Você está na página 1de 11

COERÊNCIA E COESÃO TEXTUAIS

Conceitos nucleares da linguística textual, que dizem respeito a


dois factores de garantia e preservação da textualidade. Coerência é
a ligação em conjunto dos elementos formativos de um texto; a
coesão é a associação consistente desses elementos. Estas duas
definições literais não contemplam todas as possibilidades de
significação destas duas operações essenciais na construção de um
texto e nem sequer dão conta dos problemas que se levantam na
contaminação entre ambas. As definições apresentadas constituem
apenas princípios básicos de reconhecimento das duas operações
(note-se que o facto de designarmos a coerência e a coesão como
operações pode ser inclusive refutável). A distinção entre estas duas
operações ou factores de textualidade está ainda em discussão quer
na teoria do texto quer na linguística textual.
         Entre os autores que apenas se referem a um dos aspectos,
sem qualquer distinção, estão Halliday e Hasan, que, em Cohesion in
English (1976), defendem ser a coesão entre as frases o factor
determinante de um texto enquanto tal; é a coesão que permite
chegar à textura (aquilo que permite distinguir um texto de um não-
texto); a coesão obtém-se em grande parte a partir da gramática e
também a partir do léxico. Por outro lado, autores como Beaugrande
e Dressler apresentam um ponto de vista que partilhamos: coerência
e coesão são níveis distintos de análise. A coesão diz respeito ao
modo como ligamos os elementos textuais numa sequência; a
coerência não é apenas uma marca textual, mas diz respeito aos
conceitos e às relações semânticas que permitem a união dos
elementos textuais.
         A falta de coerência em um texto é facilmente deduzida por um
falante de uma língua, quando não encontra sentido lógico entre as
proposições de um enunciado oral ou escrito. É a competência
linguística, tomada em sentido lato, que permite a esse falante
reconhecer de imediato a coerência de um discurso. A competência
linguística combina-se com a competência textual para possibilitar

MATD – Frequência 26 Novembro 2009


COERÊNCIA E COESÃO TEXTUAIS
certas operações simples ou complexas da escrita literária ou não
literária: um resumo, uma paráfrase, uma dissertação a partir de um
tema dado, um comentário a um texto literário, etc.
Coerência e coesão são fenómenos distintos porque podem
ocorrer numa sequência coesiva de factos isolados que, combinados
entre si, não têm condições para formar um texto. A coesão não é
uma condição necessária e suficiente para constituir um texto. No
exemplo:
 
(1)
A Joana não estuda nesta Escola.
Ela não sabe qual é a Escola mais antiga da cidade.
Esta Escola tem um jardim.
A Escola não tem laboratório de línguas.
 

o termo lexical “Escola” é comum a todas as frases e o nome “Joana”


está pronominalizado, contudo, tal não é suficiente para formar um
texto, uma vez que não possuímos as relações de sentido que
unificam a sequência, apesar da coesão individual das frases
encadeadas (mas divorciadas semanticamente).
         Pode ocorrer um texto sem coesão interna, mas a sua
textualidade não deixa de se manifestar ao nível da coerência. Seja o
seguinte exemplo:
 
(2)
O Paulo estuda Inglês.
A Elisa vai todas as tardes trabalhar no Instituto.
A Sandra teve 16 valores no teste de Matemática.
Todos os meus filhos são estudiosos.

MATD – Frequência 26 Novembro 2009


COERÊNCIA E COESÃO TEXTUAIS
Este exemplo mostra-nos que não é necessário retomar elementos de
enunciados anteriores para conseguir coerência textual entre as
frases. Além disso, a coerência não está apenas na sucessão linear
dos enunciados mas numa ordenação hierárquica. Em (2), o último
enunciado reduz os anteriores a um denominador comum e recupera
a unidade.
         A coerência não é independente do contexto no qual o texto
está inscrito, isto é, não podemos ignorar factores como o autor, o
leitor, o espaço, a história, o tempo, etc. O exemplo seguinte:
      
(3) O velho abutre alisa as suas penas.

 
é um verso de Sophia de Mello Breyner Andresen que só pode ser
compreendido uma vez contextualizado (pertence ao conjunto “As
Grades”, in Livro Sexto, 1962): o “velho abutre” é uma metáfora
subtil para designar o ditador fascista Salazar. Não é o conhecimento
da língua que nos permite saber isto mas o conhecimento da cultura
portuguesa. 
         A coesão textual pode conseguir-se mediante quatro
procedimentos gramaticais elementares, sem querermos avançar
aqui com um modelo universal mas apenas definir operações
fundamentais:
 
i. Substituição : quando uma palavra ou expressão substitui outras
anteriores:
(4) O Rui foi ao cinema. Ele não gostou do filme.
 
ii. Reiteração : quando se repetem formas no texto:
(5) - «E um beijo?! E um beijo do seu filhinho?!» - Quando dará
beijos o meu menino?!
(Fialho de Almeida)
 

MATD – Frequência 26 Novembro 2009


COERÊNCIA E COESÃO TEXTUAIS
A reiteração pode ser lexical (“E um beijo”) ou semântica
(“filhinho”/”menino”).
 
iii. Conjunção : quando uma palavra, expressão ou oração se
relaciona com outras antecedentes por meio de conectores
gramaticais:
(6) O cão da Teresa desapareceu. A partir daí, não mais se sentiu
segura.
 
(7) A partir do momento em que o seu cão desapareceu, a Teresa
não mais se sentiu segura.
 
iv. Concordância : quando se obtém uma sequência gramaticalmente
lógica, em que todos os elementos concordam entre si (tempos e
modos verbais correlacionados; regências verbais correctas, género
gramatical correctamente atribuído, coordenação e subordinação
entre orações):
(8) Cheguei, vi e venci.
 
(9) Primeiro vou lavar os dentes e depois vou para a cama.
 
(10) Espero que o teste corra bem.
 
(11) Esperava que o teste tivesse corrido bem.
 
(12) Estava muito cansado, porque trabalhei até tarde.

 
De notar que os vários modelos teóricos sobre coesão textual
prevêem uma rede mais complexa de procedimentos, muitos deles
coincidentes e redundantes: Halliday e Hasan (1976), propõem cinco
procedimentos: a referência, a substituição, a elipse, a conjunção e o
léxico; Marcushi (1983) propõe quatro factores: repetidores,

MATD – Frequência 26 Novembro 2009


COERÊNCIA E COESÃO TEXTUAIS
substituidores, sequenciadores e moduladores; Fávero (1995) propõe
três tipos: referencial, recorrencial e sequencial.
         A coerência de um texto depende da continuidade de sentidos
entre os elementos descritos e inscritos no texto. A fronteira entre
um texto coerente e um texto incoerente depende em exclusivo da
competência textual do leitor/alocutário para decidir sobre essa
continuidade fundamental que deve presidir à construção de um
enunciado. A coerência e a incoerência revelam-se não directa e
superficialmente no texto mas indirectamente por acção da
leitura/audição desse texto. As condições em que esta leitura/audição
ocorre e o contexto de que depende o enunciado determinam
também o nível de coerência reconhecido.
         O estudo dialéctico da literariedade - literário versus não
literário - é acompanhado pelos mesmos problemas da definição da
coerência e da coesão de um texto. Seja dado o seguinte exemplo:
 
(13)
!
Experimenta falar pela minha boca,
assoar-te pelo meu nariz...

 
Este texto poderá ser considerado literário? Em caso afirmativo, como
definir a sua literariedade? Poderemos dizer que é coerente?
Poderemos dizer que é coeso? Se o texto estiver assinado por um
autor reconhecido por uma comunidade interpretativa como escritor
(o que significa invariavelmente: criador de textos literários), tal
circunstância pode afectar o nosso juízo sobre a literariedade, a
coerência e a coesão deste texto? Tal questão é equivalente a
estoutra: Até que ponto a identificação autoral de um texto pode
influenciar a determinação ou reconhecimento da sua literariedade,
da sua coerência ou da sua coesão?

MATD – Frequência 26 Novembro 2009


COERÊNCIA E COESÃO TEXTUAIS
         A primeira reacção de um leitor comum é a de não reconhecer
qualquer elemento específico que permita concluir tratar-se de um
texto literário, mesmo que seja possível reconhecer nele coesão (o
enunciado está construído linearmente e respeita todas as regras
gramaticais de conexão). O que nos faz duvidar da literariedade (e da
textualidade) deste “texto” é a sua aparente falta de sentido na
relação entre o sinal gráfico de exclamação, centralizado como um
título, e o enunciado subjectivo. De certeza, muitos resistirão
inclusive à aceitação de tal texto como um texto e dirão tratar-se de
uma "aberração linguística", um "capricho semântico", uma
"construção acidental de palavras e sinais", ou qualquer outra coisa
semelhante. Um leitor mais exigente poderá argumentar que tal
construção é de facto um texto literário, cuja literariedade e
textualidade estão associadas à combinação intencional entre um
signo gráfico e signos linguísticos, com o objectivo de produzir uma
relação significativa simbólica - existirá, portanto, uma certa
coerência. A explicitação de tal relação significativa variará
naturalmente de leitor para leitor, conforme a sensibilidade literária
de cada um. Neste segundo caso, em que se procura uma
significação literária para uma construção aparentemente não
literária, dificilmente poderíamos defender a pretensa literariedade e
a textualidade com argumentos lógicos para todos os leitores, o que
nos leva a concluir que o que faz a literariedade e a textualidade de
um texto é em primeiro lugar o reconhecimento geral dessa
propriedade por toda uma comunidade interpretativa. A coerência do
texto, ou seja, a negação de poder ser considerado um absurdo,
segue o mesmo critério de aceitação. Contudo, mesmo esta regra,
que parece satisfatória, está sujeita a excepções incómodas. Seja o
exemplo, entre muitos outros, do poema "Ode marítima" de Álvaro de
Campos. Quando foi publicado pela primeira vez no Orpheu 2 (1915),
produziu escândalo na comunidade interpretativa da época, não
sendo reconhecido como texto literário mas como pura "pornografia",

MATD – Frequência 26 Novembro 2009


COERÊNCIA E COESÃO TEXTUAIS
"alienação", "literatura de manicómio" e outros epítetos do género -
todos apontando a falta de coerência do texto e não certamente a
sua falta de coesão. Todas as obras artísticas de vanguarda
respeitam de alguma forma a exigência de provocação, que quase
invariavelmente redunda em anátema. Isto significa que o princípio
de aceitação universal da literariedade, da textualidade e da
coerência de um texto está sujeito também a um certo livre-arbítrio.
Todas as declarações de guerra à sintaxe tradicional que as
literaturas de vanguarda costumam fazer são, logicamente, guerras à
coesão gramatical dos textos literários de vanguarda. Contudo, não
deixam de ser literários por essa falta de coesão, uma vez que a sua
literariedade e a sua textualidade se conquista ao nível da coerência.
         Poderá a revelação da identidade autoral do texto (13) em
particular levar a uma outra conclusão? Se eu tivesse apresentado o
texto como um poema do autor surrealista Alexandre O'Neill, que
pertence à série "Divertimento com sinais ortográficos", in Abandono
Vigiado (1960), alguém duvidaria por um momento que se tratava
não só de um texto coerente como de um texto literário? O que nos
pode dizer o título "Divertimento com sinais ortográficos"? O facto de
o autor intitular a sua criação como "Divertimento" inspira-nos uma
nova pista para o reconhecimento da literariedade e da coerência
textual: um texto será literário se contiver sinais, sugestões ou
elementos que revelem o gozo (no sentido da lacaniana jouissance)
que o seu autor experimentou ao criá-lo. A criação de um texto
literário é a mais erótica de todas as criações textuais. A coerência de
certos textos-limite só pode ser avaliada por este lado. Mas será que
um texto não literário não pode arrastar consigo sinais de gozo de
quem o criou? Roland Barthes admitiu  em "Theory of the Text”
(artigo inicialmente publicado em Encyclopaedia Universalis, 1973),
que qualquer texto "textual" conduz pela sua essência criativa à
jouissance do autor, seja literário ou não, isto é, conduz
necessariamente não só a um prazer de escrita como a própria

MATD – Frequência 26 Novembro 2009


COERÊNCIA E COESÃO TEXTUAIS
escrita ou texto produzido é uma espécie de clímax sexual - um
têxtase. Se reduzíssemos este princípio de textualidade e
decidíssemos que qualquer tentativa de levar o erotismo criativo da
escrita para além de certos limites significa entrar de imediato no
limiar do literário (=textualmente coerente), então teremos
encontrado um critério de definição da literariedade e da
textualidade. Do texto que seja resultado de um têxtase, diremos ser
literário; mas também que é possível medir macrotextualmente o seu
nível de coerência a partir dessa descoberta.
O princípio do têxtase textual está naturalmente sujeito ao
livre-arbítrio do leitor, como o está a detecção do grau de coerência
textual. Ora, a teoria literária distingue-se das ciências exactas
precisamente porque é intrinsicamente inexacta, dispensando o
enunciado de leis universais de resolução de problemas. Em teoria
literária, não é possível dizer: "Tenho a solução para este problema."
Todas as soluções definitivas são absolutamente discutíveis, portanto,
não há soluções definitivas, tal como não há leitores peritos. Todo o
texto literário, enquanto cemitério de sentidos mortos-vivos, é uma
ameaça constante para o leitor que se julgue perito nesse texto. Não
há equações que permitam concluir com exactidão a coerência
textual. Não esquecer ainda que qualquer texto pode resistir à
tentativa de controlar a sua organização interna, isto é, pode resistir
a qualquer delimitação do seu nível de coerência. Nisto se distingue
da coesão, que possui um grau de resistência menor. A coerência
está mais sujeita à interpretação do que a coesão. Se não é possível
determinar uma taxonomia textual, porque não é possível
sistematizar processos de resolução hermenêutica, já é possível
determinar regras gramaticais de coesão e sistematizar processos de
construção textual.
Para além da linguística textual, podemos discutir os conceitos
de coesão e sobretudo o de coerência no âmbito da textualidade
puramente literária, por exemplo, na construção de uma narrativa.

MATD – Frequência 26 Novembro 2009


COERÊNCIA E COESÃO TEXTUAIS
Tradicionalmente, todas as formas naturais (para distinguir das
formas subversivas de vanguarda) de literatura ambicionam a
produção de textos coesos e coerentes, por exemplo, no caso do
romance, com personagens integradas linearmente numa narrativa,
com uma intriga de progressão gradual controlada por uma
determinada lógica, com acções interligadas numa sintaxe contínua,
com intervenções do narrador em momentos decisivos, etc. Por outro
lado, nunca ficará claro que todas as formas de anti-literatura
possam ser desprovidas de coesão e de coerência. As experiências
textuais que tendam a contrariar as convenções de escrita e/ou até
mesmo as regras da gramática tradicional também podem distinguir-
se por uma forte coesão ou coerência dos seus elementos. Sejam os
dois textos:
 
(14)
A fome alastrava. A estação fria acossava os homens, os coelhos do
mato, os morcegos, e fechava-os nas tocas. As árvores ficavam nuas,
as grandes chuvas voltavam.
(Carlos de Oliveira, Casa na Duna)
 
(15)
dezembro 9 soaram de fora os passos pesados da dona descendo um
bater depois hesitante na porta a voz dela hesitante: então o senhor
não vai votar? Não não vou talvez logo à tarde estou ainda deitado.
no quarto de janelas fechadas com riscos de luz das frestas na
parede a lâmpada apagada desde a véspera amávamos possessos de
amor um do outro.
(Almeida Faria, Rumor Branco)

 
Nenhum leitor terá dificuldade em reconhecer a coesão textual de
(14), com os seus elementos léxico-gramaticais devidamente postos
numa sequência lógica, e a coerência das ideias comunicadas num

MATD – Frequência 26 Novembro 2009


COERÊNCIA E COESÃO TEXTUAIS
contínuo narrativo convencional. Numa primeira leitura, o texto (15)
oferece resistência a ser considerado um texto, a ser considerado um
texto coeso, a ser considerado um texto coerente. Este texto é uma
forma de anti-literatura, cuja coesão e coerência dependem em
exclusivo da capacidade de abstracção do leitor para poder ser
entendido. Se começámos por dizer que um falante necessita de
possuir uma competência textual e uma competência linguística para
reconhecer a coerência e a coesão de um enunciado escrito ou oral,
também é legítimo exigir uma competência literária e cultural ao
leitor que quiser interpretar um texto anti-literário (¹ não literário) ou
de textualidade literária não convencional.
         Não é de desprezar o conceito de coerência dentro da filosofia,
nomeadamente no âmbito das especulações sobre a verdade, que
ocuparam pensadores como Espinoza, Leibniz, Hegel , Bradley,
Neurath ou Hempel, cada um defendendo abordagens diferentes
entre si, mas todos estudando o critério da verdade a partir do
conceito de coerência. Bohdan Chwedenczuk (1996: p.335) resume
assim as principais proposições que os teóricos da coerência
discutem: 1) a coerência é o critério da verdade; 2) a coerência é
uma propriedade essencial do mundo; 3) a verdade só pode ser
definida em termos de coerência. Ora, se não há filosofia sem a
coerência de juízos, também não há teoria nem crítica literária, ou
qualquer ciência que pretenda alcançar alguma forma de
conhecimento. Em termos de textualidade convencional, um texto
necessita da mesma coerência de juízos para formar sentido e poder
constituir-se como texto legível. Esta coerência pode ser aceite como
critério geral de textualidade como é aceite na avaliação filosófica da
veracidade dos juízos. O teórico da literatura só não precisa de
concordar (ou de provar) que o mundo seja igualmente coerente -
tarefa das crenças ontológicas na coerência. Ao contrário da
matemática, por exemplo, a literatura não é uma rede de verdades
que consideramos verdadeiras porque é possível provar

MATD – Frequência 26 Novembro 2009


COERÊNCIA E COESÃO TEXTUAIS
objectivamente que são coerentes com outras verdades - em
literatura, uma verdade não implica necessariamente outra verdade,
tal só deve ser possível e lógico  ao nível da textualidade pura, que
exclui certos problemas epistemológicos como a indeterminação ou a
indecidibilidade, verdadeiros inimigos da coerência, não da literatura.
Por tudo isto, a coerência como critério de textualidade só faz sentido
se buscarmos uma determinada ordem sistemática num texto, em
oposição à desordem que proporciona a ilegibilidade, cuja aceitação
dependerá sempre da posição crítica do leitor. 

MATD – Frequência 26 Novembro 2009

Você também pode gostar