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O Super Bowl é a grande final do futebol americano da NFL, a maior e mais rentável liga

esportiva do planeta. Ela movimenta bilhões de dólares e faz com que mais de cem milhões de
americanos parem para ver o que vai acontecer em campo. Nesta semana de decisão, será o
assunto mais comentado nos Estados Unidos.

Mesmo assim, um nigeriano, médico legista que vivia e trabalhava em Pittsburgh havia 30
anos, não sabia nada do jogo, nem do tamanho do negócio que ele movimentava. Isso até Dr.
Bennet Omalu se “encontrar” com Mike Webster, num sábado, em setembro de 2002. O
detalhe importante é que um dos maiores nomes do esporte americano estava morto. Nesse
momento, a NFL se deparou com um problema que não conseguiria vencer.

Antes de falar desse encontro, da pesquisa que provocou a ira dos chefões da Liga e das
consequências para o jogo, é importante reforçar algo sobre o Direito Esportivo e esta seção.

Na semana passada, o professor Wladimyr Camargos escreveu mais um texto sobre os


fundamentos do Direito Esportivo. Já na abertura, destacou que a Lex Sportiva não pode ser
confundida com a Lei do Esporte. Afinal, esse sistema transacional ultrapassa os limites
jurídicos, abrangendo também sociologia, cultura e diálogos, nem sempre tranquilos.

Vamos falar hoje justamente disso. De um diálogo provocado por um médico africano, com
cidadania americana, que incomodou os comandantes da NFL, que se negaram a conversar.
Mesmo assim, desse quase monólogo surgiram mudanças importantíssimas para a segurança
do esporte, muito embora a Liga não admita isso de forma transparente. Tem conversa, tem
questionamento às regras, tem conflito, tem mudança. Sim, é caso de Juri-história.

Ao caso. Resumidamente. Em 2002 o médico Bennet Omalu, legista, se deparou com Mike
Webster, um ídolo do futebol americano que acabara de morrer com apenas 50 anos. Omalu
costumava repetir que se preocupava não com a forma como as pessoas viviam, mas sim como
morriam. A hipótese de ataque cardíaco, como se suspeitava, nunca foi recebida por Omalu.
Até porque o ex-atleta apresentava um quadro de demência surpreendente nos últimos anos
de vida. Ele precisava entender aquela morte.
“Iron Mike” era um “center”, a mais violenta das posições do esporte. Ele sofreu uma
tempestade incansável de golpes ao logo da carreira. Segundo estimativas, foram mais de 25
mil colisões em campo. Na autópsia, Omalu não abriu mão de analisar o cérebro de Mike,
mesmo com a oposição de muita gente. No exame, encontrou uma série de pequenas lesões.
O mesmo aconteceu com outras autópsias feitas com ex-jogadores de futebol americano.

O médico concluiu que a doença degenerativa, chamada ETC (encefalopatia traumática


crônica), havia sido causada pelos golpes que os atletas receberam na cabeça ao longo da
carreira. Ele então passou a apresentar os estudos à NFL, que negou que os danos eram fruto
da prática do futebol americano.

A indústria do esporte sempre fez de tudo para manter o ídolo ativo. Fitas, injeções, Vicodin,
lidocaína, a lista é longa. O espetáculo precisava continuar. E um “médico legista africano”,
que “mal conhecia o esporte”, que “nem nos Estados Unidos havia nascido”, ousava
questionar os procedimentos desse esporte americano, que movimentava fortunas,
empregava milhares e investia em projetos sociais. Os executivos do esporte não podiam
admitir que o esporte que era empolgante, bonito, apaixonante e rentável poderia ser
também perigoso.

Omalu sofreu ameaças, preconceito. Nem sequer conseguia se encontrar com os poderosos da
Liga. Mas a NFL se deparou com a pessoa errada a ter descoberto algo tão avassalador. Sabe
por quê? Porque Bennet Omalu aprendeu desde sempre, em Nnokwa, no sudeste da Nigéria,
onde nasceu, em setembro de 1968, a lutar pelo que acreditava. Seu sobrenome, Omalu, é
uma abreviação de “Onyemalukwube”, que significa que “se um homem sabe algo, ele deve
falar”.

Ele não ficaria quieto, apesar de todo o risco.

Para uma publicação científica, três casos seriam suficientes. Ele e seu grupo já tinham quatro.
Omalu tinha certeza: “Isso já é muito maior do que a NFL”.

Outros estudos deram ainda mais força à tese de Omalu. Em 2014 uma pesquisa da
Universidade de Boston identificou que, nas autópsias feitas com 79 jogadores de futebol
americano, 76 apresentavam doenças degenerativas causadas por situações de jogo. Outro
estudo, de 2015, indicava que um jogador de futebol profissional sofre em média entre 1.000 e
1.500 colisões com outros jogadores ou quedas no campo a cada temporada, algumas
chegando a atingir forças sobre o corpo equivalente a levar uma pancada de um carro
circulando a 55 km/h.
Isso gerou uma série de processos. Recentemente, a Liga concordou em pagar US$ 1 bilhão em
uma ação movida por um grande grupo de ex-jogadores aposentados que alegaram ter o
problema diagnosticado por Omalu, devido à prática do esporte.

E mais, a NFL tem mudado regras de segurança no esporte. A lei do esporte está deixando o
jogo mais seguro. Ela criou o “Protocolo de Concussão”, investiu mais de 100 milhões de
dólares para o desenvolvimento de tecnologias e apoio à investigação médica desses casos,
ajudou a desenvolver um capacete tecnológico. O jogo tem tido menos colisões perigosas.

A história de Omalu virou filme, com Will Smith no papel do médico, “Um homem entre
gigantes”. Não há no filme nenhuma batalha jurídica, como também essa não apareceu como
de costume por aqui. Isso não tira a descoberta científica de Bennet Omalu do rol das
transformações que o esporte sofre a partir das provocações que recebe.

As histórias transformadoras são sempre surpreendentes. Afinal, elas rompem a linha normal
dos fatos, exigem um realinhamento cultural e jurídico, estabelecendo uma nova relação entre
o esporte e seus operadores. Foi exatamente o que provocou a pesquisa médica de Bennet
Omalu.

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