Você está na página 1de 4

Reflexões sobre declínio da Academia e da Universidade de

Coimbra

Converter as Universidades em organismos


políticos, no correntio e jornalístico sentido da
palavra, sôbre ser uma monstruosidade
pedagógica, é crime nacional e um atentado à
razão. Sob essa aparência calma de convergência
de opiniões esconder-se-á o cancro que corroerá
a cultura.
Joaquim de Carvalho,
em A minha resposta ao último considerando do decreto
que desanexou a Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra,
Coimbra, Tipografia França Amado, 1919, p. 15

A epígrafe do “mestre”, conhecido outrora no seu círculo de amizades


como “Professor de Coimbra”, serve-me tão só de apanágio à evocação do
“dever da Memória” sustentado nas teses do pensador búlgaro Tzvetan
Todorov. Pretendo sobretudo provocar as mentes despertas e alertar as
consciências acomodadas. Isto porque, do meu humilde ponto de vista, a
vida pública (e por consequência a “vida Académica” e ou Universitária)
deverá ser sempre entendida sob uma bitola axiológica de probidade
intelectual.
Há alguns anos, uns pretendiam Fazer Univer[sc]idade, enquanto
outros lançavam promessas de Um outro futuro para a Universidade de
Coimbra. A comunidade universitária decidiu, na época, o rumo que queria
tomar, elegendo o Professor Doutor Fernando Jorge Rama Seabra Santos,
Reitor da Universidade de Coimbra (UC). Os eventos sucederam
rapidamente. Os governantes da nação, com as suas conhecidas opções
políticas, “apertaram o cerco” ao Ensino Superior Público, ameaçando, cada
vez mais, a própria existência, de facto, da Universidade em Portugal!
Perante leis desfasadas do contexto social, das realidades económicas
globais ou sequer das opções estratégicas de um desenvolvimento
sustentado — as quais em países como Irlanda se basearam no binómio
desenvolvimento económico e Educação — a resposta dos agentes
universitários foi quase nula e quase sempre subserviente.
A uma Universidade — ainda para mais a uma Universidade com os
pergaminhos da de Coimbra — não se pode nunca consentir o silêncio
ultrajante, quando praticamente a ameaçam de morte, num sentido
metafórico evidentemente. Durante todo o século XX, muitos teóricos da
política, economistas, filósofos ou sociólogos, reflectiram sobre o valor real
do vector Educação para o desenvolvimento das sociedades. Considerações
políticas e ideológicas à parte, permanece-me na lembrança a paráfrase de
Vladimir Ilich Ulianov (Lenin): “o desenvolvimento económico das nações
assenta em três premissas fundamentais: educação, educação, educação”.
No entanto, em Portugal, a educação é um gasto. É vista como um luxo
supérfluo e cedo se tornará um privilégio. Estaremos porventura perante a
aurora do tempo em que “o cancro que corroerá a cultura” no altar profano
do unanimismo intelectual?
À margem destes considerandos, que se podem entender como
desabafos, pretenderei, agora, reflectir sobre os acontecimentos que
marcaram, tanto a abertura solene das aulas na UC, como as
“comemorações” do dia 20 de Outubro. Começando pelo fim, muitos não
entenderam o que esteve em causa há cerca de um ano nas imediações da
Unidade Pedagógica Central do Pólo II da UC. Ignoremos, por momentos, as
razões da Academia, esqueçamos as legítimas preocupações do Sr. Reitor.
Atentemos apenas no facto, inaudito de em toda a História da Universidade
de Coimbra, de ter o seu Reitor assumido, politicamente, a responsabilidade
por uma intervenção policial sobre colegas universitários. Terá sido apenas
por uma luta justa (ou solidária), contra a fixação das propinas pelas
instituições de ensino que protestavam os Estudantes? Ou terá sido, tão só,
pela defesa do princípio da democraticidade paritária na gestão das
instituições de ensino superior que a Academia se bateu? A partir do
instante em que forças de autoridade pública penetraram no próprio seio da
vida universitária, o princípio da autonomia foi posto em causa. Assim, é o
próprio conceito de universidade livre que é lesado e, neste caso, por lesa-
majestade. Relembremos, outros tempos, outras situações políticas.
Quando, por exemplo, na crise académica de 1962, o então reitor da
Universidade de Lisboa, Marcello Alves das Neves Caetano, se demitiu pelo
simples facto das forças policiais terem sido autorizadas a entrar no campus
da referida universidade.
O dia 20 de Outubro de 2004 ficou agora plasmado numa placa de
ferro que simboliza a resistência efémera da Academia em prol da própria
ideia de universidade. Um ano passou e, timidamente, sem alarde, quase
com vergonha e desconhecimento das massas, os “líderes estudantis”, lá
por obrigação descerraram a placa, sem dizer nada a ninguém. Todavia, não
convidaram os estudantes alheios a uma festa constante, nem
simplesmente aqueles que lá estiveram, no pólo II da UC em 2004, a sofrer
a carga policial, nem sequer o próprio estudante que foi detido!
Reflexões urgem, hoje, sobre os acontecimentos que provocaram o
cancelamento da abertura solene das aulas, na UC, no último dia 19 de
Outubro. No meu modesto entender, o facto em si revela apenas cobardia.
Desde já esclareço que não votei na última Assembleia Magna. Exerci esse
direito ao não voto, fundamentalmente, por respeito, quer à instituição,
quer a todos os colegas universitários — sobretudo, aos novos estudantes
que este ano chegaram à Universidade de Coimbra – que partilham do
direito inalienável de assistir à tradicional cerimónia. De um outro ponto de
vista, por respeito também a opiniões contrárias dos que pretendem uma
luta radical assente no vector da força. Em suma, deleguei no colectivo o
poder de decisão.
Contudo, da parte da Academia, a resposta foi radical.
Democraticamente, esta escolheu o caminho da razão da força e outros
escolheram a resposta da cobardia. Tantos os dirigentes da nossa
Associação Académica, como o Sr. Reitor, mais uma vez foram cobardes,
traindo a confiança eleitoral que lhes foi depositada. Ao tentar encenar o
encerramento da porta férrea — ludibriando o espírito da moção aprovada a
12 de Outubro, pela Assembleia Magna da Associação Académica de
Coimbra (AAC) — a Direcção-Geral da AAC (DG/AAC) desonrou o
compromisso ancestral de fazer cumprir toda e qualquer decisão de magna
(tomada com ou sem quórum). Ao utilizar precisamente o argumento da
falta de quórum, o Sr. Reitor tentou apenas dividir a Academia, mais do que
dividir a comunidade universitária. Esquecer-se-á de quantas e quantas
reuniões dos órgãos internos das faculdades, para não referir as da própria
Assembleia da Universidade que o elege, para cujo quórum contribui
essencialmente a presença dos representantes do corpo estudantil! Ou será
que o Sr. Reitor já reviu também as posições assumidas no seu programa de
candidatura sobre gestão democrática e paritária das instituições?
Torna-se por demais evidente que cancelar uma cerimónia a qual
vinca a própria forma de estar da Universidade de Coimbra, no seio da
nação e do mundo, é a atitude mais fácil do apaziguador de conflitos. O
silêncio, por vezes, é mais confrangedor que a “guerra de surdos”. O
confronto de ideias, se não fosse a base da democracia, seria sempre o
apanágio do ser Universidade. Todos sabemos, nós, os universitários, que
muitos não compreendem posições antagónicas entre Academia e Reitoria.
Na realidade, e em última análise, deveriam ter sido sempre os interesses
comuns dos Estudantes e da Universidade — entendida enquanto instituição
e enquanto comunidade tendo interesses que geralmente se completam —
o baluarte da acção política, quer do reitor (órgão de governo da UC), quer
da direcção-geral (órgão executivo da AAC).
Palavras finais sob a forma de conselho. Visto que à margem de
divergência políticas, gosto de cultivar amizades e prezo, tanto o Professor
Doutor Fernando Jorge Rama Seabra Santos, como o colega Fernando
Gonçalves, nesse patamar das relações pessoais. A probidade intelectual
não se poderá nunca contradizer na acção política. Se assim fosse, a vida
das instituições, consubstanciada na gestão corrente das mesmas,
padeceria de antagonismos inexplicáveis. Por outro lado, a mesma vida
institucional seria sempre confundida, pelo todo social, com as opções
individuais dos titulares do poder e jamais encarada como opção
estratégica, mais ou menos fundamentada, — neste caso concreto da
própria Universidade — nos trilhos da construção do futuro das sociedades
humanas.

Talasnal (Serra da Lousã), 11 de Novembro de


2005

Este texto foi enviado, sob forma de carta aberta,


aos principais jornais diários nacionais e de
Coimbra, sendo publicado parcialmente na secção
de “Passeio Público”, do Jornal de Notícias (edição
centro), com o título “O declínio da Academia (I)”
em:
Jornal de Notícias, 14 de Novembro de 2005, p.22

Você também pode gostar