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A Serpente do Paraíso rouba a cena no

filme "Noé"

No livro bíblico do Gênesis, a história da arca de Noé tem apenas três


páginas. Conhecendo o senso hollywoodiano de espetáculo e a
inclinação de Darren Aronofsky em explorar complexas simbologias
místicas e esotéricas, era de se esperar que o filme “Noé” (Noah, 2014)
não fosse um thriller bíblico nos moldes de “Os Dez Mandamentos”.
Pelo contrário, Aronofsky subverte o famoso personagem bíblico
através de uma releitura gnóstica e cabalística. O diretor não só
abandonou a Bíblia como transformou a Serpente do Jardim do Éden
no personagem principal, trazendo para as telas a antiga versão
gnóstica do mito do Paraíso, sob uma embalagem atual política e
ecologicamente correta.
Quem conhece a obra do cineasta Darren Aronofsky, sabe que se pode
esperar de seus filmes profundos simbolismos místicos e esotéricos.
Foi assim em filmes como Pi
(http://cinegnose.blogspot.com.br/2011/07/busca-interior-atraves-dos-
numeros-no.html) (um thriller cabalístico onde um gênio matemático
procura uma constante numérica universal), Cisne Negro
(http://cinegnose.blogspot.com.br/2011/03/filme-cisne-negro-o-
drama-do-artista.html) (fábula gnóstica sobre a exploração da luz
interior humana por um demiurgo representado pelas exigências
mercadológicas de uma companhia de balé) e Fonte da Vida
(http://cinegnose.blogspot.com.br/2010/02/fonte-da-vida-surpreende-
ao-utilizar.html) (uma jornada de elevação espiritual através de
complexos simbolismos gnósticos e alquímicos).
  Com o filme Noé (Noah, 2014) não poderia ser diferente. Porém, desta
vez Aronofsky saiu do campo dos dramas seculares traduzidos por
simbolismos para entrar em uma narrativa bíblica fazendo uma
releitura paradoxalmente sem referência à Bíblia: Aronofsky fez uma
subversão flagrantemente gnóstica e cabalística do famoso
personagem bíblico.
Em termos mais diretos, enquanto os líderes cristãos fizeram um
grande esforço para endossar uma versão cinematográfica de um herói
bíblico (“pelo menos Hollywood está fazendo algo pela Bíblia...”, muitos
elogiavam) Aronofsky não só abandonou a Bíblia como transformou a
serpente do Paraíso como o personagem principal (a palavra “Deus”
nem é citada, substituída pelo ambíguo termo “Criador”) e Noé como
literalmente o portador da semente da serpente. Para os gnósticos ela
não seria a responsável pelo pecado e danação, mas, ao contrário, a
portadora da Verdade e da Luz.

A questão do filme Noé é que esta subversão gnóstica foi encoberta


por uma embalagem política e ecologicamente correta como, por
exemplo, na aparente divisão entre os bons (um Noé vegetariano,
querendo salvar a inocência dos animais da maldade humana) e os
maus (o carnívoro rei Tubal-Caim e seus asseclas que acreditam que
tudo o que existe no planeta é para o homem dominar e explorar numa
economia extrativista).
Sem falar na forma como durante o filme Noé, de visionário e profeta,
vai aos poucos se transformando em um louco homicida quando
abandona a namorada do filho Ham à morte e quase mata duas
crianças recém-nascidas a bordo da arca com a ideia fixa
(supostamente ordenada pelo “Criador”) de que a espécie humana
deveria ser eliminada da face da Terra para garantir a “inocência” das
espécies vivas.
Curiosamente a ideia de Noé se assemelha a de grupos atuais que
unem fundamentalismo ecológico com o religioso como a chamada
“Igreja da Eutanásia” nos EUA cujo lema é “salve o planeta, mate-se”:
suicídio, aborto, canibalismo e sodomia seriam as únicas formas de
salvar o planeta do desastre ecológico ao evitar a procriação da raça
humana, considerada o verdadeiro parasita da Terra.

A subversão de Aronofsky
Mas voltemos à subversão simbólica de Aronofsky. A primeira cena
que chama a atenção em Noé é a representação de Adão e Eva como
dois anjos luminescentes. Aqui o filme inicia a mistura entre
gnosticismo e cabala (essencialmente uma forma judaica do
gnosticismo). Compare o Éden mostrado no filme com esses trechos, o
primeiro do livro Contra as Heresias de Irineu de Lyon onde cita uma
descrição feita no século II por uma seita gnóstica e o gnosticismo
judaico de Adolphe Franck do século XIX:

“Adão e Eva foram criados a partir da luz, eram luminosos, por assim
dizer, corpos espirituais, tal como foram criados. Mas quando
chegaram aqui, os corpos se tornaram escuros, gordos e ociosos”
(Irineu de Leon, Contra as Heresias, I, 30, 9).
“Quando nosso pai Adão habitou o Jardim do Éden, ele estava vestido,
como todos estão no céu , com uma roupa feita de luz superior.
Quando ele foi expulso do Jardim do Éden e foi obrigado a submeter-se
às necessidades deste mundo , o que aconteceu ? Deus, as Escrituras
nos dizem , fez para Adão e sua esposa túnicas de pele e os vestiu;
mas antes disso eles tinham túnicas de luz, da maior luz usada no Éden
...” (Adolphe Franck, The Kabbalah, p.208).

O universo do filme é essencialmente gnóstico no confronto entre o


mundo superior, espiritual e luminoso e o mundo terrestre inferior, com
anjos decaídos cuja luz foi confinada na carne material ou na lava
endurecida como os intrigantes personagens dos “Vigilantes”, espécies
de transformers gnósticos.
Para entender o importante papel que os Vigilantes e os nossos pais
luminescentes vão desempenhar para a entrada em cena da Serpente
do Éden como o fio condutor de Noé, temos que entender como o
Gnosticismo interpreta o mito do Paraíso.

A interpretação gnóstica do Éden


Para o Evangelho Apócrifo de João o Paraíso foi uma construção
deliberada pelo Demiurgo. Criou um jardim aparentemente cheio de
belezas e delícias e colocaram Adão no meio dele como um prisioneiro.
Isso foi uma resposta contra o espírito de Sophia que entrara no corpo
do falso homem criado pelo Demiurgo (uma cópia imperfeita de
Anthropos, o arquétipo do homem celestial) e deu a ele a verdadeira
humanidade e vida. Colocou-se em pé e passou a caminhar circundado
por uma luz não terrestre.
Em represália o Demiurgo o prendeu no Paraíso, seduzido pelos
aparentes prazeres do jardim terrestre. Na verdade, os frutos eram
amargos e a sua beleza perversão. Também colocou uma árvore no
centro desse jardim, contendo a vida dele, e proibiu de comer o seu
fruto: disse a Adão que a árvore havia surgido das trevas e seu fruto
seria venenoso. Dessa forma, impediram Adão de conhecer a Verdade.
Mais uma vez Sophia veio em socorro do homem. Em colaboração com
os poderes mais altos da Plenitude, enviou para Adão um auxiliar, uma
mulher conhecida por Eva. Na verdade, essa “mulher” seria uma forma
espiritual (em forma de serpente) que penetrou em Adão e se manteve
escondida sem que os Arcontes percebessem sua presença. Dessa
forma, instruiu Adão a comer o fruto da árvore proibida.
A continuação dessa narrativa do gênesis é bem diferente do relato
canônico bíblico. Descoberta, Eva é “criada a partir da costela de Adão”
(na verdade ela foi retirada de dentro de Adão pelos raivosos arcontes
quando descobriram que foram enganados) para ser aprisionada e
violentada pelos regentes. Desse ato surgem os filhos Caim e Abel. Ao
descobrir o que se sucedera, Adão gera um filho com o nome de Seth
com inclinação para o espírito, tornando-se, ao longo da história, o
símbolo para aqueles que buscam a Gnose.

A Serpente rouba a cena

Nitidamente em Noé os Vigilantes lembram os aeons (vemos a


chegada deles no planeta como anjos luminosos) que vêm
secretamente ajudar o homem. No filme explica-se que ao serem
descobertos pelo “Criador”, são castigados e suas luzes confinadas em
um corpo de lava escura endurecida, correspondendo à releitura
gnóstica do mito do Paraíso.
Aqui encontramos uma nova fusão com a cabala. Vemos como os
Vigilantes são redimidos (retornam aos céus como um feixe de luz no
final da missão de auxiliar Noé a construir a arca). O curioso é que seus
nomes (Semyaza, Magog e Rameel) correspondem aos nomes dos
demônios da tradição judaica. Na cabala, nada é absolutamente ruim,
nem mesmo o mais maligno dos arcanjos ou a pior das feras – chegará
um momento em que recuperará a sua natureza angelical.
Outro detalhe é que a palavra “Deus” jamais é dita. Sua substituição
pelo termo “Criador” é sintomático: para o Gnosticismo esse termo
designa o Demiurgo ou Yaldabaoth, uma divindade arrogante, ignorante,
prepotente, ciumenta e vingativa. Filho bastardo de uma divindade de
baixo nível, foi o responsável pela construção do mundo material e por
ser tão ignorante do mundo espiritual, se imagina como o único Deus.
Tanto Noé quanto Tubal-Cain adoram o mesmo “Criador”, pedem
respostas e têm apenas o silêncio dos céus. Aqui percebemos que o
suposto conflito entre o bem e o mal hollywoodiano se dilui em uma
mensagem perturbadora para quem esperava uma leitura estritamente
bíblica: a serpente sempre teve razão, ela representa o verdadeiro
divino e as alegações do “Criador” são falsas por tentar esconder a
própria divindade humana.
Logo no início do filme vemos Lameque, o pai de Noé, tentando
abençoar seu filho. Ele retira uma relíquia sagrada: a pele da serpente
do Jardim do Éden. Ele envolve-a em torno do seu braço, ilumina-se e
estende a mão para tocar seu filho quando a cerimônia é interrompida
por um grupo de saqueadores. Lameque é morto e o líder Tubal-Cain
rouba a relíquia, mas com ele a pele não tem o mesmo efeito
luminescente.
Muitos críticos observam que não há nenhum personagem simpático:
Tubal-Caim é duro, violento e imoral, enquanto Noé é tão duro consigo
mesmo que aos poucos vai se tornando o mesmo com sua própria
família a ponto de quase se tornar um louco homicida. E todos
adorando o mesmo “Criador” e sem a ação “iluminadora” da pele da
serpente.
Como o próprio diretor Aronofsky declarou em entrevistas “Noé está
adorando um falso Deus, maníaco e homicida. Quanto mais Noé é fiel e
“piedoso”, mais homicida ele se torna. Ou seja, a cada momento ele se
torna a imagem e semelhança do “Criador”, assim como o seu rival
Tubal-Caim” (veja MATTSON, Brian, “Sympathy for the Devil” In: Dr. Brian
Mattson The Website (http://drbrianmattson.com/?
offset=1396360800000)).
O interessante é que não há um esperado arco-íris (o símbolo da
aliança entre Deus e o Homem), mas a iluminação por meio da pele da
serpente: após a cena em que Noé se embebeda com vinho, deitado nu
na praia e coberto por uma túnica pelos seus filhos recebe de Ham a
pele da serpente. Ele consegue do seu próprio filho a benção que ele
jamais conseguiu de seu pai. Nesse momento seu rosto se ilumina pelo
Sol. Está sóbrio e chora. Ele parece transcender e superar aquela
divindade homicida e ciumenta.
Em suma, a Paramount Pictures pregou uma peça aos espectadores
incautos e, principalmente, católicos que não conhecem a obra de
Darren Aronofsky. Assistindo ao trailer do filme, parece que estamos
diante de mais uma produção com tema bíblico. Em verdade, Aronofsky
criou um verdadeiro cavalo de Troia cuja embalagem política e
ecologicamente correta faz o pesado simbolismo gnóstico-cabalístico
descer goela abaixo de forma suave como entretenimento. 

Ficha Técnica

Título: Noé
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Darren Aronofsky e Ari Handel
Elenco: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Anthony Hopkins, Emma
Watson, Logan Lerman
Produção: Paramount Pictures
Distribuição: Paramount Pictures
Ano: 2014
País: EUA

NOÉ - Trailer o cial - Legendado em português

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