uma carteirinha do PSTU.
realidade histórica é uma espécie de
platonismo radical, o primado absolu- Reprodução ***
to das ideias (com o agravante de que
as ideias platônicas eram pensadas por P. S. – Se você é católico, não se sinta
Deus, e a definição marxista de capita- obrigado a dizer amém à declaração
lismo é pensada apenas por Karl Marx). do Papa de que Karl Marx "forneceu
Na realidade objetiva, a existência e a uma imagem clara do homem vitima-
prosperidade do capitalismo depen- do por bandidos". Não é uma sentença
dem inteiramente do mercado, isto é, doutrinal ex cathedra, é apenas uma
dos consumidores, e isto é assim já na Não conheço, por exemplo, entre os opinião individual que todo católico
base, na "essência" mesma do proces- tem o direito e até o dever de contes-
"direitistas" brasileiros, um só que
so. Se o capitalismo foi economica- tar. Não adianta nada o meu caro Rei-
mente viável por um só dia, nesse dia já não enxergue a economia, em última naldo Azevedo tentar atenuar o senti-
ele aumentou o número de consumi- instância, exatamente nos termos em do da frase, dizendo que ela não é pro-
dores, pois alguém então comprou o que a descreveu Karl Marx. priamente um elogio a Karl Marx. A de-
que não havia comprado antes. Dessa claração não impressiona pelo que
condição real, o que seria preciso dedu- insinua a favor de Karl Marx, mas pelo
zir é que o capitalismo consiste na ampliação do mercado, na mul- que diz claramente contra os capitalistas: são bandidos. Assim os
tiplicação do número de consumidores. Se cabe descrever os pro- descreveu Karl Marx, e o Papa considera essa descrição uma "ima-
cessos históricos como "essências", essa é a essência do capitalismo gem clara". E o mais bonito é que a ela o ex-cardeal Ratzinger não
– e o que se deveria deduzir dela é que, se essa essência viesse a tem a objetar senão que Karl Marx, limitando-se à esfera material,
existir historicamente, o resultado seria a ampliação progressiva da não foi ao fundo espiritual do problema. Portanto, na perspectiva
classe média até à dissolução do "proletariado" como classe iden- papal, não basta denunciar o mal econômico da exploração da
tificável. Isto foi exatamente o que aconteceu, e é exatamente o con- mais valia: é preciso sondar as dimensões espirituais dessa abo-
trário do que Marx previa. Para fazer a previsão certa, ele precisaria minação. Que eu saiba, esse é o programa da Teologia da Liber-
ser um filósofo de verdade, isto é, saber pelo menos aquilo que todo tação: adornar a estupidez marxista com pretextos espirituais co-
discípulo de Sócrates já havia aprendido dois milênios antes: dis- lhidos da religião cristã. Cabe re-
tinguir entre o que o cérebro inventa e o que a experiência ensina. A cordar que, no trato disciplinar
experiência pode ser confusa e o pensamento introduz nela algu- com os Boffs e Gutierres, Ratzin-
ma ordem e clareza. O que não vale é, em prol da clareza, substituir ger sempre se limitou às repri-
a experiência por meros pensamentos. Mas Karl Marx foi um pouco mendas paternais sem o mínimo
além: ele acreditou piamente que seus pensamentos acabariam efeito prático, ao mesmo tempo
por demonstrar a irrealidade da experiência. que, para os católicos tradicio-
Não é compreensível que alguém tenha sequer algum respeito nais, reservava a mais grave das
por um idiota capaz de embarcar num erro tão básico. A fama de punições: a excomunhão. Não
Karl Marx deve-se apenas ao fato de que a idiotice é contagiosa e espanta que um Pedro Casaldá-
o número dos contaminados acaba valendo como uma espécie de liga não lhe tenha respeito ne-
autoridade intelectual. Ao contrário do que pensava Descartes, é a nhum e lhe passe pitos em públi-
idiotice, e não a sensatez, que é distribuída por igual entre todas as co. A ninguém os comunistas
classes: a proporção de idiotas não é maior entre aqueles a quem desprezam mais do que a seus
o marxismo promete um paraíso do que entre aqueles que ele colaboradores discretos no seio
ameaça jogar na lata de lixo da História. Os primeiros são idioti- da "direita". Nossos direitistas
zados pela ambição, os segundos por aquele medo extremo que deveriam aprender com o exem-
acaba se tornando fascínio e subserviência. plo: quanto mais você se faz de Diário do Comércio,
Não adianta nada você gostar do capitalismo se acredita que bonzinho, mais a esquerda lhe 09 de abril de 2007
ele é baseado na exploração da mais-valia e que sua única chan- cospe em cima.

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Bruno Miranda/Folha Imagem

Marco
Aurélio
Garcia:
mímica foi
transmitida
pela TV
em rede
nacional.

Top-Top e Fuc-Fuc
T odo mundo no Brasil viu os gestos do sr. Marco Aurélio
Garcia e de seu ajudante Bruno Gaspar transmitidos
pela TV, cujas equivalências onomatopaicas, salvo me-
lhor juízo, são respectivamente "top-top" e "fuc-fuc".
Não se ouve som nenhum na gravação, mas, pelo contexto, o
sentido vernáculo da mímica ministerial foi aproximadamen-
te: "Agora eles tomaram no..." - sapientíssima observação ante
abjurado de toda ambição revolucionária e aderido ao culto da
ordem burguesa, essas declarações já bastavam para demons-
trar, acima de qualquer dúvida, que nenhum dos dois decla-
rantes era confiável. Ou estavam mentindo para seus antigos
correligionários, ou para seus novos eleitores. Dando a primei-
ra hipótese por certa e inquestionável sem necessidade de exa-
me, a mídia nacional inteira e os próprios adversários eleito-
a qual o criativo assessor, recordando a máxima célebre do can- rais de Lula decidiram abafar as entrevistas comprometedo-
didato interiorano, poderou, também sem palavras: "Se nóis ras, que teriam bastado para destruir a candidatura petista.
não ó neles, ó eles em nóis". Logo depois, interrogado polidissimamente pelo entrevista-
O Diário do Comércio pede minha opinião sobre esse inte- dor Boris Casoy quanto ao risco de uma aliança Lula-Castro-Chá-
ressante número de mímica, mas antes de emiti-la devo recor- vez, o candidato assegurou que era tudo invencionice de "um pi-
dar alguns aspectos do governo Lula, sem cuja perspectiva o careta de Miami" (referia-se ao escritor cubano Armando Valla-
sentido daquele diálogo silencioso arriscaria tornar-se dema- dares). Na ocasião, a aliança já estava combinada nas reuniões do
siado esotérico. Foro de São Paulo e nos meses que se seguiram foi consolidada
Em outubro de 2002, o sr. Lula disse ao jornal Le Monde que a sobretudo por intermédio do sr. Garcia, que, desde a renúncia de
eleição que o tornaria presidente era apenas uma farsa destina- Lula à presidência do Foro, se tornou o agente de ligação entre o
da a legitimar a tomada do poder pelas organizações de esquer- governo brasileiro e aquela entidade.
da. Confirmando as palavras do líder, o sr. Garcia informou ao Pouco antes, o sr. Lula havia assinado, ainda como presiden-
jornal La Nacion , em Buenos Aires , que o PT continuava firme te do Foro, um compromisso de defender incondicionalmente
na esquerda revolucionária: "A impressão de que o PT foi para o as Farc, a narcoguerrilha colombiana, acusando de "terrorismo
centro surge do fato de que tivemos de assumir compromissos de Estado" qualquer coisa que se fizesse contra ela. Se o eleitor
que estão nesse terreno. Isso implica que teremos de aceitar ini- brasileiro soubesse disso, jamais votaria nessa criatura. Mas
cialmente algumas práticas. Mas isso não é para sempre." novamente a grande mídia e os supostos opositores de Lula
Como toda a campanha petista se baseava exatamente na hi- ajudaram a varrer a poeira para baixo do tapete, escondendo
pótese oposta, isto é, de que o candidato e seu partido tinham não só o acordo abjeto mas a própria existência do Foro de São

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Reprodução
Paulo. Até hoje a organização política mais vasta e poderosa da
América Latina é, para o público nacional, um mysterium ig-
notum protegido sob um véu de chumbo.
O acordo pró-Farc, obtendo facilmente e sem discussões o
apoio unânime das organizações participantes do Foro, só pode
ter sido tramado com muita antecedência. Nem é preciso pergun-
tar quem o preparou. Segundo informações do site www.milita-
resdemocraticos.com , o futuro ministro Top-Top teve vários en-
contros com o comandante da narcoguerrilha, Manuel Marulan-
da Gomez, em Havana, sempre na presença de Fidel Castro.
Que o compromisso estava destinado a não ficar só no papel
é algo que o tempo comprovou abundantemente. Os líderes
das Farc continuaram a transitar livremente pelo território na-
cional, mesmo depois de comprovado que eram os maiores
fornecedores de cocaína ao traficante Fernandinho Beira-Mar;
e seus agentes em ação no Brasil jamais foram incomodados
pelas nossas autoridades, mesmo depois de denunciado que
davam adestramento em guerrilha urbana para os bandidos
do PCC e do Comando Vermelho, contribuindo maciçamente
para que a quota de brasileiros assassinados alcançasse a cifra
de cinqüenta mil cadáveres anuais.
Também não é preciso dizer que qualquer membro das Farc ou
de outras organizações ligadas ao Foro, se acidentalmente preso
por policiais ingênuos, conta imediatamente com a máquina do
partido governante para protegê-lo de perguntas incômodas, li-
bertá-lo o mais rápido possível e mesmo brindá-lo com o estatuto
de asilado político, se não com o de cidadão brasileiro.
Se o leitor percebe a dose de cinismo necessária para um go-
verno colaborar tão assídua e fielmente com o massacre da po-
pulação nacional, deve entender sem dificuldade por que esse
governo não se sente nem um pouco culpado pela morte de mais
algumas centenas de brasileiros, no desastre da TAM. Cada um
de nós deve recordar-se de quando o então candidato Lula, pe-
rante seu opositor Geraldo Alckmin, se vangloriava da folha de Top-Top, Fuc-Fuc: gestos de Marco Aurélio
realizações de seu primeiro mandato, entre as quais a reforma Garcia tiveram grande repercussão.
do aeroporto de Congonhas. Mas a idéia de que quem leva os
méritos da obra deve também arcar com as culpas dos seus erros
é algo que requer um mínimo de bentendidos nos gestos de de Top-Top e Fuc-Fuc. Uns dizem
sensibilidade moral, e nada, ab- que é a TAM, outros que é a mídia em geral, outros que são os
solutamente nada sugere que partidos de oposição. Mas a suspeita que não me sai do pen-
esse mínimo tenha jamais entra- samento é que somos todos nós - os brasileiros em geral, os pro-
do nas almas coriáceas dos srs. fanos, os pecadores, os não iniciados no sacerdócio petista.
Lula e Garcia. Não digo que eles Surpreendido em flagrante, o ministro Top-Top não se deu
sejam amorais. Ao contrário, por achado: tratou de fazer-se ele próprio de escandalizado,
têm moral até demais: têm duas, improvisando ex post facto uma bela embromação para tentar
como todos os revolucionários: dar um sentido de alta moralidade à sua performance . Nada
uma para os "companheiros", mais lógico, no governo chefiado por um homem isento de pe-
outra para o comum dos mor- cados. Mas parece que nem todos na administração petista
tais. Naquela, eles são sempre chegaram tão alto nos mistérios da impecância eterna. Em con-
inocentes; nesta, os outros são traste com a cara-de-pau ministerial, Fuc-Fuc, por sua vez, na-
sempre culpados. da disse nem lhe foi perguntado. Recolheu-se a uma discrição
Por isso não creio ser tão di- tumular. Suponho que ainda esteja trancado no banheiro, hos-
fícil interpretar a cena filmada til a qualquer contato humano. Pela primeira vez na história da
indiscretamente pela janela do mídia universal um assessor de imprensa, cujo serviço é falar,
Diário do Comércio, ministro. O diálogo silencioso transcendeu duplamente a comunicação verbal: primeiro
23 de julho de 2007 não dá uma indicação precisa mostrou que podia ser eloquente com gestos sem palavras, e
de quem são os tais "eles", su- depois mais eloquente ainda sem palavras nem gestos.

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Fraqueza suicida
Carlos Lezama/AFP

Aqueles que
forçam a Igreja a

"A
escolher entre
fraqueza atrai a agressão", Quarenta anos de hegemonia cultural ser de esquerda
dizia Donald Rumsfeld, cujo gramsciana fixaram tão bem na mente e abster-se da
malogro político não deve popular o dogma do monopólio esquerdista política querem
fazer esquecer que foi o das virtudes, que preservá-lo contra a mera a primeira
arquiteto da mais espetacular vitória militar suspeita de que possa haver algo de bom na alternativa.
dos tempos recentes, a ocupação em quinze direita se tornou prioridade máxima para os
dias de um país inimigo poderoso e bem próprios direitistas. Tão longe levam eles a
armado, cujo sucesso contra as tropas obediência a esse mandamento que, mesmo
invasoras era anunciado como líquido e certo quando querem denunciar os crimes mais
por toda a mídia esquerdista do mundo. escabrosos da esquerda, se apressam em
A sentença do ex-secretário da Defesa advertir que o fazem sem o menor intuito
norte-americano deveria servir de alerta político, o que equivale a reconhecer que só a
aos antipetistas brasileiros, dos quais esquerda tem o direito de fazer política.
muitos se empenham menos em combater Do mesmo modo, quando veem os
o adversário do que em esquivar-se prodígios de manipulação esquerdista do
pudicamente da rotulação de conservadores noticiário, não ousam cobrar da mídia um
e direitistas, que se fossem homens de espaço justo e digno para as vozes
coragem ostentariam com orgulho. conservadoras, muito menos a publicação de

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tais ou quais notícias omitidas – o e da intimidação. A sucessão de humilhações
permanente genocídio anticristão no mundo que assim atraem sobre si mesmos culmina na
ou as relações amigáveis PT-Farc, por decisão do arcebispo Odilo Scherer de proibir a
exemplo –, preferindo antes solicitar genérica missa do movimento "Cansei" na Catedral da
e abstratamente que ela seja "imparcial", o Sé, espaço reservado, como se sabe, aos dignos e
que além de ser uma impossibilidade prática, cristianíssimos membros do PCC, do MST, da
resulta em elevar a classe jornalística à CUT, etc, etc. Que essa decisão seja tomada sob
condição de juiz em vez de mera divulgadora a desculpa cínica de ser a Igreja uma instituição
de dados e opiniões dos quais o único juiz apolítica deveria advertir aos prejudicados que
abalizado é o público em geral. eles fizeram muito mal em fornecer a pessoas
Quando se sentem chocados ante a indignas de confiança o pretexto retórico que
pregação comunista nas escolas, gemem agora estas voltam contra eles.
implorando uma utópica educação Só falta agora a direita nacional, numa
"apolítica", em vez de exigir virilmente o apoteose de bom-mocismo, continuar se
confronto aberto entre as ideias da esquerda e dirigindo a esses manipuladores astutos como
da direita, mesmo sabendo que aí estas se fossem porta-vozes autorizados do próprio
levariam vantagem arrasadora sobre as suas Jesus Cristo sobre a Terra. Recusar-se a enxergar
concorrentes. que a Igreja Católica no Brasil é revolucionária e
Similarmente, quando querem protestar cismática é o cúmulo da covardia intelectual.
contra a ocupação comunista dos púlpitos, Pela sua colaboração pertinaz e maliciosa com
dizem que a Igreja deveria ficar fora da política, a revolução comunista no continente, muitos
em vez de exigir, como deveriam, que ela dos nossos bispos e arcebispos já estão, segundo
cumpra a missão política que lhe cabe, que a letra e o espírito do Código do Direito
sempre lhe coube e que ao longo dos séculos ela Canônico, excomungados há muito tempo.
sempre cumpriu, que é a de educar e mobilizar O "Decretum Contra Communismum"
os fiéis para a defesa permanente e assinado por Pio XII e confirmado por João
incondicional dos princípios e valores que XXIII não deixa a menor margem de dúvida
justificam a sua própria existência como quanto a isso. Não há nada a solicitar a esses
instituição, princípios e valores esses que são o prelados traidores. O que há a fazer, o que os
que há de mais oposto e hostil a toda conservadores brasileiros fariam se tivessem
mentalidade revolucionária, seja ela socialista, um pouquinho de fibra, é juntar as provas e
nazista, fascista, anarquista, o diabo. Como solicitar ao Vaticano que a excomunhão já
depositária da mais imutável e supra-histórica vigente de fato seja subscrita oficialmente.
das mensagens, a Igreja não pode jamais ser Dirigir-se àqueles servos do comunismo com a
apolítica, no mínimo porque foi ela mesma que, filial solicitude devida a autênticos Príncipes da
inspirada nessa mensagem, criou as bases de Igreja é uma baixeza inominável. Não contem
todas as noções essenciais da política no comigo para isso.
Ocidente, a começar pelas de liberdade civil e
direitos humanos. Principalmente não poderia
sê-lo numa época em que a tendência
dominante se inspira na ambição
revolucionária de historicizar o Evangelho,
trazendo o Juízo Final para dentro do acontecer
temporal e usurpando para um partido político
o papel de juiz da humanidade, que incumbe
exclusivamente a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Aqueles que forçam a Igreja a escolher
entre ser de esquerda e abster-se de fazer
política a obrigam, na prática, a optar pela
primeira alternativa, que tem ao menos o
mérito de ser possível.
Todas essas precauções, toda essa
pusilanimidade, todas essas concessões ao
adversário não impedem, antes estimulam que
este os carimbe não só como direitistas, mas Diário do Comércio,
como extremistas de direita e golpistas e 20 de agosto de 2007
mobilize contra eles todas as armas do ridículo

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Maquiavel e
os bobos
"N ão digo jamais aquilo em que creio, nem
creio naquilo que digo – e, se descubro al-
gum pedacinho da verdade, trato logo de
escondê-lo sob tantas mentiras que se torna
impossível encontrá-lo." Não, não neutralizem esta confissão
feita por Nicolau Maquiavel a um amigo, aplicando a ela o "pa-
radoxo do mentiroso". Ele aqui é perfeitamente sincero, pois
escreve em privado sobre sua obra pública. A técnica das men-
tiras superpostas, entrecruzadas e mescladas é realmente o se-
gredo dessa obra, tão obscura que Benedetto Croce a declarava
impenetrável, mas que se abre de par em par tão logo desco-
brimos essa chave, fornecida pelo próprio autor num momen-
to de franqueza, ou talvez fraqueza.
Maquiavel não é o imoralista vulgar que nele viram seus pri-
meiros críticos, nem o realista científico que seus admiradores
modernos fizeram dele, nem o límpido patriota que tantos in-
térpretes italianos celebram.
É o criador do plano revolucionário de destruir o cristianismo
desde dentro e subjugá-lo a um Estado economicamente iguali-
tário e politicamente totalitário, que hoje diríamos um Estado so-
cialista. É também o inventor da estratégia incumbida de realizar Se querem um exemplo imediato de como a coisa funciona,
esse fim: desorientar e dominar a sociedade por meio de um bom- observem o "Movimento dos Sem-Mídia".
bardeio alucinante de mentiras e fingimentos histriônicos, propo- Notem bem. Durante quase duas décadas os jornais e canais
sitadamente contraditórios entre si para que suas vítimas não per- de TV deste País não apenas glorificaram os ídolos da revolu-
cebam a unidade do objetivo político por trás de tudo. ção comunista, demonizando seus adversários, e não apenas
Quem melhor compreendeu Maquiavel foi Antonio Gramsci, estenderam sobre o Foro de São Paulo o manto de silêncio pro-
mas não o compreendeu perfei- tetor que lhe permitiu crescer sem ser notado, mas também se
tamente. Seu próprio amoralis- abstiveram sistematicamente de noticiar as atrocidades geno-
mo sociopático de revolucioná- cidas praticadas pelos regimes comunistas e seus aliados nesse
rio o tornou cego para o caráter período e forneceram integral apoio a todas as iniciativas da
satânico do empreendimento "revolução cultural" politicamente correta: abortismo, gayzis-
maquiavélico e o fez enxergar mo, cotas raciais, liberação das drogas, etc. etc. Mais esquer-
nele, ao contrário, todas as bele- dismo que isso, nem no Pravda.
zas ilusórias que ali tinham sido Durante anos tentei convencer os liberais e conservadores de
postas justamente para seduzir que deviam organizar um movimento de protesto contra essa do-
intelectuais meia-bomba. minação hegemônica que os marginalizava ao ponto de só per-
O que Gramsci viu claramen- mitir sua sobrevivência como súcubos ideológicos da corrente
te foi que o Príncipe não era um dominante. Como não o fizeram em tempo, a própria esquerda o
indivíduo, mas uma elite revo- faz agora em lugar deles, fingindo-se de vítima oprimida quando
lucionária capaz de controlar a é na verdade a única autora e beneficiária do crime. É um blefe tão
sutil engenharia do engodo e monstruoso, tão cínico, que ilude os observadores mais espertos e
conquistar, ante o olhar sonso de acaba passando por empreendimento de boa-fé.
adversários impotentes, "o po- É um exemplo corriqueiro. A técnica da contradição estupe-
Diário do Comércio, der onipresente e invisível de faciente está em tudo o que a esquerda faz. Enquanto seus ad-
26 de setembro de 2007 um imperativo categórico, de versários não atinarem com isso, continuarão sendo feitos de
um mandamento divino". bobos a cada semana.

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PT, o partido dos ricos

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O PT não é um partido ladrão por-
que abandonou seus altos
ideais e se corrompeu ao conta-
to com a maldita direita. Para
que a direita o corrompesse seria preciso que
ela fosse mais corrupta do que ele, e é só com-
parar a lista de escândalos dos governos res-
tão por César Benjamin, algo como uma versão
"los macaquitos" de Karl Liebknecht, à qual,
como a este último, a História e o distinto pú-
blico deixaram falando sozinha.
Tomem, por exemplo, a forma mais simples e
bruta do capital – a posse da terra – e façam a
conta de tudo o que a militância organizada,
pectivos para ver que o próprio P. C. Farias te- com o auxílio deste governo e dos anteriores,
ria muito a aprender com os Dirceus e Berzoi- vem amealhando ao longo dos últimos anos. So-
nis. O PT é um partido ladrão porque é um mem a extensão das propriedades do MST com
partido revolucionário, filiado a uma tradição as reservas indígenas, com os quilombos (ou di-
de amoralismo maquiavélico, que pelo me- tos tais) em vias de desapropriação, com os imó-
nos desde a Revolução Francesa, com intensi- veis estatais e privados já transferidos a ONGs
dade crescente desde a Primeira Internacio- ativistas, com as áreas sob domínio das Farc di-
nal de 1864 e mais ainda desde a fundação do retamente ou através de seus prepostos locais –
Partido Socialdemocrata de Lênin, sempre e verão que nunca houve, neste País, um patri-
achou que era de seu direito, e até da sua obri- mônio imobiliário comparável. Nem incluo aí o
gação, financiar a si próprio por meio de assal- patrimônio financeiro – as verbas estatais que
tos, de sequestros, de extorsões, de desvio de O mensalão não foi um jorram sobre as organizações esquerdistas, as
dinheiro público, bem como de uma infinida- pecado temporão participações acionárias em mil e uma empre-
de de negócios capitalistas legais e ilegais, cu- cometido por almas sas, as contribuições internacionais impossíveis
jo volume total faria inveja a seus mais reacio- santas no último minuto de calcular e, last not least, os lucros do narco-
nários inimigos burgueses. tráfico. Os ricos não serão destruídos pelos po-
antes da ascensão aos
Estudem a vida de Lênin e confirmarão o bres. Serão destruídos pelos mais ricos.
que estou dizendo. O volume do capital que o céus. Foi a execução No fundo, o cinismo lulista é até mais respei-
financiava, sem contar a ajuda de governos es- lenta e metódica de tável do que o moralismo posado de seus crí-
trangeiros, era tal que, se aplicado em ativida- planos traçados desde ticos de esquerda, postiço até o desespero, ma-
des produtivas, teria feito dele uma espécie de o começo da década caqueação tardia do mesmo discurso engano-
J. P. Morgan – com o detalhe significativo de so que levou o PT às supremas glórias eleito-
de 90 – contemporâneos
que as contribuições de J. P. Morgan engrossa- rais. O que o antilulismo de esquerda nos
vam aquele capital junto com o dinheiro dos à criação do Foro de promete, na hipótese viabilíssima de sua as-
assaltos comandados por Stálin. Revoluções São Paulo –, já censão ao poder, são prodígios de ladroagem
custam caro. O revolucionário Parvus, que en- denunciados então por que farão Dirceu e Berzoini parecerem São
riqueceu com mil e um negócios na Turquia, já César Benjamin Cosme e São Damião. No ato mesmo em que
ensinava em 1914: "A melhor maneira de der- explicam a corrupção petista como traição aos
rubar o capitalismo é nós mesmos nos tornar- ideais revolucionários, os santarrões do PSOL
mos capitalistas." Não foi o Lulinha quem des- e do PSTU se desmascaram a si próprios com
cobriu essa fórmula. Rosa Luxemburgo e Karl uma eloquência quase sublime: Quem pode
Liebknecht riram dela e acabaram derrotados. acreditar em patifes que prometem fazer a re-
Lênin, o vitorioso, ouviu-a com reverência e volução marxista sem descumprir em nada os
gratidão da boca de seu gerente financeiro na ditames da moral burguesa?
Suíça, Jacob Hanecki, a quem depois da Revo- Ademais, por que alardeiam suas denúncias
lução premiaria com o cargo de Comissário do na Rede Globo, na Folha , no Estadão – naquela
Povo para as Finanças. Leiam Lenin in Zurich , mesma mídia a que chamam reacionária e im-
de Alexander Solzhenitsyn (London, Farrar, perialista – antes de haver sequer tentado dis-
Straus & Giroux, 1975). A revolução socialista cuti-las discretamente no Foro de São Paulo, a
consiste na simples transfiguração de uma eli- instância máxima do esquerdismo continen-
te ativista proprietária de boa parte do capital tal? Roupa suja se lava em casa, e quando al-
em senhora absoluta de todo o capital. Sempre guém o faz em público antes de haver nem
foi assim, e com a esquerda nacional não é di- mesmo tocado no assunto em família, é porque
ferente. O mensalão não foi um pecado tempo- está tramando alguma. Imaginem um soi di-
rão cometido por almas santas no último mi- sant dissidente soviético que, nos anos 60, saís-
nuto antes da ascensão aos céus. Foi a execução se berrando contra o comunismo na Voz da
lenta e metódica de planos traçados desde o co- América ou Rádio Europa Livre, ao mesmo
meço da década de 90 – contemporâneos à cria- tempo que conservasse seu cargo e suas boas
ção do Foro de São Paulo –, já denunciados en- relações no Politburo ou na KGB. É exatamente

26 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


a mesma coisa. Se a esquerda está dividida en- Veja? Este, aliás, se trai miseravelmente ao di-
tre os corruptos e os honestos, a divisão deveria zer que, de esquerdistas genuínos, os militan-
aparecer primeiro nos seus debates internos – tes das Farc se transformaram numa "seita de
só depois ante os inimigos, se chegasse a tanto. fanáticos". Se dissesse que se transformaram
O inverso é prova clara de que se trata de pura em aproveitadores sem fé nenhuma, talvez
encenação, de que por trás a família continua enganasse melhor. Mas "fanáticos"? Fanáticos
unida e coesa, tramando para ludibriar uma do quê? Do espiritismo? Do vegetarianismo?
vez mais a multidão dos trouxas. Não há cisão Da Seicho-No-Iê? Fanáticos jogadores de fu-
na esquerda: há apenas uma natural divisão de tebol de botão? Fanáticos admiradores da
trabalho – uns amealham dinheiro e poder à Ana Paula Arósio? Fanáticos, por definição,
custa de enfeiar a imagem do esquerdismo, ou- acreditam em alguma coisa, e em que acredi-
tros embelezam a imagem consentindo devo- tam os homens das Farc, senão no bom e velho
tadamente em adiar o recebimento da sua quo- marxismo de sempre? Fanáticos marxistas,
ta de dinheiro e poder. Sempre foi assim. O mo- sim, é o que são, ontem como hoje. Se não o fos-
vimento revolucionário limpa-se na sua pró- sem, não seriam aceitos e celebrados como re-
pria sujeira, engorda alimentando-se do seu presentantes fidedignos do marxismo no
próprio cocô. templo mesmo da revolução comunista, o Fo-
O hábito de salvar o prestígio do esquerdis- ro de São Paulo. Ou será que Veja tem mais au-
mo no ato mesmo de denunciar os seus crimes
É falso que Marx não toridade do que o Foro de São Paulo para jul-
já está tão arraigado nas rotinas mentais da endossaria essas gar a ortodoxia comunista dos outros?
classe falante, que aparece até mesmo nos lu- violências e outras Mais abusadamente ainda, Marcelo Otávio
gares que se julgariam, à primeira vista, os piores, de vez que Dantas, no artigo "Messianismo e o credo pe-
mais inusitados. Falando dos reféns em poder tista" (Folha de S. Paulo), querendo contrastar
contemplava como
da narcoguerrilha colombiana, escreve a Veja o PT corrupto de hoje com o PT puríssimo de
desta semana – sim, Veja, nominalmente o exigência normal outrora, diz que a mentalidade do partido
spalla da orquestra antipetista: e desejável do processo "converteu-se, assim, em um neosabbatianis-
"A organização que mantém cerca de oito- revolucionário a mo radical, alimentado por uma intelectuali-
centas pessoas em seu poder, conhecida pela extinção sumária de dade delirante, especializada em justificar o
sigla Farc, não é formada por guerrilheiros marxis- injustificável". Como se os traços da heresia
povos inteiros.
tas, como repete a denominação usual (grifo meu). de Sabbatai Zevi já não estivessem no próprio
Nem Marx endossaria as barbáries cometidas sangue do movimento revolucionário desde
pelas Farc, que se originaram numa guerra ci- sempre e como se a marca distintiva do PT não
vil ocorrida na Colômbia e depois tiveram ins- tivesse sido, desde a origem, o culto do peca-
piração esquerdista, mas há muito tempo de- do redentor assumido até mais explicitamen-
generaram em uma espécie de seita de fanáti- te que o dos outros partidos de esquerda então
cos que vive à custa do tráfico de cocaína." existentes. Nascido de uma aliança entre os
Desde logo, é falso que Marx não endossa- comunistas e a esquerda católica, o PT veio
ria essas violências e outras piores, de vez que imbuído do projeto gramsciano de subverter
contemplava como exigência normal e dese- a Igreja por dentro, esvaziando-a de seu con-
jável do processo revolucionário a extinção teúdo espiritual e fazendo dela o instrumento
sumária de povos inteiros. Em segundo lugar, dócil do que pode haver de mais anticristão no
o narcotráfico das Farc é mixaria perto do que mundo, a revolução comunista. Se isso não é
foi feito na China por Mao Dzedong, a quem uma forma extrema de heresia messiânica,
ninguém jamais acusou de ser infiel às tradi- não sei em que outra classificação possa caber.
ções marxistas. Em terceiro lugar, o comércio O discurso untuosamente moralista do PT
latino-americano de drogas foi na sua parte nunca teve nada de sincero, foi sempre, entre
mais substantiva uma criação da KGB, que se os líderes, uma parasitagem maquiavélica do
empenhou nisso desde os anos 50 (v. o depoi- prestígio da Igreja para fins de propaganda e,
mento do general tcheco Jan Sejna – um par- na arraia miúda dos militantes, uma forma
ticipante direto da operação – em Christopher patológica de autoengano lisonjeiro. Perto
Story , Red Cocaine. The Drugging of America disso, o Mensalão é apenas um pecadinho de
and the West , London, Edward Harle, 2nd. fim de semana. A corrupção financeira do PT
Ed., 1999). Devemos crer que o governo sovié- não é senão a exteriorização tardia – e mais
tico, Mao Dzedong e o próprio Marx não re- Diário do Comércio, vistosa, para a mentalidade dinheirista – da
presentam o autêntico espírito do marxismo, 21 de janeiro de 2008 podridão interior sem fim que inspirou a cria-
cujo único porta-voz autorizado é o redator de ção do partido-seita.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 27


O nacionalismo
contra a nação

E m 1990, pronunciei na Casa do Estu-


dante do Brasil, Rio de Janeiro, uma
conferência sob o título de "O fim do
ciclo nacionalista". A tese central era
que a cultura brasileira, tendo como foco a bus-
ca e afirmação da identidade pátria, não sobre-
viveria ao advento de uma nova situação mun- A "revolução
dial marcada pela dissolução das soberanias cultural"
nacionais e por aquilo que viria a ser chamado gramsciana que se
de "multiculturalismo". O Brasil havia chega- apossou do sistema
do tarde demais ao palco da História e, exce- nacional de ensino
tuada a inverossímil hipótese de um upgrade há quase três
intelectual formidável, suas elites seriam en- décadas consiste
golfadas por transformações mundiais que ul- na síntese de ódio
trapassariam de longe a sua capacidade de antiamericano,
compreensão. O Brasil como unidade política chavismo militante
autônoma estava em perigo de dissolver-se, e multiculturalismo
sem que suas lideranças fossem capazes se- dissolvente.
quer de perceber o que se passava.
Decorridos dezoito anos, a apropriação de
Reprodução

parcelas imensas do território pela narcoguerri-


lha colombiana, pelas gangues locais intima-
mente associadas a traficantes estrangeiros, por
"nações indígenas" criadas em proveta nos labo-
ratórios da ONU, pelos chamados "movimentos
sociais" a serviço do Foro de São Paulo – tudo isso
mostra que só tenho uma coisa a alterar no meu histórica transmitida e reforçada de geração
diagnóstico de 1990: os verbos devem ser trans- em geração, bem como nos valores tradicionais
postos do tempo futuro para o tempo presente. que essa História incorpora e simboliza.
Sem dúvida, um dos principais fatores que A "revolução cultural" gramsciana que se
contribuíram para transmutar as minhas pre- apossou do sistema nacional de ensino há qua-
visões em realidade foi a total apropriação do se três décadas apagou totalmente essas refe-
nacionalismo brasileiro pelos movimentos de rências básicas, substituindo-as por um novo
esquerda. O nacionalismo de esquerda é uma conceito de "nacionalismo", que consiste na
criatura esquiva e bifronte, que finge defender síntese de ódio antiamericano, chavismo mili-
a soberania nacional só para mais facilmente tante e multiculturalismo dissolvente.
subjugar o País aos interesses de um movimen- Esse nacionalismo só serve para subjugar o
to que é internacionalista na origem e nos ob- Brasil aos interesses do esquerdismo interna-
jetivos, e que aliás é sustentado pelas mesmas cional, empenhado em "reconquistar na Amé-
forças globalistas que, da boca para fora, pro- rica Latina o que foi perdido no Leste Europeu"
fessa combater. e em integrar as nações do continente numa
Toda e qualquer identidade nacional que unidade regional onde terão tanta autonomia Diário do Comércio,
signifique alguma coisa na realidade, que não quanto a Ucrânia ou a Polônia tinham sob o ju- 03 de abril de 2008
seja só um mito oficial, funda-se na consciência go da URSS.

28 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


ARITMÉTICA DO

ENGODO
Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem

D esde que o assassinato da menina Isabella apa-


receu na mídia, o comentário esquerdista do
episódio tem sido invariavelmente o mesmo: é
imoral fazer alarde em torno de uma só criança
assassinada, num País onde os menores de idade vítimas
de homicídio se contam aos milhares.
A nuance ideológica aí subentendida é que o individua-
codilo por uma criança enquanto a cada dez minutos
um menor de 14 anos é assassinado neste País. Fazendo
as contas – seis crianças por hora, 144 por dia, 52.560
por ano – tínhamos aí um fenômeno aritmético assom-
broso: anualmente, morriam assassinados 50.000 bra-
sileiros, dos quais 52.560 eram crianças. Diante disso,
pensei seriamente em voltar atrás nas críticas que um
lismo burguês reserva sua compaixão para o caso singular dia fizera à teoria do matemático alemão Georg Cantor,
para não ter de enxergar o problema social por trás dele. segundo a qual existem infinitos maiores e menores.
Jamais ocorre a esses sapientíssimos denunciadores Pelo menos no Brasil, segundo a Folha Online , um sub-
da alienação capitalista a hipótese de que o caso singular conjunto podia ser maior do que o conjunto que o
desperte a violenta emoção coletiva justamente por ser abrange. Com o detalhe especialmente notável de que
um símbolo condensado do problema social, a gritaria adultos, velhos e adolescentes maiores de 14 anos ja-
em torno dele expressando portanto um estado de cons- mais eram assassinados nesta parte do universo. Todos
ciência alerta e não de alienação. escapavam ilesos à violência geral, e as criancinhas
Intelectuais de esquerda jamais hesitam em torcer a ainda tinham um superavit de 2.560 cadáveres.
realidade como se fosse roupa no tanque, para extrair de- Horas depois, veio o desmentido: a Folha confessa-
la um pouco de água suja que possam mostrar ao mundo va o erro, admitindo que o pobre Langellier não dissera
como prova da maldade burguesa e, en passant , da sua "a cada dez minutos", mas "a cada dez horas". O núme-
própria superioridade moral. ro de crianças assassinadas por ano baixava drastica-
Por isso mesmo não me surpreendi nem um pouco mente de 52.560 para 876.
ao ler, na Folha Online, que, segundo Jean Pierre Lan- Isso era certamente um alívio para o leitor, mas não
gellier, articulista de Le Monde, os brasileiros, um po- melhorava em nada a situação do articulista do Monde
vo malvado que "bate os recordes de violência com 50 nem da Folha Online. O sentido geral do artigo seguia a
mil homicídios por ano", derramam lágrimas de cro- linha oficial do argumento esquerdista: enfatizar a

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 29


"violência doméstica", minimizando o papel dos quadri- pas que pertencem ao banditismo organizado e ao esquema
lheiros armados na produção nacional de cadáveres. Esse revolucionário latino-americano que o protege apareceu,
mote foi posto em circulação pela campanha do desarma- da maneira mais visível, onde, em condições normais, me-
mento civil, mas, falhado o seu objetivo originário, tem ser- nos se esperaria encontrá-lo: no ato público promovido pela
vido para uma infinidade de objetivos suplementares, entre ONG "Comunidade Cidadã" no dia 16, nominalmente para
os quais abortar preventivamente a possibilidade de uma homenagear as vítimas da onda de terror espalhada pelo
revolta popular contra o banditismo e os agentes do Foro de PCC nas ruas de São Paulo em maio de 2006 (v. Carta aberta
São Paulo que o acobertam. Lançando as culpas da violência à sociedade paulistana).
na "elite branca racista" e na maldita instituição da família, Após um velório realizado ante 493 caixões de defunto, o
esse discurso prepara o terreno para a implantação de leis ponto culminante do evento foi a entrega de um Manifesto da
raciais e do casamento gay, sugerindo implicitamente – e às entidade aos representantes do poder público. Ao longo desse
vezes explicitamente – que entre outros inumeráveis bene- documento, altamente significativo da mentalidade ativista
fícios essas medidas trarão a paz a um país atormentado pe- em nossos dias, não aparece nem uma única vez a expressão
la violência e pelo crime. Tão natural esse modo de pensar "PCC", nem se faz qualquer menção aos autores do crime. Em
pareceu ao redator da Folha Online, que um automatismo compensação, fala-se muito da "exclusão", da "exploração dos
inconsciente o levou a multiplicar por sessenta o número de negros pelos brancos" e da malvada sociedade adulta que "tem
crianças assassinadas, enfatizando o caráter eminentemen- medo dos jovens" e se dedica a extingui-los, sobretudo, é claro,
te homicida da instituição familiar, mesmo ao preço de es- quando são de raça negra. Em seguida, pede-se a punição "dos
tourar as leis da aritmética. culpados", sem distinguir nem de longe entre os culpados da-
Mas, embora realizada com quele crime em especial e os de tudo o mais que a "Comuni-
uma aritmética menos louca, a dade Cidadã" detesta.
mesma intenção já estava no ar- A conclusão, implícita mas altamente eloquente, é que não
tigo original de Langellier. Ao houve nenhum massacre de brasileiros pelos bandidos do
confrontar o número de crian- PCC: houve, sim, a matança de negros pelos brancos, de po-
ças assassinadas com o total bres pelos ricos e privilegiados, de jovens progressistas por
dos homicídios brasileiros, ele adultos conservadores e reacionários.
enfatizava que a maior parte da Quando uma facção política tem a hegemonia cultural e ao
primeira cifra era produzida mesmo tempo o domínio do Estado, isto é, o controle simul-
pela "violência doméstica", su- tâneo da circulação de ideias e dos meios de ação política, ela
gerindo que esta desempenha- pode fazer milagres, agindo unificadamente sobre toda a so-
va um papel essencial, dramá- ciedade por meio de uma rede de conexões tão sólida quanto
tico, no quadro da criminalida- invisível, de modo que todas as correntes de causas, indo para
de brasileira. Mas façam as con- qualquer lado que seja, levem sempre a água ao mesmo moi-
tas. Dos 50 mil brasileiros nho, façam rodar sempre a mesma engrenagem, fortaleçam
assassinados anualmente, 876 sempre quem já é o mais forte: um grupo de organizações es-
Diário do Comércio, são crianças. Segundo o Censo querdistas promove a solidariedade continental às Farc, as
26 de maio de 2008 de 2000 (v. www.ibge.gov.br), Farc armam o PCC, o PCC mata 493 pessoas inocentes e, fe-
os menores até 14 anos no Brasil chando o círculo, outras organizações esquerdistas íntima-
são 50.266.123: um terço da po- mente associadas às primeiras tiram proveito publicitário do
pulação nacional. Ora, se o gru- massacre, debitando as culpas das ações da esquerda na conta
po etário que constitui um terço da população nacional fornece de um bode expiatório atônito, que por medo e por humani-
a quinquagésima sétima parte do total de vítimas de homicí- tarismo sonso ainda consente em colaborar paternalmente
dios, está claro que esse grupo não é, de maneira alguma, um com o empreendimento, como um Judas de sábado de aleluia
alvo preferencial de violência no conjunto da criminalidade que, para se fazer de simpático, se malhasse a si próprio.
nacional, não é nem mesmo um alvo estatisticamente signifi- A articulação da violência com a sua exploração ideoló-
cativo. Mesmo se aquelas 876 vítimas tivessem sido todas as- gica em favor dos seus próprios mentores e controladores é
sassinadas por seus pais – o que está longe de ser o caso –, seria prática usual no movimento revolucionário pelo menos
ainda monstruosamente desproporcional atribuir à brutalida- desde o século XVIII. Sempre que a operação se repete, o fa-
de da família contra as crianças um papel relevante no quadro tor decisivo para o seu sucesso é a credulidade sonsa de uma
da violência nacional. Ainda que o assassinato de uma só crian- sociedade que se deixa passivamente inculpar pelo mal que
ça seja em si mais revoltante do que quaisquer crimes come- o próprio acusador lhe faz.
tidos contra adultos – e o escândalo em torno do caso Isabella é Até quando os líderes políticos e empresariais nominal-
expressão natural dessa revolta –, isso só torna ainda mais in- mente não esquerdistas ou até anti-esquerdistas consenti-
justo e insultuoso retratar a família brasileira como um am- rão em participar dessa farsa masoquista? Quando percebe-
biente de terror assassino, como se o perigo maior viesse dela e rão que estão sendo manipulados por indivíduos amorais,
não de bandidos treinados e armados pelas Farc. maquiavélicos, sem princípios nem o mais mínimo senti-
Esse mesmo intuito de desviar para "a sociedade" as cul- mento de honra?

30 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


ABORTO

Debatendo com o crime


A s alegações em favor da liberação do aborto são tão es-
candalosamente mentirosas, que o simples fato de
aceitar debatê-las já é conceder-lhes uma honra inde- $ $
$
vida. Não é a mesma coisa discutir com a pessoa ho-
nesta que tem uma ideia errada na cabeça e com vigaristas dis-
postos a impor suas decisões por meio de quantas fraudes e en-
godos lhes pareçam necessários para isso. Os abortistas, sob esse
aspecto, já superaram a quota de mendacidade rotineira de qual-
quer movimento social ou político, se tornando um perigo públi-
co que deve ser denunciado como tal. Mesmo porque a impuni-
$ $
$
dade de que vêm desfrutando só os encoraja a usar a própria jus-
tiça como instrumento da fraude, perseguindo e acossando os
discordantes por meio de trapaças jurídicas como aquela, já aqui
denunciada, de tentar criminalizar o uso da palavra abortistas pa-
ra designá-los, como se existisse termo melhor.
À desonestidade permanente e sistemática da sua propaganda
acrescenta-se ainda a brutalidade incomum de uma retórica ba-
$
sofreu estupro nenhum, que foi tudo uma invencionice trama-
da entre ela e os líderes do movimento abortista.
seada na intimidação e na chantagem psicológica, que inventa 3) As estatísticas que procuravam impressionar o público ame-
males sociais puramente imaginários para em seguida imputar ricano com a alegação de milhões de abortos clandestinos reali-
sua culpa aos adversários do aborto, fazendo da fé religiosa um zados anualmente foram forjadas pelo líder abortista Bernard
crime e assim legitimando implicitamente a matança de cristãos e Natanson, que já confessou tudo. Natanson foi proprietário da
as legislações repressoras que configuram de maneira cada vez maior clínica de abortos dos EUA, mas se arrependeu dos seus
mais nítida um deliberado e crescente genocídio cultural. crimes, voltou à fé judaica da sua infância e hoje é um dos mais
Só a título de amostra, vejam alguns dos feitos notáveis do mo- corajosos denunciadores do genocídio abortista. Ainda hoje essas
vimento abortista, e digam, com toda a franqueza, se essa gente estatísticas monstruosamente aumentadas são brandidas pela
merece um debate educado ou uma resposta judicial à altura: grande mídia nacional como argumentos sérios.
1) As Católicas pelo Direito de Decidir são uma organização 4) O financiamento bilionário da campanha abortista vem
pró-abortista fraudulenta, que dos mesmos grupos multinacionais que há meio século tentam
se finge de católica para ludi- impor ao mundo o controle populacional por todos os meios
briar a população religiosa, mas lícitos e ilícitos. A desculpa da campanha era eliminar a miséria
na verdade é explicitamente sa- no Terceiro Mundo. Hoje está provado que o seu único resul-
tanista. Se isso não é propaganda tado foi, ao contrário, diminuir a natalidade nos países ricos,
enganosa e estelionato, a lei mu- desencadeando a onda de imigração ilegal que hoje ameaça
dou sem que eu fosse avisado. Já destruir a sociedade europeia e americana.
acusei a organização em público Em vez de admitir o erro, os iluminados autores da ideia de-
por esses crimes, e a presidente cidiram redobrar a aposta, adquirindo a peso de ouro o apoio
da entidade, após uns rosnados dos partidos de esquerda por toda parte e investindo no con-
de puro blefe, se recolheu a um trole indireto por meio do incentivo ao aborto e ao homosse-
silêncio altamente significativo. xualismo. Resultado: aqueles partidos, que na década de 60
2) O processo judicial Roe denunciavam a campanha de controle populacional como in-
versus Wade , que produziu a tervenção imperialista, se tornaram os maiores defensores e
legalização do aborto nos apóstolos daquilo que condenavam. Se isso não é comércio de
EUA, foi uma fraude completa. consciências, não sei o que é.
A própria autora da petição ini- 5) O comércio de fetos para a indústria de cosméticos é o be-
cial, que solicitava permissão Diário do Comércio, neficiário mais direto e óbvio da legalização do aborto, mas nem
para abortar sob a alegação de 10 de maio de 2007 uma palavra sobre isso se admite nos "debates" montados pela
estupro, já confessou que não grande mídia, toda ela comprometida com a causa abortista.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 31


MOVIMENTO GAY

Consequências mais
que previsíveis
C omo não cabe ao analista político dizer
às pessoas o que devem ou não devem
fazer nas suas vidas privadas, nunca es-
crevi uma linha a favor ou contra as prá-
ticas homossexuais ou qualquer outra conduta eró-
tica existente ou por inventar. Escrevi, sim, contra o
movimento gay como fórmula ideológica e projeto
cessariamente interpretadas como adversas aos di-
reitos da comunidade homossexual;
7) Análises sociológicas, históricas ou estatísticas
que ponham em evidência qualquer conduta nega-
tiva da comunidade gay. Essas análises já estão pra-
ticamente excluídas do universo cultural decente. A
lei vai proibi-las por completo;
de poder. Isso bastou para que eu fosse rotulado de 8) Qualquer resistência que um pai ou mãe de fa-
"homofóbico" vezes sem conta. Conclusão: se esti- mília oponha à doutrinação homossexual de seus fi-
vesse em vigor a lei maldita que o nosso Parlamento lhos nas escolas ou à participação deles em grupos e
quer aprovar, eu iria para a cadeia por conta de opi- entidades homossexuais;
niões políticas. 9) Qualquer tentativa de impedir ou reprimir, por
Na verdade a lista de atitudes humanas puníveis atos ou palavras, as expressões públicas de erotismo
como "homofóbicas" é bem variada. Ela abrange: gay, discretas ou ostensivas, moderadas ou extre-
1) Citações da Bíblia ou de livros sagrados de mas, mesmo diante de crianças ou em lugares con-
qualquer religião que façam objeções morais ao ho- sagrados ao culto religioso;
mossexualismo; 10) Qualquer observação casual, feita no escritó-
2) Opiniões médicas, psiquiátricas e psicotera- rio, na rua ou mesmo em casa (se houver testemu-
pêuticas, que ponham em dúvida, de maneira mais nhas) que possa ser considerada desairosa aos ho-
ou menos explícita, a sanidade da conduta homos- mossexuais ou ao movimento gay. Isso inclui a sim-
sexual. Isso inclui obras clássicas de Freud, Adler, ples expressão de satisfação que um cidadão possa
Szondi, Frankl e Jung, entre outros; ter por ser heterossexual.
3) Manifestações pessoais de repulsa física ante o A lei, enfim, criminaliza e pune com pena de prisão
homossexualismo, emoção tão espontânea e irre- inumeráveis condutas consideradas normais, legíti-
primível quanto o próprio desejo homossexual. (In- mas, aceitáveis e até meritórias pela quase totalidade
versa e complementarmente, a repulsa do homosse- da população brasileira. E não pensem que ficará no
xual pela sexualidade hetero, ou até por variantes papel. Neste momento já estão sendo organizados
homossexuais que não coincidam com a sua, como grupos de olheiros – espalhados primeiro nas escolas,
por exemplo a repulsa dos gays machões pelos tra- depois em toda parte – para vigiar, delatar e punir os
vestis e transexuais, não apenas será considerada lí- dez tipos de conduta acima assinalados.
cita, mas estará sob a proteção da lei, condenando-se As consequências mais que previsíveis da apro-
como "homofóbica" toda objeção que se lhe apresen- vação dessa lei são tão portentosas e ilimitadas que a
te ou, mais ainda, toda tentativa de reprimi-la. Ou maioria dos cidadãos tem dificuldade de concebê-
seja: o direito à repulsa sexual será monopólio exclu- las, limitando-se a apreender por alto suas aparên-
sivo da comunidade gay); cias mais superficiais e patentes, se não a tratar o as-
4) Expressões verbais populares, de uso espontâ- sunto com leviana indiferença. Mas essas conse-
neo e irreprimível, consideradas depreciativas e an- quências podem ser resumidas da seguinte manei-
ti-homossexuais; ra: Com um só golpe de caneta, um grupo militante
5) Piadas e gracejos que mostrem a conduta ho- organizadíssimo, fartamente subsidiado do exte-
mossexual sob um ângulo risível; rior, associado aos partidos de esquerda e agindo em
6) Opiniões políticas contrárias aos interesses do consonância com a estratégia geral que os orienta,
movimento gay, que já são e serão cada vez mais ne- terá conquistado uma quantidade de poder policial

32 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


Se estivesse em vigor
a lei maldita que o
nosso Parlamento quer
aprovar, qualquer
resistência que um pai ou discricionário
mãe de família oponha tão vasta e amea-
à doutrinação çadora quanto se
poderia obter me-
homossexual de seus
diante um golpe de
filhos nas escolas Estado ou uma re-
ou à participação deles volução. Dotado do
em grupos e entidades aparato jurídico neces-
homossexuais será sário para aterrorizar

Paulo Pampolin/Digna Imagem


toda oposição, reduzi-la
considerado crime.
a um silêncio humilhante,
marginalizá-la e torná-la so-
cialmente inoperante, esse
grupo terá se tornado, nas mãos
da aliança esquerdista que nos go-
verna, mais um poderoso instrumento
de controle social e político, somando-se à
polícia fiscal, à ocupação do território pelos
"movimentos sociais", ao domínio hegemôni- ços de "gayzistas" e simpatizantes para des-
co sobre as instituições de cultura e ensino, às truir a carreira, a família e até a alma do escritor
campanhas policiais soi disant moralizantes Júlio Severo, a repetição do mesmo procedi-
que só atingem sempre os desafetos da esquer- mento contra o pastor catarinense Ademir
da ou bandos criminosos menores, politica- Kreuzfeld (v. http://www.juliosevero.blogs-
mente inócuos, jamais os agentes das Farc, os pot.com/ ), mostram que não faltam armas à
verdadeiros grão-senhores do crime no conti- elite gay para perseguir, amedrontar e margi-
nente, cada vez mais ostensivamente protegi- nalizar seus adversários, quanto mais para de-
dos pelo establishment petista. fender-se dos perigos imaginários que a amea-
Na verdade, o movimento gay não precisou çam. A nova lei é material bélico excedente, só
esperar pela aprovação da lei para fazer sentir utilizável em eventuais demonstrações de for-
o peso das suas ambições policialescas sobre os ça perfeitamente supérfluas.
que ousaram contestar sua pretensa autorida- Que tão avassaladora ascensão do autorita-
de. O assédio judicial a D. Eugênio de Araújo rismo seja necessária para proteger os pobrezi-
S a l e s ( v. h t t p : / / w w w. o l a v o d e c a r v a- nhos homossexuais contra piadas, gracejos e
lho.org/semana/040724globo.htm ), os esfor- citações da Bíblia é um argumento tão risível,

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 33


Jorge Silva/Reuters
sassinos, um fato óbvio que a mídia esconde
sistematicamente, reforçando o engodo legis-
lativo com a fraude jornalística. E digo que é
óbvio por um motivo ainda mais óbvio. Não
sendo racionalmente aceitável que a porcen-
tagem de homossexuais seja muito diferente
entre os criminosos e a população honesta, a
alegação usual do movimento gay de que esta
última quota é de cinco a dez por cento nos le-
varia necessariamente a alguns milhares de
homossexuais assassinos, sem contar os ho-
mossexuais ladrões, os homossexuais trafi-
cantes e, evidentemente, os homossexuais
chantagistas parlamentares.
Mas nem esse cálculo seria preciso para des-
mascarar a fachada protetiva com que a lei se
apresenta. Um dos traços mais salientes do mo-
vimento gay é seu esforço de combater a discri-
minação onde ela não existe e de ignorá-la por
completo onde existe. No Irã, o homossexua-
lismo é punido com a pena de morte. Vocês já
viram a liderança gay organizar um protesto
internacional contra isso? Ao contrário, ela se
alia às demais forças de esquerda para defen-
der a ditadura dos aiatolás contra o "imperia-
lismo ianque". Em Cuba, os homossexuais e
travestis são considerados casos de polícia, e
quando pegam Aids são isolados para sempre
da sociedade. A elite "gayzista" não apenas se
abstém de protestar contra esse tratamento de-
sumano, mas também não quer que ninguém
que somente um idiota completo ou um men- proteste. Recentemente, um documentário so-
tiroso desavergonhado poderia fazer uso dele bre a condição humilhante dos homossexuais
num debate sério. em Cuba foi excluído de um festival em Nova
Pior ainda é a alegação de violência contra os York – por exigência da militância gay .
homossexuais. Já expliquei o que o simples uso Em compensação, nos EUA e na Europa oci-
do termo "homofóbico" contra os adversários
A lei, enfim, dental, onde os gays têm um lugar privilegiado
do movimento gay tem de maquiavélico, de criminaliza e pune na sociedade e a prática do homossexualismo é
perverso, de criminoso ( http://www.olavode- com pena de prisão uma tradição elegante entre o beautiful people
carvalho.org/semana/070523dce.html ). Mas inumeráveis condutas pelo menos desde a década de 20 do século pas-
ao delito semântico acrescenta-se ainda a per- sado, o clamor por legislações que criminali-
consideradas
versão aritmética. Entre os cinquenta mil brasi- zem toda crítica à conduta homossexual vem
leiros assassinados anualmente, o movimento normais, legítimas, num tom de quem advogasse medidas de
gay não tem conseguido apontar mais de dez ou aceitáveis e até emergência para salvar a comunidade gay de
doze indivíduos que o teriam sido – se é que o meritórias pela quase um genocídio iminente.
foram – por motivos "homofóbicos". Pretender totalidade da No Brasil – uma das sociedades mais per-
que a fúria anti-homossexual seja um fato social missivas do planeta, onde homossexuais de-
população brasileira.
alarmante e epidêmico, necessitado de legisla- clarados ocupam cadeiras no Parlamento sob
ção especial e drástica, é nada mais que uma far- aplausos gerais, onde as vovós assistem a
sa cínica, um estelionato parlamentar que, hou- shows de travestis na TV junto com seus ne-
vesse na política brasileira um pingo de racio- tinhos e onde um espetáculo público de carí-
nalidade e decência, custaria a seus autores a cias lésbicas entre a esposa de um governador
perda do mandato por falta de decoro, por uso e a de um ministro não suscita o menor escân-
indevido do Congresso como instrumento para dalo na mídia –, a gritaria "anti-homofóbica"
servir a ambições grupais injustificáveis. dá a impressão de que os homossexuais estão
Muito maior que o número de vítimas fa- sendo abatidos a tiros, nas ruas, por um exér-
tais da "homofobia" é o de homossexuais as- cito de talibãs cristãos.

34 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


Ao longo das últimas décadas, à medida que to, a homossexualidade em si. Politicamente ,
toda resistência moralista à conduta homosse- isso é loucura. O movimento gay existe há al-
xual cedia lugar à compreensão generosa e à gumas décadas e só em alguns lugares do pla-
aceitação incondicional, as reivindicações do neta; o homossexualismo existe por toda parte
movimento gay no Ocidente vieram num cres- desde que o mundo é mundo. O primeiro pode
cendo, exigindo primeiro a equiparação moral ser derrotado; o segundo não pode ser elimina- O contraste entre
de suas práticas com o casamento heterosse- do. Condicionar a vitória sobre o movimento discurso e realidade é
xual, depois o ensino do homossexualismo nas gay à erradicação do homossexualismo é adiar patente: o movimento
escolas infantis, por fim as penas da lei para pa- essa vitória para o Juízo Final.
dres, pastores e rabinos que citem os versículos Segundo: procurando atenuar a má impres-
gay cresce em
da Bíblia contrários ao homossexualismo. são de autoritarismo dogmático que essa atitu- arrogância, virulência
O contraste entre discurso e realidade é pa- de inevitavelmente suscita, apressam-se a de- e pretensões ditatoriais
tente: o movimento gay cresce em arrogância, clarar que respeitam os direitos dos gays e que à medida que a
virulência e pretensões ditatoriais à medida desejam apenas preservar, lado a lado com sociedade se torna
que a sociedade se torna mais tolerante, simpá- eles, os direitos da consciência religiosa. Com
tica e subserviente às exigências da comunida- isso, igualam o inigualável, negociam o inego-
mais tolerante e
de homossexual. Quem diria que a inversão se- ciável, nivelam a liberdade de consciência a simpática às exigências
xual, com tanta frequência, viesse junto com a uma "opção sexual", à preferência por determi- da comunidade
inversão mental? nado tipo de prazer erótico. Será preciso lem- homossexual.
Basta observar esse fenômeno para perce- brar a esses cavalheiros que, privado de satis-
ber imediatamente que a alegação caracterís- fação erótica, o ser humano sofre alguma inco-
tica do discurso gay, de proteger uma comu- modidade, mas, desprovido da liberdade de
nidade oprimida, é apenas uma camuflagem, consciência, perde o último resquício de digni-
um véu ideológico estendido por cima de ob- dade, o sentido da vida e a razão de existir?
jetivos bem diferentes, incomparavelmente Em suma: são intransigentes onde deveriam
mais ambiciosos. ceder, cedem onde deveriam ser intransigen-
Uma pista para a compreensão efetiva do fe- tes, inflexíveis e até intolerantes. Não há nada
nômeno são os grupos de intelectuais, políti- de mais em aceitar o homossexualismo como
cos e artistas homossexuais, tremendamente uma realidade social que não pode ser erradi-
poderosos e influentes, que marcaram a histó- cada e que, se deve ser combatida, é com todos
ria política e cultural do século XX com o culto os cuidados necessários para não ferir e humi-
da supremacia gay. Três deles são particular- lhar pessoas. Em contrapartida, tratar como
mente importantes: o círculo de Stefan George igualmente nobres e respeitáveis o mais eleva-
na Alemanha, o de André Gide na França e, na do princípio da moralidade e o simples direito
Inglaterra, a confraria dos "Apóstolos" de legal de fazer determinadas coisas na cama é
Cambridge. Em cada um dos três casos, a mi- uma inversão hedionda da hierarquia lógica e
litância pública – sempre do lado errado, nazis- moral, é uma desobediência acintosa ao Pri-
ta ou comunista – encobria uma dimensão meiro Mandamento, cuja implicação mais ób-
mais profunda e mais sinistra, de seita gnóstica via é o dever incondicional de colocar as pri-
empenhada em subjugar a humanidade co- meiras coisas primeiro. Se os adversários do
mum a uma elite homossexual imbuída de um movimento gay querem a proteção de Deus na
senso de superioridade quase divina. sua luta, deveriam começar por não ofendê-Lo
Voltarei ao assunto quando possível. Por en- dessa maneira.
quanto, basta dizer o seguinte: o atual movi- Da minha parte, afirmo que defenderia por
mento gay é a materialização possante e assus- todos os meios ao meu alcance o direito que os
tadora de um projeto de revolução civilizacio- homossexuais têm de que sua preferência se-
nal que, a pretexto de proteger oprimidos, não xual não lhes custe humilhações ou constrangi-
hesita em entregá-los às feras quando isso con- mentos. Mas, tão logo uma dessas criaturas pre-
vém à sua grande estratégia. Que esse projeto tendesse igualar ou sobrepor esse direito à liber-
seja apenas um desenvolvimento específico dade de consciência, da qual ele próprio não é
dentro do quadro maior do movimento revo- senão uma decorrência lógica aliás bem remota
lucionário mundial é algo tão óbvio que não e secundária, eu lhe responderia, na mais polida
necessita ser enfatizado. Mas, por absoluta in- das hipóteses, com as seguintes palavras:
compreensão desse ponto, os adversários do – Cale a boca, burro. Não me peça para res-
movimento gay, quase sem exceção, têm come- peitar um direito que você mesmo, embora Diário do Comércio,
tido dois erros monstruosos. talvez sem se dar conta, está pisoteando com 04 de junho 2007
Primeiro: combatem, junto com o movimen- quatro patas.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 35


MAX.
Estupro psicológicoestatal

N ão existe qualquer epidemia de vio-


lência contra os homossexuais neste
País, mas, mesmo que houvesse, ne-
nhuma lei contra opiniões religio-
sas poderia fazer nada para detê-la, pela simples
razão de que, fora dos países islâmicos, casos de
violência anti-homossexual por motivo de crença
Se algum dia houve no Brasil uma proposta de
lei desprovida de qualquer razão de ser além do
puro ódio, é essa.
Mas não é somente sobre os cristãos que ela des-
peja esse ódio. É sobre toda a concepção do Estado
democrático, do governo do povo pelo povo. Não
há um entre os proponentes dessa lei que o ignore,
religiosa são a raridade das raridades, e no Brasil nem um só que não se regozije com isso. No Estado
até agora não se comprovou nenhum. Rigorosa- democrático, o governo é a expressão da vontade
mente nenhum. popular e, portanto, da cultura reinante. Ele pode
Em compensação, a lei tornaria automatica- elevá-la e aperfeiçoá-la, mas o próprio fundamento
mente criminosos e sujeitaria à pena de prisão mi- da sua existência consiste em respeitá-la e protegê-
lhões de brasileiros honestos, cujo único delito é la. Na nova concepção imposta pela elite globalista
acreditar na Bíblia. Eles poderiam ser presos não iluminada, o Estado é o "agente de transformação
só por ler em voz alta versículos tidos como "ho- social", a vanguarda da "revolução cultural" incum-
mofóbicos", mas por protestar contra qualquer bida de fazer o povo gostar do que não gosta, apro-
casal gay que, por mera provocação ou genuína var o que não apro-
falta de autocontrole, se afagasse com a maior im- va, cultuar o que
pudência dentro de uma igreja, quanto mais nu- despreza e despre-
ma praça pública. zar o que cultuava.
Os gays, indefesos como todo o restante da po- É o órgão do estu-
pulação num país que tem cinquenta mil homicí- p ro p s i c o l ó g i c o
dios por ano, continuariam tão sujeitos quanto permanente, empe-
agora à truculência de assassinos e estupradores – nhado em chocar,
estes últimos necessariamente homossexuais escandalizar e con-
eles próprios, no caso –, mas estariam protegidís- trariar a alma popu-
simos contra o apelo suave do Evangelho, que os lar até que esta se
convoca a mudar de vida. renda, vencida pelo
Alegar que essa lei se destina à proteção da co- cansaço, e passe a
munidade gay é cinismo; ela se destina, isto sim, à aceitar como decre-
destruição da comunidade cristã, sem nada ofere- to da Providência,
cer aos homossexuais em troca, apenas dando à como fatalidade
parcela politizada e antirreligiosa deles a satisfa- natural inevitável,
ção sadística de alegrar-se com a desgraça alheia. o que quer que ve- Diário do Comércio,
Desgraça tanto mais satisfatória, a seus olhos, nha da burocracia 28 de julho de 2008
quanto mais injusta, arbitrária e sem motivo. dominante.

36 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


FORÇAS ARMADAS

n ó s t i c o
Di a g a ç ã o
d a s i t u

O s militares ditos "nacionalistas",


que aliás não são muitos,
acusam-me de tachá-los de
comunistas e de não
compreender suas elevadas intenções
patrióticas. Ao contrário. Sei que não são
comunistas. São anticomunistas, entusiastas
nacional" só reconhece como sujeitos agentes
da História os Estados e os governos. Estados
e governos não são sujeitos da ação histórica:
são seus instrumentos. Sujeitos históricos são
entidades mais permanentes e estáveis, cuja
ação se estende para além da duração dos
Estados e governos.
do capitalismo de Estado, antiamericanos por Sujeitos da História são as castas religiosas,
cálculo e não por ideologia. E compreendo as dinastias monárquicas e oligárquicas e as
perfeitamente bem suas intenções. Discuti-as seitas gnósticas transfiguradas em
muitas vezes com o remoto, mas influente movimentos ideológicos de massa. Sua ação
mentor do grupo, o falecido general Carlos de atravessa os séculos, passando por cima do
Meira Mattos, meu amigo, inteligência prazo de vida dos Estados e do horizonte de
brilhante, e lhe expus francamente minha visão de seus governantes.
discordância, então ainda nebulosa e mal O atual espetáculo do mundo é a disputa
fundamentada. entre quatro sujeitos da História: as religiões
O que sonham é aproveitar-se da onda cristã e judaica, com suas concepções
esquerdista, ajudando-a a precipitar uma tradicionais da civilização, o movimento
situação virtual de guerra contra os EUA, que revolucionário mundial, a oligarquia
elevaria às nuvens o poder das Forças globalista e o expansionismo islâmico. Estes
Armadas, facilitando a derrubada dos três têm relações ambíguas entre si; ora são
esquerdistas e a instauração de um governo aliados, ora concorrentes. Os cristãos e judeus
nasserista de salvação nacional. estão sozinhos contra todos, mal articulados
O plano não é comunista: é apenas louco. em movimentos conservadores que só têm
Trata-se de matar o País para disputar a posse expressão nos EUA. Mas neles repousa a
do cadáver. Uma situação de guerra ou única esperança de preservar a civilização e
mesmo de pré-guerra na América Latina é impedir a dissolução das soberanias
tudo o que os globalistas precisam para nacionais.
colocar a área sob intervenção da ONU. A A mera contraposição de nacionalismo e
soberania nacional desapareceria em globalismo é estreita e provinciana demais
segundos, a Amazônia seria para dar conta do quadro. Ela falseia a
internacionalizada por automatismo. Os realidade e eleva a planos de ação insensatos,
militares nacionalistas iriam para a cadeia e condenados ao fracasso.
os comunistas voltariam ao poder como O obstáculo que separa de mim aqueles
heróis da democracia, sob os aplausos da militares não é ideológico: é a ciumeira de
comunidade internacional e da mídia chique. intelectos atrofiados contra o estudioso que
Diário do Comércio, O plano é furado porque sua base teórica é enxerga mais que eles. Se pusessem a pátria
22 de fevereiro de 2007 a metodologia errada da Escola Superior de acima de seus egos, estariam me ouvindo em
Guerra, cujo conceito fundamental de "poder vez de me jogar pedras.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 37


INCOMPARÁVEIS
T rinta anos atrás, em 12 de outubro de
1977, uma grave crise no meio militar
levou à demissão do ministro do Exér-
cito, general Sylvio Frota, pelo presi-
dente Ernesto Geisel. As causas foram muitas,
e o próprio Frota as descreve com abundância
de detalhes em seu livro de memórias, Ideais
O general Sylvio Frota
tinha razão: a abertura
do general Geisel abriu
as portas do inferno.
Frota conta tudo com
ral Sylvio Frota perdeu o cargo e ainda foi ca-
rimbado como um linha-dura grosseirão, inca-
paz de ombrear-se ao superior tirocínio dos
iluminados Geisel e Golbery.
Não, não estou lamentando o fim da ditadu-
ra. Não gostei do regime militar enquanto du-
rou, nem lhe perdoo agora seus inumeráveis pe-
Traídos (Rio, Zahar, 2006), mas no fundo de tu- abundância de detalhes cados, a começar pela ruptura da promessa de
do havia uma divergência ideológica insaná- em seu livro de eleições livres em seis meses, pela destruição da
vel. Frota permanecia rigidamente fiel ao obje- memórias, Ideais Traídos maior liderança civil anticomunista que este
tivo do movimento de 31 de março de 1964, que (Rio, Zahar, 2006). País já teve – Carlos Lacerda –, e pela fuga ao de-
era livrar o País do comunismo. Geisel abriu o ver do combate cultural, que, se empreendido
caminho para que os comunistas tomassem o em tempo, não só teria frustrado de antemão as
País de volta, deu dinheiro dos nossos impos- ambições belicosas mais imediatas da esquer-
tos para ajudar Cuba a matar uns dez mil an- da, livrando as Forças Armadas de compro-
golanos e instalar uma ditadura socialista na meter-se na subsequente "guerra suja", mas
antiga colônia portuguesa, inchou a burocra- teria também estrangulado no nascedouro o
cia estatal o quanto pôde e diluiu a velha alian- projeto gramscista que, protegido sob a
ça entre o Brasil e os EUA, mesmo ao preço de atenção exclusiva dada pelo governo
assinar um desastroso acordo de energia nu- militar às ações da esquerda armada,
clear com a Alemanha. Dizem que fez tudo isso teve tempo de crescer em silêncio e
inspirado pelo grão-estrategista do regime, transformar-se no que é hoje.
general Golbery do Couto e Silva. Não sei. O O que quero dizer é simples-
que sei é que, das duas uma: ou ambos eram, mente que não há comparação
em segredo, cúmplices da esquerda, ou possível entre os males da di-
eram totalmente cegos para os resultados tadura nacional e o caos ignó-
previsíveis de suas ações. Qualquer que bil e sangrento que a esquerda
fosse o caso, quem examinasse objetiva- prometia ao País. Prometia e,
mente a política de Geisel naque- decorridas quatro décadas,
la época, com um pouco está realizando. Cinquenta
de compreensão do mil homicídios por ano, a cor-
processo histórico, po- rupção endêmica e incontro-
deria prever que seu lável, a juventude intoxicada
desenlace a médio ou e imbecilizada pelas drogas
longo prazo seria pre- enquanto o governo afaga a
cisamente o que foi: os c a b e ç a d a s F a rc , o E s t a d o
comunistas no poder, a transformado em apêndice do
obra do movimento de PT e agência de empregos pa-
1964 destruída, as ra militantes, a
Forças Armadas educação nacional
sucateadas e hu- reduzida à prega-
milhadas, o ção comunista
triunfo geral da m a i s e s t u p e f a-
desordem e do cri- ciente, a Amazô-
me em estreita par- nia desnacionali-
ceria com a revolu- zada desde dentro
ção continental. pela subversão
Pelo pecado de ter descarada das
compreendido a " n a ç õ e s i n d í g e-
realidade, o gene- nas" e de fora pelo
Arquivo/AE

38 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


intervencionismo galopante das ONGs dendo a umas a dignidade intocá-
e da ONU – é preciso ser muito sonso vel do sagrado e atirando distraí-
para imaginar que tudo isso é mero damente as outras ao lixo como de-
acúmulo casual de incompetências e tritos ocasionais do processo histó-
não a realização metódica de uma gi- rico (isso quando não lança sobre
gantesca engenharia da destruição. elas mesmas a culpa do acontecido,
Também não há comparação pos- por sua obstinação pecaminosa de re-
sível, na esfera moral, entre os ofi- jeitar a oferta do paraíso comunista), e
ciais militares brasileiros – a última depois ainda queira posar de bem in-
categoria de pessoas nas quais o po- tencionada, generosa e carregadinha
vo ainda deposita alguma confian- de virtudes evangélicas.
ça – e os comunistas que hoje se fa- O comunismo, como o nazismo ou
zem de seus juízes, preparando- qualquer outra ideologia revolucionária,
se velozmente para tornar-se é uma hedionda tara moral, e nenhum in-
seus carrascos. divíduo que tenha sua mente deformada
Basta examinar um só aspecto por ela, no grau mais modesto que seja, de-
da psicologia comparada, entre ve ser considerado um interlocutor confiá-
os dois grupos, para notar a di- vel nem mesmo em puros debates de idéias,
ferença medonha. quanto mais na politica prática, com todas as
Ninguém, nas nossas Forças consequências que desencadeia sobre a vida
Armadas, enaltece os excessos e das multidões.
brutalidades cometidos em no- Nenhum conservador, por mais que odeie o
me do movimento de 1964. Seja comunismo, aceitará jamais a proposta de erra-
entre os remanescentes da época, seja entre os ofi- dicá-lo do mundo mediante a liquidação de cem
ciais mais jovens, todos entendem que uma coisa milhões de comunistas. Ser conservador é preci-
é combater guerrilheiros em campo aberto, outra Ninguém nas samente recusar, com todas as forças, a idéia in-
completamente diversa é torturar, estrangular nossas Forças sana de que alguém tenha o direito à prática da
ou matar à míngua prisioneiros desarmados. Armadas enaltece violência generalizada em nome da promessa de
Mas quem, na esquerda, admite que esses os excessos um futuro vago e hipotético, a ser cumprida em
crimes não são piores do que matar inocentes e brutalidades data incerta e por um preço incalculável. Para os
com atentados a bomba, sequestrar e matar re- cometidos comunistas, ao contrário, essa ideia não só é na-
presentantes de outros países, assaltar bancos em nome do tural como obrigatória, pois é ela que os transfor-
e, last not least, esmigalhar a coronhadas a ca- movimento ma naquilo que Che Guevara chamava de "o es-
beça de um prisioneiro amarrado? de 1964. calão mais alto da espécie humana". A expressão
Quem, na esquerda, admite que, se estes de- está aliás reproduzida na breve coletânea de fra-
litos foram anistiados, aqueles também o fo- ses memoráveis do ex-ministro cubano da Eco-
ram de uma vez para sempre? Quem, na es- nomia, que o dr. Emir Sader reuniu e fez preceder
querda, entende que não há crimes bons e cri- de considerações apologéticas tão enfáticas que
mes ruins, que tudo o que é feito contra a lei e raiam a hagiografia pura e simples. Leiam e ve-
contra a moral é mau em proporções iguais? rão: é difícil saber quem é mais psicótico, o culto
Não, não há nada que os apóstolos da igual- do Che ou o próprio Che. Aquela mistura de ódio
dade abominem mais do que a igualdade de sanguinário, autoadmiração desmedida e senti-
valor entre as vidas humanas. As deles valem o mentalismo kitsch é por si um mostruário de psi-
infinito. As dos outros, nada. copatologia, e o fato de que nem o antologista
Eles cobram tão caro os seus trezentos mi- nem seus leitores percebam o grotesto da coisa é
litantes mortos pela ditadura brasileira, e ao mais sintomático ainda.
mesmo tempo barateiam de tal modo os cem Exemplo: "Nosso sacrifício é consciente. É a
milhões de vítimas civis do comunismo inter- cota que temos de pagar pela liberdade que
nacional, que nenhum observador em seu juí- construímos." O sujeitinho mata milhares de
zo perfeito, vendo tão patente e brutal despro- civis desarmados, e diz que quem faz o sacri-
porção, pode deixar de saber que está diante fício é ele.
de sociopatas perigosos, desprovidos dos Quem pode esperar resolver suas divergên-
mais elementares sentimentos humanos de cias com um celerado desses mediante a con-
equidade e justiça. vivência democrática, tapinhas nas costas e ar-
Não é admissível que uma pessoa adulta, Diário do Comércio, gumentos racionais? Sylvio Frota tinha razão:
supostamente razoável, pese vidas humanas 15 de outubro de 2007 a "abertura" do general Geisel abriu mesmo foi
numa balança tão obviamente viciada, conce- as portas do inferno.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 39


LIBERALISMO E CONSERVADORISMO

O patinho feio
da política nacional
U m artigo que publiquei no Rio de Janeiro, mas que o
leitor do Diário do Comércio pode encontrar em
h t t p : / / w w w. o l a v o d e c a r v a l h o . o rg / s e m a-
na/070308jb.html, acabou suscitando mais polêmi-
cas do que eu esperava. Nele eu esboçava as preliminares de
uma crítica ao hábito da direita brasileira de denominar-se "li-
beral" em vez de "conservadora", hábito que resulta numa de-
seu significado e transformando-a num pretexto jurídico-for-
mal para banir da vida pública toda expressão da fé, instituin-
do a perseguição antirreligiosa generalizada que, a esta altura,
já se traduz numa profusão de leis repressivas.
O que no Brasil incitou a direita a autodenominar-se "liberal"
foi o fato de que o debate político nacional se limita quase que
por inteiro a uma questão econômica, a disputa entre interven-
sastrada inversão das suas intenções e propósitos, já que o libe- cionismo estatal e livre mercado. Nesse quadro, a simples opção
ralismo é uma etapa do movimento revolucionário mundial e pelo "liberalismo clássico" em economia acabou servindo para
não se pode frear um movimento fazendo-o dar, como dizia Lê- definir toda uma corrente política como "liberal" (ou, segundo
nin, um passo atrás para dar dois para a frente. seus adversários, "neoliberal", um termo que já
A terminologia política americana é muito comentei aqui; v. http://www.olavodecarva-
mais sã e realista do que a brasileira. Direita e es- lho.org/semana/050725dc.htm). Os inconve-
querda, nos EUA, são chamadas respectiva- nientes disto são múltiplos.
mente "conservatism" e "liberalism", mostran- Desde logo, o fato de uma corrente política
do que o pivô da luta política é a escolha entre aceitar definir-se exclusivamente pela sua op-
conservar os valores e princípios dos Founding ção econômica serve para legitimar um debate
Fathers, ou, ao contrário, liberar-se deles. O fato Como no Brasil político atrofiado, expressão cultural de uma
de que esses valores e princípios absorvam em não há outras sociedade doente obcecada por dinheiro – ou
si o legado do liberalismo econômico clássico antes, como dizia o Millôr Fernandes, pela falta
correntes direitistas
(de Adam Smith a Ludwig von Mises) poderia de dinheiro.
gerar algum equívoco, mas nunca vi um ame- além da "liberal", Em segundo lugar, o liberalismo político é
ricano com mais de oito anos de idade confun- a ela acorrem desde suas raízes um movimento revolucionário
dir "classic liberalism", que é uma teoria econô- em busca de abrigo e antirreligioso. A origem do termo é espanhola,
mica, com o liberalismo político de Ted Kenne- os conservadores opondo "liberales" a "serviles", abrangendo im-
dy, Nancy Pelosi e George Soros, que tende a plicitamente neste último termo a totalidade dos
católicos,
uma economia estatizante e socialista. É que a fiéis católicos. Foi o liberalismo que, na França,
divergência em economia é somente um ele- protestantes e instituiu a "constituição civil do clero", virtual-
mento de detalhe numa disputa que se desen- judeus. mente banindo a Igreja do território nacional. Na
rola em torno de diferenças muito mais abran- linguagem das encíclicas papais, "liberalismo" é
gentes e profundas. Em última instância, o que a denominação das correntes heréticas, que di-
está em jogo é saber se os princípios da Constituição continuarão luíram o dogma tradicional, preparando o advento da apostasia
valendo em sentido material, substantivo, com todas as suas im- geral e da "teologia da libertação". Entre os protestantes, "libera-
plicações culturais e morais para o guiamento da vida america- lismo religioso" é o nome da traição organizada. "O liberalismo –
na, ou se, ao contrário, serão interpretados num sentido mera- como resumiu um pregador evangélico americano – substituiu-
mente jurídico-formal, que permita usá-los em favor de valores se à perseguição. A perseguição matava homens, mas fazia pros-
opostos aos que inspiraram a redação do documento. perar a causa; o liberalismo mata a causa bajulando os homens
A diferença é exemplificada pelo debate atual em torno do para induzi-los a compromissos. A verdade perseguida sobrevi-
famoso "muro de separação" que Thomas Jeffenson pretendia veu em todas as eras, mas a verdade comprometida nunca sobre-
erguer entre o Estado e as religiões. A ideia original era impedir vive à tragédia fatal em que a voz de Deus é igualada à voz das
que o Estado se tornasse instrumento de perseguição religiosa. tradições humanas" (Judson Taylor, em http://gos-
Os "liberals" apegam-se hoje à fórmula, mas esvaziando-a do pelweb.net/OldTimersWorks/judsontaylor.htm).

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Corbis

Como no Brasil não há outras correntes direitistas além da "li- migos da liberação das drogas e da eutanásia, fiéis religiosos ao
beral", a ela acorrem em busca de abrigo os conservadores cató- lado de discípulos de Voltaire e Richard Dawkins empenhados
licos, protestantes e judeus. Mas aí, em nome da liberdade de mer- em banir a religião da vida pública. Durante algum tempo, essas
cado, são obrigados a camuflar as divergências que têm com os divergências podem parecer desprezíveis em face da luta mais
demais liberais em pontos muito mais decisivos de ordem moral imediata contra a economia estatista. Mas isso é uma ilusão mor-
e cultural. O "liberalismo" brasileiro, unificado exclusivamente tal. Há tempos a esquerda internacional e local já decidiu que a
por um programa econômico, é um saco de gatos no qual têm de estatização da economia pode ser adiada indefinidamente, se não
conviver em harmonia abortistas e antiabortistas, adeptos e ini- sacrificada de vez em favor da fórmula mista chinesa – e que mui-

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 41


to antes dela vem o combate no campo cultural, a luta contra a Quem sabe que os sistemas de ideias têm uma estrutura pró-
civilização judaico-cristã. Nessa luta, bandeiras como a liberação pria, independente e diversa das intenções subjetivas de seus
das drogas, a proibição da "homofobia" ou a legalização da eu- seguidores, entende claramente que a distinção entre liberalis-
tanásia são prioritárias. Como se pode combater o esquerdismo mo e conservadorismo é exatamente aquela que expus. Se al-
concentrando o ataque num objetivo hipotético de longo prazo e guém não o entende é porque, levado por hábito pessoal ou
cedendo ao inimigo todo o campo de batalha real e imediato onde grupal, anexa ao liberalismo valores externos, – morais ou re-
ele já conquistou a hegemonia e tem quase o controle completo da ligiosos – que não são logicamente integráveis na sua estrutu-
situação? Essa é exatamente a "fórmula estratégica" do liberalis- ra. Muitos dos que caem nesse erro são apenas conservadores
mo brasileiro, que no seu enfrentamento com os esquerdistas tem que se afeiçoaram, por motivos de pura oportunidade local, ao
de se limitar à argumentação econômica para não pôr à mostra rótulo de liberais.
suas profundas e insanáveis divergências internas, enquanto o Quando o liberal enfezado exclama: "Nós temos princípios,
discurso da esquerda está livre para abranger todos os temas e não somos aqueles amoralistas que você descreveu", ele mos-
todas as dimensões da vida social, seguro de poder contar, em tra, desde logo, sua incapacidade de distinguir entre o arranjo
muitas áreas, com o apoio de uma parcela dos "liberais". terminológico local e a ideologia liberal em si. Mostra ainda
Foi para limpar o terreno e possibilitar uma discussão séria sua confusão entre "princípios" e meras regras operacionais.
desse problema que escrevi o artigo "Por que não sou liberal". Um princípio é assim chamado porque vem, ora bolas, no
O artigo exibia as palavras "liberal" e "con- princípio! Não na continuação de alguma
servador" entre enfáticas aspas, para indicar coisa. É um preceito fundante e não fundado,
que significavam "tipos ideais", não assimilá- condicionante e não condicionado. Justa-
veis a qualquer grupo político concretamente mente porque não depende de mais nada,
existente nos arredores. Não obstante, muita porque vale por si mesmo, é que um princí-
gente o leu como se fosse um ataque desferido pio tem de poder ser aplicado universalmen-
contra um desses grupos. Houve até quem vis- te, sem modificações nem atenuantes, a to-
se nele o manifesto de um alguma confraria po- Há tempos a esquerda dos os casos abrangidos no seu enunciado,
lítica mais ou menos clandestina, que por fim já decidiu que a sem que isso leve a nenhuma contradição ló-
saísse do armário esbofeteando as vizinhas pa- estatização da gica e muito menos a absurdidades reais.
ra poder mais facilmente se autodefinir por Sem essa propriedade, nenhum enunciado é
economia pode ser
oposição a elas. um princípio. "Não matarás", por exemplo, é
No Brasil de hoje, é isso o que se chama de adiada em favor da um princípio. Um indivíduo decidido a cum-
"ler". Primeiro, atribuir intenções ao autor e dis- fórmula mista chinesa – e pri-lo até às últimas consequências, absten-
cutir com elas, não com ele. Segundo, transpor o que muito antes dela do-se de tirar a vida alheia mesmo quando os
texto para o modo imperativo, interpretando-o vem o combate no outros o julgassem moralmente obrigado a
como se fosse a expressão de um desejo ou or- fazê-lo, nem por isso teria se tornado um as-
campo cultural, a luta
dem, uma tentativa de interferir na realidade e sassino. Um omisso ou um covarde, talvez;
não de compreendê-la. Já expliquei anos atrás contra a civilização não um assassino. A extensão indefinida das
que, das famosas três funções da linguagem judaico-cristã. aplicações não modifica o sentido do princí-
classificadas por Karl Bühler, os brasileiros só pio, que é princípio justamente por isso: por
sabiam de duas: a expressiva (manifestar esta- estar na extremidade inicial de uma série ili-
dos interiores) e a apelativa (influenciar as pessoas). A função mitada de consequências sobre as quais ele impera com au-
denominativa (descrever e analisar a realidade) era totalmente toridade inabalável, absoluta.
desconhecida nesta parte do mundo, e quem quer que cometes- Já as regras operacionais não instituem o seu próprio campo de
se a imprudência de falar ou escrever alguma coisa nessa clave aplicação: ele é demarcado por um número ilimitado de outras
seria automaticamente traduzido para as outras duas. regras operacionais, algumas delas tácitas ou só descobertas ex
Por trás da linguagem informal, meu artigo era um estudo es- post facto, bem como por um número também ilimitado de con-
tritamente científico de duas fórmulas ideológicas consideradas veniências de ordem prática que podem intervir em cada caso.
na sua pura lógica interna, independentemente de acréscimos e Toda regra operacional é por isso intrinsecamente deficiente e não
modificações que pudessem sofrer de fatores sociológicos ou psi- pode ser aplicada senão com muitos atenuantes e modificações.
cológicos intervenientes. Para tirar dele consequências políticas Um princípio vale por si, independentemente da varieda-
aplicáveis à situação concreta seria preciso antes compreendê-lo de das situações. As regras operacionais, ao contrário, sem-
no próprio nível teórico em que se colocava. Saltando essa etapa, pre se dispõem em sistemas e hierarquias compostos essen-
alguns preferiram aplicá-lo diretamente a si próprios e achar que cialmente de limitações mútuas (culminando, idealmente,
eu estava falando mal deles, ficando naturalmente indignados num princípio que as limita a todas sem ser limitado por
com a injustiça que eu lhes fazia (é a terceira regra de leitura vi- elas). Uma regra operacional que, desconhecendo seus limi-
gente neste País: substituir a compreensão inteligente por alguma tes internos e externos, busque estender indefinidamente
afetação de sentimentos morais elevados; a quarta é interpretar seu campo de aplicação, acabará se chocando não só contra
tudo como mensagem cifrada de um grupo e não como esforço outras regras e contra as conveniências externas, mas contra
cognitivo de um cérebro individual). si própria. "Agir no interesse próprio", por exemplo, é uma

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regra operacional. Ela funciona em certas circunstâncias da O liberalismo é assim em razão da profunda influência
vida, mas, se passar de um certo limite, jogando os interesses que recebeu de Kant. Todo o esforço do filósofo de Koenigs-
do indivíduo contra os de todos os demais, ele se tornará pre- berg foi para esvaziar a moral (e sua filha primogênita, a fi-
sa de uma situação de isolamento ou de hostilidade que não é losofia política) de todo conteúdo substantivo, reduzindo-a
do seu interesse de maneira alguma. A regra, para funcionar, a um punhado de exigências formais, como por exemplo,
tem de ser freada por um sem-número de outras considera- "age de maneira que a regra que inspira tua ação possa ser
ções. Na verdade ela já vem com freio, porque os interesses de adotada em todos os casos idênticos". Kant não nos diz que
uma criatura limitada são eles próprios necessariamente li- regra deve ser essa, e não o diz justamente porque a moral,
mitados, no mínimo pela duração limitada da sua vida. Uma para ele, não pode ter nenhum fundamento objetivo. Ela re-
regra operacional erigida indevidamente em princípio leva pousa inteiramente na "fé", compreendida como crença sub-
necessariamente à sua própria negação. jetiva, e nos "imperativos categóricos", isto é, em exigên-
Ora, quais são os "princípios" do liberalismo? cias que ninguém pode justificar, mas que todos
Quais são os critérios máximos e comuns a que os se sentiriam aviltados se não as cumprissem.
liberais, ao tentar dirimir suas divergências inter- Para Kant, só existe conhecimento substantivo
nas, apelam como a princípios supremos incum- dos "fenômenos", aparências naturais estu-
bidos de fundamentar julgamentos unânimes e dadas pela ciência física. Tudo o mais são for-
restaurar a unidade do conjunto? mas lógicas, "imperativos categóricos" ou
São dois: a liberdade e a propriedade privada. matéria de crença pessoal. Como nenhu-
Mas esses não são princípios de maneira algu- ma dessas três coisas é um princípio, no
ma. São regras operacionais. Quando um libe- sentido substantivo do termo, isso equi-
ral diz que "a liberdade de um termina on- vale a dizer que a moral kantiana e a po-
de começa a do outro", ele está reconhe- lítica liberal que nela se inspira são total-
cendo exatamente isso. E o mesmo aplica- mente desprovidas de princípios, exceto
se à propriedade: o terreno do Zé-Mané lógico-formais e operacionais.
termina onde começa o do Mané-Zé. Nem Guido de Ruggiero notou, em sua clás-
a lei da propriedade nem a da liberdade sica "História do Liberalismo Europeu",
podem ser estendidas ilimitadamente sem que o liberalismo não era uma filosofia po-
negar-se a si próprias. A liberdade absoluta lítica no sentido substantivo, mas um "mé-
equivaleria à completa ausência de cons- todo", um conjunto de preceitos e regras
trangimentos externos, isto é, ao poder ab- que podiam ser adaptados às mais dife-
soluto e à completa extinção da liberdade. rentes situações mediante um número ili-
Do mesmo modo, a propriedade absoluta mitado de ajustes e atenuações, conforme
corresponderia à posse integral e perfeita: as exigências dos casos concretos.
seria propriedade em sentido lógico e não Qualquer afirmação de um princípio
jurídico, como a propriedade de respirar, substantivo é, na perspectiva kantiana,
que você não pode vender e portanto não uma invasão do território reservado às ciên-
é propriedade em sentido jurídico de ma- cias. O kantismo é, nesse sentido, o pai do
neira alguma. positivismo, que os liberais de hoje tanto
O "não matarás" não tem limites inter- abominam porque têm contra ele aquele ódio
nos de qualquer natureza. Ele exclui so- extremo dos irmãos inimigos. Na verdade,
mente aqueles casos que, a priori, já estão fo- odeiam nele tão somente a sua política cen-
ra do seu enunciado, como por exemplo a de- tralizante e intervencionista, mas continuam
fesa própria: defender-se não é "matar", é ten- subscrevendo a proibição kantiano-positi-
tar sair da encrenca por algum meio que, vista de levar o conhecimento humano para
independentemente da sua intenção, resulte na além dos "fenômenos" e, portanto, de co-
morte do atacante. Se quem se defende em tais circunstân- nhecer qualquer princípio moral universal no sentido que es-
cias não é assassino, muito menos o é quem se recuse a ses princípios tinham em Platão ou no cristianismo.
fazê-lo, estendendo a aplicação literal do princípio até à A própria sacralidade da vida humana não cabe de maneira
aceitação passiva do dano próprio. Já a liberdade e a pro- alguma na perspectiva liberal. Para não ser abandonada de to-
priedade têm o dom inato de liquidar-se a si mesmas quan- do, ela acaba tendo de ser justificada com base nos dois pseu-
do se erigem em princípios. do-princípios da liberdade e da propriedade. Raciocina-se,
Se o liberalismo desemboca com tanta frequência no socia- por exemplo, da seguinte maneira: o corpo e sua vida são pro-
lismo – como Verkhovenski pai gera Verkhovenski filho em Os priedades privadas do seu portador, o qual tem a liberdade ex-
Demônios de Dostoiévski –, é precisamente porque se consti- clusiva de decidir o que fazer com eles; logo, matá-lo contra a
tui de regras operacionais que não têm, por definição, a abran- vontade dele é violar sua propriedade e sua liberdade. Tendo
gência necessária de princípios capazes de dar conta de suas proclamado isso, o liberal acredita ser um sujeito boníssimo,
próprias consequências. porque defende a integridade da vida humana sem ser com-

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 43


pelido a isto por nenhuma obrigação religiosa ou princípio molde e princípio para a conduta humana em todas as áreas da
universal, mas somente pelo livre exercício da sua razão indi- vida. Não é sem razão que alguns deles se gabam de ser mais
vidual. Mas não há nisso racionalidade nenhuma, há apenas revolucionários que os socialistas.
uma confusão dos diabos. Desde logo, produzir um argumen- A economia de mercado, como o liberalismo em si, é um es-
to em favor de alguma coisa não é o mesmo que fundamentá- quema formal, um sistema de regras operacionais que pode ser
la. A liberdade e a propriedade podem ser alegadas em favor posto a serviço de princípios e valores ou, usurpando o lugar
da proibição de matar, mas não a fundamentam de maneira al- deles, corroê-los e dissolvê-los. Hoje em dia, no Brasil, cha-
guma, porque não são princípios. É impossível, por exemplo, mam-se igualmente "liberais" os adeptos de ambas essas coi-
decidir só com base nessas regras se o aborto deve ser permi- sas. Mas é uma unidade meramente verbal encobrindo diver-
tido ou não: a aplicação dos "princípios" a esse caso só leva a gências ainda mais profundas e insanáveis do que a oposição
perplexidades insolúveis, como por exemplo, a de saber se o de economia de mercado e economia dirigida.
feto é propriedade da mãe ou é dono de sua própria vida, dis- A ideia de unificar sob a bandeira de uma simples predileção
cussão imbecil e postiça que já mostra a deficiência intrínseca econômica pessoas e correntes separadas por concepções morais
do conceito de propriedade, quanto mais a inviabilidade de es- e civilizacionais opostas e incompatíveis entre si é tão desastra-
tender sua aplicação ao ponto de fazer dele o fundamento de da, que a autodissolução do "liberalismo" nacional já começou. O
alguma coisa mais básica como o direito à vida. Para qualquer Instituto Liberal de Porto Alegre mudou seu nome para Instituto
pessoa não intoxicada do preconceito kantiano, o direito à vida Liberdade, e o Partido da Frente Liberal para Partido Democrata.
é que é fundamento da liberdade e da propriedade. Reconhe- É a carapaça verbal que se rompe, deixando à mostra a confusão
cem-no implicitamente todos os códigos penais do mundo (ex- interna. O "liberalismo" brasileiro nunca passou de um arranjo
ceto o velho código penal soviético) ao prescrever penas mais oportunista, incapaz de impor respeito a seus adversários ou até
graves para o homicídio do que para a mera subtração da pro- a si próprio. A maior parte dos liberais que conheço não são li-
priedade ou da liberdade. Fundamentar o direito à vida com berais. São conservadores com nome trocado. Confundem o li-
base na liberdade e na propriedade é torná-lo tão ambíguo beralismo econômico clássico, que é parte integrante da tradição
quanto elas. E aí a única solução possível é transformar o "Não conservadora, com a ideologia liberal que é uma camada histó-
matarás" num "imperativo categórico", isto é, em algo que é as- rica do movimento revolucionário. Como acreditam no primei-
sim só porque o fulano sente que deve ser assim. ro, ostentam na lapela o emblema da segunda. Imaginam que as-
Um liberal pode ter princípios, sim, e a maioria dos que co- sim parecem mais "progressistas", podendo usurpar o prestígio
nheço os têm, mas os têm enquanto indivíduos concretos e não da esquerda e chamá-la de "atrasada". Mas essa aparente astúcia
enquanto "liberais". A incongruência da situação reside em retórica, além de obrigá-los a reprimir seu conservadorismo e a
que o método liberal, posto a serviço de princípios e valores restringir a luta ao terreno econômico, tem um segundo preço
substantivos tradicionais, constitui precisamente aquilo que maior ainda: fazendo da sucessão temporal um critério de su-
nos EUA se chama "conservatism". Nesse sentido, nem Frie- perioridade, eles acabam endossando uma metafísica predesti-
drich Hayek nem Ludwig von Mises jamais foram liberais: e nacionista da História que é a essência mesma da ideologia re-
nos EUA não há quem não os considere anjos tutelares do mo- volucionária (v. meu artigo de 26 de fevereiro, http://www.ola-
vimento conservador. Porém o mesmo método, separado da vodecarvalho.org/semana/070226dc.htm), e com isso ajudam
moldura tradicional e erigido ele mesmo em princípio, se torna a precipitar as transformações culturais que produzem inevita-
uma arma terrível nas mãos do movimento revolucionário, velmente a ascensão da esquerda. É por nunca ter examinado se-
que através dele põe a serviço riamente essas contradições que o liberalismo brasileiro, ao lon-
da mutação cultural gramscia- go dos últimos vinte anos, veio caminhando de derrota em der-
na milhões de idiotas úteis libe- rota, de humilhação em humilhação.
rais dispostos a ceder em tudo Quanto tempo falta para que aqueles "liberais" que acredi-
o que não lhes pareça limitar tam em princípios substantivos – religiosos ou não – descu-
diretamente a liberdade e a bram que nunca foram liberais e sim conservadores? Com isso,
propriedade (ou, pior ainda, decerto, perderão muitos falsos amigos. Mas, afinal, o patinho
em tudo que pareça fomentá- feio também teve de abdicar de falsas afinidades para desco-
las mersmo à custa de dessen- brir que era algo de melhor que um pato.
sibilizar moralmente a popula- Tenho a certeza de que qualquer candidato a qualquer cargo
ção). Muitos desses, na verda- que seja, se tiver a coragem de se apresentar em público com um
de, não são propriamente idio- programa ostensivamente conservador, sem o breque mental
tas: são liberais no sentido es- constitutivo que trava os movimentos dos liberais, alcançará um
trito e espanhol do termo, sucesso eleitoral estrondoso. O conservadorismo é um sistema de
empenhados em destruir a ci- valores, e esses valores são os do povo brasileiro, os da gente hu-
vilização judaico-cristã e em milde e sem instrução que não entende nada de economia mas
implantar universalmente o entende imediatamente a linguagem da moral, da religião, das
Diário do Comércio, império do niilismo por meio tradições. São dezenas de milhões de pessoas à espera de alguém
19 de março de 2007 da radicalização da economia que as represente na política. Só o conservadorismo pode atendê-
de mercado transfigurada em las, mas antes tem de consentir em deixar de ser pato.

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Fugindo
à luta

C om raras, honrosas e inevitáveis


exceções, a única reação que os li-
berais e conservadores neste País
têm oferecido à ascensão irrefreá-
vel da esquerda consiste em apologias da eco-
nomia de mercado, eruditamente explicada co-
mo superior à política estatista ou socialista. Por
dito por Friedrich von Hayek e Ludwig von Mi-
ses. Repetir os argumentos desses dois grandes
economistas em 2008 é combater um inimigo
que não existe mais, fechando os olhos para o
avanço daquele que existe. Quando um liberal
chama os comunistas de "dinossauros", ou pro-
clama, como a última edição de "Veja", que eles
Zilb
santas que sejam as suas intenções, e por mais ainda vivem no tempo dos tílburis, ele está pro- erm
an
acertados os argumentos que emprega, essa for- jetando sobre eles o anacronismo da sua própria
ma de luta é absolutamente inócua. Os esquer- visão do comunismo.
distas riem dela. Riem mais ainda quando ela Karl Marx ensinava que a estatização da eco-
usa como embalagem uma retórica "progressis- nomia deveria ser um processo lento e gradual,
ta", calcada no slogan idiota de que o socialismo prolongando-se por décadas ou séculos e rea-
é coisa do passado. Coisa do passado é imaginar lizando-se por etapas anestésicas e não trau-
que a estatização da economia constitui o obje- máticas, como o imposto de renda escalar e a
tivo primordial do esquerdismo e que combatê- supressão progressiva do direito de herança
la é a coisa mais urgente a fazer em defesa da de- por meio da taxação crescente. Acreditando
mocracia capitalista. Essa concepção do socia- que o socialismo surgiria de dentro do próprio
lismo correspondia à realidade dos anos 30 e 40, capitalismo tão logo este fosse levado às suas
quando nações inteiras foram repentinamente últimas possibilidades de desenvolvimento,
submetidas ao sistema de economia centraliza- ele entendia, logicamente, que a supressão for-
da, não somente por iniciativa dos comunistas çada e repentina do livre mercado traria a pa-
mas também dos fascistas e nazistas. Tudo o que ralisação geral da economia e a extinção do
era preciso dizer contra essa tendência foi então próprio socialismo.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 45


Essa lição foi esquecida tanto na URSS quan- mundo, a América Latina, hoje dominada por
to na China, daí resultando que, mesmo antes partidos frontalmente anti-americanos e em
do fracasso desses dois regimes, muitas críticas vias de transformar-se numa gigantesca ver-
à economia de um e de outro já circulavam den- são cucaracha da velha URSS.
tro do próprio campo socialista, não raro asso- Na mesma onda de mudanças estratégicas,
ciadas à condenação dos aspectos mais brutais o movimento comunista abdicou do estatismo
do totalitarismo, que, segundo esses críticos, radical, reconhecendo que uma quota aliás
uma política ortodoxamente marxista teria po- bem grande de livre mercado é indispensável à
dido evitar (ilusão, é claro: Marx nunca ocultou sobrevivência dos regimes socialistas, mesmo
que mesmo sua ideia da socialização progressi- os mais autoritários.
va só poderia ser implantada mediante a liqui- A essa altura, a pura defesa da economia de
dação sistemática "de povos inteiros"). mercado, sobretudo se acompanhada de des-
A autodissolução da URSS e a abertura da prezo economicista pela guerra cultural e pela
China ao capital estrangeiro, longe de consti- formação de uma militância conservadora
tuirem uma vitória pura e simples das demo- adestrada no estudo da estratégia marxista, é
cracias capitalistas, resultaram de um upgra- um anacronismo completo, uma forma de alie-
Diário do Comércio,
de autocrítico do movimento comunista, que, nação que só pode levar às mais devastadoras
21 de agosto de 2008
na boa tradição de Lênin, deu mais uma vez consequências.
"um passo para trás para dar dois para a fren- Na verdade, se tantos políticos e intelectuais
te", só que agora um passo gigantesco, de di- liberais se apegam a essa atitude autocastrado-
mensões mundiais. ra, é não só porque sua mentalidade empresa-
Longe de se desmantelar como previam os rial se sente mais à vontade no front econômico
triunfalistas liberais, o movimento comunista do que no político ou cultural, mas porque sa-
se reorganizou rapidamente, trocando a velha bem instintivamente que a luta aí desenvolvi-
hierarquia de tipo militar por uma estrutura da suscita respostas menos ferozes da esquer-
flexível na forma de "redes" e em poucos anos da do que ataques desferidos em pontos mais
redobrou sua força, dominando praticamente vitais do esquerdismo. Não por coincidência,
toda a grande mídia ocidental e fazendo dela essa opção pela fuga sistemática ao combate –
um instrumento dócil da guerra cultural e do que Lênin diagnosticava como sinal de morte
antiamericanismo militante. Vendo-se acossa- iminente - vem junto com um esforço de man-
do por um inimigo que ele próprio declarava ter, nos debates com a esquerda, uma polidez
morto, o governo de Washington respondeu medrosa, ilusoriamente sedutora, que os es-
com um subterfúgio verbal tão estúpido quan- querdistas, por seu lado, desprezam em troca
to ineficaz, declarando que o único inimigo era de uma retórica cada vez mais truculenta e
agora o "radicalismo islâmico" e recusando-se ameaçadora. Em vão o Hino Nacional procla-
a enxergar a ação russa e chinesa por trás da ma: "Verás que um filho teu não foge à luta."
agitação frenética das multidões de fanáticos Tornou-se praticamente impossível mostrar
muçulmanos. O resultado foi que os EUA per- aos liberais brasileiros que a covardia não é
deram sua mais próxima área de influência no uma modalidade superior de realismo.

46 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


Como debater
com esquerdistas
O s liberais e conservadores deste
País nunca hão de tirar o pé da
lama enquanto continuarem
acreditando que nada mais os
separa dos esquerdistas senão uma divergên-
cia de ideias, apta a ser objeto de polidas dis-
cussões entre pessoas igualmente honestas,
O revolucionário
sente-se membro
é o destino não só dos desertores, mas de meros
civis que tentem abandonar o território. Você
acha que denunciando essa monstruosa contra-
dição acertou um golpe mortal nas convicções
do revolucionário. Mas, por dentro, ele sabe que
a contradição, quanto menos explicada e mais
escandalosa, mais serve para habituar o público
de uma
igualmente respeitáveis. A diferença específi- à crença implícita de que os revolucionários não
ca do movimento revolucionário mundial é supra-humanidade podem ser julgados pela moral comum. A der-
que ele infunde em seus adeptos, servidores e ungida, portadora rota no campo dos argumentos lógicos é uma vi-
mesmo simpatizantes uma substância moral e de direitos especiais tória psicológica incomparavelmente mais va-
psicológica radicalmente diversa daquela que negados ao liosa. Serve para colocar a causa revolucionária
circula nos corações e mentes da humanidade acima do alcance da lógica.
homem comum
normal. O revolucionário sente-se membro de Você não pode derrotar o revolucionário
uma supra-humanidade ungida, portadora de e até mesmo mediante simples "argumentos". A eles é pre-
direitos especiais negados ao homem comum e inacessíveis à sua ciso acrescentar o desmascaramento psicoló-
até mesmo inacessíveis à sua imaginação. imaginação. gico integral de uma tática que não visa a ven-
Quando você discute com um esquerdista, ele cer debates, mas a usar como um instrumento
se apoia amplamente nesses direitos, que você de poder até mesmo a própria inferioridade de
ignora por completo. A regra comum do deba- argumentos. Em cada situação de debate é pre-
te, que você segue à risca esperando que ele faça o mesmo, é ciso transcender a esfera do confronto lógico e pôr à mostra o
para ele apenas uma cláusula parcial num código mais vasto e esquema de ação em que o revolucionário insere a troca de ar-
complexo, que confere a ele meios de ação incomparavelmente gumentos e qual o proveito psicológico e político que pretende
mais flexíveis que os do adversário. Para você, uma prova de tirar dela para muito além do seu resultado aparente.
incoerência é um golpe mortal desferido a um argumento. Pa- Mas isso quer dizer que o único debate eficiente com esquer-
ra ele, a incoerência pode ser um instrumento precioso para in- distas é aquele que não consen-
duzir o adversário à perplexidade e subjugá-lo psicologica- te em ficar preso nas regras for-
mente. Para você, a contradição entre atos e palavras é uma mais num confronto de argu-
prova de desonestidade. Para ele, é uma questão de método. A mentos, mas se aprofunda
própria visão do confronto polêmico como uma disputa de num desmascaramento psico-
ideias é algo que só vale para você. Para o revolucionário, as lógico completo e impiedoso.
ideias são partes integrantes do processo dialético da luta pelo Provar que um esquerdista es-
poder; elas nada valem por si; podem ser trocadas como meias tá errado não significa nada.
ou cuecas. Todo revolucionário está disposto a defender "x" ou Você tem é de mostrar como ele
o contrário de "x" conforme as conveniências táticas do mo- é mau, perverso, falso, delibe-
mento. Se você o vence na disputa de "ideias", ele tratará de in- rado e maquiavélico por trás de
tegrar a ideia vencedora num jogo estratégico que a faça fun- suas aparências de debatedor
cionar, na prática, em sentido contrário ao do seu enunciado sincero, polido e civilizado. Fa-
verbal. Você ganha, mas não leva. A disputa com o revolucio- ça isso e você fará essa gente
nário é sempre regida por dois códigos simultâneos, dos quais chorar de desespero, porque
você só conhece um. Quando você menos espera, ele apela ao no fundo ela se conhece e sabe
código secreto e lhe dá uma rasteira. que não presta. Não lhe dê o
Você pode se escandalizar de que um desertor das tropas na- consolo de uma camuflagem Diário do Comércio,
cionais seja promovido a general post mortem enquanto no re- civilizada tecida com a pele do 20 de junho de 2007
gime que ele desejava implantar no país o fuzilamento sumário adversário ingênuo.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 47


POLÍTICA INTERNACIONAL

Win McNamee/AFP

Pato
sentado
V ocês conhecem a expressão americana Sitting Duck? É o
pato sentado, o alvo mais fácil até mesmo para o atira-
dor inepto. As escolas da Virginia estão repletas de pa-
tos sentados, porque uma lei demagógica, maliciosa e, a
rigor, criminosa, proíbe o porte de arma aos professores e funcio-
nários em serviço nessas entidades e até aos pais de alunos que
por ali transitem.
Qualquer maluco que deseje ini- Vicent Kline/AFP

ciar uma carnificina sabe qual é o lu- cação caiu formidavelmente, mas a delin-
gar mais seguro onde montar o espe- quência infanto-juvenil cresceu na
táculo. Se apontasse uma arma para mesma proporção.
um caixa do WalMart, para um gar- Leiam, a respeito, The Deliberate
çom de restaurante ou para um ven- Dumbing Down of America, de Charlotte
dedor de cachorro quente numa pra- Thomson Iserbit (Ravenna, Ohio, Cons-
ça de Richmond, levaria chumbo de cience Press , 2001).
dez fregueses ao mesmo tempo. As provas que a autora aí apresenta são
Mas para que o sujeito há de correr tantas, que a conclusão se segue inevitavel-
esse risco, se logo na esquina há uma mente: crimes como os do jovem sul-corea-
multidão de trouxas desarmados, en- no Cho Seung-Hui são o produto acabado
tregues à sanha dos assassinos por legisladores iluminados? O de um longo e meticuloso esforço de engenharia social.
massacre de anteontem foi na Virginia Tech, mas podia ter sido Muita gente por aqui reclama que os burocratas esquerdis-
em qualquer outra instituição de ensino do "Old Dominion". tas que dominam o sistema oficial de ensino estão empenha-
Mais ou menos um ano atrás, a Assembleia Geral da Virginia dos numa guerra cultural contra os EUA, destruindo a educa-
vetou uma emenda legal que, voltando atrás no desarmamen- ção e a moral para em seguida atribuir os resultados medonhos
tismo insano, devolvia aos professores, funcionários e alunos de suas próprias ações à "lógica do sistema".
devidamente qualificados o seu antigo direito de portar armas Na mídia de todos os países
no local de trabalho e estudo. do mundo há sempre uma mul-
Na ocasião, o representante da Virginia Tech , Larry Hin- tidão de papagaios prontos pa-
ckler, disse em entrevista ao jornal Roanoke Times (tão fana- ra repetir esse chavão de pro-
ticamente desarmamentista quanto a Folha e o Globo) que es- paganda. Na infalível Rede
tava muito feliz com a derrota da emenda: "Tenho a certeza de Globo, incumbiu-se disso uma
que a comunidade universitária está agradecida à Assembleia, psicóloga da PUC, Sandra
porque sua decisão ajudará os pais, estudantes, professores e Dias, segundo a qual o morticí-
visitante a sentir-se seguros no nosso campus." nio foi "um ato heroico" por
O resultado aí está. voltar-se contra "o consumis-
As escolas têm sido há décadas um dos instrumentos mo americano".
principais de que se servem os agentes do globalismo para Também não faltaram na mí-
dissolver o tradicional espírito americano de altiva inde- dia brasileira as ponderações
pendência e implantar uma nova cultura em que o cidadão de sempre sobre a "cultura
se torna cada vez mais indefeso, mais boboca, mais depen- americana da violência" - as
dente da proteção estatal. quais, vindas de um país do He-
Até os anos 60, os EUA tinham as melhores escolas do mun- misfério Sul que é recordista mun-
do, e nenhum ministério da Educação. Desde a criação do mi- dial de assassinatos, equivalem Diário do Comércio,
nistério e da adoção dos "parâmetros curriculares" politica- moralmente e geograficamente a 18 de abril de 2007
mente corretos ditados pela ONU, não só a qualidade da edu- cuspir para cima.

48 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


Demonstração
de autoridade

E sta notícia passou quase


despercebida, mas é uma das mais
importantes dos últimos tempos:
segundo o Daily Mail de 2 de abril, as
autoridades britânicas, pressionadas pela
comunidade muçulmana, retiraram os livros O Walmart acaba
empresarial, o governo e a justiça boicotam o
uso do idioma nacional e impõem o de uma
língua estrangeira, a guerra cultural já
alcançou aquele ponto em que a defesa da
cultura local se torna crime, e a promoção da
cultura estrangeira uma obrigação legal.
homossexuais do currículo de duas escolas da de abrir uma loja Nos EUA, o desprezo da mídia aos
cidade de Bristol. sentimentos religiosos dos cristãos contrasta
especial para
Até hoje, nenhum protesto cristão obteve com suas manifestações de deferência quase
resultado tão espetacular, seja em escolas da muçulmanos, com psicótica ante as suscetibilidades islâmicas,
Europa ou dos EUA. Ao contrário, o ensino funcionários ao ponto de que a simples menção ao
do homossexualismo expande-se obrigados a falar sobrenome do meio do pré-candidato
formidavelmente até mesmo para crianças árabe e a receber democrata Barack Hussein Obama é
pequenas que não têm ainda sequer uma condenada como sinal de discriminação e
seus clientes com
ideia clara do que são relações heterossexuais. "hate crime".
Na mesma medida, aumenta a pressão do cumprimentos No episódio de Bristol, a proteção
establishment contra as pregações religiosas, religiosos islâmicos. governamental ao movimento gay , que
multiplicando-se por toda parte as ameaças, jamais aceitaria recuar ante a indignação das
boicotes e punições voltados exclusivamente comunidades cristãs, admitiu tranquilamente
contra as organizações cristãs (v. fazê-lo por exigência de uma minoria
http://www.silencingchristians.com/ ), numericamente insignificante, mas
jamais contra as muçulmanas. A atenção acobertada, como já destaquei aqui, pelas
especial que estas últimas recebem do simpatias cúmplices de membros da própria
governo britânico correspondem, nos EUA, Casa Real (v. a nota "Absurdo sensato" em
inúmeros e crescentes sinais de uma política Para compreender a revolução mundial).
midiática e empresarial calculada para dar à No caso, o reconhecimento oficial da
comunidade islâmica um estatuto autoridade religiosa como princípio
privilegiado. O Walmart, a maior rede de demarcador dos limites últimos entre a
supermercados da América, que em nome da decência e a indecência foi ostentivamente
"não-discriminação" chegou a trocar os votos transferido das entidades cristãs e judaicas
de "Feliz Natal" por "Boas Festas" e a proibir a para as islâmicas, que se revelaram mais
presença dos músicos do Exército da Salvação poderosas até do que as organizações
até mesmo no pátio dos seus "gayzistas" mais ruidosas e arrogantes. Após
estabelecimentos, acaba de abrir uma loja expulsar do espaço público a autoridade
especial para muçulmanos, com funcionários religiosa tradicional, a cultura do
obrigados a falar árabe e a receber seus "humanismo secularista" se mostra
clientes com cumprimentos religiosos impotente e servil ante as pretensões de uma
islâmicos. O significado da medida torna-se nova autoridade, mais prepotente, vinda de
mais que nítido quando se sabe que muitos fora. O secularismo não entrou na História
lojistas têm sido punidos pela justiça por Diário do Comércio, para fundar uma nova civilização, mas para
insistir em usar somente o inglês nos seus 10 de abril de 2008 servir de tampão provisório entre duas
estabelecimentos. Quando a classe civilizações religiosas.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 49


Obama, o enigma
Mark Hirsch/AFP

Obama não é o
candidato

M
preferido do
eleitor americano, esmo na hipótese altamente im- nal. Embora abafado até o extremo limite do
mas é o candidato provável de que Barack Hus- possível pela grande mídia e nem de longe
preferido da sein Obama venha a tirar da car- mencionado durante a Convenção que sacra-
espécie humana. tola uma certidão de nascimen- mentou entusiasticamente o candidato demo-
to autêntica e demonstrar enfim sua condição crata, o processo já está correndo (v. www.oba-
legal de cidadão americano, restará sempre o macrimes.com). Foi movido num tribunal fe-
fato líquido e certo de que uma certidão falsa deral da Filadélfia pelo advogado Philip Berg,
foi apresentada ao público, oficialmente, pela um militante clintoniano cuja única intenção,
sua campanha eleitoral (v. a análise irrespondí- segundo ele diz, foi a de poupar ao seu partido
vel de um perito forense em http://atlassh- o dano incomparavelmente maior de eleger
rugs2000.typepad.com/atlas_shrugs/2008/ um inelegível, ou mesmo um elegível que já no
07/atlas-exclusive.html). dia da posse estará carimbado oficialmente
Crime é crime, e não deixa de sê-lo pelo sim- como criminoso.
ples fato de a conduta do acusado vir eventual- A pergunta que não me sai da cabeça é: por
mente a sugerir, ex post facto, que foi um crime que os líderes do Partido Democrata estão
desnecessário e prejudicial a ele mesmo. Se aceitando, aparentemente sem grande preo-
Obama for eleito, será, segundo parece, o pri- cupação, o risco desse vexame colossal? É im-
meiro presidente americano a ser empossado possível que não saibam da certidão forjada, é
trazendo nas costas uma condenação crimi- impossível não perceberem que estão arris-

50 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


cando a sorte do seu partido no blefe mais au- americano que veio crescendo, sem desconti-
tofrustrante de todos os tempos. É impossí- nuar, desde o fracasso do "socialismo real", e
vel, sobretudo, que o próprio Obama não sai- que hoje é o único polo aglutinador do movi-
ba dessas coisas. mento revolucionário no mundo.
Uma hipótese plausível é a de que tudo seja 2) Nessa campanha, que não é só publicitária
um cálculo maquiavélico para dar a presidên- mas visa a uma "mudança" real, Obama não en-
cia não ao inexperiente Obama e sim ao tarim- tra só como um símbolo – embora nesse papel
bado Joe Biden. O Partido Democrata terá co- tenha um brilho incomum – e sim também co-
locado no cargo algo que pelo menos leva jeito mo um efetivo executor. Seu programa de go-
de presidente e não um Messias de programa verno, em todos os pontos substantivos (ex-
de auditório, com a vantagem adicional de en- cluídas portanto somente algumas concessões
trar para a História como a agremiação heroica verbais ao patriotismo americano), consiste su-
que elegeu o primeiro presidente negro dos mariamente em demolir a economia america-
EUA, infelizmente retirado do poder – oh, na por meio de impostos e legislações restriti-
mundo cruel! – por uma vasta conspiração di- vas, em substituir a cultura americana tradicio-
reitista de advogados e juízes. Obama será jo- Na Europa ocidental nal pelo lixo "multiculturalista", em transferir a
gado fora como um preservativo usado, mas e oriental, na Ásia, organismos internacionais parcelas essenciais
levando como prêmio de seus esforços a recor- da soberania americana e em colocar os EUA de
na África e na América
dação dos quinze minutos de fama e um crono- joelhos ante as "reivindicações legítimas" (pa-
grama garantido de conferências acadêmicas Latina, uma campanha lavras dele, porca miséria!) dos terroristas anti-
milionárias pelos próximos dez ou vinte anos. de endeusamento americanos. Se todos os inimigos dos EUA
A trêfega adesão dos Clintons a uma candi- como jamais se viu no apoiam esse sujeito, é por um motivo inteira-
datura que até a véspera não aceitavam de ma- mundo deu ao medíocre mente óbvio: ele é um traidor feito sob medida,
neira alguma fala em favor dessa hipótese. Bi- um agente local a serviço de poderes extrana-
senador de Illinois
den é amigo do casal há décadas, e na campanha cionais, um Quisling em toda a linha. Embora
pelas eleições primárias ele cortejou Hillary o as proporções nem todos o declarem em voz alta, praticamen-
tempo todo, na óbvia expectativa de um cargo de um salvador mítico te todo mundo nos EUA enxerga isso. A dife-
ministerial. Biden na presidência seria o retorno do universo e rença é que uns gostam, outros não. Ambos fin-
póstumo da Era Clinton em forma de resíduo não somente dos EUA. gem que não veem: estes, porque reconhecer
fantasmal, como numa sessão espírita. esses fatos abertamente seria confessar um es-
Há no entanto uma outra hipótese, mais sinis- tado de pânico, de calamidade pública, pior do
tra, que não nega a primeira, mas a complementa que mil furacões da Louisiana; aqueles, porque
espetacularmente. Para enxergá-la com clareza, é a camuflagem é a essência da traição.
preciso ter em conta os seguintes fatores: 3) É claro que, para desempenhar sua parte
1) Obama não é o candidato preferido do no plano, Obama nem precisa chegar à presi-
eleitor americano, mas é o candidato preferido dência. Que quase metade do eleitorado seja
da espécie humana. Na Europa ocidental e imbecilizada ao ponto de endeusar um candi-
oriental, na Ásia, na África e na América Lati- dato tão somente pela força de seus slogans de
na, uma campanha de endeusamento como ja- campanha, sem examinar nem mesmo seu
mais se viu no mundo deu ao medíocre sena- programa de governo e aceitando ignorar por
dor de Illinois as proporções de um salvador completo sua biografia – a mais compromete-
mítico do universo e não somente dos EUA. Es- dora que já se viu em tão alto escalão –, já é um
sa campanha não é um aglomerado de curiosas dano irreparável. Os valores da democracia
coincidências, ela tem unidade e coerência no- americana já foram corroídos pelo antiameri-
táveis, não só no estilo retórico demencial, que canismo externo e interno ao ponto de milhões
toma símbolos publicitários como realidades de eleitores desejarem conscientemente – em-
palpáveis, e não só na orientação política sub- bora não confessadamente – um traidor na pre-
jacente, uniformemente antiamericana, mas sidência. Esse mal já está feito e, sob esse aspec-
também nas fontes que a subsidiam e orien- to, a campanha de Obama, mesmo que perca as
tam, entre as quais se destacam os recursos bi- eleições, como parece mesmo que vai perder, já
lionários dos potentados árabes, das organiza- saiu vencedora. O resto do serviço, no caso im-
ções esquerdistas e terroristas, de George Soros provável de uma vitória dos democratas, Joe
e do lobby globalista em geral. Na forma como Biden poderia fazer até melhor que Obama:
no conteúdo, na identidade dos seus porta-vo- afinal, é o sujeito que quer reprimir a explora-
zes como no seu teor ideológico indisfarçável, Diário do Comércio, ção de novos poços de petróleo nos EUA de-
a campanha obamista internacional é apenas a 1º de setembro de 2008 pois de ter apoiado a cessão de belas reservas
condensação eleitoral da onda de ódio anti- petrolíferas do Alasca... à Rússia.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 51


Emmanuel Dunand/AFP

A próxima J amais se vasculhou o passado de alguém


com tanta ânsia de encontrar crimes e
vergonhas como a grande mídia tem
vasculhado a vida de John McCain e Sa-
rah Palin. Até o momento, tudo o que se encon-

crise
trou foi uma garota que transou com o namo-
rado, um policial demitido em circunstâncias
um tanto deprimentes e um assessor de cam-
panha que teria sido bem remunerado por
Fannie Mae e Freddie Mac. E, destas três mi-

americana
seráveis picuinhas, nada se provou de ilegal,
quanto à segunda e a terceira se revelou abso-
lutamente falsa: o sujeito já havia se demitido
da sua firma de advocacia quando ela come-
çou a trabalhar para os gigantes falidos. Em
compensação das atenções universais volta-
das obsessivamente para essas antinotícias,
nada ou quase nada se vê no New York Times
ou na CNN – muito menos na mídia brasileira
– sobre os fatos simplesmente escabrosos da
biografia de Barack Hussein Obama – biogra-
fia tão repleta de lances comprometedores que
simplesmente não é possível contá-la, mesmo

52 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


no estilo mais frio e comedido, sem dar a im- ódio insanável. Se escolher a segunda, terá, de
pressão de campanha difamatória. um só lance, abdicado de toda a sua história, de
Outro dia contei que há um processo contra todos os seus valores e de toda a sua dignidade
o candidato democrata, movido por um fulano no altar de um capricho de seus inimigos.
que diz ter cheirado cocaína e mantido relações Como a carreira e a projeção de Barack Oba-
homossexuais com ele, sofrendo, em seguida O eleitorado de Obama, ma são obviamente uma criação de forças an-
perseguições da campanha obamista. Fui ime- após o monstruoso tiamericanas conjugadas – coisa que pode ser
diatamente acusado de querer difamar o can- demonstrada facilmente pelas fontes do seu fi-
investimento emocional
didato como pederasta. Com toda a evidência, nanciamento –, creio que aí se pode encontrar
não sei se Obama é gay ou cocainômano, mas a que fez num candidato uma explicação bastante razoável para o de-
existência do processo é um fato, e não foi Oba- cuja biografia sinteresse aparente com que o Partido Demo-
ma quem o moveu: foi o declarante que o mo- desconhece quase por crata tem tratado essa bomba-relógio destina-
veu contra Obama. Se está mentindo, então é completo, ficará da a explodir dentro de algumas semanas. Para
completamente louco e arrisca desgraçar sua fins de destruição dos EUA, colocar Obama na
naturalmente
vida apostando tudo numa mentira fútil. presidência é um grande avanço, mas a crise
Nada desse calibre existe contra Sarah Palin enfurecido e acusará constitucional que pode se seguir à declaração
ou John McCain. Nenhum dos que falam con- a justiça americana da sua inelegibilidade retroativa é melhor ain-
tra eles pôs a cabeça em risco transformando as de "golpe". da. Não tenho a menor dúvida de que os cria-
acusações em processo judicial. E olhem que as dores do personagem Barack Obama estão
imputações do alegado companheiro de farras perfeitamente conscientes do processo e da ab-
são o que há de mais brando e insignifican- soluta impossibilidade de contorná-lo. Eles sa-
te no currículo negativo de Obama. bem que a bomba vai explodir e não são idiotas
Infinitamente mais sério é o pro- ao ponto de achar que fechando os olhos po-
cesso por falsidade ideológica que dem suprimi-la da existência.
corre contra ele num tribunal da As atitudes independentes e até insolentes
Pensilvânia. Não foi movido por tomadas nos últimos dias pelo candidato vice-
nenhum republicano fanático, presidencial Joe Biden são um sinal, discreto
mas por um conhecido militan- mas revelador, de que talvez os engenheiros do
te democrata e antibushista, o fenômeno Obama não contem tanto com usá-
advogado Phillip Berg. A peti- lo como presidente dos EUA, mas apenas co-
ção inicial do processo vem ane- mo vírus para gerar a crise e dividir a nação
xada de várias peritagens que de- americana por um conflito que, no momento,
monstram ser falsa a certidão de ela não pode suportar.
nascimento divulgada pela campa- A coisa é tão grave que a própria campanha
nha de Barack Obama para provar McCain-Palin prefere encobri-la, continuando
sua cidadania americana. O que está em a fingir que não há nada de errado com a can-
jogo não é somente a possível inelegibilida- didatura Obama. Nunca houve, na história
de do candidato, mas, independentemente dis- americana, um silêncio tão explosivo. Muito
so, a sua condenação como falsificador de docu- provavelmente McCain sabe da destruição imi-
mento público. Berg solicitou que o tribunal nente do seu adversário e não quer posar como
apressasse a intimação do réu, por um motivo diretor de cena do vexame espetacular que se
muito simples: se esta questão não for resolvida prepara. Mesmo na hipótese de que alguém in-
logo, e Obama vier a ser eleito presidente antes timide Philip Berg e o obrigue a retirar o proces-
da conclusão do processo, os EUA estarão me- so, nada impede que milhares de outros proces-
tidos, de repente, na maior crise constitucional sos similares sejam abertos até a véspera das
da sua história. O presidente legalmente eleito eleições ou – pior ainda – mesmo depois delas.
não só terá de ser declarado inempossável, mas Obrigar o país a escolher entre sua Constituição
irá direto da glória para a cadeia, culpado de ter e um ídolo pop – com o risco de uma guerra civil
ludibriado a nação inteira com o blefe político no primeiro caso e da completa desmoralização
mais boboca de todos os tempos. O eleitorado no segundo – parece mesmo uma piada demo-
de Obama, após o monstruoso investimento níaca. Se os dois partidos fazem de conta que
emocional que fez num candidato cuja biografia não sabem de nada é porque estão conscientes
desconhece quase por completo, ficará natural- do inevitável. Sua ignorância é fingida, mas a da
mente enfurecido e acusará a justiça americana mídia nacional é autêntica. Às vezes me per-
de "golpe". O país terá de escolher entre a Cons- Diário do Comércio, gunto quanto a Folha ou o Globo pagam a seus
tituição e a paixão obâmica. Se escolher a pri- 29 de setembro de 2008 chefes de redação e colunistas políticos para que
meira, estará dividido por uma fronteira de se esmerem tanto em não saber nada.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 53


Breve lição de sociologia

É mile Durkheim, o fundador da socio-


logia, ensinava que há um limite para
a quota de anormalidade que a mente
coletiva é capaz de perceber. Pode-se
compreender isso em dois sentidos, simultâ-
neos ou alternados: As próprias vítimas
do fizeram para evitá-lo, ilustra bem a desci-
da do nível de exigência moral que veio junto
com a queda do padrão de exigência para os
tomadores de empréstimos.
Porém o mais interessante não é a aplicação
do princípio para fins explicativos, e sim a sua
I - Quando os padrões descem abaixo do li- do engodo reagem utilização prática como arma política. Há mais
mite, a sociedade automaticamente ajusta o com veemência a de um século todos os movimentos interessa-
seu foco de percepção para achar normal o que dos em impor modificações socioculturais
qualquer tentativa
antes lhe parecia anormal, para aceitar como contra as preferências da maioria evitam bater
banal, corriqueiro e até desejável o que antes a de denunciá-lo, de frente com a opinião pública: tentam ludi-
assustava como inusitado e escandaloso. pois sentem que briá-la por meio do uso astuto da "constante de
II - Quando a anormalidade é excessiva, admitir a realidade Durkheim", que todo ativista revolucionário
transcendendo os limites da quota admissível, da coisa seria de certo gabarito conhece de cor e salteado.
ela tende a passar despercebida ou a ser sim- No sentido I, o princípio é aplicado por
plesmente negada: o intolerável transfigura-se
uma humilhante meio da pressão suave e contínua, rebaixan-
em inexistente. confissão do cuidadosamente, lentamente, progressi-
Embora dificilmente corresponda a quanti- de idiotice. vamente os níveis de exigência, primeiro no
dades mensuráveis, a "constante de imaginário popular, por meio das artes e es-
Durkheim", como veio a ser chamada, revelou- petáculos, depois na esfera das ideias e dos
se um instrumento analítico eficiente, sobretudo nos momen- valores educacionais, em seguida no campo do ativismo
tos de aceleração histórica, em que várias mudanças de padrão aberto que proclama as novidades mais aberrantes como di-
se sucedem e se encavalam no prazo de uma só geração, po- reitos sagrados e por fim na esfera das leis, criminalizando
dendo ser observadas, digamos assim, com os olhos da cara. os adversos e recalcitrantes, se ainda restarem alguns. Com
Daniel Patrick Moynihan, Robert Bork e Charles Krau- uma constância quase infalível, nota-se que os autoprocla-
thammer empregaram-na inteligentemente para a explica- mados conservadores se amoldam passivamente – às vezes
ção das vertiginosas transformações da moralidade ameri- confortavelmente – à mudança, sem perceber que sua nova
cana desde os anos 60. Bork escrevia em 1996: "É altamente identidade foi vestida neles desde fora como uma camisa-
improvável que uma economia vigorosa possa ser susten- de-força por aqueles que mais os odeiam.
tada por um ambiente de cul- Na acepção II, a "constante de Durkheim" é usada para vi-
tura enfraquecida, hedonísti- rar a sociedade de cabeça para baixo, da noite para o dia, sem
ca, particularmente quando encontrar qualquer resistência, por meio de mentiras e blefes
essa cultura distorce os incen- tão colossais que a população instintivamente se recuse a
tivos, rejeitando as realiza- acreditar que há algo de real por trás deles. As próprias víti-
ções pessoais como critério mas do engodo reagem com veemência a qualquer tentativa
para a distribuição de recom- de denunciá-lo, pois sentem que admitir a realidade da coisa
pensas". Doze anos depois, a seria uma humilhante confissão de idiotice. Para não sentir
ideia de que os empréstimos que foi feito de idiota, um povo aceita ser feito de idiota sem
bancários não são um negócio sentir, confirmando o velho ditado judeu: "O idiota não sen-
entre partes responsáveis e te". Foi assim que se montou na América Latina a maior or-
sim um direito universal in- ganização revolucionária da história continental, o Foro de
discriminado, garantido pelo São Paulo, num ambiente em que todas as denúncias a res-
governo e pela pressão das peito, por mais respaldadas em documentos e provas, eram
ONGs ativistas, deu no que ridicularizadas como sinais de loucura. E é assim que agora se
deu. O fato de que os criadores está impingindo aos EUA um presidente sem nacionalidade
do problema não se sintam comprovada, financiado por ladrões e associado por mil
Diário do Comércio, nem um pouco responsáveis compromissos a grupos de terroristas e genocidas, enquanto
15 de outubro de 2008 por ele, mas prefiram lançar a seu próprio adversário maior o proclama "um homem decen-
culpa justamente nos que tu- te, do qual não há nada a temer".

54 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


Emmanuel Dunand/AFP

O candidato do medo
C
ele não avisasse?
hamado de "Messias" pelo líder radical muçulma-
no Louis Farrakhan e de "Meu Jesus" pela editora-
chefe de um jornal universitário, Barack Hussein
Obama informa: "Contrariamente ao que diz a
opinião popular, não nasci numa manjedoura." Já pensaram se

Qualquer que seja o caso, pelo menos um milagre confirmado


que qualquer dessas coisas é um bom motivo para os comunis-
tas e radicais islâmicos gostarem dele, a mídia em peso diz que
você "passou dos limites" e é virtualmente culpado de "crime de
ódio". Ahmadinejad declarou que a vitória do candidato demo-
crata nas eleições dará o sinal verde para a islamização do mun-
do; Khadafi proclamou que Obama é um muçulmano fiel apoia-
do por milionários islamitas; e Louis Farrakhan, aproveitando a
ele já fez: é o primeiro candidato presidencial que obtém o aplauso onda de entusiasmo obamista, anunciou que a "Nation of Is-
de todos os inimigos dos EUA sem que isto desperte contra ele a lam", a sociedade secreta de radicais islâmicos que ele preside,
menor desconfiança do establishment americano. Entre seus en- há décadas funcionando em marcha lenta, está tendo "um novo
tusiastas, contam-se o Hamas, o presidente iraniano Ahmadine- começo" e logo estará operando de novo com força total. O sen-
jad, Muammar Khadafi, Fidel Castro, Hugo Chávez e o canal de tido desses fatos é claro, mas notar isso é imoral: todo cidadão de
TV Al-Jazeera. Imagino o que aconteceria à candidatura de Fran- respeito tem de jurar que o apoio vindo dos inimigos da Amé-
klin D. Roosevelt em 1932 se ele recebesse o apoio ostensivo de rica é apenas um equívoco da parte deles, já que Obama não lhes
Josef Stalin, Adolf Hitler e Benito Mussolini. deu – oh, não! – o menor pretexto para que simpatizassem com
É verdade que Obama promete desmantelar o sistema de de- ele. Insinuar qualquer convergência de interesses é imputar a
fesa espacial dos EUA, desacelerar unilateralmente o programa Obama "culpa por associação" – uma perfídia carregada, evi-
americano de pesquisas nucleares, transformar em derrota a vi- dentemente, de "subtons racistas".
tória no Iraque, vetar a abertura de poços de petróleo e oferecer Qualquer palavra mais dura contra o candidato negro é
carteiras de motorista e assistência médica gratuita aos imigran- aliás apontada como prova de racismo, e a mínima sugestão de
tes ilegais, aquele povinho patriota que quer transformar o Te- que haja nisso alguma chantagem racial é prova dupla. O pró-
xas e a Califórnia em Estados mexicanos. Mas, se você insinua prio John McCain faz questão de manter o debate na esfera

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 55


"das ideias", frisando que o oponente é "um homem decente, certidão de nascimento como solicitado pelo queixoso, preferiu
do qual não há nada a temer." lançar mão de uma complexa argumentação jurídica para se es-
Essa declaração é involuntariamente irônica. A coisa que todo quivar de fazê-lo. O segundo processo no mesmo sentido, aberto
americano mais teme, hoje em dia, é alguém suspeitar que ele no Estado de Washington, não é nem mencionado.
pensa mal de Barack Hussein Obama. Seguindo o exemplo do lí- As maiores empresas de jornais e canais de TV protegem o
der, a militância republicana capricha nas exibições de respeito e candidato democrata não somente contra seus adversários, mas
veneração à pessoa do adversário. Um funcionário do escritório contra ele próprio. Atos ou declarações dele que possam mos-
da campanha de McCain em Pompano Beach, CA, que colocou trá-lo a uma luz desfavorável são cuidadosamente omitidos.
atrás de sua mesa um cartaz associando Obama a Marx e Hitler foi Em toda a grande mídia americana não se encontrará uma só
instantaneamente demitido. Um cidadão do Estado de Ohio, que palavra sobre a longa carreira de Obama como militante abor-
fez umas perguntas mais duras ao candidato democrata sobre tista, muito menos sobre a única atividade importante desen-
seu projeto de reforma fiscal, pagou caro pelo atrevimento. Teve volvida por ele no plano internacional: a campanha montada,
sua vida particular vasculhada pelos repórteres e foi severamente com dinheiro público, para elevar ao poder no Quênia o agita-
criticado pelos crimes hediondos de trabalhar como encanador dor antiamericano e pró-terrorista Raila Odinga, culpado de or-
sem licença e de não ter pago uma multa de trânsito que recebeu denar o assassinato de mais de mil de seus opositores políticos e
no Arizona oito anos atrás. Isso dá uma ideia do zelo exasperado de conspirar com líderes muçulmanos para impingir a religião
com que a grande mídia protege a imagem de Barack Obama. Sa- islâmica a uma nação de maioria cristã. Obama não somente aju-
muel Wurzelbacher, ou "Joe Encanador" – o apelido pelo qual veio dou Odinga com dinheiro dos contribuintes americanos e abriu
a ser nacionalmente conhecido –, tira da sua experiência a con- contatos para ele no Senado, mas fez comícios em favor dele no
clusão incontornável: "Quando você já não pode mais fazer per- Quênia. Se algo mostra a verdadeira natureza dos compromis-
guntas a seus líderes, é uma coisa temível." sos internacionais do candidato democrata, é esse episódio –
O temor não é somente psicológico. Vários militantes republi- mas até a FoxNews se omite de tocar no assunto.
canos já foram surrados por obamistas, escritórios da campanha Por aqui, todo mundo diz que a vitória de Obama é certa. A
McCain em vários Estados foram invadidos e destruídos, e só a mim me parece que, mesmo se perdesse as eleições, Obama seria
ação da polícia impediu, a tempo, que centenas de agitadores oba- um vencedor. O partido de seus adversários já estava de joelhos
mistas bem treinados, armados de coquetéis Molotov, queimas- no momento em que, em vez de um conservador autêntico, es-
sem os ônibus que se dirigiam à Convenção Republicana em St. colheu como candidato um típico "liberal republican", promessa
Paul (mesmo assim os remanescentes conseguiram fazer um belo garantida, caso eleito, de um governo fraco, subserviente aos crí-
estrago). Quando um candidato usa de métodos terroristas e ao ticos, exatamente como o foi o de George W. Bush. A esse primeiro
mesmo tempo o establishment decreta que chamá-lo de terrorista desatino seguiu-se outro pior: a partir do instante em que os re-
é o suprassumo da demência, está claro que esse candidato tem publicanos, em vez de abrir mil processos como o de Philip Berg,
direitos ilimitados. Ele pode receber 63 milhões de dólares em aceitaram como adversário eleitoral legítimo e decente um can-
contribuições ilegais do exterior, e nada de mau lhe acontecerá didato sem nacionalidade comprovada, com uma biografia ne-
por isso. Uma ONG que o apadrinha pode fazer uma derrama de bulosa e repleta de mentiras flagrantes, ajudado e subsidiado pe-
títulos de eleitor falsos em treze Estados, e ai de quem sugira que los mais odientos inimigos do país, ficou claro que haviam abdi-
ele tem alguma culpa no caso. Em compensação, McCain foi acu- cado de todo sentimento de honra e consentido em legitimar uma
sado de violência verbal criminosa pelo simples fato de mencio- farsa. Se perderem as eleições, eles merecerão tantas lágrimas
nar a ligação arquicomprovada de Obama com William Ayers. quanto aqueles que preferiram
Uma passeata em favor de McCain-Palin, em Nova York, foi re- antes deixar Lula conquistar a
cebida com toda sorte de xingamentos e ameaças. Como, em con- presidência do Brasil do que
trapartida, nenhuma violência se observasse contra os militantes contar o que sabiam sobre o Foro
obamistas, foi preciso inventar que, num comício de Sarah Palin, de São Paulo.
alguém gritou "Kill him!" ao ouvir o nome de Obama. A polícia Quanto à campanha de Oba-
examinou cuidadosamente as gravações do encontro e concluiu ma, seu perfil é claro. O amálga-
que ninguém gritou nada disso. ma de promessas utópicas, pro-
Outro fator intimidante é a superioridade econômica. A cam- paganda avassaladora, beatifi-
panha de Obama recolheu nada menos de 605 milhões de dólares cação psicótica do líder, apelo ra-
em contribuições. Para cada anúncio de McCain, saem quatro de cial, controle da mídia e
Obama. Mais avassaladora ainda é a propaganda gratuita forne- intimidação sistemática do elei-
cida ao candidato democrata pela grande mídia. torado é idêntico nos mínimos
Até o momento, o único jornal de certa importância que noti- detalhes à estratégia eleitoral de
ciou o processo movido pelo advogado democrata Philip Berg Hitler em 1933, mas para dizer
contra Obama foi o Washington Times – nominalmente republi- isso em público – ou mesmo
cano –, que no entanto classifica as dúvidas quanto à nacionali- conscientizá-lo em voz baixa – é
dade de Obama como meros "rumores da internet" e, aludindo ao preciso mais coragem do que se Diário do Comércio,
processo só nas linhas finais, como se fosse apenas um rumor a pode esperar do eleitor médio 24 de outubro de 2008
mais, se omite de informar que Obama, em vez de apresentar sua hoje em dia.

56 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


Steve Marcus/Reuters

Segredos
e mentiras
sem fim

O
juiz federal Richard Barclay Surrick rejeitou o pe- nascimento dele sob guarda do Estado, para que ninguém ti-
dido do advogado democrata Philip J. Berg para vesse acesso ao documento sem autorização do próprio Oba-
que intimasse Barack Hussein Obama a apresen- ma ou de seus familiares. O mesmo fez o governo do Quênia
tar sua certidão de nascimento original. A senten- com todo e qualquer documento referente a Obama, logo após
ça baseou-se em dois argumentos: expulsar do território queniano o repórter Jerome Corsi que es-
1) Pela lei americana, nada autoriza o simples eleitor a ques- tava ali investigando as atividades do candidato em prol do ge-
tionar a elegibilidade de um candidato presidencial; nocida Raila Odinga.
2) Berg peticionou como simples eleitor, não como vítima, já Obama pessoalmente proibiu que todas as entidades deten-
que não comprovou qualquer dano pessoal sofrido em razão toras de seus documentos os divulgassem sob qualquer ma-
da candidatura Obama. neira que fosse. Eis a lista dos papéis que permanecem secretos
A Constituição americana determina que só cidadãos ame- (v. NewsMax.com):
ricanos natos têm o direito de concorrer à presidência, mas esse 1) Registros médicos.
permanece um direito sem garantia nenhuma: por incrível que 2) Correspondência enviada e recebida pelo seu gabinete no
pareça, não há nenhuma instituição incumbida de exigir prova Senado.
de nacionalidade dos candidatos. Se ao simples eleitor é tam- 3) Agenda dos encontros e demais compromissos atendidos
bém negado esse direito, aquele artigo da Constituição está por ele no Senado.
virtualmente revogado. 4) Lista dos clientes do seu escritório de advocacia e recibos
Berg anunciou que vai recorrer à Suprema Corte: "O que está dos respectivos pagamentos.
em questão é saber quem tem legitimidade para impor a obe- 5) Histórico escolar do Occidental College, onde ele estudou
diência à Constituição. Se eu não tenho, se você não tem, se o seu por dois anos.
vizinho não tem legitimidade para questionar a elegibilidade de 6) Histórico de seus estudos na Columbia University.
um indivíduo à presidência dos EUA, então quem tem? Assim 7) Histórico de seus estudos na Faculdade de Direito de
qualquer um pode simplesmente se afirmar elegível para o Con- Harvard.
gresso ou para a presidência sem que ninguém possa questionar 8) Sua tese de doutoramento em Columbia.
o seu estatuto legal, a sua idade ou a sua cidadania." 9) Seu comprovante de registro na Ordem dos Advogados
Enquanto isso, todos os canais possíveis para se averiguar a de Illinois.
nacionalidade de Obama estão meticulosamente bloqueados. 10) Lista dos clientes que ele representou como advogado
A governadora do Havaí, Linda Lingle, colocou a certidão de na firma Davis, Miner, Barnhill & Gallard (solicitado a apre-

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 57


sentá-la, Obama forneceu em vez disso a lista de todos os que o agitador racista Khalid al-Mansour pagou os estudos de
clientes da firma, tornando impossível saber quais ele repre- Obama em Harvard? Como pode Obama afirmar que não foi
sentava pessoalmente). educado numa família muçulmana, se os documentos mostram
11) Lista das contribuições de menos de duzentos dólares que até numa escola católica, na Indonésia, ele se registrou como
oferecidas à sua campanha (essas contribuições somam mais muçulmano? Por que, ao saber que alguém abrira um processo no
de 63 milhões de dólares e, segundo repórteres que puderam Havaí solicitando a divulgação da sua certidão de nascimento,
espiar por instantes algumas páginas da lista no escritório de Obama repentinamente se lembrou de que sua avó estava doente
Obama, incluem doadores como Fred Simpson, Mickey Mou- em Honolulu – uma semana depois de ela ter saído do hospital –
se e Family Guy). e, correndo para visitá-la sob a alegação de que talvez fosse sua
12) Certidão de nascimento original ou cópia autenticada. última oportunidade de encontrá-la com vida, não levou junto a
Não é preciso dizer que nenhum outro candidato presiden- mulher e os filhos mas uma equipe de advogados?
cial jamais negou ao público os documentos equivalentes. O Para completar, há uma quantidade estonteante de pequenas
bloqueio torna-se ainda mais suspeito porque vários pontos es- mentiras, todas proferidas com aquela desenvoltura que, nos mi-
senciais da biografia de Obama estão cheios de contradições. tômanos, substitui a sinceridade, às vezes com vantagem: a his-
1) Sua avó paterna assegura que estava presente na sala de tória do tio que libertou os prisioneiros de Auschwitz (as tropas
parto quando ele nasceu num hospital em Mombasa, Quê- americanas nunca entraram lá), o pai pastor de cabras (só se as
nia. Ele assegura que nasceu em Honolulu, Havaí, mas ele e criou no escritório onde trabalhava), a balela de que jamais acei-
sua irmã dão os nomes de dois hospitais diferentes onde isso tou contribuições de companhias de petróleo (esqueceu a Exxon e
teria acontecido. a Shell), a conversa mole de que foi membro do Comitê de Bancos
2) Ele viajou para o Paquistão quando a entrada de ame- do Senado (jamais esteve lá), etc. etc. A coisa não tem mais fim. É
ricanos era proibida nesse país. Usou portanto um passa- alucinante (v. http://theobamafile.com/ObamaLies.htm).
porte estrangeiro, quase certamente o da Indonésia, onde São só alguns exemplos, colhidos a esmo entre centenas. Ne-
ele viveu e estudou numa época em que, estando o país em nhum desses fatos foi jamais eficazmente contestado, nem as per-
guerra, só crianças de nacionalidade indonésia eram aceitas guntas daí decorrentes respondidas por quem quer que fosse. No
nas escolas. Mais ainda, a lei indonésia não aceitava dupla entanto, qualquer dúvida quanto à nacionalidade de Obama ou à
nacionalidade, de modo que para Obama tornar-se cidadão autenticidade da sua biografia de campanha é instantaneamente
indonésio ele teve de renunciar (por meio de seu pai) à na- rotulada de "teoria da conspiração" e impugnada como absurda
cionalidade americana, só podendo portanto voltar aos pela grande mídia em peso, como se esta mesma não ignorasse as
EUA como imigrante. respostas tanto quanto as ignora o resto da população.
3) Obama afirmou várias vezes que jamais pertencera a um Jamais, na história americana, um candidato presidencial
partido socialista. Os documentos do New Party provam que com uma conduta tão nebulosa, extravagante e suspeita teve se-
ele mentiu (v. AmericanThinker.com). gredos tão bem guardados quanto os de Barack Obama, nem
4) Obama disse que não tinha qualquer ligação com a Acorn, tanta gente importante empenhada em resguardar seu direito
ONG responsável pela maior derrama de títulos de eleitor fal- de guardá-los. A privacidade de Obama – a privacidade de um
sos já ocorrida nos EUA. Documentos e vídeos da Acorn pro- homem público – está acima da própria Constituição america-
vam que ele mentiu (v. NationalReview.com, www.youtu- na. Acreditar em Obama sem provas tornou-se obrigação incon-
be.com/watch?v=8vJcVgJhNaU e www.youtube.com/wat- tornável, e questionar essa obrigação é sinal de racismo.
ch?v=7NmaZIdz6Vo). Tal como no Brasil uma gigantesca opera-
5) Obama disse que não tivera nenhuma co- ção-sumiço elegeu e reelegeu Lula impedindo
nexão política com o terrorista William Ayers. que a população soubesse de suas atividades
Documentos liberados pela Universidade de no Foro de São Paulo, um esquema de oculta-
Illinois provam que ambos trabalharam juntos ção mais vasto ainda foi montado para eleger
em projetos destinados a subsidiar organiza- Barack Obama. Com notável hipocrisia os es-
ções esquerdistas (v. MichelleMalkin.com). querdistas de ambos os países clamam contra a
6) Ele disse que jamais soubera das ideias "crescente concentração da mídia", na verdade
políticas do pastor Jeremiah Wright, mas como uma bênção para eles, sem qual jamais teriam
é possível ouvir todas as semanas durante vin- podido bloquear o acesso às notícias que vão
te anos as pregações de um pastor que pratica- contra o seu interesse.
mente só fala de política, sem ficar sabendo do No caso de Obama, o quadro da mais notá-
que ele pensa a respeito? vel fraude eleitoral de todos os tempos é com-
Além das mentiras patentes, há os fatos nebu- pletado pela chantagem racial, pela distribui-
losos e mal explicados. Como Obama conseguiu ção maciça de títulos de eleitor falsos e pelo uso
viajar para o Paquistão quando a entrada de generalizado da intimidação e da agressão mo-
americanos era proibida no país? Por que ele ja- ral e física que transforma esta eleição america-
mais contou que é primo de Raila Odinga nem Diário do Comércio, na numa palhaçada de Terceiro Mundo (vejam:
admite divulgar os documentos das atividades 4 de novembro de 2008 TimesOnline, Breitbart.tv, HeraldOnline.com,
que desempenhou em favor desse assassino? Por InYork e WorldNetDaily.com).

58 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


O surrealismo
no poder
Q ue Obama exibe por toda parte uma imagem de
pura propaganda enquanto move céus e terras
para ocultar os documentos essenciais sobre sua
vida e sua carreira, é um fato que nem os adeptos
mais fanáticos do presidente eleito conseguem negar. Também
é certo que nenhum candidato ou presidente antes dele, nos
EUA ou em qualquer outro país, se furtou tão obstinadamente
midatória é o mais vasto empreendimento de subversão psico-
lógica já observado na história humana: é o establishment bilio-
nário inteiro que se empenha com todas as suas forças em destruir
rapidamente, na população, o discernimento moral mais elemen-
tar, o senso das proporções e a noção mesma de obrigações e di-
reitos. Na verdade a subversão não é somente psicológica: a partir
do instante em que se tenta consagrar a mera vitória nas urnas
ao dever de provar sua identidade. Mesmo os tiranos mais so- como um salvo-conduto para o presidente eleito ignorar a cons-
lidamente protegidos entre muralhas de segredos jamais se re- tituição, as leis e os mais mínimos requisitos de transparência, a
baixaram ao ponto de bloquear ao exame público documentos democracia representativa está ameaçada de extinção, instauran-
banais como um histórico escolar, uma ficha médica, uma tese do-se em seu lugar, da noite para o dia, a "democracia plebisci-
de doutoramento, um certificado de alistamento militar. E no- tária" de Jean-Jacques Rousseau. Nada mais lógico do que o re-
te-se que Obama não se limita a escondê-los pessoalmente: gime inventado por um mentiroso compulsivo tornar-se realida-
montou para isso uma vasta operação-sumiço, mobilizando de em benefício de outro mentiroso compulsivo.
governadores e secretários de Estado, deputados, senadores, o Falando nisso, até agora a única tentativa bem sucedida de
presidente e o primeiro ministro de uma nação estrangeira, desencavar documentos de Obama por meio do Freedom of
centenas de jornalistas e toda uma equipe de advogados carís- Information Act revelou ao público – depois das eleições, é cla-
simos, tudo para impedir que os americanos saibam em quem ro – o alistamento militar do referido. Nos EUA não há serviço
votaram. Centenas de pedidos de abertura fundados no Fre- militar obrigatório, mas todo cidadão tem de se inscrever no
edom of Information Act, do qual nem segredos de guerra cos- "Selective Service", à espera de uma possível convocação, entre
tumam escapar, foram solenemente ignorados. Ninguém se os 18 e 26 anos. Obama, nascido em 1961, tinha prazo até 1987.
esforça tanto para se esconder se não tem nada a esconder. Seu certificado de alistamento parece regular, pois está datado
Pavoneando-se como um pop star e ao mesmo tempo ocul- de 30 de julho de 1980. Só há dois detalhes:
tando-se como um foragido da justiça, Obama tornou-se o per- 1) A data de impressão do formulário é 2008.
sonagem mais anormal, mais esquisito e mais suspeito que já 2) O carimbo postal vem com a sigla USPO, "United States
ousou aproximar-se do Salão Oval, não digo para ocupá-lo, Post Office", mas o nome da repartição foi mudado em 1970 pa-
mas mesmo para visitá-lo: nenhum visitante entra lá sem mos- ra "United States Postal Service", USPS, e todos os carimbos an-
trar os documentos na porta. teriores foram automatica-
A situação torna-se ainda mais absurda e grotesca, porque mente invalidados.
nunca a checagem dos candidatos a cargos no funcionalismo pú- Todo mundo sabe que Oba-
blico foi tão rigorosa quanto depois do advento de Obama: cada ma multiplica os pães e cami-
um, agora, tem de informar até se possui arma em casa – pergunta nha sobre as águas. Agora re-
que os governos anteriores considerariam indecorosa. vela-se que ele pode não só
O contraste entre a conduta de Barack Obama e a de todos os preencher formulários dezoi-
seus antecessores na presidência ou nas eleições é tão extremo e to anos antes de que sejam im-
tão chocante, que continuar enfatizando a cor da sua pele é des- pressos, mas também carim-
viar as atenções para um detalhe menor. Um negro na presidência bá-los dez anos antes de pre-
dos EUA, mais cedo ou mais tarde, era uma probabilidade bem enchê-los. Se não é milagre, é
maior, pelo menos, do que um na presidência de Cuba. Enquanto pelo menos crime federal.
personagem moral, Obama é muito mais diferente de qualquer Confiram aqui.
político normal do que um Zulu é diferente de um Viking. http://www.debbieschlus-
Porém mais extravagante ainda é o esforço unânime da grande sel.com/4428/exclusive-did-
mídia e da cúpula democrata (duas entidades cada vez mais in- next-commander-in-chief-fal-
discerníveis) para fingir que tudo isso é normal e para estigma- sify-selective-service-registra-
tizar como um abuso intolerável, uma prova de racismo ou um ti on -ne ve r-a ct ual ly- re gis te r- Diário do Comércio,
sintoma de paranoia toda veleidade de investigar a vida do pre- obamas-draft-registration-rai- 24 de novembro de 2008
sidente eleito. Numa comparação objetiva, essa campanha inti- ses-serious-questions/

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 59


GLOBALISMO

Contra do
dições laicismo
A moral laica do mundo burguês reconhece e até procla-
ma com orgulho "científico" sua própria relatividade,
em teoria. Mas nenhuma ordem social pode conten-
tar-se com uma obediência relativa, que desemboca-
ria fatalmente no conflito geral e no caos. Daí a distinção prática,
tipicamente moderna e burguesa, entre moral privada e ordem
pública. A primeira pode multiplicar-se em variações infinitas,
que a velha autoridade religiosa jamais teria sonhado ser.
A essa primeira contradição soma-se outra pior. Não é possível
controlar a sociedade sem regulamentar a economia. À medida
que os controles morais embutidos na cultura do velho regime ce-
dem sua autoridade ao aparato judicial, burocrático e policial, am-
plia-se na mesma medida a intervenção do Estado na economia.
O estatismo econômico indefinidamente expansionista é ineren-
desde que não perturbe a segunda. É a informalidade da escolha te, portanto, à dialética do Estado leigo. Mas este não se impôs
moral, limitada pela formalidade estrita da ordenação jurídica. justamente mediante a promessa de resguardar a liberdade eco-
Esse arranjo de ocasião disseminou-se tão universalmente nômica? Sim. O que não se deve é confundir as intenções decla-
que adquiriu foros de sabedoria eterna e imagem por excelên- radas do discurso ideológico com a fórmula política substantiva
cia da "normalidade", ao ponto de que já ninguém percebe o cuja implantação elas legitimam. A contradição pode escapar até
que ele tem de instável e problemático; e, não o percebendo, mesmo aos mais sinceros propugnadores da nova política, mas,
tem de improvisar hipóteses rebuscadas para explicar por uma que ela existe, existe. O moderno Estado leigo pode, com a maior
sucessão imaginária de acidentes as crises e percalços que sinceridade do mundo, prometer a liberdade econômica – o que
um exame sério deveria ter revelado à primeira vista como de- ele não pode é realizá-la, a não ser de maneira capenga, perma-
senvolvimentos lógicos e inevitáveis de contradições iniciais nentemente ameaçada pelo avanço da mentalidade socialista,
não conscientizadas em tempo. que a expansão mesma do laicismo oficial fomenta.
De um lado, aquela distinção constitutiva do Estado laico foi Não é coincidência que o país que defendeu com mais efi-
estabelecida como ato de uma minoria revolucionária contra cácia a liberdade econômica tenha sido justamente aquele que
um consenso anterior fundado na homogeneidade moral da so- só adotou o laicismo como me-
ciedade cristã. Uma vez vitorioso, o Estado laico passa a cor- canismo secundário de auto-
roer necessariamente o que possa restar dessa homogeneida- controle do próprio Estado,
de, que para ele representa a origem mesma de toda obstina- sem a ambição de fazer dele
ção "reacionária" erguida contra sua obra modernizante. Dis- um princípio regente de toda a
solvida pouco a pouco a unidade moral do povo, a única maneira vida social e política, antes con-
de evitar a autodestruição da sociedade pelo caos é transferir servando vivo e embutindo em
para a esfera jurídica os mecanismos reguladores antes ope- suas instituições o máximo que
rados pelo simples automatismo das tradições arraigadas no podia das antigas tradições re-
senso comum. O que era obediência espontânea torna-se as- ligiosas. Muito menos é coinci-
sim controle estatal forçado. Na proporção mesma do sucesso dência que, hoje em dia, aque-
obtido pelo Estado leigo em seu esforço de "modernização", o les que desejam radicalizar o
número, a complexidade e a abrangência dos controles jurídi- princípio laicista, expelindo a
co-burocrático-policiais vão crescendo, avançando para dentro religião da vida pública, não se-
de todos os campos da existência social e invadindo por fim a jam de maneira alguma amigos
vida privada e até a intimidade dos pensamentos, regulando a da liberdade econômica, mas
linguagem, a educação doméstica, etc. Tão logo deixa de ser todos, em mais ou em menos,
uma promessa e se torna uma realidade, aquilo que surgiu sob adeptos do intervencionismo Diário do Comércio,
o pretexto de resguardar a liberdade individual revela ser um estatal - socialistas confessos 17 de junho de 2008
mecanismo opressivo incomparavelmente mais exigente do ou enrustidos.

60 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


A mão invisível
O plano de transição para o gover-
no mundial, que Arnold Toyn-
bee expôs mais de meio século
atrás e que mencionei breve-
mente nesta coluna, já está em avançadíssima
fase de implantação, ao ponto de que não há ne-
nhum exagero em dizer que a Nova Ordem
globalista-socialista é um fato consumado, ir-
reversível. Que a maioria dos seres humanos
ignore isso por completo e ainda tenha a ilusão
de poder interferir de algum modo no curso
das coisas por meio do "voto", eis aí a prova de
que Toynbee tinha toda a razão ao dizer que a
nova estrutura de poder não seria democráti-
ca, nem democrática a transição para ela. Não
há estado de sujeição mais completo do que ig-
norar a estrutura de poder sob a qual se vive.
É verdade que a mera complexidade cres-
cente da administração estatal moderna já era,
por si, conflitiva com as pretensões democrá-
ticas de transparência, informação acessível,
"voto consciente", enfim, com as presunções da
"cidadania". Mas o que vem acontecendo no úl-
timo meio século é o aproveitamento delibera-
do e sistemático da complexidade burocrática
para criar, acima do governo representativo,
uma nova estrutura de poder que o domina, o
estrangula e acaba por eliminá-lo. A maior par-
te das nações já vive sob o controle dessa nova
estrutura global sem ter disso a menor cons-
ciência e acreditando que continua a desfrutar
das garantias e meios de ação assegurados ao
eleitor pelo antigo sistema de governo repre-
sentativo, hoje reduzido a um véu de aparên-
cias tecido em torno do poder mais centraliza-
SXC

do, abrangente e incontrolável que já existiu ao


longo de toda a história humana.

do globalismo
Não só essa transição já aconteceu, mas ela
foi realizada sob a proteção de um conjunto de
pretextos retóricos altamente enganosos, cria-
dos para dar à população a ideia de que a mu-
dança ia no sentido da maior liberdade para os
cidadãos, da maior participação de todos no
governo e de mais sólidas garantias para a em- vo, o eleitorado escolhia o governo segundo os
presa privada. Todos os termos-chave dessa re- programas que lhe pareciam os mais conve-
tórica – "governo reinventado", "parcerias pú- nientes, e o governo eleito – executivo e parla-
blico-privadas", "terceira via", "descentraliza- mento – repassava esses planos aos órgãos da
ção" – significam precisamente o contrário do administração pública, para que os executas-
que parecem indicar à primeira vista. sem. No novo sistema de "parcerias público-
Os dois diagramas que acompanham este privadas", a administração pública é só uma
artigo tornarão isso bastante claro. As flechas parcela do órgão executor. A outra parcela é es-
aí indicam a origem do poder e o objeto sobre o colhida por entidades sobre as quais o eleito-
qual se exerce. No antigo sistema representati- rado não tem o menor controle e das quais não

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 61


chega às vezes a ter sequer conhecimento. Tal como apresen-
tado na sua formulação publicitária, o novo sistema é mais de-
mocrático, porque reparte a autoridade do governo com "a so-
ciedade". Mas "a sociedade" aí não corresponde ao eleitorado e
sim a ONG's criadas sob a orientação de organismos interna-
cionais não-eletivos – ONU, UE, OMS, OMC, etc – e subsidia- O camponês antigo, o servo da gleba e até
das por bilionárias corporações multinacionais cuja diretoria mesmo o escravo romano gemiam sob o tacão
não é mesmo conhecida do público em geral. de um poder incontrastável, mas pelo menos
A orientação geral dessas ONG's reflete um conjunto de no-
vas concepções socioculturais e políticas que jamais foram
tinham uma ideia clara de quem mandava
postas sequer em discussão, e que por meio delas são implan- neles e compreendiam perfeitamente o
tadas do dia para a noite, sem que o eleitorado chegue a saber funcionamento do sistema que os governava.
nem mesmo de onde vieram. A própria velocidade das trans-
formações é tamanha, que serve para reduzir as populações ao
estado de passividade atônita necessário para tornar inviável pais para a implantação do novo esquema reside na rede mun-
não só qualquer reação organizada, mas até uma clara tomada dial de ONG's e movimentos esquerdistas, desde os mais ra-
de consciência quanto ao que está acontecendo. Paralelamen- dicais até os mais brandos e inofensivos em aparência. Ao mes-
te, muito do poder de decisão do parlamento é transferido aos mo tempo, como a violência e rapidez das mutações gera toda
órgãos burocráticos, que, agindo já não como braços do elei- sorte de desequilíbrios, temores e insatisfações, essa rede de
torado, mas como agentes a serviço de parcerias controladas organizações esquerdistas é usada por outro lado como mega-
pelo triunvirato de ONG's, corporações e organismos interna- fone para lançar a culpa de todos esses males no velho capi-
cionais, passa então a introduzir na sociedade mutações radi- talismo liberal, apontado como beneficiário maior das mes-
cais que, no sistema de governo representativo, jamais seriam mas transmutações que o esmagam. Os sintomas colaterais
aprovadas nem pela população, nem pelo parlamento. mórbidos da transformação servem eles próprios como pre-
Ao desfazer-se de uma parte das suas prerrogativas, sob as textos para acelerá-la e aprofundá-la, canalizando em favor
desculpas de "privatização", "democratização", "descentrali- dela as dores que ela gerou.
zação", "desburocratização" etc., o governo não as transfere ao Numa obra memorável, "Du Pouvoir. Histoire Naturelle de
povo, mas a um esquema de poder global que escapa infini- Sa Croissance", Bertrand de Jouvenel mostrou que a história da
tamente à possibilidade de qualquer controle pelo eleitorado. modernidade não é a história da liberdade crescente, como
As ambiguidades decorrentes, que desorientam o público, são pretendia Benedetto Croce, mas a história do poder crescente
então aproveitadas como instrumentos para gerar artificial- do Estado avassalador.
mente novas "pressões populares", que não são populares de Esse livro é de 1945. Desde então, o curso da História tomou
maneira alguma, mas que refletem apenas a vontade da cha- um rumo que o confirma na medida mesma em que aparenta
mada "sociedade civil organizada", isto é, da rede de ONGs desmenti-lo. A "descentralização" dos governos nacionais, si-
criadas pelo próprio esquema de poder global. mulando em escala local uma vitória do liberal-capitalismo so-
Subsidiadas pelas grandes corporações e fundações, essas bre as tendências centralizadoras e socialistas, foi posta a serviço
ONGs, prevalecendo-se da "parceria" que têm com órgãos do da construção do Leviatã supranacional que, inacessível e quase
governo, passam então à para- invisível, controla dezenas de Estados reduzidos à condição de
sitagem voraz de verbas públi- entrepostos da administração global. Não só o eleitorado foi
cas, somando aos recursos que submetido a essa gigantesca mutação sem a menor possibilida-
as alimentam desde fora o san- de de interferir nela ou de compreendê-la, porém até mesmo al-
gue extraído do próprio eleito- guns dos mais intelectualizados porta-vozes do liberal-capita-
rado que as ignora e que elas fal- lismo, enxergando apenas o fator econômico e recusando-se a
samente representam. Essa no- investigar a nova estrutura de poder político por trás da globa-
va estrutura de poder não é um lização comercial, colaboraram ativamente para que o processo
plano, não é um objetivo a ser al- de centralização mundial se implantasse pacificamente, sob a
cançado: ela já é o sistema de po- bandeira paradoxal da liberdade de mercado.
der sob o qual vivemos, cons- O camponês antigo, o servo da gleba e até mesmo o escravo
truído sobre os escombros do romano gemiam sob o tacão de um poder incontrastável, mas
antigo governo representativo, pelo menos tinham uma ideia clara de quem mandava neles e
que hoje em dia só subsiste co- compreendiam perfeitamente o funcionamento do sistema
mo aparência legitimadora da que os governava. O cidadão da "democracia de massas" está
transformação que o matou. cada vez mais submetido a decisões que não sabe de onde vie-
Uma ambiguidade especial- ram, implantadas por um sistema de governo que ele nem co-
Diário do Comércio, mente irônica e por isto mesmo nhece nem compreende. O globalismo é a apoteose do proces-
04 de julho de 2008 proveitosa da situação é que so de centralização do poder, centralizando até o direito de co-
um dos instrumentos princi- nhecer o processo.

62 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


ISLAMIZAÇÃO DO OCIDENTE

O segredo da
invasão islâmica

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 63


E ntre as perguntas a que respondi no
meu último programa True Outspeak
(www.blogtalkradio.com/olavo , às
20h00 de segunda-feira), veio uma es-
pecialmente interessante do meu amigo
Nahum Sirotsky, correspondente da Zero Ho-
ra em Israel. A resposta que dei resumia alguns
estudos que estou fazendo para o meu livro "A
Mente Revolucionária", motivo pelo qual meu
aluno Sílvio Grimaldo houve por bem trans-
crevê-la. Reproduzo-a aqui sem alterações,
apenas levemente corrigida:
"Muito bem. A dúvida do Nahum é a se-
guinte: Como é possível um movimento de
envergadura mundial sem um centro de co-
mando, como se fosse uma coisa espontânea
se espalhando pelo mundo pela simples força
do automatismo? De fato isso parece um enig-
ma. E esse é um enigma que os comentaristas
políticos e os analistas estratégicos do Oci- Georges Gurdjieff, líder espiritual armênio
dente não vão entender jamais. Eles não têm a
menor condição de entender como é o proces-
so profundo da guerra de civilizações, porque Se você entra numa mesquita e ali há mil pes-
para isso seria preciso estudar o Islam até às soas, você pode ter certeza que pelo menos
últimas fontes da espiritualidade islâmica, metade delas pertence a alguma tarica. As ta-
que estão bem remotas da política diária. En- ricas não se dedicam à atividade política, mas
tão esse pessoal de formação mais ou menos elas são a fonte profunda da unidade espiri-
materialista – e mesmo o pessoal religioso – Quando Gurdjieff tual e, portanto, cultural do Islam. E eviden-
não têm, no Ocidente, uma visão dessa pro- chega ao Ocidente, temente é lá que tudo começa."
fundidade, não conseguem conceber como é "No Ocidente as pessoas só percebem a
no começo do século,
que funciona realmente o Islam. Eles veem guerra cultural quando ela se traduz em mani-
que existem mesquitas, que existe o culto po- ele se apossa de festações públicas, quando se traduz numa ex-
pular, que existem ali alguns funcionários das inumeráreis líderes pressão politicamente visível, mas na verdade
mesquitas, que são as lideranças religiosas intelectuais e essa guerra começa muito antes, vindo de den-
aparentes, e que existe, por outro lado, a es- simplesmente os destrói tro das taricas. As taricas são chefiadas por
trutura dos Estados, mas, procurando em tu- mestres espirituais chamados Sheikhs. Sheikh
espiritualmente, os deixa
do isso, eles não enxergam o centro. Para é um título honorífico, que quer dizer apenas
achar esse centro você precisa cavar além da completamente uma pessoa mais velha, mas na verdade os
superfície. Não se pode esquecer que o Islam desorientados, abrindo sheikhs das taricas são como um cargo heredi-
está povoado de taricas. Taricas são organiza- um rombo na carapaça tário que é passado não necessariamente para
ções esotéricas estruturadas mais ou menos da cultura ocidental um filho, mas por uma herança espiritual, cada
como ordens religiosas, que se dedicam a sheikh nomeia o seu sucessor..."
moderna, cientificista
exercícios espirituais em acréscimo às prati- "A força que essas organizações represen-
cas rituais obrigatórias do Islam. São práticas e materialista. tam no Islam não tem nada de comparável no
ditas suprarrogatórias, não são obrigatórias Ocidente. Mesmo se você for investigar as so-
pela lei religiosa, são uma devoção especial ciedades esotéricas e secretas aqui, elas exis-
que o indivíduo faz se quiser. As taricas re- tem, é claro, mas não têm essa profundidade,
montam ao próprio tempo de Maomé. Havia não têm, sobre a totalidade da população, a au-
um grupo que se reunia para fazer recitações toridade espiritual tremenda que as taricas
dos nomes de Deus. Alguém perguntou a têm. (No Islam shiita, a coisa é mais complica-
Maomé o que ele achava disso e ele disse que da ainda porque há outras redes de organiza-
eram excelentes pessoas, mas que estavam fa- ções esotéricas, independentes das taricas,
zendo algo que não era obrigatório, que eles com uma filosofia messiânica própria.) Então é
mesmos tinham oferecido aquilo a Deus. Daí dessas taricas (e similares) que vem o coman-
se originou uma multidão de organizações do, mas não de uma maneira direta. Não há um
esotéricas que se ramificam por todo o Islam. comando estratégico que diz 'faça isso' ou 'faça

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aquilo', mas é dali que surgem as ideias e as ten- título de A Metafísica Oriental, havia umas dez
dências e, no plano das guerras espirituais e pessoas lá. Passados quarenta anos, o pensa-
culturais, evidentemente a ação provem das ta- mento do Guénon era o dono, o proprietário
ricas. Por exemplo, eu estou seguro de que não absoluto do Departamento de Estudos Reli-
é possível explicar a história do século XX, em giosos da Universidade de Paris, proliferando
absolutamente nada, sem levar em conta a ação a sua influência numa escala que, no começo, Não se pode esquecer
de enviados de organizações islâmicas que seria inimaginável."
que o Islam está
agem no Ocidente há mais de um século exer- "Aí é que está a guerra cultural profunda,
cendo uma influência muito sutil sobretudo na mas eu nunca vi algum analista ocidental, mes-
povoado de taricas.
elite intelectual. Antes de vir esse ataque por mo entre os melhores – um Bernard Lewis, por Taricas são
baixo, que é a imigração [como arma de guerra exemplo – dar um tratamento a isso com a pro- organizações
cultural], essa agitação toda e o próprio terro- fundidade que deve." esotéricas estruturadas
rismo, muito antes disso havia uma ação por ci- "Por exemplo, o Gurdjieff. Você tem vários
mais ou menos como
ma, através da dissolução da elite intelectual movimentos artísticos no modernismo que
ocidental, (seguida pela) sua reorganização em dão a impressão de ser criações puramente oci- ordens religiosas,
termos islâmicos." dentais, mas que não foram nada disso: era o que se dedicam a
"Muita gente pode ter ouvido falar do fa- dedo do Gurdjieff que estava lá. Aqui nos exercícios espirituais em
moso Georges Gurdjieff, aquele líder espiri- EUA, por exemplo, o arquiteto mais influente, acréscimo às praticas
tual armênio. A função do Gurdjieff no Oci- que foi o Frank Lloyd Wright, o sujeito que re-
rituais obrigatórias
dente foi simplesmente bagunçar a elite inte- volucionou a arquitetura americana, era um
lectual. Quando Gurdjieff chega ao Ociden- discípulo do Gurdjieff, obedecia a instruções do Islam.
te, no começo do século, ele se apossa de diretas dele. Gurdjieff conseguia criar estilos
inumeráreis líderes intelectuais e simples- artísticos como quem preenche um cheque, ele
mente os destrói espiritualmente, os deixa criava um atrás do outro. É um tipo de capaci-
completamente desorientados, abrindo um dade que as pessoas normalmente não imagi-
rombo na carapaça da cultura ocidental mo- nam. Isso não quer dizer que eu goste muito
derna, cientificista e materialista, abrindo as desse Gurdjieff não, mas tenho de reconhecer a
portas para a entrada da influência oriental, sua força tremenda."
que depois mais tarde se tornaria popular "Então é nesse nível, da unidade espiritual
com o movimento da Nova Era nos anos 60. A da tradição islâmica, que se tem que encontrar
Nova Era jamais teria sido possível se Gurd- a tal da autoridade humana pela qual pergunta
jieff não tivesse aberto essa brecha meio sécu- com muita razão o Nahum Sirotsky."
lo antes. Um continuador dessa obra de des- "Mas, quanto mais o tempo passa, mais vejo
truição foi um indivíduo chamado Idries que a incapacidade de fazer as perguntas cor-
Shah, um inglês de origem indiana, que pros- retas é a grande falha da classe falante: falam,
seguiu o trabalho de decomposição da elite falam, mas às vezes o problema está na frente
intelectual ocidental num nível de profundi- deles e eles nem percebem que existe o proble-
dade que não chama a atenção dos analistas ma, não percebem a questão. E, não fazendo a
políticos. Por que um analista político vai se pergunta, evidentemente não têm as respos-
interessar por assuntos esotéricos, ocultis- tas. Então, o mistério desse movimento tre-
tas, etc.? Há gente que se faz de superior a is- mendo, avassalador, aparentemente sem cabe-
so justamente porque não entende - não en- ça, sem comando, que vai tomando conta do
tende a profundidade do efeito dessas armas mundo, até hoje não suscitou a pergunta cor-
na guerra cultural." reta porque as pessoas procuram (uma respos-
"Ao mesmo tempo em que as taricas manda- ta) no nível do comando político ou, no máxi-
vam esses agentes para fazer o serviço destru- mo, religioso no sentido mais externo da coisa,
tivo, mandavam outros para reconstruir, reco- e não no sentido do comando espiritual que
locar em ordem a cabeça dos intelectuais, (mas unifica uma civilização."
agora) já em termos islâmicos. E nisso se des- Ainda voltarei a este assunto tremendamen-
tacaram duas pessoas, René Guénon e Frithjof te complicado. Reproduzi a resposta só para
Schuon. Guénon é o sujeito que propõe já em dar ao leitor uma primeira ideia de como as coi-
substituição à cultura europeia uma constru- sas que ele lê na mídia a respeito da invasão is-
ção integral baseada em doutrinas orientais (as lâmica são superficiais e incapazes de explicar
doutrinas oficiais da sua tarica). Quando Gué- os fatos.
non começou a falar dessas coisas por volta de Mas, por enquanto, deixemos essas altu- Diário do Comércio,
1920, ninguém prestou a mais mínima atenção. ras e vejamos o que se passa na terra de Ma- 12 de março de 2007
Ele fez até uma conferência na Sorbonne com o cunaíma.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 65


FILOSOFIA E CULTURA

A autoridade
religiosa do mal
N este momento, a diretoria da PETA - People for the
Ethical Treatment of Animals, empombadíssima
ONG que em nome dos direitos dos animais diz
horrores das pessoas que comem carne, usam ca-
sacos de pele ou vão ao circo – está sendo processada pela ma-
tança de milhares de gatos e cachorros. Funcionários da organi-
zação recolheram os bichos em depósitos públicos, dizendo que
Educado nos princípios do relativismo, que entrou na moda
quando eu era adolescente (embora os adolescentes de hoje
acreditem ser os primeiros a tomar conhecimento dele), demo-
rei muito para descobrir por experiência – e tive enorme dificul-
dade de admitir – que no mundo há pessoas muito boas e pes-
soas muito más, separadas por um abismo irredutível. Hoje em
dia, quem quer que proclame em voz alta a existência dessa di-
iam arranjar famílias para adotá-los. O pessoal dos depósitos nem ferença que salta aos olhos na vida diária é imediatamente acu-
pensou em duvidar dos agentes de uma instituição famosa e po- sado de "maniqueísmo". Mas isso não é senão uma inversão a
liticamente correta. Dias depois os homens da PETA foram sur- mais, pois o maniqueísmo, historicamente, consiste em equali-
preendidos jogando os cadáveres de 14.400 animais num terreno zar o bem e o mal como princípios, neutralizando a diferença de
baldio, em sacos de lixo. Leia a história completa valor que os separa. E eu não sou covarde o bas-
em www.petakillsanimals.com. tante para me abster de dizer as coisas como as
Também neste momento os remanescentes do vejo, só por medo de uma rotulação pejorativa
Khmer Vermelho, a organização genocida lide- cuja falsidade já se revela na própria semântica
rada pelo famigerado Pol-Pot, estão sendo julga- do termo.
dos por um tribunal em Phnom Penh, Camboja, Mais doloroso ainda, porém, foi descobrir
depois de tudo o que a bondosa ONU fez para que todos os mestres-pensadores e líderes polí-
livrá-los de tão desumano constrangimento. Es- E eu não sou covarde o ticos que encarnavam os ideais pomposamente
ses terroristas chegaram ao poder com a ajuda de bastante para me abster alardeados pela militância intelectual esquer-
milhões de jovens militantes americanos e euro- dista – todos, sem exceção – pertenciam inequi-
de dizer as coisas como
peus que, manipulados por uma rede de organi- vocamente à segunda categoria. Quem quer
zações esquerdistas e um exército de pop stars as vejo, só por medo de que estude as vidas de cada um deles descobrirá
das artes e letras, marcharam "pela paz" nos anos uma rotulação pejorativa que Voltaire, Diderot, Jean-Jacques Rousseau,
60 sob lindos pretextos idealistas e humanitários, cuja falsidade já se Sade, Karl Marx, Tolstoy, Bertolt Brecht, Lênin,
forçando os EUA a desistir de uma guerra vito- revela na própria Stálin, Fidel Castro, Che Guevara, Mao Dze-
riosa, sair do Vietnã do Sul e deixar o caminho li- dong, Bertrand Russel, Jean-Paul Sartre, Max
semântica do termo.
vre para que os comunistas armados pela China Horkheimer, Theodor Adorno, Georg Lukács,
invadissem esse país e o vizinho Camboja. Resul- Antonio Gramsci, Lillian Hellman, Michel Fou-
tado final do massacre: três milhões de civis mor- cault, Louis Althuser, Norman Mailer, Noam
tos, mais de três vezes o total das vítimas da guerra. Leia a história Chomsky e tutti quanti foram indivíduos sádicos, obsessiva-
completa em Mark Moyar, Triumph Forsaken. The Vietnam War, mente mentirosos, aproveitadores cínicos, vaidosos até à de-
1954-1965 (Cambridge University Press, 2006). mência, desprovidos de qualquer sentimento moral superior e
O paralelo entre a matança de animais e a de seres humanos de qualquer boa intenção por mais mínima que fosse, exceto, tal-
não é fortuito: em ambos os casos um discurso atraente, conden- vez, no sentido de usar as palavras mais nobres para nomear os
sado em slogans de grande impacto repetidos ad nauseam pela atos mais torpes. Muitos cometeram assassinatos pessoalmen-
mídia, recobriu com o manto do prestígio moral uma gangue de te, sem jamais demonstrar remorso. Outros foram estupradores
sociopatas assassinos, criminalizando os que se opunham a seus ou exploradores de mulheres, opressores vis de seus emprega-
planos macabros e transformando cidadãos inocentes em cúm- dos, agressores de suas esposas e filhos. Outros, orgulhosamen-
plices daquilo que existe de pior no mundo. O fundo ideológico, te pedófilos. Em suma, o panteão dos ídolos do esquerdismo
nas duas ocasiões, é o mesmo: a inversão revolucionária dos sen- universal era uma galeria de deformidades morais de fazer in-
timentos morais, a imposição do mal em nome do bem. veja à lista de vilões da literatura universal. De fato, não se en-

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Pôsteres da era Gorbachev/Flickr
contrará entre os persona- Por favor, não me enten-
gens de Shakespeare, Bal- dam mal. Há, é claro, um
zac, Dostoiévsti e demais bom número de patifes en-
clássicos nenhum que se tre os escritores e sobretu-
compare, em malícia e do os políticos de direita, e
crueldade, a um Stálin, a os descobriremos facil-
um Hitler ou a um Mao mente se alargarmos o es-
Dzedong. Um dos moti- pectro em exame para
vos da crise permanente abranger os de médio e pe-
do gênero "romance" no queno porte. Mas, numa
século XX foi, precisamen- comparação entre os per-
te, o fato de que a maldade sonagens maximamente
real ultrapassou a imagi- influentes dos dois cam-
nação dos ficcionistas. pos, não é possível deixar
Em contrapartida, os re- de notar a superioridade
presentantes das correntes moral dos direitistas e a au-
opostas, conservadoras ou sência completa de um só
reacionárias, conforme fui tipo moralmente bom en-
descobrindo com ainda tre os esquerdistas: são to-
maior surpresa, eram qua- dos maus, sem exceção.
se invariavelmente seres À medida que fui acu-
humanos de alta qualida- mulando leituras e o co-
de moral, atestada não só nhecimento das biogra-
na idoneidade do seu tra- fias dos autores lidos, não
balho intelectual, onde na- tive mais como escapar
da se encontrará das frau- da conclusão: era impos-
des monstruosas perpetra- sível que o estofo moral
das por um Voltaire, um desses dois grupos não se
Diderot ou um Karl Marx, refletisse de algum modo
mas também nas circuns- nas suas ideias. Ideias,
tâncias do cotidiano e nos afinal, não são formas
testes mais rigorosos da platônicas pairando em
existência. Dificilmente se abstrato na eternidade.
encontrará algum capítulo São atos da inteligência
vergonhoso na biografia humana, são reações de
de Pascal, de Leibniz, de Bossuet, de Donoso Cortés, de Joseph de pessoas de carne e osso a situações concretas e são também ex-
Maistre, de John Henry Newman, de Edmund Burke, de Vladi- pressões de seus desejos, temores e ambições.
mir Soloviev, de Nikolai Berdiaev, de Alexis de Tocqueville, de Havia, por outro lado, o teste evangélico: os frutos. As ideias
Edmund Husserl, de Ludwig von Mises, de Benjamin Disraeli, de dos grandes gurus revolucionários não tinham produzido por
Russel Kirk, de Xavier Zubiri, de Louis Lavelle, de Garrigou-La- toda parte senão devastação e morte em proporções jamais vis-
grange, de Joseph Maréchal, de Victor Frankl, de Marcel De Corte tas ao longo de toda a História anterior e nem de longe com-
e de tantos outros. Ao contrário, essas vidas transbordavam de paráveis a qualquer malefício que pudesse algum dia ter resul-
exemplos de grandeza, generosidade, coragem e humildade. E tado das ideias conservadoras. Só a Revolução Francesa matou
mesmo aqueles que reconhecidamente pecaram, como Dos- em um ano dez vezes mais gente do que a Inquisição Espanho-
toiévski, Winston Churchill, Charles de Gaule, Ronald Reagan ou la em quatro séculos. Feitas as contas – e, ad argumentandum,
Maurice Barrès, jamais ostentaram orgulho disso como um Rous- até mesmo excluindo o nazismo da tradição revolucionária a
seau ou um Brecht, nem muito menos trataram de encobrir suas que ele inequivocamente pertence –, os regimes inspirados nas
vergonhas com uma engenhosa teia de mentiras autolisonjeiras ideias desses gurus superaram, em número absoluto de víti-
como o fizeram Voltaire e Diderot. Para levar a comparação até mas, não só o total dos morticínios anteriormente ocorridos em
suas últimas consequências, até os mais notórios ditadores rea- todas as civilizações conhecidas, mas também as taxas de óbi-
cionários, Franco, Salazar e Pinochet, com todos os crimes polí- tos registradas em todas as epidemias, terremotos e furacões
ticos que cometeram, mantiveram em suas vidas pessoais um pa- do século XX. Mesmo considerado só do ponto de vista quan-
drão de moralidade incomparavelmente mais elevado que o dos titativo, o "ideal revolucionário", enfim, foi o maior flagelo que
tiranos revolucionários. Pelo menos não mandavam matar seus já se abateu sobre a espécie humana. Mesmo que olhássemos
mais próximos amigos e companheiros de luta, como Stalin, Hi- os pensadores reacionários só pelo mal que possam ter provo-
tler e Fidel Castro, nem estupravam garotas menores de idade co- cado voluntária ou involuntariamente, seus feitos, no conjun-
mo o fazia Mao Dzedong. to, não poderiam jamais competir, nem de longe, com essa ple-

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tora cósmica do sangrento e do macabro que é o curriculum vi- além da história material: o nexo unificador da História estava na
tae dos mestres da revolução. Meta-História. Por baixo da narrativa espiritual, porém, desen-
Se ideias nascidas de almas disformes proliferaram em con- rolava-se a história social, política e econômica da humanidade.
sequências nefastas, seria absolutamente imbecil teimar em Essa história adquiria algum sentido na medida em que se arti-
ver nisso um mero acúmulo de coincidências, que teria de ser culava, ainda que de maneira ambígua e problemática, com a his-
ele próprio a coincidência das coincidências, o mais inexplicá- tória da redenção. Mas, considerada em si mesma e isoladamen-
vel mistério da História humana. te, não tinha forma, unidade nem sentido: era a sucessão caótica
É claro que não tem sentido refutar ideias alegando a má qua- dos impérios e das castas, dos esforços e derrotas, dos sofrimentos
lidade humana de seus autores. Elas têm de ser examinadas em e desvarios da humanidade na sua luta interminável pelo pão,
si mesmas e submetidas ao teste da realidade, não da moral. Mas pelo abrigo, pela segurança e, sobretudo, pelo poder.
também não tem sentido confundir o exame crítico da consis- Essa ausência de unidade é um fato empiricamente compro-
tência e veracidade fática das ideias com a compreensão do seu vável: civilizações inteiras nasceram, cresceram e morreram sem
significado histórico, do papel que exercem no desenrolar dos ter qualquer contato entre si, deixando vestígios que só vieram a
acontecimentos. Neste último caso, a simples afirmação em si ser desenterrados depois de milênios, saltando sobre muitas ci-
mesma óbvia de que as más intenções de homens perversos pro- vilizações e culturas intermediárias. Ademais, a continuidade
duzem geralmente efeitos malignos é amplamente confirmada histórica não acompanha automaticamente a sucessão biológica
pelos exemplos citados, e essa confirmação pouco ou nada tem a das gerações. Depende da transmissão cultural, que é tênue em si
ver, logicamente, com o problema de se essas intenções se rea- mesma e frequentemente interrompida pelas guerras, pelas in-
lizaram por meio de erros filosófico-científicos vasões, pelas catástrofes naturais e pelo simples
ou de verdades colocadas a serviço do mal. Dito esquecimento. O fio da história puramente hu-
de outro modo, a condenação radical que as mana não é contínuo: é escandido pela morte.
obras desses homens merecem desde o ponto de Daí que, até hoje, todas as tentativas de "filosofia
vista moral é independente da crítica lógica da da história", ambicionando reunir numa visão
veracidade ou falsidade parcial ou total das suas unificada e num sentido de totalidade o conjunto
teorias, e esta é independente daquela. Estou da experiência humana na Terra, tenham falhado
avisando isto porque sei que infalivelmente
De tudo o que estudei a miseravelmente. Chega a ser tragicômico que o
aparecerão os espertinhos de sempre, alegando respeito, a conclusão é reconhecimento desse fracasso, na segunda me-
que estou refutando teorias por meio de argu- inevitável: Agostinho tade do século XX, tenha provocado tanto estu-
mentos ad hominem – alegação que passa longe tinha uma visão muito por e desespero. Agostinho, no século V, já havia
do assunto que estou discutindo aqui. mais realista do processo demonstrado que toda visão totalizante da His-
Mas, por outro lado, tudo isso não quer di- tória material está condenada de antemão, no
zer que, fora de qualquer intenção de julga-
histórico do que Vico, mínimo porque a História ainda não acabou e
mento moral, aquelas ideias já não tenham si- Hegel, Karl Marx, ninguém, de dentro dela, pode enxergá-la como
do bastante examinadas desde o ponto de vista Comte e tutti quanti. um todo ou fechá-la num esquema lógico acaba-
lógico-crítico, nem que tenham se saído muito do. Cada novo "fim da História", anunciado or-
bem no exame. Teorias como o "contrato so- gulhosamente pelos filósofos, é só mais um capí-
cial" de Rousseau, a "mais-valia" de Marx, a "consciência pos- tulo da História que prossegue e o desmente. De tudo o que es-
sível" de Lukács, a "personalidade autoritária" de Max tudei a respeito, a conclusão é inevitável: Agostinho tinha uma
Horkheimer, etc., já viraram poeira atômica no laboratório crí- visão muito mais realista do processo histórico do que Vico, He-
tico e hoje só sobrevivem como capítulos exemplares na his- gel, Karl Marx, Comte e tutti quanti. Se descontarmos algumas
tória da pseudociência universal. Não é preciso nenhum argu- obras mais recentes que beberam abundantemente em Agosti-
mento ad hominem para dar cabo do que já está morto. nho (por exemplo as de Christopher Dawson e Eric Voegelin), A
O que é quase inevitável é que a visão de tamanha miséria in- Cidade de Deus ainda é o melhor livro de filosofia da História.
telectual somada à baixeza moral das intenções e à natureza ca- Aconteceu que, entre os séculos XIV e XVII, o surgimento dos
tastrófica dos efeitos acabe por suscitar a pergunta: Como foi pos- impérios nacionais rompeu o equilíbrio medieval e espalhou por
sível que ideias tão inconsistentes, tão maldosas e tão desastradas toda parte a ambição dos ganhos fáceis, a corrupção, a imorali-
tenham adquirido a autoridade moral de que ainda desfrutam dade, as guerras, o banditismo e a desordem. Desesperados, e im-
nos setores nominalmente mais cultos da população? buídos do que lhes parecia a melhor das intenções, vários mon-
A resposta é longa e só posso aqui fornecê-la em abreviatura. ges, pregadores e teólogos acharam que estava na hora de acabar
A origem do fenômeno remonta à mutação do senso histórico com a bagunça e implantar, à força, o reino de Deus na Terra. No-
sobrevinda por ocasião das revoluções messiânicas das quais fa- tem que a própria Igreja nunca tivera ambição tão alta, limitando-
lei no artigo anterior. Até então a estrutura do tempo histórico era se a cultivar os jardins da Cidade de Deus no meio da confusão e
geralmente compreendida, no Ocidente, segundo a distinção sofrimento da Cidade dos Homens, dando a Deus o que era de
agostiniana das "duas cidades". Para Agostinho, só a história es- Deus e no máximo fornecendo alguma ajudinha espiritual a Cé-
piritual da humanidade – a história da criação, da queda e da re- sar para que cuidasse do que era de César. A separação dos po-
denção – tinha verdadeira unidade e sentido. Esse sentido, po- deres entre Igreja e Império foi a base mesma do consenso me-
rém, se realizava no Juízo Final, num supratempo localizado para dieval, que se esboroou no instante em que cada pequeno césar

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quis ter seu próprio império e até sua própria igreja. Em resposta xo da "paz eterna" de Kant, do "fim da História" de Hegel, da "de-
ao desmoronamento da ordem cristã, a ambição de muitos líderes mocracia plebiscitária" de Rousseau, da "lei dos três Estados" de
e pensadores religiosos subiu ainda mais alto que a dos césares: Comte, da ideologia cientificista-materialista do "progresso" e, é
acima do emaranhado de novos reinos devia erguer-se, no prazo claro, da teoria marxista da história como luta de classes desti-
mais breve possível, o reino mundial de Cristo, a Nova Ordem nada a desembocar no esplendor do milênio proletário. Mas es-
Mundial, Novus Ordo Seclorum, expressão que remonta a um tar por baixo significa estar invisível. Nenhuma dessas concep-
desses reformadores radicais, o pedagogo João Amos Comenius ções filosóficas examina criticamente o instante perpétuo. Se o
(1592-1670). Entre eles havia sábios e loucos, santos e criminosos, examinasse, veria que era uma bobagem sem par. Ele não é um
organizadores geniais e desorganizadores furibundos. No con- "conteúdo" dessas filosofias: é a premissa inquestionada, into-
junto, sua ação consistiu em tomar nas próprias mãos o chicote da cável, em cima da qual se erguem, inconscientes da sua presen-
Justiça divina e tentar apressar o Juízo Final. E tão longe estava o ça, como castelos construídos sobre um buraco sem fundo.
mundo da perfeição a que aspiravam, que não viram outro meio Assim, toda a vivência moderna do tempo histórico foi de-
de alcançar o seu ideal num prazo aceitável senão pela violência e terminada pela autoridade onipresente e invisível de um ilo-
por uma anarquia ainda mais completa do que aquela contra a gismo cretino. Protegido ao mesmo tempo pelo manto sacral
qual reagiam. A Reforma luterana, sobrevindo no rastro dessa da sua origem religiosa, o mito do apocalipse intratemporal
avalanche, foi no fim das contas o contra-movimento que deteve ganhava ainda mais força por se tornar, através das ideologias
a revolução e permitiu que o cristianismo sobrevivesse em algu- do progresso e da revolução, o instrumento por excelência pa-
mas das áreas onde ele ameçava reduzir-se, com quatro séculos ra destruir a religião estabelecida. Substituída a eternidade pe-
de antecedência, a uma espécie de teologia da libertação, com pa- la imagem hipnótica do instante perpétuo, na mesma medida
dres enfurecidos pregando a revolução permanente e a matança Deus e o Juízo Final já não podiam ser concebidos senão atra-
geral dos ricos. Mas, por toda parte em torno, as sementes da re- vés da expectativa messiânica da "justiça social" a ser implan-
volta continuaram germinando, condensando-se em novas for- tada no mundo por meio do genocídio sistemático.
mulações ideológicas e espoucando aqui e ali em morticínios oca- Foi assim que a ideologia dos mais descarados e brutais se
sionais, até que viesse a explosão maior de 1789 na França. elevou às alturas, não digo de uma religião, mas da própria au-
Toda essa formidável sucessão de efeitos político-sociais, no toridade divina. Essa mudança afetou tão profundamente a
entanto, foi nada em comparação com a marca indelével que o imaginação ocidental, que nem a própria religião escapou da
advento do messianismo deixou na imaginação e na cultura dos sua influência. A confusão entre eternidade e instante perpé-
povos europeus. Num relance, o eixo vertical da História tinha tuo, paramentada como "teologia da História", perpassa todo
virado de cabeça para baixo. A transfiguração geral do mundo, o o pensamento católico que levou ao Concílio Vaticano II e, atra-
advento do reino de Justiça que a Bíblia e Agostinho situavam vés dele, agindo desde dentro em parceria com os inimigos de
num supratempo espiritual para além da História, tinha sido fora, destruiu o que pôde da autoridade da Igreja.
puxado para dentro da História, tornando-se, na imaginação Hoje em dia, bilhões de pessoas no mundo, independente-
dos revolucionários, o capítulo seguinte na sucessão dos tem- mente de suas crenças e ideologias, já não podem conceber o Bem
pos, a ser produzido à força pela ação social e política. Mas o fim senão sob a forma de uma sociedade futura, o pecado senão como
dos tempos, reduzindo-se a uma fração do tempo destinada a oposição ao advento dessa sociedade, a eternidade senão como
passar e desaparecer como qualquer outra, conservava, pelo algum tipo de "justiça social" (as concepções variam) a ser alcan-
conteúdo ideal que a esperança revolucionária nele projetava, o çada no instante perpétuo do século seguinte, do milênio seguin-
prestígio da eternidade. Era como se aquele fragmento especial te ou sabe-se lá quando. Como, porém, os instantes passam e o
do tempo estivesse destinado a congelar-se, a ser arrebatado pa- futuro jamais chega porque con-
ra além do mundo da geração e corrupção, como um quadro que tinua futuro por definição, nin-
fixasse para sempre a imagem do instante. A eternidade en- guém pode olhar para trás e con-
quanto tal, presença simultânea de todos os momentos, como a fessar os pecados e crimes he-
definia Boécio, a eternidade que abarcava o tempo e da qual, se- diondos que cometeu para al-
gundo Agostinho, o tempo constituía a imagem móvel, despa- cançá-lo. O culto invisível do
recera da imaginação ocidental, substituída pela aspiração im- instante perpétuo não apenas
possível do instante perpétuo, cristalizado no ar. absolve por decreto tácito as ma-
Essa mudança foi uma ruptura total e radical da cultura eu- tanças, os genocídios, o horror e
ropéia com a estrutura do tempo, o que vale dizer: com a estru- a desumanidade dos regimes re-
tura da realidade. Precisamente na época em que o progresso volucionários, mas dá a todos os
das ciências naturais começava a fornecer observações e medi- ativistas do mundo a licença pa-
ções mais precisas dos dados materiais em torno, a inteligência ra continuar oprimindo e ma-
se tornava incapaz de articulá-los com a ordem do real. Daí o tando indefinidamente, sempre
contraste patético entre a qualidade crescente da investigação em nome das lindezas hipotéti-
científica e a proliferação de filosofias pueris, montadas em cima cas de um futuro impossível.
de contradições e impossibilidades patentes, e tão pretensiosas Essa é a força, intrinsecamen-
nas suas ambições quanto ingênuas e desprovidas do menor te anti-humana e diabólica, que Diário do Comércio,
senso crítico ao lançar os alicerces de barro de suas construções faz as multidões servirem ao mal 29 de janeiro de 2007
supostamente eternas. O mito do instante perpétuo está por bai- em nome do bem.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 69


A fórmula p
enlouquece a r a
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A
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conteceu fo o de Adam das ideolo se deve pro
mocracia i que o adv Smi- g curar a ca
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dois códig bastante a a de- o seu diag s no século
os. Primeir convivênci Himmelfa nóstico co XX.
o moralism o, elevou a a entre os rb em One m o de Ge
o dos pob té à classe ching Exa Nation , T rtrude
res: na Am d o m inante m in ation of A w o C ultures: A
vemos surg érica do sé termath o merican S Sear-
ir pela prim culo XIX f Our Cult ociety in th
de govern eira vez na ural Revo e Af-
antes que História u Vintage B lution (N
mas regra admitem se ma casta ooks, 199 ew York,
s vigentes r julgados conclusõe 9), podem
e n tr p e la s m s b e m os chegar
século seg e o resto d es- elucidativ a alguma
uinte, as p a populaçã O poeta Ste as. s
sividade n roporções o. No phen Spen
ão só se in se invertem tido Comu der, após ro
que, mas d stala de no : a permis- nista, já ha mper com
aí desce e vo entre a os intelect via admitid o Par-
contamina classe chi- uais ociden o que o qu
que não o o povão. É trárias à p tais à paixã e conduzia
faz por co verdade rópria liber o por ideo
ricana ain mpleto: m dade de q logias con
da se com etade da n sentimento u e desfruta -
preceitos p reende e se a çã o ame- d e culpa e o d vam era o
da Bíblia. julga segu preço. A o esejo de liv
xual" fora Mas os efe ndo os rigem dessa rar-se dele
m profund itos da "re plas faixas culpa resid a baixo
permissiv o s, espalhand v o lu çã o se- d a cla ss e n o fato de q
ismo e o de o por toda zeres e pra e m éd ia passaram u e am-
sexual. O e boche para parte o zeres prati a desfrutar
pisódio Cli m uito além d arcar com a ca m ente ilimit d e la-
to após ter nton, perd a esfera s responsa ados, sem
usado o Sa o a d o pelo Parl re ligiosas co b ilid ades políti te r de
quarto de lão Oval d amen- m que a an cas, milita
motel, mo a Casa Bra moral dos tiga aristocr res e
cela da op stra que, p nca como seus desm acia pagav
inião públi ara uma g tempo em andos sex a o preço
ca, até as a ra nd e par- qu e a França u a is e etílico
dade se to parências ropa, Luís era o país s. Num
rnaram dis de morali XIV tinha mais cristã
estatística pensáveis - n a o da Eu-
s de gravid . Um breve sua rotina da menos
drogas m ez infanto exame das de trabalh de 28 ama
ostra que -juvenil e quer execu o er a mais pes nte s, mas
nos países idêntica tr do uso de tivo de mu ada que a
da Europ a n sformação brilhantem ltin a cional, sem de qual-
dos costum a ocidenta ocorreu ente enfati contar o fa
es já vinha l, o nde a disso É missaire , z a d o por René G to , tão
dial (v. Mo desde o fim lução Paris, Gra irard ( Le B
dris Ekste d a I Guerra tra zia consigo ss et , 1 9 82), de qu o uc
As conseq ins, Rites o Mun- a obrigaçã e a função
uências d f S p ri ng ). p a ra os males n o d e se rvir de bod re al
pliam para essa transf acionais: q e expiatóri
muito além ormação rolou em p uando a ca o
do domín se am- agamento beça de Lu
io "moral" avô, isso n das dívida ís XVI
. Confor- ão foi uma s de seu p
simples cu inovação re ai e de seu
mprimento volucioná
de um aco ria, mas o
rdo tácito v
igente no

70 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


cerne mesmo do sistema monárquico. Já na Idade Mé- cumprimento de deveres penitenciais. A culpa mal
dia, os encargos da defesa territorial incumbiam intei- conscientizada, conforme a psicanálise demonstrou
ramente à classe aristocrática: ninguém podia obrigar vezes sem conta, acaba sempre se exteriorizando co-
um camponês ou comerciante a ir para a guerra, mas o mo fantasia persecutória e acusatória projetada sobre
nobre que fugisse aos seus deveres bélicos seria instan- os outros, sobre "o mundo" sobre "o sistema". O ho-
taneamente executado pelos seus pares. Noblesse mem medianamente instruído do nosso tempo joga
oblige: a classe aristocrática era liberada de parte dos suas culpas sobre "o sistema", fingindo para si mesmo
rigores morais cristãos na mesma medida em que pa- que está revoltado pelo que ele nega aos pobres, quan-
gava pela sua liberdade com a permanente oferta da do na realidade o odeia por aquilo que esse sistema lhe
própria vida em sacrifício pelo bem de todos. A demo- dá sem exigir nada em troca. Não que o sistema seja
cratização da permissividade espalha os direitos da isento de culpas; mas a mesma prosperidade geral que
aristocracia por uma multidão de recém-chegados espalha os benefícios da civilização entre massas cres-
que de repente se veem liberados da pressão religiosa centes que jamais poderiam sonhar com isso nos sécu-
sem ter de assumir por isso nenhum encargo extra, por los anteriores mostra que essas culpas não
mínimo que seja, capaz de restaurar o equilíbrio entre são de ordem econômica, mas cultural: o ca-
direitos e deveres. Ao contrário, junto com a liberdade pitalismo não cria miséria e sim riqueza;
vem o acesso a bens inumeráveis e a um padrão de vi- mas junto com ela espalha o laicismo e o
da que chega mesmo a ser superior ao da velha aris- permissivismo, rompendo o equilíbrio en-
tocracia – tudo isso a leite de pato. Ortega y Gasset no- tre o prazer e o sacrifício, necessidade básica
tou, no seu clássico de 1928, La Rebelión de las Masas , da psique humana. Daí o aparente parado-
que o típico representante da moderna classe média, o xo de que o ódio ao sistema se dissemine A liberação de massas
"homem massa", era realmente um filhinho-de-papai, principalmente – ou exclusivamente – entre imensas de população
um señorito satisfecho que se julgava herdeiro legíti- as classes que dele mais se beneficiam ma- para o desfrute de
mo de todos os benefícios da civilização moderna para terialmente (lembre-se do que eu disse so- prazeres e requintes
os quais não havia contribuído em absolutamente na- bre o movimento gay no artigo da semana
gratuitos é uma das
da, pelos quais não tinha de pagar coisa nenhuma e passada). A tentação socialista aparece aí
dos quais, geralmente, ignorava tudo quanto aos sa- como o canal mais fácil por onde as culpas situações psicológicas
crifícios que os produziram. do filhinho-de-papai são jogadas precisa- mais ameaçadoras já
Por toda parte, nas civilizações anteriores, um certo mente sobre as fontes do seu bem-estar e da vividas pela
equilíbrio entre custo e benefício, entre direitos e de- sua liberdade. Vejam essa meninada da humanidade desde o
veres, entre prazeres e sacrifícios, era reconhecido co- USP, gente de classe média e alta, depredan-
mo o princípio central da sanidade humana. A libera- do uma universidade gratuita, e compreen-
tempo das cavernas.
ção de massas imensas de população para o desfrute derão do que estou falando: o que esses ga-
de prazeres e requintes gratuitos é uma das situações rotos precisam não é de mais benefícios; é
psicológicas mais ameaçadoras já vividas pela huma- de uma cobrança moral que restaure a sua sanidade.
nidade desde o tempo das cavernas. Para cada indiví- Mas, como os representantes do Estado são eles pró-
duo engolfado nesse processo, o efeito mais direto e in- prios señoritos satisfechos que também não compre-
contornável da experiência é um sentimento de culpa endem a origem das suas próprias culpas, sua tendên-
tanto mais profundo e avassalador quanto menos cia é fazer dos jovens enragés um símbolo da sua pró-
conscientizado. Mas como poderia ele ser conscienti- pria consciência moral faltante; daí que lhes cedam tu-
zado, se na mesma medida em que se abrem as portas do, num arremedo de penitência, corrompendo-os e
do prazer se fecham as da consciência religiosa? O se- corrompendo-se cada vez mais e precipitando uma
ñorito satisfecho é corroído por um profundo ódio a si acumulação de culpas que só pode culminar na supre-
mesmo, mas está proibido, pela cultura vigente, de ma culpa da sangueira revolucionária. "Vivemos num
perceber a verdadeira natureza de suas culpas, e mais mundo demente, e sabemos perfeitamente disso", di-
ainda de aliviá-las mediante a confissão religiosa e o zia Jan Huizinga na década de 30, pouco antes que o

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 71


desequilíbrio da alma européia desaguasse no morti- liticamente, ela se revela portadora de muitos signi-
cínio geral. Transcorridas quase oito décadas, a huma- ficados possíveis, alguns contraditórios entre si, que
nidade ocidental nada aprendeu com a experiência e podem corresponder à experiência em graus varia-
está pronta a repeti-la. Hipnotizada pela lógica do de- dos. No Brasil de hoje, todos os "formadores de opi-
sejo, que não enxerga cura para os males senão na bus- nião" mais salientes, sem exceção visível – comen-
ca de mais satisfações e mais liberdade, como poderia taristas de mídia, acadêmicos, políticos, figuras do
ela descobrir que seu problema não é falta de bens ou show business – pensam por figuras de linguagem,
prazeres, mas falta de deveres e sacrifícios que restau- sem a mínima preocupação (ou capacidade) de dis-
rem o sentido da vida e a integridade da alma? tinguir entre a fórmula verbal e os dados da expe-
Não é preciso dizer que a adesão ao Ersatz revo- riência. Impõem seus estados subjetivos ao leitor ou
lucionário e socialista, sendo na base uma farsa neu- ouvinte de maneira direta, sem uma realidade me-
rótica, não alivia as culpas de maneira alguma, mas diadora que possa servir de critério de arbitragem
as recalca ainda mais fundo no inconsciente, onde se entre emissor e receptor da mensagem. A discussão
tornam tanto mais explosivas e letais quanto mais racional fica assim inviabilizada na base, sendo
encobertas por um discurso de autobeatificação substituída pelo mero confronto entre
ideológica (Marilena Chauí sonhava em "viver sem modos de sentir, uma demonstração
culpas"; o sr. Luís Inácio Lula da Silva admite mo- mútua de força psíquica bruta que dá a
destamente ter realizado esse ideal). O ódio ao sis- vitória, quase que necessariamente, ao
tema – com sua expressão mais típica hoje em dia, o lado mais barulhento, histriônico, faná-
anti-americanismo – cresce na medida mesma em tico e intolerante. Como as pessoas pres-
que a ilusão autolisonjeira da pureza de intenções sentem de algum modo que essa situa- Se a definição de
induz cada um a sujar-se cada vez mais na cumpli- ção ameaça descambar para a pura e uma conduta
cidade com a corrupção e os crimes do partido revo- simples troca de insultos, se não de ta- delituosa é vaga e
lucionário. Os capitalistas, os representantes do "sis- pas ou de tiros, o remédio que improvi- imprecisa, a
tema", por sua vez, aceitam passivamente ser objeto sam por mero automatismo é apegar-se
de ódio e até se regozijam nele, na vã esperança de às regras de polidez como símbolo con-
tipificação do crime
assim purgar suas próprias culpas; mas, como estas vencional e sucedâneo da racionalidade correspondente se
não residem onde as aponta o discurso revolucioná- faltante, como se um sujeito declarar torna pura matéria de
rio, cada nova concessão ao clamor esquerdista os calma e educadamente que os gatos são preferência subjetiva
torna ainda mais culpados e vulneráveis. vegetais fosse mais racional do que ber- do juiz ou de pressão
Antecipando as análises de Jones e de Himmel- rar indignado que são animais. O resul-
farb, Igor Caruso ( Psychanalyse pour la Personne , tado é que a linguagem dos debates pú-
política por parte de
Paris, Le Seuil, 1962) localizava a origem das neuro- blicos se torna ainda mais artificiosa e grupos interessados.
ses não na repressão do desejo sexual, mas na rejei- pedante, facilitando o trabalho dos de-
ção dos apelos da consciência moral. O abandono da magogos e manipuladores.
consciência de culpa não pode trazer outro resulta- É um ambiente de alucinação e farsa, no qual só o
do senão a proliferação de culpas inconscientes. E as pior e mais vil pode prevalecer.
culpas inconscientes necessitam de novos e novos O cúmulo da devassidão mental se alcança quan-
bodes expiatórios, cujo sacrifício só as torna ainda do as leis penais passam a ser redigidas dessa manei-
mais angustiantes e intoleráveis. ra. Se a definição de uma conduta delituosa é vaga e
imprecisa, a tipificação do crime correspondente se
Figuras de linguagem torna pura matéria de preferência subjetiva do juiz ou
de pressão política por parte de grupos interessados.
Toda figura de linguagem expressa compacta- Assim, por exemplo, o agitador que pregue aberta-
mente uma impressão sem indicar com clareza o fe- mente a inferioridade da raça negra e o engraçadinho
nômeno objetivo que a suscitou. Decomposta ana- que faça uma piada ocasional sobre negros podem

72 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


ser conde
nados à m
mo". Dua esma pen
s conduta a por deli
veis são n s qualitativ to de "raci
iveladas p amente in s- linguiana
entre delito or baixo: n compará- da "doença
e aparênci ã o há mais d r it u a l" c la espi-
às avessas: a de delito iferença s s if ic a v a
não é preci . É a mulher de id eologias re m as
lo. Basta ca so ser crim César volucioná
ber numa in o so, basta p c o m o p a to lo g ri as
tica que in definição arecê- ia s m e n ta
clui desde ilimitadam em sentid is
lavras até o uso imp ente elás- o estrito, a
a doutrina ensado de ex a g e chei que
ção genoci certas pa- ravam. Ho
"Racismo" da explíci tavam cert je sei que e
é uma figu ta os. s-
ceito rigoro ra de linguag e fe roz.
so corresp em, não u As figura
das. Uma ondente a m con- s de lingu
lei que o cr condutas d são instru agem
qual a just iminalize etermina- mentos in
iça e a inju é u m jogo de v eis não só n d isp ensá-
juízes que stiça são d azar no a comunic
têm a consc istribuída m o na aquisiç açã o co-
iência tran s a esmo, p ão de con
a serviço d quila de est or mento. Q h
a liberdad ar agindo uando nã eci-
dia. Quem e e da dem o sabemo
se der o tr ocracia. É d e c la ra r e x a ta s
mente os v abalho de uma comé m e n te o q
ários senti distinguir - uma coisa ue é
é usada em d os com que a n a litica- , d iz emos a imp Diário do Comércio,
diversos co a palavra "r que ela no ressão
respondem n textos veri a ci sm o" s ca u sa . Todo con 11 de junho de 2007
a conduta ficará que mento com heci-
quais algu s m uito difere e le s co r- eça a ss im. Bened
mas podem ntes entre Croce defi etto
de ser obje ser crimin si, das nia a poesi
to de lei, n o sa s. Estas é q p re ss ã a como "e
ão o saco d ue têm o d e impressõe x-
"racismo". e gatos de mana num s". Toda in
E "homofo n o minado d cursão da
ge desde o bia", então omínio no mente hu-
impulso h ? Seu senti tido "poéti vo e inexp
desde a dis omicida até d o abran- ca ". Começam lorado é, n
cussão cie devoções imaginam os dizendo esse sen-
sológica a ntífica de religiosas, os. É do co o que senti
té a repuls uma class versas, in n fronto de mos e
rícias – tud a espontân ificação no congruen muitas fan
o isso crim ea por certo - coisa, do o te s e opostas q ta si a s di-
redige ess inalizado tipo de ca- bjeto, um ue a realid
as leis são p or igual. Qu dos nosso d ia chega a se a d e da
mo senso d obviamen em cria e s olhos, cl desenhar
e responsa te pessoas nada num ara e disti diante
bilidade p se m o míni- a malha d nta , co mo que ap
lescentes or seus ato dimension e fios ima risio-
embriagad s: são ado- alidade do ginários –
mentes dis os de um e como a tri-
formes e a delírio de tr a ça das numa sp aço que emerg
gosos. Só e ntissociais poder; são superfície e das linh
leitores to , são socio ras e meto plana. Sup as
elevado ess ta lmente lud p a ta s peri- n ím ias, as ana rimir as m
es indivíd ibriados p universalm logias e as etáfo-
dando rea uos à cond odem ter ente uma hipérbole
lidade à fa ição de leg definida, linguagem s, impor
buse" de F n ta sia macab isla d ores, "c ie n tífi ca in teiramente
ritz Lang: ra do "Dou os filósofo ", co mo chega exata,
no hospício a revoluçã tor Ma- s da escola ram a am
para subju o d os loucos, ci dade hum a n a lítica, seria b ic ionar
demência gar a hum tramada ana de inv sufocar a
como regra a n idade sã e ta r a própria e st ig ar e conjetu ca pa-
esteja eu m . E não pen impor a inventivid rar. Seria m
esmo ape se m que ao diz d e dar à ciênci a d e científica so a-
gem, hipe lando a u er isso a plenos p b a desculp
rbolizand ma figura "p ré -científica o d e re s sobre as m a
sobre eles. o os fatos de lingua s" de conh odalidade
A incapaci para cham - M e ci m s
dade de dis ar a atençã a s, inversa e nto.
literal e fig tinguir en o numa tra mente, en
urado, a p tre m carcerar a
linguagem e rd a da funçã se n tido a in deslindáv mente hu
, a redução o denomin gem rebe el de figu mana
ção e sedu d a fala a um a ti v a da ld e s a to d ras de lin
ção sem sa jogo de in pressões a a n álise, imp g u a-
são sintom tisfações a timida- emotivas or o jogo
as psiquiá p restar à re ra cional, faz c o m o substituto d e im-
tomei con tricos cara alidade, er de simb da discuss
hecimento ct erísticos. Q d e cisões prá o li sm os nebulo ão
ciais elabo dos diagn uando ticas que a sos a base
rados pelo ósticos po é um crim fetarão m d e
le H. Ross s psiquiatr lítico-so- e ainda m ilhões de
iter, Jr., qu as Joseph h u m a is g ra v pessoas,
e indo além Gabel e Ly ana; é escra e contra a
da concep - vizar toda inteligênci
ção schel- rias – à co uma socie a
nfusão in dade – ou
tas megalô te ri or de um v á -
manos. grupo de
psicopa-

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 73


Afinal, lutamos

H á quase oitenta anos o movimento revo-


lucionário conseguiu definir o objetivo
unificado dos seus esforços, o que desde
então lhe permite obter sucesso crescente
em ações estratégicas de escala mundial, passando por
cima de suas inumeráveis divergências internas e até
utilizando-as proveitosamente como instrumentos de
nessa direção e o que quer que esteja por perto será
atingido pelo disparo. Símbolos existem precisa-
mente para unificar os contrários: se você quer des-
truir a civilização ocidental, pode confortavelmente
acusá-la de materialismo cientificista ou de teocra-
tismo cristão, de expansionismo imperialista ou de
autodissolução decadentista, de libertinismo obsce-
camuflagem ou de adaptação à variedade das circuns- no ou de moralismo repressor. No mundo dos sím-
tâncias. Esse objetivo – destruir a civilização do Oci- bolos, como já notava o lobo da fábula, a água do rio
dente – foi delineado de maneira simultânea por três corre nas duas direções.
fontes independentes: o filósofo marxista húngaro Longe de mim a intenção de sugerir que o movi-
Georg Lukacs, o líder comunista italiano Antonio mento revolucionário esteja investindo contra moi-
Gramsci e os cientistas sociais da Escola de Frankfurt. nhos de vento. Ao contrário, quando se trata de di-
À medida que essas vozes se afirmavam como as rigir movimentos de massa e coordenar uma multi-
mais influentes sobre a intelectualidade esquerdista, plicidade de forças em combate, o símbolo é um guia
a consciência do objetivo se disseminava por todos os mais eficiente para a ação do que os mais elaborados
ramos do movimento revolucionário, preparando as conceitos científicos. Estes, por sua própria natureza,
grandes guerras culturais de agressão que eclodi- só podem apreender frações abstrativas da experiên-
riam a partir da década de 60 e que, indiferentes à cia, não a realidade concreta. O símbolo, justamente
queda da URSS, prosseguem até hoje com intensida- por sintetizar aspectos contraditórios, dirige o olhar
de crescente, alcançando vitórias cada vez mais de- no rumo certo, identificando o alvo real mesmo quan-
vastadoras, entre as quais a conquista de praticamen- do não se tem dele uma compreensão conceitual cla-
te todo o establishment cultural, midiático e univer- ra, o que é precisamente o caso: a intelligentzia revo-
sitário norte-americano, a imposição de normas "po- lucionária não é capaz de dizer nada de coerente ou
liticamente corretas" ao vocabulário dos debates valioso quanto à civilização ocidental (ao contrário,

públicos em toda parte e a destruição das defesas cul- os escritos esquerdistas borbulham de idiotices a esse
turais de quase todas as nações europeias, colocando- respeito), mas consegue perfeitamente enxergar on-
as de joelhos ante a prepotência do inimigo. Em todos de ela está e quais os pontos vulneráveis onde pode
esses casos, o símbolo unificante por trás das forças atingi-la com seus ataques. A entidade contra a qual
prodigiosamente variadas utilizadas no ataque é se voltam é opaca e intelectualmente inapreensível,
sempre o mesmo: o ódio comum à civilização do Oci- mas é real e presente o bastante para sentir a dureza
dente permite que os mais empedernidos machistas dos golpes que a atingem.
islâmicos marchem, nas ruas de Nova York e Paris, de Tão abrangente é a força unificadora do símbolo
mãos dadas com militantes "gayzistas", feministas e por trás da multiplicidade dos alvos, que até mesmo
abortistas que nos seus próprios países eles condena- as culpas do próprio movimento revolucionário po-
riam sumariamente à morte. dem ser imputadas à sua vítima, permitindo descar-
O fato de que a civilização odiada não seja um blo- regar sobre ela todo o ódio e o desprezo inconscientes
co homogêneo, mas um amálgama desnorteante- que ele foi acumulando contra si mesmo ao longo de
mente confuso de correntes incompatíveis entre si, sua história de crimes e horrores. Não há um só es-
não perturba em nada os seus detratores nem torna querdista no mundo que se admita moralmente cul-
menos certeira a sua pontaria. "Civilização ociden- pado pelo genocídio soviético, chinês ou cambojano.
tal", tal como eles a entendem, não é um conceito ra- Quanto mais horror essas realidades lhe inspiram,
cionalmente definível, é um símbolo: basta mirar mais monstruoso lhe parece o capitalismo ocidental.

74 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


contra quem?
A imunidade à culpa é um dos traços definidores da
mentalidade revolucionária, mas até o século XX esse
traço só aparece de maneira localizada, limitado a
grupos militantes bem definidos. Foi só a partir dos
anos 60 que ela se disseminou entre massas inteiras
da população, quando a imagem simbólica da vítima
expiatória se tornou universalmente visível: das ca-
vernas da Al-Qaeda até os campi universitários da
Califórnia, do alto comando dos organismos interna-
cionais até os bas-fonds dos clubes de sadomasoquis-
mo, odiar o Ocidente é o salvo-conduto que garante a
liberdade ilimitada de pecar e delinquir sem culpas.
Canalizando contra esse alvo simbólico todas as
culpas e ressentimentos da humanidade, o movi-
mento revolucionário superou as limitações de um
discurso ideológico que só apelava a parcelas espe-
cíficas da população. Erigiu-se em administração
global do ódio psicótico organizado. Foi um tremen-
do "salto qualitativo", como diria Mao Dzedong.
Acompanhado da substituição da antiga estrutura
partidária hierárquica pela nova organização flexí-
vel em "redes", ele aumentou a força de agressão psi-
cológica do movimento ao ponto de torná-lo imune
à revelação de seus crimes e de seus mais escanda-
losos fracassos no campo econômico-social.

Não deixa de ser interessante observar que esse


feito foi obra póstuma de pensadores que, em vida,
pareciam deslocados das correntes dominantes do
comunismo internacional. Em Moscou e Pequim,
Lukacs, Gramsci e os frankfurtianos permaneceram
longamente ignorados. Foram seus seguidores em
Nova York e Paris que renovaram de alto a baixo o
movimento revolucionário a partir dos anos 60, in-
tegrando na nova perspectiva até mesmo certas cor-
rentes de ressentimento que a velha ortodoxia co-
munista teria desprezado como anárquicas e peque-
no-burguesas, como por exemplo o gayzismo ou o
movimento pela liberação das drogas. Nessa pers-
pectiva, a queda da URSS, longe de poder ser con-
siderada uma derrota, foi mesmo um sacrifício ne-
cessário para o revigoramento geral do organismo
revolucionário. A revolução na revolução, como a
chamou Régis Débray, realizou-se por meios que o

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 75


Mandel Ngan/AFP
rótulo de "populismo" para evitar menções ao bom e
velho marxismo-leninismo, ao qual assim garantem
uma confortável reencarnação sob o manto do ano-
nimato. Alguns fazem isso por ilusão triunfalista,
porque gostam de imaginar que venceram a Guerra
Fria e não podem admitir que travaram no máximo
Outros, como o uma batalha, que a guerra continua em escala maior
próprio George e mais complexa. Outros, como o próprio George W.
Bush, caíram nessa porque foram treinados na esco-
W. Bush,
la "realista" de Hans Morgenthau e, raciocinando
acreditaram ser apenas em termos de poderes estatais, sem avaliar
possível unificar corretamente as linhas de força ideológicas que se
a esquerda superpõem às fronteiras nacionais, acreditaram ser
e a direita possível unificar a esquerda e a direita americanas
num combate patriótico contra um inimigo externo.
num combate
Tornaram-se assim indefesos ante o inimigo interno
contra um que só se fingiu de seu aliado nas primeiras semanas
inimigo externo. depois do 11 de setembro para poder mais facilmen-
te esfaqueá-los pelas costas nos anos que se segui-
ram (v. Kenneth Timmerman, Shadow Warriors.
próprio Débray, na ocasião, não podia imaginar. The Untold Story of Traitors, Saboteurs, and The
Mas o que é mais importante observar, nessa or- Party of Surrender, New York, Crown Forum, 2007,
dem de estudos, é que, se a unificação do alvo sim- assim como meu artigo sobre as eleições americanas
bólico foi o princípio do upgrade revolucionário, no Digesto Econômico deste mês). Qualquer que se-
nada de semelhante se observa no campo oposto. ja o caso, o resultado é enfraquecimento e derrota.
Por toda parte, a reação conservadora (no Brasil às Nem menciono, é claro, os antagonismos explícitos
vezes chamada de "liberal") continua dispersa e que corroem a direita por dentro, fazendo de algumas
fragmentária, voltando-se contra alvos parciais e de suas facções instrumentos inconscientemente dó-
contraditórios por trás dos quais não se vislumbra o ceis de uma estratégia adversária que transcende seu
menor sinal de uma identidade, muito menos a ima- horizonte de visão. A cruzada de Pat Buchanan contra
gem radiante de um símbolo unificador. Ao contrá- o livre comércio ou as investidas antirreligiosas do
rio, parece mesmo haver da parte dos conservado- neoateísmo liberal são exemplos claríssimos de con-
res uma recusa ou temor de perceber a face unitária tradições internas que, na ausência de uma imagem
do inimigo sob suas manifestações variadas. Na re- unificada do inimigo a combater, não podem ser ab-
cente "guerra contra o terrorismo", por exemplo, as sorvidas numa estratégia geral e acabam servindo so-
autoridades norte-americanas insistem em apontar mente para debilitar o front conservador.
o radicalismo islâmico como um fenômeno singular Ao longo de muitos artigos e conferências, tenho
e sui generis, não só amputado de suas mais insistido na necessidade urgente de dar à rea-
patentes raízes históricas no movimento co- ção conservadora um alvo unificado, uma
munista que o preparou e gerou ponto por imagem clara do inimigo a combater. Só isso
ponto, mas separado até mesmo das suas co- permitirá absorver numa estratégia abrangen-
nexões atuais com a esquerda mundial e com te e funcional as múltiplas forças díspares que
os governos da China e da Rússia sem cujo se agitam no seio da "direita". Acredito que a
apoio ele não seria nada. Quando falam da noção do "movimento revolucionário", no sen-
América Latina, os políticos de Washington se tido em que a tenho elaborado em persistentes
referem a Hugo Chávez e Evo Morales como se investigações e ilustrado inclusive em artigos
fossem casos excepcionais e isolados, e não pe- publicados nesse jornal, fornece esse alvo uni-
ças integrantes da grande máquina revolucio- ficado e tem ainda a vantagem de não ser so-
nária do Foro de São Paulo. Chegam ao cúmu- mente – como a "civilização ocidental" dos re-
lo de imaginar que Lula – o próprio idealiza- volucionários – o símbolo nebuloso de uma
dor e fundador do Foro – seja a melhor "alter- realidade opaca, mas uma estrutura perfeita-
nativa democrática" contra os planos de mente identificável em termos intelectual-
dominação continental do ditador venezuela- mente rigorosos.
no. E, fazendo-se propositadamente cegos an- Só temo que meus esforços nesse sentido ve-
te a perfeita continuidade entre comunismo e Diário do Comércio, nham a ser tão bem aproveitados quanto o fo-
chavismo, mil vezes reafirmada pelas próprias 11 de fevereiro de 2008 ram, no Brasil, as advertências que publiquei
assembleias do Foro de São Paulo, apelam ao quanto ao Foro de São Paulo.

76 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


URSS,
a mãe
do nazismo

S Se você acha que comunistas, socialistas e


marxistas acadêmicos são pessoas normais e
respeitáveis, com as quais é possível um "diá-
logo democrático", por favor vá ao site
http://www.sovietstory.com/about-the-film, ou di-
retamente a http://www.youtube.com/wat-
ch?v=xqGkj-6iF2I&feature=PlayList&p=
26731056B15AF3E1&index=0&playnext=1 e veja o fil-
me The Soviet Story, que o cientista político Edvins
Snore escreveu e dirigiu baseado em documentos re-
cém-desencavados dos arquivos soviéticos. Eis algu-
mas coisinhas que você pode aprender com ele:

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 77


1) Toda a tecnologia genocida dos campos soas igualmente dignas e capacitadas, separa-
de concentração foi inventada pelos so- das tão-somente pelo conteúdo das suas
viéticos. Os nazistas enviaram comis- respectivas convicções e propostas. Con-
sões a Moscou para estudá-la e copiar fiantes nessa norma de polidez e aceitan-
o modelo. do-a como tradução da realidade, os
2) O governo da URSS assinou conservadores, liberais clássicos, so-
com os nazistas um tratado para o cial-democratas e similares caem no
extermínio dos judeus e cumpriu erro medonho de tentar um confronto
sua parte no acordo, entre outras com os revolucionários no campo do
coisas enviando de volta à Gestapo diálogo racional.
os judeus que, iludidos pelas pro- Todos os seus esforços persuasivos
messas do paraíso comunista, busca- dirigem-se, então, no sentido de tentar
vam asilo no território soviético. modificar o "conteúdo" das crenças do in-
3) A ajuda soviética à máquina de terlocutor, mostrando-lhe, por exemplo,
guerra nazista foi muito maior do que se que o capitalismo é mais eficiente do que o so-
imaginava até agora. O nazismo jamais teria cialismo, que a economia de mercado é indispen-
crescido às proporções de uma ameaça inter- sável à manutenção das liberdades individuais,
nacional sem as armas, a assistência técnica, os ou mesmo entrando com eles em discussões mo-
alimentos e o dinheiro que a URSS enviou a Hi- rais e teológicas mais complexas. Tudo isso não
tler desde muito antes do Pacto Ribbentrop- apenas é uma formidável perda de tempo, mas é
Molotov de 1939. mesmo um empreendimento perigoso, que co-
4) Altos funcionários do governo soviético loca o defensor da democracia numa posição ex-
defendiam – e os remanescentes defendem tremamente fragilizada e vulnerável. A discus-
ainda – a tese de que fortalecer o nazismo foi são democrática racional não somente é inviável
uma medida justa e necessária adotada por com indivíduos afetados de mentalidade revolu-
Stálin para combater o "fascismo judeu" (sic). cionária, mas expõe o democrata a uma luta de-
5) Nada disso foi um desvio acidental de sigual, desonesta, impossível de vencer. O deba-
ideias inocentes, mas a aplicação exata e rigo- te com a mentalidade revolucionária é o equiva-
rosa das doutrinas de Marx e Lenin que advo- lente retórico da guerra assimétrica.
gavam o genocídio como prática indispensá- Trinta anos de estudos sobre a mentalida-
vel à vitória do socialismo. de revolucionária me convenceram de que
Todo militante ou simpatizante comunista é ela não é a adesão a este ou àquele corpo de
cúmplice moral de genocídio, tem as mãos tão convicções e propostas concretas, mas a
sujas quanto as de qualquer nazista, deve ser de- aquisição de certos cacoetes lógico-formais
nunciado em público e excluído da convivência incapacitantes que acabam por tornar im-
com pessoas decentes. A alegação de ignorância, A mentalidade possível, para o indivíduo deles afetado, a
com que ainda podem tentar se eximir de culpas, revolucionária não percepção de certos setores básicos da expe-
é tão aceitável da parte deles quanto o foi da parte é um conjunto de riência humana. A mentalidade revolucio-
dos réus de Nuremberg. É uma vergonha para a crenças, é um sistema nária não é um conjunto de crenças, é um sis-
humanidade inteira que crimes desse porte não tema de incapacidades adquiridas, que co-
de incapacidades
tenham jamais sido julgados, que seus perpetra- meçam com um escotoma intelectual e cul-
dores continuem posando no cenário internacio- adquiridas, que minam numa insensibilidade moral
nal como honrados defensores dos direitos hu- começam com um criminosa. É uma doença mental no sentido
manos, que partidos comunistas continuem escotoma intelectual e mais estrito e clínico do termo, correspon-
atuando livremente, que as ideias marxistas con- culminam numa dente àquilo que o psiquiatra Paul Sérieux
tinuem sendo ensinadas como tesouros do pen- descrevia como delírio de interpretação.
insensibilidade moral
samento mundial e não como as aberrações psi- Numa discussão com o homem normal, o re-
cóticas que indiscutivelmente são. É uma vergo- criminosa. volucionário está protegido pela sua própria
nha que intelectuais, empresários e políticos libe- incapacidade de compreendê-lo. Os antigos
rais, conservadores, protestantes, católicos e retóricos consideravam que o gênero mais di-
judeus vivam aos afagos com essa gente, às vezes fícil de discurso, chamado por isso mesmo ge-
até rebaixando-se ao ponto de fazer contribui- nus admirabile, é aquele que se dirige ao inter-
ções em dinheiro para suas organizações. locutor incapaz. Os melhores argumentos só
Seguem abaixo algumas considerações sobre podem funcionar ante a plateia que os compre-
esse fenômeno deprimente. A convenção vigen- enda; eles não têm o dom mágico de infundir
te nas nações democráticas trata os porta-vozes capacidade no auditório, nem de curá-lo de
das várias posições políticas como se fossem pes- um handicap adquirido.

78 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


Os sintomas mais graves e constantes da não vê coisas. Ao contrário, sua imaginação é
mentalidade revolucionária são, como já expli- empobrecida e amputada da realidade por um
quei, a inversão do sentido do tempo (o futuro conjunto de esquemas ideais defensivos.
hipotético tomado como garantia da realidade A mentalidade revolucionária é uma inca-
presente), a inversão de sujeito e objeto (camu- pacidade adquirida, é uma privação de auto-
flar o agente, atribuindo a ação a quem a pade- consciência e de percepção. Por isso mesmo, é A maioria dos
ce) e a inversão da responsabilidade moral (vi- inútil discutir o "conteúdo" das ideias revolu- democratas que
venciar os crimes e crueldades do movimento cionárias. Elas estão erradas na própria base conheço é inteiramente
revolucionário como expressões máximas da perceptiva que as origina. Discutir com esse ti-
virtude e da santidade). Esses traços permane- po de doente é reforçar a ilusão psicótica de que
indefesa em face da
cem constantes na mentalidade revolucionária ele é normal. Uma doença mental não pode ser prepotência
ao longo de todas as mutações do conteúdo po- curada por um "ataque lógico" aos delírios que psicológica do discurso
lítico do seu discurso, e é claro que qualquer al- a manifestam. Se o debate político nas demo- revolucionário. Daí a
ma humana na qual eles tenham se instalado cracias sempre acaba mais cedo ou mais tarde
hesitação, a
como condutas cognitivas permanentes está favorecendo as correntes revolucionárias é
gravemente enferma. porque estas estão imunizadas por uma inca- pusilanimidade, a
Tratá-la como se estivesse normal, admitin- pacidade estrutural de perceber a realidade e debilidade crônica de
do a legitimidade da sua atitude e rejeitando entram no ringue com a força inexorável de suas respostas ao
tão somente este ou aquele conteúdo das suas uma paixão cega. E não se pode confundir nem desafio revolucionário.
ideias, é conformar-se em representar um pa- mesmo este fenômeno com o do simples fana-
pel numa farsa psicótica da qual os dados da tismo. Fanatismo é apenas apego exagerado a
realidade estão excluídos a priori, já não cons- ideias que em si mesmas podem ser bastante
tituindo uma autoridade a que se possa apelar razoáveis. Em geral, mesmo o mais louco dos
no curso do debate. revolucionários não é um fanático. É um sujei-
Revolucionários são doentes mentais. Os to que expressa com total serenidade os sinto-
exemplos de sua incapacidade para lidar com a mas da sua deformidade, dando a impressão
realidade como pessoas maduras e normais de normalidade e equilíbrio justamente quan-
são tantos e tão gigantescos que seu mostruário do está mais possuído pelo delírio psicótico.
não tem mais fim. Cito um dentre milhares. O Na peça de Pirandello, Henrique IV, um mi-
sentimento de estar constantemente exposto à lionário louco se convence de que é o rei Hen-
violência e à perseguição por parte da "direita" rique IV e força todos os seus empregados a
é um dos elementos mais fortes que compõem vestir-se como membros da corte. No fim eles
a autoimagem e o senso de unidade da militân- já não têm mais certeza de que são eles mesmos
cia esquerdista. No entanto, se somarmos to- ou membros da corte de Henrique IV. É este o
dos os ataques sofridos pelos esquerdistas des- perigo a que os democratas se expõem quando
de a "direita", eles são em número irrisório aceitam discutir respeitosamente as ideias do
comparados aos que os esquerdistas sofreram revolucionário, em vez de denunciar a farsa es-
dos regimes e governos que eles próprios cria- trutural da própria situação de debate. A lou-
ram. Ninguém no mundo perseguiu, prendeu, cura espalha-se como um vírus de computa-
torturou e matou tantos comunistas quanto Le- dor. A maioria dos democratas que conheço é
nin, Stálin, Mao Tsé Tung, Pol Pot e Fidel Cas- inteiramente indefesa em face da prepotência
tro. A militância esquerdista sente-se perma- psicológica do discurso revolucionário. Daí a
nentemente cercada de perigos, e nunca, nun- hesitação, a pusilanimidade, a debilidade crô-
ca percebe que eles vêm dela própria e não de nica de suas respostas ao desafio revolucioná-
seus supostos "inimigos de classe". Esse traço é rio. Uma doença mental não pode ser "respei-
tão evidentemente paranóico que só ele, isola- tada", aliás nem "desrespeitada". O respeito ou
do, já bastaria para mostrar a inviabilidade do o desrespeito supõem um fundo de convivên-
debate racional com essas pessoas. cia normal, que justamente o delírio revolucio-
O que separa o democrata do revolucionário nário torna impossível.
não são crenças políticas. É um abismo intrans-
ponível, como aquele que isola num mundo à P. S. Sheila Figlarz, editora do jornal Visão
parte o psicótico clinicamente diagnosticado. Judaica, avisa que finalmente a devotada estu-
O que pode nos manter na ilusão de que essas diosa Sonia Bloomfield terminou seu trabalho
pessoas são normais é aquilo que assinalava o de traduzir para o português a página do Me-
Dr. Paul Serieux: ao contrário dos demais qua- morial do Holocausto. A versão já está no ar em Diário do Comércio,
dros psicóticos, o delírio de interpretação não http://www.ushmm.org/museum/ exhi- 12 de dezembro de 2008
inclui distúrbios sensoriais. O revolucionário bit/focus/portuguese/.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 79


COMUNISMO E MARXISMO

Excesso de
delicadeza
A
Orlando Kissner/AFP

inda há quem seja acha que a conduta do PT


otário o bastante prova uma mudança da
para, observando mentalidade comunista, é
a fidelidade con- porque imagina que os co-
jugal que no fim das contas munistas de antigamente
reina entre o governo petista eram diferentes, eram puros
e os banqueiros internacio- idealistas revolucionários
nais, concluir que os comu- que jamais se rebaixariam a
nistas mudaram, se abur- jogar o jogo do grande capi-
guesaram, só pensam em di- tal financeiro. Então me diga:
nheiro e não querem mais sa- Quem eram os contatos de
ber de revoluções. Trotski nos EUA quando de
Não contesto o direito à sua primeira viagem à Amé-
ignorância, mesmo radical e rica? Quem financiou a cons-
completa. Mas por que raios trução de toda a indústria pe-
cada um que me aparece sada soviética, prolongando
com essa ideia cretina tem de por décadas a sobrevida de
expressá-la com ar de sabe- um regime impossível que já
doria paternal, como se esti- nascera moribundo? Quem
vesse desvelando a realida- alimenta de dinheiro toda a
de do mundo ante a minha esquerda americana e uma
inexperiência juvenil? infinidadade de movimen-
Aos sessenta anos, boa tos antiamericanos no mun-
parte dos quais dedicados do inteiro? Quem salvou da
ao estudo das ideologias re- debacle o Partido Comunis-
volucionárias, não tenho ta chinês, fomentando do ex-
mais a obrigação de ouvir terior a recuperação de uma
polidamente essa patacoa- economia que até então só
da arrogante. Respondê-la crescia em número de mor-
com palavrões já é delicade- tes por desnutrição?
za excessiva da minha par- Luís Inácio Lula da Silva: homenageado Se os comunistas deixas-
te. O certo mesmo seriam simultaneamente em Davos e no Foro de São Paulo. sem de ser comunistas cada
pontapés no traseiro. vez que vão para um motel
Quem quer que tenha es- trocar afagos com banquei-
tudado a história do movi- ros, Lênin teria entrado para
mento revolucionário sabe que comunistas e banqueiros vivem a História como comandante do Exército da Salvação.
em simbiose, comprovadamente, desde há pelo menos um sé- O caso de amor entre esses dois tipos de criaturas aparente-
culo. Como no Brasil ninguém estuda nada, cada um se crê no mente incompatíveis tornou-se ainda mais intenso desde que,
direito de anunciar como novidades explosivas as obviedades na década de 20, os teóricos marxistas mais avisados – Georg Lu-
centenárias que acabam de lhe chegar aos ouvidos. kacs, os frankfurtianos e Antonio Gramsci – saíram gritando
O problema é que, quando você não sabe a data das notícias que o inimigo primordial a ser destruído não era a economia ca-
que alardeia, não pode compreender o sentido delas. Se você pitalista, mas "a civilização judaico-cristã". O programa traçado

80 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


por eles, que na época parecia distante das preocupações ime- ga que a perseguição antirreligiosa é a realização de um velho pla-
diatas do militante comunista vulgar (e até agora não chegou ao no comunista será tido por louco. Perdão: isso não acontecerá
conhecimento dos idiotas acima referidos), está hoje sendo apli- dentro de alguns anos. Já está acontecendo agora.
cado em escala planetária, e sua implementação acelerada refle- Do ponto de vista econômico, a unidade do processo revolu-
te a colaboração estreita entre o grande capital financeiro e a rede cionário em curso pode ser resumida da seguinte maneira. Pelo
global de organizações comunistas – os dois braços da revolu- menos desde Stálin nenhum economista marxista acredita em es-
ção mundial. Abortismo, desarmamento civil, sex-lib , feminis- tatização total da economia. Todos sabem que um vasto resíduo
mo, gayzismo, criminalização da moral religiosa, controle esta- de economia de mercado é impossível de eliminar. O máximo que
tal da vida privada e tópicos similares são hoje infinitamente se pode fazer, para perseverar na linha de controle estatal conce-
mais importantes para a estratégia revolucionária do que as di- bida por Marx, é concentrar ao máximo o capital e ao mesmo tem-
vergências estereotipadas entre políticas econômicas "populis- po atrelar seus interesses aos de uma elite governante que por sua
tas" e "elitistas" (ou "progressistas" e "neoliberais"). Onde essas vez concentre o máximo de poder político. Ora, quem pode estar
divergências monopolizam o espaço das discussões públicas, mais interessado em concentração do capital do que os concen-
como acontece no Brasil, é precisamente porque tradores de capital por antonomásia, isto é, os
servem para camuflar o essencial, para expulsar banqueiros internacionais? E quem pode desejar
da vida pública o conservadorismo genuíno mais concentração de poder político do que os
fundado em valores morais e religiosos e para concentradores compulsivos de poder político,
dividir todo o espaço político e cultural entre a isto é, os partidos comunistas? A via da colabo-
esquerda e uma "direita" postiça, criada espe- ração entre comunistas e monopolistas foi por-
cialmente para isso, uma articulada à outra de
Dentro de poucos anos, tanto aberta pelo próprio curso natural das coi-
tal modo que, seja pela via "populista" ou "eli- o sujeito ser preso por sas, e por esse canal vem fluindo a história do
tista", indiferentemente, a mutação revolucio- ler em voz alta certos mundo desde há muitas décadas, ante os olhos
nária do mundo continue avançando. versículos da Bíblia cegos da multidão – incluídos nela quase todos
A pessoa mesma do sr. Luís Inácio Lula da Sil- os "formadores de opinião", consultores empre-
será considerado
va, homenageada simultaneamente em Davos sariais, analistas estratégicos e demais pessoas
por sua conversão à economia de mercado e no a coisa mais natural iluminadas cujos pareceres custam em geral uns
Foro de São Paulo por sua fidelidade inalterável do mundo. dez mil dólares por hora.
ao comunismo, é o símbolo vivo desse acordo es- A fusão tornou-se ainda mais acelerada des-
sencial, mas os tagarelas que falam dela o dia in- de que o movimento comunista, graças ao nar-
teiro, para louvá-la ou para maldizê-la, parece que não enxergam cotráfico, à exploração genial dos fundos de pensão, ao apoio
de maneira alguma a identidade do personagem. Também não dos países árabes, à rede de ONGs ativistas que sugam verbas
enxergam, por isso mesmo, a natureza traiçoeira e cúmplice de de todos os governos do mundo e às quantias mastodônticas
uma "oposição" que só combate o petismo no campo das discus- de dinheiro injetadas discretamente na economia ocidental pe-
sões econômicas e das cobranças moralistas, abstendo-se de toda la KGB desde os tempos de Gorbachov, se tornou ele próprio
crítica ideológica e de toda menção à estratégia comunista maior tão rico quanto a elite bancária, negociando com ela de igual
por trás de tudo; oposição que, uma vez no poder, faz avançar a para igual e tendo com ela uma vasta e nebulosa área de inte-
mutação social e cultural revolucionária em velocidade ainda resses comuns onde se tornam praticamente indiscerníveis.
maior do que poderiam fazê-lo os próprios petistas. As vítimas do processo são a
Não por coincidência, mas por um cálculo psicológico muito economia liberal genuína, os
preciso, cada nova regra "politicamente correta" que se incorpora valores civilizacionais milena-
aos hábitos sociais perde imediatamente sua aparência comunis- res, a liberdade individual e a
ta originária, de modo que os milhões de trouxas submetidos à consciência religiosa, estrangu-
sua jurisdição se sentem cada vez mais distantes do perigo comu- ladas sob controles estatais cada
nista quanto mais se adaptam ao tipo de cultura revolucionária vez mais abrangentes e opressi-
concebido por Lukacs e Gramsci. É precisamente o que este úl- vos, sempre sob as desculpas
timo chamava de "autoridade invisível e onipresente" do Partido edificantes da modernização,
Príncipe. Nunca a palavra "subversão" descreveu tão adequada- do interesse público, da prote-
mente uma estratégia. É a inversão desde baixo, ou, como a cha- ção ambiental, da eficiência ad-
mava Walther Rathenau, a "invasão vertical dos bárbaros". En- ministrativa e – é claro, porca
quanto o poder do grande capital permanece intacto, ou até se for- miséria – dos direitos civis. Mas
talece, a "revolução cultural" vai invertendo um a um todos os cri- a maior vítima de todas é a inte-
térios da razão, da moral, do direito, criando em torno de nós uma ligência humana, que de tanto
infinidade de controles sociais opressivos e absurdos que pare- ser desviada, ludibriada, anes-
cem inventados pessoalmente pela Rainha de Copas. E tudo rea- tesiada, vai perdendo vigor a
lizado de maneira indolor, insensível. Dentro de poucos anos, o cada dia e se adaptando a um es- Diário do Comércio,
sujeito ser preso por ler em voz alta certos versículos da Bíblia será tado crepuscular de obnubila- 17 de setembro de 2007
considerado a coisa mais natural do mundo, e quem quer que di- ção e semiconsciência.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 81


O orvalho vem caindo
S egundo o Asia Times do dia 26, "o
ponto alto da visita do presidente
russo Vladimir Putin a Teerã na se-
mana passada foi o encontro com o
supremo líder iraniano, aiatolá Ali Khamenei.
Uma alta fonte diplomática em Teerã informou
que no essencial, Putin e Khamenei concorda-
sável impulso da administração George Bush
para um ataque preventivo, talvez mesmo tá-
tico-nuclear, contra o Irã. Um ataque ao Irã será
visto por Moscou como um ataque à Rússia ".
Provavelmente o jornal tem razão. A ligação
da Rússia com os radicais islâmicos é muito
mais antiga e sólida do que a amizade fingida
Aiatolá Ali ram num plano destinado a esvaziar o incan- com os americanos. No mínimo, as principais
Khamenei, lideranças revolucionárias muçulmanas não
supremo líder nasceram de nenhum espontaneísmo "funda-
iraniano: mentalista", mas de um longo esforço de pre-
encontro com paração conduzido pela KGB através dos ser-
o presidente viços de inteligência dos países satélites da
Vladimir Putin. União Soviética.
A KGB, hoje FSB, que desde o tempo de
Lênin já mudou de nome uma dúzia de ve-
zes, mas jamais parou de crescer, é a maior,
mais rica e mais poderosa organização de
qualquer tipo que já existiu no mundo, e es-
tá capacitada para criar e implementar
planos de longo prazo que ultrapassam
o horizonte de visão da maioria dos
analistas ocidentais, pelo menos os
que escrevem na grande mídia. Estes
tendem a explicar tudo em função de
causas histórico-sociais anônimas,
ignorando muitas vezes a ação de
grupos e indivíduos de carne e osso
por trás de tudo. A profusão desses
diagnósticos pseudo-eruditos no que
diz respeito ao terrorismo islâmico
tem obscurecido por completo o úni-
co fator agente que tem importância
efetiva: os planos de longo prazo da
KGB para atacar os EUA com mão is-
lâmica e ao mesmo tempo destruir a
odiada "civilização ocidental" atra-
vés de uma guerra cultural empre-
endida habilissimamente, na qual
o próprio horror causado pelas ini-
ciativas bárbaras dos terroristas
islâmicos treinados pela KGB é
usado como pretexto para um
ataque brutal às tradições religio-
sas em geral, sobretudo aquelas
mesmas que são as maiores víti-
mas da violência "islâmica", isto
é, o cristianismo e o judaísmo.
Entre os maiores ex-oficiais
de inteligência soviéticos que
AFP

82 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


rições recentes, em 96 por cento de suas previ-
sões, que incluíam o desmantelamento aparen-
te do Estado soviético e ao mesmo tempo a ex-
pansão ilimitada das ações da KGB no mundo
através do terrorismo islâmico, do narcotráfico,
da ocupação de espaços nos organismos inter-
nacionais e da penetração maciça na mídia eu-
ropeia de modo a torná-la um poderoso instru-
mento para campanhas anti-americanas (v.
New Lies for Old , New York, Dodd, Mead & Co,
1980). Suas análises são convergentes com algu-
mas de Ladislav Bittman, ex-chefe do Departa-
mento de Desinformação do serviço de inteli-
gência tcheco (com missões inclusive no Brasil,
onde foi um dos criadores da lenda da partici-
pação americana no planejamento do golpe de
1964: v. The KGB and Soviet Disinformation ,
Washington, Pergamon-Brassey's, 1985), e
também são coerentes com os fatos colhi-
dos por Vassili Mitrokhin, alto funcioná-
rio que durante dez anos copiou em se-
gredo arquivos da KGB e depois os trans-
portou ao Ocidente, onde foram divul-
gados com a ajuda do historiador
britânico Christopher Andrew em dois li-
vros monumentais ( The Sword and the
Shield. The Mitrokhin Archive and the Secret
History of the KGB , New York, Basic Books,
1999, e sobretudo The World Was Going Our
Way. The KGB and the Battle for the Third World
, id., ibid., 2005). No mesmo sentido vêm os de-
poimentos e análises do coronel Stanislav Lu-
AFP

nev, ex-membro do Diretório de Inteligência do


Estado-Maior russo: "Não tenho dúvidas de
Vladimir Putin, ao que a Rússia esteve por trás de muitos desses
desertaram para o Ocidente, é unânime a afir- visitar a Inglaterra grupos terroristas, financiando-os e equipan-
mação de que todo o radicalismo islâmico nada em 2000, advertiu do-os" (v. Through the Eyes of the Enemy: The
tem de islâmico e é, de alto a baixo, uma criação que o Ocidente Autobiography of Stanislav Lunev , Washing-
da KGB. Um desses oficiais, Ion Mihai Pacepa ( dificilmente ton, Regnery, 1998). Que a Rússia, em tudo isso,
Red Horizons. Chronicles of a Communist Spy escaparia opera em estreita colaboração com a China, é al-
Chief , Washington, Regnery, 1987), relata ter si- de uma guerra go de que não se pode duvidar desde as análises
do um dos orientadores de Yasser Arafat, for- com o Islam. do prof. Alexandr Nemets, ex-membro da Aca-
mado pela KGB para servir de testa-de-ferro demia de Ciências da URSS (v. "Chinese-Rus-
num ataque indireto a Israel e EUA. O general sian Alliance") e sobretudo desde o projeto rus-
Jan Sejna, membro do Comitê Central do Parti- so de uma nova estrutura de poder militar mun-
do Comunista da Tchecoslováquia, testemu- dial a ter como centro de comando a Organiza-
nhou a articulação de terrorismo e narcotráfico ção de Cooperação de Shangai, que reúne
que, preparada pelos soviéticos desde os anos Rússia, China, Cazaquistão, Quirziguistão, Ta-
50, veio a criar todo o cenário de caos e terror em jiquistão e Uzbequistão (v."Sugestão aos bem-
que o mundo vive hoje (v. seu depoimento em pensantes"). Outro refugiado russo, o filósofo
Joseph D. Douglas, Red Cocaine. The Drugging Lev Navrozov, decerto uma das mentes mais
of America and the West , London, Harle, 2nd. brilhantes do universo, vem advertindo repeti-
ed., 1999). Anatoliy Golitsyn, ex-chefe da con- damente quanto à acumulação chinesa de ar-
tra-espionagem antiamericana da KGB, anteci- mas nanotecnológicas, instrumentos por exce-
pou, com base em informações de primeira lência da guerra pós-nuclear, capazes de des-
mão, todos os passos estratégicos da Rússia nas truir em poucas horas as principais cidades
últimas duas décadas, acertando, segundo afe- americanas sem qualquer estado de guerra ex-

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 83


Caren Firouz/Reuters
plícito (v. The Education of Lev Navrozov , New
York, Harper's, 1975, assim como a infinidade
de artigos publicados em http://www.news-
max.com/Navrozov e em www.levnavro-
zov.com). Mas talvez o documento mais elo-
quente de todos seja o livro em que dois oficiais A ligação da Rússia
chineses, com antecedência de dois anos, tra- com os radicais
çam planos meticulosos para a destruição do islâmicos é muito
World Trade Center por meio do choque de dois mais antiga e sólida
aviões e ainda sugerem, como executor prefe- do que a amizade
rencial do plano, o nome de Osama Bin Laden (v. fingida com os
Qiao Liang and Wang Xiangsui, Unrestricted americanos.
Warfare , Beijing, PLA Literature and Arts Pu- Na foto, o presidente
blishing House, 1999). iraniano Mahmoud
É absolutamente impossível que os tagare- Ahmadinejad.
las pomposos da mídia ocidental, com suas es-
peculações sobre "fanatismo religioso", "popu-
lismo" e outras desconversas, entendam me-
lhor o fenômeno do terrorismo internacional
do que essas testemunhas diretas que o viram
nascer na própria fonte.
Infelizmente, no Brasil, como já tenho assina-
lado repetidas vezes, a mídia popular tornou-se então em germe associou a tragédia do 11 de se-
a fornecedora predominante ou única de infor- tembro aos atentados chechenos em Moscou,
mações para as classes cultas, ditas "dominan- como se dissesse: "O terrorismo ameaça a todos
tes", que outrora tinham pelo menos a sabedoria nós." Hoje sabemos, acima de qualquer possi-
de rir da opinião dos jornais (com exceção talvez bilidade de dúvida, que os atentados em Mos-
dos consistentes editoriais do velho Estadão, cou foram uma operação da própria KGB, des-
que tinha a seu serviço estudiosos do porte de tinada a aumentar formidavelmente o poder
um Nicolas Boer) e buscar alimento em fontes do governo central russo, que enquanto isso
mais sérias. Graças a esse fenômeno deprimen- fornecia todo tipo de armas aos terroristas is-
te, a simples sugestão de que os bons e velhos co- lâmicos contra os quais ele mesmo advertia.
munistas soviéticos e chineses estão por trás do Com uma mesma frase, Putin diz uma coisa pa-
terrorismo islâmico soará naturalmente como ra a plateia, outra para os iniciados. É típico da
pura fantasia direitista, talvez até "macartista". linguagem comunista.
Na mente nacional, mesmo "de direita", cha- Para quem estuda o assunto, não há mais co-
vões esquerdistas idiotas, incorporados à lin- mo duvidar de que o terrorismo internacional,
guagem usual da mídia, são mais convincentes com seu irmão siamês, o narcotráfico, não é se-
do que qualquer quantidade de conhecimentos não a realização tardia da opção feita em 1967
e provas. Comparando a total ignorância aí vi- pela KGB, quando um dos seus comandantes,
gente com a pletora de material bibliográfico o general Aleksandr Sakharovski, definiu o no-
existente nos EUA sobre o assunto deste artigo, vo rumo a ser seguido pelo comunismo inter-
torna-se claro que o Brasil, de uma vez por to- nacional: "No mundo de hoje, quando as armas
das, desistiu de entender o mundo real e consen- nucleares tornaram obsoleta a força militar, a
tiu em deixar-se guiar por um grupo de revolu- nossa principal arma deve ser o terrorismo."
cionários cegos e loucos, nos quais confia como Se há indícios eloquentes de que os EUA já
se fossem enviados do Senhor ou no mínimo estão preparando o bombardeio do Irã (v.
idealistas inofensivos. "Bush Budget Plans for Iran Attack") , há pro-
O fato é que Putin, ao visitar a Inglaterra em vas ainda mais abundantes e convincentes de
2000, advertiu que o Ocidente dificilmente es- que algo de muito maior e mais letal vem sendo
caparia de uma guerra com o Islam. Só não in- preparado contra os EUA pela Rússia e pela
formou de que lado a Rússia estaria nesta guer- China. Se os americanos continuam tratando
ra. Todo mundo, então, entendeu suas pala- essas duas ditaduras como se fossem suas alia-
vras como se viessem da boca de um aliado dos das confiáveis, isso só se explica pela tirada
EUA. Mas o sentido invertido da declaração Diário do Comércio, inesquecível do falecido Nikita Kruschev:
torna-se retroativamente patente quando lem- 05 de novembro 2007 "Nós cuspimos na cara deles, e eles acham que
bramos que, na mesma entrevista, o ditador é orvalho caindo."

84 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


SXC

NA L I S TA N a mídia nacional inteira, assim


como no meio universitário e, de
modo geral, entre as camadas
ditas cultas neste País, reina a
certeza inabalável de que o senador americano
Joseph McCarthy foi uma das piores criaturas

A
já nascidas neste planeta, um mentiroso

E G R A D compulsivo, um caluniador desavergonhado e


um perseguidor de inocentes. Crença idêntica

N
vigora nos EUA, mas só entre pessoas que
aprenderam História com filmes de

A
Hollywood. Entre as demais sempre restou

R I
pelo menos a vaga suspeita de que as coisas

HIST Ó não eram bem assim, de que havia realmente


uma perigosa infiltração de agentes soviéticos
no governo americano, de que talvez muitos
deles fossem mesmo aqueles que constavam
das execradas listas de "security risks"
alardeadas pelo senador.
Durante cinquenta anos a aposta numa
dessas duas hipóteses foi uma questão de

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 85


preferência política. Agora não é mais. A 2) Não só havia agentes soviéticos infiltrados
publicação dos códigos Venona finalmente nos altos postos do governo de Washington
decifrados pelo FBI (comunicações secretas desde os anos 30, mas eles eram em número
entre o Kremlin e a embaixada soviética em muito maior do que o próprio McCarthy
Washington) e a abertura temporária dos suspeitava. A influência que exerceram foi tão
arquivos do Comitê Central do PCUS vasta e profunda que chegou a determinar os
eliminaram definitivamente a dúvida. Os rumos da política exterior americana, mediante
primeiros historiadores que tiveram acesso a bem urdidas operações de desinformação, em
esse material ficaram atônitos. Alguns deles episódios tão fundamentais como a Revolução
só deram o braço a torcer após longa Chinesa e a tomada do poder pelos comunistas
hesitação e com indisfarçada má vontade. na Iugoslávia. Nos dois casos, uma enxurrada
Hoje sabemos quem mentiu e quem disse a multilateral de informações falsas induziu o
verdade. E quem mentiu não foi Joseph governo americano a trair seus aliados e a
McCarthy. Foi o establishment político, ajudar seus inimigos, semeando as tempestades
midiático e universitário praticamente que viriam a desabar sobre ele próprio no
inteiro, empenhado em proteger seus período da Guerra Fria.
comunistas de estimação. 3) Entre os suspeitos apontados por
Logo após a publicação de "Venona. McCarthy, invariavelmente apresentados
Decoding Soviet Espionage in America" por pela mídia e consagrados pela ficção histórica
John Earl Haynes e Harvey Klehr em 1999 como vítimas de perseguição injusta, não
(Yale University Press), um primeiro esboço apenas não havia inocentes, mas nenhum
das conclusões incontornáveis (que até deles era sequer um puro militante
Haynes e Klehr hesitavam em tirar) apareceu ideológico: não se tratava de meros
na biografia do senador por Arthur Herman "comunistas", mas de agentes pagos da KGB e
("Joseph McCarthy. Examining the Life and do serviço secreto militar soviético, o GRU.
Legacy of America's Most Hated Senator", Bem sei que a revelação desses fatos não
New York, Free Press, 2000). A reação dos bem mudará em nada a atitude ou o vocabulário das
pensantes foi se apegar aos subterfúgios mais Elianes Catanhedes, Emires Sáderes, Mauros
frágeis e rebuscados para poder continuar Santayanas e Folhas de S. Paulo da vida.
negando o óbvio. Um sumário dessas reações Mesmo que algum editor brasileiro tenha a
quase psicóticas foi apresentado por Haynes e coragem de publicar os livros acima
Klehr em "In Denial. Historians, Communism mencionados, coisa improvável, nada pode
and Espionage" (San Francisco, Encounter obrigar os tagarelas iluminados a lê-los e a
Books, 2003). Agora, com a estreia do livro confrontá-los com suas crenças mais
ansiosamente aguardado de M. Stanton Evans, queridinhas. E é preciso levar sempre em conta
"Blacklisted by History. The Untold Story of aquilo que dizia Goethe: "Muitas pessoas não
Senator Joseph McCarthy and His Fight abdicam do erro porque devem a ele a sua
Against America's Enemies" ( New York , subsistência." Ao confiar seu destino às
Crown-Random, 2007), a fase substantiva do virtudes salvadoras da elite esquerdista, o
debate pode se considerar encerrada. Brasil disse um adeus definitivo ao desejo
Doravante, qualquer insistência na lenda de conhecer. Se não queremos saber nem de
macabra que fazia de McCarthy "um onde surgiu a balela da participação
troglodita no esgoto" deve ser condenada americana no golpe de 1964 (v.
como sintoma de desonestidade visceral ou http://www.olavodecarvalho.
estupidez obstinada. Os fatos revelados por org/semana/sugestao.htm), por que
Evans, com esmagadora abundância de haveremos de corrigir nossa visão fantasiosa da
provas, são os seguintes: própria história americana? Diante dos fatos
1) Os documentos principais que atestavam medonhos que atestam a mendacidade
a infiltração comunista no governo americano ilimitada daqueles que escolhemos como
simplesmente desapareceram dos arquivos nossos professores de moral, reagimos com o
oficiais. São milhares de páginas arrancadas, horror do poeta espanhol ante a "sangre
numa operação criminosa destinada a forjar as derramada" de seu amigo toureiro: "No, yo no
aparências de credibilidade que serviram de quiero verla." Progredimos da burrice
base à demonização do senador Joe McCarthy. endêmica à ignorância irreversível. A sombra
Diário do Comércio, Por ironia, os dados faltantes acabaram sendo que lançamos sobre o passado já começou a
29 de novembro 2007 supridos, em grande parte, pela encobrir o nosso futuro. Logo será tarde demais
documentação soviética. para tentar removê-la.

86 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


A escória
do mundo
Cuanto más alto sube,
baja al suelo."
Frei Luís de León

V ou resumir aqui umas verdades óbvias e bem prova-


das, que uma desprezível convenção politicamente
correta proíbe como indecentes.
Todo comunista, sem exceção, é cúmplice de genocídio, é
um criminoso, um celerado, tanto mais desprovido de cons-
meteram não justificam nenhuma barbaridade que se tenha
feito contra eles na cadeia. Mas justifica que estivessem na ca-
deia, embora tenham ficado lá menos tempo do que mereciam.
E justifica que, surpreendidos em flagrante delito e respon-
dendo à bala, fossem abatidos à bala.
ciência moral quanto mais imbuído da ilusão satânica da sua Mas eles não acham isso. Acham que foi um crime intole-
própria santidade. rável o Estado ter armado uma tocaia para matar o chefe deles,
Nenhum comunista merece consideração, nenhum comu- Carlos Marighela, confessadamente responsável por atenta-
nista é pessoa decente, nenhum comunista é digno de crédito. dos que já tinham feito várias dezenas de vítimas inocentes;
São todos, junto com os nazistas e os terroristas islâmicos, a mas que, ao contrário, foi um ato de elevadíssima justiça a to-
escória da espécie humana. Devemos respeitar seu direito à vida caia que montaram para assassinar diante da mulher e do filho
e à liberdade, como respeitamos o dos cães e das lagartixas, mas pequeno um oficial americano a quem acusavam, sem a míni-
não devemos lhes conceder nada mais que isso. E seu direito à ma prova até hoje, de "dar aulas de tortura".
vida cessa no instante em que atentam contra a vida alheia. Durante a ditadura, muitos direitistas e conservadores ar-
Nos anos 60 e 70, a guerrilha brasileira não foi nenhuma epo- riscaram vida, bens e reputação para defender comunistas, pa-
peia libertária, foi uma extensão local da ditadura cubana que, ra abrigá-los em suas casas, para enviá-los ao exterior antes
àquela altura, já tinha fuzilado pelo menos dezessete mil pes- que a polícia os pegasse. Não há, em toda a história do último
soas e mantinha nos cárceres cem mil prisioneiros políticos si- século, no Brasil ou no mundo, exemplo de comunista que al-
multaneamente, número cinquenta vezes maior que o dos ter- gum dia fizesse o mesmo por um direitista.
roristas que passaram pela cadeia durante o nosso regime mi- Sim, os comunistas são diferentes da humanidade normal.
litar, distribuidos ao longo de duas décadas, nenhum por mais São diferentes porque se acham diferentes. São inferiores por-
de dois anos – e isto num país de população quinze vezes maior que se acham superiores. São a escória porque se acham, como
que a de Cuba. Nossos terroristas recebiam dinheiro, armas e dizia Che Guevara, "o primeiro escalão da espécie humana".
orientação do regime mais repressivo e assassino que já houve Eles têm, no seu próprio entender, o monopólio do direito de
na América Latina, e ainda tinham o cinismo de apregoar que matar. Quando espalham bombas em lugares onde elas inevi-
lutavam pela liberdade. tavelmente atingirão pessoas inocentes, acham que cumprem
Agora que estão no poder, enchem-se de um dever sagrado. Quando você atira no co-
verbas públicas e justificam a comedeira ale- munista armado antes que ele o mate, você é
gando que o Estado lhes deve reparações. O di- um monstro fascista.
nheiro do Estado é do povo brasileiro e o povo Por isso é que acham muito natural receber
brasileiro não lhes deve nada. Eles é que devem indenizações em vez de pagá-las às vítimas de
aos filhos e netos daqueles que suas bombas seus crimes.
aleijaram e seus tiros mataram. Quem pode esperar um debate político ra-
Perguntem aos cidadãos nas ruas: "O senhor, zoável com pessoas de mentalidade tão defor-
a senhora, acham que têm uma dívida a pagar mada, tão manifestamente sociopática?
aos terroristas, pelo simples fato de que a violên- Um comunista honesto, um comunista hon-
cia deles foi vencida pela violência policial? O rado, um comunista bom, um comunista que
senhor, a senhora, acham justo que o Estado lhes por princípio diga a verdade contra o Partido,
arranque impostos para enriquecer aqueles que um comunista que sobreponha aos interesses da
se acham vítimas injustiçadas porque o governo sua maldita revolução o direito de seus adversá-
matou trezentos deles enquanto eles só conse- rios à vida e à liberdade, um comunista sem ódio
guiram, coitadinhos, matar a metade disso?" insano no coração e ambições megalômanas na
Façam uma consulta, façam um plebiscito. cabeça, é uma roda triangular, um elefante com
A nação inteira responderá com o mais elo- Diário do Comércio, asas, uma pedra que fala, um leão que pia em vez
quente NÃO já ouvido no território nacional. 20 de maio de 2008 de rugir e só come alface. Não existiu jamais, não
É claro que os crimes que esses bandidos co- existe hoje, não existirá nunca.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 87


MÍDIA COM MÁSCARA

O diário do passado
P raticamente toda a linguagem do jornalismo político
em circulação hoje em dia foi criada para descrever um
mundo que não existe mais – o mundo do pós-guerra.
As notícias já não podem refletir os fatos porque são
pensadas e escritas segundo esquemas descritivos estreitos
demais para a situação atual. As mudanças ocorridas ao longo
das últimas cinco décadas no quadro internacional são tão gi-
gantescas que escapam ao horizonte de visão do jornalismo –
daí que os fatos mais importantes fiquem fora do noticiário ou
recebam cobertura irrisória, enquanto aparências fúteis mere-
cem atenção desproporcional.
As consequências disso para a alma popular são devastadoras,
principalmente porque aí se introduz um segundo fator compli-
cante: como já não existe propriamente "cultura popular", a ve-
locidade de produção da "indústria cultural" atropelando a cria-
tividade espontânea do povo, o resultado é que a mídia se torna a
fornecedora única dos símbolos e valores com que o cidadão co-
mum se explica a si mesmo e enquadra, como pode, a sua expe-

C
SX
riência pessoal num esboço de visão geral do mundo. A força com
que a mídia influencia a própria estruturação das personalidades
individuais e das relações pessoais é hoje imensurável. Isso quer
dizer que, se essa mídia se aliena da realidade, todos se alienam
com ela. Cada um sente na sua própria vida diária os efeitos di- tavam as ações e
retos de profundas transformações globais, mas, como estas não palavras do gover-
aparecem no debate público, ou aparecem deformadas por este- no de Washington,
reótipos, a equação psicológica que se estabelece é a seguinte: por automaticamente ex-
mais que o cidadão tente amoldar sua visão da realidade ao re- pressando nos termos
corte deformante, buscando uma falsa sensação de segurança no desse mesmo código as
ajustamento à pseudo realidade legitimada pelo consenso midiá- suas posições – e as de seus
tico, setores inteiros da sua experiência pessoal, familiar e grupal respectivos governos - com rela-
permanecem encobertos e inexpressáveis, latejando no escuro co- ção à política americana e, no fim das contas, a tudo o mais.
mo infecções não diagnosticadas. O sentimento de desajuste ex- A doutrina Morgenthau, como veio a ser chamada, é com-
terno e insegurança interna, que até umas décadas atrás era pró- plexa, mas duas de suas características interessam de maneira
prio da adolescência, espalha-se por todas as faixas etárias: não há mais direta ao que estou tentando dizer aqui:
mais pessoas maduras, todos são "teenagers" vacilantes, incapa- 1º. Ela explicava as ações desenroladas no cenário interna-
zes de uma decisão firme, de um raciocínio conclusivo. cional em função de interesses objetivos (materiais ou ideais),
Mas a análise dessas consequências pode ficar para um ou- racionalmente formulados e identificáveis.
tro artigo. Volto aqui às causas da alienação da mídia. 2º. Embora reconhecendo que os Estados nacionais pode-
Dois documentos, a meu ver, ilustram bem o esquema inter- riam no futuro dissolver-se em unidades políticas maiores, ela
pretativo que partir do fim da II Guerra foi adotado mais ou os tratava como agentes principais do processo político mun-
menos uniformemente por toda a mídia do Ocidente para a dial (daí o título do livro).
descrição da política mundial: o livro de Hans J. Morgenthau, As consequências imediatas desse enfoque eram duas:
"Politics Among Nations: The Struggle for Power and Peace", 1ª. A noção de "interesse nacional" tornava-se o conceito
publicado em 1948 pela Alfred A. Knopf, e a Carta da ONU, descritivo fundamental: a política mundial era, em suma, uma
assinada em São Francisco em 25 de junho de 1945. trama de interesses nacionais em concorrência, em conflito, em
O primeiro tornou-se a bíblia do Departamento de Estado colaboração etc.
americano e, por isso mesmo, o código geral com que os po- 2ª. Os agentes supranacionais sem natureza estatal, como os
líticos e os formadores de opinião nos outros países interpre- movimentos revolucionários, as religiões, as mega-empresas

88 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


transnacionais, as dinastias nobiliárquicas ou oligárquicas, submissão perversa de seus altos fins originários aos propósitos
etc. desapareciam do cenário: suas ações tornavam-se invisí- de algum Estado nacional ou organização terrorista. Eles não
veis ou tinham de ser explicadas, bastante artificialmente, co- podem, por isso, entender o Islam, que é por essência e origem
mo expressões camufladas de interesses nacionais. um projeto de Estado mundial, mas que a seus olhos é apenas
Na orientação da política americana, externa e interna, as li- uma "religião", capaz de amoldar-se pacificamente à ordem po-
mitações que daí decorreram foram – e continuam sendo – ca- lítica dos Estados não islâmicos. Muito menos podem compre-
tastróficas: ender o fenômeno do metacapitalismo (v. http://www.olavo-
1ª. No combate ao comunismo, todos os esforços do governo decarvalho.org/semana/040617jt.htm e http://www.olavo-
americano limitaram-se à busca de agentes diretamente contro- decarvalho.org/textos/debate_usp_4.htm).
lados pelo governo soviético, sem nada poder fazer contra o mo- O segundo documento a que me referi, a Carta da ONU,
vimento comunista em si e muito menos contra as suas encarna- criou o código de valores que dá substância moral ao retrato do
ções mais diversificadas e camufladas a partir dos anos 60. A mundo estampado na mídia. Se a mecânica desse mundo é
"New Left", sem ligações formais com o Partido Comunista da descrita como um jogo de interesses nacionais, seu drama hu-
URSS mas sob certos aspectos mais virulenta do que qualquer mano é equacionado em termos de "paz", "direitos humanos",
agente soviético, não só saiu vitoriosa da guerra do Vietnã, mas "tolerância", "progresso econômico e social", "segurança inter-
impôs a quase toda a população americana os novos nacional", "cooperação humanitária", etc., dando vivacidade,
padrões de cultura "politicamente corretos" que hoje movimento e verossimilhança ao quadro da competição entre
bloqueiam qualquer iniciativa séria contra os ini- nações e camuflando automaticamente os esquemas de poder
migos internos e externos do país. supranacionais, dos quais a própria ONU é hoje um dos ins-
2ª. Até hoje o governo americano trumentos mais úteis e contundentes.
está travado por uma autocensura Se, como foi dito acima, as pessoas sentem na sua vida diária
que o impede de reconhecer em voz os efeitos das transformações globais sem poder sequer ex-
alta a realidade da "guerra de civili- pressar em palavras a ligação entre sua experiência imediata e
zações", tendo de explicar suas ações o cenário maior da história, isso se deve sobretudo ao fato de
defensivas mediante o subterfúgio meto- que os agentes que originaram esses processos permanecem
nímico da "guerra contra o terrorismo" ao desconhecidos da multidão: as mudanças de valores, de leis,
mesmo tempo que fortalece o inimigo is- de critérios, que afetam profundamente o destino e até a psi-
lâmico interno no campo da guerra cul- cologia íntima de milhões de criaturas desabam sobre a popu-
tural e vai podando, uma a uma, as raízes lação como se tivessem vindo do céu ou resultassem de fata-
cristãs de onde a sociedade americana lidades históricas impessoais. Não podendo ser rastreadas até
extrai toda a sua força de resistência. nenhum agente nacional-estatal, tornam-se ações sem sujeito,
3ª. A luta de vida e morte entre o misteriosas como decretos da Providência.
interesse nacional americano e os No entanto, a harmonia simultânea com que se lançam em
grupos globalistas que tentam subju- todo o planeta campanhas destinadas a mudar radicalmente
gar a nação aos organismos internacionais os hábitos e valores da população, forçando-a a respeitar o que
é assunto proibido em debates eleitorais, de modo abomina e a abominar o que respeitava até à véspera, basta pa-
que se torna fácil para aqueles grupos camuflar suas ações por ra mostrar, mesmo a quem nada saiba da origem concreta des-
trás do mesmo interesse nacional contra o qual agem incessan- ses empreendimentos, que es-
temente, lançando portanto sobre o país a culpa do mal que lhe sa origem existe e que ela não
fazem (v. o parágrafo final do artigo "Uma nova fachada do Fo- reside em nenhum mistério ce-
ro de São Paulo", DC, 9 de junho de 2008). leste ou lei histórica, mas em
Entre nós, a adoção do conceito de "interesse nacional" como agentes humanos de carne e os-
um fetiche explicativo pela Escola Superior de Guerra faz com so, apenas enormemente po-
que até hoje muitos analistas militares brasileiros sejam inca- derosos, organizados e perse-
pazes de entender o esquema de dominação globalista senão verantes. Esses agentes não são
como instrumento das "grandes nações" – o que quer dizer, em secretos, são apenas discretos,
última análise, dos EUA. embora muitos deles, bastante
Esses erros de perspectiva são retroalimentados pela mídia famosos até, alardeiem seus
mundial, que desde os anos 40 adotou informalmente a doutri- motivos e suas ações em livros
na do Departamento de Estado como chave descritiva da polí- e conferências. É ao passar pela
tica internacional. Não é preciso examinar uma infinidade de malha seletiva da mídia que
jornais e noticiários de rádio e TV para perceber que, embora ta- suas ações se tornam secretas,
garelem obsessivamente sobre "globalização", os jornalistas em no mais das vezes não por ocul-
geral só enxergam a distribuição de poder no mundo através da tação premeditada, mas pelo
sua manifestação visível na forma de Estados nacionais. A re- simples fato de que não se en- Diário do Comércio,
ligião, por exemplo, continua sendo a seus olhos uma força cul- quadram nas categorias des- 08 de agosto de 2008
tural extrapolítica, que só resvala na política por acidente ou por critivas aí reconhecidas.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 89


BURRICE e VIGARICE

Q uando comecei meus estudos,


uns quarenta e cinco anos atrás,
uma de minhas primeiras preo-
cupações foi rastrear a biblio-
grafia das várias disciplinas que me interessa-
vam – especialmente a crítica literária, a filoso- Misto de vigarice,
Quando comecei a dar cursos e conferên-
cias, tive ao meu alcance um terceiro meio de
averiguação do estado de coisas no ambiente
universitário: o nível médio de conhecimentos
com que chegavam às minhas aulas os diplo-
mados e diplomandos das faculdades de le-
fia, a história, a sociologia e a ciência das reli- ignorância pétrea, tras, filosofia, etc. Aí aquilo que de início me pa-
giões – de modo a obter uma visão clara do recera um estado alarmante de miséria mental
fingimento histriônico e
desenvolvimento histórico de cada uma delas tomou as feições de uma catástrofe cultural
e a mapear assim o meu roteiro de leituras pe- delírio psicótico puro e sem precedentes na história do mundo. Não
los dois séculos seguintes, que era o tempo que simples, o arremedo de havia uma única disciplina cuja história eles
eu planejava viver. vida intelectual dominassem, não havia um único problema
Só por uma curiosidade, averiguava de no Brasil de hoje é um que soubessem equacionar como estudiosos
tempos em tempos o currículo de várias uni- profissionais dignos do nome, não havia entre
fenômeno grotesco do
versidades nesses campos, para comparar o eles, em suma, um único universitário no sen-
avanço dos meus estudos solitários com qual não encontro tido real do termo.
aquilo que poderia obter numa dessas vene- paralelo em nenhuma Outros materiais para a avaliação do ensi-
randas instituições. outra época ou nação. no superior brasileiro vinham-me da impren-
Não demorei a perceber que em nenhuma sa dita cultural, especialmente os suplemen-
universidade brasileira eu poderia ter aquela tos do Globo e do Jornal do Brasil, bem como o
visão global do status quaestionis em cada caderno Mais! da Folha de São Paulo, que era a
uma das disciplinas, bem como das suas dispu- vitrine oficial da USP. Parte daquilo que ob-
tas de território, visão que, constituindo a con- servei nessa documentação está no meu livro
dição indispensável para o domínio de qual- O Imbecil Coletivo (1996), cujo título resume
quer uma delas em especial, é, no fundo, o úni- as minhas conclusões a respeito. Desde a pu-
co objetivo dos estudos universitários. Não di- blicação desta obra, no entanto, as coisas pio-
go apenas que houvesse lacunas no que se raram demais, com a ascensão de uma nova
transmitia dessas disciplinas aos estudantes geração de tagarelas ainda mais ignorantes e
brasileiros. O que havia, no mais das vezes, era presunçosos do que seus antecessores, forta-
a ignorância total dos problemas essenciais e lecidos na sua autoconfiança demencial pelo
do tratamento que haviam recebido ao longo sucesso político dos partidos de esquerda e
da história. Mesmo a mera consciência da ne- pela deliciosa sensação de poder daí decor-
cessidade de conhecer a evolução temporal rente, a seus olhos uma prova cabal das suas
das discussões era em geral ausente, tanto nas altíssimas qualificações intelectuais. Hoje em
fábricas de diplomas (autorizadas pelo Minis- dia a cultura superior está completamente ex-
tério da Educação como quem legalizasse o tinta no Brasil, substituída por um falatório
banditismo), quanto nas instituições de maior subginasiano sufocantemente uniforme, que,
reputação nacional, como a USP, as PUCs de sob o pretexto irônico de "pensamento crítico"
São Paulo e do Rio e a Unicamp. Isso era visível e "libertação", se impõe a um amedrontado
não só pelos seus programas de ensino, onde o corpo discente com a autoridade irretorquível
que se entendia por história das disciplinas era do magister dixit.
apenas uma introdução sinóptica mais ade- Misto de vigarice, ignorância pétrea, fingi-
quada a revistas de cultura popular do que ao mento histriônico e delírio psicótico puro e
ensino universitário, mas também e sobretudo simples, o arremedo de vida intelectual no Bra-
pelos trabalhos publicados pelos mais badala- sil de hoje é um fenômeno grotesco do qual não
dos professores, onde a ignorância detalhada encontro paralelo em nenhuma outra época ou
dos problemas em discussão constituia a base Diário do Comércio, nação. E a maior prova da sua gravidade é o fa-
indispensável para o cultivo de seus mitos 03 de outubro de 2008 to de que, mesmo entre aqueles que o enxer-
ideológicos provincianos mais queridos. gam, a tendência geral é minimizá-lo como se

90 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


fosse apenas a deterioração de um adorno su-
pérfluo, sem maiores consequências para a vi-
da real. O homem inteligente é sensível ao me-
nor sinal de decréscimo do seu QI; o imbecil
sente-se tanto mais tranquilo e confiante quan-
to mais imbecil se torna. Como os intelectuais
são os olhos e ouvidos da sociedade, não es-
panta que esta última, sob a influência das hor-
das de miúdos vigaristas que hoje exercem es-
sa função, tenha se tornado incapaz não so-
mente de acompanhar razoavelmente o que se
passa no mundo (comparar o que observo nos
EUA com o que a respeito sai nos jornais bra-
sileiros é ter diariamente a visão de um abismo

sem fundo), mas até de compreender, mesmo


por alto, aquilo que se passa no território nacio-
nal. Políticos, empresários, líderes militares e
religiosos tomam suas decisões, dia após dia,
com base na ignorância radical dos fatos mais
decisivos. O Brasil tornou-se uma procissão de
cegos guiados por loucos. É um fenômeno tão
estranho e incomparável, que desafia qual-
quer descrição. A capacidade humana de ex-
pressar em palavras a experiência coletiva de-
pende de que esta tenha um mínimo de lumi-
nosidade e transparência. A opacidade com-
pleta só pode ser descrita pela indiferença e
pelo esquecimento. O Brasil tornou-se uma
imensa falta de assunto.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 91


MEDITAÇÕES FILOSÓFICAS

Quando a
alma é pequena
T
odos os males do Brasil, excetuados os de causas natu- prestígio artístico, o método é geralmente bem sucedido.
rais, nascem da ausência, na nossa cultura, de um ele- Exemplo, a lição do sr. ministro da Cultura: "A metáfora da
mento essencial à vida humana: a busca da verdade. Aí música brasileira na globalização efetiva dos carentes objetos
ninguém sabe o que é isso, nem muito menos tenta sa- da sinergia fizeram a pluralização chegar aos ouvidos eternos
ber, porque ninguém sente falta daquilo cuja existência ignora. da geografia assimétrica da melodia." Praticantes assíduos fo-
Pior: todo mundo conhece as expressões verbais correspon- ram Oswald de Andrade e Glauber Rocha, no passado. Hoje
dentes à coisa faltante e as usa para designar uma infinidade de em dia, José Celso Martinez Corrêa.
outras coisas, de modo que a falta se torna ainda mais invisível 4) Simulação de equilíbrio e maturidade mediante uma lin-
e às vezes parece até uma superabundância. Ausente a busca guagem polidamente inconclusiva que tenta pairar "au dessus
da verdade, parece que sobram as verdades conhecidas e flo- de la mêlée", só para dar maior credibilidade, implícita ou ex-
resce por toda parte o amor à verdade, com seu complemento plícita, a uma opção prévia não justificada que acaba se reve-
inverso, o ódio ao erro e à mentira. lando em algum ponto do argumento. É em geral a linguagem
As atitudes humanas ante a verdade traduzem-se imedia- dos editoriais de jornal.
tamente nos modos de argumentação empregados nas discus- 5) Sedução da plateia mediante afetação de bom-mocismo e
sões públicas. Argumentar é sempre apelar a uma instância su- sentimentos humanitários, patrióticos ou pseudo-religiosos
perior que tem o prestígio da verdade e da autoridade. Em to- expressos em linguagem melosa ou grandiloqüente, entre-
dos os debates culturais e políticos no Brasil, sem exceção vi- meada ou não de rosnados ameaçadores ao partido adverso
sível, os modos de argumentação usados são os seguintes: que revelam sutilmente o ódio psicótico latente sob as efusões
1) Apologia incondicional de crenças cegas adquiridas na ju- do puro amor. Leiam Frei Betto.
ventude, jamais postas à prova e sempre carregadas de um valor 6) Diluição das percepções mais óbvias mediante apelo a es-
emocional absoluto, que deve ser defendido contra todo ataque tereótipos relativistas, desconstrucionistas, pragmatistas, ce-
do exterior. Para isso o sujeito pode mobilizar uma dose formi- ticistas, etc., quase sempre para justificar alguma opinião idio-
dável de pensamento racional e até de conhecimentos, mas tudo ta que assim fica dispensada de apresentar suas razões.
isso permanece exterior, é usado como mera arma defensiva ou 7) Talvez não devessem sequer ser colocadas em linha de
ofensiva e jamais como instrumento de análise crítica das cren- exame as argumentações fundadas no puro e grosso interesse
ças mesmas. Qualquer contato com as ideias adversas deve ser grupal, quando não no desejo de prazer. Quando o sr. Luiz
breve e superficial o bastante para evitar o contágio. De prefe- Mott diz que Jesus era gay, o que ele quer dizer é apenas que
rência elas não devem ser conhecidas diretamente, mas reduzi- aprecia tanto as práticas homossexuais que desejaria fazer de-
das logo a algum modelo prévio bastante repugnante. las uma revelação divina. "Ma non è uma cosa seria".
2) Afetação de modéstia racional mediante o apego à "ciên- Há também instrumentos pseudo-retóricos de uma torpeza
cia", aos "argumentos lógicos", aos "números" e aos "fatos", tu- sem par que são de uso comum e endêmico em todos esses casos.
do isso acompanhado de desprezo olímpico pelo "fanatismo", Um deles é a definição arbitrária dos termos, forjada para levar
pelo "fundamentalismo", etc. Parece o oposto da atitude ante- automaticamente a uma conclusão previamente escolhida. Por
rior mas é uma variante dela, apenas trocado o conteúdo da exemplo, o sujeito argumenta que as religiões são a maior causa
paixão ideológica ostensiva para a ilusão iluminista de um de violência assassina, e quando objetamos que as ideologias ma-
mundo transparente, uniformemente acessível aos métodos terialistas e científicas mataram muito mais gente, responde que
da ciência experimental. as inclui na definição de "religiões". Outro é o argumentum ad ig-
3) Irracionalismo histriônico e afetação de misteriosa sabe- norantiam: apelar à própria ignorância da existência de alguma
doria instintiva, expressa mediante afirmações paradoxais, coisa como prova de que a coisa efetivamente inexiste. A lista se-
compactamente obscuras, às vezes impossíveis de analisar por ria longa e fastidiosa. Não diferiria, em substância, daquela apre-
absoluta falta de sentido, mas suficientemente enigmáticas ou sentada por Schopenhauer na sua Dialética Erística, apenas com
chocantes para hipnotizar o auditório. Se acompanhado de o acréscimo peculiarmente brasileiro de que os próprios nomes

92 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


latinos dos estratagemas erísticos, depois da edição que fiz desse tempo com Eugênio Kusnet. O método Stanislavski ensina-
livro, viraram instrumentos usuais e adornos eruditos dos modos nos a técnica da identificação psicológica profunda com os vá-
de argumentação acima mencionados. A expressão argumentum rios personagens, de modo que o conflito dramático da peça
ad hominem , usada de maneiras barbaramente impróprias, tor- seja interiorizado como conflito psicológico na alma do pró-
nou-se presença infalível nessas conversações. prio ator. Uso isso até hoje para entender as ideias mais absur-
Esses estilos esgotam o repertório dos modos de argumen- das e perceber nelas, senão um fundo de razão, ao menos um
tação em uso nos debates públicos neste País. O que há de co- princípio de verossimilhança. Isso tornou-se para mim tão ro-
mum entre todos eles é a total leviandade com que evitam o tineiro e natural que não me atrevo a contestar uma ideia se an-
exame efetivo das questões que abordam. tes não a tornei minha ao menos por alguns minutos, de modo
Desde Aristóteles, sabe-se que toda busca da verdade em ques- que falo sempre com a autoridade segura de quem está discu-
tões controversas parte do exame das opiniões existentes. Cada tindo consigo mesmo. Por isso é que me parece tão espantosa e
uma destas deve ser conhecida em profundidade e sem julga- deplorável a atitude espontânea e obstinada de incompreen-
mento prévio, até que o laborioso acúmulo de muitas perspecti- são defensiva que em geral é a atitude dos nossos debatedores
vas contraditórias faça o objeto em ques- públicos. Todo mundo tem direito a ter
tão aparecer tal como é em si opiniões, mas é melhor tê-
mesmo, acima das las depois de um
diferenças de mergulho
pontos de a r i st o t é-
vi st a. lico-

E s s e sta nis-
método não lavskiano
é infalível, mas é o no mar das con-
único que existe. Todos tradições. Quem quer
os estilos de argumentação que que tenha amor à verdade an-
apontei acima tratam de evitá-lo como à peste. seia por esse mergulho, mesmo quando não
Não apenas fogem à contradição e às dificuldades, mas cada um tem a certeza de encontrar alguma verdade no fundo. A fuga
deles consiste materialmente numa simples casamata de pala- generalizada ante esse desafio é o traço mais geral e constante
vras erigida em torno de algum desejo ou preferência, de algum dos "formadores de opinião" no Brasil. Em última análise, esse
preconceito no sentido mais estrito do termo. No fundo, todos são fenômeno expressa o medo de viver, o desejo de fugir logo para
apenas instrumentos de autodefesa psicológica ante as contradi- um mundinho imaginário imune a riscos intelectuais.
ções e perplexidades da vida. Todas as opiniões, com efeito, nas- Esse medo, por sua vez, revela-se da maneira mais inconfun-
cem de alguma reação à experiência vivida, mas muitas delas são dível na literatura de ficção nacional. Repassando mentalmente
uma reação de fuga, o fechamento neurótico numa redoma de pa- as produções maiores da nossa criação romanesca – índice seguro
lavras. São expressões de almas frágeis e vacilantes, que se ape- da imaginação das classes letradas –, o que me chama a atenção
gam a opiniões como se fossem amuletos, para escapar ao terror em primeiro lugar é a falta absoluta de problemas, de enigmas, de
da incerteza, ao thambos aristotélico, portanto à possibilidade perplexidades. O romancista brasileiro limita-se a retratar situa-
mesma de acesso à verdade. ções vistas segundo a ótica de uma filosofia ou ideologia preexis-
Como algumas opiniões socialmente relevantes não têm tente, de modo que tudo no fim parece óbvio e explicado. Não
uma estrutura lógica interna suficiente para que possam ser estou falando de escritores ruins, mas justamente dos melhores.
apreendidas racionalmente, elas requerem uma espécie de pe- Tomem o excelente Graciliano Ramos no mais bem sucedido dos
netração psicológica da parte do intérprete. Descobri a solução seu livros, São Bernardo, no mais popular, Vidas Secas , ou no
para isso logo na juventude, quando estudei teatro por algum mais ambicioso, Angústia. O que se vê nos dois primeiros são

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equações de sociologia desenvolvidas com a lógica de uma de- posição estética de uma vivência espiritual tão pobre. Pratica-
monstração matemática, a condição de classe dos personagens mente só em Machado de Assis o que sobra no fim da leitura é
determinando suas escolhas e produzindo inevitavelmente o uma pergunta sem resposta. Jamais entenderemos por que seus
destino correspondente: o senhor de terras age como um senhor personagens são como são, fazem o que fazem, terminam como
de terras, a professorinha como uma professorinha, o camponês terminam. O que há de problemático neles não é uma questão de
diante da autoridade como um camponês diante da autoridade. É psicologia individual ou de construção literária. É a própria vi-
tudo muito bem observado, muito bem construído, mas não sus- são estética que o autor tem da realidade da vida que é um sis-
cita um único "por que?". No terceiro romance a fórmula parece tema de conflitos e tensões permanentes, uma equação insolú-
complicar-se um pouco mediante a introdução de elementos de vel. Digo "visão estética" porque, fora e acima da sua criação ro-
psicopatologia, mas no cômputo final estes se somam aos dados manesca, o escritor permanece um ser humano dotado de ca-
sociológicos e explicam tudo. Ninguém nega que esses livros se- pacidade de abstração e tão habilitado quanto qualquer outro a
jam obras-primas à sua maneira, mas, se eles nos ensinam algo sondar explicações genéricas. O que ele não pode é injetar essas
sobre a vida brasileira e algo sobre como se escreve um romance, explicações no próprio romance, que perderia toda a sua razão
não abrem nossa inteligência para nenhuma questão que ali já não de ser enquanto expressão imaginativa de situações reais, tro-
esteja de algum modo respondida. Não têm a força fecundante da cando a verdade concreta da ficção por um esquema filosófico
grande arte literária. O mesmo pode-se dizer de quase toda a pro- ou científico abstrato. Contornando essa dificuldade, o roman-
dução de Raul Pompéia, José Lins do Rego, Jorge Amado, Lima cista brasileiro transforma a ficção na construção de exemplos
Barreto, Guimarães Rosa, José J. Veiga, Antônio Callado, Herber- verossímeis de alguma explicação conhecida. Daí esse fenôme-
to Sales, Josué Montello e outros tantos. no de uma literatura sem autêntico problema existencial, uma
Você não pode ler o teatro grego, Shakespeare ou Dostoiévs- literatura em que a mera alegoria se substitui ao símbolo. Toda a
ki sem perceber que ali se encontra algo de perfeitamente real e habilidade do ficcionista, aí, consiste em camuflar a explicação
ao mesmo tempo inexplicável, lógico e ao mesmo tempo ab- por baixo da verossimilhança do exemplo. É precisamente isso o
surdo. Os ensaios de interpretação podem se multiplicar ao que Machado de Assis não faz. Sua própria filosofia schope-
longo dos séculos sem jamais dar conta do mistério. A grande nhaueriana nem de longe basta para explicar seus personagens,
literatura de ficção mostra-nos como é a vida humana, mas não decerto muito mais incongruentes e patéticos do que o filósofo
pode nos explicar o porquê. Para fazê-lo, teria de subir um grau do Mundo Como Vontade e Representação jamais poderia con-
na escala de abstração, tornando-se análise e teoria, abando- ceber. E usei acima o termo "praticamente" porque o mesmo su-
nando portanto a contemplação da vida concreta, que é o seu cesso de Machado de Assis na criação de situações concretas
terreno específico. Mesmo os romances mais complexos do sé- inexplicáveis é alcançado ocasionalmente por outros escritores,
culo XX, que incorporam elementos de análise filosófica, como em momentos de inspiração excepcional que se destacam do
A Montanha Mágica de Thomas Mann, Os Sonâmbulos de restante das suas produções. Penso especialmente no Quincas
Hermann Broch, O Homem Sem Qualidades de Robert Musil Berro d'Água, de Jorge Amado, no finado tio Marcelino, de Her-
ou a trilogia de Jacob Wassermann ( O Processo Maurizius, Et- berto Sales, ou na arrancada heroica final de Augusto Matraga
zel Andesgast e A Terceira Existência de Joseph Kerkhoven ) na novela de Guimarães Rosa. Eles têm uma verdade própria
não têm por resultado uma teoria explicativa mas a expressão que nenhuma explicação suplanta. Mas são exceções na obra de
formal concreta de um aglomerado de tensões sem solução. seus autores, e mais ainda na ficção brasileira em geral.
Daí o fascínio mágico que continuam exercendo sobre o leitor A verdade desses personagens não é a verdade de uma teo-
por mais que este, eventual- ria: é a verdade do símbolo romanesco. Susanne K. Langer de-
mente filósofo ele próprio, se finia o símbolo como "matriz de intelecções". O símbolo não
esmere em transformar o egni- existe para ser explicado, mas para inspirar e fortalecer nossa
ma em equação. A equação re- capacidade de buscar explicações. Jamais explicaremos Ham-
solvida é sempre genérica, não let ou Os Demônios , mas volta e meia eles nos sugerem expli-
esgota nunca a infinidade de cações para o que vemos na vida real. A função eminente da
sugestões embutidas na trama literatura de ficção é a transfiguração da experiência em sím-
particular e concreta. bolo. O universo simbólico da ficção nasce da experiência; as
Nada disso se observa em ge- opiniões não vêm diretamente da experiência, mas do univer-
ral na ficção brasileira, uma lite- so simbólico transmitido na cultura, especialmente na litera-
ratura de segunda mão que nas- tura de ficção. Quando a própria ficção se furta à complexida-
ce do recorte da experiência pe- de da experiência, preferindo ater-se à imagem verossímil de
lo molde de explicações previa- uma existência previamente explicada, não é de espantar que
mente dadas. A análise das as opiniões sejam ainda mais superficiais e levianas.
obras esgota rapidamente a A doença política do Brasil é a condensação de um handicap
problematicidade da sua cos- cultural crônico, a pequenez da alma e o estreitamento do ima-
movisão, não sobrando outro ginário ante a complexidade da existência. Os brasileiros vi-
Diário do Comércio, enigma senão, é claro, o do ta- vem citando Fernando Pessoa, mas não tiram de um de seus
16 de julho de 2007 lento individual que encontrou versos a conclusão mais necessária e urgente: Nada vale a pena
soluções tão boas para a trans- quando a alma é pequena.

94 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


A evolução
da EVOLUÇÃO

N ão sei se a evolução biológica


aconteceu ou não. Ninguém sa-
be. O que sei com absoluta certe-
za é que como construção inte-
lectual o evolucionismo é um dos produtos
mais toscos e confusos que já emergiram de
uma cabeça humana – ou animal.
ligiosa da época (como se a Inglaterra vitoria-
na fosse tão cristã quanto o século XIII), ao
mesmo tempo que, para enfatizar a idoneida-
de intelectual de Darwin e sua ausência de
motivações antirreligiosas, afirmam a since-
ridade da sua devoção cristã.
Não há arranjo de pretextos, por mais re-
Estranha natureza, a dos evolucionistas, que, buscado, incoerente e esdrúxulo, que não se
galgando etapas progressivas das amebas até os possa improvisar na salvaguarda de uma fé Não entendo por
antropóides, chega a criar um ente compulsiva- periclitante. Nada no mundo evolui tão rápi- que os herdeiros
mente inclinado a inventar o sobrenatural, e a in- do quanto a Teoria da Evolução. Em pouco
intelectuais de
ventá-lo mais ou menos igual por toda parte, sem mais de um século, de Darwin a Dawkins, pas-
contatos ou transmissões culturais – isto é, evo- sou da necessidade férrea ao acaso mais gra- Darwin odeiam tanto
lutivas – que tornem inteligível a unidade dessa tuito e incontrolável, sem perder a pose nem a a ideia do design
concepção. Pois se há um fenômeno universal impressão de unidade. Uma teoria capaz de inteligente, já que foi
entre as culturas mais díspares no espaço e no alegar em sua defesa motivos opostos e in- o próprio Darwin
tempo, é esse, não restando então aos evolucio- compatíveis e continuar sendo ela mesma
quem a inventou,
nistas senão justificá-lo; primeiro como necessi- tem, evidentemente, a plasticidade semântica
dade inerente à evolução cultural em geral e em de um símbolo poético, de um mito. explícita e completa,
seguida jogá-lo fora como desnecessário e lesivo Historicamente, o evolucionismo nasce co- nos parágrafos
a essa mesma evolução. Tudo pela causa. mo um mito ocultista, com Erasmus Darwin, finais de A Origem
Não entendo por que os herdeiros intelec- depois transmuta-se numa ideologia político- das Espécies.
tuais de Darwin odeiam tanto a ideia do design social, com Herbert Spencer, e por fim numa hi-
inteligente, já que foi o próprio Darwin quem a pótese biológica, com o neto de Erasmus, Char-
inventou, explícita e completa, nos parágrafos les. Que este não tenha sido influenciado nem
finais de A Origem das Espécies. pelas ideias do avô nem pela leitura dos First
Tentando aplacar o escândalo, se veem Principles, o best seller spenceriano que já con-
obrigados a explicar esse trecho como mera tinha em germe a sua teoria, é uma impossibi-
concessão da boca para fora à mentalidade re- lidade histórica manifesta.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 95


Da ignorância dogmática dessa impossibi- sencial não só para a discussão das consequên-
lidade depende todo o prestígio do evolucio- cias sociais pretendidas mas para a compreen-
nismo como teoria científica "pura". Esse são da própria teoria em si mesma, a qual, é cla-
prestígio vale tanto quanto a crença escolar ro, pode sair do exame bastante arranhada.
de que Newton não deduziu a sua física da Uso a expressão "pressa indecente" para
sua teologia, e sim de "experimentos científi- indicar que há uma diferença substantiva en- Uso a expressão
cos". Como se os conceitos de "tempo absolu- tre a mera extrapolação ideológica operada a "pressa indecente"
to" e "espaço absoluto", dos quais depende to- posteriori por discípulos infiéis ou equivoca-
da a teoria de Newton, pudessem ser objetos dos e a conversão instantânea da teoria cien-
para indicar que há
de experiência (ai, meu saco! ) em vez de pres- tífica em ideologia por obra dos próprios cria- uma diferença
supostos lógicos a priori. Não há limites para dores da teoria. substantiva entre a
a burrice, quando é científica. No primeiro caso, esta permanece distinta mera extrapolação
Se o evolucionismo não fosse a tradução bio- das consequências ideológicas que se preten- ideológica operada a
lógica de uma ideologia e sim a "pura" teoria dam tirar dela; no segundo, não se trata de me-
científica que seus devotos pretendem, seria ras consequências, mas, ao contrário, de antece-
posteriori por
no mínimo estranho, para não dizer pratica- dentes, de pressupostos ideológicos embutidos discípulos infiéis ou
mente inviável, que ele proliferasse em tantas na estrutura mesma da teoria, que neste caso só equivocados e a
aplicações político-sociais muito antes de que pode ser compreendida independentemente conversão instantânea
desses pressu-
da teoria científica em
postos median-
te uma separa- ideologia por obra
ção abstrativa dos próprios criadores
posterior, não da teoria.
raro artificiosa.
Não faz o me-
nor sentido exi-
gir uma separa-
ção asséptica
entre a "pura"
teoria biológica
alguém tentasse sequer cumprir a primeira e e a ideologia que viria a ser chamada de
mais indispensável condição requerida pelo "darwinismo social", pelo simples fato de que
próprio Darwin para a sua comprovação cien- esta última, na versão originária de Spencer e
tífica, isto é, um conhecimento melhorzinho sem o nome que viria a caracterizá-la depois,
dos registros fósseis. antecedeu aquela e inspirou a obra de Darwin
A pressa indecente com que uma teoria cien- (e o evolucionismo como mito ocultista prece-
tífica se transfigura em proposta revolucioná- deu e inspirou a ambas). Mais ainda: uma vez
ria nada prova, em princípio, contra a teoria em criada a biologia darwinista , sua retransmuta-
si mesma, mas é obviamente capcioso reivindi- ção imediata em proposta social – agora com
car imediata autoridade científica para pro- novo "fundamento científico" – não veio pelas
postas políticas supostamente amparadas nu- mãos de discípulos remotos e incapazes, mas
ma teoria física, biológica ou climatológica e ao por iniciativa do próprio Darwin e de seu co-
mesmo tempo condenar como argumentum laborador mais imediato, Ernst Haeckel.
ad hominem toda tentativa de questionar a Aquele foi explícito ao declarar que conside-
teoria no terreno moral e político. Afinal, se a rava a liquidação das "raças inferiores" um pro-
proposta política decorre da teoria científica de cesso evolutivo normal e desejável. O segundo
maneira tão linear e inquestionável, é pratica- fundou pessoalmente organizações racistas
mente impossível que não haja algo de político que contribuíram em muito para a formulação
na própria estrutura da teoria. da ideologia nazista. Para completar, o fiasco da
O caminho lógico que vai do diagnóstico da proposta nazista não fez com que os darwinis-
realidade a uma decisão quanto ao que se deve tas recuassem de suas ambições ideológicas e se
fazer com ela é sempre indireto e problemático: restringissem à pesquisa científica "pura". Ao
se ele se apresenta como direto e imediato, o contrário, a Teoria da Evolução evoluiu mais
mínimo que a prudência recomenda é averi- ainda: ampliou-se em doutrina totalizante da
guar se a decisão não antecedeu e determinou o história e da cultura, alimentando hoje a preten- Diário do Comércio,
diagnóstico. Neste caso, o exame dos pressu- são de substituir-se à filosofia e à religião no 24 de dezembro 2007
postos ideológicos embutidos na teoria é es- guiamento moral da humanidade.

96 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


O cume do
progresso humano
Reprodução

Para Freud (dir.), a consciência individual é um joguete de forças inconscientes

F
reud costumava dizer que a história da mente ocidental cia newtoniana, e por fim um contemporâneo de Freud, Max We-
tinha sido marcada por três derrotas humilhantes im- ber, tirara disso a mais letal das consequências: não só o bem e o
postas sucessivamente às presunções do ego humano: mal são escolhas arbitrárias, mas o próprio conhecimento cien-
primeiro, Copérnico demonstrara que o planeta que tífico não é possível sem alguma escolha arbitrária inicial.
habitamos não é o centro do universo; depois, Darwin ensinara Nas décadas seguintes, o rebaixamento da espécie humana
que o homem não é um ente superior, mas apenas um animal prosseguiu implacavelmente. O behaviorismo substituiu a no-
entre outros; por fim, o próprio Freud trazia a prova de que a ção mesma da "psique" por um conjunto de reflexos condicio-
consciência individual não é sequer a dona de si própria, mas o nados não muito diferentes dos que determinam a conduta de
joguete de forças inconscientes. um rato ou, em última instância, de uma ameba. O estrutura-
A ideia do progresso do conhecimento como uma troca de ilu- lismo e o desconstrucionismo aboliram a noção marxista do sen-
sões grandiosas por verdades cada vez mais deprimentes im- tido da História como um resíduo das ilusões humanistas. A ge-
pregnou-se tão profundamente na cosmovisão das classes letra- nética, a neurofisiologia, os modelos informáticos do cérebro e a
das, que outros episódios da história das ideias foram interpre- psiquiatria de base farmacológica reduziram a nada as preten-
tados de acordo com ela, quase que por automatismo. Entre Co- sões da própria psicologia freudiana. A ecologia mostrou o ser
pérnico e Darwin, Newton e Galileu haviam ensinado que humano como um bicho mal comportado e destrutivo, preju-
nossas impressões do mundo sensível são subjetivas e engano- dicial à natureza. Por fim, o filósofo Peter Singer promoveu os
sas, só as quantidades mensuráveis podendo ser objeto de co- frangos e porcos a titulares de direitos humanos, em pé de igual-
nhecimento certo, e Kant demonstrara a impossibilidade de sa- dade até com uma criatura sublime como ele próprio.
ber algo de positivo sobre Deus e a imortalidade da alma. Entre Assim vieram caindo, uma a uma, as "ilusões narcísicas" –
Darwin e Freud, Marx evidenciara que a própria história das como as chamava Freud – de uma espécie animal que ousara se
ideias não é senão a exteriorização aparente de interesses econô- proclamar imagem e semelhança de Deus. A história das
micos camuflados, Comte oficializara a proibição de perguntar ideias científicas, vista sob esse aspecto, é uma história da hu-
sobre aquilo que não podemos conhecer pelos métodos da ciên- mildade intelectual.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 97


Mas aí há três problemas. universal, rebaixando a com-
O primeiro é que nem todas as teorias incluídas nessa narrativa preensão pública do passado a
são igualmente verdadeiras. Galileu fez do Sol o centro do uni- uma sucessão de fofocas de cor-
verso, e não só do sistema solar. Marx jurava que o capitalismo iria tiço contra a dignidade humana.
restringir o mercado, em vez de expandi-lo. O evolucionismo O resumo enciclopédico dessas
continua em estado de hipótese discutível. E a psicanálise se des- Não tem sentido fofocas constitui a visão históri-
moralizou tanto que Lacan, para tentar salvá-la, teve de descobrir equalizar verdades ca vigente, como um dogma de
nela uma parte inconsciente e dizer que esta, e não aquela que fé, nas cabeças de praticamente
científicas, erros
Freud conhecia, era a genuína psicanálise. Não tem sentido equa- todos os nossos contemporâ-
lizar verdades científicas, erros medonhos e fantasias idiotas co- medonhos e fantasias neos. Ela ressurge diariamente
mo degraus ascendentes de uma escalada cognitiva. idiotas como degraus em editoriais de jornal, discur-
Segundo problema: cada um dos degraus dessa pretensa es- ascendentes de uma sos parlamentares e redações de
calada foi galgado à custa de alguma falsificação monstruosa escalada cognitiva. escola, com unanimidade glo-
dos dados históricos. O esquema usado foi sempre o mesmo: bal, e serve de argumento para
embutir à força, em alguma doutrina passada, significados to- justificar decisões políticas, eco-
talmente estranhos à época em que foi enunciada e à menta- nômicas e estratégicas, bem co-
lidade de seu autor. mo para arbitrar discussões domésticas e dar aparência de coisa
Copérnico nunca imaginou que o heliocentrismo tirasse "o importante a teses universitárias sem pé nem cabeça.
homem" do topo do universo criado. Esta interpretação foi in- O terceiro problema é que nenhuma daquelas descobertas
ventada um século depois por Giordano Bruno. E, àqueles que alegadamente humilhantes tornou a intelectualidade mais hu-
pretendessem tirar daí alguma conclusão materialista, o pró- milde. Ao contrário: cada uma delas foi celebrada como uma
prio Bruno advertia: façam isso, e se tornarão estúpidos ao vitória da razão e das luzes contra as trevas do passado, daí re-
ponto de duvidar da sua própria existência (isto veio a acon- sultando efusões de orgulho cada vez mais demenciais e rei-
tecer literalmente quando o desconstrucionismo apregoou a vindicações de poder cada vez mais ilimitadas.
"inexistência do sujeito"). Copérnico e Newton serviram de argumento para os revo-
A doutrina darwiniana, ao colocar o ser humano no cume da lucionários de 1789 concentrarem mais poder em suas mãos do
evolução animal, não podia ao mesmo tempo rebaixá-lo ao ní- que qualquer tirano da antiguidade e matarem mais gente em
vel de um bicho qualquer. A palavra mesma "evolução" expri- um ano do que a Inquisição matara em três séculos.
me uma subida de nível, não uma descida. Isso deveria ser ób- O positivismo e o cientificismo deram nascimento a inume-
vio à primeira vista, mesmo sem a ajuda dos parágrafos finais ráveis ditaduras iluminadas, algumas das quais entendiam a
de A Origem das Espécies , que celebram a ascensão evolutiva matança de padres, freiras e índios (especialmente cristianiza-
como uma obra divina de intelligent design (oh, horror!). dos) como uma expressão superior da racionalidade humana.
A doutrina freudiana, sim, parece rebaixar o ser humano, na O marxismo, não preciso nem falar. Quem não conhece o
medida em que reduz a consciência a um produto de fatores in- "Livro Negro do Comunismo"? Os feitos bárbaros que ele des-
conscientes. Mas, se a passagem para o nível autoconsciente re- creve seriam monumentos à humildade intelectual?
sultava da destruição das ilusões narcísicas da infância, como po- O behaviorismo e escolas psicológicas subsequentes desen-
deria a destruição de mais uma ilusão ser um rebaixamento e não volveram nos seus praticantes a ambição de moldar o compor-
uma subida? O próprio Freud ja- tamento alheio como se fosse um produto industrial. A ecolo-
mais desistiu da aposta em que o gia reforçou essa ambição, criando projetos de controle global
Ego terminaria por absorver e que determinam até o que você pode ou não pode comer e obri-
superar o Id, nisto consistindo, gam você a preencher uma pilha de formulários para colher
aliás, a promessa central da psi- um cacho de bananas.
canálise. Ao falar de rebaixa- Eric Voegelin chamava "historiogênese" a visão simbólica
mento das pretensões humanas, da história como um processo ascendente que, culminando na
Freud usou de uma figura de lin- pessoa do narrador, fazia da sua época a suprema detentora do
guagem que enfatizava unilate- conhecimento humano. Inicialmente ele pensou que esse es-
ralmente um só aspecto da sua quema fosse uma invenção da modernidade, mas depois des-
própria obra, omitindo a com- cobriu que isso já existia no antigo Egito e na Mesopotâmia. A
pensação dialética da qual esta- historiogênese é um cacoete mental deformante que reaparece
va perfeitamente consciente. E em todas as épocas, graças à incoercível tendência do ser hu-
fez o mesmo com os ensinamen- mano para fazer de si próprio o umbigo do universo.
tos de Copérnico e Darwin para A modernidade só acrescentou a isso o detalhe especialmente
transformar os dois, à força, em ridículo de que ela descreve a ascensão gloriosa que conduz até
precursores dele próprio. ela própria como um processo de autolimitação racional e hu-
Diário do Comércio, Daí por diante, fazer história mildade intelectual crescente. Com isso a concepção umbigo-
04 de fevereiro de 2008 das ideias mediante analogias cêntrica da história tornou-se caricatura de si própria, nisto con-
extemporâneas tornou-se moda sistindo a suprema glória intelectual dos tempos modernos.

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Paul Hackett/Reuters

A consciência
da consciência
E mbora estes artigos venham repletos de análises de
situações políticas concretas, raramente reproduzo
neles algo dos fundamentos de filosofia política e
filosofia geral que transmito nos meus cursos. O
resultado é que as análises ficam boiando no ar como balões
sem dono, soltas do fio que as amarra ao solo comum. Vou
aqui remediar isso um pouco, explicando um – apenas um –
modelos colhidos de outras ciências deva ser mais útil e
proveitoso do que tomá-la inteiramente a sério desde o início
como um dado incontornável da realidade.
Toda tentativa de constituir o objeto "homem" como coisa
externa – e, pior ainda, de recortá-lo do seu fundo concreto
mediante a seleção de seus aspectos matematizáveis, com
exclusão do resto – só pode resultar na produção de uma
daqueles fundamentos. analogia, de uma figura de linguagem, de um símile poético.
O fato de que nas ciências ditas humanas o sujeito e o Estudos assim orientados podem criar interessantes
objeto do conhecimento sejam o mesmo foi muitas vezes metáforas, mas não ciência propriamente dita. Pode-se
lamentado como causa de distorções subjetivistas comparar o homem com formigas, com ratos de laboratório,
incompatíveis com as pretensões do rigor científico. com programas de computador, ou, como o faz o dr. Freud,
No esforço de eliminar essas distorções, muitos estudiosos com um sistema de pressões hidráulicas. Tudo isso é muito
tentaram constituir aquele objeto como entidade do mundo sugestivo, mas, como o número de símiles é ilimitado por
exterior, à maneira dos fatos da natureza, neutralizando o definição, o conjunto não tem como deixar de ser totalmente
viés subjetivo do observador. Acontece que aquela inconclusivo, como inconclusiva é a leitura das obras-primas
coincidência de sujeito e objeto é a verdadeira e efetiva da literatura universal.
situação de conhecimento nas ciências humanas, e não vejo A coincidência de sujeito e objeto é, ao contrário, uma
por que fugir a essa situação mediante analogias com posição privilegiada que deve ser assumida desde o início

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 99


e permanente. Mesmo culturas que não chegaram a
ter uma noção clara da individualidade psíquica já
sabiam disso, como o prova o fato de que em todas
elas quem é chamado a responder por seus atos é o
autor deles, não um terceiro. Não há sociedade,
por mais primitiva, onde as noções de autoria,
Hugo de S. Victor culpa e mérito não estejam perfeitamente
explicava que identificadas entre si.
O eu não poderia ser criado por incorporação
pensar é transitar de
de papéis sociais se já não estivesse prefigurado,
uma ideia à outra. por um lado, na individualidade física e, por outro,
na memória da memória – a recordação de estados
interiores revividos na pura intimidade do indivíduo
consigo mesmo.
O eu responsável – a consciência da consciência – não
como premissa e norma orientadora em todo o campo das existe como coisa nem como estado: existe apenas como
ciências humanas. A técnica para o estudo de um objeto assim tensão permanente em direção a mais consciência, mais
definido, aliás, já existe há milênios e é um dos mais responsabilidade, mais abrangência e maior integração.
aprimorados instrumentos cognitivos ao alcance do ser A consciência cresce na medida em que se reconhece, e não
humano. Ela chama-se "meditação" e não deve ser confundida pode reconhecer-se senão abrindo-se permanentemente a
com nada daquelas esquisitices que as seitas pseudo-orientais conhecimentos que transcendem o seu patrimônio anterior.
colocaram em circulação sob esse nome. Hugo de S. Victor A abertura para a transcendência – para aquilo que está para
explicava que pensar é transitar de uma ideia à outra (seja além do horizonte atual de experiência – é portanto um dado
vagando pela floresta das analogias, seja subindo ou descendo permanente da estrutura da consciência. Suprimi-la é falsear
na escala das proposições, do geral para o particular e vice- na base a situação de conhecimento.
versa). Meditar, ao contrário é retroceder metodicamente A consciência responsável é a verdadeira situação do ser
desde um pensamento até seu fundamento ou raiz na humano no mundo. Observa-se isto nas interações mais
experiência que o tornou possível. Modelos clássicos de simples, onde aquele que fala sempre espera que o outro o
meditação são as investigações sobre a natureza do "eu" compreenda: não apenas que apreenda o sentido de uma
empreendidas nas Confissões de Santo Agostinho, no frase, mas que adivinhe uma intenção e por trás dela capte a
Vedanta, no livro de Filosofia Primeira de René Descates, na presença de um eu consciente semelhante ao seu. O contrário
fenomenologia de Husserl, em inumeráveis trechos de Louis seria falar com as paredes.
Lavelle ou na Anamnesis de Eric Voegelin. O eu responsável é um dos fundamentos primários da
Repassar essas descrições célebres já seria matéria para um sociedade humana. Ele é a origem de todas as ideias, criações,
curso inteiro. Esquematicamente, a pergunta central é: "A instituições, leis, hábitos, estruturas. Tudo o que, na sociedade,
quem propriamente você se refere quando usa a palavra 'eu' não possa ser rastreado até sua origem no eu consciente
na vida de todos os dias?" O percurso da resposta vai de uma assume a aparência de coisa externa vinda ao mundo por pura
mera ideia ou convenção verbal até a experiência de uma magia espontânea. É o
realidade ao mesmo tempo imediata e profunda que essa coeficiente de fantasmagoria
palavra encobre e revela simultaneamente. que resta em toda sociedade
O eu – não o eu filosófico, abstrato, sujeito hipotético das por efeito da alienação e da
demonstrações metafísicas, mas o eu concreto, real – não é o perda de memória. Que muitos
corpo, não é as sensações, não é as emoções, não é os estudiosos da sociedade
pensamentos. Também não é a pura memória, mas é a prefiram concentrar nesse
memória da memória, a memória que se lembra de ter resíduo coisificado as suas
lembrado e responde perante os outros e perante si mesma atenções, eludindo a
como autora e portadora única de seus próprios conteúdos. incomodidade de uma
"Consciência", definia Maurice Pradines, "é uma memória do autoconsciência exigente, cujas
passado preparada para os desafios do presente". O "eu" é demandas no entanto podem
aquele que responde por aquilo que sabe, e, mais ainda, por continuar atendendo enquanto
aquilo que ele sabe que sabe . O mais elevado cidadãos comuns fora das
autoconhecimento não consiste senão na admissão de um horas de expediente, mostra
saber prévio assumido responsavelmente. que aquilo que leva o nome
Mas esse eu não existe somente nas alturas da meditação honroso de "ciência" é muitas
filosófica. É ele que responde pelas cobranças do mundo em vezes nada mais que uma Diário do Comércio,
torno nas tarefas e lazeres cotidianos. O eu que responde – o forma elegante de fuga da 05 de maio de 2008
eu responsável – é a realidade humana mais direta, universal realidade.

100 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


e D O
O E N
N D N D
R A R E
R
E A P

Vicent West/Reuters

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 101


R ecebo diariamente dezenas de
perguntas de alunos, leitores e
ouvintes, e tento responder a quantas
posso, mas em geral recuso todo
pedido de orientação religiosa, quando mais
não seja porque não considero que eu mesmo
seja o protótipo do sujeito orientadíssimo
etc. Quando a ordem não se expressa por um
imperativo concreto, mas por uma relação
abstrata de proporcionalidade, como numa
equação do tipo a/b = x/y, então já não se
trata de uma conduta em especial, mas de um
princípio que deve ser seguido em todas as
condutas, em todas as situações da vida.
nessas questões. Há, no entanto, uma regra de As normas específicas, para ser
interpretação bíblica – portanto, de moral obedecidas, requerem distinções e ressalvas
religiosa também – que decorre da natureza que, partindo da sua formulação geral
mesma da linguagem e que ninguém em seu tipológica, as adaptem sabiamente à situação
juízo perfeito pode negar, embora muitos a particular do momento. "Não matarás",
neguem na prática sem percebê-lo. decerto, mas quem se recuse a fazê-lo na
Não aprendi essa regra com ninguém, nem guerra ou em defesa do inocente ameaçado
decerto fui o primeiro a descobri-la: depois de Os burros e teimosos pode arcar com a culpa de expor os outros à
ter andado por inumeráveis cabeças de da minha espécie só morte, por omissão. "Não roubarás", é claro,
crentes ao longo dos milênios, ela acabou por mas quem tem o direito de se recusar a fazê-lo
aprendem em estado
aparecer na minha, espontaneamente, uma quando o único meio de transportar um
certa manhã, depois de eu ter rezado durante de sono profundo, ferido ao hospital é o carro que um
meses a Nosso Senhor Jesus Cristo para que quando repousamos proprietário desconhecido esqueceu com a
tornasse as Suas palavras mais inteligíveis a totalmente chave na ignição? "Não prestarás falso
um jumento como eu. Tenho portanto minhas inconscientes e testemunho", mas isto não quer dizer que
razões para acreditar que Ele mesmo, sem você esteja obrigado a dizer a verdade
indefesos entre os
que eu o notasse, programou o meu cérebro quando um assaltante lhe pergunta onde o
para aceitá-la. Aos santos, profetas e braços do Senhor, seu patrão guarda o dinheiro, ou quando um
iluminados, Deus fala em voz alta ou em como as criancinhas, truculento comissário do povo lhe pergunta
sonhos. Os burros e teimosos da minha e, por momentos, sem onde a sua aldeia escondeu a colheita. Tendo
espécie só aprendem em estado de sono qualquer mérito da validade tipológica absoluta, as normas são
profundo, quando repousamos totalmente de aplicação eminentemente relativa: relativa
nossa parte,
inconscientes e indefesos entre os braços do à situação, às intenções, ao caráter das
Senhor, como as criancinhas, e, por desfrutamos de um pessoas envolvidas, à interferência de fatores
momentos, sem qualquer mérito da nossa privilégio a elas culturais, psicológicos e psicopatológicos
parte, desfrutamos de um privilégio a elas reservado. altamente complexos, etc. etc. etc.
reservado. Tenho seguido essa regra há anos, Permanentes na sua obrigatoriedade geral,
e infalivelmente ela me torna as coisas cada requerem uma interpretação particular,
vez mais claras, tanto na decifração de diferente em cada caso e circunstância.
trechos da Bíblia como na resolução de Muitas vezes, pessoas de bem fazem o mal,
perplexidades da vida. No mais, ela é tão não porque desejem conscientemente violar a
natural e óbvia que só não a seguem os que regra moral, mas porque erram na sua
jamais se deram conta dela. interpretação particular.
Como geralmente acontece com as Por isso mesmo, Deus não nos forneceu só
verdades mais simples, aquilo que é regras de conduta, mas também os princípios
percebido num relance intuitivo e mudo gerais que devem nortear a sua interpretação.
exige algum requinte lógico para se expor em Esses princípios, por serem formais como
palavras. Para facilitar a explicação, faço aqui equações e não se referirem a nenhuma
uma distinção entre "normas" e "princípios" – situação concreta, são de validade absoluta e
longinquamente inspirada na de Kant e Max incondicional em todas as situações e servem
Scheler entre ética material e formal, mas sem de pedra-de-toque para aferir a interpretação
o mínimo compromisso com a filosofia moral que damos às normas concretas. Nos Dez
de um ou do outro. Todo sistema moral Mandamentos, essa distinção é clara. Quando
compõe-se das duas coisas. Normas alguém lhe pergunta qual o mínimo necessário
específicas ordenam ou proíbem um para entrar no céu, Jesus responde: "Amarás o
determinado tipo de conduta concreta: não teu Deus acima de todas as coisas e amarás o
mate, não roube, ajude os órfãos e as viúvas, teu próximo como a ti mesmo." Os Dez

102 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


Mandamentos compõem-se portanto de dois de ordem puramente interior. "Comerás o teu
princípios e oito regras. Os princípios são as pão com o suor do teu rosto" quer dizer
chaves que determinam o sentido das regras exatamente isso: o pouco de bom que possa
em cada caso. Se um sujeito comete adultério, haver em nós virá misturado ao mal, e terá de
ele infringe uma regra, mas, se você o aponta à ser separado dele aos poucos, através da
execração nas ruas em vez de perdoá-lo e experiência, da tentativa e do erro, como numa Deus perdoa os
aconselhá-lo em particular como esperaria que longa decantação alquímica. Deus pode, é adúlteros, os mentirosos,
fizessem com você caso o pecado fosse seu, claro, preservar você deste ou daquele pecado
os ladrões e até os
você peca muito mais que o adúltero, pois por um ato da Graça, mas Ele não está obrigado
viola um princípio. Deus perdoa os adúlteros, a fazer isso, muito menos a imunizá-lo de assassinos, mas não
os mentirosos, os ladrões e até os assassinos, antemão contra todos os pecados possíveis. perdoa quem não
mas não perdoa quem não perdoa. Posso estar Ademais, que graça maior você pode receber perdoa. Posso estar
enganado, mas suspeito que no inferno há de Deus além da Sua promessa de justificar os enganado, mas suspeito
menos adúlteros do que cônjuges virtuosos erros tão logo, no caminho da experiência, eles
que no inferno há menos
que lhes negaram o perdão. sejam francamente admitidos como tais?
Ao longo da Bíblia encontram-se muitos Se o Apóstolo distingue entre a experiência adúlteros do que
princípios formais secundários, derivados e sua conclusão seletiva, ele subentende que cônjuges virtuosos que
dos dois primeiros. São autênticos mapas da nem tudo o que for experimentado será bom, lhes negaram o perdão.
mina para a alma atormentada que, nas mas que tudo deve ser experimentado
complexidades da existência, quer fazer o sempre em vista do aprendizado e do bem,
certo mas não sabe o que é o certo. Um desses não do vulgar desejo de experimentar por
princípios – o mais frequentemente experimentar, nem de uma dúvida forçada,
esquecido, pelas minhas contas – foi artificiosa. Platão dizia que "verdade
enunciado por S. Paulo Apóstolo: conhecida é verdade obedecida". Tão logo
"Experimentai de tudo e ficai com o que é você enxergou nitidamente que certa conduta
bom." Não me canso de meditar essa é má, tem de evitá-la por todos os meios. Até
sentença, e as profundidades que nela lá, tem uma certa margem de erro justificado,
encontro preencheriam muitos livros, se eu como exigência inerente à própria noção de
fosse capaz de escrevê-los. aprendizado, com a condição de confessar o
Vejam. São Paulo, ao longo de suas cartas, erro tão logo o tenha percebido como tal e de
enunciou muitas regras de conduta, mais não teimar nele depois disso. Quando você
pormenorizadas do que aquelas contidas nos descobriu o que é bom, não o largue por
Dez Mandamentos. Se você lê essas regras, já dinheiro nenhum deste mundo.
sabe portanto o que, segundo o ensinamento Eu, que sou burro e não presto, e além disso
do Apóstolo, é bom e é mau. Para que, então, a sou relapso e preguiçoso, enxerguei um
necessidade de "experimentar"? A distinção pedacinho muito pequenininho do bem, que
mesma entre princípios e regras contém comparado à minha ilustre pessoa é do
implicitamente a resposta. Para que você evite tamanho do infinito. Enxerguei-o graças ao
uma conduta má, não basta saber que, conselho paulino. Daí advém a parte estável e
tipologicamente, isto é, genericamente, ela está séria da minha alma, parte miúda mas muito
enquadrada na classificação de "má". A melhor que o conjunto dela, o qual espero ir
conduta humana não se dirige por abstrações, melhorando aos poucos até o último dia,
mas pela percepção direta e sensível das conforme outros bens vão rebrilhando aqui e
situações. É preciso que você "veja" com seus ali entre as obscuridades da minha mente.
próprios olhos o mal e o bem. Seres humanos Vou por partes, decerto. Sou paciente e
não aprendem só por ouvir dizer – mesmo que tolerante comigo mesmo enquanto estou na
a Palavra ouvida seja a de Deus: eles aprendem confusão e na dúvida, mas, tão logo vejo as
pela experiência, pela demorada, trabalhosa e coisas com claridade, não dou mais moleza ao
dolorosa distinção entre o bem e o mal não em meu mesquinho ser. Passo num instante dos
definições gerais simples, mas em situações auto-afagos à palmatória.
alucinantemente complexas e ambíguas da Não conheço outro método, nem
vida real. O símbolo do pão, na Eucaristia, recomendo este a quem saiba de outro Diário do Comércio,
significa as virtudes morais, práticas, assim melhor. Aos demais, digo com o Apóstolo: 02 de junho de 2008
como o vinho significa as virtudes espirituais, Experimentem.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 103


Um capítulo
de memórias
Q ue o leitor me permita começar este artigo por um
episódio da minha porca vida, do qual espero tirar
algumas conclusões de interesse geral.
Tão logo cheguei a este mundo, uma estranha infecção pul-
monar adiou meu ingresso oficial nele durante sete anos, re-
duzindo-me a um estado de inconsciência febril e delirante do
qual só emergi no dia de ir para a escola, se bem que meus de-
safetos digam que não saí dele jamais.
Embutido no uniforme, eu me parecia exteriormente com os

Reprodução
demais meninos, mas por dentro era um bebê, simplório como
um passarinho, por total ignorância não só dos pecados como
também de tudo o mais.
Sendo a escola uma instituição religiosa, os professores le-
ram-me trechos do Evangelho, que me comoviam até às lágri-
mas, mas daí, mediante uma lógica que me es-
capava, deduziam e me atribuíam a incumbên-
cia de confessar meus pecados, dos quais o úni-
co que me ocorria, na minha desesperadora informação fidedigna quanto à natureza das
pobreza de repertório, era o pecado original. porcarias – e mesmo depois de cientificado ain-
Disfarçando como podia a minha radical in- da continuei duvidando que as pessoas fizes-
compreensão do estado de coisas, entrei na fila sem mesmo aquelas coisas, as quais me pare-
do confessionário esperando que, quando che- ciam sumamente despropositadas e tediosas.
gasse a minha vez, tudo se esclareceria. Mas foi Tardiamente chegado a um universo repleto
então que veio o pior. De trás de uma cortina Eu não tinha a mais de estímulos e desafios, eu não podia conceber
que o tornava semi-invisível, um padre não mínima ideia do que que alguém perdesse seu tempo "fazendo por-
identificado me perguntou: podiam ser as tais carias" em vez de se dedicar a alguma ativida-
– Você fez porcarias? porcarias, mas, fossem de mais substantiva, como jogar bolinha de gu-
Eu não tinha a mais mínima ideia do que po- de, brincar de Roy Rogers ou ir à matinê ver os
diam ser as tais porcarias, mas, fossem lá o que
lá o que fossem,
desenhos de Tom & Jerry.
fossem, pareciam ser comuns a toda a humani- pareciam ser comuns a Mais tarde informaram-me que alguns me-
dade, de modo que, por mera precaução, res- toda a humanidade, (...) ninos se dedicavam mesmo a um exercício de-
pondi: "Sim." E já ia me sentindo muito alivia- nominado "troca-troca", mas, como jamais eu
do pelo meu sucesso neste teste inicial, quando visse nenhum deles se entregando a essa prá-
o padre voltou à carga: tica, permaneci incrédulo, só fingindo acredi-
– Com meninos ou com meninas? tar em tudo para não desagradar a ninguém e para não parecer
Agora ele me pegou, pensei aterrorizado. Como poderia eu ainda mais esquisito do que aquilo me parecia a mim. As por-
supor que aquele delito misterioso e incognoscível se pratica- carias, no fundo, se é que existiam mesmo, deviam ser coisa de
va com ambos os sexos? Não querendo, porém, dar o braço a gente grande, aquelas pessoas aborrecidas que só falavam de
torcer, declarei peremptoriamente: "Com os dois." Feito isso, assuntos chatos – dívidas, doenças, arrumação de casa, polí-
fui liberado para a parte leve do serviço, que consistiu em rezar ticos corruptos, juízes de futebol ladrões – e, para cúmulo,
dez Pai-Nossos e dez Ave-Marias, coisa que eu já fazia habi- achavam normal comer brócolis em vez de sorvete. Que encan-
tualmente sem ter de passar por aquele vexame preliminar. to pudesse haver nos seus afazeres porcaríferos era algo que
Alguns meses se passaram antes que eu recebesse alguma me escapava por completo.

104 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


Quando, finalmente, compreendi do que se diferente dos outros, um recinto próprio que a
tratava, admiti que podia até haver algum in- linguagem mal consegue penetrar e que, em-
teresse na coisa, mas aí um outro fenômeno me bora constitua a sua existência mais íntima e
chamou a atenção, e este não era nem um pou- pessoal, acabará sendo totalmente ignorado
co divertido: meditando a experiência da mi- pelos que em torno imaginam conhecê-lo. To-
nha primeira confissão, descobri o abismo Em Machado de Assis, o da a riqueza e o interesse da convivência hu-
imensurável e sem fundo que pode haver entre mana consiste em usar os esterereótipos co-
a realidade da nossa alma e as imagens padro-
único personagem mo meros bilhetes de ingresso nesse recinto,
nizadas que somos chamados a personificar na sincero, o único que fala jogando-os fora tão logo entramos mais fun-
sociedade, imagens pelas quais os outros nos consigo mesmo e tenta se do na alma alheia. Mas como poderíamos fa-
reconhecem, que eles chamam pelo nosso no- compreender a si zer isso, se tudo em volta nos convida a encar-
me e nas quais, pelo efeito da repetição, acaba- próprio e aos outros, o nar os estereótipos cada vez mais esforçada-
mos por acreditar, sufocando a memória da mente, com um arremedo de sinceridade ca-
nossa experiência efetiva e substituindo-a por
conselheiro Aires, acaba da vez mais perfeito, até acabarmos
um arranjo cômodo de aparências, que por sua vivendo num prudente e acreditando que eles são nós?
vez se amoldam tão bem às necessidades da co- recatado isolamento. As sociedades humanas podem ser compa-
municação diária que acabamos por achar que radas – e julgadas – pelo seu sucesso ou fracas-
são o verdadeiro "eu". so em transmutar a linguagem comum em ins-
A essa altura, aquela parte que ficou para trumento do encontro genuíno entre os seres
trás, sem nome, não desaparece de todo, mas, humanos. E, de tudo o que vi e vivi depois, con-
excluída do mundo da linguagem, torna-se o cluí que a sociedade brasileira se destaca pelo
nosso depósito pessoal de fantasmas, de temo- total desinteresse em fazer isso, pela acomoda-
res inconfessáveis, de vergonhas indizíveis, de ção complacente a uma convivência feita só de
sensações informes e incomunicáveis. estereótipos. Foi isso o que o conde de Keyser-
Durante o meu período de doença, conheci ling, aquele observador arguto, notou ao dizer
mais dores e sofrimentos do que em geral os que, enquanto nos outros países as pessoas só
meninos da minha idade podiam sequer ima- imitam aquilo que desejam tornar-se no futu-
ginar. Era todo um universo sombrio, opres- ro, os brasileiros se contentam com a imitação
sivo, fechado. Sobretudo incomunicável: eu enquanto tal, esmerando-se nela ao ponto de
bem via o rosto angustiado de minha mãe, de esquecer que é possível ser algo na realidade e
meu pai, de meus tios, tentando puxar a mi- acabando por acreditar que a única coisa a es-
nha dor para si próprios, mas conseguindo perar da vida é o sucesso no fingimento. Não é
apenas olhá-la de fora, atônitos e inermes, e à toa que a obra do maior dos nossos ficcionis-
atormentar-se em vão. Todo mundo passa por tas é uma galeria de fingidos, hipócritas e pa-
experiência semelhante algum dia, seja por lhaços como jamais se viu no mundo. Em Ma-
meio da doença, da pobreza, da loucura, do chado de Assis, o único personagem sincero, o
abandono, da prisão. Minha diferença é que único que fala consigo mesmo e tenta se com-
eu conheci esse lado obscuro da vida antes de preender a si próprio e aos outros, o conselhei-
conhecer qualquer outra coisa. Quando ro Aires, acaba vivendo num prudente e reca-
emergi desse inferno, tudo em volta me pare- tado isolamento. Isso explica muita coisa da
cia tão interessante, tão bonito, tão atraente, nossa política.
que a hipótese de alguém poder entediar-se No meu caso, justamente a confissão, que
ao ponto de ter de buscar uma fonte extra de deveria ser o encontro mais íntimo da cons-
deleites me parecia simplesmente inverossí- ciência interior com o observador onissa-
mil. Eu não conhecia o sexo e, no meu deslum- piente, acabou se transformando no desen-
bramento com tudo o mais, não imaginava contro completo entre a rotina de um confes-
que alguém pudesse precisar dele (tudo o que sor entediado e a confusão mental de um me-
depois li sobre sexualidade infantil me parece nino ignorante. O Papa João Paulo II acertou
uma bobagem descomunal). Mas a estranha em cheio quando disse que os brasileiros são
conjunção de uma experiência prematura do cristãos no sentimento, mas não na fé. Não
sofrimento humano com a ignorância radical existe fé sem vida interior, mas a vida interior
de fatos elementares da fisiologia fez de mim começa pelo ingresso naquele recinto fecha-
uma incongruência viva, como Lao-Tseu, que do, sombrio, e pelo esforço de comunicar o in-
nasceu velho e com o tempo foi se tornando comunicável. O brasileiro acha isso angus-
um bebê. Claro, eu não era o único esquisitão Diário do Comércio, tiante demais e, buscando alívio numa fami-
do universo. Mais tarde descobri que cada ser 23 de junho de 2008 liaridade fácil, acaba por se transformar no
humano tem por dentro algo de radicalmente seu próprio estereótipo.

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 105


Pecadores,
com a
graça
de Deus

O
Dia de Ação de Graças, que se todas as nações reconhecer a providência
festeja desde o século XVI, mas de Deus Todo-Poderoso, obedecer à Sua
foi instituído como data oficial vontade, ser gratas aos Seus benefícios e
por George Washington, é um humildemente implorar Sua proteção e
dos últimos motivos remanescentes para os favor." Essas palavras já respondiam
EUA não se tornarem de vez uma nação de antecipadamente àqueles que negam a
meninos mimados odientos, empenhados em origem judaico-cristã das instituições
vingar-se de seus benfeitores. Malgrado as políticas americanas.
tentativas de inocular neles a amargura e a Como alguns amigos americanos me
revolta, em geral os americanos continuam pediram que celebrasse o Thanksgiving
gratos de viver num país tão rico e generoso, com eles escrevendo umas linhas sobre o
de modo que em seus corações o sentimento sentimento de gratidão, decidi tomar como
de amor a Deus se mescla indissoluvelmente ponto de partida o que pode haver de
com o amor à pátria. Nos EUA, é às vezes menos cristão ou judaico: as ideias do
difícil saber onde termina a religião e onde filósofo Peter Singer, o professor de
começa o civismo. Instituindo o Princeton que não vê grande diferença
Thanksgiving Day em 3 de outubro de 1789, entre matar uma galinha para comê-la e
George Washington escreveu: "É dever de estrangular um bebê para jogá-lo no lixo.

106 DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2012


A ética do prof. Singer é baseada num moralmente ser trucidado e comido pelas
conjunto de argumentos bem simples e criaturas humanas. Isso equivale a afirmar que
razoáveis: comer, no sentido mais geral da palavra, é um
1) Causar sofrimento é indiscutivelmente pecado e um crime. Mas, se todo mundo
um mal. houvesse se refreado de cometer esse crime
2) Causamos necessariamente sofrimento desde o começo da história humana, não
aos animais quando os matamos e comemos. haveria história humana nenhuma e não
3) Não há nenhuma prova de que a estaríamos aqui discutindo esse adorável
sobrevivência de um animal à custa do assunto. A conclusão inapelável que se segue é
sofrimento de outro seja um bem. que, no sentido mais geral, a vida humana é um
4) Vivemos, portanto, do mal, sobretudo pecado e um crime – conclusão que a própria
quando pretendemos ver na nossa própria Bíblia subscreve sob o nome de "a Queda".
sobrevivência à custa dos outros um bem. Não há, pois, uma oposição formal entre o
5) Se somarmos ao sofrimento que cristianismo e as ideias do prof. Singer. O que
causamos ao reino animal o mal que nos há é uma diferença de escala, pois o prof.
infligimos uns aos outros desde a origem dos Singer baseia toda a sua ética na observação
tempos, veremos que o mal impera no mundo do que se passa no mundo material
em quantidades tais que não sobra nenhuma submetido a determinações quantitativas,
razão plausível para supor que um Deus bom entre as quais a necessidade de alimentos, ao
tenha criado tudo isso. passo que a Bíblia inclui a totalidade desse
O sentimento de
À primeira vista, não há como refutar esses mundo no quadro imensuravelmente maior
argumentos. Ao contrário, tudo o que gratidão à infinitude da infinitude divina.
podemos fazer é aceitá-los e prosseguir divina não é um ritual Não é preciso ser muito inteligente para
raciocinando com base neles, em busca de religioso, embora possa compreender que tudo aquilo que é
uma ética que não feche os olhos à dura sê-lo também: ele é, na quantitativo e finito, ainda que imensamente
realidade que eles expressam. grande, está contido no infinito como um
Desde logo, não há nenhuma prova de que
base, a única atitude grão de areia no fundo do oceano. O infinito
os vegetais não sofram tanto quanto os sensata dos seres não tem limitações de espécie alguma e é, ao
animais quando os arrancamos do solo, humanos que mesmo tempo, a única coisa que tem de
cortamos, assamos e comemos. Desde a reconhecem a estrutura existir necessariamente. Pretender que o
publicação de The Secret Life of Plants de da realidade e universo quantitativo e finito seja a medida
Peter Tompkins e Christopher Bird em 1973, última da realidade é autocontraditório, pois
até o estudo mais recente de Anthony
não se deixam uma coisa só termina onde faz fronteira com
Trewavas, "Green plants as intelligent hipnotizar por outra, de modo que a ideia mesma de finitude
organisms" (2005), têm-se acumulado pesadelos demoníacos, supõe a existência do infinito para além do
indícios de que as plantas possuem algumas mesmo que venham finito. O universo finito está submetido à
habilidades cognitivas e afetivas. É verdade Segunda Lei da Termodinâmica, ou entropia,
de Princeton.
que nem toda a comunidade científica aceita não tendo como subsistir se não for
essas provas, mas o simples fato de que a continuamente realimentado e regenerado
discussão se arraste sem conclusões pelo infinito. Mais ainda, o infinito não pode
unânimes nos impõe por sua vez a conclusão nem mesmo ser considerado só do ponto de
de que seria uma temeridade afirmar, sem vista quantitativo, pois a quantidade é em si
mais, que comer vegetais é um ato mesma uma limitação. O infinito transcende
moralmente inofensivo. todas as determinações quantitativas e só
Muito menos existem provas de que pode ser concebido como uma pletora de
alimentar-se exclusivamente de vegetais qualidades positivas ilimitadas, o Supremo
torna os seres humanos melhores ou menos Bem de que falava Platão. Nenhum
violentos. Adolf Hitler era vegetariano, e a argumento racionalmente defensável pode
história da mais vegetariana das civilizações, ser apresentado contra a existência do
a indiana, é um cortejo de horrores que Supremo Bem, pois todos resultam em
prossegue no século XX com o massacre de atribuir infinitude àquilo que eles mesmos
muçulmanos pelos hindus quando da admitem como finito. O Supremo Bem é, ao
independência da Índia e com a matança mesmo tempo, a Suprema Realidade.
sistemática de cristãos hoje em dia. Vistos na escala do infinito, todos os males
De um ponto de vista singeriano, portanto, do mundo finito, por imensos que sejam, são
nenhum ser vivo – animal ou vegetal – pode anulados no mesmo instante. Não se pode

JULHO/AGOSTO 2012 DIGESTO ECONÔMICO 107


conceber uma única privação ou limitação que um dia foi "ser", não pode voltar ao
que, na escala do infinito, não esteja "nada", porque o nada nunca foi. Considerado
compensada automaticamente pela profusão no entanto em si mesmo, separado do infinito,
ilimitada das qualidades correspondentes. o mundo finito é o mundo da contínua
A Bíblia descreve a Queda, precisamente, extinção, o mundo da entropia. A castração
como o instante em que os seres humanos espiritual consiste em perder o sentido da
perderam de vista a escala da infinitude, regeneração perpétua, por meio do corte entre
passando a considerar o mundo finito como o finito e o infinito – a prisão no mundo da
o horizonte último da realidade e, por isso "carne". Nesse mundo, um simples pé de
mesmo, as coisas finitas como alface que você coma é uma perda irreparável.
o objeto exclusivo dos seus Bilhões de galinhas, carneiros, vacas e porcos
desejos. As constantes sacrificados em vão na mesa da espécie
menções pejorativas do humana são provas sangrentas da
discurso religioso aos universalidade do mal e do absurdo.
"desejos carnais" O prof. Singer tem toda a razão no que
evocam popularmente concerne ao mundo finito.
a atração entre os Mas, curiosamente, em vez
sexos, mas essa atração de voltar-se em seguida
não pode ser boa nem com gratidão para o
má em si mesma, pois infinito que tudo cura e
ela tanto pode regenera, ele usa o mal
significar a obsessão do mundo finito como
pela posse sexual de prova da inexistência do
um corpo determinado, quanto a abertura infinito. Isto não faz sentido, já que o finito
para o desejo do amor infinito por trás da sua não pode sequer ser concebido em si mesmo
concretização temporária na afeição entre como totalidade sem referência ao infinito.
dois seres humanos. Segundo o clássico Quer dizer: o prof. Singer condena o mundo
Dicionário Etimológico de Ernout e Meillet, a finito no instante mesmo em que o glorifica
palavra "carne", do latim caro, vem de uma como realidade última, suprimindo o infinito.
raiz osco-úmbria que significa "cortar" ou Mas, como vimos, é essa mesma supressão
"fazer em partes", a qual subsiste de maneira que torna o mundo finito mau e insuportável,
mais clara no grego karenai, no irlandês uma imagem do inferno. O prof. Singer
scaraim e no lituano skiriu, todos com o tranca-nos no inferno e depois nos acusa de
sentido de "cortar" ou "separar", bem como no viver no inferno.
próprio latim curtus, que originou os termos Seus argumentos contra o mundo finito são
portugueses "cortar", "curto" e, por fim verdadeiros, mas, na escala do infinito,
"castrar". O desejo carnal que a Bíblia condena tornam-se banais e irrelevantes. Nossa
é a afeição hipnótica pelo bem terreno existência só tem sentido e valor quando
amputado, cortado, separado da sua raiz na reconhecemos a limitação do finito e,
infinitude. É o desejo cego de uma coisa erguendo os olhos ao infinito, admitimos que
ilusória que só pode resultar, por sua vez, na essas limitações são também limitadas,
separação entre a consciência humana e o passageiras e, em termos absolutos, ilusórias:
fundo divino da realidade – um fenômeno só a infinitude divina é real de pleno direito –
que condensa em si as características de e é ela que torna a nossa vida possível,
alienação, ou afastamento, e de castração ou suportável e cheia de sentido, ao contrário do
autocastração espiritual. A castração consiste festival macabro de interdevoração que nos
na perda da capacidade gerativa, portanto descreve o Prof. Singer. O sentimento de
também regenerativa. Na escala do infinito, gratidão à infinitude divina não é um ritual
tudo aquilo que é consumido, perdido, religioso, embora possa sê-lo também: ele é,
extinto ou gasto no domínio da matéria e do na base, a única atitude sensata dos seres
tempo é instantaneamente reconquistado e humanos que reconhecem a estrutura da
recriado na eternidade. A eternidade é a realidade e não se deixam hipnotizar por
infinita regeneração de tudo. Tudo aquilo que pesadelos demoníacos, mesmo que venham
entrou na existência por um momento, ainda de Princeton. Dar graças ao Senhor é Diário do Comércio,
que brevíssimo, não pode nem voltar a existir obrigação de todas as criaturas pensantes 05 de dezembro de 2008
no tempo nem desaparecer da eternidade: o e de todas as nações.

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l i t e que m a s s
A e a
virou
E m 1939, Eric Voegelin observava que
as condições essenciais para a
democracia, tal como haviam sido
concebidas no século XVIII, já não
existiam mais. De um lado, a economia e a
administração pública tinham se tornado tão
complexas, que o cidadão comum já não
que o tornavam presa fácil da propaganda
totalitária. De outro lado, as novas classes
surgidas na sociedade moderna – o
proletariado urbano, o baixo funcionalismo
público, os empregados de escritório – eram
bem diferentes dos pequenos proprietários
que criaram a democracia iluminista: eram
preenchia as condições mínimas para formar exemplares do "homem massa" de Ortega y
uma opinião racional a respeito: sua razão Gasset, menos inclinados à busca da
refluíra para o círculo estreito das atividades independência pessoal do que a confiar-se
profissionais e familiares, deixando suas cegamente à mágica do planejamento estatal
escolhas políticas à mercê de apegos e da disciplina coletiva. Tudo, no mundo,
emocionais, desejos pueris, sonhos e fantasias convidava ao totalitarismo.

Svilen Milev/SXC

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O exercício da razão, hoje, é um privilégio dividido entre os grandes
planejadores estratégicos e engenheiros comportamentais, que por motivos
óbvios não pensariam em partilhá-lo com ninguém mais, e os estudiosos
independentes que tentam em vão partilhá-lo com quem não o deseja.

Passados setenta anos, a composição da religião, da moral, da vida privada –


sociedade tornou-se ainda mais vulnerável à mostrou-se plenamente compatível com a
manipulação totalitária. O advento de massas subsistência do processo eleitoral formal, hoje
imensas de subempregados, dependentes em tido como suficiente para conferir a uma
tudo da proteção estatal, somada à destruição nação o título de "democracia". Com esse
da intelectualidade superior por meio da nome ou o de "democracia de massas", a
transformação global das universidades em ditadura por meios democráticos tornou-se
centros de propaganda revolucionária, praticamente o regime universal.
reduziu praticamente o eleitorado inteiro à 6) Restringir o uso da racionalidade às
condição de massa de manobra. As atividades profissionais imediatas,
consequências disso para a democracia foram abandonando as escolhas políticas à mercê de
devastadoras: sonhos e desejos irracionais, deixou de ser um
1) A quase totalidade dos eleitores já nem hábito limitado às classes populares. As
tem ideia do que possa ter sido a próprias "elites", hoje em dia – empresários,
independência pessoal, e aqueles que ainda militares, jornalistas e formadores de opinião
sabem algo a respeito estão cada vez mais em geral – são tão dependentes de
dispostos a abdicar dela em troca da proteção propaganda, slogans e imagens ilusórias, tão
governamental, de benefícios incapazes de um exame realista do estado de
previdenciários, etc. coisas, quanto os empregadinhos de
2) A defesa das liberdades públicas e escritório de que falava Eric Voegelin. Se um
privadas tornou-se irrelevante. A mística do analista político lhes dá fatos, razões,
"planejamento" apossou-se de todas as diagnósticos fundamentados e previsões
consciências ao ponto de que o que resta de acertadas, a "elite" se sente mal. Ela não se
debate público ser hoje nada mais que o ofende quando você lhe sonega a verdade,
confronto entre diferentes – e em geral não como ocorreu no caso do Foro de São Paulo
muito diferentes – planos mágicos. ou da biografia de Barack Hussein Obama,
3) A possibilidade mesma de iniciativas mas quando você lhe conta alguma verdade
sociais independentes foi praticamente que divirja das pseudocertezas
eliminada, na medida em que a estereotipadas da mídia popular, hoje
regulamentação das ONGs as transformou investida de autoridade pontifícia. A elite, em
em extensões da administração estatal e em suma, tornou-se massa – e, como massa, não
instrumentos de manipulação das massas quer conhecimento, visão, maturidade: quer
pela elite iluminada e bilionária. aquele reconforto, aquele amparo
4) A "liberdade de opinião" tornou-se psicológico, aquelas ilusões anestésicas que
apenas a liberdade de aderir a distintos ou os manipuladores totalitários jamais deixarão
indistintos discursos de propaganda pré- de lhe fornecer.
moldados. O exame racional da situação O exercício da razão, hoje, é um privilégio
tornou-se virtualmente incompreensível, dividido entre os grandes planejadores
sendo marginalizado ou absorvido, malgré estratégicos e engenheiros comportamentais,
lui, em algum dos discursos de propaganda que por motivos óbvios não pensariam em
existentes. partilhá-lo com ninguém mais, e os Diário do Comércio,
5) A implantação de políticas de controle estudiosos independentes que tentam em vão 1º de dezembro de 2008
totalitário – da economia, da cultura, da partilhá-lo com quem não o deseja.

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Srs. leitores e anunciantes,
Apresentamos o calendário, para o ano de 2012, de projetos especiais que serão editados pelo jornal
Diário do Comércio, trazendo matérias e reportagens sob o olhar mais profundo do jornalismo setorial,
com o objetivo de detalhar a dinâmica dos mais diversos segmentos da atividade econômica e produtiva do
Brasil.
Para o mercado leitor, uma oportunidade de, a partir da informação, com profundidade, ampliar o
conhecimento e formar opinião com mais densidade sobre o mundo dos negócios.
Para o mercado anunciante, esse elenco de cadernos especiais significa uma grande oportunidade de
estabelecer um poderoso canal de comunicação entre marcas, produtos e serviços com os seus respectivos
mercados.

Solicite o calendário completo para o Depto. Comercial


Ligue: 11 3180-3197 ou acesse publicidade@dcomercio.com.br ww d
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