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Capítulo 3

A Deusa e o Princípio Feminino

Descobrimos que os mitos não são apenas histórias encantadoras, porém


inúteis, de deuses e deusas, heróis ou demônios de um tempo perdido;
falam de arte e material psicológico vivo como um repositório de verdades
adequadas à vida interior de um indivíduo, bem como à vida da
comunidade.
(Nancy Qualls-Corbett, The Sacred Prostitute:
Eternal Aspect of the Feminine [A Prostituta Sagrada:
aspecto eterno do feminino, em tradução livre], 1988)

Este capítulo apresenta o que é conhecido como “feminismo junguiano”.


Vou nomeá-lo “feminismo junguiano tradicional,” para distingui-lo das diferentes
possibilidades de “feminismos junguianos” mais plurais sugeridos em capítulos
posteriores. O feminismo junguiano tradicional aborda Jung com atitude confiante
e priorizando a “grande teoria”. Isso significa que busca uma concepção estável de
gênero e do feminino baseada nas tentativas do próprio Jung de chegar a uma
teoria abrangente sobre psique e cultura. O trabalho de autoras importantes do
feminismo junguiano é explorado nesse contexto.
O feminismo junguiano trabalha de dentro para fora a partir dos textos de
Jung via técnicas de extensão, revisão e da noção junguiana de amplificação. Os
autores estendem e revisam as teorias de animus e anima em resposta a uma
variedade de novas condições sociais. Através da amplificação, a conexão
problemática que Jung fez de Eros com “o feminino” é desenvolvida. A resposta de
um grupo de teóricos é definir “o feminino” como um princípio metafísico de
gênero disponível a ambos os sexos e desastrosamente reprimido na cultura
ocidental.
Uma amplificação notável do feminino de Jung na esfera etérea (em
arquétipos) é a rejeição da cultura monoteísta dominada pelo masculino em prol
de um “retorno” ao divino como uma grande mãe. “Ela” imbui e torna sagrada o
mundo natural. Ela é o divino dentro do mundo ou imanente nele, e não à parte e
acima dele. Aqui o feminismo junguiano se torna um mito feminista bastante
ambicioso de história, cultura, religião, estética e psique.
O capítulo termina com uma avaliação das conquistas do feminismo
junguiano (grande teoria). Revela a atração dos mitos das deusas para um
feminismo psicológico, que se estende para além das esferas da teologia. Em
seguida, sugiro formas alternativas, mais pós-modernas, de analisar e explicar a
preocupação com “deusas”. Ao invés de ser uma teoria objetiva, é possível
enxergar o “feminismo juguiano das deusas” como uma forma de experimentação
da imaginação. O feminismo das deusas pode oferecer ficções do eu para uma era
pós-moderna.

Apresentando a grande teoria e o feminismo junguiano


No último capítulo, identifiquei um impulso duplo dentro da psicologia
junguiana. A tendência de descrever uma teoria consagrada e abrangente da
psique e da cultura que chamo de “grande teoria”, enquanto o desejo de dar
limites a tais teses, visto a incognoscibilidade do inconsciente em termos
puramente racionais, foi chamado de “mito pessoal”. A noção do “mito pessoal”
segue o relato autobiográfico do próprio Jung sobre o surgimento de suas ideias
centrais.
O trabalho posterior a Jung sobre gênero e o feminino pode ser visto de
forma mais útil como estando relacionado com essas duas direções de seu
pensamento. Em primeiro lugar, porque o que podemos chamar de feminismo
junguiano (para indicar um interesse específico e crítico pelo seu tratamento de
gênero) advém não somente da psicologia junguiana como prática terapêutica,
mas também de sua tentativa de construir uma teoria. Ademais, ao sintonizar o
duplo sentido da atividade de teorizar de Jung, o feminismo junguiano
simultaneamente se envolve e interage com as preocupações mais amplas do
feminismo. Tais questões abrangem desde posições conservadoras sobre a
“natureza feminina” inata até a consideração de gênero como sendo contextual e
contestado em circunstâncias culturais específicas.
Este capítulo vai abordar gênero e o feminino após Jung no que tange ao
seu desejo de uma grande teoria da psique e da cultura. As autoras incluídas aqui
buscam em Jung material para uma teoria de gênero consagrada e com a qual se
pode trabalhar. Essa teoria poderá então ser usada em serviço às mulheres e ao
feminino, não importa quão variado seja o feminismo das autoras no espectro
político. A linha da grande teoria junguiana pressupõe a crença de que gênero é
uma categoria cognoscível e estável. Muito mais do que seu fundador enviesado,
algumas dessas junguianas admitem que gênero é suscetível à influência social.
Há três métodos empregados quando se trabalha de dentro para fora dos
textos de Jung em direção a trabalhos mais abrangentes e completos sobre gênero
e o feminino: extensão, revisão e amplificação. Desde os primórdios da história da
psicologia junguiana, mulheres escritoras em especial levantaram as vozes para
criticar alguns dos pronunciamentos reducionistas de Jung sobre mulheres em
áreas como o animus (veja Linda Fierz-David na seção a seguir). Essas autoras
ampliam e revisam o tratamento de gênero do próprio Jung.
A amplificação requer um pouco mais de explicação, já que é referência a
um método que Jung desenvolveu em análise, bem como em seus textos. Na
discussão sobre sonhos, “amplificação” significa fazer o salto da imagem psíquica
ou da narrativa ao mito, que aparentemente ilustra o mesmo evento arquetípico.
Jung fez uso da mitologia no desenvolvimento da grande teoria. Seu próprio
imaginário psíquico revelado em Memórias, sonhos, reflexões forma seu mito
pessoal. Fazer a conexão entre suas próprias figuras arquetípicas e mitologias
existentes permitiu a Jung estruturar uma psicologia com aplicações universais. A
amplificação, então, é tanto uma prática terapêutica quanto um dispositivo
estrutural para a construção de uma teoria.
Em termos dos trabalhos de Jung e também das feministas junguianas
deste capítulo, a amplficação toma duas direções na escrita da teoria. Na
autobiografia e na análise, o imaginário psíquico é teorizado como arquetípico e
então relacionado a um mito. O mito é então descrito como mais uma ilustração
do argumento teórico. A psicologia vai da imagem psíquica ao mito cultural. Jung
justifica essa direção, uma vez que ela advém de material psíquico de fato. O mito
se torna então a validação para se mover na direção oposta: uma mitologia como
o mito de Perséfone e Deméter é definida como dotada de material arquetípico.
Portanto, imagens e eventos que correspondem à história grega são procurados
nos sonhos de pacientes individuais e incorporados a um texto de psicologia.
Eis a premissa junguiana daquilo que eu chamaria de “feminismo da
deusa”, que é geralmente voltado para empoderar a insegura psique feminina. Um
dos primeiros e mais clássicos exemplos do feminismo da deusa é Woman’s
Mysteries (Os mistérios da mulher, em tradução livre), de M. Esther Harding. Esse
livro fascinante amplia a identificação de Jung da psique feminina com Eros, a
função de relacionar-se, e com o significado da lua na alquimia. Woman’s
Mysteries é uma elaboração maravilhosa de deusas da lua como autoras ativas do
princípio feminino. Tal feminilidade é vista como nativa às mulheres, porém
presente na psicologia dos homens no anima.
O inspirador nesse livro é conferir às mulheres um “lar” metafísico
relativamente fora das restrições do monoteísmo cristão. Menos proveitosa é a
aderência de Harding às noções reducionistas de Jung com relação à consciência
mais difusa das mulheres, que ele vê como mais adequada ao relacionamento com
outras pessoas do que a exercer um papel ativo na sociedade. Esse exemplo
mostra como o feminismo junguiano caracterizado pela amplificação pode ser
radical em suas proposições filosóficas ou teológicas, ao mesmo tempo em que é
conservador em suas prescrições para a vida material das mulheres.
O resto deste capítulo pretende explorar as implicações da grande teoria
sobre gênero e o feminino pós-Jung em seus três principais aspectos: a extensão e
a revisão da teoria do animus e da anima, a amplificação de Eros e do princípio
feminino e a criação do feminismo da deusa. Em cada seção, a um breve relato
sobre a área seguem considerações de algumas autoras importantes.

Extensão e revisão: animus e anima


Jung escreveu pouco sobre o animus e a maior parte do que escreveu era
negativa. Claro, visto que ele definiu o animus como a masculinidade arquetípica
na mulher, faz sentido imaginá-lo como algo melhor elaborado por escritoras
mulheres. Após Jung, o animus e a anima sofreram considerável revisão e
elaboração. Ambos passaram a ser vistos como dotados igualmente de polos
positivos e negativos. Esses arquétipos de gênero foram descritos como algo que
muda em função da maturidade e individuação do indivíduo. Da descrição de Jung
do animus como plural e negativo, mulheres escritoras produziram uma versão
revisada de um animus capaz de ser unitário e positivo.
Buscando uma abordagem diferente, algumas feministas deram sequência
à animosidade de Jung em sua representação do animus e consideraram o animus
negativo como sendo a recepção psíquica do patriarcado internalizada pela
mulher. Trabalhos recentes incluem uma consideração maior de fatores culturais
na construção de imagens arquetípicas tanto do animus quanto da anima.
Além do mais, assim como Jung implicitamente contrapõe sua assimilação
de sexo e gênero corporal como possuindo anima/mus como figuras de alteridade
de gênero dentro de si, algumas feministas junguianas foram um passo além. Elas
propõem desconectar a anima e o animus de um único gênero, colocando-os
igualmente à disposição de ambos. Assim, homens e mulheres podem participar
igualmente nas figuras arquetípicas do animus, portador de Logos, e da anima,
entrelaçada a Eros.

Autoras importantes

Emma Jung
Curiosamente, a esposa de Jung obedece aos princípios gerais do marido ao
mesmo tempo em que se preocupa em estimular as mulheres a resistirem à
convicção cultural da inferioridade feminina. As mulheres não devem definhar,
mas “erguerem-se” para repudiar a difamação da sociedade. Em completo
contraste com a visão de seu marido, a ideia de animus de Emma Jung pode ser
muito positiva e a integração do mesmo resulta em “mulheres ativas, enérgicas,
corajosas e vigorosas”.
Ela continua definindo o animus como Logos, sentido espiritual e
intelectualidade e propõe que seja progressivamente integrado via uma série
de fases nas seguintes formas: poder, ação (ato), palavra e sentido. Através
desses métodos, uma mulher pode absorver sua faculdade Logos e se tornar
capaz de exercer atividades intelectuais bem como emocionais, relacionadas a
Eros. Emma Jung deixa claro que uma mulher precisa assumir um controle
firme do animus se pretende algum dia encontrar seu próprio Eu assertivo.
Caso contrário, o princípio masculino simbolizado pelo animus pode se tornar
um tirano interior. Pode ser projetado num homem poderoso, resultando num
estado insuportável de dependência psíquica (que pensamento sugestivo!).
Mesmo se mantendo inteiramente dentro das noções junguianas do
animus enquanto portador de Logos para a mulher, Emma Jung retrata uma
imagem positiva de uma mulher que atinge independência emocional e
intelectual. Ao mesmo tempo, chama atenção aos problemas das mulheres em
uma sociedade que se recusa a apoiar seu desenvolvimento interior.

Linda Fierz-David
Há dois momentos no relato cativante de Fierz-David sobre a individuação da
mulher através do mito iniciatório que sugerem posteriores revisões críticas ao
animus. Em certo ponto, ela parece definir o animus como o patriarcado
internalizado quando descreve mulheres recebendo instrução espiritual (o
presente do animus) através de seus pais e outras figuras de autoridade
masculinas. Num segundo momento, ela destrincha a tendência de Jung de
descrever o animus e a anima como entidades de gênero fixo, que vai contra os
processos plurais e andróginos do inconsciente. Para Fierz-David, uma parte da
potência espiritual do animus ganha um matiz maternal: “A imagem
arquetípica do animus como líder de almas… se mostra visível… como o Sileno
Órfico, um mãe-pai e sábio mestre, do tipo que nunca existe na realidade”.

Irene Claremont de Castillejo


Irene Claremont de Castillejo amplia a representação de Jung dos aspectos
negativos do animus. No entanto, seu foco é enfatizar que ele pode ser
integrado como um ingrediente energizante da consciência difusa das
mulheres. Ela faz uma revisão decisiva de Jung quando argumenta que pensar
pode ser uma função primária normal da mulher sem que seja equacionada ao
animus.
No que se refere a manifestações negativas do animus na medida em
que é tingido por determinantes socioculturais, na obra Knowing Woman
(Conhecendo a mulher, em tradução livre) (1973), ela sugere que a voz do
animus negativo é uma internalização da agressividade masculina contra as
mulheres. Claremont de Castillejo começa a se desvencilhar do binário de
gênero no trabalho de Jung quanto ao animus nas mulheres e à anima nos
homens, quando afirma que a “imagem da alma” de uma mulher é feminina,
não o animus masculino. No entanto, em termos da anima, ela é mais
conservadora quando diz que as mulheres possibilitam a individuação
masculina ao incorporarem a sua anima.
Hilde Binswanger
A atitude de Hilde Binswanger com relação a gênero combina aspectos
biológicos e culturais. Em um artigo de 1963, ela faz distinção entre dois
aspectos da masculinidade nas mulheres: o animus consiste das imagens
interiores que uma mulher tem dos homens, mas a mulher também tem a sua
própria masculinidade em termos biológicos. Essa masculinidade secundária
abarca até sua compreensão e consciência relacionadas ao Eros de Jung (e não
Logos como consciência, como ele preferia). Versões negativas do animus são
provavelmente induzidas pela cultura. O objetivo da terapia é reconciliar o
aspecto masculino da mulher com o animus de maneiras que levem a formas
femininas de vigor, ação, palavra e sentido. Binswanger argumenta com
eloquência que essas qualidades são chamadas de masculinas apenas porque
os homens foram os primeiros a nomeá-las em si próprios. “Não poderia ser
que…. conforme as mulheres também desenvolvam suas mentes… é possível
que se desenvolva um vigor especificamente masculino e um especificamente
feminino, uma palavra masculina e feminina, ação masculina e feminina e
sentido masculino e feminino?” Binswanger foi capaz de preservar uma
sensação de diferença entre gêneros ao mesmo tempo em que teorizou agência
e capacidade intelectual iguais para o feminino. Aqui, o animus se torna o meio
para a individuação das mulheres ao lidar psicologicamente com o poder e o
privilégio do masculino na sociedade.

Ann Ulanov
Uma escritora diligente sobre Jung e o feminino, Ann Ulanov produziu uma
série de trabalhos, desde seu altamente influente The Feminine in Jungian
Psychology and in Christian Theology (O feminino na psicologia junguiana e na
teologia cristã, em tradução livre) (1971) até, entre os mais recentes,
Transforming Sexuality: The Archetypal World of Anima and Animus
(Transformando a sexualidade: o mundo arquetípico de anima e animus, em
tradução livre), com Barry Ulanov (1994). Ela insiste que a anima não deve ser
igualada literalmente a mulheres reais, o que é muito útil.
Fiel a concepções junguianas quanto aos papéis da anima e do animus,
Ann Ulanov não fez comentários quanto à linguagem misógina de Jung até o
apêndice de seu livro de 1971. Em 1994, os Ulanov também criticaram “a
predileção de Jung pela redução tipográfica”, dizendo: “é praticamente
impossível com a teoria de anima/animus fazer listas limpas e claras de
qualidades ‘masculinas’ e ‘femininas’, ou mesmo distinções categorizadas
consagradas há tempos na prática junguiana como habilidades ‘Logos’ para o
homem e ‘Eros’ para a mulher.” A extensão das noções de animus e anima de
Jung é revisada em direção a uma noção mais complexa da diferença de
gêneros do que a polaridade fácil encontrada nos textos mais antigos de Ann
Ulanov.

Marion Woodman
O trabalho de Marion Woodman é particularmente marcante em seu interesse
pelo corpo e pelas manifestações arquetípicas de gênero. Um aspecto é sua
análise de mulheres com distúrbios alimentares. Sobre a teoria de animus e
anima, ela segue uma linha tradicional, expandindo-a ao argumentar que
problemas de animus poderiam explicar alguns distúrbios alimentares. Livros
como Addiction to Perfection: The Still Unravished Bride (Viciada em perfeição: a
noiva ainda não violentada, em tradução livre) (1982) e The Owl was a Baker’s
daughter: Obesity, Anorexia Nervosa and the Repressed Feminine (A coruja era
filha do padeiro: obesidade, anorexia nervosa e o feminino reprimido, em
tradução livre) (1980) descrevem os resultados prejudiciais de pais que
projetam sua anima nas filhas. Distúrbios alimentares em mulheres podem
ocorrer por conta da possessão pelo animus. Uma mulher pode ser levada a um
perfeccionismo impossível focado através de sua compreensão de seu corpo.

Polly Young-Eisendrath
Polly Young-Eisendrath tem consistentemente revisado e expandido a
representação do animus e da anima de Jung pela causa de uma prática clínica
feminista e empoderadora. Sua forma revisionista de empregar mitos culturais
e histórias para atacar o sexismo é um traço imaginativo e influente de seu
trabalho.
Female Authority: Empowering Women Through Psychotherapy
(Autoridade feminina: empoderando mulheres através da psicoterapia, em
tradução livre) (1987), com coautoria de Florence Wiedemann, propõe uma
“psicologia junguiana abrangente das mulheres na qual o Eu feminino alcança
consciência e poder através da integração do complexo do animus e a
restituição da autoridade que as mulheres projetam sobre ele”. Trata-se não
tanto de uma revisão, mas de uma reintepretação da clássica teoria junguiana
do animus em prol do empoderamento feminino. O método lembra a inovação
de Emma Jung sobre as fases da integração terapêutica do animus.
Young-Eisendrath e Wiedemann sugerem uma visão esquemática,
entrando em contato com o animus como o outro alienígena e depois como o
deus-pai ou patriarca. Essas fases são seguidas pelo animus como um jovem,
um herói ou amante, e depois como o parceiro dentro de si. A mulher deve
terminar com um animus integrado revelado em sua “verdade” arquetípica e
androginia. Um trabalho anterior de Young-Eisendrath, escrevendo sozinha,
Hags and Heroes (Bruxas e heróis, em tradução livre) (1984), critica
enfaticamente a representação que Jung fazia das mulheres como sendo
naturalmente passivas. Ela descreve como Jung se opõe à sensação de
competência das mulheres na ideia de estarem “repletas de animus”.

Claire Douglas
Uma contribuição valiosa para toda a área da psicologia junguiana e gênero é a
obra de análise histórica de Claire Douglas, The Woman in the Mirror:
Analytical Psychology and the Feminine (A mulher no espelho: psicologia
analítica e o feminino, em tradução livre) (1990). Sua visão reformula o animus
não como Logos e intelecto, mas como mediador de uma função de sentir para
mulheres em imagens como um pai-terra, espírito da natureza, jardineiro,
acolhedor ou poeta. Ela argumenta que os termos “animus” e “anima” não
devem ser pinçados diretamente dos textos de Jung, para que os papéis de
gênero do século XX codificados em suas descrições não venham junto como
prescrição.
Douglas é parte de uma tradição enfaticamente embasada de escritoras
junguianas que caracterizavam o animus negativo como a voz do patriarcado,
internalizada de forma prejudicial na psique da mulher. Ela permanece na
órbita da “grande teoria” ao manter concepções de anima e animus como
teorias de um “outro” interior. Mesmo assim, seu trabalho fortalece a tendência
valiosa de incluir fatores sociais e culturais na extensão e revisão de gênero
dentro da psicologia junguiana.

Amplificação: Eros e o princípio feminino

O feminismo tradicional junguiano do princípio feminino discorre sobre


duas características fundamentais dos textos de Jung sobre gênero: o fato do
gênero psicológico escorregar na questão do sexo do corpo (apesar da
androginia dos arquétipos) e, de forma mais profunda, na sua abordagem
binária. As descrições de Jung sobre gênero caem, convenientemente, em duas
modalidades mutuamente definidoras e mutuamente excludentes: a anima
implode em mulher, sentimento, Eros, relacionamento, enquanto o animus
enfatiza pensar, Logos, espírito, criação e, portanto, o masculino.
Na seção anterior desse capítulo, mostrei como a extensão e a revisão
da teoria de animus/anima começou a afrouxar o binário do gênero
psicológico, em parte pelo reconhecimento de fatores sociais e culturais. No
entanto, uma direção convencional no feminismo junguiano serve para
acentuar a abordagem binária ao mesmo tempo em que dá espaço para
influências culturais nas vidas de mulheres e homens reais.
Esses teóricos amplificam a descrição de Jung de Eros-relacional em
algo metafísico chamado de “princípio feminino”, ao mesmo tempo em que o
desvencilham do sexo do corpo. O princípio feminino existe em relação
dualística com um “princípio masculino”. Ambos estão disponíveis em igual
medida e de forma variada a ambos os gêneros humanos. Por trás de culturas,
histórias e religiões humanas, encontramos esses dois princípios que conferem
gênero, como masculinidade ativa, solar, fálica e feminilidade passiva,
receptiva, lunar.

Mas por que sequer falar em masculino e feminino se simplesmente


estamos nos referindo a características compartilhadas, em níveis
variados, por homens e mulheres?... Devemos enfatizar novamente
que a diferenciação homem-mulher é arraigada a priori de forma
ordenada; é uma percepção arquetipicamente predeterminada,
padronizada na psique inconsciente. A oposição e a
complementaridade do macho e da fêmea estão entre as
representações mais básicas da experiência do dualismo. Elas
constituem a base das polaridades solar e lunar, luz e escuridão,
ativo e passivo, espírito e matéria, energia e substância, iniciativa e
receptividade, céu e terra.

Jung introduziu Eros em seu trabalho como um modo arquetípico de


funcionamento que trata de sentimento e relação. Acreditava que Eros seria o
modo dominante da consciência da mulher, com probabilidade de estar
dormente nos homens e associado à anima inconsciente. Portanto, Eros se
torna o feminino psicológico, o principal meio através do qual Jung faz uma
fusão entre sexo e gênero, que é amplificado para consciência lunar em seus
textos sobre alquimia.
Feministas junguianas posteriores fogem da natureza reducionista da
identificação de sexo e gênero feita por Jung dizendo que os princípios
femininos e masculinos são puramente arquetípicos e disponíveis para
mulheres e homens. Eu descreveria essa amplificação a partir do trabalho de
Jung como “metafísica” pois considera os princípios femininos e masculinos
como não materiais, anteriores à padronização no inconsciente. Esses
“princípios” são profundamente afetados, porém não determinados, por fatores
sociais e históricos pois operam através de imagens arquetípicas. Os princípios
femininos e masculinos transcendem a cultura e no entanto só podem aparecer
(via imagens arquetípicas) como imanentes dentro dela.
O que motiva essas teóricas junguianas enquanto feministas é a
percepção de que o princípio feminino tem sido desastrosamente reprimido na
cultura e nas psiques individuais através de séculos de pensamento patriarcal.
Elas, portanto, escrevem e praticam em nível tanto sociocultural quanto
individual terapêutico, para curar o mundo de seu feminino ferido e zangado.
Claro, há uma variedade enorme de consciências feministas entre as adeptas
junguianas deste princípio feminino. Uma atitude conservadora perante a
sociedade pode encontrar justificativa ao argumentar que o princípio feminino
de receptividade e relação significa que as mulheres são mais aptas a tarefas
domésticas.
Apesar da cisão teórica de sexo e gênero dos princípios arquetípicos,
grande parte dos escritores enxerga as mulheres como tendo mais propensão a
estarem sintonizadas com o princípio feminino, e os homens com o masculino.
Por outro lado, abraçar a abordagem binária do princípio feminino permite sim
fazer críticas profundas da existência capitalista, corporativa e dominada pelo
masculino sob uma ótica social. Permite atacar as limitações do cristianismo
como excessivamente masculinas e predatórias com relação a uma natureza
definida como feminina. A amplificação adicional do princípio feminino para o
“feminismo da deusa” será o foco da próxima seção.

Escritoras importantes

M. Esther Harding
Woman’s Mysteries (Mistérios da mulher, em tradução livre) (1935) não é a
única obra de Esther Harding sobre o pensamento junguiano sobre gênero,
mas continua a ser a mais influente. Dar continuidade à dicotomia de gênero
Eros/Logos de Jung permitiu que seu trabalho fosse aceito por ele. Amplificar
Eros como “o princípio feminino” permite que ela cubra uma gama de
qualidades bem mais ampla e mais poderosa do que o seu mentor visualizara.
De forma relevante, Harding é capaz de investir uma gama de energias no
princípio feminino ao adotar as narrativas das deusas lunares dos períodos
pré-cristãos: ela busca nas deusas da lua relatos do “princípio feminino [que]
não foi adequadamente reconhecido ou valorizado na nossa cultura”. A
originalidade do livro está na forma como desenvolve os aspectos
ambivalentes, potentes e sombrios do feminino.
Embora aparentemente siga Jung na questão de enxergar a mulher
como mais apta a relacionamentos e domesticidade, Harding escreve com
eloquência do potencial para preconceito contra a mulher na sociedade
patriarcal. Ela traz o princípio feminino para a prática analítica ao fazer uma
conexão entre a iniciação da mulher nos mistérios de Luna num passado pagão
e a experiência da mulher em análise no mundo contemporâneo.
As deusas lunares do princípio feminino trazidas por Harding
inspiraram uma geração de feministas junguianas por serem virginais, no
sentido de se sustentarem sozinhas, sem dependerem de nenhum homem. As
“virgens junguianas” podem ser sexuais e procriativas. Elas se mantêm
independentes por conta da autossuficiência gerada pelo contato com o
inconsciente numinoso.

Toni Wolff
O trabalho mais significativo de Toni Wolff sobre gênero é “A Few Thoughts on
the Process of Individuation in Women” (“Algumas reflexões sobre o processo
de individuação nas mulheres”, em tradução livre) (1934). Nele, ela
prestativamente propõe que Eros não é de forma alguma o principal modo de
funcionamento consciente de todas as mulheres. Para ela, muitos problemas
das mulheres modernas resultam da perda do princípio feminino, na falta do
feminino na teologia judaica e protestante.
A partir daí, passa a discutir quatro tipos de personalidade instintivas
femininas: a mãe, a companheira dos homens conhecida como a hetaira, a
Amazona independente e a médium. Na verdade, o que Wolff faz é usar a noção
de “tipo” de consciência para ampliar o leque do que pode ser denominado “o
princípio feminino” na psicologia da mulher. Cada um dos tipos que Wolff criou
não é um padrão uniforme de comportamento, mas uma gama multitudinária
de possibilidades.
Os quatro tipos foram construídos de forma criativa: por exemplo, a
mãe não está limitada à genitora biológica de filhos e inclui várias metáforas de
maternidade e amparo. A hetaira opera primordialmente através do
relacionar-se sexualmente com homens, enquanto a Amazona está identificada
com as feministas, o que não surpreende.
Descrições do tipo mediunístico demonstram bem a tendência de Wolff
de definir o feminino e o potencial feminino predominantemente em relação ao
homem. A médium é uma mulher que ajuda um homem a realizar suas ideias
inconscientes. Outros junguianos já especularam que a relação da própria
Wolff com Jung pode ter contribuído para moldar sua percepção de mulheres
“médiuns”.
Erich Neumann
Considerado por Jung como um junguiano de segunda geração, e basicamente
usuário do mesmo material que Esther Harding, Neumann tem um estilo
grandioso e assertivo de escrever. Como historiador da cultura, propõe uma
grande narrativa de fases no desenvolvimento da consciência humana em seu
livro The Origins and History of Consciousness (As origens e a história da
consciência, em tradução livre) (1954). A humanidade começa na fase
urobórica, próxima da não diferenciação inconsciente. Depois vem o
surgimento do matriarcal nas religiões da grande mãe.
Essas fases são sucedidas (felizmente, segundo Neumann) pelo
monoteísmo patriarcal e pelo refinamento do pensar consciente e da
discriminação orientados pelo Logos. Há alguma indicação de uma possível
fase mais elevada ainda por vir quando a consciência matriarcal das deusas se
reunir com o princípio patriarcal masculino, embora Neumann não explore
essa noção. Ela é revisitada em trabalhos junguianos subsequentes sobre as
grandes deusas, em especial por E. C. Whitmont, discutido mais à frente neste
capítulo.
Ninguém poderia acusar Neumann de ser feminista no sentido comum
da palavra. Seu princípio feminino pertence à fase matriarcal da história da
humanidade e, para ele como também para Jung, a psicologia da mulher é em
grande parte uma questão dessa concepção binária do feminino. As mulheres
estão condenadas a um tipo de funcionamento mental “mais inconsciente”.
Portanto, para Neumann, a confusão do feminino com o matriarcado coloca as
mulheres de volta à pré-história, com homens bem mais adiantados nas
qualidades culturalmente valiosas, como pensamento e raciocínio.
Neumann parece escrever com um considerável medo subjacente da
mulher tanto como ser arquetípico quanto como ser biológico. Sua história da
evolução da consciência é uma forma de narrativa edipiana – da não
diferenciação inconsciente à vinculação com uma figura maternal toda-
poderosa, à repressão, clivagem e identificação com a função paterna. Esse uso
particular do padrão edipiano historiciza e marginaliza o princípio feminino
ainda mais. Mais à frente junguianos se apropriarão de sua alegoria evolutiva e
a reintepretarão de maneira mais produtiva para o feminino e o feminismo.

June Singer
Em obras como Boundaries of the Soul (Limites da alma, em tradução livre)
(1972) e Androgyny: Toward a New Theory of Sexuality (Androginia: rumo a
uma nova teoria da sexuality) (1976), June Singer desenvolve sua aceitação do
binário de gênero de Jung. De passagem, reconhece as lições do “movimento
das mulheres”. Ao desassociar os princípios feminino e masculino da simples
identificação com mulheres e homens biológicos, afirma ainda em Androginia
uma crença que imagina divergir do feminismo contemporâneo, a de que “em
última instância uma mulher é basicamente diferente”.
Para Singer, a noção junguiana de uma potencial “androginia”
arquetípica se torna um meio de teorizar o objetivo da integridade psicológica.
Ao traçar aquilo que argumenta ser uma história cultural desse arquétipo, ela
sugere que mulheres e homens contemporâneos considerem o andrógino como
um modelo culturalmente desejável. Dessa forma, indivíduos podem evitar os
perigos de noções polarizadas de gênero. Arquétipos são resíduos de uma
antiga e divina androginia antes da “queda” primordial ou clivagem de
consciência. Singer quer ir além da teorização de gênero apenas em termos de
estruturas binárias. No entanto, sua androginia ainda se sustenta sobre gênero
como dualidade.
O movimento rumo à androginia que está emergindo hoje emerge
das tensões entre os elementos ‘masculino’ e ‘feminino’ na
sociedade ocidental contemporânea. Ele se volta em si mesmo
como espiral para descobrir a androginia mais antiga, revelada na
mitologia daquele tempo primordial em que o masculino e o
feminino ainda não eram separados na divindade.

Irene Claremont de Castillejo


O livro Knowing Woman (Conhecendo a mulher, em tradução livre) (1973) traz
uma atualização do trabalho anterior de Irene Claremont de Castillejo sobre a
psicologia das mulheres. Ela amplia os quatro tipos de personalidade de Toni
Wolff no contexto de conceitos tradicionais junguianos sobre o feminino.
Ocorre uma valiosa separação de sexo anatômico e gênero. Eros continua
significando o feminino, mas as mulheres não estão mais restritas a seus
atributos. De forma semelhante, pensar pode ser uma função primária em
mulheres e não precisa estar ligada a noções reducionistas do animus. A
rigidez implícita nos quatro tipos de Wolff é compensada ao enfatizar seus
papéis como uma gama de possibilidades psicológicas dentro de cada mulher.
O mais importante é que o trabalho de Castillejo desafia a identificação
de um ego difuso em mulheres sugerida por pensadores como Wolff e
Neumann. Ao invés disso, ela defende que uma mulher desenvolva um ego
forte e focado – uma possibilidade muito realista para ela. Parte do processo de
individuação de Castillejo é uma mulher que descobre como sua sombra é uma
questão cultural, além de psicológica. As mulheres estão sujeitas a três formas
de sombra: uma de nação, de psique pessoal e de “ser mulher” numa sociedade
voltada para homens. A individuação parece propiciar para a mulher uma
autoridade pessoal ao trazer para a consciência a sombra que a sociedade
lançou sobre o seu gênero. Descobrir o feminino interior, seguno Castillejo,
envolve se alinhar com as heroínas e os heróis interiores para penetrar sua “ira
interior” em uma frase lúcida dentro da “máquina da civilização”.
Por fim, Castillejo defende um feminismo junguiano progressivo do
“princípio feminino” ao argumentar que as mulheres e o feminino não têm
somente a natureza, o corpo e a terra como conotação. Seja qual for a noção
binária de “princípios,” as mulheres não devem ser vistas somente como o
“oposto” do homem, o “outro”.

Ann Ulanov
Em sua obra extremamente influente The Feminine in Jungian Psychology and in
Christian Theology (O feminino na psicologia junguiana e na teologia cristã, em
tradução livre) (1971), Ulanov comemora a noção de Jung do feminino como
“uma categoria distinta de ser e um modo de percepção inerente em todos os
homens, todas as mulheres, toda a cultura”. Tal aderência a Jung permitiu a
Ulanov escrever um trabalho de teologia feminista, dando continuidade às suas
críticas quanto à diminuição e, às vezes, demonização do feminino na cultura
cristã. Essa perspectiva teológica perpassa o trabalho posterior de Ulanov
sobre gênero e ideias junguianas.
O primeiro livro também desenvolve os quatro tipos de Wolff na
psicologia da mulher. Ulanov se preocupa em separar as mulheres da
linguagem reducionista de Jung sobre a anima. Assim como a maioria dos
adeptos do “princípio feminino”, a cisão que Ulanov faz de sexo e gênero fica
um pouco comprometida por ela presumir ativamente que as mulheres têm
uma relação mais próxima com o feminino. Elas devem almejar a integração do
princípio feminino em análise.

E. C. Whitmont
E. C. Whitmont dá seguimento ao mito de Neumann das três fases de
consciência humana – urobórica (não diferenciada, predominantemente
inconsciente), matriarcal e patriarcal – até a quarta fase, a reconciliação dos
modos de pensar matriarcal e patriarcal. Em outras palavras, Whitmont anseia
pela absorção do princípio feminino pela cultura patriarcal, hiper-
racionalizada que o reprimiu durante tanto tempo.
É claro que, ao separar esses princípios metafísicos de gênero do sexo
do corpo, Whitmont procura narrativas de reincorporação feminina em
mitologias fora ou às margens do cristianismo patriarcal. Um desses mitos é o
da busca pelo Santo Graal. Uma sociedade frágil e orientada para o masculino
procura símbolos femininos para alcançar uma resolução psicológica que é
simultaneamente espiritual e social. Outra fonte muito potente de mitos do
princípio feminino pode ser encontrada fora do cristianismo e do monoteísmo
na busca por deusas pagãs. O trabalho de Whitmore perdura como um grande
progenitor do feminismo junguiano da deusa.

Amplificação: em busca das deusas


Para entender tanto o apelo quanto as raízes teóricas do feminismo da deusa
preciso esclarecer uma divisão dentro do feminismo junguiano com relação a
gênero e ao papel do mito cristão. A teoria feminista ocidental também surgiu
de um contexto de uma série de suposições pós-cristãs sobre os papéis de
mulheres e homens, suas psiques, a forma como o gênero é construído e como
se manifesta. Explicita ou implicitamente, escritores e ativistas precisam
decidir se querem revisar as suposições básicas do cristianismo ou se querem
rejeitá-las de uma vez por todas e buscar novos modelos. Isso não se aplica
somente àquelas feministas que têm crenças religiosas ou que levam a sério a
espiritualidade. Pelo contrário, o arcabouço de suposições cristãs na cultura
contemporânea afeta também questões políticas urgentes, como o direito ao
aborto.
A principal questão é se o cristianismo (e/ou outros sistemas
monoteístas) é inteiramente patriarcal ou se simplesmente se manifestou
como tal em sua colaboração com a cultura capitalista. O cristianismo é capaz
de ser feminista ou será que precisa ser substituído? Feministas junguianas
como Ann Ulanov acreditam que o cristianismo pode ser reinventado em linhas
junguianas para incorporar o princípio feminino como positivo e divino. O
feminino não é mais restrito ao outro sombrio, corpóreo.
Um aspecto em particular do debate sobre a viabilidade de reformar o
monoteísmo masculino é o relacionamente entre as formas de razão
iluministas e a cultura religiosa contra a qual elas aparentam reagir. Por um
lado, a promoção da razão, da ciência, do empirismo e do Logos do Iluminismo
parece estar em oposição completa à religião estabelecida e ser o meio de seu
declínio. Por outro lado, feministas argumentariam que a supressão do
feminino dentro do cristianismo continua com a supressão do feminino
enquanto irracionalidade dentre as narrativas iluministas de modernidade.
O patriarcado do cristianismo, com sua crença de que o divino é
masculino, se transmuta no privilegiamento da razão masculina estruturada
por sua separação da irracionalidade inferior. Uma forma de separar da razão
as características indesejadas da irracionalidade é interpretando o binário
razão/ irracionalidade como uma estrutura com gênero, onde a razão é
masculina e o irracional é feminino. Antes do Iluminismo, a masculinidade é
privilegiada porque está associada a Deus. Após o Iluminismo, a masculinidade
é privilegiada por estar associada à razão. Veja o capítulo 6 para ler mais sobre
Jung no Iluminismo e no pós-modernismo.
O que Jung escreveu sobre gênero foi condicionado por sua tentativa de
abordar a postura do Iluminismo de dar as costas para a religião. Seus retornos
persistentes às figuras femininas no cânone cristão e seu trabalho extenso
sobre alquimia são tentativas de reformar o pensamento cristão de maneiras
que curam a cisão da razão e da irracionalidade – ou, para usar os termos dele,
Logos e Eros – ocorridos no Iluminismo. Parte de sua misoginia reducionista é
resultado da adoção de noções iluministas de polaridade representadas em
termos de gênero. No entanto, Jung tem crédito feminista por querer trazer de
volta para a religião e a filosofia o feminino e o irracional (inconsciente).
Algumas feministas junguianas seguem Jung ao tentar reformar
estruturas cristãs ou monoteístas. Outras querem escapar do cristianismo de
vez. Essas feministas junguianas fundem cristianismo com o patriarcado, o que
não permite nenhuma base para reformas. Se o monoteísmo não é digno de
recuperação, então, para essas feministas, o que se tornam necessárias são as
deusas. As deusas são obrigatórias porque, se gênero deverá ser uma categoria
estável (sendo o traço que define o feminismo junguiano tradicional), então
alguma narrativa “maior” é necessária para fundamentá-lo. Já que o
cristianismo foi rejeitado por ser demasiadamente patriarcal, outro arcabouço
metafísico precisa ser inferido.
O feminismo junguiano da deusa é resultado de uma amplificação da
teoria junguiana que vai além daquilo que o próprio Jung vislumbrou. Jung
fabricou sua psicologia em noções monoteístas sobre ser sujeito priorizando
um arquétipo, o self, como a meta da individuação. Feministas da deusa
junguianas rejeitam a energia unificadora postulada no arquétipo do self e se
agarram à sua pluralidade, incluindo a de gênero (veja a próxima seção sobre
as grandes deusas). Ou elas podem ignorar a ideia de um único self e se valer
da ideia de muitos arquétipos potenciais, capazes de serem representados por
seres divinos femininos, que têm um papel importante na individuação de uma
pessoa.
No feminismo da deusa, o princípio feminino metafísico é mapeado
sobre mitologias pré-cristãs para buscar narrativas e formas de pensar que não
sejam patriarcais. Essas feministas continuam sendo junguianas na medida em
que permanecem dentro do paradigma junguiano da teoria transformada em
mito: imaginário psíquico, teorizado como arquétipo, é identificado com uma
mitologia tradicional, e vice versa.
Feministas junguianas desse credo não estão promovendo a adoração
literal às deusas. Para elas, esses seres divinos moram na imaginação humana
no inconsciente. Uma existência transcendental real, “lá fora”, das deusas não é
contemplada. Ao invés disso, o feminismo da deusa define análise e
individuação como a iniciação no domínio das divindades. “Iniciação” nesse
caso não é uma metáfora. O que os iniciados faziam nas antigas culturas das
deusas é visto como uma variedade da individuação guiada ou analítica. Afinal,
na teoria junguiana, a realidade primária é a imagem psíquica e a experiência
religiosa é, em primeiro lugar, intimações autênticas do inconsciente.
Quaisquer ideias de um domínio transcendente de imortais não podem ser
conhecidas ou provadas.
O feminismo da deusa não está na moda na cultura atual capitalista,
materialista, não religiosa. Também é inaceitável para as teorias feministas que
vieram da psicanálise freudiana (veja capítulo 5). Mesmo assim, há de haver
valor em se voltar para os recursos das narrativas extraídas de tradições
religiosas pré-cristãs. Será que histórias de deusas podem auxiliar a
compreensão contemporânea de gênero e das mulheres enquanto histórias de
possibilidades psicológicas? Seriam essas lendas sobre deusas minimamente
relevantes para as condições sociais e materiais de hoje?
Escrito por Ginette Paris, The Sacrament of Abortion (O sacramento do
aborto, em tradução livre) (1992) mostra o potencial feminista de usar uma
narrativa não-cristã para estruturar o pensamento sobre uma questão pessoal,
política e social profundamente controversa. Depois de expor como o debate
contemporâneo sobre o aborto é dependente de mitos patriarcais cristãos, ela
usa as lendas de Ártemis, uma deusa virgem evocada por mães em trabalho de
parto, para reimaginar o aborto. Através de lendas dessa deusa, Paris considera
o aborto um sacrifício de mães que precisam controlar sua reprodutividade ou
serem elas mesmas sacrificadas em nome de atitudes patriarcais. “Nesse
contexto, o retorno da antiga deusa Ártemis nos convida a imaginar uma nova
atribuição de poderes de vida e morte entre homens e mulheres, uma
atribuição que permite aos homens valorizar o custo de uma vida e às
mulheres tomar decisões baseadas em sua sabedoria materna”. Paris mostra
que o valor do feminismo da deusa está na oportunidade de “pensar diferente”
sobre preocupações de gênero e as vidas das mulheres. Embora esse
feminismo possa ser primordialmente orientado para a psicologia e a terapia,
ainda é capaz de contribuir para uma crítica cultural e política mais ampla.

Autoras importantes

Sylvia Brinton Perera


Um trabalho influente sobre o feminismo teurapêutico da deusa é o livro de
1981 Descent to the Goddess (Descida à deusa, em tradução livre), de Sylvia
Brinton Perera. Nele, ela faz uma leitura do mito sumério sobre a descida da
deusa Inanna ao submundo de sua irmã-sombra Ereshkigal como um modelo
para que as mulheres encontrem o valor psicológico e curativo do arquétipo
sombrio e depressivo. Na verdade, esse mito da deusa de uma jornada de ida e
retorno ao submundo permite a Perera desenhar estados mentais depressivos
como potencialmente empoderadores para as mulheres.
O mito da deusa traz uma alternativa à visão da dor feminina sombria e
reprimida como um abismo de inferioridade. Uma cultura cujas imagens
religiosas arquetípicas oferecem somente a impossível leveza e beatitude da
Virgem Maria ou a má e pecaminosa Eva passa a ser repensada em termos de
uma escuridão feminina positiva.

Christine Downing
Como acadêmica nas áreas de psicologia e religião, Christine Downing publicou
o que chamou de uma “autobiografia da individuação” em 1984 chamada The
Goddess: Mythological Images of the Feminine (A deusa: imagens mitológicas do
feminino, em tradução livre). Downing compreende seu histórico emocional
interior através da associação de seu eu interior com uma sucessão de mitos de
deusas. Ela encontra conexões diversas com Perséfone, Ariadne, Hera, Atena,
Gaia, Ártemis e Afrodite. Usando essas deusas mitológicas como histórias,
Downing mostra o potencial que narrativas pagãs tem para produzir formas
mais plurais e ativas de imagens femininas do que as imagens aparentemente
mais estáticas de Jung.
Embora Downing admita que algumas dessas deusas estão disponíveis
arquetipicamente para homens, ela se aproxima de uma posição essencialista
que faz uma ligação entre as formas divinas femininas com a psique da mulher.
Seu trabalho continua sendo convincente no que se refere às possibilidades dos
mitos de deusas como meios para imaginar o ser psicológico das mulheres em
termos cada vez mais complexos e dinâmicos. “Estamos famintas por imagens
que reconheçam a qualidade sagrada do feminino e a complexidade, riqueza e
poder nutritivo da energia da mulher.”

Marion Woodman
A obra de Woodman A virgem grávida (1985) desenha a cura da psique
feminina voltando à tradição de Esther Harding e seu afastamento pioneiro da
lente primordialmente judaico-cristã de Jung. Como sua antecessora,
Woodman toma os recursos narrativos das deusas lunares. Expressando, no
característico modo “mito-pessoal” junguiano, a dificuldade de escrever teoria
psicológica na linguagem racional do ego, Woodman vai além de Jung ao
apontar que téoricas mulheres têm uma dificuldade adicional que é a
linguagem racional, tradicionalmente incorporada à masculinidade. A “virgem
grávida” é o feminino desprezado, exilado da cultura, que por sua vez estimula
as mulheres a reprimirem-na em suas próprias psiques.
A palavra “feminino”, como eu a compreendo, tem muito pouco a
ver com gênero, tampouco a feminilidade está sob a custódia da
mulher. Tanto homens quanto mulheres estão buscando suas
virgens grávidas. Ela é a parte de nós que é um pária, a parte que
chega à consciência através da incursão à escuridão, garimpando
sua escuridão de chumbo até trazer à tona sua prata.

O que é mais significativo é que esse feminino arquetípico se divorciou


de gênero e também do sexo do corpo, se distanciando da tendência
essencialista de grande parte do feminismo da deusa. Woodman emprega,
como artifícios narrativos, a introspecção, os sonhos e trabalhos criativos
clínicos para tentar encontrar a psique da virgem grávida ao escrever seus
textos. Um exemplo particularmente eloquente da deusa na prática analítica
feminista junguiana é sua descrição de um grupo de teatro terapêutico como o
útero da grande mãe.
Linda Schierse Leonard
Em um trabalho inspirador de 1993, Meeting the Madwoman (Conhecendo a
louca, em tradução livre), Linda Schierse Leonard pega o estereótipo
degradante da mulher maluca e desviante e usa-a como uma imagem de
empoderamento psíquico. Ela se torna uma maneira de entender a ira da
mulher dentro do patriarcado. Como outras feministas junguianas inseridas
nessa tradição, ela faz uma ligação entre mulheres e o feminino psicológico,
sem problematizar, mas admite que a “louca”como energia arquetípica está
igualmente disponível para homens. A mulher ferida (1982) baseia-se em
Ifigênia como uma imagem arquetípica subordinada pelo pai e pela cultura
paterna do patriarcado.

Nancy Qualls-Corbett
Nancy Qualls-Corbett, no livro A prostituta sagrada (1988), encontra imagens
arquetípicas da Virgem Maria, de Maria Madalena, da Virgem Negra e das
grandes deusas lunares na prática da prostituta sagrada. Esse ritual pré-cristão
envolvia mulheres que escolheram servir a deusa representando-a no templo.
Qualquer homem poderia chegar e se unir com a deusa sublime relacionando-
se sexualmente com a prostituta sagrada.
Qualls-Corbett faz uma leitura dessa prática como a organização social
do princípio junguiano de que a sexualidade pode ser um meio de se comungar
com o inconsciente numinoso. Uma tarefa da análise é curar a clivagem
traumática que é ainda profundamente arraigada na cultura pós-cristã entre
sexualidade e espiritualidade. A sagrada prostituta é um mito, uma história
permeada de arquétipos, que permite a homens e mulheres imaginarem
formas mais plurais de práticas sexuais e codificações sociais contidas nos
contos sobre as deusas.

Jean Shinoda Bolen


Um clássico popular do feminismo da deusa junguiano surgiu com o livro de
Jean Shinoda Bolen, As deusas e a mulher (1984). Nele, as deusas são coleções
de imagens arquetípicas e potencialidades. Elas são divididas em categorias: as
deusas “virgens”e independentes são Ártemis, Atena, Hestia. Aquelas cujas
atribuições são mais a vulnerabilidade feminina e a capacidade de relacionar-
se são Perséfone, Deméter e Hera, enquanto Afrodite está sozinha na categoria
de alquímica e transformadora.
Embora essas “deusas”, como meios de descrever funcionamentos
arquetípicos, tenham uma relação distante com os quatro tipos de Toni Wolff,
Bolen acha que a maioria das mulheres pode acessar cada imagem arquetípica.
As mulheres podem convocar a gama de funções e energias arquetípicas
conforme a necessidade e circunstância. Essas deusas são histórias que
encenam as vidas interiores das mulheres na cultura contemporânea.

Amplificação: o mito da Grande Deusa


Conforme indicado anteriormente, o feminismo da deusa junguiano é ao
mesmo tempo uma série de recursos narrativos para práticas terapêuticas
inovadoras e uma crítica profunda à cultura ocidental. Escritores junguianos
que desenvolvem o mito da grande deusa se encontram num momento em que
a grande teoria junguiana sobre gênero e o feminino passa a ser amplificada
em direção à teoria (ou mito) feminista de cultura, história e transformação.
Quando E. C. Whitmont desenvolveu as três etapas da consciência
humana de Neumann fazendo um chamado urgente para a quarta etapa, isso
foi nada menos do que uma demanda para que a consciência humana
integrasse o feminino enquanto divindade imanente na natureza. Já não se
confina o sagrado à figura de um deus-pai transcendente do mundo natural ou
material. Com “o retorno da deusa,” título do livro que Whitmont lançou em
1982, a humanidade redescobre a natureza como sagrada: ela abraça o
domínio humano dentro de sua fecundidade numinosa.
Assim, a cultura ocidental abandona modelos de consciência que
dependem da repressão do outro, do qual a supressão do feminino pelo
patriarcado é apenas um exemplo óbvio.
Autores importantes

E. C. Whitmont
Para Whitmont, a etapa patriarcal da consciência conforme Neumann tem sido
desastrosamente exagerada e prolongada. “Nas profundezas da psique
inconsciente, a antiga Deusa está surgindo. Exige ser reconhecida e
reverenciada. Se nos recusarmos a reconhecê-la, poderá lançar sobre nós sua
força de destruição. Se oferecermos à Deusa o que ela quer, poderá nos guiar,
com compaixão, até a transformação”. Whitmont sugere que quatro mitos
oriundos do monoteísmo masculino serviram para reforçar a esterilidade do
pensamento patriarcal que depende de clivagem e repressão. Esses mitos são,
primeiro, a qualidade divina dos reis, ainda visível nos líderes “mágicos”; em
segundo lugar, o do exílio da humanidade ou paraíso perdido; terceiro, o do
sacrifício do bode expiatório; e, em quarto lugar, o mito da inferioridade do
feminino. A sociedade atual precisa que a deusa “retorne” porque atitudes
patriarcais, ateístas e que degradam o planeta estão, para Whitmont,
diretamente relacionadas ao monoteísmo masculino.
Ao contrário de Jung, Whitmont acredita que o cristianismo (e outros
grandes monoteísmos) não pode ser reformado para liberar seu “outro”
suprimido. Seja esse outro a escuridão, a morte, o corpo ou o feminino, o
monoteísmo masculino não cessará de clivar a psique humana. Monoteísmos
são estruturas neuróticas, unilaterais, devotadas aos poderes que transcendem
e triunfam sobre a natureza.
A grande deusa está ascendendo porque ela é um sinal do outro que a
consciência patriarcal monoteísta reprimiu profundamente. “Ela” está voltando
por meio de psiques individuais e em movimentos culturais como as novas
formas de espiritualidade, campanhas ambientais e eco-feminismo.

Ann Baring e Jules Cashford


O livro de 1991 de Baring e Cashford, The Myth of the Goddess: Evolution of an
Image (O mito da deusa: a evolução de uma imagem, em tradução livre) traz a
explanação mais abrangente do feminismo da deusa junguiano como uma lente
através da qual podemos olhar a extensão da cultura e da tecnologia da
humanidade. Partindo de uma análise das “culturas das deusas” do período
neolítico até a alienação pós-industrial, trata-se de uma grande teoria mais
entusiasticamente embasada até mesmo que o ambicionado por Jung. O mito
da história mundial que traz é explicitamente um argumento feminista para
uma revolução da consciência. “A ordem moral da cultura da deusa… era
baseada no princípio do relacionamento… A ordem moral da cultura do deus…
era baseada no paradigma de oposição e conquista: uma visão da vida, e em
especial da natureza, como algo ‘outro’ a ser conquistado.”
É importante dizer que esse mito da grande deusa não pode ser lido
como um chamado essencialista para uma “religião da mulher” substituir o
monoteísmo masculino. Originalmente sem atribuição de gênero, a grande mãe
oferecia uma narrativa para retratar o relacionamento entre criador e criado,
eternidade e o tempo. A mãe divina enquanto “Zoe” ou fonte de vida dá a luz a
seu filho-amante “bios”, a bioesfera da vida criada no tempo e sujeita a ele. O
“bios” é a vida criada como natureza e a humanidade como parte da natureza.
Ele vive no tempo e morre retornando à fonte da divina mãe. “Ela” não é
feminina nem masculina, mas é a fonte divina de todas as possibilidades de
atribuições de gênero.
O monoteísmo masculino distorce a história da grande-mãe. Ao fazer a
cisão e tirar o divino da natureza, cria uma clivagem na consciência humana. Os
resultados infelizes são as polaridades binárias de gênero e a consciência
baseada na repressão do outro.
O mito da grande deusa oferece mais uma fantasia de integridade
psíquica dentro dos estudos junguianos. Nesse sentido, trata-se de uma
amplificação do fascínio de Jung com seu arquétipo do Self, mas amalgamado à
pré-história pagã e não à cultura cristã. No entanto, o objetivo dessa vertente
do feminismo junguiano é a cura não de indivíduos, mas do cosmos. O sagrado
não é uma etapa da consciência: é uma estrutura na consciência. O modelo para
a subjetividade aqui é a teia da vida, conectando o humano, a natureza, o
divino, consciência e inconsciência, feminino e masculino na psique. O sagrado
é parte da natureza e seres humanos fazem parte dessa dança. “A Deusa Mãe,
onde quer que esteja, é uma imagem que inspira e enfoca uma percepção do
universo como orgânico, vivo, sagrado e íntegro, no qual a humanidade, a terra
e toda a vida na Terra participam como ‘seus filhos’…”

A deusa e o princípio feminino: algumas conclusões

A conquista do feminismo junguiano (grande teoria)

Apesar de sua bem documentada misoginia, Jung teve algumas ideias


valiosas sobre gênero e o feminino, que seus sucessores pró-feministas
aproveitaram. Entre elas estão incluídas a exploração “do feminino” em
símbolos e mitos, a constatação da presença do feminino e do masculino em
cada gênero, o protesto contra o mal causado à psique e à cultura pela
repressão do feminino e uma insistência na individuação completa da mulher
na prática analítica. Tudo isso não tira o estigma da linguagem reducionista e
misógina de Jung, sua tendência a confundir gênero e sexo biológico e a
equação das mulheres com o feminino, Eros e a consciência difusa. Um
problema em particular é sua colocação da psicologia da mulher como oposta e
complementar à dos homens.
O feminismo tradicional junguiano, usando os textos de Jung como
grande teoria, abordou muitas das questões que as feministas criticam na
psicologia junguiana. Houve um movimento de considerar as mulheres como “o
avesso” da psique do homem em direção a uma exploração de sua
complexidade como não sendo dependente da estruturação binária de gênero.
A insistência de Jung na contrassexualidade foi desenvolvida: termos como
animus e anima foram revisados levando-se em consideração as limitações
culturais nos textos de Jung.
Há uma ênfase crescente em fatores culturais na expressão de gênero e
do papel de estruturas patriarcais nas dificuldades psicológicas das mulheres,
o que é muito bem-vindo. Como na cultura de forma mais ampla, hoje os
termos “mulheres” e “o feminino” são separáveis, mas permanecem numa
relação nebulosa. Geralmente, o que ainda distingue as feministas junguianas
de grande teoria é a sensação de que gênero é de certa forma uma categoria
estável. Elas buscam uma fonte para a estabilidade de gênero seja nos textos de
Jung ou em seu material-fonte preferido de mitologias culturais ou em ambos,
antes de considerarem a influência da cultura material.

Feminismo da deusa: uma avaliação

O feminismo da deusa junguiano é uma tentativa feminista de revolucionar a


compreensão da psique, bem como da cultura e da história da humanidade.
Para grande parte da cultura ocidental e, de fato, grande parte do feminismo
ocidental, o feminismo da deusa é visto como antipático ao foco em políticas
materiais corporificadas. Por que as feministas modernas deveriam recriar e
reabsorver histórias antigas de deusas nessa era pós-religião e pós-industrial?
Se o feminismo da deusa não tem a intenção de ser uma religião de fato (e não
é, no feminismo junguiano), então para que ele serve?
O feminismo da deusa junguiano pode ser defendido tanto do ponto de
vista teórico quanto em termos de prática material de diversas formas
pragmáticas. Em primeiro lugar, a defesa teórica baseia-se na especulação de
Jung de que as mitologias religiosas tradicionais de todos os tipos e de todas as
culturas contêm material arquetípico. Portanto, qualquer atenção nova
conferida aos mitos das deusas pode retificar décadas de concentração
unilateral da masculinidade no divino. Esse foco desigual em um gênero
distorceu os potenciais psicológicos tanto das mulheres quanto dos homens (e
provavelmente em maior detrimento das mulheres).
Em termos da prática analítica sob um ponto de vista feminista, o
feminismo da deusa oferece oportunidades para ficções femininas de
empoderamento e protagonismo, pois o feminismo da deusa segundo os
junguianos é uma questão de psique e de imaginação, e não um substituto
literal para a religião. Para muitos terapeutas e feministas, ele é menos viável
como um braço da teoria feminista do que como uma maneira pragmática e
empírica de ajudar mulheres feridas.
Minha sugestão seria considerar o feminismo da deusa junguiano a
literatura fantástica da psicologia, em dois sentidos. Ele permite que fantasias
esplêndidas sejam construídas num contexto analítico. Em segundo lugar, no
sentido literário, textos que elaboram o feminismo da deusa podem ser
relacionados à tradição da ficção científica ou dos livros de fantasia feministas.
Para citar um exemplo, livros de fantasia feministas se aproximam muito em
termos de tom e de intenção ao trabalho de E. C. Whitmont.
Equiparar o feminismo da deusa ao romance de fantasia feminista o
situa na debatida fronteira entre literatura e psicologia. Nesse contexto, o
feminismo da deusa junguiano é visto como transgressor e gótico, tanto para a
psicologia convencional quando para a modernidade secular em si. Ele oferece
um feminismo pragmático ao invés de teórico ao providenciar ficções de
subjetividade que levam a noções de gênero e personalidade como algo
“performático”. Gênero é visto como um processo, uma forma de “drama”
social e psicológico, ao invés de uma entidade centrada e estável. Veja o
capítulo 6 para mais conteúdo sobre a relação feminista entre literatura e
psicologia no pós-modernismo.
Também gostaria de apontar o possível valor do feminismo da deusa
como um meio para repensar debates fundamentais sobre gênero e cultura
fora da cultura monoteísta pós-cristã, ou ao menos sem tanta relação com sua
tradição. Num nível mais profundo, o feminismo da deusa nos permite desatar
os binários da teoria que tem dominado os debates culturais sobre gênero.
Mesmo a grande deusa não é uma versão feminina do monoteísmo, que cria um
binário ao expulsar tanta coisa do âmbito do “outro”. A grande deusa é
imanente na natureza, necessariamente vivenciada como plural e diferenciada,
não transcendente do mundo material, então não se trata de um mais o “outro”.
Nesse sentido, a “consciência da(s) deusa(s)”é múltipla e diferenciada; uma
ideia capaz de dialogar de maneira fértil com a consciência fragmentada do
pós-modernismo (veja o capítulo 6).
O feminismo da deusa junguiano é a amplificação mais ambiciosa das
ideias de Jung no sentido de ser a grande teoria mapeada na mitologia histórica
marginal (ou revisões feministas da mesma). É hora de avaliar os trabalhos
sobre gênero pós-Jung sob a lente da definição do próprio Jung sobre sua teoria
como “mito pessoal”.
Resumo e conclusão
O feminismo tradicional junguiano deriva do trabalho de Jung enquanto grande
teoria. Ele expande, revisa e amplia suas noções sobre gênero e o feminino para
criar um conjunto de teorias e práticas que se apoiam e também se criticam
mutuamente. Uma dinâmica básica do feminismo junguiano é juntar a teoria
com a prática analítica, geralmente, porém não exclusivamente, com mulheres.
A mitologia é um meio característico de fazer a conexão entre
experiências individuais de gênero e os trabalhos de Jung e a cultura como um
todo. Descrições de princípios “femininos” e “masculinos” são usadas como um
binário polarizado, que opera dentro da cultura e está disponível para as
psiques de ambos, mulheres e homens. O gênero é, portanto, separado do sexo
do corpo e concebido como plural dentro de cada ser.
O feminismo da deusa junguiano enxerga as narrativas mitológicas das
deusas como o único meio de expressão e empoderamento aceitável para a
psique da mulher, há tanto tempo subordinada. O feminismo da deusa pode ser
expandido e formalizado para se tornar um mito abrangente da cultura
humana, da psique e da tecnologia através do mito da grande deusa. O que
ainda não foi compreendido é parte do contexto teórico pós-moderno, pós-
estruturalista e mais amplo do feminismo. Antes de entrar nessas esferas tão
controversas, é preciso olhar para o trabalho sobre gênero surgido no pós-
Jung, que tem (com razão) um considerável pé atrás com as certezas do
feminismo tradicional junguiano.

LEITURA RECOMENDADA

Geral
Douglas, Claire. The Woman in the Mirror: Analytical Psychology and the
Feminine (Boston: Sigo Press, 1990).
Um valioso relato histórico de gênero e do feminino nos escritos de Jung e dos
pós-junguianos.
Extensão e revisão
Claremont de Castillejo, Irene. Knowing Woman: A Feminine Psychology
(Boston: Shambhala, 1973).
Rompe algumas das suposições misóginas de Jung e faz uma revisão sugestiva
de gênero arquetípico.
Jung, Emma. Animus e Anima (Editora Cultrix/Pensamento, publicação original
da Spring Publictions, 1957).
Nesse trabalho de extensão, Emma Jung é ao mesmo tempo positiva e incisiva
com relação ao animus negativo de Jung.
Ulanov, Ann. The Feminine in Jungian Psychology and in Christian Theology
(Evanston, Ill.: Northwester University Press, 1971).
Um trabalho muito influente por extender tanto as noções de Jung sobre
gênero contrassexual quanto a forma como ele repensou a teologia cristã.
Young-Eisendrath, Polly com Wiedemann, Florence. Female Authority:
Empowering Women through Psychotherapy (Nova York: Guildford Press,
1987).
Enfaticamente critica as limitações de Jung no que se refere a gênero e revisa
seus conceitos para empoderar as mulheres através da individuação.

O princípio feminino
Harding, M. Esther. Os mistérios da mulher (Editora Paulinas; publicação
orginal 1935; Nova York: Harper & Row Colophon, 1976).
Um poderoso e imaginativo progenitor de grande parte do feminismo
junguiano. Harding amplificou as teorias de Jung em torno da mitologia.
Leonard, Linda Schierse. Meeting the Madwoman: An Inner Challenge for
Feminine Spirit (Nova York: Bantam Books, 1993).
Reimagina de forma ponderada os estereótipos femininos negativos como
meio de transformação psicológica.
Woodman, Marion. A virgem grávida (Editora Paulus; edição original Toronto:
Inner City Books, 1985).
Exploração eloquente do feminino. Woodman faz ligações entre mito, análise,
trabalho corporal e teatralidade.
Feminismo da deusa junguiano
Baring, Anne, e Cashford, Jules. The Myth of the Goddess: Evolution of an Image
(Harmondsworth: Viking, 1991).
Uma reinterpretação extensa e abrangente da história e da cultura desde o
neolítico até o presente no que se refere ao feminismo da deusa junguiano.
Brinton Perera, Sylvia. Descent to the Goddess: A Way of Initiation for Women
(Toronto: Inner City Books, 1981).
Uma análise popular e influente do “lado sombrio” do feminino através do mito
sumeriano de Inanna.
Paris, Ginette. O sacramento do aborto (Editora Rosa dos Tempos).
Um estudo fascinante de atitudes contemporâneas relativas ao aborto da
perspectiva das deusas antigas, ao invés da cultura moderna pós-cristã.
Whitmont, Edward C. Retorno da Deusa (Summus Editorial; edição original
Nova York: Continuum Publishing, 1982).
Obra indispensável que deu início à estrutura dessa abordagem.

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