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Artigo original

A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE MAQUIAVEL


Uma crítica à interpretação anti-institucionalista*

Ricardo Silva
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis – SC, Brasil. E-mail: rsilva@cfh.ufsc.br

DOI: 10.1590/339813/2018

Introdução preferido por seus antecessores e contemporâneos,


ele se inclina a uma mistura constitucional que atri-
Estudos recentes no âmbito do neorrepublica- bui ao povo a guarda da liberdade, inaugurando o
nismo têm demonstrado que Maquiavel promove modelo denominado em trabalho recente de “cons-
duas grandes inovações na tradição do pensamento tituição mista plebeia” (Araújo, 2013). Depois de
político republicano. Por um lado, ele elabora a tese fornecer recursos conceituais ao republican revival
de que o conflito sociopolítico, longe de produzir das últimas décadas, a obra de Maquiavel começa
a ruína das cidades, consiste na “causa primeira” agora a prover subsídios para a crítica e a reformu-
da grandeza e da liberdade das repúblicas. Entre lação da teoria democrática contemporânea.
a virtude ciceroniana da concórdia e a realidade Em linhas gerais, é possível constatar duas
tumultuosa da república romana, Maquiavel opta grandes vias desse “democratic turn” (Litvin, 2015;
pela segunda. Por outro lado, abandonando o acen- Muldoon, 2013), ou “democratic moment” (Balot e
to aristocrático do modelo da constituição mista Trochimchuk, 2012; Zuckert, 2014), nos estudos
sobre Maquiavel. A primeira é a via institucionalis-
ta, pela qual se sustenta que o modelo de república
* Agradeço ao CNPq pelo apoio à pesquisa que resultou
no presente artigo (processo 308284/2012-7). Tam- do pensador florentino demanda a relativa estabi-
bém sou grato aos pareceristas anônimos da RBCS lidade de um acervo institucional ordenado para
pelos valiosos comentários e sugestões. canalizar e dar vazão aos conflitos decorrentes da
Artigo recebido em 28/06/2017 incorporação dos setores populares na comunidade
Aprovado em 11/10/2017 política. A liberdade republicana seria impossível
RBCS Vol. 33 n° 98 /2018: e339813
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na ausência de leis e ordenações destinadas a pro- do pensamento de Maquiavel, tais como a tempo-
cessar o conflito entre o povo e os grandes. Em- ralização das formas políticas, a corrupção e o lugar
bora haja considerável heterogeneidade de posições da violência na política, ela falha ao negligenciar a
no interior dessa abordagem, com disputas sobre preocupação absolutamente central do autor com
o caráter mais ou menos popular da república ma- a fundação e a manutenção de ordenações (ordini) e
quiaveliana, as principais contribuições provêm de leis (leggi) que considera imprescindíveis à realização
autores associados ao denominado “republicanismo da liberdade republicana.
neorromano”, uma das mais influentes vertentes da O artigo divide-se em duas partes. Na pri-
atual vaga neorrepublicana (Skinner, 1999; Pettit, meira, reconstruo os argumentos comuns aos an-
2012; Lovett, 2016; Geuna, 2013; Maynor, 2003; ti-institucionalistas, indicando também algumas
Bellamy, 2007; Viroli, 2002; McCormick, 2011).1 das principais discordâncias entre os autores sele-
A segunda via é a de orientação anti-institucio- cionados. Na segunda, desenvolvo a crítica dessa
nalista. Em oposição à interpretação dos teóricos e interpretação no plano da história do pensamento
historiadores neorromanos, os intérpretes dessa se- político, apontando suas limitações de acordo com
gunda via deslocam o foco do universo das leis e or- critérios de validação tanto da metodologia textua-
denações da república para concentrá-lo na dimen- lista como da metodologia contextualista. Na con-
são dos eventos anteriores, exteriores e contrários clusão, reitero minha objeção à imagem histórica
à ordem jurídico-política. Para utilizar os termos de Maquiavel forjada pelos anti-institucionalistas.
de um de seus principais expoentes, o republica- Além disso, deixo a sugestão, cuja demonstração
nismo democrático de Maquiavel deriva de uma excede os limites do presente artigo, de que, além
filosofia que estabelece a prioridade do “evento” so- padecer de uma insuficiente compreensão histórica
bre a “forma” (Vatter, 2000). Em vez de realizar-se das ideias de Maquiavel, a interpretação anti-ins-
no ambiente de determinada forma institucional, titucionalista revela-se frágil no campo do debate
a liberdade republicana residiria no momento in- normativo na teoria democrática contemporânea.
surrecional e revolucionário de confrontação com
a ordem. O “Maquiavel republicano” que emerge
dessa interpretação seria não apenas moderno, mas A interpretação anti-institucionalista
fundador de uma modernidade crítica, sendo a
principal prova disso a prefiguração, em sua obra,
do conceito de “poder constituinte”. Negri: poder constituinte e“absolutismo
O objetivo do presente artigo é realizar uma democrático” em Maquiavel
análise crítica da interpretação anti-institucionalista,
revelando suas principais insuficiências no campo da A interpretação de Negri sobre Maquiavel é
interpetação histórica do pensamento de Maquiavel. parte de seu esforço de reconstrução da história
Para isso, vou me deter na contribuição de três es- do conceito de poder constituinte como o funda-
tudiosos que julgo representativos dessa corrente in- mento crítico do constitucionalismo moderno. O
terpretativa: Antonio Negri, Miguel Vatter e Filippo pensamento maquiaveliano é apresentado como “a
Del Lucchese. Não obstante as divergências mais ou primeira, absoluta e inelutável definição” do poder
menos pontuais entre as elaborações desses autores, constituinte (Negri, 2002, p. 148). Desde um es-
eles compartilham os elementos centrais da inter- tudo anterior sobre Spinoza, Negri invectivava “as
pretação em questão. Para os três, Maquiavel é um mistificações” que ensinam “a santa doutrina que
filósofo, não um agente político e mestre da retórica; reza que a democracia é Estado de direito” e que o
é um teórico do Estado moderno, não um herdeiro “interesse geral ‘sublima’ o interesse particular sob
dos ideais das cidades antigas; é insurgente e revolu- a forma da lei” (Negri, 1993, p. 27). O conceito
cionário, não um cauteloso reformador institucional. de poder constituinte seria o instrumento da crítica
Procurarei mostrar que, embora a interpretação radical dessas “mistificações” do constitucionalismo
anti-institucionalista lance luz sobre temas relevantes e da ciência jurídica.
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Quer na tradição liberal, quer na tradição re- de poder constituinte. Lá estão os temas da máxima
publicana clássica, o constitucionalismo seria a virtù impondo-se à fortuna, da solidão do príncipe
doutrina da contenção, redução, regulação e neu- novo, da necessidade de armas próprias e do recurso
tralização do poder constituinte. Nas palavras do à violência, bem como o tema do apelo ao funda-
autor, trata-se de uma “fortíssima parafernália ju- mento popular do poder do príncipe. Negri susten-
rídica [que] cobre e desnatura o poder constituin- ta que, nesses capítulos iniciais, Maquiavel “apresenta
te” (Negri, 2002, p. 10). Mecanismos de cheks and uma espécie de trabalho de escavação em busca
balances e modelos de constituição mista seriam os da definição do princípio constituinte, em busca da
parcos recursos do constitucionalismo para a neu- configuração do príncipe novo” (Idem, p. 77). Ele
tralização do poder constituinte. Negri assinala que sugere que Maquiavel enxerga o poder constituin-
tal neutralização não passa de uma quimera, uma te na virtù do príncipe novo, uma virtù que apenas
vez que entre o poder constituinte e o poder cons- se realiza quando o príncipe aprende a lição de que
tituído não há reconciliação possível. O que há é todos os profetas desarmados sucumbem aos reve-
uma insuperável contradição entre a natureza ab- ses da fortuna e apenas os profetas armados podem
soluta, onipotente, expansiva e ilimitada do poder triunfar. Mas o príncipe deve também aprender que
constituinte, e a natureza limitada e geradora de li- não lhe servem as armas alheias, sejam de exércitos
mites do constitucionalismo: “O poder constituin- mercenários ou de forças auxiliares. Maquiavel te-
te como poder onipotente é, com efeito, a própria ria percebido com clareza que o povo armado “não
revolução” (Idem, p. 9). No plano temporal, trata- é outro senão o poder constituinte” (Idem, p. 80).
-se de uma luta entre o passado e o futuro, pois “o Conforme argumenta:
constitucionalismo é uma doutrina jurídica que co-
nhece somente o passado [...] ao passo que o poder Certamente as armas são um instrumento do
constituinte, ao contrário, é sempre tempo forte e poder constituinte – elas são não somente seu
futuro” (Idem, p. 21-22). corpo, mas também seu prolongamento. As ar-
A história do conceito de poder constituinte mas são a dinâmica da constituição do princi-
transcorre na modernidade, manifestando-se espe- pado, não somente em tempos de guerra, mas
cialmente em situações revolucionárias. Negri exa- também em tempos de paz, já que organizam a
mina os pensadores que refletiram sobre o conceito cidade e a dispõem à virtù. Assim como a virtù
na Inglaterra do século XVII, nos Estados Unidos é um princípio absoluto, as armas são sua figu-
e na França do final do século XVIII e na Rússia ra absoluta (Idem, p. 81).
de 1917. Mas sua primeira aparição teria ocorrido
no contexto do renascimento italiano, na obra de Mas Negri observa ainda que, mesmo nos ca-
Maquiavel, ainda que o florentino tenha trilhado pítulos inicias de O Príncipe, a elaboração sobre a
um caminho feito de avanços e hesitações nesse “virtú armada” do poder constituinte divide a aten-
processo de elaboração conceitual. Segundo Negri, ção de Maquiavel com problemas referentes ao po-
a problemática do poder constituinte já se encontra der constituído, à fortuna e aos obstáculos externos
com clareza nos primeiros capítulos de O Prínci- que frustram o desenvolvimento do princípio cons-
pe. Na verdade, apenas nos primeiros nove capítu- tituinte. O drama do duque Valentino é exemplar
los. Depois disso, “a energia do núcleo inicial [...] a esse respeito. Malgrado ser digno de imitação por
é degradada na sequência do texto” (Idem, p. 91), qualquer príncipe que almeje alcançar o poder pela
embora ela ressurja em rompantes, como se dá no fortuna e com armas alheias, César Bórgia acabou
capítulo XV, no qual Negri enxerga o “cerne de O por sucumbir devido a causas exteriores: a doença do
Príncipe”, com o tema da “tragédia do poder cons- pai e a sua própria, além de uma escolha infeliz na
tituinte” (Idem, p. 82). sucessão ao papado. Assim, na análise maquiavelia-
Ao longo do percurso que termina com o capí- na do “príncipe novo”, Negri acredita haver “ao lado
tulo IX, cujo tema é o principado civil, vão surgindo da determinação positiva, a determinação negativa,
algumas das determinações principais do conceito irredutível ao processo da potência”. Desse modo,
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“à virtù opõe-se a fortuna; à produção, o produto; à não permanece inteiramente porque, como observa
força constituinte, a força constituída” (Idem, p. 79). Negri, “a inserção do princípio democrático – nota
Seria preciso ir além da leitura de O Príncipe para Maquiavel contra Políbio – não é banal” (Idem, p.
aprofundar a compreensão do poder constituinte em 96), ainda mais quando o florentino associa a “per-
Maquiavel, o que nos leva diretamente ao tema da feição” alcançada por Roma à inexorabilidade do
relação entre O Príncipe e os Discursos sobre a primei- conflito social.2
ra década de Tito Lívio (Discorsi). Mas a inovação assinalada acima não basta a
A hipótese de Negri sobre o caráter absoluto da Negri. Ele avalia que, até esse ponto, Maquiavel
república democrática de Maquiavel colide frontal- “não inova radicalmente, apenas aperfeiçoa o mo-
mente com o que ele chama de “corrente interpre- delo de Políbio”. (Negri, 2002, p. 97). Sua tese é
tativa anglo-saxã”, que acentua a distinção entre re- que, na sequência dos Discorsi, Maquiavel não
pública e principado e aponta a constituição mista apenas inova em relação à tradição da constituição
como a característica definidora da polity republica- mista, mas a abandona por completo. Por isso, seria
na. De fato, a demonstração da hipótese de Negri insuficiente atribuir a Maquiavel a simples defesa
depende da refutação cabal da leitura “anglo-saxã” de um modelo peculiar de constituição mista com
dos Discorsi, uma vez que o ideal da constituição ascendência popular. Afinal, plebeia ou não, a cons-
mista seria um instrumento do constitucionalismo tituição mista será sempre um modelo institucional
contra o caráter absoluto da democracia, uma arma de dispersão de poder, ao passo que Negri acredita
do poder constituído contra o poder constituinte. que a república democrática de Maquiavel tem o
Mas o autor italiano tem clareza da dificulda- caráter absoluto de uma potência social que jamais
de dessa operação hermenêutica. Não há como ig- se institucionaliza: a potência concentrada e incon-
norar que a narrativa maquiaveliana da emergência trastável do poder constituinte.
da república romana mobiliza abundantemente os Na interpretação anti-institucionalista de Negri,
elementos da teoria da constituição mista, especial- o confronto de Maquiavel com o tema da corrupção
mente na versão de Políbio. Negri reconhece que representa uma espécie de “interrupção dos Discorsi”
a influência polibiana opera sobre os primeiros ca- (Negri, 2002, p. 100). Toda a preocupação com a
pítulos do livro I dos Discorsi, mas acredita que tal forma constitucional da república, com o equilíbrio
influência “é muito mais relativa à erudição e ao mé- de poderes, com a instituição de magistraturas mu-
todo classificatório do que à filosofia” (Idem, p. 98). tuamente em oposição, tudo isso se dissipa. Assistir-
Maquiavel segue o modelo dos ciclos constitucionais -se-ia ao retorno de O Príncipe na “interrupção” dos
(anaciklosis) do início do Discorsi até a altura do capí- Discorsi. Negri não objeta a possibilidade de alguma
tulo XIX do livro primeiro. Em sua evolução aciden- resposta ao problema da corrupção em termos po-
tal, Roma surge como uma monarquia sob o reinado libianos, mas insiste que “O Príncipe inventa uma
de Rômulo, convertendo-se posteriormente em aris- nova resposta: o poder constituinte”. Estaríamos
tocracia, com a deposição da tirania dos Tarquínios, diante de um “momento de inovação teórica abso-
tornando-se, enfim, uma república “perfeita” com a luta”. Maquiavel vai não apenas “além do método de
instituição dos tribunos da plebe. A cada nova eta- Políbio”, mas, sobretudo, “contra ele”. Assim, “Ma-
pa da evolução de sua cidade, os romanos souberam quiavel constrói um método que vai da estrutura ao
manter instituições que lhes serviram na etapa ante- sujeito, da descrição fenomenológica à antropologia
rior. No período áureo da república, as magistraturas natural, do governo misto à criatividade democráti-
do consulado, do senado e do tribunato articulavam- ca” (Negri, 2002, p. 100).
-se num tenso equilíbrio para configurar uma forma A partir do momento em que a reflexão sobre
política regida pelos princípios das três formas boas a república romana “sofre a influência de Il Princi-
de governo: a monarquia, a aristocracia e a democra- pe”, a constituição mista “dissipa-se diante da potên-
cia. Até esse ponto da análise, Maquiavel permanece cia produtiva dos princípios e dos sujeitos” (Idem,
quase inteiramente no âmbito do paradigma polibia- p. 101). Mas qual seria esse sujeito absoluto, essa
no da república como constituição mista. Somente substância social que se expressa na forma do prín-
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cipe novo? A leitura dos Discorsi à luz de O Prínci- materialista “subterrânea”, que o autor denominou
pe deixaria claro que “o único conteúdo da forma de “filosofia do encontro” ou “materialismo aleató-
constituinte é o povo” – que Negri redefine como rio” (Althusser, 2006).
“multidão” – e “a única constituição do príncipe é Na reconstrução althusseriana do materialismo
a democracia” (Idem, p. 100). Mas é preciso ter cla- aleatório, Maquiavel ocupa um lugar de imenso des-
ro que “a democracia deve ser armada”, tratando-se, taque. Mais do que qualquer outro filósofo, Maquia-
antes de tudo, de um governo da virtù, uma síntese vel ajudava Althusser a desviar o olhar das estruturas
de “furor e ordem” (Idem, p. 103). Enfim, nada de em direção à conjuntura (Gaille, 2017).Quando
recomposição do equilíbrio tenso e dinâmico entre Negri atesta seu débito com o filósofo francês, com
os humores, nada de estabilidade institucional. A quem manteve estreita interlocução, durante seu exí-
conclusão de Negri é que “o problema de Maquiavel lio em Paris, afirma que “Althusser me recebia quase
não será jamais o de terminar a revolução”. Para o toda semana para me dizer que neste ‘Marx além de
florentino, “a constituição é sempre abertura do pro- Marx’ reencontrava Maquiavel” (Negri, 2004, p. 8).3
cesso revolucionário da multidão” (Idem, p. 123). Para Vatter, a “autossuperação de Althusser”,
que desemboca no método que se tem denominado
Vatter: Maquiavel e o “evento da república” contra indiscriminadamente de “materialismo aleatório”,
a forma política “materialismo do encontro” ou, como prefere o
teórico chileno, “materialismo dos eventos”, afir-
A contribuição de Miguel Vatter à interpre- ma “explicitamente o primado do evento sobre a
tação anti-institucionalista de Maquiavel guarda estrutura”, além de tomar partido “do materialismo
inúmeras afinidades com a contribuição de Negri. contra a dialética, da singularidade contra a causa-
Ambos se vinculam ao projeto de superação da lidade, da resistência popular contra a dominação
ortodoxia marxista em nome da revitalização do institucional, do comunismo contra o marxismo-
materialismo e ambos são influenciados pela filo- -leninismo” (Vatter, 2004, p. 4).4
sofia do último Althusser. Como se sabe, a partir Ainda que concorde com Negri em pontos es-
de meados da década de 1970, Althusser começa a senciais – o que nos permite tomá-los como repre-
tomar distância de suas convicções filosóficas ante- sentantes da mesma corrente interpretativa –, Vat-
riores, denunciando os limites e as incoerências do ter discorda do sentido que o italiano empresta ao
marxismo. Em entrevista de 1982, chega a afirmar conceito de poder constituinte, quando o concebe
que “ninguém pode ser ao mesmo tempo marxista e como uma expressão do caráter absoluto de uma
coerente” (Althusser, 2006, p. xiv). Até meados dos potência social em oposição externa ao poder cons-
anos 1980, quando cessa sua atividade filosófica, tituído. Vatter argumenta que o poder constituinte
ele se empenha, em períodos de lucidez interrom- em Maquiavel não é social, mas político; não é ab-
pidos por crises psiquiátricas, na reconstrução do soluto, mas relativo; e não se encontra em relação
que considerava uma tradição filosófica reprimida, de oposição externa ao poder constituído, mas em
na qual Marx certamente se insere, mas já não mais uma relação de “oposição interna”.
como a principal estrela de uma constelação mais A redução do poder constituinte ao plano so-
bem representada por pensadores como Epicuro, cial decorre, em Negri, do enraizamento desse con-
Spinoza, Rousseau, bem como Nietzsche, Heideg- ceito na categoria de “trabalho vivo”, o elemento
ger e Derrida. Althusser abandona o projeto de re- principal de sua ontologia social. Para o pensador
velar a dialética materialista subjacente a O Capital, italiano, poder constituinte é trabalho vivo, tanto
então concebida nos termos de uma “totalidade quanto poder constituído é trabalho morto. Vatter
complexa estruturada com dominante” (Althus- acredita que “a realocação de Negri do conceito de
ser, 2005, p. 210), aproximando-se de uma visão poder constituinte no social mostra-se inoperante
da realidade material como produto contingente quando se trata de explicar a permanência do es-
de encontros aleatórios tanto de efêmera como de tado”. Mas seria exatamente o problema da per-
longa duração. Trava-se de recuperar uma tradição manência da forma política “o que recomenda um
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retorno a Maquiavel” (Vatter, 2002, p. 208). puro exercício, uma variante da liberdade positiva
Para a crítica da visão de Negri sobre o caráter própria do comunitarismo (Silva, 2015a). O repu-
absoluto do poder constituinte, Vatter chama a seu blicanismo neorromano advoga que a existência de
auxílio o próprio Althusser, afirmando que embora uma determinada forma de governo é uma condição
os textos althusserianos sobre o materialismo alea- necessária para a maximização da não dominação. A
tório tenham sido “cruciais para o desenvolvimento liberdade política só é possível em um tipo particular
do pensamento recente de Negri”, este teria passado de arranjo institucional, um arranjo apto a conferir
ao largo de uma das maiores lições do filósofo fran- a cada cidadão o status de pessoa livre. Os estudos
cês: assim como “não há produção sem reprodução, de Skinner (1999), Pettit (1997) e Viroli (2002) são
não há poder constituinte sem poder constituído” exemplares dessa visão. Para esses autores, o conceito
(Idem, p. 214). Mas a maior discordância de Vatter de liberdade que se encontra no núcleo do republi-
com a interpretação de Negri reside na identificação canismo de Maquiavel é essencialmente vinculado
que este promove entre a democracia, fundada no a um tipo específico da ordenação jurídico-política,
poder constituinte da multidão, e o príncipe novo. que configura um acervo institucional destinado
A identidade entre o povo e o príncipe é apresen- a canalizar os conflitos sociais inerentes à vida em
tada como inviável porque a agência popular “não sociedade (Silva, 2010). Onde não há lei, não pode
é de modo algum direcionada à fundação de uma haver liberdade. Como observa Pettit, a liberdade
forma de governo”. Pelo contrário, o poder consti- republicana repousa sobre o duplo compromisso de
tuinte do povo é sempre voltado “à contestação e “igualdade perante a lei e igualdade no controle da
resistência a qualquer forma de governo enquanto lei” (2014, p. 6). Ou ainda: “as leis de um estado
tal” (Vatter, 2002, p. 223). apropriado, em particular as leis de uma república,
Os fundamentos da interpretação de Vatter criam a liberdade desfrutada pelos cidadãos” (Pettit,
foram estabelecidos em Between form and event: 1997, p. 36).
Machiavelli’s theory of political freedom (2000), obra Vatter endossa a tese de que a liberdade como
que investiga o conceito de liberdade nos textos do não dominação é o ideal que dá vida ao republica-
pensador florentino, dialogando criticamente com nismo de Maquiavel. Todavia, diferentemente dos
suas recepções acadêmicas mais recentes. Embora neorromanos, ele sustenta que “a liberdade política
o autor tome posição em relação a quase todos os não pode servir como fundação da ordem política,
principais intérpretes contemporâneos de Maquia- nem pode fundar-se na forma política, sem negar-se
vel, parece-me evidente sua maior disposição em a si própria” (Vatter, 2000, p. 13). Ou seja, a liber-
promover uma alternativa à interpretação neorre- dade como não dominação não se identifica com
publicana de autores como Quentin Skinner, Mau- o regime de segurança da imunidade dos cidadãos
rizio Viroli e Philip Pettit. Se, por um lado, Vatter contra o exercício do poder arbitrário de outros ci-
endossa a tese de que Maquiavel pode ser com- dadãos ou do próprio Estado. Segundo Pettit, um
preendido como o ponto culminante da tradição agente é livre na medida em que não se encontra
republicana, por outro, ele argumenta que o exato sob a dominação de terceiros. A relação de domi-
significado da concepção de liberdade política – a nação se estabelece sempre que um dos agentes de
liberdade com não-dominação – não cabe no en- uma dada relação conta com a capacidade de inter-
quadramento oferecido pelos neorrepublicanos. ferir de forma arbitrária, isto é, a seu bel-prazer, nas
Vale assinalar que para os autores vinculados à escolhas do outro. Frise-se que a liberdade requer a
vertente neorromana do atual republican revival a re- ausência somente da interferência arbitrária, não de
pública se define como um modo de ordenação das qualquer forma de interferência. O acervo de leis
instituições políticas em consonância com um ideal da de uma república consiste em inegável interferên-
liberdade como ausência de dominação, um ideal cia na vida dos cidadãos, mas se trata, nesse caso,
que busca se distinguir da liberdade como simples de um tipo de interferência que apenas condiciona,
ausência de interferência, própria da vertente domi- sem comprometer, a liberdade individual. (Pettit,
nante do liberalismo, bem como da liberdade como 1997). A rigor, para os neorromanos, a liberdade
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individual não pode vicejar de modo resiliente na juntamente a teoria da história e a teoria política de
ausência de leis que configuram as relações políticas Maquiavel, enfatizando a mútua dependência entre
em uma forma específica de governo, a república. ambas. Maquiavel supera a estase temporal presen-
Vatter rejeita essa formulação, afirmando que a li- te na teoria da história dos antigos, inaugurando
berdade como não dominação só se realiza plena- o historicismo moderno e introduzindo as noções
mente na oposição às leis e na negação de qualquer de movimento aberto, contingência e finitude das
forma de governo. “coisas do mundo”.7 Em consonância com essa vi-
É pela via de sua particular apropriação de uma são da história enquanto um processo temporal in-
passagem de Hannah Arendt (2011, p. 58) que o cessante, sem finalidade pré-determinada, a teoria
autor forja os recursos para sua própria definição da política de Maquiavel estabelece a prioridade do
liberdade republicana. Vatter entende que pertence evento sobre a forma. A temporalização das formas
a Arendt “o mérito de recuperar a ideia de liberdade políticas implica antes de tudo a impossibilidade de
política como não governo em nossa época” (Vatter, torná-las estáveis. Qualquer forma de governo, por
2000, p. 14).5 Mais recentemente, o autor passou mais complexa e equilibrada que seja, deve defron-
a usar a expressão “no-rule republicanism” para dis- tar-se com a inevitabilidade de sua corrupção. É
tinguir sua posição no amplo movimento neorre- por essa razão que a liberdade política não pode ser
publicano inspirado em Maquiavel (Vatter, 2012). um atributo da forma. Ela reside apenas nos even-
Assim, embora o teórico chileno adira à terminolo- tos fortuitos, contingentes, ocasionais que desesta-
gia cunhada por Pettit da liberdade como “não do- bilizam as formas de governo.
minação” (non-domination), ele acaba confundindo
esse conceito com a formulação por ele atribuída a Contra a tradição recebida que sustenta ser
Arendt da liberdade como “não governo” (no-rule). Maquiavel o pensador do governo estável, mi-
Baseado nessa identificação entre non-domi- nha interpretação é que Maquiavel relativiza a
nation e no-rule, o autor monta um ataque à posi- questão sobre a forma que deve assumir a ati-
ção de Pettit, que certamente diferenciaria os dois vidade de governar de modo a colocar a ques-
conceitos. Vatter reconhece que Pettit, ao “definir tão do evento do não governo, a partir do qual
a liberdade como ausência de dominação”, elabora todas as formas de governo e toda ordem legal
“um novo e poderoso meio para criticar o entendi- devem emergir e no qual devem ser revogadas
mento liberal da liberdade individual”. Por outro para que se mantenha a vida política livre (Vat-
lado, o filósofo irlandês “restringe a definição de ter, 2000, p. 5, grifo meu).
dominação”, identificando-a à noção de “interfe-
rência arbitrária”. Consequentemente, o topos re- Assim, “a república é um evento, não um es-
publicano clássico do “império da lei” passa a ser tado” (Idem, p. 262).8 A república maquiaveliana
compreendido “meramente como uma forma de “excede os limites impostos pela forma política en-
interferência não arbitrária”. Pettit perderia de vista quanto tal” (Idem, p. 99), uma vez que “o desejo de
o fato de que “o império da lei acarreta uma dimen- liberdade como não governo (no-rule) incorporado
são de dominação”. O império da lei caracteriza no povo não pode jamais ser satisfeito por uma
“um tipo de dominação impessoal e não arbitrária, forma política” (Idem, 192). A liberdade republi-
à qual os sujeitos são submetidos por suas institui- cana acontece apenas como evento dotado de um
ções públicas” (Vatter, 2005, p. 120).6 poder constituinte capaz de dissolver os ordena-
Vatter advoga que essa concepção de liberda- mentos que estruturam a divisão entre governantes
de como negação de qualquer forma de governo e governados. A liberdade é inimiga da ordem: “a
se encontra no núcleo do republicanismo de Ma- morte da ordem é requerida para a sobrevivência da
quiavel. Sua interpretação, como a de Negri, afasta liberdade” (Idem, p. 232). À dimensão dos eventos
o pensador florentino da tradição da constituição contrários à manutenção da forma política, Vatter
mista e do constitucionalismo, aproximando-o da dá o nome de revolução. Em sua avaliação, o caráter
tradição revolucionária moderna. Ele examina con- revolucionário do republicanismo maquiaveliano
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explicita-se com a tese do florentino de que o re- p. 167). Inserido em uma corrente que reuniria au-
médio para a corrupção das repúblicas encontra-se tores como Epicuro, Lucrécio, Hobbes, Spinoza,
no “retorno aos princípios” da vida republicana. o Rousseau do segundo tratado, Darwin e Marx,
Na interpretação do teórico chileno, “retorno aos Maquiavel é escalado para assumir um lugar de des-
princípios é simplesmente um nome para aqueles taque na tradição que Althusser passou a identificar
eventos revolucionários em que o estado, in toto, é como a “corrente subterrânea do materialismo do
combatido” (Idem, 232).9 encontro” (Althusser, 2006). É nesse momento da
Em suma, a interpretação de Vatter compreende interpretação althusseriana de Maquiavel que Del
Maquiavel como um pensador que dá priorida- Lucchese enxerga “a mais alta originalidade e força
de ao evento em detrimento da forma; à matéria teórica” do filósofo francês. Trata-se de um materia-
em detrimento do espírito; ao poder constituinte em lismo que não se baseia “na rigidez da causalidade
detrimento do poder constituído; à revolução e à causa-efeito”, mas na “contingência, na imprevisi-
mudança radical em detrimento da estabilidade e bilidade, na ocasião – todos conceitos centrais da
da reforma institucional. filosofia maquiaveliana” (Del Lucchese, 2015a, p.
166). Via Althusser, Del Lucchese inscreve-se nessa
Del Lucchese e a potencialidade revolucionária do corrente do materialismo, contribuindo para pro-
conflito mover uma aproximação entre Maquiavel e Spino-
za. Em seu livro de estreia, ele procura “identifi-
Filippo Del Lucchese elabora uma formulação car elementos férteis, originais, em termos de uma
mais matizada da interpretação anti-institucionalis- modernidade alternativa que o eixo Maquiavel-
ta de Maquiavel. Em sua visão, o impulso revolu- -Spinoza” ofereceu como oposição “às tradições do
cionário inerente às ideias do pensador florentino utopismo, da razão de Estado, do absolutismo e do
guarda uma relação mais complexa com a ordem liberalismo nascente” (Del Lucchese, 2009a, p. 2).
legal do que a relação de simples oposição (seja Uma fonte constitutiva desse “materialismo
externa ou interna) presente nas interpretações de aleatório” residiria no “naturalismo” de Maquia-
Negri e Vatter. No entanto, no essencial, Del Luc- vel. Ainda que esteja de acordo quanto à essência
chese se vincula ao mesmo conjunto de influências moderna e revolucionária das ideias do florentino,
ideológicas: uma visão elusiva da “revolução” e do Del Lucchese acredita que, em muitos aspectos, sua
“comunismo” constitui seu horizonte normativo. visão era fortemente tributária dos antigos. Na fi-
Tal como para Negri e Vatter, os escritos do losofia de Epicuro e, sobretudo, em Lucrécio, en-
último Althusser servem de inspiração a Del Luc- contram-se as raízes de alguns dos temas centrais
chese. Em seu mais recente balanço da obra do da filosofia maquiaveliana, tais como as relações
florentino, ele reserva a Althusser, ao lado apenas entre matéria e forma e entre fortuna e virtù. Em
de Gramsci e Leo Strauss, um lugar entre os prin- termos mais gerais, haveria duas “poderosas noções
cipais intérpretes da filosofia de Maquiavel no sé- filosóficas” operando no naturalismo de Maquiavel.
culo XX (Del Lucchese, 2015). Ele reconhece que A primeira é a rejeição do antropocentrismo: “O
Althusser, ao longo da maior parte de sua carreira, homem não é o centro do universo e sua ação [...]
fez uma leitura pouco original de Maquiavel, com- não é a única força diretora”. A segunda é a no-
preendendo-o como um continuador da tradição ção de que “todas as coisas – toda matéria – são
da constituição mista. Mas esse “encontro vazio” constantemente expostas a uma incessante intera-
(Del Lucchese, 2010) entre o filósofo francês e o ção de forças e formas”, o que também introduz
secretário florentino é preenchido com as “páginas “uma inevitável possibilidade de corrupção”. Del
mais maduras de Althusser”, nas quais “o papel Lucchese observa corretamente que “a corrupção é
de Maquiavel é inteiramente diferente”. A partir de fato um dos conceitos-chave do naturalismo de
daí, “o pensamento do florentino é usado para o Maquiavel” (2015, p. 28).
propósito de construção de um materialismo que Mas é em torno da noção de conflito que Del
inclui o elemento do acaso” (Del Lucchese, 2015, Lucchese procura realizar sua principal contribui-
A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE MAQUIAVEL  9

ção à leitura do florentino. Não escapa ao autor o e magistrados; e 3) a instituição de “julgamentos


fato de que o reconhecimento da importância do políticos”, em que a totalidade dos cidadãos atua
conflito está presente nas interpretações neorrepu- como juiz último em processos de crime político
blicanas de Maquiavel. Mas é altamente negativa (McCormick, 2011, p. 2). Dentre as principais
sua avaliação das leituras de autores como Pocock deficiências da interpretação dos neorrepublicanos
(1975), Skinner (1988) e Viroli (1998). Seu juízo vinculados à Escola de Cambridge, estaria a ten-
é o de que “esses intérpretes têm, paradoxalmen- dência de ignorar a “especificidade de classe” das
te, procurado ‘salvar’ Maquiavel de si próprio e de instituições mais prezadas por Maquiavel, como os
seu próprio radicalismo”, uma operação de salvação tribunos da plebe romana.
conduzida mediante a construção de “uma imagem Poder-se-ia supor a afinidade de Del Lucchese
de Maquiavel consistente com os valores do bem com o acento radical e populista da interpretação
comum, do império da lei e do equilíbrio insti- de McCormick. Em parte, é isso o que ocorre. Em
tucional” (Del Lucchese, 2009b, pp. 76-77). Por uma longa resenha de Machiavellian Democracy, ele
certo, na interpretação anti-institucionalista de Del o saúda como “o livro mais importante sobre Ma-
Lucchese, esses valores são considerados estranhos quiavel escrito em inglês nos anos recentes”; um li-
ao pensamento do florentino, expressando antes o vro que provê “tanto uma original reconstrução do
universo axiológico de uma tradição republicana pensamento de Maquiavel como uma igualmente
elitista e despolitizadora, que o neorrepublicanismo original contribuição à teoria política” (2012, p.
contentar-se-ia em referendar e, erroneamente, im- 233). Contudo, como se pode inferir do que até
putar a Maquiavel. aqui foi observado sobre a interpretação anti-ins-
A crítica de Del Lucchese ao neorrepublicanis- titucionalista, a alternativa oferecida pelo teórico
mo tem visíveis afinidades com uma crítica interna norte-americano não é radical o bastante para Del
ao campo do republicanismo neorromano. John Lucchese. Ao final, McCormick “falha em levar a
McCormick, em seus estudos sobre Maquiavel, radicalização à completude” exatamente porque
tem invectivado contra o que ele chama de “mo- compreende a democracia “somente (ou primor-
mento guicciardiniano” do republicanismo da dialmente) como a institucionalização de práticas
Escola de Cambridge (McCormick, 2003).10 Tal políticas, e não como política radical em si mesma,
como Del Lucchese, McCormick entende que os além da dimensão necessariamente neutralizadora
neorrepublicanos neutralizam a dimensão demo- das instituições” (Idem, p. 234). A interpretação
crática do republicanismo de Maquiavel. E o fa- padeceria de limitações tanto na análise histórica
zem aceitando as formulações mais abstratas do como em suas consequências políticas. No plano da
florentino, enquanto ignoram as especificidades e reconstrução histórica, McCormick estaria exage-
os arranjos mais concretos descritos em suas obras rando na exclusividade de Maquiavel como contra-
principais, especialmente nos Discorsi. Entre os ponto popular e democrático à tradição republica-
neorrepublicanos, tais críticas vêm dando ensejo a na aristocrática, ignorando que “o republicanismo
um intenso debate acerca dos contornos de teoria também significa a versão formulada por Spinoza e
da democracia adequada ao ideal republicano, bem pelo iluminismo radical; ou por Rousseau e, mais
como acerca dos mecanismos institucionais especí- tarde, o jacobinismo” (Idem, 234).
ficos da democracia republicana (Silva, 2015b). Mc- Mas a principal deficiência da leitura de Mc-
Cormick argumenta que Maquiavel propugnava Cormick residiria no plano político. Ainda que
um arranjo institucional orientado à atribuição de represente um vívido contraponto ao que Del Luc-
poder ao povo em detrimento das elites. Três carac- chese chama de “republicanismo desbotado” de
terísticas principais conformam esse tipo de arran- Skinner e Pettit, o modelo de McCormick conti-
jo: 1) a instituição de assembleias e magistraturas nuaria prisioneiro de sua própria ênfase na esfera
exclusivamente populares, dotadas de autoridade institucional, ignorando que a “complexidade da
legislativa e poder de veto; 2) a combinação de elei- análise do florentino da relação recursiva entre lei
ção com sorteio para a instituição de representantes e conflito não é simplesmente um problema que
10  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 98

pode ser resolvido em sua ‘institucionalização’”. constituído, Maquiavel opera com a ideia de uma
Em suma, em sua análise da relação entre conflito e “coexistência imanente” entre os dois poderes. As
lei, McCormick “permite que o primeiro termo seja instituições prezadas pelo florentino internalizam
obscurecido pelo segundo” (Idem, p. 237). A fonte o poder constituinte, do qual são derivadas, sem
da dificuldade de McCormick estaria em sua visão domesticá-lo ou comprometer sua capacidade de
do povo como “uma classe sem conflito de classe” produzir conflito. Um exemplo disso é a institui-
(Idem, p. 236). Com uma “perspectiva inteiramen- ção da ditadura comissarial, magistratura celebrada
te internalizada na lei”, McCormick não dispõe de nos Discorsi como uma das mais benéficas à repú-
meios para considerar a “problemática questão” da blica romana. Segundo Del Lucchese, a visão de
fundação das leis “e dos eventos factuais que dão Maquiavel sobre a ditadura comissarial revela que
forma à fundação” (Del Lucchese, 2015, p. 3). o poder constituinte “vive na política institucional
A solução de Del Lucchese para o problema da da república”, consistindo, simultaneamente, em
(re)fundação nos leva de volta ao conceito de poder uma “força ordinária e extraordinária que modula
constituinte. Assim como Negri e Vatter, ele acredita os ritmos irregulares da vida política” (Idem, p. 8).
que “as principais problemáticas envolvidas no con- Del Lucchese ressalta que a “internalização” do
ceito de poder constituinte lançam luz sobre a teoria poder constituinte na rotina institucional não apenas
política de Maquiavel” (Del Lucchese, 2017, p.5). não neutraliza o conflito do qual esse poder emerge,
Mas nem Negri nem Vatter, embora devidamente mas também preserva sua plena radicalidade. Não há
valorizados por Del Lucchese, teriam chegado a um nada semelhante a uma fórmula para a pacificação
enquadramento satisfatório do problema. A dificul- do povo ou para a erradicação da violência da esfera
dade de Negri foi apontada na crítica formulada por política. Afinal, “Maquiavel advoga sem ambiguida-
Vatter: a ausência de relação interna entre o político des que a violência é frequentemente um ingrediente
e o jurídico. E ainda que Del Lucchese admita que necessário à criação constituinte” (Idem, p. 15). Os
“a teoria de Negri foi pioneira de uma nova interpre- exemplos de Rômulo, Ciro, Teseu e Moisés, os prín-
tação de Maquiavel”, ele endossa a crítica do teóri- cipes maquiavelianos campeões em virtù, atestam
co chileno, acrescentando que o foco de Negri “na bem esse fato. Mas Del Lucchese acrescenta que,
multidão como um sujeito absoluto [...] tem obs- para o florentino, a violência tem um propósito bem
curecido a contribuição mais original de Maquiavel definido. Ela se justifica na medida em que produz
à teoria do poder constituinte, a sua natureza polê- resultados favoráveis ao povo. Purgar a corrupção de
mica”. Em Negri o conflito é uma espécie de “obs- uma república é, sem dúvida, uma meta favorável
táculo temporário à afirmação do sujeito absoluto” ao povo, mas isso muitas vezes requer o uso da vio-
(Idem, p. 4). Mas tampouco Vatter teria apresentado lência aguda contra os que simbolizam os costumes
melhor solução. Tanto quanto Negri, ele “subestima corrompidos. Essa é a função do “retorno aos prin-
o caráter conflitual e a natureza polêmica do poder cípios”. Conforme resume Del Lucchese, “o retorno
constituinte”, na medida em que mantém a crença aos princípios significa manter aberta a ferida inicial
na separação entre o factual e o normativo, o político a partir da qual a política e a lei começaram a mar-
e o jurídico. Assim, o poder constituinte pertence- char juntas” (Idem, p. 18).
ria exclusivamente à dimensão factual dos eventos,
dissolvendo-se por completo no processo de institu-
cionalização. Não estaria ao alcance do poder cons- Os limites da interpretação anti-
tituinte dar qualquer forma ao poder constituído. institucionalista
“Cada configuração histórica do poder constituinte
seria a perda da pureza do evento, que Vatter reco- Antes de tratar dos limites da interpretação an-
nhece somente no interior do popolo de Maquiavel e ti-institucionalista de Maquiavel, deve-se reconhe-
de seu conceito de liberdade negativa” (Idem, p. 4). cer que esse tipo de abordagem, com seu foco con-
Para Del Lucchese, em vez de conceber a centrado na realidade política extra-institucional,
“luta mortal” entre poder constituinte e poder lança luz sobre temas fundamentais do pensamento
A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE MAQUIAVEL  11

político e constitucional do autor florentino, que Contudo, permito-me ressaltar, na seção conclu-
tendem a ser obscurecidos nas modalidades mais siva, a importância de compreendermos as conse-
insuladas do institucionalismo contemporâneo. No quências desse Maquiavel anti-institucionalista nos
rol desses temas, destacam-se o efeito do tempo nas debates sobre as alternativas da teoria democrática
práticas e instituições políticas, o conflito de “hu- contemporânea. A tarefa de estender a crítica his-
mores”, as causas e os efeitos da corrupção e o fenô- tórico-metodológica às pretensões normativas do
meno da violência na política. Tentar compreender anti-institucionalismo é pertinente à problemática
Maquiavel fazendo abstração desses temas seria tão mais ampla de meu tema, mas excede o objetivo
frustrante quanto procurar compreender a vida po- imediato do presente artigo.
lítica de uma república com base, exclusivamente, Do ponto de vista da compreensão histórica,
nos documentos legais destinados a regular as re- os anti-institucionalistas desdenham critérios esta-
lações entre as forças políticas e sociais. Maquiavel belecidos de validação do conhecimento tanto em
tinha clareza de que os fatos políticos mais relevan- abordagens textualistas como em abordagens con-
tes podem ocorrer em circunstâncias – e por vias – textualistas.11 Poder-se-ia objetar, em defesa dos
tanto ordinárias quanto extraordinárias. autores aqui analisados, que eles estão interessados
Porém, se é inegável que questões relativas aos em uma abordagem filosófica de Maquiavel, não
processos de (re)fundação de uma determinada or- na reconstrução histórica de suas ideias. Afinal, do
dem política não podem ser respondidas nos limi- ponto de vista da atual divisão disciplinar no estu-
tes de uma abordagem institucionalista radical, isso do das ideias políticas, Negri, Vatter e Del Lucchese
não quer dizer que possamos respondê-las minimi- são filósofos políticos, não historiadores, embora os
zando-se a relevância das circunstâncias ordinárias três reconheçam a importância da reflexão histórica
da política institucional. Pelo menos não era essa na elaboração da teoria política.
a perspectiva de Maquiavel, cuja própria definição Mas a objeção acima somente serviria para legi-
do “extraordinário” pressupõe uma concepção do timar procedimentos que fariam da obra de Maquia-
que é “ordinário”. A marginalização do papel das vel (ou a de qualquer pensador do passado) pouco
instituições também não faz justiça às reiteradas mais do que um simples repositório de textos passi-
manifestações do florentino atestando sua prefe- vamente à espera de livre manipulação pelos intér-
rência pelos caminhos ordinários em detrimento pretes situados no presente. A intenção do próprio
dos extraordinários no dia a dia de uma república. Maquiavel ao escrever seus textos, ainda que fosse
No mesmo capítulo dos Discorsi em que discute a passível de reconstituição, não teria qualquer rele-
autoridade ditatorial em Roma, Maquiavel afirma vância em comparação com a intenção de seus lei-
que “numa república não deveria ocorrer nada que tores. O problema é que esse princípio, claramente
obrigasse a governar com modos extraordinários”. alheio à compreensão histórica, acaba trazendo pre-
Os “modos extraordinários” podem até acarretar juízo também à análise teórica. Como bem observa
resultados positivos imediatos, mas “seu exemplo é John Dunn, “é íntima a conexão entre uma abor-
ruim”. E a razão disso é que, estabelecido “o uso dagem filosófica adequada às noções sustentadas por
de violar as ordenações para o bem”, em seguida, um indivíduo no passado e uma acurada abordagem
com esse mesmo “pretexto, elas são violadas para o histórica dessas noções”. Disso decorre que “tanto a
mal” (Maquiavel, 2007, p. 108). E, alguns capítu- especificidade histórica quanto a sofisticação filosófi-
los adiante, ele ainda afirma que o “pior exemplo ca serão mais bem realizadas se ambas forem perse-
numa república” consiste em “fazer uma lei e não a guidas em conjunto” (Dunn, 1968, p. 86).
observar” (Idem, p. 134). Vejamos, inicialmente, o desempenho da inter-
As deficiências da interpretação anti-institucio- pretação anti-institucionalista segundo critérios do
nalista podem ser verificadas em dois campos in- método histórico textualista. O primeiro aspecto
terdependentes de análise: o da história das ideias a ressaltar é que tal interpretação depende de uma
e o da teoria política normativa. No presente arti- apropriação exageradamente seletiva dos textos de
go, limito-me à crítica de sua dimensão histórica. Maquiavel. Os autores aqui analisados recorrem
12  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 98

quer a procedimentos de superinterpretação de de um método que permitira identificar [...] o povo e


passagens aparentemente afins a sua imagem do o príncipe” (Idem, p. 90, grifos meus). Mas, de fato,
florentino, quer ao silêncio sobre as inúmeras situa- são raras as ocasiões em que Maquiavel identifica
ções em que tanto o texto como a prática política príncipe e povo e nenhuma delas encontra-se em seu
de Maquiavel desautorizam suas conclusões. famoso opúsculo. Neste, o ponto de maior proximi-
O procedimento de superinterpretação, na vi- dade entre o príncipe e o povo ocorre no capítulo
são do crítico Umberto Eco, consiste basicamente IX, onde Maquiavel recomenda ao “príncipe civil”,
em derivar mais significado do que a informação em benefício da estabilidade de seu domínio, que se
textual permite. Tal procedimento repousa na exa- volte contra os grandes e procure fundar seu gover-
cerbação da “lógica da similaridade”. É inegável no no apoio popular, ainda que tenha ascendido ao
que, em certo sentido, todas as coisas guardam “re- principado pelo favor dos grandes. Mas nesse ponto,
lações de analogia, contiguidade e similaridade com como de maneira bastante regular no conjunto dos
todas as outras”. Na maior parte dos casos, essas re- textos maquiavelianos, a dinâmica política aparece
lações são mínimas, podendo (e mesmo devendo) como consequência de uma relação triádica entre o
ser ignoradas na interpretação. A superinterpreta- príncipe, os grandes e o povo, não da identidade en-
ção surge na tentativa “obsessiva” de “deduzir dessa tre o príncipe e o povo, como sugere Negri.
relação mínima o máximo possível” (Eco, 2005, Outra ocorrência de uso livre e instrumental do
p. 57). Rigorosamente, trata-se mais do “uso” livre texto maquiaveliano encontra-se na interpretação de
e instrumental do texto do que de um autêntico Vatter sobre o conceito de liberdade em Maquiavel.
processo de interpretação, que requer sempre uma Parece-me bastante plausível a hipótese de que a
espécie de “diálogo” entre o leitor e o texto. Essa concepção de liberdade política do pensador floren-
tendência está vinculada ao fato de que “frequente- tino está ancorada no desejo do povo de não se sub-
mente os textos dizem mais do que o que seus au- meter à dominação, opressão ou comando das eli-
tores pretendiam dizer, mas menos do que muitos tes. Nesse sentido, a expressão “liberdade como não
leitores incontinentes gostariam que eles dissessem” dominação”, também adotada por Vatter, soa como
(Eco, 1995, p. 81). um rótulo apropriado para designar o significado do
Tome-se o caso de Negri, que vislumbra na fi- conceito de liberdade em Maquiavel. No capítulo
gura do príncipe novo o veículo para a realização do IX de O Príncipe, lê-se que “o povo não quer ser
poder constituinte da multidão. O príncipe é o go- comandado nem oprimido pelos grandes”; no ca-
verno democrático e absoluto. Tanto é assim, argu- pítulo 4 do livro primeiro dos Discorsi, ele escreve
menta Negri, que o livro de Maquiavel sobre repúbli- que nos “plebeus (ignobili)” há “somente o desejo de
cas somente revela sua força quando sofre o impacto não ser dominados e, por conseguinte, maior vonta-
da problemática central de O Príncipe. É improvável de de viver livres”; e no primeiro capítulo do Livro
que se encontre uma passagem do próprio Maquia- III da História de Florença, lê-se que o “humor” do
vel estabelecendo os liames imaginados por Negri “povo” consiste na “vontade” de “não obedecer” os
entre o príncipe, a multidão, o poder constituinte, “nobres”. É justo que o termo “não dominação” seja
o governo absoluto e a democracia. Mas são menos utilizado para expressar essa ideia da liberdade po-
raras as passagens que depõem contra a integridade lítica como o desejo do povo (ou plebe) de não ser
desse conglomerado conceitual. Talvez por isso Negri dominado, oprimido ou comandado pelos grandes.
se veja na contingência de alertar a todo o momento Mas Vatter acredita que ele deve expressar algo mais:
para os “desvios”, as “hesitações”, os “recuos estilís- o desejo do povo de não ser governado por quem
ticos” de Maquiavel. Chega mesmo a sugerir que, quer seja – inclusive, presume-se, pelo próprio povo.
a partir da altura do capítulo XVIII de O Príncipe, Por isso ele usa intercambiavelmente os termos non-
sobretudo nos três últimos capítulos, tudo é “jogado -domination (não dominação) e no-rule (não go-
às urtigas” (Negri, 2002, p. 89), e que “Maquiavel verno). O que se revela através dessa sinonímia é a
volta aqui a ser um homem que necessita de ajuda”. crença de Vatter de que “a liberdade política como
A partir desse momento, “desfaz-se o encantamento [...] a prática de não ser governado é essencial à com-
A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE MAQUIAVEL  13

preensão que Maquiavel tem da política” (Vatter, para complicar ainda mais as coisas, poucas linhas
2000, p. 13, grifo meu). Mas o fato é que a ideia de adiante, a autoridade deixa de ser ilimitada, uma vez
liberdade como “ausência de governo” é tão fami- que “a autoridade era limitada e circunscrita por ou-
liar à tradição anarquista moderna quanto estranha tros poderes” (Idem, p. 6, grifos meus).
a Maquiavel. Poder ordinário ou extraordinário, limitado
Ainda do ponto de vista da metodologia tex- ou ilimitado? A imprecisão de Del Lucchese, ao
tualista, mais censurável do que superinterpretar tentar definir o que a ditadura romana significava
um texto é negligenciar o confronto com outros para Maquiavel, poderia ser evitada se o intérprete
textos do mesmo autor que apresentam obstácu- se abstivesse de procurar nas entrelinhas afirmações
los à validação da interpretação, principalmente expressamente negadas nas linhas. Uma leitura mi-
quando tais textos aparecem na mesma obra ou até nimamente atenta ao texto do capítulo dos Discor-
na mesma passagem do texto manipulado pelo in- si sobre a ditadura romana dificilmente evitaria a
térprete. Uma interpretação válida precisa levar a conclusão de que o elogio de Maquiavel a tal ins-
sério o princípio da não contradição. Para dizê-lo trumento deve-se à sua natureza ordinária (Geu-
novamente com Eco: “qualquer interpretação feita na, 2017). Referindo-se a “alguns escritores” que
de uma certa parte de um texto poderá ser aceita se condenaram a ditadura romana com o argumento
for confirmada por outra parte do mesmo texto, e de que o instituto teria dado “ensejo à tirania em
deverá ser rejeitada se a contradisser”. Esse compro- Roma”, Maquiavel os critica com o argumento de
misso com a coerência interna do texto, ou com a que não foram nem “o nome nem o título de dita-
intentio operis, na terminologia do crítico italiano, é dor que acarretaram a servidão em Roma”. Prova
o procedimento que “domina os impulsos do leitor, disso é que “o ditador, enquanto foi designado se-
de outro modo incontroláveis” (Eco, 2005, p. 76). gundo as ordenações públicas [...] sempre fez bem à
A título de exemplo dessa modalidade de apro- república”. Acrescenta que o malefício às repúblicas
priação seletiva do texto de Maquiavel, observe-se o advém de “fazer magistrados e dar autoridade por
tratamento dispensado por Del Lucchese ao tema vias extraordinárias”, nada havendo a censurar na
da ditadura romana. O intérprete sugere que a aná- autoridade que “se dá por vias ordinárias”. É verda-
lise do florentino sobre a ditadura comissarial reve- de que essa autoridade ordinária, constitucional, da
la uma “concepção fortemente imanente da relação ditadura tem a peculiaridade de ter sido instituída
entre a lei e a política”. O ditador seria uma expres- para lidar com as situações extraordinárias que co-
são do poder constituinte, que “precede, coexiste e locam a república sob graves ameaças. Mas são as
vai além de qualquer poder constituído” (Del Luc- situações que têm caráter extraordinário, não o ins-
chese, 2017, p. 10). Del Lucchese argumenta ainda trumento que nelas atua. Ademais, a ditadura ro-
que o pensador florentino entende o poder ditato- mana caracterizava-se como uma autoridade clara-
rial como uma força orientada para o futuro e para mente limitada, sendo seus limites parte do elenco
a criação de algo novo, não como uma força de pre- das propriedades essenciais do próprio conceito de
servação. Não se trata de um poder conservador, ditadura. Além de o ditador romano ser escolhido
mas de um “poder revolucionário” (Idem, p. 7). de modo eletivo, excluindo-se assim o caminho da
Por algum motivo, a leitura de Del Lucchese auto-investidura, “ele era nomeado por certo tem-
sobre a ditadura em Maquiavel é carregada de ambi- po, e não em caráter perpétuo, e apenas para obviar
guidade. Primeiro, ele observa, corretamente, que a a situação pela qual fora criado” (Maquiavel, 2007,
ditadura é “um instrumento legal ordinário, ativado p. 107). Ou seja, a autoridade ditatorial era limita-
em circunstâncias extraordinárias” (grifo no origi- da pelo modo de se instituir o ditador, pelo exíguo
nal), e que o próprio poder constituinte “vive na po- prazo do mandato (não superior a seis meses) e pela
lítica institucional da república” (Idem, p. 8). Depois, especificidade das tarefas a cumprir.
exatamente no mesmo parágrafo, o autor afirma que Confrontada com o texto de Maquiavel, a
“o instrumento extraordinário da ditadura permite a sugestão de Del Lucchese do caráter ilimitado da
criação de uma autoridade ilimitada”. Finalmente, autoridade ditatorial deve ser abandonada. Porém,
14  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 98

ainda mais adversa a sua interpretação é a afirma- indicado por diferentes termos.
ção de Maquiavel de que, embora o ditador tivesse Mas o que interessa aqui é menos a termino-
amplos poderes discricionários, ele “não podia fazer logia em que se expressa o conceito que as condi-
nada que representasse diminuição para o estado”, ções sociopolíticas e ideológicas de sua existência.
especialmente “destruir as antigas ordenações da ci- Assim, ainda que seja razoável supor que o concei-
dade e criar novas” (Maquiavel, 2007, p. 107, grifo to de poder constituinte tenha começado a circu-
meu). Em suma, o texto do florentino desautori- lar antes mesmo de ter sido batizado, é altamente
za a definição da ditadura romana como expressão improvável que essa circulação tenha se iniciado
de um poder constituinte destinado a criar “algo na época de Maquiavel. Não obstante as intensas
novo”, como pretende Del Lucchese. disputas sobre o significado do conceito de poder
Em vista dos exemplos acima arrolados, perce- constituinte na teoria política contemporânea, há
be-se o limitado desempenho da interpretação anti- uma forte convergência de opiniões acerca da épo-
-institucionalista segundo critérios de validação da ca histórica da emergência do conceito. Conforme
abordagem textualista na história das ideias. Mas seu um dos mais aplicados estudiosos contemporâneos
desempenho é ainda mais insatisfatório quando são le- do tema, “poder constituinte é um conceito mo-
vados em conta os critérios contextualistas. É comum derno” (Loughlin, 2014, p. 219). Ele desenvolve-se
entre os propositores do contextualismo linguístico a no âmbito do movimento racionalista e secular do
conclusão de que o desvio mais danoso a uma abor- iluminismo do século XVIII, embora seja possível
dagem histórica das ideias políticas é o “anacronismo”, encontrar seu germe em reinterpretações calvinistas
ou seja, a tendência a atribuir a um autor do passado do conceito bodiniano de soberania. Surgido nas
crenças que ele não apenas não sustentou, como se- lutas contra a monarquia absolutista ao longo do
quer poderia sustentar, uma vez que são próprias do século XVII, esse movimento encontraria sua cul-
universo intelectual do analista situado no presente, minância no pensamento de Locke. Seja como for,
e não do contexto do autor que se quer interpretar o conceito apenas vem ao mundo quando a ideia
(Skinner, 1969; Pocock, 1962; Dunn, 1968). de constituição passa a ser compreendida “como
A meu ver, a principal evidência de anacronis- um instrumento jurídico que deriva sua autoridade
mo na interpretação anti-institucionalista reside de um princípio de autodeterminação”. A consti-
na suposição, comum aos três intérpretes, de que tuição passa a ser entendida como “uma expressão
Maquiavel era uma espécie de teórico do “poder do poder constituinte do povo para fazer e refazer
constituinte”. Como se sabe, o termo pouvoir cons- os arranjos institucionais mediante os quais ele é
tituant foi utilizado pela primeira vez por Sieyès governado” (Idem, p. 219).
em 1789, no célebre panfleto Qu’est-ce que le tiers É desnecessário assinalar que Maquiavel não
état? O abade francês argumentava que o gover- podia ter em mente o pensamento constitucional
no e a constituição devem ser concebidos como que despontaria no século XVII e se afirmaria no
corpos delegados fundados na soberania do povo século XVIII. Isso seria levar muito longe a suges-
(ou “nação”, em sua terminologia). O governo não tão de Strauss de Maquiavel como profeta dos no-
cria a constituição, pois a “constituição não é obra vos tempos, uma espécie de Moisés da modernidade
do poder constituído, mas do poder constituinte” (Strauss, 1958, p. 83). Além disso, não devem ser
(Sieyès, 2002, p. 53). É perfeitamente possível acei- subestimadas as diferenças entre o “constitucionalis-
tar que, independentemente do termo que o desig- mo” antigo, medieval e renascentista, de um lado,
na, o conceito de poder constituinte tenha entrado e o constitucionalismo moderno, de outro, especial-
em circulação antes da época de Sieyès. Afinal, um mente no que toca ao ponto mais sensível do concei-
princípio básico da metodologia da história concei- to de poder constituinte: seu sujeito, o povo.
tual é a distinção entre palavra e conceito (Kosel- Nas épocas pré-modernas, as constituições
leck, 2006, p. 108), sendo possível que uma única republicanas compreendiam o povo de duas ma-
palavra seja utilizada para expressar conceitos dis- neiras: como a totalidade do corpo de cidadãos ou
tintos, ao passo que um mesmo conceito possa ser como o setor mais pobre da cidadania. As consti-
A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE MAQUIAVEL  15

tuições modernas, por outro lado, compreendem te menos na exatidão da reconstrução histórica das
o povo de uma única maneira: como uma coleção ideias de Maquiavel e mais na mobilização dos textos
unitária, homogênea e, do ponto de vista socioe- do autor para fomentar uma teoria da democracia
conômico, indiferenciada de indivíduos-cidadãos apta a explorar as potencialidades e denunciar os li-
formalmente iguais perante a lei (Ferejohn, 2013). mites das democracias contemporâneas. Afinal, se a
Como demonstrou consistentemente McCormick história das ideias tem algo a oferecer à teoria política
(2011), Maquiavel tende a adotar uma visão “so- contemporânea, tal oferta não pode limitar-se a um
ciológica” do povo como uma “classe” social espe- produto de antiquário, que torna qualquer esforço
cífica, dotada de disposições opostas às disposições de recuperação das ideias do passado um exercício
das elites. Não por acaso, o florentino acentuava a supérfluo para aclarar a reflexão teórica atual. Do
virtude das assembleias e magistraturas não univer- ponto de vista da teoria política, não há como justi-
salistas da república romana. Assembleias como o ficar o estudo dos autores clássicos abdicando-se da
concilium plebis e magistraturas como o tribunato crença de que as ideias desses autores nos ajudam a
da plebe são exemplos de instituições derivadas ex- refletir com mais clareza e profundidade sobre nos-
clusivamente do povo compreendido como uma sos próprios dilemas.
parte dos cidadãos, a plebe romana. Maquiavel O que dizer então dos méritos da interpretação
tinha especial apreço pelo fato de serem vedadas anti-institucionalista como teoria política normati-
aos membros das elites tanto sua participação nas va? Qual sua efetiva contribuição para uma teoria
assembleias populares como, principalmente, sua democrática equipada para equacionar e superar os
elegibilidade para o tribunato. dilemas das democracias contemporâneas? Os teó-
Instituições específicas de classe conformam o ricos aqui examinados afirmam que a atualidade de
núcleo do modelo constitucional da “democracia Maquiavel está associada à natureza democrática
maquiaveliana”, e ao mesmo tempo tornam supér- de seu republicanismo. Creio que esse ponto de par-
fluo, se não contraproducente, o recurso ao con- tida é potencialmente produtivo tanto para o estu-
ceito de poder constituinte. Ainda que a projeção do histórico do pensamento político de Maquiavel
do conceito na obra de Maquiavel não incorresse como para uma teoria normativa da democracia
em anacronismo, o florentino provavelmente não “inspirada” em Maquiavel. Contudo, a dificuldade
poderia incorporá-lo; não ao menos sem o risco de teórica dos anti-institucionalistas reside no fato
implodir o modelo constitucional de sua predile- de sua justificável intenção de mobilizar as ideias de
ção, sua versão algo helenizada da constituição mis- Maquiavel, em benefício de uma “teoria democrática
ta da república romana. radical”, colidir com sua sugestão de que o florentino
via em segundo plano o tema da forma política, ou
seja, o tema da configuração institucional capaz de
Conclusão garantir o máximo de estabilidade com um mínimo
de dominação em uma república democrática. Acre-
Do ponto de vista da compreensão histórica da dito que a radicalidade das lições do florentino nada
obra de Maquiavel, a alternativa anti-instituciona- tem a ver com a minimização da importância dos
lista revela dificuldades em face de critérios de vali- arranjos institucionais indutores de igualdade e liber-
dação de metodologias tanto textualistas como con- dade. Os anti-institucionalistas postulam a identida-
textualista. A despeito desses limites, seria possível de entre democracia e revolução. A vida democrática
supor uma última trincheira de defesa da interpre- estaria toda ela concentrada no momento de ativa-
tação. Observei anteriormente que o diálogo entre ção do poder constituinte. Democracia nada teria a
a história do pensamento político e a teoria política ver com estabilidade ou mudança incremental, mas
é enriquecedor para os dois campos de conhecimen- com o momento radical de negação das instituições
to. Mas isso não significa que esses campos se con- existentes, independentemente do que virá depois.
fundam. O intérprete anti-institucionalista poderia Negri define a democracia como o governo ab-
argumentar que a força de sua interpretação consis- soluto e revolucionário da multidão, tão efêmero
16  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 98

quanto o ato da insurgência; Vatter a compreende mento de que a democracia pode ser tudo, desde
como realização eventual e episódica da liberda- que não deixe de ser uma forma de governo: o gover-
de como ausência de governo; e Del Lucchese a no controlado pelo povo.
encontra no potencial revolucionário, inevitavel-
mente violento, encapsulado no conflito social.
Em qualquer caso, o espírito da democracia seria Notas
o espírito da mudança radical, da desconfiança em
reformas incrementais e do desdém à estabilida- 1 O termo “neorromano” foi inicialmente utilizado por
de do arranjo institucional republicano, com seus Quentin Skinner em seu esforço para indicar a gêne-
múltiplos mecanismos de dispersão do poder. Saber se e qualificar o conceito de liberdade de pensadores
se essa é uma orientação normativa desejável (e fac- políticos ingleses do século XVII que se distinguiram
na luta ideológica contra o absolutismo monárquico
tível) para o republicanismo democrático contem-
(Skinner, 1999). Em estudos mais recentes, o autor
porâneo requer tratamento mais aprofundado, que afirma ter abdicado do termo “neorromano” em favor
decorre da discussão levada a cabo neste artigo, mas do termo “republicano” mais por motivações retóricas
que excede os limites de nosso foco, concentrado do que por razões analíticas (Skinner, 2008 e Skinner,
na crítica no campo da compreensão histórica 2010). É certo que a redescrição da liberdade neorro-
do republicanismo democrático de Maquiavel. mana como liberdade republicana acabou se impondo
Ainda que a orientação normativa do anti-institu- nas discussões teóricas e historiográficas sobre o repu-
cionalismo se provasse desejável e factível, seus pro- blicanismo. Não obstante, como uma coisa não elimi-
positores se deparariam com intransponíveis obs- na a outra, a expressão “republicanismo neorromano”
táculos para recrutar Maquiavel para suas fileiras, acabou se impondo na literatura especializada como
um recurso para indicar a especificidade da vertente
ao menos sem lançar mão de elevadas e arriscadas
dominante do chamado republican revival. Segundo
doses de superinterpretação e anacronismo. essa vertente, a tradição republicana moderna é mais
Afinal, pensemos um pouco naquele aplicado tributária do modelo misto da antiga república roma-
diplomata que, cautelosa mas perseverantemen- na do que do modelo democrático da polis ateniense.
te, defendeu os interesses de sua cidade diante de 2 Maquiavel diz sobre Roma que “permanecendo mista,
grandes potências europeias; ou naquele escritor exi- constituiu uma república perfeita: perfeição a que se
lado que mergulhou nos segredos das instituições chegou devido à desunião entre a plebe e o senado”
da república romana com o fim de “imitar”, em sua (Maquiavel, 2007, p. 19).
própria época, aquele exemplo de grandeza e liber- 3 Althusser teve em Maquiavel um autor de constante
dade; ou naquele historiador de Florença que lamen- revisitação. Contudo, seu estudo mais importante so-
tava a inexistência, em sua “grande e triste” cidade, bre o florentino apenas foi publicado postumamente
de “vias ordinárias”, tanto para conter a ambição das sob o trabalho editorial de François Matheron, que se
elites, quanto para canalizar a ira e o ressentimento deparou com um manuscrito repleto de modificações,
popular; ou, ainda, naquele já maduro reformador supressões e acréscimos realizados ao longo de mais
de uma década, entre 1972 e 1986. A edição inglesa de
institucional que, restituído ao serviço público na
Machiavel et Nous contém, além da nota editorial
condição de modesto funcionário, escreve o projeto
de Matheron, um importante apêndice com a con-
de uma nova constituição para Florença. Esse não ferência La Solitude de Machiavel, pronunciada
parece ser o perfil de um pensador despreocupado por Althusser, em 1977, na Associação Francesa de
com as instituições e a estabilidade institucional. Ciência Política. Para um apanhado da reflexão de
Talvez a fonte das fragilidades da interpreta- Althusser sobre Maquiavel, ver Elliot (1999), Va-
ção anti-institucionalista de Maquiavel, tanto no tter (2004), Negri (2004) e Del Lucchese (2010).
plano histórico como no plano normativo, esteja Para uma análise detalhada do lugar de Maquiavel
associada ao desprezo de seus protagonistas por um no materialismo aleatório do último Althusser, ver
ensinamento originário dos antigos, absorvido pelo Lahtinen (2009).
pensador florentino e que atravessa nossa multis- 4 As traduções das citações em língua estrangeira são de
secular tradição de pensamento político; o ensina- minha autoria.
A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE MAQUIAVEL  17

5 Embora o texto de Arendt, no qual se baseia Vatter, como uma espécie de estado (como, aliás, Maquiavel
deixe claro que a liberdade entre os gregos pressupõe deixa bem claro já no primeiro capítulo de O Prínci-
a inexistência de separação entre governantes e gover- pe). A justificativa do recuo é que tal oposição só faria
nados, Vatter incorre em exagero ao emprestar cono- sentido no quadro de uma visão hobbesiana do estado
tações anarquistas à formulação. O texto da autora como uma persona ficta a serviço do absolutismo, vi-
que dá sustentação a Vatter poderia ser interpretado são distinta da concepção do stato em Maquiavel. Ver
de outra forma. Basta lembrar que a expressão “no- Vatter (2014, p. 236).
-rule” pode ser traduzida para o português tanto por 9 A tese do “retorno aos princípios” é talvez o momen-
“não governo” como por “não-domínio”. Essa, aliás, to mais dramático da discussão de Maquiavel sobre
foi a escolha da tradutora da edição brasileira de So- como combater a corrupção das repúblicas. O lócus
bre a Revolução. Diz Arendt, no original: “Freedom clássico dessa tese é o primeiro capítulo do livro III
as a political phenomenon was coeval with the rise dos Discorsi, cujo título consiste no seguinte conselho:
of the Greek city-states. Since Herodotus, it was un- “Quem quiser que uma seita ou uma república viva
derstood as a form of political organization in which por muito tempo, precisa fazê-la voltar frequentemen-
the citizens lived together under conditions of no-ru- te ao seu princípio” (Maquiavel, 2007, p. 305).
le, without a division between rulers and ruled. This
10 O adjetivo “guicciardiniano” refere-se, obviamente,
notion of no-rule was expressed by the word isonomy,
à Francesco Guicciardini, contemporâneo e inter-
whose outstanding characteristic among the forms of
locutor de Maquiavel, que desposava uma visão ni-
government, as the ancients had enumerated them,
tidamente aristocrática da tradição republicana. Em
was that the notion of rule […] was entirely absent
ensaio recente, Spitz (2017) atribui a McCormick,
from it” (Arendt, 1990, p. 30). Na edição brasileira,
juntamente a Lucchese, uma crítica “externa” ao
esse trecho recebe a seguinte tradução, mais refratária
neorrepublicanismo de Skinner e Pettit. Embora tal
à interpretação de Vatter e mais próxima do neorre-
atribuição seja correta no caso de Lucchese, ela é im-
publicanismo de Pettit: “A liberdade como fenômeno
procedente no caso de McCormick, que almeja uma
político nasceu com as cidades-estado gregas. Desde
crítica interna ao republicanismo neorromano.
Heródoto, ela foi entendida como uma forma de or-
ganização política em que os cidadãos viviam juntos 11 A abordagem textualista na história das ideias com-
na condição de não domínio, sem divisão entre domi- preende todo tipo de investigação que elege o texto a
nantes e dominados. Essa noção de não domínio se ser interpretado como a matéria-prima necessária e su-
expressava na palavra ‘isonomia’, cuja principal carac- ficiente para a apreensão de seu significado histórico.
terística entre as formas de governo, tais como foram Evidentemente, há uma grande variedade de metodolo-
enumeradas pelos antigos, consistia na ausência com- gias na abordagem textualista. Uma aplicação exemplar
pleta da noção de domínio” (Arendt, 2011, p. 58). da abordagem textualista ao caso de Maquiavel é a de
Leo Strauss e seus seguidores (Strauss, 1958; Mansfield,
6 Pettit responde diretamente essa objeção de Vatter as-
1996; Zuckert, 2017). Já a abordagem contextualista,
sinalando que “quando ele fala em dominação, deve
embora tome que o texto como matéria-prima necessária
ter uma concepção diferente da minha”. Para Pettit,
para a apreensão de qualquer dimensão de seu significa-
o principal elemento do conceito de dominação é
do, considera-o insuficiente para a compreensão de seu
justamente a natureza arbitrária da interferência do
significado histórico. O procedimento padrão consiste
agente dominante sobre o agente dominado. Assim,
em situar o texto em seu devido contexto de surgimento.
se a interferência não é arbitrária, ela simplesmente
Há também diversas ramificações da abordagem contex-
não conta como dominação. Isso o leva a concluir que
tualista, conforme se enfatize os contextos econômico,
“dominação não arbitrária é tão impossível, em meus
social, cultural ou linguísitico como condição da inter-
termos, quanto um círculo quadrado” (Pettit, 2005,
pretação. Para os fins do presente artigo, interessa-nos so-
p. 187). Para uma troca mais recente entre Vatter e Pe-
bretudo o contextualismo linguísitico, em que se destaca
ttit, motivada pela publicação de On the People’s Terms
o contexto das convenções linguísticas e normativas que
(Pettit, 2012), ver Vatter (2015) e Pettit (2015).
regulam os termos do debate em que o texto se insere
7 Com efeito, para Maquiavel, “A grande verdade é que na forma de um ato linguístico. Destacadas aplicações
todas as coisas do mundo têm seu tempo de vida” do contextualismo linguístico ao estudo de Maquiavel
(Maquiavel, 2007, p. 305). são devidas a estudiosos vinculados à denominada Escola
8 Recentemente, Vatter parece chegar a outra conclu- de Cambridge. (Pocock, 1975; Skinner, 1978 e 1988;
são, aceitando que a república possa ser compreendida Viroli, 1998).
18  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 98

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  21

A REPÚBLICA DEMOCRÁTICA THE MACHIAVELLI’S LA RÉPUBLIQUE


DE MAQUIAVEL: UMA CRÍTICA DEMOCRATIC REPUBLIC – DÉMOCRATIQUE DE
À INTERPRETAÇÃO ANTI- A CRITIQUE ON THE MACHIAVEL: UNE CRITIQUE
INSTITUCIONALISTA ANTI-INSTITUTIONALIST DE L’INTERPRÉTATION ANTI-
INTERPRETATION INSTITUTIONNALISTE

Ricardo Silva Ricardo Silva Ricardo Silva

Palavras-chave: Maquiavel; República; Keywords: Machiavelli; Republic; De- Mots-clés: Machiavel; République; Dé-
Democracia; Instituições; Poder consti- mocracy; Institutions; Constituent pow- mocratie; Institutions; Pouvoir consti-
tuinte; Superinterpretação; Anacronismo. er; Over-interpretation; Anachronism. tuant; Surinterprétation; Anachronisme.

O artigo elabora uma crítica da interpre- The article elaborates a critique of the Cet article opère une critique de l’inter-
tação anti-institucionalista do republica- anti-institutionalist interpretation of prétation anti-institutionnaliste du répu-
nismo democrático de Maquiavel. Em Machiavelli’s democratic republicanism. blicanisme démocratique de Machiavel.
oposição aos que atribuem ao florentino In opposition to those who attribute to En opposition à ceux qui attribuent au
o compromisso com uma forma institu- the Florentine the commitment with an Florentin une forme institutionnelle des-
cional destinada a canalizar e dar vazão institutional form destined to channel tinée à canaliser et à résoudre des conflits
a conflitos decorrentes da incorporação and vent the conflicts arising from the issus de l’incorporation du peuple dans
do povo na comunidade política, a inter- incorporation of the people into the po- la communauté politique, l’interpréta-
pretação anti-institucionalista sugere que litical community, the anti-institution- tion anti-institutionnaliste suggère que
a liberdade política, na república demo- alist interpretation suggests that politi- la liberté politique – dans la république
crática de Maquiavel, identifica-se com cal freedom in Machiavelli’s democratic démocratique de Machiavel – s’identifie
eventos anteriores, exteriores e antagôni- republic identifies itself with events that à des événements antérieurs, extérieurs et
cos à ordem jurídico-política. Examinan- are antecedent, external and antagonistic contraires à l’ordre juridique et politique.
do contribuições recentes de três autores to the legal-political order. By examin- L’article se base sur les contributions ré-
exemplares dessa corrente interpretativa, ing the recent contributions of three centes de trois auteurs qui se situent dans
o artigo demonstra que o erro comum exemplary authors of this interpretative la lignée de ce courant interprétatif pour
entre eles consiste em negligenciar a pre- strand, the article demonstrates that the démontrer une erreur commune à tous:
ocupação central de Maquiavel com a common mistake among them consists négliger l’importance accordé par Ma-
manutenção de ordenações e leis adequa- in neglecting Machiavelli’s central con- chiavel au maintien d’ordonnances et de
das a uma república democrática. Argu- cern with the maintenance of orders and lois adaptées à une république démocra-
menta-se que, no plano da compreensão laws that are appropriate to a democratic tique. Sur le plan de la compréhension
histórica, os obstáculos para a validação republic. It is argued that the obstacles to historique, les obstacles à la validation
da interpretação anti-institucionalista the validation of the anti-institutionalist de l’interprétation anti-institutionnaliste
revelam-se incontornáveis, quer segundo interpretation in the field of historical apparaissent incontournables, que ce soit
critérios metodológicos textualistas quer understanding are insurmountable based à partir de critères méthodologiques tex-
segundo critérios contextualistas. on both textualist and contextualist tualistes ou de critères contextualistes.
methodological criteria.

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