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Rivitti e Dias Diretto Tributario ANO VII JULHO/DEZEMBRO DE 1983 N56 '25/26 ANO WE CO Revista de Direito Fibiatri Publicada sob os auspicios do IDEPE — Instituto Internacional de Direito Pablico ¢ Empresarial e do IBET — Instituto Brasileiro de Estudos Tributérios Diretores Responsveis Nelson Palma Travassos ¢ Alvaro Malheiros Diretores Geraldo Ataliba e Cléber Giardino Diretores Executivos ‘Alberto Pinheiro Xavier, Paulo de Barros Carvalho, Pedro Luciano Martey Jénior, Fernando Albino de Oliveira e Aires Fernandino Barreto Conselho Editorial ‘Alfredo Augusto Becker, Aliomar Baleciro (1), Antonio Roberto Sampaio Déria, Catlos Mario Velloso, Celso Anténio Bandeira de Mello, Eduardo Seabra Fagundes, Fabio Fanucchi (+), Gilberto de Ulhoa Canto, José Souto Maior Borges ¢ Osiris de Azevedo Lopes Filho Redagio ¢ Assinaturas EDITORA . REVISTA DOS TRIBUNAIS Rua Conde do Pinhal, 78 — Tel. (011) 37-2453 01501 Sao Paulo, SP, Brasil Os colaboradores da RDT gozam de inteira Hiberdade de opiniao, respondendo pelos conceitos .emitidos em trabalhos assinados. CADERNOS DE DIREITO TRIBUTARIO NUCLEO DA DEFINIGAO CONSTITUCIONAL DO ICM (Operages, circulagio e safda) GERALDO ATALIBA Professor Titular na Faculdede de Direlto da PUC/SP ‘Professor Adjunto na Faculdade de Direito da USP CLEBER GIARDINO Professor na Faculdade de Direlto da PUCISP SUMARIO: I — Definiggo constitucional do ICM. II — A, expressiio “opera: ges”. II] — Circulagéo — Conceito juridico. IV — A “safda” da merca- doria — Aspecto temporal da hipétese de incidéncia do ICM. I — Definig&io constitucional do ICM 1. Nenhum problema emergente da aplicagio da legislagio do ICM — e, muito menos, o que posto nesta consulta — pode ser resolvido enquanto nao se conhecer, com rigoroso critério jurfdico, a sua precisa hipotese de incidéncia, tal como pressuposta pelo texto constitucional. Para tanto, é mister interpretar a Constituigio, pondo em prética a Hicida ¢ rigorosa ensinanga do professor Min. Leitio de Abreu, segundo a qual a exegese b4 de partir do Texto Maior para o menor e nao 0 contrério, como tantas vezes se faz.1 E que, como norma inaugural ¢ primeira na ordenagio juridica, nfio pode a Constituigao ser inter- pretada & luz da lei. Pelo contrdrio, ¢ imperioso abstrair a legislagao, para corre: tamente apreendet-se o exato contetido do texto constitucional. A lei é que deve adequar-se & Constituigiio, ¢ nfo esta aquela; jsso € cedigo em regimes de Cons- tituigo rigida, como o brasileiro. Este postulado hermenéutico comega com J. Marshall, passa por Ruy e vem até nossos dias, nas ligdes de Victor Nunes, Seabra Fagundes, Celso Anténio e todos os publicistas de prol. Muito embora sé a lei ordinaria de cada Estado possa estabelecer a hipdtese de incidéncia do ICM (como, de resto, dos outros tributos estaduais), j4 na Constituigdo delimitam-se ¢ fixam-se os termos genéricos da sua defini¢ao, com isso circunscrevendo-se as competéncias tributérias dos Estados. Nisso consiste © conteddo do art. 23, II, e §§ do texto constitucional. 2. Esse contetido constitucional vincula a interpretagio. Efetivamente, ne- nhum intérprete da Constituigdo pode reformular o raciocinio do constituinte, para rever sua motivagao e aferir seus fundamentos; sé Ihe cabe, modestamente, deduzir juridicamente os comandos postos. que, no caso, o legislador consti- tuinte esgotou o juizo de mérito, considerando a disciplina instituida em todos ‘os seus aspectos de conveniéncia e oportunidade. O intérprete, portanto, deve 102 REVISTA DE DIREITO TRIBUTARIO — 25-26 ignorar as consideragdes sociais, financciras, politicas ou econémicas desenvol- vidas pelo legislador constituinte, na fase pré-legislativa. Apenas atuar4, cienti- ficamente, no plano dogmatico, buscando captar o sentido e o contetido dos mandamentos criados. Outrossim, nos limites do campo constitucional desse modo citcunscrito, reconhecer4 o alcance da legislagao ordinéria editada com apoio nesses poderes. 3. A Constituigdo, verdadeiramente, nao cria tributos, ensina Amilcar Fal- cio. Limita-se a dar as pessoas politico-constitucionais os poderes necessérios para crid-los. Assim faz, no caso brasileiro, atribuindo-lhes faixas de competén- cias legislativas, identificdveis pela mengdo aos mais importantes aspectos da hipétese de incidéncia dos tributos outorgados. ‘No caso dos tributos vinculados (taxas e contribui¢do de melhoria), o Texto Magno esgota o enunciado genérico da hipotese de incidéncia (ns. I ¢ II do art. 18), de modo a jungir, estritamente, a esfera de liberdade do legislador ordi- nério. Quanto aos impostos, ora menciona conceitos relativamente amplos (ex. yenda e proventos de qualquer natureza), ora precisa rigidamente o aspecto material da hipétese de incidéncia, fixando marcadamente o perimetro da agao legislativa ordindria (ex. importacio de produtos estrangeitos). Dessa Ultima espécie as referéncias constitucionais ao ICM. 4. Ao prever a competéncia estadual para criagao desse tributo, 0 consti- tuinte foi tao minucioso que acabou relegando limitadissimo espago 4 discrigao das Assembléias Legislativas. Foi quase exaustivo o texto constitucional a esse propésito. Referindo-se a esse imposto, prescreveu: “Art. 23. Compete aos Esta- dos ... instituir impostos sobre: I — ... Il — a) operagdes; ‘b) relativas a; ©) circulago de; d) mereadorias; e) realizadas por; f) produtores, industriais e comerciantes...” . Ora, essa tiqueza de detalhes impée método especial & tarefa hermenéutica: importa, em primeiro lugar, decompor articuladamente esse enunciado — de modo a aprender o sentido juridico imanente a cada palavra, ou expresso ntilizada — para, sé depois, empreender 2 interpretago sistemética dos seus respectivos contetidos. Nessa tarefa cumpre ter presente que a chamada exegese Jiteral nao é ainda uma verdadeira interpretagao; constitui simples pressuposto de interpretagio, que deve necessariamente preceder qualquer trabalho herme- néutico, como ensina Paulo de Battos Carvalho. . Da interagao sistematica de todos estes termos — alguns substantivos, outros adjetivos, outros circunstanciais ou restritivos — resultaré, finalmente, o aspecto material da hipdtese de incidéncia do ICM, como engendrado pela Constituigao. Outras definigdes do ICM — que se situem aquém destes precisos e estritos quadrantes — serdo injuridicas e, pois, inaceitéveis. Quanto & definigao econé- mica — tio difundida ¢ divulgada — é absolutamente imprestavel, s6 concor- rendo para prejudicar uma limpida exegese juridica, multiplicando perplexidades e dificultando a fixagio dos estritos termos normativos desse tributo. 5. O desprezo por estas adverténcias, assim como os atraigados precon- ceitos econémico-financeiros prevalecentes nesta matéria, chegaram a produzir a desastrosa inteligéncia — infelizmente bastante generalizada — no sentido de que a hipétese de incidéncia do ICM consistiria na saida da mercadoria. Ora isso 6 um monstruoso despropésito. (NUCLEO DA DEFINICAQ CONSTITUCIONAL DO 1CM 103 A saida é mero aspecto temporal da hipétese de incidéncia do ICM. E um fato (qualificador de um momento) que o legislador reputou adequado pata representar a consumagto do fato impontvel. Considera a lei que, a0 sair a mercadoria do estabelecimento, jé se prefez, verificou, foi realizada a operagao mercantil que the deu causa. Dai por que simples saidas que no correspondam, como efeito material, A ocorréncia prévia de “operag6es relativas & circulagao de mercadorias” nao preenchem a figura tfpica da hipétese de incidéncia do ICM, nfo provocando fatos imponiveis, nem incidéncia, nem nascimento de obriga- g6es tributarias. A necessdria vinculagao da lei ordinaria aos parametros consti- jucionais revelados pelo art. 23, II, obriga recophecer-se, no caso, a interacio sistemdtica da nota saida as demais caracteristicas configurantes da hipétese de incidéncia. S6 assim, com obediéncia, a um s6 tempo, da Constituigo e da lei, se poderd, corretamente estabelecer a mais precisa abrangéncia da hipdtese de incidéncia do ICM. : 6. © importante sublinhar — e chamar a atengfio com énfase — que s6 a primeira parte do n, II do art. 23 do texto constitucional é que cuida da‘hipstese de incidéncia do ICM. Consiste ela, pois, no fato da ocorréncia de: “operagdes telativas A circulagio de mercadorias, realizadas por produtores, industriais € comerciantes”. Essa digo é bastante para indicar, com preciso — exaustiva da fungao disctiminatéria constitucional — 0 campo material de competéncia dos Estados. ‘Age af, a Constituigdo, & semelhanga do que faz quando fixa o campo material de competéncia da Unido (art. 21) ¢ dos Municfpios (art. 24). A técnica ¢ a mesma; o modo de articular a circunscrigao da area material abrangida € idén- tico, Basta, pois, considerar essa operagao, para se ter 0 quadro completo dos elementos de identificagio do campo material da competéncia legislativa dos Estados quanto ao ICM. Se a Constituigao se Jimitasse a essa clausula (vale dizer: se nada além disso tivesse disposto), nenhum dado faltaria para o intérprete conhecer a 4rea constitucionalmente reservada a esse tributo, 0 ambito material da competéncia legislativa estadual quanto ao ICM. Dispondo, como dispés, o Texto Magno esgotou a fungfio delimitadora ¢ circunscritora prépria de preceito inserido na “discriminagio constitucional da competéncia tributéria”. Para esse fim, nada mais é necessario. Portanto, a segunda parte do n. II, do art. 23, ¢ os preceitos contidos nos seus tespectivos pardgrafos —- além dos demais comandos, esparsos pelo texto constitucional, direta ou indiretamente referentes ao ICM — néo alteram essen- cialmente o perfil af estabelecido. Efetivamente, essas regras nao dizem direta- mente sobre o niéicleo da hipétese de incidéncia do tributo, nem concorrem’ para fixar sua definico fundamental. Sao categorias alheias A conceituagio do ICM, embora integrem o regime dinamico de sua operacionalidade (iseng6es, teto de aliquota, abatimentos etc.). £, destarte, por evidente conveniéncia cientffica que se impée o isolamento do nicleo essencial da definigo, em relagfo aos agregados e acess6rios, consti- tucionalmente previstos. Por necessidade de compreensao cientifica, impde-se 2 parturigao maiéutica de todos os conceitos constitucionais envolvidos. 86 apés criteriosa andlise de cada termo conceitual, seré possiyel retornar & reconstrugao socrdtica da unidade global, em que a definigio constitucional do ICM consiste. Tal 6 a proposta que doravante desenvolveremos. 104 REVISTA DE DIREITO TRIBUTARIO — 25-26 Il — A expressiio “operagdes” 7. O conceito nuclear da materialidade da hipdtese de incidéncia do ICM € 0 de operagoes. Esta é, efetivamente, uma expressdo substantiva de descrigao constitucional do tributo; € o micleo em torno do qual se constréi a prépria descrigio do campo material de competéncia dos Estados, Os demais termos, constantes dessa locugao constitucional, sio adjetivos em torno do substantivo operagdes. O cerne, portanto, da materialidade da hipdtese de incidéncia, esté na expresso operagées. As operagées € que se constituem no fulcro de toda a preocupagdo constituinte e, portanto, necessariamente, no centro das preo- cupagées, scja do legislador, seja dos aplicadores administrativos ou judiciais desse tributo. A palavra operagiio, nfio oferece denotagiio univoca. Em tese, pode ser compreendida num sentido econémico, num sentido fisico, ou num sentido juri- dico, Contudo, ao intérprete do Direito s6 interessa o° sentido juridico dessa expressiio, vale dizer, o alcance que, para efeitos de Diteito, ganhou no texto normativo. Para os efeitos do art, 23, IE, do texto constitucional, operagdes sto atos juridicos; atos regulados pelo Direito como produtores de determinada eficdcia juridica; sao atos juridicamente relevantes. Reforga essa inteligéncia, a expresso realizadas, contida no mesmo texto constitucional do n. II, do art. 23. Efetivamente, ai o qualificativo se refere a operagdes, demonstrando que a ténica da di¢ao constitucional centra-se nesta expressio, e nfo na palavra circulagio. As operagGes é que sao realizadas por produtores, industriais e comercian- tes; nfo a citculago. Seria inaceitével atribuir ao constituinte erro tao palmar de concordancia, qual seja o de redigir o dispositive de modo a prever recair © tributo sobre circulagdo... realizadas... S6 esta consideracdo j& mostra que a competéncia dos Estados repousa, fundamentalmente, sobre as operagdes realizadas...; 0 cerne, o niicleo, o fulero do dispositivo est4 nesses termos. Af, © objeto do tributo convencionalmente designado ICM. 8. Esta meditagio, prévia e preliminar do trabalho exegético, é condigiio de solug0 do problema da: determinacdo da hipétese de incidéncia do. ICM, Nao € condigfo suficiente, mas, sem dtvida, é condigao necesséria para equa- cionamento do problema. Nao 6 titil, nem preciso, buscar o sentido que a palavra operagdes recebeu em outras disposigdes constitucionais. Um ligeiro exame desses textos mostra que nao houve, da parte do legislador constituinte, nenhuma preocupagao de coeréncia nesta matéria, variando a carga seméntica do termo em fungaio do contexto constitucional no qual inserido. Com maior razao, nao se deve buscar na legislacZo ordindria o sentido da expresséo constitucional operagdes, mesmo porque, como adverte Leitio de Abreu, nao se pode interpretar a Constituigao & luz dos conceitos legais; pelo contrétio, o caminho inverso & que se impée. A Constituicio, efetivamente, nfo 6 sistemtica, nem coerente, no que se refere ao sentido atribuido a palavra operagiio. A verificagéo do aparecimento dessa expresso em outras disposigdes (inclusive no art. 60), mostra que essa palavra, em si mesma, cada vez merece um alcance diferente no texto constitu- cional. Destarte, s6 0 contexto desses dispositivos (no caso, do proprio n. Il, 106 REVISTA DE DIREITO TRIBUTARIO — 25-26 De outro modo ter-se-ia a inviabilidade dos preceitos, como instrumentos de delimitagio de competéncias. E a prépria seguranga do Direito, a pr6pria necessidade de rigorosa delimitagaio do direito 4 competéncia que tém os Estados, no contexto geral —- e cada Estado, em particular, em face das outras entidades tributantes — que exigem rigor definitério s6 alcangével mediante ‘o formalismo proprio do juridico. Para esse efeito, outros conceitos de operagfio (fisico, econémico etc.) seriam imprestéveis, dada a propria variedade, falta de objetividade e equivocidade que introduzem. $6 0 conceito “operagao juridica” elimina disceptagGes e subjeti- vismos, institucionalizando uma determinada opgdo e, portanto, obrigando o intérprete, nesses casos, a abandonar, totalmente, qualquer pretensiio de buscar, em cohceitos outros — menos ainda os metajuridicos — as definigdes que se dem como nucleares. 11. Melhor se compreende o substantivo “operagdes”, quando se consi- dera os adjetivos que o qualificam. Da digZo constitucional resulta claro que o ICM nio consiste num imposto sobre mercadorias, tampouco num imposto sobre circulagéo. Paulo de Barros Carvalho pensa da mesma maneira: “No esquema de compreensio da regra-matriz do ICM, 0 critétio material vem expresso pelo comportamento de alguém, ou pela ago de uma pessoa, ffsica ou juridica, formalizada por “promover operagées relatives & circulaglio de mer- cadorias”. “Tmporta sinalar que o tributo nao onera a circulagéo de mercadorias, mas as operagées a ela relativas. A ponderagaio desse aspecto é de cabal relevo para explicar a verdadeira latitude do critério material da hipétese colhida no preceito constitucional que outorga competéncia aos Estados para instituir o gravame, ad litteram”.? Assim também pensa Carlos da Rocha Guimaraes, ao lado de Souto Maior Borges, Eduardo D. Bottallo, Roque A. Carrazza, Sacha Calmon, Paulo Celso Bonilha, Pedro Luciano Marrey Jr., Pérsio Oliveira Lima, Aires F. Barreto € tantos outros juristas de destaque. E que essa conclustio é de meridiana clareza, resultando até mesmo da linguagem constitucional que — como visto — é ponto de partida do trabalho hermenéutico. Se o intérprete nao atentar para tais exigéncias, fatalmente incidira em graves equivocos, deformando completamente todo o instituto constitucional do ICM. Assim, a natureza ou a espécie da mercadoria 6 indiferente para qualificar © tributo. Basta que se configure o género (mercadorias) para que a operagao — que a tem por objeto — se haja por tributdvel, na forma legal. O mesmo se diga das espécies de circulago (venda, permuta etc.). Quando, por linguagem legislativa elitica, se diz que o leite, p. ex., é isento, tal cl4usula deve ser enten- dida pelo intérpreté como referida 4 operagio que tem o leite por objeto. Sé assim se erige um ICM consentaneo as exigéncias bisicas que o sistema consti- tucional postula. 12. Os autores que vém no ICM um imposto sobre circulagao, ou sobre mereadorias, esto ignorando a Constituigao; esto deslocando o cerne da hipd- tese de incidénicia do tributo, da operagao — af posta pelo proprio Texto Magno — para seus aspectos adjetivus, com graves conseqiiéncias deletérias do sistema. A respeito dessa tao disseminada propenstio — tao-s6 baseada em preocupagdes © preconceitos econémicos — Paulo de Barros Carvalho escreve: “Comega por NGCLEO DA DEFINIGAO CONSTITUCIONAL DO ICM. 107 ignorar vocdbulo do Texto Supremo, vestido com enorme significacao: operagdes. ‘Ao revés de conceber imposto que incida sobre operagées relativas a circulagao de mercadorias, a aludida teoria suprime, desautorizadamente, a palavra-chave, a pedra de toque do comando constitucional, para enfatizar a locugao adjetiva, que nada mais faz do que qualificar aquele primeiro termo, rompendo, com isso, a estrutura oracional do dispositivo da Constituigéo, sem tom nem som, com dano para a clareza e sem lucro para a adequada compreensao do sentido e alcance da outorga de competéncia impositiva” (ob. cit., p. 58).° Carlos da Rocha Guimaraes, ao sublinhar a necessidade de diferenciar os fatos econémicos puros e simples dos que adquirem relevancia juridica diz: “Desse modo, se a palayra operagdes é 0 nticleo do fato gerador do ICM é porque o texto constitucional deve ter um sentido diverso do de simples opera- G0 fisica, a qual poderia talvez se caracterizar suficientemente pelo simples emprego da palavra circulagiio. Nem poderia ser de outro modo, se tivermos sempre em mente que qualquer norma, de qualquer nivel, da chamada piramide juridica (Merkl, Kelsen), nao sé faz parte de um sistema, como também € a yesultante formalizada de uma conduta humana socialmente nela objetivada”.* ‘A convicco desse emérito pioneiro na meditagdo sobre o fenémeno juri- dico-tributéric € robusta. Por isso assevera: “Podemos, pois, afirmar que a expresso “operag6es relativas a circulagio” n&o pode ser interpretada como se referindo a operagées meramente econémicas, mas, quando muito, a operagoes juridicas com substrato econémico. Em conscqiiéncia, a expresséo “operagées relativas a circulagao”, utilizada no art. 23, II, da CF de 1969, s6 pode significar operagdes juridicas”. ° Quanto a isso no se pode mais admitir diivida. As operagdes, referidas pelo art. 23, II, da CF, configuram atos juridicos, atos relevantes para o Direito, Operagées como atos regulados pelo Direito; atos a que 0 Dircito attibui efeitos juridicos. Negécios juridicos, mais propriamente. Na verdade, ou se entende que a Carta Magna circunscreve a hipétese de incidéncia do ICM a negécios juridico-mercantis, ou se afirma que ela nao delimita as competéncias tributdrias estaduais, deixando ao arbitrio legislativo assim entender qualquer fato, qualquer fenémeno ou mesmo qualquer aparéncia, © que nega o cardter mais peculiar do nosso sistema constitucional, nessa parte. A tanto conduz reconhecer-se tal fluidez ao conceito operagdes que nele, verda- deiramente, qualquer situagio poderia ser acomodada. Tdéntica € a posigfo de Baleeiro, que escreveu no seu festejado Direito Tributério Brasileiro: ® “O que nos parece bem dificil — talvez impossivel — € que a mercadoria seja objeto de operagao econémica legitima sem que ocorra ato ou negécio juridico”. O préprio mestre Rubens Gomes de Sousa — autor principal do anteprojeto que se converteu na EC 18/65, & Constituigéo de 1946, introdutéria do ICM no nosso sistema — ao sublinhar a identidade econdmica entre IPI ¢ ICM, enfatiza que este por incidir sobre operagdes, e ndo sobre produtos, é uniforme. e no seletivo”.7 Essa afirmacao tem o aval de Gilberto de Ulhoa Canto, j4 que 6 reprodug&o de trecho do “Segundo relatério”. ® . “13. Sé apés reconhecer a existéncia de uma operagio, entendida como negécio juridico, o intérprete passaré a verificar se os demais requisitos consti- ‘tucionais esto presentes: ciroulagdo ¢ mercadoria também juridicamente enten- 108 REVISTA DE DIREITO TRIBUTARIO — 25-26 didas. Se todas essas notas se configurarem num dado caso (¢ mais a saida da mercadoria, como veremos adiante), entZo seri forgoso reconhecer a sub- sungao, do fato material ocorrido, & hipétese de incidéncia tributdria; nesse fato identificar-se-4 um fato imponivel de ICM. A qualificagio da operagéo é dada pelas cléusulas adjetivas circulagtio e mercadoria. Cada qualificacio implica restrigfo a amplitude do termo opera- do, Esta regra obriga a lei a adotar como materialidade da hipdtese de inci- déncia do ICM um negécio juridico (ato de contetido negocial), voluntariamente realizado, a luz do Direito Privado. Se bem a vontade das partes nado se dirija a ptoduzir efeitos tributérios, € por sua ocorréncia que se engendra 0 negécio mercantil, fundamento nuclear da incidéncia do ICM. A lei tributéria considera a realiza¢éo voluntéria da operagdo um fato. A relagio tributéria, por outro lado, no nasce diretamente da manifestagdo de yontade das partes, mas desse fato. Dai o dizer-se que a obrigacdo tributéria € obrigacio legal, ex lege (A. R. Sampaio Déria). Pontes de Miranda sublinha que o ICM é tributo sobre “quaisquer negécios jurfdicos de compra-e-venda ou outro negécio de circulagéo, qualquer que seja © objeto do negécio”,® pondo toda énfase no negécio, tradugo juridica da operacdo mercantil tributada. © STF também tem proclamado a nao incidéncia do ICM, em certos casos nos quais se reconhece a inexisténcia de operagées, embora outros requisitos se configurem.?° O Min, Djaci Falcdo relatow recurso 14 em que se decidiu pela inexigibilidade do ICM, porque a mercadoria (carne) continuava no domi- nio do dono; ndo havia, portanto, negécio juridico a tributar. Merece ser Jido 0 estudo de Baleeiro, a respeito do cunho essencial do ICM, repousando sobre operagées juridicas mercantis, pela cabal e exaustiva demonstragao que faz dessa circunstincia, 1? 44. Sobre ser mercantil, a natureza da operacao, também nao parece haver possibilidade de dtivida de monta. B que mercadoria, enquanto categoria juridica, € conceito definido pelo Direito Comercial. Nisso concordam gregos e trojanos. Paulo de Barros Carvalho, apoiando-se em Carvalho de Mendonga, Walde- mar Ferreira ¢ outros, afirma: “Sobre a indole eminentemente comercial das operagdes referidas, aliés, cremos que pouca divida poderia emergir”. Em seqiiéncia, com argicia juridica prépria do cientista eximio que ¢ agrega: “Esplende, intuitiva, a edugdo de que as operagdes mencionadas no texto constitucional somente podem set de natureza juridico-mercantil, associadas que foram a um fenémeno de circulagéo de mercadorias”. E arremata: “Esta a importancia capital da palavra operagées, inserta no Texto Supremo e lamentavelmente esquecida no nivel da aplicagio efetiva ¢ prtica do tributo. inexistindo titulo juridico para que a mercadoria circule, nao haverd falar-se de acontecimento fatico que se possa frisar com a previsio normativa”. 1 15. N&o se invoque a chamada incidéncia do ICM, nas remessas para outros Estados, como argumento para negar o cunho de negécio juridico-mer- cantil das operagdes. Ocorre, nesse caso, tao-somente a necessidade constitu- cional de assegurar equanime reparticao das receitas do ICM entre Estados, exigéncia fundamental para manutengao do equilfbrio federativo. Séo, pois, ra- es superiores, imediatamente decorrentes da igualdade federal, que obrigam NUCLEO DA DEFINICAO CONSTITUCIONAL DO ICM 109 esta excego. Nesse sentido, a excegfo, ao invés de negar, confirma a regra: a hipétese de incidéncia do ICM € a realizacdo de operagGes negociais. Por isso a chamada questio do “ICM nas transferéncias de mercadorias entre estabele- cimentos do mesmo titular” € matéria que sé interessa no plano limitado das relagdes interestaduais. Em conclusao, pode-se afirmar que o ICM, por forga de exigéncias consti- tucionais sistematicamente deduzidas, tem por fulcro as operagGes, entendido este conceito como sinénimo de negécios juridico-mereantis. S6 cabe o tributo, pois, mediante fato consistente na realizado desses negécios. Nenhuma ‘saida, movimentagao, deslocamento, transporte ou manipulagdo de bens, por qualquer pessoa, a qualquer momento, propiciard a incidéncia do ICM se nela (operagao) nao estiver fundamentado. Essa 6 a condigio essencial, minima, atémica, na fenomenologia da incidéncia do ICM. TIE — Circulagiio — Conceito juridico 16. B evidentemente equivocada a inteligéncia — que vai sendo aos poucos dissipada, gragas & evolugdo da jutisprudéncia —- no‘ sentido de que a Consti- tuigdo, ao cuidar do ICM, colocou como nécleo da sua hipétese de incidéncia a circulagao. (Circulagao, para a Constituigdo, € simples efeito do fato opera- ges: estas, as operagdes — que por sua vez, devem dizer respeito & circulagio de mercadorias — é que sitio colhidas pelo tributo). A operagao, para ser tribu- tAvel (isto é: para ser hipétese de incidéncia do ICM), deve implicar (provocar, causat) circulagiio de mercadoria. CirculacgZo é expresso que deve ser entendida juridicamente. Do ponto de vista econémico, o termo é vago ¢ impreciso: é, pois, imprestével para assegurar a objetividade e seguranga especificas do direito. E Sbvio que sé hé circulagéo se houver operagao que a provoque (isto nfio quer dizer que o imposto possa ser considerado sobre circulagio; 0 nticleo da hipétese de incidéncia esté na operagao). E a circulagao, a que se refere a operagaio (relativa a ela), nao pode ser outra se nao a circulago juridica, isto €, efeito-juridico-provocado, decor- rente de fato-juridico-provocante. 17. Equivoca-se a corrente que quer ver nessa circulagéo um puro e sim- ples fenémeno econémico, imediatamente apreensivel por qualquer aplicador. Na verdade, s6 a exegese juridica tem instrumental para permitir reconhecer 0 fendmeno jurfdico da transmisséo de certos poderes jurfdicos sobre a mercadoria. Nao se nega ser econémico o substrato pré-juridico desse tributo (a chamada circulago econémica), Nem se nega que a motivagao do constituinte tenha partido de tal preocupagéo. Nem mesmo se pretende infirmar a tese — vélida pata as ciéncias econémicas — de que € a circulagio econdmica o fenémeno visado pelo pressuposto ou suporte fatico do tributo (Alfredo Becker). Isso € yGlido no plano préjuridico. O que se nega — € peremptoriamente — & que se tenham esses fatores refletido nas normas, e que o jurista deva conhecer categorias substanciais, econémicas, pré-juridicas, para conhecer o Direito. inaceitavel a postura de quem — pretendendo desempenhar tarefa exe- géticojuridica — se detenha em consideragdes sobre a intengfo dos legisla- dores (a mens legislatoris), descurando, assim, do contetido da norma, tal como inserida no sistema normativo (a mens legis). O que nfo é possfvel aceitar € que 110 REVISTA DE DIREITO TRIBUTARIO — 25-26 ignore o jurista a formulagdo juridica expressa; que tdo-s6 cogite do pressu- posto econémico, para por ele guiar-se, negligenciando precisamente as exi- géncias normativas. . A digdo constitucional deve ser interpretada juridicamente, com critérios jurfdicos: interpretagao informada por categorias ¢ técnicas da ciéncia do Direito. © conceito tinico e decisivo a ser considerado ha de ser o de circulagao juridica, Este nem sempre, nem necessariamente, coincide com o conceito econémico. Pode mesmo haver (e ha exemplos nitidos desse fato) circulagao econémica, sem haver circulagio jurfdica, e vice-versa. Mas sé pode haver circulagio juri- dica, como efeito (conseqii@neia) de operagao juridica a que, por determinagéo constitucional, deve estar ligada. . O sentido da expresso constitucional operagio, anteriormente visto, vincula a interpretag3o do qualificativo circulagio. Apenas algo que, juridicamente, possa ser considerado efeito de operagdo é que, na forma constitucional, poderé preencher o sentido que a Constituigao faz residir na expresso circulagao, Essa seré a circulacdo juridice alvitrada constitucionalmente. E a ela que se deverd referir (ser relativa) a operagéo tributada. O conceito dessa circulagao juridica é que, doravante, procuraremos precisar. 18. © ICM, como visto, nao é um imposto sobre circulagio. Tampouco € um imposto sobre mercadorias. Circulagiio e mercadorias si0 — para os efeitos de identificagéo da mate- tialidade da hipdtese de incidéncia do ICM — meros elementos adjetivos, de qualificagao da operagao tributada. Nisso, e apenas nisso, se resume o alcance desses termos. Sua fungdo ¢ a de reduzir e limitar a certos e determinados negé- cios jurfdicos (operages) a virtude de desencadearem obrigagées tributdrias do ICM (adjetivo, aqui, se emprega no sentido genialmente postulado por Alfredo. Becket). que se tribute so as operagées. Nao todas, porém. Apenas aquelas que se refiram, digam respeito, sejam relativas (como diz a Constituigo) & circula- cdo de mercadorias. Por isso observa Carlos Rocha Guimaraes, “ referindo-se 4 hipétese de incidéncia do ICM, que a circulagao no é o elemento principal, mas a sua fungio é adjetivar a expresso operagdes. F verdadeiramente inexpli- cdvel a indecisio da doutrina e da jurisprudéncia em aceitar essa: observacao, até literalmente assentada na digfio Constitucional. Ninguém jamais ousaria negar que o imposto sobre a propriedade terri- torial rural na verdade incide sobre a propriedade. E tampouco que, nesse caso, os adjetivos territorial, de um lado, ¢ rural, de outro, sejam meras limitagdes restritivas da extensdo e natureza da propriedade que a lei quer tributada. Submete-se a incidéncia, nessa hipdtese, o fato propriedade, desde que a sua situagdo seja na érea rural. se Da mesma forma, nunca se contestaria que a exigéncia constitucional de serem produtos estrangeiros os bens alcangados pelo imposto de importacdo apenas implica reduzir o rol dos produtos submetidos a esse imposto. E, porém, sobre o préprio fato importagio que incide o tributo; centra-se, portanto, sobre esse fato (e nao sobre seus aspectos adjetivos: produtos, origindrios do exterior) toda a estrutura normativa do tributo. Com igual critério ¢ semelhante instru- mental 6 que deve ser estudado o ICM, pois cuida-se, em verdade, de similar realidade normativa. NGCLEO DA DEFINIGAO CONSTITUCIONAL DO ICM iit Objeto do tributo — fato tipico referido pela Constituig&io, e gravado, onerado pela fei — € 0 negécio juridico realizado por certas pessoas {nticleo da hipétese de incidéncia), Isto porém, se esse negécio disser respeito (por tela- tivo) & circulagdo de mercadorias {termos de delimitagio do objeto gravado). Sem que essa postura exegética seja definitivamente accita, poucos progressos poderao ser feitos em matéria de interpretacao do ICM brasileiro. Um dos nossos mais argutos juristas, Souto Borges, sublinha enfaticamente que o ICM “nao recai sobre a circulacéio em si”. Baleeiro — comentando a tese da corrente que no ICM vislumbrou um imposto sobre a circulagio (econémica) — renova a ironia da invocago do furto como fato imponivel. 1° E af manifesta concordar com Souto Borges em que o ICM apenas ampliou o antigo IVC (Imposto sobre Vendas e Consignagdes), para alcangar outras “operagées” além das duas ante- riormente oneradas. ? Nisso, ambos reiteram observagio de Rubens Gomes de Sousa, quando redigiu a justificagio da EC 18, que introduziu o ICM no Diteito brasileiro, em substituigéo ao IVC. . 19. Para mais ainda dificultar a compreensio. do objeto normativo, muito contribuiu a propria designacao ICM, que é errada sob a perspectiva juridica. $6 do Angulo préjuridico (econémico financeiro) seria ela aceitével (imposto’ sobre circulagao). Mas, os juristas nfo lidam com meros fatos, nem com fatos econémicos. Lidam com fatos juridicos ou — como querem Lourival Vilanova e Pontes de Miranda — fatos juridicamente qualificados. Pois, o fato constitu- cionalmente previsto para ser qualificado pela lei ordinéria como materialidade da hipétese de incidéncia do ICM € a operagio, e no a circulagfio que dela decorre e que, por isso mesmo, com ela néo se confunde. 20. Circular significa, para o Direito, mudar de titular. Se um bem ou uma mercadoria muda de titular, circula, para efeitos jurfdicos, Convenciona-se designar por titularidade de uma mercadoria & circunstancia de alguém deter poderes juridicos de disposigo sobre a mesma, sendo ou nao seu proprictario (disponibilidade juridica). Esse fendmeno € que importa, no plano do ICM. Sempre que haja operacao juridica negocial, de um lado, e mercadoria, de outro, havera circulagao, quando o sujeito (que detém a mercadoria e foi parte na operagao) ¢ titular de direitos de dono e os transfere total ou parcialmente (pela operacao) a outrem. Assim, aquele que — tendo sido parte na operacdo — transferiu a outrem direitos de dono, promoveu circulacio (ao realizar a operag&o). Por direitos de dono entendem-se os direitos inerentes & propriedade (basicamente a disposic¢do da coisa). Paulo de Barros Carvalho &, a respeito, incisivo: “Ressalta a mais pura evidéncia que a mutagao -patrimonial hd de - operat-se sob o palio de um titulo juridico, equivale a dizer, 2 sombra de um contrato comercial, nominado ou inominado. Mesmo porque, s¢ assim ndo fosse, 0 direito positive nao poderia consideré-la Jegitima, sob pena de exalgar os atos ilicitos, equiparando-os aos licitos, pois a tinica forma que a ordenag&o juridica contempla, de passagem de um bem do patrim6nio de A para o patriménio de B, & aquela que corresponda aos muitos simbolos do Direito, por ela estabelecidos”. 21. Hé cixculagdo, conseqtientemente, quando ocorre “transmissdo da titu- laridade ut dominus”. Ha circulagio, quando alguém recebe direitos de dispo- nibilidade (poder-de dispor) sobre uma mercadoria. Este conceito constitucional (circulagao juridica) € mais amplo do que a simples transferéncia de dominio, estritamente compreendida pelo Direito Privado. Nao deixa, entretanto, de ser 112 REVISTA DE DIREITO TRIBUTARIO — 25-26 um conceito juridicamente apreensivel. Logo, nao sé a transferéncia da proprie- dade stricto sensu importa circulacio. Também a mera transferéncia de posse — a titulo negocial — produz “circulagao”, quando implique transferir poderes juridicos tipicos do dominio, conferindo ao transmitido disponibilidade juridica sobre a mercadoria. A “disponibilidade” — por ser atributo destacdvel do dominio — pode ou nao ser titularizada pelo dominus. Este pode transferfla, negocialmente, a outrem. Exemplo marcante, ilustrador do afirmado, esta na alienagao fiduciéria em garantia. Neste negécio complexo, o credor fiduciério torna-se dominus da mercadoria, ficando 0 devedor como seu mero possuidor. Antes do contrato, posse e propriedade reuniam-se na pessoa do devedor. Pelo contrato, o dominio (propriedade) transfere-se para o credor. Resgatado 0 contrato, posse e proprie- dade retornam ao devedor. Hf, portanto, ai, duas transferéncias de proprie- dade. Estas transmissdes, porém, dio-se somente no plano formal. Na verdade, na vigéncia do contrato, o credor fiducidrio nfio detém todos os atributos da propriedade, embora seja dono. O bem — para o credor — nfo é “disponivel”, por isso que nao recebeu tais poderes pelo contrato. E nfo os podia trans- mitir, a9 cabo de sua execugdo. Daf o nao se poder falar em circulagio, e, no caso nao ser cabivel ICM sobre a operagio realizada. Segundo exemplo: empréstimo de bens fungfveis. Pela prépria natureza desses bens, o mutudrio assume poderes plenos sobre a mercadoria (exercendo, portanto, os atributos de dono; dispondo da mercadoria, podendo agir juridica- mente como se dono fosse). Sob a perspectiva formal, dominus é 0 mutuante. Do ponto de vista eficacial, porém, a operagéo considerada (empréstimo de bens fungfveis) teve a virtude de transferir ao mutudrio faculdades juridicas préprias de dono, Daf o reconhecimento da existéncia de circulagio nessa hipétese e, por conseqiiéncia, ser cabfvel ICM sobre a operag&o que a determinou. A trans- feréncia de disponibilidade por forga de negécio juridico, configura, portanto, a cireulagdo a que se refere o art. 23, II, da CF. 22. Como visto, 0 conceito de circulagdo constitucionalmente pressuposto mais amplo que o conceito juridico privatistico de transmissio de propriedade. Isso porque, para o art. 23, II, da CF, a circulagfo corresponde a uma translagio de direitos, assim entendida, fundamentalmente, a transmissio de poderes juri- dicos de disposigSio sobre uma mercadoria. Por isso a circulagéo juridicamente relevante, para efeito de ICM, é a que consubstancia transferéncia, ou cessiio, de poderes juridicos entre pessoas privadas, sendo negociante o cedente. Carlos Rocha Guimaries enfatiza que “o fato gerador do ICM € a operagaio juridica relativa & circulagSo juridica de mercadoria”. O que € também ressaltado por Alcides Jorge Costa, ao ponderar que “uma reflexfo elementar mostra que-a circulagiio nao € possivel sem a tutela do direito; quanto & cessfo, nao tanto sua exeqiiibilidade, mas sua prdépria existéncia, exige ume regulamentagfo juridica”. 8 © relevo dessa circunstincia também nfo escapou a argticia de Arnoldo ‘Wald, quando sustentou que “néo se deve confundir nem identificar a circulagio econémica com a saida fisica, o transporte dentro da mesma empresa, mediante a remessa de armazém a filial ou de um para outro estabelecimento da firma, com a transferéncia de bens para terceiros, pois somente ocorre circulagio quando a mercadoria é transferida, passando de um patriménio para outro, NUCLEO DA DEFINICAO CONSTITUCIONAL DO ICM 113 qualquer que seja a motivagao juridica da operagio”.*® Desses autores nao discrepa — embora menos explicito — Geraldo de Camargo Vidigal, quando encarece néo haver “pois, circulagéo na simples operagio de transporte ou de deslocagio de mercadorias. O conceito de circulagéo esta intimamente ligado ao de troca”. Ora, no se ignora que troca, nesse contexto, é sinénimo de negécio juridico translativo de direitos, Nessa mesma linha, Carlos da Rocha Guimaraes adverte que “a expressao circulagéo” nfo pode ter o significado de circulago meramente fisica, pois, se assim fosse, desnecessdria seria a expressdo operagées antecedendo-a na referida relago. Desse concerto doutrinério — raro, em matéria de JCM —- vé-se que a circulagéo constitucionalmente disposta (mo art, 23, II) ha de ser juridica, traduzindo-se na transmisséo negocial de direitos sobre a mercadoria. Transmissfo de um conjunto de direitos que, no minimo, dé ao transmitido poderes de disposigdo sobre a coisa. Destarte, a simples transferéncia de disponibilidade sobre mercadorias importa circulagdo, para efeitos constitucionais. Toda operacdo negocial, apta a transmitir a outrem poderes de disposig#io sobre bens dessa espécie, pode ser éleita pelo legislador ordinério como hipétese de incidéncia do ICM. O novo titular, embora em muitos casos nfo receba o dominio, recebe, pelo negécio realizado, disponibilidade (ou o poder de dispor) sobre o bem havido. Por isso, sirculagaio € conceito constitucional mais abrangente que a simples transferéncia de propriedade. Engloba também a transferéncia somente de um de seus atri- butos: 0 poder juridico de dispor da coisa. Fenémeno esse também juridico, embora com contornos desbordantes do estreito continente em que se envolucra a transmissio estrita da_propriedade. Hé circulagfo quando a operagéo importa mudar o titular da mercadoria; embora sem implicar, em muitos casos, a mu- danga concomitante do titular do dominio. Como acontece, além dos casos jé citados, nas hipdteses da comissio mercantil, da consignagaio, do penhor de bens fungiveis etc. 23. Esse conceito de circulagiio foi incorporado, com perfeita clareza, a propésito de tributo semelhante — o Impuesto al Valor Agregado — 3 lei uru- guaia (Titulo 9 do Texto Ordenado de 1976, em seu art. 2.°, “a”), que estabe- Jeceu: “Por circulacién de bienes se entenderd toda operacién a titulo oneroso que tenga por objeto la entrega de biencs con transferencia del derecho de pro- priedad o que dé a quien los recibe la facultad de disponer econémicamente de ellos, como si fuera su proprietario...” Fica claro, assim, que os negécios mercantis como o depésito, o comodato, a Jocagdo — nos quais no se transmite nem sequer esse simples poder juridico de disposiggo — mesmo configurando operagées negociais tendo por objeto mercadorias, nao se referem A circulagdo, precisamente porque deles nao pode decorrer efeito constitucional minimo para que esse fendmeno se dé, qual seja o de produzir transferéncia de disposicao, ou disponibilidade, sobre uma merca- doria. Daf nao poderem ser — como a prépria experiéncia na aplicagéo do ICM tem revelado — alcangados pelo tributo estadual. Nao hé, af, incidéncia. 24. Destas consideragdes se vé que a Constituigao, ao aludir a circulagio, nao se prendeu a rigidos conceitos formais de transmissfo de propriedade, mas indicou uma realidade substante, embora também juridica. Mais abrangente, mais lata, mas da mesma forma inconfundivel com a chamada “circulacéo eco- némica”. Por isso, empregou a expressao técnica circulagdo (mudanga de miios, 114 REVISTA DE DIREITO TRIBUTARIO — 25-26 mudanga de titularidade), ao invés de simplesmente ampliar o rol de negécios significativos da materialidade da hipétese de incidéncia do imposto. Se o consti- tuinte quisesse ficar preso a conceitos jurfdicos formais, teria apenas aposto, as yendas ¢ consignagées, outros negécios também reconhecidos pelo seu revesti- mento formal, tradicional e ortodoxo. O conceito juridico de circulagiio visado pelo texto constitucional tem, entretanto, limites mais extensos. E com esse alcance que deverd servir para o exame e compreensio da legislagdo instituidora do ICM, em nosso Direito. 25. &, por outro lado, ébvia — e, pois, dispensa demonstragdo — a circunstancia de que cessio de direitos sobre mercadorias sé pode ocorrer entre spessoas diferentes. J4 frisamos inexistir cessio pata si préprio; no ha como cogitar de transferéncia de direitos para si mesmo. Supor incidir ICM nessas situagdes significa desnaturar o tributo no perfil que a ele atribuiu a Consti- tuigéo Federal. Tao dbvio é isso que mesmo os mais audaciosos legisladores ordinérios nfo ousam proceder essa inaceitével deformagao. Quando, pois,-a administragio do ICM entende devido o tributo nessas circunstncias (como in casu), mais que A lei, agrava-se o sistema jurfdico como um todo. Ocorre, entio, distorgo profunda da compreensao constitucional e agride-se os padroes da discriminagao constitucional de competéncias tributérias. Hé, ai, manifesta arbitrariedade, que ao Judicidrio cabe obstar, em homenagem as exigéncias superiores do nosso sistema juridico, insculpidas categoricamente no Texto Constitucional. IV — A “saida” da mercadoria — Aspecto temporal da hipdtese de incidéncia do ICM . 26. A-vista do contexto juridico-constitucional retro exposto, resulta claro que pensar num ICM gravando o fato saida de mercedorias consistitia em rema- tado absurdo. Profundo engano haveria em supor que o legislador, ordindrio ter-se-ia distanciado das peremptérias inst@ncias constitucionais, criando tributo totalmente aiheio aos limites extremos da sua esfera de competéncia. Nem teria sentido, nesse caso, o. texto constitucional com suas rigidas imposigdes, se tao visivel desdobramento pudesse ser licitamente praticado pela lei. Dessa inques- tiondvel evidéncia decorre necessariamente, que quando a lei ordindria se refere & saida como “fato gerador” do ICM, nem por isso estaria abstraindo as demais notas integrativas da hipétese de incidéncia do tributo, como postula a Consti- tuigaio Federal. Ao frisar que a saida da mercadoria ¢ dado fundamental para a incidéncia do tributo, na verdade, adiciona mais um dado fatico & compostura juridica da hipétese, agregando-o aos demais (operagao, circulagio etc.) expres- sos ou implicitos na disciplina ordindria (Paulo de Barros Carvalho). S6 assim se erige, sistem4tica e harmonicamente — homenageando-se, a um s6 tempo, a Constituigfo e a lei — o perfil mais abrangente da hipétese de incidéncia do ICM. O tributo colhe as “operagdes relativas & circulagdo de mercadorias saidas do estabelecimento comercial, industrial ou produtor que as tenha realizado”. Todas as notas componentes dessa hipdtese legal — e cada qual, de per si —- deverdio estar ptesentes, no plano fatico, para que se tenha fato imponivel do ICM. Apenas nesse caso haver4 subsungao, incidéncia e obrigacao tributaria. A simiples falta de uma delas compromete irremediavel- NUGCLEO DA DEFINICAO CONSTITUCIONAL DO ICM 115 mente a aplicagio da disciplina legal, que nao atinge situagdes desconformes com os padrées rigidamente tipicos da hipédtese de incidéncia. Haverd, ai, fato juridicamente irrelevante, aos efeitos da eficdcia propria do ICM. E o que acontece, peculiarmente, no caso oferecido a nossa apreciagio. : 27. E certo que no n. II, do art. 23, a Constituigao Federal no criou um imposto sobre a saida de metcadorias. Saida nao é hipdtese de incidéncia de nenhum tributo, menos ainda do ICM. Logo, falar-se em saida, ou em ope- ragiio de “saida”, s6 se justifica em linguagem leiga, totalmente alheia a qual- quer consideragao juridica. Quando, eventualmente, os aplicadores ou exegetas empregam essa expresso, estio fazendo-o por uma referéneia elfptica a uma realidade que, em rigor juridico, exigiria uma.terminologia mais adequada, Em beneficio da comunicagio se simplifica a linguagem; isso, todavia, nao pode comprometer a adequada compreenséio de uma categoria juridica de rigorosissi- mos contornos, como se estd a ver. 28. Na verdade, 0 ICM é um imposto sobre operagdes. Essas operagdes sio de Direito Privado; em outras palavras, sio “negécios juridicos”; como demonstrado oportunamente. Ora, estes negécios juridicos podem aperfeigoar-se por mil © um modos, todos de dificil objetivagéo, documentagéo ¢ compro- vasiio. O reconhecimento € a prova da realizagio do negécio, por esses motivos, podem ser imensamente tormentosos. Dai a incompatibilidade entre o rigor, a certeza e a seguranga do direito (nfo s6 o direito dos contribuintes, mas também 0 préprio direito dos Estados), com as dificuldades naturais da deter- minagiio e comprovagio do surgimento e aperfeigoamento desses negécios. Faz-se negécios por telefone, por nuto, epistolarmente etc. Varia, de ramo para ramo do Direito, de praca para praga, e quase que de objeto para objeto, o modo de realizar ou apérfeigoar os negécios juridicos privados. Se a lei nao dispuser objetivamente sobre 0 momento em que se reputa concluida a operagao, o intérprete sera obrigado a guiar-se pelos critérios do Direito Privado, com todas as dificuldades prdticas eventualmente envolvidas nessa tarefa. Ora, sabe-se que é vital o momento da incidéncia tributéria. E ele o marco decisivo para fixar, no tempo, a ocorréncia do fato tributado, adjudicando-lhe © regime juridico aplicével (problema da lei tributéria no tempo, tio excelen- temente tratado por Anténio Roberto Sampaio Déria) ¢ ainda estabelecer o inicio da contagem dos prazos de decadéneia, com suas naturais conseqiiéncias na computagéo dos prazos de prescrigao. E até para determinar — localizando- as temporalmente — certas condigdes objetivas e, eventualmente, subjetivas do fato, como € 0 caso da sucessio. Na verdade vale enfatizar a excepcional importancia do aspecto temporal para o fendmeno juridico da incidéncia normativa. Se o Direito constitui uma ordem de disciplina do comportamento humano, a sujei¢ao pessoal em que se traduz o deyer de adotar o comportamento prescrito sé nasce, para o obrigado, no momento em que se d4 a incidéncia da norma. Nesse instante — no dizer de Becker, irradiam-se os efeitos juridicos da regra de Direito — instala-se a yelagio juridica, vinculando-se o comportamento de alguém, perante outrem, quanto ao cumprimento de uma determinada prestagao. Decorre daf o extremo cuidado que se deve ter no precisar, cxatamente, 0 momento da incidéncia: para efeitos normativos, antes desse instante, ninguém est4 juridicamente obrigado. 116 REVISTA DE DIREITO TRIBUTARIO — 25-26 Observou, com propriedade, Paulo de Barros Carvalho que o compromisso com o tempo (e também com o espago) é virtude ontolégica do fato, seja qual for a sua natureza. Ou seja: nao ha fato, e também fato juridico, que nao possa ser localizado no tempo e no espago; que nfo se possa ter por ocorrido hic et nunc. Todavia, a radicagao natural — temporal e espacial — do fato juridico nem sempre corresponde ou coincide com o aspecto temporal da hipétese de incidéncia. Muitas vezes, nada tem a ver com o “momento” disposto no pressu- posto normativo. 29. Nesse sentido séo sempre preciosas as ligGes de Lourival Vilanova, ao versar 0 que chama de descritor na estrutura légica das normas juridicas, vale dizer, o pressuposto de fato ou, como a denominamos, a hipétese de incidéncia normativa. Destaca o notével jurista pernambucano que “no descritor da norma nfo se acha proposico empirica, relatando ou normando o comportamento efe- tivo, ou descrevendo um fato. Certo, hé alguma similitude entre proposigiio cog- noscente do real e proposigao tipificadora de uma classe ou conjunto de fatos condicionantes da realizagao de certas conseqiiéncias. Ambas séo seletivas”. 7! Para logo adiante, 8 citando Engisch e Pontes de Miranda, concluir com as pala- vras deste tiltimo, quando enfatiza: “que o suporte factual, que est4 no mundo... no entra, sempre, todo ele. As mais das vezes, despe-se de aparéncias, de circuns- tancias, de que o Direito abstraiu; e outras vezes se veste de aparéncias, de formalismo, ou se reveste de certas circunst4ncias, ficando estranhas a ele, para poder entrar no mundo jurfdico...”.?8 Vé-se assim, das ligdes dos mestres, que a hipétese de incidéncia, ao aparentemente descrever uma situacéo material qualquer, na verdade constréi um conceito, edifica ¢ configura um fato norma- tivo — o fato juridico (Dai o asseverar Alfredo Becker que o Direito deforma 0 fato, conforme o reconhecemos na sua compostura natural). Aplicadas essas nogdes ao tema que de perto nos interessa, haveriamos de reconhecer que, muitas vezes, a referéncia normativa & realidade factual (para compor hipéteses de incidéncia de regras tributérias) implica abandonar, tor- nando juridicamente desvalioso, aquele momento natural em que o fato descrito se tem por materialmente ocorrido, Ou seja, no proceso de selegao dos fatos materiais, para torné-los juridicamente relevantes (considerd-los idéneos para suscitat conseqiténcias de direito), a lei refere o acontecimento como inexistente em momento diverso do que indicaria sua prépria entidade material (fatica). Dat resulta que o fato juridicamente valioso — inclusive no que atina com as suas coordenadas de tempo — € 0 que decorte da descrigdo normativa, com as deformagées promovidas pelo legislador. Por isso, o mesmo Lourival Vilanova acentua que o fato juridico, “construgZo valorativamente tecida com dados de fatos, incide na realidade, mas nao coincide com a realidade”. 4 30. A consideragdo dessas premissas leva-nos a uma conclusio inevitdvel: a operagdo relativa a circulagéo de mercadorias — fato juridico de cujo aconte- cimento nasce a obrigagao tributéria do ICM — acontece no momento referido pelo aspecto temporal da norma do ICM. Antes do transcurso desse instante, juridicamente, operagiio nao hd, nado importando, para esse efeito, as caracte- risticas ontolégicas ou conaturais desse fato; ¢ como se inexistisse o negécio juridico, porque irrelevante no sentido de provocar obrigagao de ICM. Destarte, a circunstancia de tempo legalmente referida nfo se reveste — como poderia parecer — de eficécia condicional da produgio dos efeitos jurfdicos do fato. NUCLEO DA DEFINIGAO CONSTITUCIONAL DO ICM. 117 Nao acontece um fato material, cujos efeitos se suspendem até que ocorra o momento legalmente previsto, para #é-lo por existente. O novo fato (em que freqiientemente se traduz o aspecto temporal das hipéteses de incidéncia tribu- taria) nao é juridicamente distinto daquele em que a materialidade da hipdtese consiste. Na verdade, significa mero critério de determinagio temporal, cuja vittude esta em, para os efeitos tipicos da norma, fazer existente e ocorrido o pressuposto tributério. Em matéria de ICM, todas essas consideragdes levam a - compreender o fato saida, o fato entrada, o fato transmissio da propriedade de mercadorias etc., como meros critérios de imputago temporal da operacao tribu- tavel que; assim, se teré por acontecido nesse instante, e néo naquele em que — segundo suas caracteristicas peculiares — normalmente ocorreria. 31. O que se torna sumamente importante considerar neste contexto ¢ que — a exemplo de todos os outros demais critérios da hipétese de incidéncia — também o aspecto temporal, por forga da estrutura peculiar do sistema consti- tucional tributério brasileiro, est constitucionalmente induzido. Ou seja, a liber- dade que tem o legislador, em outros campos, para fixar 0 momento legal de ocorréncia do fato juridico, fica extremamente reduzida, quando se trata de hipéteses tributérias — como se da no caso do ICM. Como a hipétese de inci- déncia tributéria € um conceito unitdrio e iricindivel, o aspecto temporal hé de ser, para nao desfigurar o tributo, verdadeira expressao da consumagao do fato imponivel. Se nao o for, compromete-se a figura tributdria, com todas as con- seqiéncias tio amplamente estudadas por Amflcar Falcéo e Rubens Gomes de Sousa. O legislador é, em principio, livre para fixar as coordenadas temporais da hipétese de incidéncia, estabelecer normativamente o momento (o instante) em que se considera acontecido — vale dizer, adquire relevancia juridica — 0 fato material sujeito & tributagio, No sistema brasileiro, todavia, deve observar certos limites, dado que, dessa discrigio, no podem resultar modificagdes na compe- téncia constitucional, lesGes ou detrimentos para direitos dos contribuintes, cons- titucionalmente fixados ou, no caso do ICM, ofensas a direitos dos outros Estados, que eventualmente tenham pretensGes ligadas ou decorrentes dos mesmos fatos. Como o aspecto temporal € mero compromisso do fato substantive — in casu, a operagio — como tempo (€ critério para a sua fixagio no tempo), e como a fungao técnica dessa categoria ¢ definir 0 momento da incidéncia, com o conseqiiente surgimento da obrigagto tributéria, a liberdade do legislador no pode, logicamente, ir ao ponto de situar o aspecto temporal em instante anterior ao préprio acontecimento material do fato tributado. Se assim fizer, estard o legislador atribuindo a fato distinto (0 que é identificado, por inferéncia, a partir do momento de tempo escolhido pela lei) a virtude jurfdica de fazer nascer a obrigagao tributaria. Se a Constitui¢gio fixou na operagiio o fato material em que consiste a hipétese de incidéncia do ICM, é necessétio que ela acontega, factualmente, para que surja o tributo. Portanto, apenas um momento concomi- tante ou posterior Aquele em que — do ponto de vista material — acontece a operagao, & que pode ser eleito, pelo legislador, como aspecto temporal da hipdtese de incidéncia do ICM. Admitir violagdo desse canone é inutilizar a Constituigao; é pretender reduzi-la a letra morta. 32. Por razdes que nao importa discutir (sendo a principal o pteconceito absurdo de que a lei complementar é superior & ordindria), a generalidade dos 118 REVISTA DE DIREITO TRIBUTARIO — 25-26 legisladores estaduais toma a saida e a entrada de mercadorias, na expressio literal de suas leis, como aspecto temporal da hipétese de incidéncia do ICM. Ora, é cedigo que nem a lei complementar, nem a ordindria podem alterar a Constituico; nfo podem eriar materialidade nova de hipdtese de incidéncia, diferente daquela postulada no n. II, do art. 23, da CF. A lei € editada no exercicio de competéncia (porgio delimitada de poder) a qual, como reiterada- mente temos visto, é materialmente circunscrita nessa disposig&o constitucional. Logo, 0 Jegislador € obrigado a restringir-se ao mbito estrito que lhe foi consti. tucionalmente fixado. Por isso, a lei infraconstitucional instituidora de ICM néo pode deixar de tributar a operagiio. Nio pode criar um imposto’ sobre saidas ou sobre entradas; nao pode transformar operacio em saida, ou em entrada; considerar a saida uma operagio; ou tratar uma entrada como se operagiio fosse. 33. Sob a perspectiva conceitual, esse problema atualmente nZo existe. Do ponto de vista juridico (para efeito de interpretagao e aplicacao da lei), sabe-se que saida ou entrada (e, bem assim, quaisquer outras circunstancias semelhantes referidas pela lei) sio meros momentos, simples designagdes de circunstancias de tempo aptas a manifestar, para os efeitos tributérios do ICM, a existéncia da operagao tributada. A legislagéo (que nominalmente menciona esses aconte- cimentos de modo impréprio, como fato gerador do imposto) esté, na verdade, referindo-se ao aspecto temporal da sua hipdtese de incidéncia. Nenhum intér- prete tem dtivida em aceitar as afirmagdes aqui formuladas. Paulo de Barros Carvalho, alids, j4 detectava precisamente essa situacio quando dizia que a Iei “designa de fato gerador 0 marco de tempo condicionante do evento € Iapso evidente, que entra pelos olhos, desnaturando a composigfo tipica e desvirtuando © entendimento do plexo impositivo”. Saida, entrada etc. sio simples momentos considerados pela lei. como reve- ladores de uma operacao prévia. Reputa-se, presume-se ocorrida uma operacao, quando se dio esses fatos. Saida ou entrada sao formas sensiveis de evidenciar alguma coisa necessariamente ocorrida anteriormente; no caso: a operagao tribu- tavel. Disso resulta que inexistindo operagio — com o sentido e alcance a que antes aludimos — a simples saida de mercadoria ou a sua entrada em um dado estabelecimento, nada significam. A presungao que esses fatos induzem é neces- sariamente juris tantum; vale dizer, permitindo a prova de que o acontecimento suposto, em realidade, nfo aconteceu. Esse acontecimento & a operagiio, com os contornos substanciais que The deu o texto constitucional. 34. Como a lei nfo pode alterar a Constituigo, é evidente que n&o havendo operagao, o momento escolhido pela Jei, para reconhecer essa matéria, é fato irrelevante. Nesse caso a saida, em si mesma considerada, nada significa. Mera entrada, ou simples saida, ndo sfo circunstancias expressivas de operagio inexis- tente. O aspecto temporal juridicamente valido € s6 o que perfaz uma hipdtese de incidéncia, devendo pois, no caso, ser conseqiiéncia — logicamente compa- tivel — de uma operagao. Logo, se houver safda, ou se houver entrada, como simples fato fisico, desvinculado de negécio qualificado como operacio tribu- tvel, no h4 incidéncia. Sao exemplos elogiientes disso a requisigio, as desa- propriagdes, o furto, a remo¢gdo por autoridade publica, a mudanga de estabele- cimento; remessas diversas, que n&éo por forga de operagées, como constitucio- nalmente pressupostas (casos de conserto, depésito etc.), entre outros. Em todos esses casos, hé saida e rifo pode haver ICM por auséncia, na integrago do fate NGCLEO DA DEFINICAO CONSTITUCIONAL DO ICM 119 imponivel, do elemento material consistente no negécio constitucionalmente refe- rido como operaso. (2, de resto, o que jé reconheceu o STF, ao julgar, p. ex., os RE 74.363 e 74.852, RDA 113/64 e 114/71). De qualquer modo, a construgao legal parece consoante com as exigéncias constitucionais. F que, na ordem légica, estatisticamente confirmével, saidas e entradas de mercadorias correspondem a prévias e necessdrias operagdes. Logo, em regra, havendo entrada ou saida, é legitimo supor ter havido operagéo. E, inversamente, havendo operagio, € quase fatal a conseqiiente saida. Parece, assim, ficar cabalmente demonstrado que a saida, a entrada e outros momentos que, com engenhosidade, 0, legislador permitiu-se estabelecer, ‘constituem meros aspectos temporais da hip6tese de incidéncia desse imposto. Cabe, destarte, & interpretagao juridica deduzir desse fato apenas a eficdcia restrita por ele mani- festada, e que se condiciona pela fungao que exerce essa cléusula legal na com- posico da hipétese tributéria do ICM. NOTAS 1. V. acérdéo no RE 86.297, in RDP 39/200. 2. A Regra Matriz do ICM, Ed. Revista dos Tribunsis, 1983, p. 32. 3. Ob. cit, p. 58. 4, “0 fato gerador do ICM”, in Caderno de Pesquisas Tributérias n. 5, Ed. Revista dos Tribunais, 1978, p. 115. 5. Ob. cit. p. 118. . 6. 24 ed. Rio de Janeiro, Forense, 1970, p. 582. 7. RDP 10/124. 8. In, Reforma Tributéria Nacional, publicagdo n, 18 MF/FGV, Rio de Janeiro, 1966, pp. 93 ¢ 94, 9. Comentérios A Constituigio ... EC 1/69, vol. 11/507. 10. RE 70613; RE 74.852; RE 74.363. 11. RE 72.412. 12. RE 250/138 € ss. 13. Ob. cit, p. 71. 44. Ob. cit, p. 114, 45. Parecer in RF 250/121. 16. RF 250/139. 17. Ob. € loc, cits. 18. ICM — Estrutura ..., p. 82. 19. RDP 19/326. 20. RE 70.538, RDA 108/101. : , 21. Estrutures Légicas e Sistema do Direito Positive, Sio Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1977, p. 46. 22. Ob. cit, pp. 46-47. 23. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, vol. 1/20. 24. Ob. cit,, p. 47. <

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