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2
DILMA, TEMER
E
BOLSONARO
crise, ruptura e tendências
na política brasileira
3
DIREÇÃO EDITORIAL: Willames Frank
DIAGRAMAÇÃO: Willames Frank
DESIGNER DE CAPA: Willames Frank
S170p
BOITO JR, Armando.
ISBN: 978-65-88994-00-9
DILMA, TEMER
E
BOLSONARO
crise, ruptura e tendências
na política brasileira
5
Direção Editorial
Willames Frank da Silva Nascimento
6
SOBRE A COLEÇÃO PÁRIAS IDEIAS
9
Os fascistas, os militares e os liberais ............................... 143
A ofensiva política fascista ................................................. 149
A TRÉGUA: CONCILIAÇÃO DA OPOSIÇÃO LIBERAL
COM O GOVERNO NEOFASCISTA ............................. 155
ENTREVISTA SOBRE A HISTÓRIA POLÍTICA
RECENTE DO BRASIL ....................................................... 159
10
POR QUE ESTE PEQUENO LIVRO?
12
específicos, enquanto outros apresentam reflexões que
possuem a pretensão de esclarecer, inclusive com breves
incursões na teoria política, temas mais abrangentes
suscitados pelas sucessivas conjunturas do período – como é
o caso dos textos que caracterizam o Governo Bolsonaro
como fascista, do texto sobre a natureza social e política da
Operação Lava-Jato e daquele que trata das relações entre, de
um lado, os conflitos institucionais que têm atravessado o
Estado brasileiro nas conjunturas recentes e, de outro, os
conflitos de interesses presentes na economia e na sociedade.
O momento político brasileiro é muito grave para o
campo democrático e popular. Espero que este pequeno livro
contribua para o debate sobre essa situação e, assim fazendo,
possa contribuir, ainda que muito modestamente, para
superá-la.
São Paulo, agosto de 2020
13
Dilma e Temer
a crise do
neodesenvolvimentismo
e o golpe neoliberal
14
A NATUREZA DA CRISE POLÍTICA DE 2015-2016
Artigo publicado no Le Monde Diplomatique – Brasil. Edição número 104,
de março de 2016.
15
estacionando numa posição militante pelo impeachment da
presidenta. Para uma referência rápida, podemos dizer que
esse campo representa “a direita”. Porém, é preciso ter claro
quais são as classes e frações de classe social que o integram e
quais interesses elas perseguem, sem o que ficaremos
prisioneiros de uma visão superficial e distorcida da crise
política.
O recuo passivo do Governo Dilma Rousseff dificulta
a definição da estratégia dos movimentos populares na crise
atual. Se o governo resistisse à ofensiva política restauradora,
mesmo que fazendo concessões menores e táticas para dividir
o inimigo, os movimentos populares teriam um quadro mais
favorável para, em primeiro lugar, barrar o golpe de Estado
branco que ainda se encontra em marcha, uma vez que nessa
luta estariam somando forças com o governo, e poderiam, em
segundo lugar e ao mesmo tempo, lutar pela adoção de um
programa mais ambicioso de reformas, posto que as reformas
modestas da era PT estariam preservadas. Teríamos, nesse
cenário, uma continuidade, em bases novas, do quadro que se
desenhou no segundo turno da eleição presidencial de 2014:
Dilma respondeu, no discurso de campanha, à ofensiva
restauradora que a direita já então iniciara. O seu discurso e a
publicidade de TV bateram de frente com a ofensiva
neoliberal. Porém, uma vez eleita, tendo optado – e se tratou
sim de uma opção – por adotar uma política de recuo passivo,
e tendo, inclusive, dado mostras de compartilhar ideias da
oposição neoliberal, o Governo Dilma Roussef criou um
cenário novo e muito desfavorável para os trabalhadores.
Esse cenário obrigou as classes populares a lutarem –
praticamente sozinhas pois a resistência do governo e do seu
16
partido tem sido pífia – contra a tentativa de golpe de Estado
branco da direita e, ao mesmo tempo, resistirem às medidas e
às ameaças do Governo Dilma Rousseff às pequenas
conquistas dos últimos anos. A situação é de defensiva em
toda a linha.
Antes da crise
1Ver a esse respeito Armando Boito Jr. Reforma e crise política no Brasil – os
conflitos de classe nos governos do PT. Campinas e São Paulo: coedição
Unicamp e Unesp. 2018. [Nota de 2020]
17
principalmente os governos encabeçados por esse partido,
passassem a representar, prioritariamente, os seus interesses.
É essa prioridade, que não deve ser confundia com
exclusividade, que indica a hegemonia política.
Na década de 1990, a burguesia interna, embora tenha
se beneficiado com vários aspectos do modelo político
neoliberal, teve, também, muitos de seus interesses
contrariados pela abertura comercial e pelo definhamento do
papel do Estado e do BNDES como propulsores dos
investimentos produtivos. No final dos anos 90, essa fração
burguesa se foi se aproximando do PT e da CUT. A diretoria
da Fiesp chegou a prestar apoio oficial, público e ativo à greve
geral contra a recessão convocada pela CUT e pela Força
Sindical em junho de 19962. Com a ascensão dos governos do
PT, essa fração da burguesia foi contemplada com a
intervenção do Estado na economia para estimular, embora
dentro dos limites dados pelo modelo capitalista neoliberal, o
crescimento econômico. A política de investimentos públicos
em obras de infraestrutura – usinas hidrelétricas, desvio do
leito do São Francisco, estradas de ferro, obras da Copa do
Mundo e da Olímpiada –, a política de conteúdo local que
prioriza a compra de produtos e serviços nacionais,
protegendo parte da produção interna frente à concorrência
estrangeira, o ativismo do BNDES como financiador das
grandes empresas nacionais e as medidas anticíclicas de
política econômica diante da crise econômica internacional
formaram um contraste gritante com a abertura comercial
sem peias, com o Estado raquítico, o BNDES privatizante e
19
dívida pública, com divisas e com ações das empresas
brasileiras; as empresas industriais europeias, estadunidense e
outras que, sem plantas no Brasil, limitam-se a exportar seus
produtos para o mercado brasileiro; as seguradoras que
abriram filiais no país e, ainda mais integradas à economia
nacional, temos as empresas multinacionais do setor
produtivo, industriais e do agronegócio, que possuem plantas
e filiais no Brasil. A fração da burguesia brasileira integrada
como sócia menor ou dependente desse capital internacional
engloba as casas de importação de veículos, de confecções, de
alimentos, bebidas e tantos outros produtos; os fornecedores
de componentes para as empresas estrangeiras aqui
implantadas – como a indústria de autopeças; os capitalistas
nacionais que são sócios minoritários em empreendimentos
com o capital forâneo. É o bloco voltado para fora, o mais
interessado – embora não seja sempre o único interessado –
na abertura da economia, na redução do papel do Estado, na
privatização, na política monetarista mais rígida e no
definhamento do BNDES, enfim, no programa neoliberal
puro e duro aplicado na década de 1990. Como indicamos
acima, o principal representante partidário do capital
internacional e da fração da burguesia brasileira a ele associada
é o PSDB.
Fora do âmbito da classe dominante, esse campo
político neoliberal tem contado com o apoio militante da
fração superior da classe média – a alta classe média. Foi essa
fração da classe média que, como indicam abundantemente os
levantamentos empíricos feitos por diversos institutos de
pesquisa, que tomou as ruas das grandes cidades do país em
manifestações contra o Governo Dilma Rousseff ao longo do
20
ano de 2015 e nesse início de 2016. A alta classe média
mobiliza-se contra o governo por razões econômicas e
ideológicas e o que mais a incomoda não é a política
econômica dos governos do PT, mas, sim, a sua política social.
O alto funcionalismo público, os diretores, gerentes e alto
funcionariado das empresas privadas, os profissionais liberais
economicamente bem-sucedidos, todos esses setores
abastados da classe média têm a percepção de que são eles
quem pagam, com impostos que consideram escorchantes, as
políticas sociais voltadas para a população de baixa renda.
Ademais, veem com maus olhos a presença de indivíduos
oriundos das classes populares frequentando instituições e
locais que, antes, eram frequentados apenas pelos “bem
nascidos”. Esse mal-estar da alta classe média é visível nas
diversas redes sociais. Ademais, esse campo conservador
conta, também, com algum apoio popular. Há uma central
sindical, a Força Sindical, que ao longo do período de
governos petistas, sempre oscilou entre o
neodesenvolvimentismo e o neoliberalismo ortodoxo. Mais
recentemente, a agitação em torno da corrupção, obtida por
intermédio da ação articulada de instituições do Estado com
a grande imprensa, permitiu que o campo neoliberal ortodoxo
neutralizasse e até atraísse setores importantes das classes
populares.
A hora da crise
21
neodesenvolvimentista do campo neoliberal ortodoxo não é
reta nem rígida. É sinuosa e flexível. Um fato conhecido e
estudado é que a partir da eleição presidencial de 2006, grande
parte dos trabalhadores da massa marginal, que votavam nos
candidatos do campo conservador, bandearam-se para o lado
do PT3. A política da frente neodesenvolvimentista estava,
então, ingressando no seu período de ouro com apoio político
crescente, com a economia internacional marcada pelo
aumento de preços das commodities e com o PIB nacional
obtendo, num ou noutro ano, taxas de crescimento jamais
imaginadas nos anos 90. Os neoliberais do PSDB
encontravam-se na defensiva. A figura do ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso estava em franco declínio. Os
candidatos a cargos executivos do PSDB esquivavam-se do
ex-presidente e evitavam o seu apoio eleitoral. Nas eleições
municipais de 2012, a oposição teve péssima performance.
Foi no início de 2013 que a correlação de forças começou a
mudar.
A economia, que crescera 7,5% em 2010, permaneceu
o biênio de 2011 e 2012 com crescimento próximo de zero. A
oposição neoliberal levantou, então, a cabeça. Percebeu uma
oportunidade e retomou a iniciativa política. Elegeu o ex-
Ministro da Fazenda Guido Mantega e a sua “nova matriz de
política econômica” como inimigo principal. Os cadernos de
economia dos grandes jornais passaram a martelar na
necessidade de reduzir os gastos do Estado, acabar com as
desonerações fiscais e aumentar a taxa de juros. A Selic tinha
sido reduzida gradativamente da casa de 12,50% em julho de
23
contra a Copa do Mundo e desembocou no crescimento das
candidaturas neoliberais na eleição presidencial de 2014.
O que temos aí é uma articulação complexa entre dois
tipos de contradição. A contradição principal, que provocou
a crise política, que é aquela que opõe o campo da burguesia
internacional ao campo da frente neodesenvolvimentista,
articulou-se, de maneira favorável ao campo neoliberal
ortodoxo, com as contradições existentes no próprio interior
da frente neodesenvolvimentisa. A Revolta da Tarifa reuniu,
como mostram as pesquisas disponíveis, jovens de baixa
classe média, trabalhadores que, na maioria dos casos, são
também estudantes. É o setor beneficiário da política dos
governos petistas de expansão do ensino superior público e
privado e de facilitação de acesso dos trabalhadores às
universidades. Essa política, da qual fazem parte o Prouni, o
Reuni e o Fies, dobrou o número de universitários brasileiros.
Ocorre que o mercado de trabalho para os diplomados nas
universidades cresceu muito pouco. Os empregos gerados nos
governos do PT foram, devido à reativação da função
primário-exportadora da economia brasileira,
predominantemente empregos que dispensam alta
qualificação e pagam baixo salário4. Foi a frustração da
juventude de baixa classe média que se expressou na Revolta
da Tarifa e mesmo na segunda fase das manifestações de
junho5. Essa frustração, contudo, como permaneceu
politicamente acéfala, inclusive devido ao culto do
6 Armando Boito Jr., Andréia Galvão e Paula Marcelino, "A nova fase do
sindicalismo brasileiro", In Seminário Internacional 'Sindicalismo
Contemporâneo: 1º de maio – uma nova visão para o Movimento Sindical Brasileiro',
Campinas: Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit),
Unicamp. 2015. pp.206-223,
25
pré-sal afastou o setor sucroalcooleiro do Governo Dilma
Rousseff.
O fato é o seguinte: quando o campo neoliberal
ortodoxo iniciou a sua ofensiva política restauradora, a frente
neodesenvolvimentista vinha se esgarçando. Isso apareceu em
diversos aspectos da cena política. Acabou o apoio unânime
das grandes centrais sindicais em torno do Governo Dilma
Rousseff, o Partido Socialista Brasileiro passou para o campo
da oposição, o PMDB dividiu-se e uma entidade empresarial
da importância da Fiesp passou, como já indicamos, do apoio
ativo aos governos neodesenvolvimentistas a uma política de
oposição7.
Um ponto que mereceria uma análise à parte é o uso
político da corrupção que é feito pela oposição neoliberal. O
discurso contra a corrupção, muito usado na história política
brasileira contra os governos desenvolvimentistas como o de
Getúlio Vargas, é um discurso enganoso que ilude o
observador, esconde a verdadeira natureza da crise política e
neutraliza ou atrai setores das classes populares para o campo
da reação. A oposição neoliberal não pode mostrar para o
grande público o seu programa político real que é mais
abertura da economia, mais privatização, mais
desregulamentação do trabalho. Esse programa e suas
consequências não são bem vistos pela maioria da população
trabalhadora. Ela agita, então, um programa retórico de
combate à corrupção. Ela pode levantar essa bandeira
28
BALANÇO DO CICLO DE GOVERNOS DO PT
Artigo publicado no Caderno de Debates da organização política
Consulta Popular. Número 1, setembro de 2016.
29
Conquistas e acumulação de forças
30
a recuperação. Em 2003, ocorreram 312 greves e apenas 18%
das convenções coletivas e dos acordos assinados entre
trabalhadores e patrões estabeleceram um reajuste maior que
a inflação passada. Ou seja, a enormidade de 82% dos
trabalhadores permaneceram com salários congelados ou
tiveram seus ganhos diminuídos. Após um crescimento
contínuo desses dois indicadores, chegou-se no ano de 2013
ao total de 2150 greves, um recorde histórico no Brasil, e ao
impressionante escore de 95% das convenções coletivas e dos
acordos assinados com reajuste acima da inflação passada. O
aumento real de salário tinha se tornado regra. Somente a
partir de 2015, mas, principalmente, em 2016, com o grande
crescimento do desemprego e com o comando do país
entregue ao governo Michel Temer é que essa linha
ascendente está sofrendo uma brusca inflexão.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra,
que fora sistematicamente perseguido e criminalizado durante
o segundo mandato de FHC, conquistou maior liberdade de
ação, obteve mais créditos e mercados institucionais para a
agricultura familiar, embora não tenha logrado obter um
programa de desapropriações de terra. A luta por moradia
também se fortaleceu muito e, como se sabe, produziu
resultados no plano da política habitacional. Nenhum
movimento popular, feminista, negro ou de minorias sexuais
sofreu retrocesso. As condições de organização e de luta
foram favoráveis. Superamos o refluxo da década de 1990.
Isso ficou claro na reativação da Frente Brasil Popular no
momento de resistência ao golpe parlamentar.
As organizações socialistas e populares que
dispensaram apoio crítico aos governos petistas, combinando
31
de maneira complexa o apoio a tais governos com a crítica, a
cobrança, a pressão e a luta, definiram a tática correta para
esse período. As duas outras opções, tanto a de integrar-se aos
governos petistas, quanto a de defini-los como o inimigo
principal, ambas revelaram-se prejudiciais para a luta socialista
e popular. No momento crítico do golpe parlamentar que
depôs Dilma Rousseff, o campo popular, que soube combinar
o apoio com a crítica e a pressão sobre os governos petistas,
esteve na linha de frente de resistência aos golpistas. Os
governistas demoraram muito para reagir, e quando o fizeram
priorizaram ou circunscreveram a luta no Judiciário e no
Congresso Nacional, enquanto os ultraesquerdistas
permaneceram neutros, indiferentes diante da violação da
democracia, e suas organizações entraram em crise.
Limites e debilidades
33
brasileira, que não é revolucionária, o movimento operário e
popular, impossibilitado que está de fazer a revolução, não
pode ignorar as divisões no seio da burguesia quando tais
divisões podem ser exploradas em proveito dos interesses
materiais e políticos das classes populares. Foi o que se fez.
Alertamos, contudo, que essa frente era instável e que o seu
prazo de validade poderia ser curto.
Foi o programa dessa frente que denominamos
neodesenvolvimentista. Salientamos que se tratava de um
desenvolvimentismo fraco quando comparado com o
desenvolvimentismo clássico e esclarecemos que se tratava do
desenvolvimentismo possível para um partido e um governo
que se recusavam a romper com o modelo capitalista
neoliberal. Aqui, cabem alguns esclarecimentos.
É preciso distinguir o conceito de modelo econômico
capitalista do conceito de política econômica e social. O
primeiro indica a unidade de certo perfil da economia com
instituições funcionais para a sua reprodução, enquanto o
segundo indica medidas de política de Estado que se inserem
dentro de um determinado modelo de capitalismo. O modelo
capitalista desenvolvimentista clássico era baseado no
intervencionismo do Estado em prol do crescimento
econômico, no estímulo à industrialização, no protecionismo
do mercado interno, e no tripé empresas estatais, empresas
estrangeiras e empresas nacionais. Foi o modelo que
substituiu a velha forma de dependência baseada na produção
agromercantil voltada para a exportação de bens primários,
instituindo uma nova forma de dependência compatível com
a industrialização capitalista do país. Dentro desse modelo,
couberam políticas econômicas e sociais distintas. Basta ver o
34
contraste entre o nacionalismo econômico do segundo
governo Vargas (1951-1954) com a política de abertura ao
capital estrangeiro industrializante do governo Juscelino
Kubitschek (1956-1961). O modelo capitalista neoliberal, que
substituiu o modelo desenvolvimentista, é baseado no Estado
mínimo, no fortalecimento do capitalismo privado, na
abertura comercial desindustrializante, na internacionalização
crescente da economia nacional e na dominação do capital
financeiro. Dentro desse modelo, também cabem políticas
distintas e foi essa possibilidade que os governos do PT
exploraram. Sem pôr abaixo os pilares do modelo, trataram
de moderar os seus efeitos necessariamente negativos sobre o
crescimento econômico e sobre a distribuição de renda.
Os governos do PT aceitaram a dominância do capital
financeiro, a política de juros elevados, a abertura comercial e
a desregulamentação do mercado de trabalho que tinham sido
legadas pelos governos FHC. Trataram, porém, de moderar
os efeitos negativos desses pilares do modelo capitalista
neoliberal sobre o crescimento econômico com o
fortalecimento do BNDES e dos bancos públicos e suas
políticas ambiciosas de financiamento das grandes empresas
nacionais, com o fortalecimento da Petrobrás, com a política
de conteúdo local para estimular a produção interna e
tomaram algumas medidas visando à formalização do
mercado de trabalho. Em resumo, todas medidas que, agora,
estão sendo minadas ou revogadas pelo governo Michel
Temer que representa a vitória do grande capital internacional
e da fração da burguesia brasileira a ele integrada.
A frente neodesenvolvimentista possuía várias
debilidades, tanto na sua cúpula como na sua base.
35
Na cúpula, a sua força dirigente era uma fração da
burguesia que, embora concorra com o capital estrangeiro na
disputa pelo mercado nacional, é, ao mesmo tempo, uma
força dependente daquele capital. Depende dele
tecnologicamente e financeiramente, pois aspira à
incorporação de tecnologia dos países centrais e conta com a
poupança externa para ampliar os seus negócios. Ademais, a
burguesia interna é uma fração burguesa atravessada por
conflitos – entre o capital bancário e o capital produtivo, entre
o grande e o médio capital e outras – e alçou voo no plano
internacional, com investimentos importantes nos países
dependentes menos desenvolvidos.
Na base popular da frente, a insatisfação cresceu
conforme caiu o crescimento econômico e a agitação sobre a
corrupção fez o resto. Grande parte dos setores populares,
mormente os trabalhadores da massa marginal, que era
beneficiado pela política neodesenvolvimentista do PT
encontrava-se desorganizado e politicamente impotente. Os
governos Lula da Silva e Dilma Rousseff entabularam com
esses setores uma relação de tipo populista, tradicional na
política brasileira, beneficiando-os do alto e sem qualquer
preocupação em transformar esse benefício em apoio político
organizado e consciente. Eles não compareceram, no
momento do golpe, para defender o governo. Outro
segmento popular, esse organizado, que esteve ausente da
resistência contra o golpe foi o movimento sindical – as
direções da CUT, da CTB e da Intersindical lutaram contra o
golpe, mas os grandes sindicatos primaram pela ausência. A
responsabilidade aqui cabe tanto ao governo, quanto ao
sindicalismo. De um lado, os governos petistas ignoraram
36
pontos fundamentais da pauta sindical – jornada de 40 horas,
fim do fator previdenciário, regulamentação restritiva da
terceirização – e, de outro, os sindicalistas brasileiros,
educados pela estrutura sindical corporativa de Estado, focam
sua ação na campanha salarial da sua categoria, descurando ou
ignorando a importância da política nacional para o seu
movimento. Como dissemos, as direções da CUT, da CTB e
da Intersindical compareceram nas manifestações contra o
golpe, mas os grandes sindicatos ausentaram-se por completo
da luta. No momento da crise política, portanto, parte da
burguesia interna bandeou-se para o lado do movimento
golpista e grande parte das classes populares assistiu de longe
e passivamente a deposição do governo Dilma Rousseff.
Por último, o Partido dos Trabalhadores e os
governos petistas não se mostraram à altura da tarefa histórica
de resistir ao golpe de Estado. Privilegiaram a luta na cúpula
do Estado capitalista – no Congresso Nacional e no
Judiciário; subestimaram o perigo representado pela
mobilização massiva da alta classe média; não organizaram a
resistência nas ruas e a presidenta Dilma Rousseff não
participou de nenhuma manifestação contra o movimento
golpista pelo menos até a admissão do processo de
impeachment pela Câmara dos Deputados, que foi o passo
primeiro e decisivo do golpe de Estado. Quando acordou, era
tarde.
38
esgotou-se no sentido de que ele, com a derrota de 2016, não
logrará mais se recompor. A segunda significação possível
dessa tese é diferente: mesmo que o neodesenvolvimentismo
recomponha-se, não é mais do interesse das classes populares
dispensar apoio, ainda que crítico, a governos
neodesenvolvimentistas.
Examinemos a primeira significação. É certo que o
neodesenvolvimentismo tem contra si as crises econômicas
internacional e nacional, que se revelam prolongadas, e
restringem a margem de manobra para uma política de
crescimento sem rompimento com o modelo capitalista
neoliberal. O neodesenvolvimentismo sofre também o
assédio das forças conjugadas do campo imperialista e
neoliberal, a mobilização estridente da alta classe média e o
desgaste profundo daquele que foi, até aqui, seu principal
instrumento político, o Partido dos Trabalhadores. Sem
dúvida, encontrará dificuldade para se reerguer. Porém, o
campo imperialista e neoliberal não está alçando voo num céu
de brigadeiro. Esse campo chegou ao poder por intermédio
de uma manobra golpista, sem voto, e é obrigado a governar,
não com os seus representantes políticos orgânicos, que são o
PSDB e o DEM, mas com o fisiológico PMDB. O governo
Michel Temer tem hesitado muito, recuou diversas vezes, é
assediado pela Lava Jato e encontra dificuldade em manter sua
unidade interna devido às cobranças neoliberais mais
ortodoxas dos tucanos. Esse não parece ser um governo que
disponha de força para bloquear as pressões organizadas e
difusas das classes populares por distribuição de renda e
tampouco para conter a pressão pelo crescimento econômico
que virá, também, dos empresários. Seria um erro descartar a
39
possibilidade de recomposição do neodesenvolvimentismo,
seja com o PT de Lula, com o PDT de Ciro Gomes ou com
outra via.
Se o neodesenvolvimentismo se recompuser, isto é, se
o poder governamental voltar às mãos de um governo
comprometido com o crescimento econômico moderado e a
distribuição de renda modesta que é o que se pode fazer se
não se rompe com o modelo capitalista neoliberal, deveria o
movimento popular eleger esse governo como o seu inimigo
principal? Deveria entender que o neodesenvolvimentismo,
mesmo não tendo se esgotado historicamente, teria se
esgotado politicamente para as classes populares? Essa
pergunta, é claro, só pode ser respondida diante de um
governo real e específico, mas não em geral e em tese. O
neodesenvolvimentismo pode voltar ao poder com política
externa e política social mais tímidas e, num caso como esse,
o movimento popular poderá ter de reavaliar a tática que
defendeu até aqui.
O que, sim, podemos avançar é que, em primeiro
lugar, interessa ao movimento popular colocar em pé um
programa mais ambicioso que o programa
neodesenvolvimentista. Estando esse programa em crise, é
hora de fazermos avançar nossas propostas de reformas
estruturais e procurar consagrá-las num programa político que
aglutine forças mais amplas: Constituinte para a reforma do
sistema político, democratização da mídia, reforma agrária e
outras.
Não devemos, contudo, descartar, de saída, acordos
ou frentes com todo e qualquer setor da burguesia. Sobre isso,
cabem duas observações.
40
Primeiro, não é correto afirmar pura e simplesmente
que “a burguesia interna” aderiu ao golpe. As posições
políticas no seio dessa fração foram variadas. Tivemos, num
dos extremos, a atividade pública e militante da Fiesp pelo
golpe de Estado e, noutro, a posição de resistência do
segmento da construção pesada à perseguição que lhe faz a
Operação Lava Jato. A posição da Fiesp deve refletir
fundamentalmente os interesses da indústria local de
transformação cujo mercado foi invadido por produtos
importados, mormente chineses. Exceção feita ao período de
2006 a 2011, a indústria de transformação perdeu participação
no PIB. Para um governo neodesenvolvimentista, que, como
tal, não cogita romper com o modelo capitalista neoliberal, é
muito mais fácil criar nichos protecionistas nas compras
públicas, com a política de conteúdo local, do que erguer, por
intermédio da depreciação cambial ou de medidas
alfandegárias, proteção para a indústria de transformação
local. Já, a indústria da construção pesada e da construção
naval, que foram mais bem aquinhoadas com a política de
conteúdo local do neodesenvolvimentismo, esse segmento
teve uma posição diferente na crise do governo Dilma
Rousseff. A posição que parece ter predominado
considerando os diferentes segmentos da burguesia interna
foi a posição que consistiu em manter-se neutra diante da
crise, com as suas associações corporativas apresentando
reivindicações que indicavam, ora a aspiração por um governo
que retomasse o programa de reformas neoliberais, ora a
aspiração por um governo disposto a intervir na economia em
prol do crescimento econômico. Esse fato indica, inclusive, as
41
dificuldades que o governo Michel Temer deverá enfrentar
junto à classe dominante.
A segunda observação a ser feita no que respeita à
possibilidade de acordos com setores da burguesia é que a
divisão entre a burguesia interna e a burguesia associada não
é a única divisão existente na classe dominante. Há outras, e
elas se articulam de modo complexo com a divisão já citada.
No período atual, ainda é a divisão entre a grande burguesia
interna e a grande burguesia associada que tem se mantido
como contradição principal no seio da classe dominante e, de
resto, na política brasileira. Porém, as contradições
secundárias existentes na classe burguesa poderão se
desenvolver e se aguçar. Uma que interessa de perto ao
movimento operário e popular é a clivagem existente entre o
grande e o médio capital. O segmento priorizado pela política
neodesenvolvimentista foi o grande capital – é por isso que
falamos em grande burguesia interna. Um número muito
pequeno de empresas nacionais gigantes nas áreas da
mineração, da construção civil, da construção naval, do setor
bancário e do agronegócio foi o foco da política econômica
petista. É verdade que as pequenas e médias empresas não
possuem organização politicamente relevante, mas não se
pode descartar a possibilidade de vir a ocorrer um
aguçamento do conflito das pequenas e médias empresas
rurais e urbanas com as grandes empresas nacionais e
internacionais. O programa mais avançado que o movimento
popular deve elaborar para a etapa atual deve ter em mente
essa situação e procurar explorá-la politicamente.
Voltemos às exigências práticas do momento atual. O
quadro político do país está indefinido. O governo Dilma
42
Rousseff foi deposto, mas a crise política não acabou e o
governo Michel Temer ainda vive uma situação de
instabilidade. Neste momento, a luta pela deposição desse
governo é nossa tarefa central.
Setembro de 2016
43
A BURGUESIA BRASILEIRA E O GOLPE DO
IMPEACHMENT
Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 06 de janeiro de 2017.
44
estratégicos da agricultura e da indústria – com destaque para
a Confederação Nacional da Indústria (CNI), Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Sindicato da
Indústria Naval (Sinaval), Associação Brasileira da Indústria
de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), Associação Brasileira
de Infraestrutura e Indústria de Base (ABDIB), Confederação
Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), e
Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). Partimos,
como é necessário e inevitável, de alguns conceitos prévios
relativos à burguesia e à sua relação com o Estado.
A burguesia brasileira mantém relações variadas e
complexas com o capital internacional. Não há no Brasil uma
burguesia nacional antiimperialista, mas tampouco chegou-se
a uma situação na qual todas as empresas capitalistas aqui
atuantes seriam empresas estrangeiras e empresas integradas
ao capital internacional. Temos uma fração da burguesia
brasileira, a burguesia interna, que, embora não hostilize o
capital estrangeiro, concorre com ele, disputando posições na
economia nacional e, em menor grau, também na economia
internacional. Os governos do PT representavam essa fração
da burguesia apoiados em setores das classes populares e o
golpe contra o governo Dilma foi dirigido, justamente, pelo
capital internacional e pelo setor da burguesia brasileira a ele
associado, contando com o apoio ativo da fração superior da
classe média. O fato notório e muito importante de o governo
Temer ter abandonado a política (moderadamente)
nacionalista para a cadeia do petróleo e gás – regime de
exploração, refino, fornecimento de navios, de equipamentos
pesados etc. – serve para ilustrar essa tese. Pois, bem, por que
é que a fração burguesa que vinha sendo beneficiada pelos
45
governos do PT não defendeu o governo Dilma?
A burguesia e suas frações agem premidas por
circunstâncias dadas. Elas não possuem a clareza de interesses,
a unidade política, a capacidade de organização e a liberdade
de ação que supõem muitos dos analistas de esquerda. No
caso do Brasil, a burguesia interna era representada pelo
governo organizado por um partido político que não fora
construído pela própria burguesia, mas que, justamente por
isso, teve maior liberdade para impor alguns sacrifícios à
burguesia interna, angariando-lhe com isso uma base de apoio
popular. Foi o que permitiu que os interesses maiores dessa
fração prevalecessem frente ao capital internacional e à
burguesia associada. Nascia a frente política
neodesenvolvimentista que encerrou a hegemonia exercida
pelo capital internacional e pela burguesia associada durante a
década de 1990. A leitura da imprensa das associações
empresarias permite ver que, durante os anos de crescimento
econômico, e quando ainda estava fresca na memória da
burguesia interna a estagnação e a abertura econômica radical
dos governos FHC, essa fração burguesa aceitou tais
sacrifícios – valorização do salário mínimo, transferência de
renda, reconhecimento do direito dos trabalhadores à luta
reivindicativa, expansão do serviço público etc. Os
documentos das associações empresariais não concediam
destaque à política social dos governos do PT quando
arrolavam aqueles que seriam os problemas, gargalos e
dificuldades da economia brasileira.
A situação começou a mudar a partir de 2013. Os
fatos relevantes foram o baixo crescimento econômico, a
ofensiva ideológica do capital internacional contra a nova
46
matriz de política econômica ensaiada pelo Ministro Guido
Mantega e, finalmente, o ajuste fiscal do segundo governo
Dilma. Foi nessa nova conjuntura que os sacrifícios burgueses
que garantiam o apoio popular ao neodesenvolvimentismo
passaram a ser vistos como um preço muito alto.
As associações de industriais e do setor agrícola
pesquisadas têm algumas reivindicações que aparecem de
modo recorrente ao longo de todo o segundo mandato Dilma
Rousseff e durante o período de crise. Nesse elenco de
reivindicações destacam-se dois grupos. O primeiro aponta
contra os interesses do capital internacional e financeiro,
enquanto o segundo aponta contra os trabalhadores; o
primeiro prevaleceu durante o primeiro biênio do governo,
enquanto o segundo foi ganhando destaque a partir do ano de
2013. No primeiro grupo de reivindicações recorrentes,
temos: juro baixo, câmbio depreciado, financiamento público
a juro subsidiado para os investimentos, investimento em
infraestrutura, política de conteúdo local, política industrial e
outras. No segundo grupo de reivindicações recorrentes,
temos: reforma da previdência, reforma trabalhista, ajuste
fiscal baseado na redução dos gastos sociais e no arrocho do
funcionalismo e outras. Acompanhando a imprensa das
associações empresariais, fica claro que o segundo grupo de
reivindicações vai ganhando proeminência à medida que o
período de crescimento baixo e de crise econômica
prolongava-se e que a campanha pelo ajuste fiscal pesado
ganhava força.
A burguesia interna não fez esse movimento em
bloco. Parte dela foi perseguida judicialmente, graças ao fato
de as forças articuladas do imperialismo, da burguesia
47
associada e da alta classe média terem utilizado a corrupção
como arma para isolar e mesmo destruir as empresas
nacionais de construção e engenharia pesada; parte aderiu
ativamente ao golpe – os casos mais importantes são a CNI,
a Fiesp, pelo que se pode constatar lendo a imprensa dessas
associações. A indústria de transformação encontrava-se,
desde 2011, em trajetória declinante devido à penetração dos
manufaturados chineses; parte da burguesia interna, ainda,
ficou neutra na crise – foi o caso da indústria de construção
naval que, tendo crescido a taxas de 19% ao ano, relutou em
aderir ao golpe do impeachment e hoje está em campanha
contra o desmonte da política de conteúdo local pelo governo
Temer.
A resultante, contudo, foi que se abriu uma crise de
representação. O representado, a grande burguesia interna,
não se reconhecia mais no representante, o governo Dilma –
governo que, repito, fora apoiado e aplaudido por essa fração
burguesa até pelo menos o ano de 2012. A ofensiva
restauradora do grande capital internacional e da fração da
burguesia brasileira a ele associada, apoiados na mobilização
da alta classe média, encontrou, então, caminho livre para
avançar.
Janeiro de 2017
48
OS TRABALHADORES DA MASSA MARGINAL E O
GOLPE DO IMPEACHMENT
Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 20 de janeiro de 2017.
49
trabalhador é o assalariamento para a produção e a realização
da mais-valia. Ora, os trabalhadores e trabalhadoras
domésticas, os camponeses com pouca terra, os trabalhadores
urbanos por conta própria, os camelôs, prestadores de
serviços variados, os subempregados e outros não são
assalariados em empresas capitalistas ou integram-se a essas
empresas apenas como assalariados eventuais, como
vendedores ocasionais e autônomos de mercadorias
eventualmente produzidas pelas empresas capitalistas ou, no
limite, apenas como consumidores. Estão na margem do
sistema. O modelo capitalista neoliberal e dependente fez
crescer o contingente de trabalhadores dessa massa marginal.
Como é sabido, esses trabalhadores votavam, em sua grande
maioria, nos candidatos à presidência do Partido dos
Trabalhadores. Eles formaram a principal base eleitoral de
massa dos governos do PT.
Essa relação política nada tem a ver com aquilo que
imaginam e apregoam os liberais, os seus partidos e a
imprensa comercial. Não se trata de cidadãos cuja opção de
voto resultaria da desinformação, do suposto carisma de Lula
ou do clientelismo. Os governos do PT atenderam a interesses
reais desses setores e o fizeram com uma política de massa e
não com favores pontuais em troca de apoio político, como é
próprio do clientelismo. Não custa lembrar, estamos nos
referindo ao Bolsa Família, ao incentivo ao usufruto do
Auxílio de Prestação Continuada, ao Luz para Todos, ao
Pronatec, ao Minha Casa, Minha Vida, ao Programa de
Cisternas para o Semi-árido e a outros programas de
transferência de renda e de fornecimento de bens e serviços a
setores populares que tiveram a massa marginal como
50
beneficiária principal ou importante. Os trabalhadores da
massa marginal ao descarregarem o seu voto no PT
procediam, portanto, do mesmo modo que procedem todas
as demais classes e camadas sociais: votavam no candidato
que, de algum modo e com maior ou menor amplitude,
atendia aos seus interesses.
Apesar desse elemento geral, a relação desses
trabalhadores com os governos do PT apresentava uma
particularidade. Era uma relação de tipo populista, ou, para
ser mais preciso neopopulista. Sabemos bem que esse
conceito é mal visto por grande parte dos intelectuais de
esquerda. Mas, atenção, não convém se perder em discussões
terminológicas. Já mostramos, no parágrafo anterior, que,
embora usemos a palavra populismo, não utilizamos o
mesmo conceito – ideia – de populismo que é mobilizado
pelos liberais. Para esses, o político populista obtém apoio
popular engabelando, tapeando ou até hipnotizando as
“massas incultas”. Já indicamos que na relação populista o
político deve atender, minimamente, os interesses de sua base
social. No caso do Brasil, esse interesse é a distribuição de
renda que, pelo seu caráter popular e progressista, diferencia
o populismo do bonapartismo, já que nesse último a demanda
da base social é conservadora.
Getúlio Vargas, no populismo clássico brasileiro,
apoiou-se no proletariado recém-chegado do campo e sem
experiência organizativa – a nova geração proletária que
substituía a geração de operários imigrantes europeus da
República Velha – amealhando apoio popular para a política
desenvolvimentista de industrialização. Sua arma e bandeira
foi a Consolidação dos Direitos do Trabalho, a CLT, estatuto
51
legal que, até os dias de hoje, assombra os neoliberais. No
período posterior ao regime militar, o novo sindicalismo
evidenciou que a classe operária e demais assalariados urbanos
tinham maior capacidade de organização e de luta que os
trabalhadores do período pré-1964. Lula da Silva e Dilma
Rousseff, para implantarem o neopopulismo, apoiaram-se
nos trabalhadores da massa marginal, composta por
segmentos das classes trabalhadoras com baixa capacidade de
organização e de pressão, encontrando então nesses
segmentos apoio popular para o neodesenvolvimentismo, a
política que reformou o modelo capitalista neoliberal até hoje
vigente no Brasil. A tradição populista brasileira encontrou
um novo assento e falou mais alto que as intenções iniciais
dos fundadores do Partido dos Trabalhadores que visavam,
justamente, a superar a Era Vargas pela esquerda.
Pois bem, a relação populista imobiliza politicamente
o trabalhador. Um setor social com baixa capacidade de
organização, interpelado do alto por políticos profissionais ou
governos, torna-se prisioneiro daquilo que poderíamos
denominar o culto ou fetiche do Estado protetor. Ele delega
ao Estado capitalista, cujas instituições parecem situar-se
acima das classes sociais, a função de proteger os “pobres”. É
verdade que parte dos trabalhadores da massa marginal
organiza-se e luta em movimentos pela terra e por moradia.
Essa parte esteve, de resto, ativa na resistência ao golpe.
Contudo, ela representa ainda uma pequena minoria. O
grande contingente de trabalhadores da massa marginal
ausentou-se da luta e deixou a caravana do golpe de Estado
passar. Esse contingente vê o Estado como uma entidade livre
e soberana, a qual deve tomar a iniciativa de proteger os
52
“pobres” e cuja ação independe da relação de forças entre as
classes sociais – residindo aí o motivo de utilizarmos também
a expressão fetiche do Estado.
O trabalhador da massa marginal foi de fundamental
importância para as vitórias eleitorais dos candidatos à
presidência do PT, mas ele não tem consciência clara desse
fato. Não percebe o impacto do seu voto na situação política
nacional; não percebe que se os seus interesses dependiam dos
governos petistas, esses, por sua vez, dependiam, e ainda mais,
do apoio político e não apenas eleitoral da massa marginal.
No momento da crise, quando a força e a soberania do
governo petista desmancharam-se no ar, os trabalhadores da
massa marginal não tinham condições ideológicas e nem
organizativas para saírem na defesa do governo. Os governos
Lula e Dilma e o próprio PT abriram mão de organizar essa
massa, de levá-la a superar o populismo e fazê-la ver que ela
deve depender de suas próprias forças. Não quiseram e não
puderam recorrer a ela em sua defesa.
No populismo clássico, em agosto de 1954, a
passividade política dos segmentos populares mantidos sob o
fascínio do populismo transformou-se no seu contrário e
idêntico: irrompeu nas ruas em grandes e impotentes quebra-
quebras, ataques à grande imprensa comercial e a consulados
estadunidenses. Carlos Lacerda, apavorado, fugiu para a
Bolívia. Em agosto de 2016, nem esse espetáculo de revolta e
impotência o neopopulismo nos ofereceu. Aécio Neves e
outros desfilam tranquilos pelas ruas do Rio de Janeiro e de
Curitiba. Dilma Rousseff tampouco deixou algo que
lembrasse o apelo trágico da Carta Testamento de Vargas.
Janeiro de 2017
53
AS RECLAMAÇÕES TARDIAS DA FIESP
Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 17 de fevereiro de
2017.
54
Sempre reclamaram – a palavra é essa mesmo: reclamaram –
da abertura comercial, ou melhor, da “abertura comercial
exagerada”, enquanto apoiavam as privatizações, com as quais
grandes empresas ampliaram seu patrimônio adquirindo
estatais a preço vil, e, evidentemente, e apoiavam o corte dos
direitos sociais e trabalhistas. Quando aderiram ao programa
dos governos petistas de moderar o neoliberalismo para
estimular o crescimento econômico, tampouco aderiram sem
reservas. Sempre foram críticos ou reticentes diante do
crescimento do gasto do Estado com assistência e direitos
sociais, não pararam de criticar a carga tributária – excessiva,
segundo a burguesia brasileira – e sempre temeram o
intervencionismo excessivo na economia.
Essa posição origina uma espécie de movimento
pendular da grande burguesia interna, exatamente como já
destacaram os pioneiros na análise crítica do capitalismo
brasileiro – Florestan Fernandes, Jacob Gorender e outros. A
trajetória política foi a seguinte: na década de 1990, a
burguesia interna esteve com FHC; na década de 2000, com
o PT; e, agora, na década de 2010, iniciou um movimento de
retorno à posição política dos anos 90.
Os grandes empresários brasileiros privilegiam um ou
outro ponto da política econômica de acordo com a situação
econômica do país, com a conjuntura política e ideológica.
Recentemente, com a queda do crescimento econômico,
foram convencidos, pela luta ideológica no próprio interior da
burguesia, que o caminho seria apertar os cintos dos
trabalhadores. Os documentos e publicações da CNI, da
Fiesp, da CNA e de outras grandes associações empresariais
passaram a enfatizar, não mais a crítica à abertura comercial,
55
ao juro extorsivo ou aos estrangulamentos da infraestrutura,
mas, sim, o excesso do gasto público, principalmente da
previdência, a dita “camisa de força” dos direitos trabalhistas
e por aí embarcaram no movimento golpistas ou, como
dissemos, assumiram uma postura de neutralidade que
favoreceu o golpe.
O movimento popular deve acompanhar e analisar
esses movimentos. É motivo de revolta ver Paulo Skaf depois
de fazer o que fez para depor a Presidenta Dilma Rousseff,
vir a público reclamar do resultado de sua própria ação como
se a abertura do pré-sal fosse algo inesperado e inexplicável.
Mas, é preciso, também, notar que essas reclamações
arranham a base de apoio do governo Temer na grande
burguesia sem ter ilusões quanto ao protagonismo desses
setores burgueses na reversão do estado de coisas atual.
Fevereiro de 2017
56
O CONFLITO INSTITUCIONAL COMO CONFLITO DE
CLASSE
Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 07 de dezembro de
2016.
57
pensamento socialista e de esquerda no Brasil não logra
analisar o conflito institucional atual como conflito de classe
porque restringe a observação ao conflito capital/trabalho e
descura a importância do fracionamento que divide a
burguesia e também a importância da presença política da
classe média. Até 2014, a burguesia brasileira encontrava-se
dividida diante da política econômica, social e externa dos
governos do Partido dos Trabalhadores (PT). A fração que
denominamos burguesia interna apoiava ativamente, como se
pode verificar pela consulta à imprensa das associações
empresariais, a política neodesenvolvimentista desses
governos, enquanto a fração integrada ao capital internacional
e esse próprio capital, cujos interesses eram vocalizados pelo
PSDB e por agências internacionais variadas, opunham-se a
tais políticas.
A partir de 2013, a burguesia associada, valendo-se
principalmente da oportunidade oferecida pela queda do
crescimento econômico e pela mobilização da alta classe
média contra o governo, iniciou uma ofensiva política
restauradora para derrotar o neodesenvolvimentismo e
restaurar a política neoliberal. As peripécias da crise, seus
variados componentes, fizeram com que parte importante da
burguesia interna mantivesse uma posição de neutralidade
favorável à ofensiva da fração adversária ou, inclusive,
aderisse a ela – como foi o caso patente dos industriais
paulistas representados pela Fiesp. Parte ainda da burguesia
interna foi violentamente atacada pela Operação Lava Jato e
capitulou. A correlação de forças mudou radicalmente e o
golpe de Estado foi bem-sucedido. Muitos analistas e
observadores socialistas imaginavam que, deposto o Governo
58
Dilma, o comando da Lava Jato desmobilizaria em pouco
tempo a operação. Não foi o que aconteceu. O PT é sim o
inimigo principal da Lava Jato e da alta classe média, mas não
é o seu único inimigo.
Juízes, procuradores e delegados são, ao mesmo
tempo, burocratas do ramo repressivo do aparelho de Estado
e integrantes da fração superior da alta classe média. A ação
desses agentes está, por isso, duplamente determinada. Como
agentes da ordem, insurgiram-se contra aquilo que
consideram a condescendência dos governos do PT para com
os movimentos populares. Preferem a repressão dura dos
governos tucanos – FHC, Alckmin, Beto Richa e outros.
Como segmento social e economicamente privilegiado do
funcionalismo público, têm a mesma disposição da alta classe
média contra as políticas distributivas dos governos do PT.
Até aí, falavam a linguagem do campo burguês. Ocorre que
foi a agitação contra a corrupção que uniu esses agentes do
Estado à mobilização de rua da alta classe média. Por razões
que não podemos analisar aqui, a centralidade da bandeira da
luta contra a corrupção é tradição da classe média, não do
movimento camponês ou do movimento operário. Esse tipo
de agitação moralista desse setor social é uma constante nas
crises políticas da história do Brasil republicano. A alta classe
média, convocada pelo MBL e pelo Vem pra Rua, passou a se
reconhecer politicamente na Operação Lava Jato e os
responsáveis dessa operação assumiram o papel de
representantes políticos desse setor social. Depor o governo
do PT era o objetivo principal, mas o discurso contra a
corrupção não era mera pretexto. Mesmo sem o respaldo da
mídia burguesa e mesmo contra os aliados da véspera, a alta
59
classe média, ou parte dela, não se conforma com uma postura
de acomodação e quer dar sequência àquilo que julgam ser a
moralização do Brasil.
O Governo Temer está cumprindo tudo o que
prometeu ao capital internacional e à burguesia associada, mas
há diferenças de interesses e de valores entre a alta classe
média e a burguesia. A base de apoio do golpe quer prosseguir
na luta e está criando turbulência política que não interessa em
nada à força dirigente do golpe de Estado. Essa última
pretende “estancar a sangria da Lava Jato” – para retomar a
frase dita em ligação telefônica vazada para a imprensa pelo
Senador Romero Jucá – e voltar à normalidade para impor
tranquilamente o arrocho fiscal, as novas rodadas de
privatização e de abertura da economia ao capital
internacional.
A grande burguesia, quando atiçou ao longo do ano
de 2015 e de 2016 manifestações na Avenida Paulista, em
Copacabana, no Farol da Barra e em outros logradouros de
nossas capitais, liberou forças que não está conseguindo mais
controlar. Domingo, dia 04 de dezembro, o MBL e o Vem pra
Rua realizaram novas manifestações em dezenas de cidades
do país e desta vez contra o presidente do Senado e da Câmara
Federal e em defesa do “Partido da Lava Jato”. A destituição
de Renan Calheiros da presidência do Senado na segunda-
feira por um ministro do STF foi mais uma demonstração da
sintonia fina existente entre o Judiciário e a alta classe média.
A relação é forte: representantes e representados
reconhecem-se mutuamente como tais. Até onde conseguirão
ir?
Dezembro de 2016
60
NOVIDADES SOBRE O PAPEL DA BURGUESIA NO
GOLPE DO IMPEACHMENT
Artigo publicado no site A terra é redonda em 18 de junho de 2020.
61
modestas, das classes trabalhadoras. Pensamos que isso é
parte da verdade, mas não é a verdade toda. Outros detectam
divisões no interior da burguesia, não se satisfazem com a
ideia de uma burguesia homogênea. Uma primeira versão
dessa linha de análise, e que é a versão predominante, sem
negar que as diferentes frações da classe dominante acabaram
em boa medida convergindo no final de 2015 e início de 2016
para uma posição favorável à deposição do Governo Dilma,
afirmam que se tratou de uma ação dirigida principalmente
pelo segmento rentista da classe dominante contra o setor
produtivo dessa mesma classe social, setor produtivo que,
paradoxalmente, já que também insatisfeito com o Governo
Dilma, acabou abandonando-o. Uma segunda versão da
análise que se preocupa com o conflito de classes e que
valoriza analiticamente as divisões no interior da burguesia,
versão que desenvolvo em livro que publiquei sobre o tema
(Reforma e crise política no Brasil – os conflitos de classe nos
governos do PT, Editoras Unicamp e Unesp, 2018), sustenta
que a força dirigente do golpe foi a burguesia associada ao
capital internacional. A grande burguesia interna, fração
ao mesmo tempo dependente e concorrente do capital
internacional, e cujos interesses os governos do PT
priorizavam, acabou, também devido a insatisfações com o
Governo Dilma e com a ascensão do movimento popular, se
dividindo – uma parte defendeu Dilma até as vésperas do
impeachment, outra permaneceu politicamente neutra e uma
terceira parte aderiu ativamente ao golpe.
62
As novidades
63
esta minha intervenção neste debate. Nessa análise, a fração
burguesa que Nicos Poulantzas denominou burguesia
interna, eu sempre a denominei, para tratar da política
brasileira contemporânea, grande burguesia interna e
considerei essa fração burguesa como a fração hegemônica
nos governos encabeçados pelo PT. Isso quer dizer que as
políticas econômica, social e externa desses governos, sem
excluir os interesses das demais frações burguesas e inclusive
da burguesia associada e do próprio capital internacional,
priorizaram os interesses daquela fração. Eu combino dois
sistemas de fracionamento ao falar de grande burguesia
interna. O fracionamento pelo porte do capital – trata-se do
grande capital – e o fracionamento pela origem do capital – é
o capital nacional, embora não seja uma burguesia nacional
antiimperialista. Ocorre que, se faz sentido falar em grande
burguesia interna, é porque, e somente porque, deve existir
uma média burguesia interna.
No primeiro capítulo do meu citado livro, eu formulei
a seguinte ideia. A política econômica neoliberal estabelece
uma hierarquia no interior do bloco no poder. Ela privilegia,
no que respeita à função do capital, o capital financeiro; no
que respeita ao porte das empresas, o grande capital; e no que
respeita à nacionalidade, o capital estrangeiro e associado.
Concluía que no topo da hierarquia desse bloco no poder
encontrava-se o capital financeiro internacional, e na sua base,
o médio capital produtivo nacional voltado para o mercado
interno. Entre o topo e a base dessa hierarquia distribuíam-se
outras combinações desse fracionamento (Reforma e crise política
no Brasil – p. 51). Há um médio capital bancário na posição
intermediária. O pesquisador Ary Minella, pioneiro no estudo
64
político dos bancos, mostrou que no Governo FHC cerca de
200 bancos de médio e pequeno porte foram à falência. É
preciso, como mostra Francisco Farias em um ensaio teórico
intitulado “Frações burguesas e bloco no poder”, publicado
na revista Crítica Marxista n. 28, chamar a atenção para o fato
que os sistemas de fracionamento – função do capital, seu
porte, sua origem e outros – se cruzam o que indica a
complexidade que é a análise do bloco no poder. Contudo,
voltando ao que eu dizia sobre o meu próprio trabalho, eu não
pesquisei o comportamento político desse segmento burguês,
a média burguesia interna e ignorava, até pouco tempo,
pesquisas mais sistemáticas que o tivessem feito. As pesquisas
acima citadas trazem novidades importantes justamente sobre
isso e podem exigir da parte nossa, todos os que pesquisamos
a política brasileira como resultado de um conflito de classes
e frações de classe, acréscimos ou retificações, maiores ou
menores, na nossa análise.
66
A primeira delas é a seguinte: isso significa, então, que
o golpe do impeachment foi uma ação vitoriosa da média
burguesia interna contra a grande? Uma vitória das
pequenas empresas brasileiras contra o grande capital nacional
ou estrangeiro? A dissertação de Fernanda Perrin sugere essa
tese em inúmeras passagens. Na banca de defesa de sua
dissertação, ela esclareceu que não era essa a sua intenção. Mas
a questão permanece: qual foi o papel político do médio
capital? Penso que nesse ponto, que é crucial para entender os
interesses envolvidos naquele golpe, devemos fazer intervir os
conceitos de força dirigente e de força motriz de um
processo político qualquer. Mao Zedong elabora esses
conceitos discorrendo sobre os processos revolucionários. A
força dirigente é a classe social ou a fração de classe que logra
impor os objetivos políticos da luta e a força motriz é a classe
ou fração que fornece os quadros e os ativistas para tal luta –
Mao distingue ainda a força motriz principal que é aquela
que fornece a maioria dos quadros e dos ativistas. Pois bem,
tenho para mim – e até segunda ordem porque a pesquisa e as
descobertas não param... – que a força dirigente do
movimento golpista foi sim o capital estrangeiro e a burguesia
associada que procurou, depondo o governo da frente política
neodesenvolvimentista capitaneada pela grande burguesia
interna, restaurar a hegemonia política que usufruíra na
década de 1990. Porém entre as força motrizes desse golpe
contou, a julgar pelas pesquisas que estou comentando, o
médio capital, além das frações abastada e remediada da classe
média, organizadas em movimentos como o Vem pra Rua e o
Movimento Brasil Livre (MBL). O golpe não representou uma
vitória do médio contra o grande capital. Na verdade, o
67
grande capital internacional e a grande burguesia associada
instrumentalizaram politicamente a insatisfação do médio
capital nacional, jogando-o contra o grande capital também
nacional.
Uma questão, ainda relacionada com o problema da
força dirigente do golpe, ficou em aberto. Refiro-me ao
seguinte. Paulo Skaf apoiou-se no médio capital, mas não
apresentou um programa positivo de defesa dos interesses
dessa fração burguesa. Esse é também um ponto sobre o qual
essas novas e excelentes pesquisas precisariam refletir. Paulo
Skaf aliou-se ao vice-presidente Michel Temer e defendeu,
junto ao empresariado, o programa do MDB Uma ponte para o
futuro. Ele só poderia ser considerado um representante
orgânico do médio capital, se tivesse organizado um programa
político específico representando os interesses desse
segmento. Mas não foi isso que aconteceu. Ele, segundo
minha avaliação, apenas se apoiou na insatisfação do médio
capital. É por isso que estou usando a palavra apoio e não
representação. Esse é outro ponto para mais reflexão e
pesquisa.
É uma ironia da história: o segmento politicamente
mais conservador do capitalismo brasileiro, o grande capital
estrangeiro e a burguesia associada, atacou o governo do PT
“pela esquerda”. Ou seja, exploraram os privilégios
concedidos aos grandes capitalistas para atiçar o médio capital
nacional contra o grande, fazendo, paradoxalmente, passar a
sua proposta reacionária de mais abertura e mais
internacionalização da economia brasileira. Cabe lembrar
inclusive que mais de um integrante das equipes
governamentais de Temer e de Bolsonaro, diretores do
68
BNDES e do Banco do Brasil, valeram-se do fato de os
governos do PT terem privilegiado o grande capital nacional,
para proferirem um discurso demagógico de defesa dos
pequenos e médios empresários. Discursaram em defesa “dos
pequenos que mais necessitam de crédito” – em defesa do
“seu Manoel da padaria” disse um deles – contra os
privilegiados “campeões nacionais”. Enquanto faziam esse
discurso demagógico vendiam e entregavam o que resta de
nacional na economia brasileira.
Podemos verificar que essas novidades introduzem
mais um ponto para o balanço dos governos do PT: a
esquerda pode sim, penso eu, e de maneiras específicas que
não cabe discutir aqui, defender empresas nacionais frente a
empresas estrangeiras, mas não pode atrelar-se aos interesses
do capital monopolista contra os interesses do médio capital.
Esse procedimento inverteu tudo aquilo que o movimento
comunista latino-americano e europeu tinham estabelecido
sobre a questão das alianças de classe possíveis e desejáveis
nas primeiras etapas da revolução.
Junho de 2020
69
A OPACIDADE DO PROCESSO POLÍTICO E AS
FACETAS OCULTAS DA LAVA-JATO
Artigo publicado no Le monde diplomatique – Brasil. Edição número 146
de setembro de 2019.
70
mente que os atores, no mais das vezes, atuam nas sombras
ou mascarados. Em primeiro lugar, dizemos que os atores
atuam “nas sombras”, porque parte muito importante do
processo decisório tem lugar nos corredores e gabinetes da
burocracia de Estado, longe dos olhos do público.
Reportagem da revista Carta Capital acaba de revelar a
ocorrência de reuniões – secretas como geralmente são as
reuniões dos organismos burocráticos – da cúpula das Forças
Armadas com a presidência do STF para assegurar que Lula
da Silva não participaria das eleições de 2018. Sabia-se do
famigerado twite do general Eduardo Villas Bôas em abril de
2018 enquadrando o STF na véspera do julgamento de habeas
corpus do ex-presidente. Começa-se a saber agora que a
interferência das Forças Armadas no processo eleitoral foi
algo muito mais amplo. Para usar um clichê: e essa é apenas a
ponta do iceberg. Em segundo lugar, dizemos que os atores
atuam “mascarados”, porque a grande maioria deles não é o
que parece ser. Estamos nos referindo aos dirigentes dos
partidos políticos, principalmente dos partidos burgueses, aos
burocratas do Estado envolvidos em decisões políticas, aos
órgãos da grande imprensa que funcionam como
representantes políticos de interesses minoritários na
sociedade e a outras organizações que intervêm na política
nacional. E não são o que parecem ser por sólidas razões.
Numa sociedade, como a sociedade capitalista, onde, a
despeito das enormes desigualdades de classe, todos os
indivíduos são considerados iguais como cidadãos e aptos a
algum tipo de participação política, nesse tipo de sociedade,
os grupos minoritários, cujos interesses estão em conflito com
as necessidades da maioria, esses grupos necessitam esconder-
71
se e/ou mascarar os seus interesses, apresentá-los com vestes
universalistas – não particularistas e egoístas como realmente
são – se quiserem convertê-los em interesses aparentemente
gerais. Os rentistas jamais dirão que a taxa de juros deve ser
alta para que eles ganhem muito dinheiro, mas sim para evitar
– é o que sustentam com base em argumentos econômicos
contestáveis – o retorno da inflação em prejuízo de toda a
“coletividade”. O processo político na sociedade capitalista é
necessariamente intransparente.
Nada disso significa que os atores do processo político
sejam mentirosos contumazes que manipulam os fatos e as
versões ao seu bel prazer para enganar o público. Foi por essa
razão que usei a palavra “mascarados” entre aspas.
Rigorosamente falando, não caberia a comparação com um
folião que se fantasia para o carnaval, isto é, que escolhe livre
e conscientemente um personagem e o encarna por uma
breve ocasião. Não. As vestes dos personagens do processo
político estão coladas na pele e na mente dos atores que as
portam, de tal modo que eles próprios acreditam, no geral,
que são aquilo que parecem ser. Dizemos “no geral” porque
é verdade que eles podem mentir, manipular e agir
hipocritamente. Porém, quando agem assim, fazem-no no
“varejo”, não no “atacado”. Explico. Existe a hipocrisia.
Quando o juiz Sergio Moro enviava mensagens pelo Instagram
aos procuradores coordenando a investigação e instruindo a
acusação contra os réus diante dos quais ele deveria se portar
como parte terceira e neutra, Moro, embora soubesse que
estava burlando as regras do direito, procurava manter,
hipocritamente, a aparência pública de imparcialidade.
Contudo, e isso faz diferença, por trás de uma mentira
72
consciente sempre há um princípio, valor ou objetivo que o
mentiroso e o hipócrita julgam nobre e com o qual eles
justificam para si mesmo a sua ação. É por isso que afirmamos
que mentem no varejo. Juízes e procuradores da Operação
Lava-Jato acreditavam que a sua ação ilegal era legítima
porque estava a serviço daquilo que seria um bem maior: a
suposta função do Judiciário e do Ministério Público de
“combater a corrupção em defesa do interesse geral do país”.
Portanto, a crença na existência de uma função pública, e não
de classe, do judiciário, bem como a crença na existência de
um suposto “interesse geral do país”, que estaria acima dos
interesses de classe, essas crenças ideológicas estão na base da
ação dos burocratas do Estado. O analista precisa, então,
tomar essa crença em consideração, não pode supor que ela
seja um fingimento para iludir o público, mas deve ir além
dela, deve, analisar a coerência de tais discursos ou suas
eventuais contradições, cotejar esses discursos com a prática
e examinar a coerência dessa prática. Sem lançar mão de
imputações arbitrárias, o analista do processo político tem de
detectar quais são os verdadeiros, e muitas vezes ocultos,
motivos últimos da ação dos personagens, os fins que, muitas
vezes inconscientemente, eles próprios perseguem. A tese da
teoria política marxista a esse respeito é que apenas o
movimento operário socialista e a análise científica podem
romper com esse jogo de sombras e lançar luz sobre os
subterrâneos do processo político.
73
O lugar da corrupção para a classe média
74
foi porque o motivo principal, se proclamado abertamente em
manifestações coletivas públicas, isolaria politicamente o
movimento, enquanto a luta contra a corrupção,
diferentemente, poderia obter algum apoio popular para a
deposição de Dilma. Apresentar o secundário como sendo o
principal é uma manobra que os segmentos sociais podem
fazer instintivamente, sem a necessidade de discussão
consciente, para conferir uma aparência universalista às suas
demandas.
Continuemos destacando agora um fato histórico e
geral: colocar o discurso contra a corrupção no centro é algo
muito característico dos movimentos de classe média; o
movimento operário e o movimento camponês nunca fizeram
desse discurso algo central em suas lutas. Por que essa marca
de classe? Essa é uma questão complexa e deve ser tratada em
dois níveis. Num primeiro nível, podemos dizer que os
movimentos das classes trabalhadoras, entre os quais se inclui
os movimentos de classe média, tendem a se opor à corrupção
porque veem nela uma forma de parasitismo. Porém, num
segundo nível, a situação particular da classe média faz com
que ela, primeiro, dê importância maior à questão da
corrupção e, segundo, acrescente à ideia de parasitismo uma
ideia específica, de classe média. Vejamos.
A ideologia e, portanto, os interesses da classe média
são feridos de maneira especial pela prática da corrupção ou,
mais exatamente, pelo fato de o grande público tomar
conhecimento da prática da corrupção. Explico. A classe
média depende, para justificar a situação privilegiada que
ocupa frente ao trabalhador manual, da aceitação pela
sociedade da imagem do Estado como uma instituição
75
pública, acima dos interesses particularistas de classe. Tal
imagem é o terreno no qual a ideologia meritocrática, aquela
que justifica as vantagens econômicas e sociais dos
trabalhadores de classe média frente aos trabalhadores
manuais, pode vicejar. As posições e profissões privilegiadas
são ocupadas, diz a ideologia meritocrática, por aqueles que
têm mais dons e méritos. Venceram os de menor mérito e
venceram numa competição justa, pois as regras e as
instituições são públicas e iguais para todos. Dito de outro
modo, para que a ideologia meritocrática possa legitimar as
vantagens econômicas e sociais usufruídas pela classe média
frente ao trabalhador manual é preciso que o Estado apareça
como o garantidor da neutralidade e da igualdade na disputa.
A escola, os concursos públicos, a atuação da justiça, tudo
deve parecer público, socialmente neutro, garantindo uma
disputa justa entre os cidadãos por educação, emprego e
justiça. A corrupção fere essa imagem do Estado e a defesa
dessa imagem é a motivação específica da classe média para
se indispor com a corrupção – e muitas vezes é também a
motivação principal. Não se trata apenas de uma revolta de
trabalhadores contra parasitas que ocupam o Estado para
obter vantagens pessoais. Trata-se também da indignação da
classe média contra aqueles que mancham a imagem pública
do Estado. Logo, além de apresentar o secundário no lugar do
principal, isto é, a luta contra a corrupção no lugar da luta
contra a ascensão das classes populares, os personagens dessa
cruzada contra a corrupção mascaravam os seus interesses
egoístas de classe – defender a ideologia meritocrática e os
interesses que ela legitima – com um discurso moralista e
aparentemente altruísta.
76
O imperialismo, a burguesia e a burocracia de Estado
78
econômicos de curto prazo, em frações, isto é, em partes da
classe burguesa que se organizam em busca de interesses
econômicos específicos e em disputa com os interesses
específicos de outras frações. Um dos sistemas de
fracionamento da classe burguesa é a relação que as empresas
capitalistas de um país como o Brasil entretêm com o capital
internacional. Há segmentos burgueses perfeitamente
integrados ao capital internacional e outros que apresentam
conflitos moderados com esse capital. Temos denominado o
primeiro segmento de burguesia associada e o segundo de
burguesia interna. Na luta entre si, essas diferentes frações da
burguesia brasileira capturaram diferentes instituições do
Estado9. A grande burguesia interna, que pretendida durante
os governos do PT estabelecer alguns limites, ainda que
tímidos, à penetração do capital estrangeiro no Brasil,
capturou, por exemplo, grandes empresas estatais como o
BNDES e a Petrobrás. Tal captura permitiu-lhes obter
financiamento farto e a juros subsidiados e a estabelecer uma
reserva de mercado para a construção pesada e a construção
naval brasileira – a famosa política de conteúdo local. O
capital internacional e a grande burguesia associada
capturaram, juntamente com a alta classe média, o sistema de
justiça – judiciário, ministério público, polícia federal. Essa
captura, possível em grande medida devido ao pertencimento
de desembargadores, juízes, promotores e delegados à alta
classe média, permitiu o desmonte de segmentos inteiros da
economia controlados pela grande burguesia interna, da
Setembro de 2019
80
POR QUE O GOVERNO TEMER É UM GOVERNO
INSTÁVEL?
Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 20 de maio de 2017.
81
produtiva do óleo e gás, desnacionalização das terras, dos
aeroportos, do Aquífero Guarani e outras. Porém, o governo
Michel Temer não está conseguindo, a despeito de tudo fazer
para atender os interesses internacionais e também os
interesses manifestos do conjunto da classe burguesa, como
são os casos da reforma trabalhista e previdenciária, esse
governo não está conseguindo, dizíamos, estabelecer
hegemonia alguma, já que a hegemonia pressupõe um
governo minimamente estável, coisa que esse governo não é.
Qual força social está desestabilizando o governo
Michel Temer? É certo que o fato de ele não ter sido eleito e
também o fato de ser contestado pelo movimento sindical e
popular minam sua base de sustentação. A greve geral de 28
de abril passado, embora não tenha atingido o nível de uma
“greve argentina”, foi um protesto amplo e importante. Deve-
se acrescentar a isso um fator de importância menor mas que
também conta. Segmentos da burguesia interna têm, ainda
que moderadamente, se oposto a algumas medidas de política
econômica do governo – as empresas da cadeia de petróleo e
gás acionaram a justiça contra o desmonte da política de
conteúdo local e grandes empresas nacionais já estão
protestando contra o impacto do ajuste fiscal na política de
financiamento do BNDES. Contudo, a falta de legitimidade,
o protesto sindical e popular e insatisfações localizadas da
grande burguesia interna tornam o governo vulnerável, mas
não são o elemento ativo da instabilidade governamental. O
elemento ativo é outro: a ação do sistema de justiça (PF, MPF
e Judiciário) contra os integrantes do Executivo Federal e de
sua base aliada no Congresso Nacional. É verdade que esse
sistema usou e usa politicamente o combate à corrupção para
82
combater o PT, que é o seu inimigo principal. Mas esse
sistema quer também combater a corrupção, mesmo aquela
praticada por outros partidos. Definem o inimigo principal,
escalonam prioridades, concentram-se sobre um ou outro
alvo de acordo com o momento, enfim, fazem cálculos
políticos táticos, como toda e qualquer força que intervém no
processo político – e ao fazer isso agem como grupo político
e embora esse comportamento contrarie as normas do direito
Esse sistema de justiça teve muitos dos seus
integrantes treinados pelo Departamento de Justiça dos EUA,
recebeu informações privilegiadas dessa mesma instituição e
foi estimulado a dar um combate sem tréguas à grande
burguesia interna e ao PT. Mas, não fez isso como
instrumento passivo nas mãos do imperialismo. Ele tem uma
base social própria na alta classe média, base que se reconhece
nele, sai às ruas quando é por ele interpelada, e, de sua parte,
esse sistema tem consciência clara de que tal base social é o
seu maior trunfo político. Dito de outro modo, o que está
desestabilizando o governo Michel Temer é que a força
dirigente do golpe do impeachment perdeu o controle da sua
base de massa. O capital internacional e a burguesia associada,
que, após atrair grande parte da burguesia interna e estimular
a mobilização da alta classe média, chegaram ao poder com
Michel Temer, perderam o controle da base de apoio do
golpe. A frente golpista rachou e o estabelecimento de uma
nova hegemonia ficou comprometido.
A maior parte dos setores ativos do sistema de justiça,
cuja ação provoca a instabilidade do governo Michel Temer,
age, então, como representante político da alta classe média.
Agiu juntamente com o imperialismo no movimento golpista
83
mas, hoje, toma um rumo próprio. A Lava Jato não parou,
contrariando o que muitos petistas imaginaram que
aconteceria após a deposição de Dilma Rousseff, e tomou um
rumo que representa um verdadeiro estorvo para a ala
burguesa do golpe. O conjunto da burguesia quer as reformas
trabalhista e previdenciária, a burguesia associada e o
imperialismo querem a desnacionalização da economia,
Henrique Meireles está, como dizem os boleiros, “fazendo o
seu melhor” e tem à sua disposição uma equipe econômica
dos sonhos para esses setores. Porém, a Lava Jato e outros
setores do sistema de justiça estão pondo tudo isso em risco.
Fazem-no como representantes políticos da alta classe média
e, também, por motivos corporativos. A PF e o MPF estão
insatisfeitos com o governo Michel Temer devido à sua
reforma da previdência e à sua relutância em nomear para a
PGR o mais votado da lista corporativa do MPF.
Vivemos uma situação de crise de hegemonia ou de
instabilidade hegemônica e, portanto, uma situação de
instabilidade política. É certo que a briga entre o sistema de
justiça, de um lado, e o executivo federal e as forças
majoritárias do Congresso Nacional, de outro, é uma “briga
de brancos”. Nenhum dos dois lados defende propostas
progressistas. Contudo, esse conflito pode favorecer o
movimento popular já que desgasta ambas as partes e abre
brechas para o movimento operário e popular fazerem passar,
com mobilização nas ruas, a bandeiras do “Fora Temer” e das
“Diretas Já”. Enquanto dois brigam, o terceiro pode sair
ganhando.
Maio de 2017
84
QUAIS SÃO OS REAIS MOTIVOS DAS DIVISÕES NO
CAMPO GOLPISTA?
Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 05 de junho de 2017.
85
unificado. A divisão da frente golpista nessas três alas e as
consequências que dela se tiram nos parecem incorretas.
Aquilo que nessa divisão aparece como ala política ou
pragmática foi, na verdade, o agente que concebeu o
programa político e ideológico do golpe do impeachment.
Refiro-me ao programa “Ponte para o futuro” elaborado pelo
PMDB em outubro de 2015. Portanto, ao mesmo tempo em
que o senador Romero Jucá pensava na solução Michel Temer
para, nas suas próprias palavras, “estancar a sangria da Lava
Jato” e se salvar da cadeia, ele e o seu partido sistematizavam
também as bases ideológicas e os objetivos políticos do
movimento golpista: congelamento do gasto público real,
reforma trabalhista, reforma previdenciária, mais abertura da
economia ao capital estrangeiro, alinhamento com a política
externa dos EUA etc. Aquilo que é erroneamente
denominado “classe política” não se sustenta no ar. Para
tentar se safar da justiça, que era o interesse corporativo dos
peemedebistas na condição de políticos profissionais, tiveram
de se candidatar a representantes dos interesses de classe que
moviam a campanha contra o governo Dilma Rousseff. Hoje,
perseguem com a mesma tenacidade dois objetivos
complementares: advogados para escapar da cadeia e a
aprovação das reformas que interessa ao poder econômico,
isto é, à burguesia. Tiveram de se amalgamar com aquela que
seria a ala econômica do golpe.
Tampouco a chamada ala ideológica faz jus a essa
denominação. Se a ala dita pragmática é também ideológica e
está vinculada à ala econômica, a ala ideológica é também
pragmática. Juízes, procuradores e delegados da Polícia
Federal têm motivos corporativos, econômicos, para opor-se
86
ao governo Michel Temer. Eles estão em campanha contra a
reforma da previdência. Já foram prejudicados pela reforma
implantada no primeiro governo Lula da Silva e podem sê-lo,
novamente, com a reforma proposta pelo governo atual.
Segundo matéria de Leonel Rocha, publicada no blog
Congresso em foco, as associações ligadas a juízes, procuradores
e promotores estão revoltadas com a proposta original da
reforma enviada ao Congresso porque ela equipara suas
aposentadorias à dos trabalhadores do setor privado, geridas
pelo INSS. O deputado Lincoln Portela (PRB-MG)
apresentou, a pedido dessas associações, emenda excluindo a
casta judicial da reforma. A emenda apresentada pelo
deputado Portela teve o apoio da Associação Nacional dos
Juízes Federais (Ajufe), da Associação dos Magistrados
Brasileiros (AMB), da Associação Nacional dos Procuradores
da República (ANPR), da Frente Associativa da Magistratura
e do Ministério Público (Frentas) e da Confederação que
representa os membros do Ministério Público.
A ideologia sempre deforma a realidade de maneira
interessada, e mesmo que inconscientemente. Os
procuradores podem ver-se como salvadores da pátria,
embora ajam de fato para salvar a si mesmos. Para além da
reforma da previdência que é um dado conjuntural, é preciso
esclarecer que juízes, promotores, procuradores e delegados
têm interesse econômico em coibir a corrupção. Não me
refiro a este ou àquele juiz ou promotor que, sendo ele próprio
corrupto, tira proveito da corrupção. Refiro-me aos interesses
do conjunto dessa categoria social de Estado. A legitimidade
dos seus ganhos exorbitantes, do seu elevado prestígio social
e do seu poder autoritário como altos funcionários do Estado
87
advém do fato de terem sido aprovados em concursos
públicos muito concorridos e percebidos por grande parte da
população como processos seletivos socialmente neutros e
eficazes para selecionar aqueles que teriam mais dons e mais
méritos para ocupar tais cargos. Ora, se a imagem universalista
do Estado for comprometida aos olhos da população pela
prática generalizada da corrupção, do compadrio e do
patrimonialismo, a legitimidade de tais concursos estará
abalada e, com ela, a legitimidade de todos os privilégios de
juízes e consortes.
E a ala econômica? Tudo que pudemos aprender
observando a crise política brasileira é que o poder econômico
converte-se, facilmente, em poder político: financiamento
empresarial de campanha eleitoral, pagamento de propinas a
funcionários públicos, fornecimento de meios materiais para
a campanha do impeachment etc. O PMDB agiu como
instrumento do grande empresariado quando elaborou o
programa “Ponte para o futuro”. Ele agiu como representante
político do poder econômico. A ala econômica é também
política.
Já afirmamos que muitos deputados têm agido para
salvar a própria pele. Os políticos profissionais da classe
dominante têm interesses específicos devido à sua inserção
particular no processo político. Mas, separá-los da classe e das
frações de classe que representam é um erro. Eles podem se
salvar, mas não lograrão fazê-lo contra os interesses dessas
últimas.
O que divide, em última instância, o campo golpista
não são as particularidades das assim chamadas ala
econômica, ala política e ala ideológica do golpe, tampouco os
88
conflitos que seriam oriundos dos objetivos específicos de
cada uma dessas alas, mas o fato de que a frente política que
promoveu o golpe ser uma frente composta por classes e
frações de classes com interesses distintos. Uniram-se na luta
contra o PT; estão se separando sob o governo Michel Temer.
As instituições como os partidos políticos, o sistema de
justiça, a mídia, devem ser analisadas como instituições
vinculadas, direta ou indiretamente, de maneira mais
complexa ou mais simples, às classes e frações de classe em
presença. Porém, esclarecer essa ideia seria tema para outro
artigo.
Junho de 2017
89
O Governo Bolsonaro,
o neofascismo e o
neoliberalismo
90
O FASCISMO É UM FENÔMENO HISTÓRICO
IRREPETÍVEL?
Este é o primeiro artigo de uma série de quatro que publicamos no portal
do jornal Brasil de Fato. Nessa série, defendemos a tese de que o
bolsonarismo deve ser caracterizado como neofascismo e analisamos
diferentes aspectos desse fenômeno. Esta primeira parte foi publicada em
10 de janeiro de 2019 com o título “A questão do fascismo no governo
Bolsonaro”.
10 Atilio Boron, “Caracterizar o governo Bolsonaro como fascista é um
92
composição e à hierarquia do bloco no poder na Itália e na
Alemanha das décadas de1920 e 1930: a fração burguesa
hegemônica nesse bloco e as políticas econômica e externa
que expressam essa hegemonia. O fascismo seria um regime
ou governo da burguesia nacional, com uma política
econômica intervencionista e nacionalista e com uma política
externa centrada na obtenção de uma “divisão do mundo”
mais favorável a essa mesma burguesia nacional. Isso posto,
conclui que seria impossível o ressurgimento do fascismo na
atualidade devido à nova fase do capitalismo, caracterizada
pelo aprofundamento da internacionalização e da
financeirização da economia, que teria eliminado as
burguesias nacionais.
94
frações burguesas na hierarquia do bloco no poder desses
Estados - capital internacional e capital local, capital industrial
e capital comercial etc. Aliás, o próprio Boron chega a
reconhecer, implicitamente, a possibilidade de variar o bloco
no poder sob um mesmo arranjo institucional. Ele caracteriza
o governo Peron como um “cesarismo progressivo”.
Cesarismo diz respeito ao tipo de jogo político que se
estabelece entre o governo e as forças políticas em presença,
e não a esta ou aquela política econômica, externa ou social
específica que é o que expressa, sempre, a composição e a
hierarquia do bloco no poder. É o adjetivo “progressivo” que
se refere a tais políticas. E se é necessário acrescentar o
adjetivo “progressivo” ao cesarismo de Peron é porque, para
Boron, existe, evidentemente, um “cesarismo regressivo”.
Logo, temos aí, novamente, a questão do conteúdo variável
dentro de uma mesma forma de Estado.
Enfim, se o bloco no poder pode variar e varia na
forma democrático-burguesa e na forma ditadura militar, por
que seria diferente com o fascismo? Apenas para essa forma
de Estado teríamos um único e específico bloco no poder e
nenhum outro? Não pensamos assim. Sob um Estado fascista
pode-se ter uma política econômica nacionalista ou
entreguista, intervencionista ou neoliberal, políticas essas que
refletirão composições e arranjos distintos dos blocos no
poder vigentes. Por essa razão, pensamos que é sim possível
o reaparecimento do fascismo no século XXI. E também que
não devemos descartar a hipótese de o governo Bolsonaro vir
a implantar um regime fascista no Brasil. O que seria esse
regime? Qual é a possibilidade de isso vir, de fato, a ocorrer?
95
São questões que poderemos tentar responder num próximo
texto.
Janeiro de 2019
96
O NEOFASCISMO JÁ É REALIDADE NO BRASIL
Este artigo foi publicado no jornal Brasil de Fato em 19 de março de 2019.
97
Fascismo, neoliberalismo e neocolonialismo não são
excludentes.
A distinção entre forma de Estado e bloco no poder é
fundamental. Porém, para caracterizar o neofascismo já em
vigor no Brasil, é necessário mobilizarmos também outras
distinções conceituais. O fascismo é uma das formas
ditatoriais do Estado capitalista, mas essa forma supõe a
existência de uma ideologia, a ideologia fascista, e tal forma de
Estado somente se torna realidade se houver um movimento
social, o movimento fascista movido pela ideologia fascista,
que assuma a luta para a sua implantação. Os fascistas também
fazem cálculos táticos. Eles podem, numa determinada
conjuntura, abrir mão ou postergar a luta pela implantação de
uma ditadura fascista. Segundo Palmiro Togliatti no seu livro
Lições sobre o fascismo, foi exatamente isso que fez Mussolini
quando assumiu a chefia do governo em 1922 e foi o que ele
continuou fazendo pelo menos até 1923. Ou seja,
teoricamente é possível admitir que um movimento fascista,
movido pela ideologia fascista, chegue ao governo e não
implante uma ditadura fascista. Pois bem, no Brasil de hoje
temos a ideologia neofascista, o movimento neofascista, um
governo no qual os neofascistas disputam a hegemonia com
o grupo militar – esse último apegado a um autoritarismo mais
propenso a outro tipo de ditadura – mas não temos um regime
político fascista – o que temos é uma democracia burguesa
deteriorada e em crise.
As definições são sempre problemáticas, mas
podemos arriscar a afirmação de que, nas suas características
mais gerais, o fascismo é um movimento reacionário de massa
enraizado em classes intermediárias das formações sociais
98
capitalistas. Ele é movido por um discurso superficialmente
crítico – e, ao mesmo tempo, profundamente conservador –
sobre a economia capitalista e a democracia burguesa. A sua
ideologia é heterogênea, pouco sistemática, e nela se destacam
a designação da esquerda como o inimigo a ser destruído, o
culto da violência, um nacionalismo autoritário e conservador
e a politização do racismo e do machismo. E, aspecto da
maior importância, o fascismo é um movimento que chega ao
poder, não como representante de tais classes intermediárias,
mas, sim, após ter sido politicamente confiscado pela
burguesia ou uma de suas frações com o objetivo de, apoiada
nele, superar uma crise política e implantar um governo
antidemocrático, antioperário e antipopular. Essa dinâmica,
com detalhes que não poderemos abordar aqui, prevaleceu
tanto no fascismo clássico quanto no neofascismo brasileiro
– um estudo importante para se compreender o tipo de crise
política na qual pode nascer a ditadura fascista é o livro de
Nicos Poulantzas intitulado Fascismo e ditadura.
O fascismo tem por objetivo eliminar – e não
simplesmente derrotar – a “esquerda” do processo político.
“Esquerda” é um termo genérico e meramente indicativo. No
fascismo clássico essa “esquerda” era composta por dois
partidos operários de massa, seguindo com essa definição a
caracterização do cientista político francês Maurice Duverger
em seu clássico Os partidos políticos. Ou seja, são partidos de
massa aqueles cuja organização envolve as bases, seja em
seções por local de moradia ou em células nos locais de
trabalho; cuja ação política é perene, e não sazonal – apenas
em anos de eleição; e cuja atividade de educação política e
ideológica das massas é constante. Estamos nos referindo ao
99
Partido Socialista e ao Partido Comunista italianos e alemães,
partidos que, de resto, retiveram para si a votação do
operariado enquanto houve eleições livres nesses dois países
– o que contraria, diga-se de passagem, o mito segundo o qual
o fascismo teria impactado indistintamente os
“trabalhadores” ou as “massas”, como pretendem alguns
estudos de psicologia social do fascismo. Já no neofascismo
brasileiro, a “esquerda” a ser eliminada é o movimento
democrático e popular que esteve, até aqui, sob a direção do
Partido dos Trabalhadores, que, de há muito tempo, deixou
de ser um partido de massa e se tornou um partido de quadros
ou de notáveis – organização separada das massas, atividade
política fundamentalmente sazonal e eleitoral e subestimação
da importância do trabalho de educação política e ideológica
dos trabalhadores.
O inimigo do fascismo clássico ameaça abertamente o
capitalismo, organiza partidariamente as grandes massas
operárias e, por isso, exige do fascismo um partido também
de massa para a ele se opor. Esse partido de massa foi um
partido pequeno-burguês, que comportava também militantes
e dirigentes recrutados em setores desqualificados da
sociedade. Já o inimigo do neofascismo brasileiro não é uma
ameaça aberta ao capitalismo, visa reformar o modelo
capitalista neoliberal e se apoia, sem organizar politicamente,
na heterogênea parcela da população, típica dos países de
capitalismo dependente, que podemos denominar
“trabalhadores da massa marginal”. Por isso, o neofascismo
pode dispensar um partido de massa, pode mobilizar suas
100
bases para lutas específicas pelas redes sociais11, e é um
movimento tipicamente de frações da classe média, além de
militantes e apoiadores, como ocorreu com o fascismo
clássico, em setores do lumpemproletariado – a respeito desse
ponto, seria importante uma análise estritamente política da
atuação das Milícias dos morros do Rio de Janeiro.
Acrescentemos que o movimento neofascista da alta
classe média, mobilizado quando da pré-campanha eleitoral
de Jair Bolsonaro já em 2016 e 2017, contou, desde o seu
início, com a adesão de grandes e médios proprietários de
terra principalmente das regiões Sul, Sudeste e Centro-
Oeste12.
Se no fascismo clássico, o grande capital nacional,
diante da crise dos partidos políticos que tradicionalmente o
representavam, confiscou o movimento pequeno-burguês,
apoiou-se nele, para implantar a sua hegemonia; no
neofascismo brasileiro, foi o capital internacional que, tendo
em vista a crise do seu tradicional representante no Brasil, o
PSDB, tetracampeão em derrotas nas eleições presidenciais e
vislumbrando um possível hexa já que Lula poderia ser
candidato em 2018 e 2022, foi esse capital, principalmente o
102
se encontram politicamente na defensiva –
momentaneamente incapacitadas, portanto, para
apresentarem alternativas políticas próprias e viáveis.
Considero que o neofascismo poderá ganhar a
hegemonia no governo e vir a implantar uma ditadura
neofascista no Brasil – embora eu não veja essa hipótese como
a mais provável no momento. Há a possibilidade de a
democracia burguesa deteriorada sobreviver ou, ainda, a
possibilidade de sermos levados para uma ditadura militar.
Afinal de contas, qual é a importância prática de distinguirmos
conceitualmente democracia de ditadura e, especificamente,
ditadura militar de ditadura fascista? Faz alguma diferença
para o movimento operário e popular? E se fizer, qual é essa
diferença? Isso poderia ser tema para outro artigo.
Março de 2019
103
AS DIFICULDADES DA LUTA POPULAR DIANTE DO
FASCISMO
Artigo publicado no portal do jornal Brasil de Fato em 12 de abril de 2019.
104
Podemos, portanto, conceber teoricamente a hipótese de uma
ditadura fascista neoliberal ou neocolonial.
No segundo artigo, comparando, de um lado, os
movimentos animados por Mussolini Hitler e, de outro, o
bolsonarismo no Brasil, apresentei o que considero serem as
semelhanças de fundo entre tais movimentos, que são o que
justificam o emprego do conceito geral de fascismo para
todos os três, e também as diferenças existentes entre o
fascismo clássico e o bolsonarismo, que justificam o emprego
do prefixo neo para denominar o caso brasileiro como uma
variante particular daquele fenômeno. Aliás, em grande
medida, a etapa histórica atual representa uma retomada, em
condições históricas novas, de programas e ideologias de
períodos anteriores, de tal sorte que nos deparamos com o
neoliberalismo, o neodesenvolvimentismo, o neopopulismo
e, agora, com o neofascismo. O que eu defendi foi que
embora não tenhamos um regime de ditadura fascista no
Brasil, mas sim uma democracia burguesa deteriorada e em
crise, temos sim um movimento neofascista ativo e um
governo cuja chefia está entregue ao principal representante
desse movimento.
Passemos agora ao tema deste terceiro artigo. Que
diferença faz, no que diz respeito à luta política, saber se
enfrentamos um movimento fascista ou um movimento
reacionário qualquer? Uma ditadura neofascista ou uma
ditadura burocrática ou militar? Essas distinções não seriam
preciosismos conceituais meramente acadêmicos? Não é
aconselhável desdenhar do esforço intelectual para bem
caracterizar os fenômenos políticos. Mesmo que esta ou
aquela diferença entre um e outro regime político, entre um e
105
outro partido ou ainda entre uma e outra ideologia não
apresentar, pelo menos num primeiro momento, qualquer
pertinência para organizar a luta prática, essa diferença não
deve, por isso, ser desprezada e posta de lado. No processo
de conhecimento, importa conhecer e, ademais, aquilo que
hoje parece indiferente para a ação prática, amanhã poderá se
revelar importante. Dito isso, cabe mostrar que no caso do
fascismo, é sim pertinente para a prática política mostrar a
especificidade dessa forma de Estado, bem como do
movimento que pode conduzir a ela, quando comparada com
os demais regimes políticos e movimentos ditatoriais e isso
porque as condições da luta operária e democrático-popular
variam de um para outro.
Retomemos, então, o nosso problema. As condições
de luta da classe operária e do movimento democrático-
popular variam muito de acordo com a forma que assume o
Estado burguês. No Brasil de hoje, ainda ouvimos em debates
públicos a ideia segundo a qual seria indiferente para os
trabalhadores a forma ditatorial ou forma democrática do
Estado burguês. Comecemos, então, por esse ponto básico e
elementar: a democracia burguesa é muito mais favorável para
a organização e a luta dos trabalhadores que a ditadura
burguesa. Na forma democrática, em grau maior ou menor,
os trabalhadores usufruem o direito de pensamento,
expressão, manifestação, organização e de votar e ser votado.
Podem lançar mão desses direitos para organizarem-se em
sindicatos, comitês de empresa, associações populares,
partidos políticos e possuírem imprensa própria. De posse
desses meios de luta, podem defender seus interesses
imediatos e também para organizarem-se politicamente para
106
a luta pelo socialismo. É certo que a burguesia usufrui muito
mais amplamente tais direitos, pois dispõe de meios
econômicos muito superiores àqueles de que podem dispor
os trabalhadores, mas isso apenas mostra que os direitos
democrático-burgueses são usufruídos, regra geral, de modo
desigual por uma classe e por outra, e não que tais direitos
sejam, para a classe operária, formas desprovidas de conteúdo.
A democracia importa sim para os trabalhadores.
A importância da democracia é aceita por grande parte
– creio que pela maioria – do movimento socialista e popular.
Mas permanece a questão específica: que diferença existiria
entre lutar contra um tipo ou outro de ditadura, seja ela militar
ou fascista? Que diferença faria saber se estamos diante de um
movimento que nos ameaça com a implantação de uma
ditadura de um tipo ou de outro? Ditadura militar e ditadura
fascista bem como os movimentos que defendem tais regimes
não seriam inimigos por igual do movimento operário e
popular? Sim, a ditadura no Estado burguês, seja do tipo que
for, restringe ou suprime, em grau maior ou menor, as
liberdades civis e políticas e combate a organização popular.
Contudo, há uma diferença que importa: a ditadura militar
não organiza um movimento popular de apoio e subestima a
importância daquilo que Gramsci denominou a luta pela
hegemonia cultural e moral na sociedade, enquanto a ditadura
fascista, bem como o movimento que pode levar a ela,
organiza e mobiliza setores populares. Foi por isso que no
segundo artigo desta série eu dei uma definição sintética do
fascismo que era justamente a seguinte: um movimento reacionário
de massa.
107
O fascismo é um movimento reacionário porque,
como eu escrevi, trata-se de um movimento para eliminar a
esquerda do processo político – seja ela socialista, comunista
ou democrático-popular – almejando uma organização
ditatorial do Estado, mas, por ser de massa, esse movimento
contém elementos ideológicos não burgueses e
superficialmente críticos da economia e do Estado capitalista.
No fascismo clássico, tratava-se, predominantemente, de
elementos ideológicos pequeno-burgueses; no neofascismo,
de elementos ideológicos de classe média. Em conformidade
com a sua base social pequeno-burgesa, aquele criticava
principalmente o nascente capitalismo dos monopólios que
agrava a situação do pequeno proprietário, o garrote dos
bancos sobre as pequenas propriedades etc; já o neofascismo,
em conformidade com a sua base social de classe média,
critica principalmente a corrupção, a insegurança pessoal
diante da criminalidade e o jogo sujo da “velha política”.
Ambos, o fascismo original e o neofascismo, são, de
diferentes maneiras, racistas e defendem a organização
patriarcal da família, sendo hostis aos direitos das mulheres.
Tanto no primeiro, como no segundo caso, o discurso fascista
pode extrapolar a sua base social de origem e impactar outros
segmentos populares, mesmo que aqueles elementos
ideológicos superficialmente críticos, e profundamente
conservadores, sejam percebidos de modos distintos de
acordo com o segmento social concernido. Por exemplo, no
neofascismo os trabalhadores assalariados manuais podem se
revoltar contra a corrupção por vê-la como parasitismo,
enquanto os trabalhadores de classe média, além dessa
motivação, tendem a destacar a necessidade de “higienizar” as
108
instituições do Estado burguês, preservando-lhes a aparência
de instituições públicas.
Esses elementos superficialmente críticos, e
vinculados ao discurso profundamente conservador de
eliminação do movimento democrático e popular, convergem
para a ideia de reforçar o autoritarismo do Estado brasileiro:
o projeto dito de segurança de Sergio Moro que suspende,
arbitrariamente, garantias constitucionais; a prática da
ilegalidade no processo penal para a punição exemplar e
espetacular da corrupção – preferencialmente quando tal
prática puder ser imputada às empresas nacionais e à centro-
esquerda representada pelo PT; desprezo pela atividade
política que é identificada apenas como a política praticada no
Congresso Nacional, mal disfarçado desprezo pela
democracia e assim por diante. Um movimento de massa
contém, obrigatoriamente, elementos ideológicos não
burgueses, que podem atrair segmentos das classes populares
e mobilizá-las. No fascismo clássico, havia um partido de
massa; no neofascismo, como aventaram os professores Luiz
Filgueiras e Graça Druck, a mobilização pelas redes sociais
pode vir a substituir esse partido que falta ao bolsonarismo. E
é justamente aí que residem as dificuldades específicas da
esquerda quando se trata de enfrentar um movimento fascista.
O discurso fascista obtém a adesão ativa de certos segmentos
das classes dominadas e pode neutralizar outros.
Tanto na ditadura militar, quanto na ditadura fascista,
os trabalhadores estão desprovidos de inúmeros direitos civis
– pensamento, expressão, manifestação, organização – e dos
direitos políticos. Porém, na ditadura militar, não tivemos o
fenômeno da mobilização popular nem antes do golpe de
109
1964 e nem durante a ditadura. As Forças Armadas não
mobilizaram os setores populares, não obtiveram e não
procuraram obter a sua adesão ativa. A chamada “Marcha
com deus, pela família e pela liberdade” foi algo muito breve,
pontual, e em muitas cidades, a começar pelo Rio de Janeiro,
aconteceram apenas depois que os militares já tinham tomado
o poder. É algo muito diferente da situação atual na qual
nasceu o bolsonarismo. Foram três ou quatro anos de grandes
manifestações de rua em centenas de cidades brasileiras
contra a esquerda e a centro-esquerda, pela deposição do
governo Dilma e ditas contra a corrupção e contra a “velha
política”. O bolsonarismo nasceu aí. Hoje, o MBL, o Vem pra
Rua, o Revoltados Online e o Intervenção, para citar os
grupos mais importantes, continuam apoiando o governo ou
convergem com o essencial de suas posições.
Diante desse movimento e desse discurso, a esquerda
encontra dificuldades. Basta lembrar como episódio maior e
fundador as manifestações de junho de 2013. Já tínhamos
então grupos neofascistas, lutando contra a PEC 37,
mandando a esquerda embora para Cuba, proibindo
manifestantes de portarem bandeiras de partido político –
partido de esquerda, claro. Mal se sabia dizer se se tratava de
grupos neoanarquistas, os horizontalistas, ou neofascistas. O
fenômeno ainda não estava muito claro, salvo nos casos em
que à proibição de portar bandeiras seguiam-se agressões
físicas violentas contra os manifestantes de esquerda, como
ocorreram, para citar apenas dois exemplos, nas cidades de
São Paulo e de Campinas. E, desde então, parte dessa
ambiguidade permaneceu. Os militantes socialistas,
comunistas e populares não podem ignorar as críticas que os
110
neofascistas fazem à corrupção, àquilo que denominam
“velha política” do “toma lá, dá cá” e à insegurança pessoal
nos bairros populares. Veem-se na defensiva diante de tais
discursos. É uma luta ideológica difícil em que os fascistas
estão presentes e minimamente organizados nas escolas, nas
ruas e em outros locais públicos e em que o seu discurso
superficialmente crítico e profundamente reacionário obtém
algum impacto popular. Esses militantes de esquerda não
podem fazer tábula rasa desse discurso. Mais que isso, têm de
reconhecer que os governos da centro-esquerda no Brasil não
só não resolveram tais problemas denunciados pelos
neofascistas – corrupção, insegurança, política de favores –
como passaram a fazer parte deles, por exemplo,
aperfeiçoando a política clientelista com os partidos de
patronagem e conservadores do Congresso Nacional.
É preciso dar o devido destaque à crítica que fazem
Olavo de Carvalho – principal ideólogo do neofascismo – e
os seus seguidores ao fato de a ditadura militar não ter
assumido o que eles denominam a guerra cultural contra o
marxismo. Essa foi, segundo repetem os “olavetes”, a grande
“falha” do regime militar. Afirmam que o regime militar
realizou uma obra econômica meritória, mas, no plano
político e cultural, teria deixado o Brasil vulnerável à esquerda
porque foi omisso nessa batalha. Aqui, não há como não
recordar a análise de Roberto Schwarz sustentando que, ao
menos nos anos imediatamente posteriores ao golpe de 1964,
a hegemonia cultural na sociedade brasileira teria
permanecido com a esquerda. Pois bem, o que estão nos
dizendo os olavetes e o mentor intelectual deles? Exatamente
isto: a ditadura militar não é a melhor fórmula, precisamos de
111
uma ditadura fascista – é ela que poderá fazer a luta ideológica
contra o “marxismo cultural”.
Abril de 2019
112
A BURGUESIA, O “LUMPESINATO” E O GOVERNO
BOLSONARO
Este artigo foi publicado no jornal Brasil de Fato em 20 abril de 2019.
13 GilbertoMaringoni e Artur Araújo “O lumpesinato no poder”. Le Monde
Diplomatique – Brasil, abril de 2019.
113
A ideia segundo a qual seria o lumpesinato que ocupa
o poder é sedutora. Jair Bolsonaro é um político abjeto,
inimigo jurado da democracia e do socialismo, e concebê-lo,
não apenas como integrante, mas também como
representante político do lumpesinato alivia o justo ódio que
sentem por ele todos aqueles que amam o povo trabalhador.
Ademais, a tese parece esclarecedora, pois, de fato, a equipe
de governo é formada por políticos desclassificados, militares
desocupados, professores que fracassaram na academia,
economistas marginais, pastores inescrupulosos, coiteiros de
milicianos e alpinistas sociais de história duvidosa. No
entanto, sabe-se que nem sempre as coisas são o que parecem
ser. A teoria política marxista ensina que é necessário
distinguir aquele que toma a decisão – eventualmente, um
economista neoliberal desprezado pelos próprios neoliberais
ou um militar desprezado pelos próprios militares – daquele
que se beneficia com ela – o capital internacional, os grandes
bancos etc. Definir a natureza de classe de um governo a partir
do pertencimento social da equipe governamental é um
equívoco teórico que induz a erros na prática política. Não é o
“lumpesinato” que está no poder. É o grande capital e, em
primeiro lugar, o capital internacional e a grande burguesia a
ele associada.
14Sobre essa tese de Marx, ver o seu texto “Eleições na Inglaterra – Tories
e Whigs”, cuja tradução brasileira foi publicada pela revista Crítica Marxista
número 47. Disponível em:
https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/
115
seria o conceito de lumpesinato, valendo-se abundantemente
de textos de Marx, os autores colocam a seguinte questão:
“A partir de tais definições, vale a pena tentar entender que
classes e frações de classe compõem o primeiro escalão da
administração eleita em 2018.”. E passam a discorrer sobre
a composição da equipe governamental, nada sobre a política
de Estado. Sim! Temos algo que poderia ser definido, de
modo genérico, como lumpesinato nos altos escalões do
governo e são eles que tomam as decisões. Porém, no que
respeita ao conteúdo das decisões que estão tomando, ele
atende ao lumpesinato ou ao capital internacional e à grande
burguesia associada a esse capital? Segundo entendemos, o
conteúdo da política externa, da política econômica e da
política social do governo Bolsonaro prioriza os interesses
do grande capital internacional, principalmente o
estadunidense, e dos segmentos da burguesia brasileira a ele
associados, e atende também, embora secundariamente,
outros segmentos da burguesia brasileira. Portanto, são o
imperialismo, a burguesia brasileira e, principalmente, a sua
fração associada ao capital internacional que ocupam o
poder de Estado, e não o lumpesinato que lhes presta um
serviço político.
De resto, causa estranheza o fato de o texto afirmar,
de um lado, que o lumpesinato brasileiro realizou o feito,
inédito segundo os próprios autores, de conquistar o poder
de Estado e, de outro lado, sustentar que o lumpesinato é
politicamente incapaz. Cito uma passagem do texto: “O
lumpesinato, por característica inata, é avesso a qualquer
projeto coletivo de longo prazo. Não é classe, não é coletivo,
não forma grupos. Não há previsibilidade ou rotina possível
116
em um conjunto de indivíduos para os quais vigoram as
saídas individuais e a disputa de cada um contra todos.” Ora,
se são politicamente incapazes, como é que poderiam ter
chegado ao poder?!
118
população. Já no seu segundo sentido, ou num ponto muito
mais próximo do segundo que do primeiro, o governo
Bolsonaro representa a classe média, principalmente a classe
média abastada que se mobilizou para a deposição de Dilma
Rousseff, e os caminhoneiros que, também eles e em ação
conjunta com o MBL, Vem pra Rua, Revoltados on Line e
outros grupos de extrema-direita, se mobilizaram pelo
impeachment e, na sequência, se engajaram na candidatura
presidencial do capitão reformado. Esse segundo laço de
representação, embora não tenha a importância econômica,
social e política que tem o primeiro, já que esse pode
remodelar toda uma sociedade, é, todavia, um laço
importante no jogo político e é, no caso que analisamos, um
recurso político do governo Bolsonaro. Os proprietários de
terra também aderiram desde a primeira hora à campanha do
capitão. Reivindicavam o direito de se armar, a liberdade
para desmatar e mais repressão contra os movimentos
camponês, indígena e quilombola. Como mostraram
reportagens da imprensa, ao longo do ano de 2017, os
proprietários de terra se juntaram aos jovens de alta classe
média para a recepção ao presidenciável Bolsonaro nos
aeroportos do país. Foi a pré-campanha eleitoral do capitão
reformado. Nenhum desses segmentos sociais – capital
internacional, burguesia associada, proprietários de terra, alta
classe média, caminhoneiros – podem ser caracterizados
como lumpesinato.
A classe média, principalmente a sua fração abastada,
e os proprietários de terra são as duas pernas sobre as quais
caminha o movimento – falo aqui do fascismo como
movimento social – neofascista no Brasil. Os setores da
119
sociedade que poderiam ser identificados com o conceito
impreciso de lumpesinato, conceito com o qual os autores
designam tanto indivíduos da classe burguesa quanto
indivíduos das classes populares, não se mobilizaram
coletivamente, que seja do meu conhecimento, na campanha
de Bolsonaro. Forneceram material humano para o seu
partido político de ocasião e para a equipe governamental,
do mesmo modo que no fascismo clássico os ex-
combatentes da Primeira Grande Guerra forneceram
quadros para os partidos fascista e nazista, sem que isso
tenha negado que a base social do movimento italiano e
alemão tenha sido a pequena burguesia. O movimento
fascista clássico foi um movimento reacionário de massa
dirigido contra a esquerda, como ocorre com todas as
variantes do fascismo, e ditadura que ele, com o beneplácito
da burguesia, chegou a constituir foi uma ditadura do grande
capital apoiado na – embora muitas vezes em conflito com
– a pequena burguesia, e não um “governo dos ex-
combatentes” ou do “lumpesinato”. De resto, algo intrigante
é o fato de Maringoni e Araújo, que tanto utilizaram o livro
de Marx sobre o bonapartismo em seu artigo, terem
afirmado que o Governo Bolsonaro seria o primeiro caso em
toda história de chegada do lumpesinato ao poder. O citado
livro de Marx discorre muito sobre o fato de que Bonaparte
governava com a chamada Sociedade 10 de dezembro que, nos
diz ainda Marx, congregava o lumpesinato – e nos diz sem
ter concluído que, por isso, o bonapartismo seria o poder do
lumpesinato.
Quando há conflitos entre, de um lado, aqueles cujos
interesses o governo Bolsonaro de fato representa e, de
120
outro, os interesses daqueles que se imaginam representados
pelo mesmo governo, esse tende a decidir a favor dos
primeiros. São o capital internacional e a burguesia associada
que detêm a hegemonia no bloco no poder; a classe média e
os caminhoneiros sequer participam desse condomínio
fechado. Os segmentos de classe média que dependem da
aposentadoria estão engolindo a reforma da previdência que
interessa ao capital financeiro; os caminhoneiros estão
engolindo a política de preços da Petrobrás que interessa aos
acionistas privados nacionais e internacionais da petroleira –
aliás, Maringoni e Araújo publicaram no facebook uma
esclarecedora conversa sobre o conflito em torno do preço
do Diesel; e os proprietários de terra, embora integrem o
bloco no poder e embora tenham recebido cargos no
governo e tudo o mais o que o governo poderia oferecer em
detrimento das classes populares e da ecologia, esses estão
engolindo o enxugamento do crédito público subsidiado do
qual dependem e a provável perda de parcelas do mercado
chinês e dos países árabes, pois tais “inconvenientes” são
consequências necessárias da aplicação do ajuste fiscal que
interessa ao capital financeiro nacional e internacional e do
alinhamento subserviente do Estado brasileiro ao
imperialismo estadunidense na sua disputa com a China.
121
Essa de fato, e concordando com os autores, é uma frase
representativa da linha de ação do governo. Afirmam eles:
Abril de 2019
123
A POLÍTICA ECONÔMICA DE BOLSONARO SERIA
CONTRÁRIA AO CAPITAL FINANCEIRO?
Artigo publicado no site A Terra é redonda em março de 2020.
124
aplicada tal e qual em um país de capitalismo dependente
como o Brasil. Voltaremos a esse ponto.
Agora, vejamos o tal modelo geral: a) na atual fase do
capitalismo, teríamos a acumulação de capital sob a égide do
capital financeiro – o capital que se valorizaria sem deixar a
esfera financeira, segundo a definição de François Chesnais
inspirado no conceito de capital portador de juros de Marx;
b) tendo o Brasil ingressado, pelo menos desde os governos
Fernando Henrique Cardoso, no modelo capitalista
neoliberal, predominaria aqui o capital financeiro e, terceiro
passo do raciocínio, c) estaríamos sob a hegemonia política
dessa fração da burguesia. A pergunta então é a seguinte: o
Governo Bolsonaro estaria desafiando o modelo atual de
capitalismo? A pergunta procede porque o Banco Central, sob
o seu governo, vem derrubando sistematicamente a taxa
básica de juros e o presidente da República usou os bancos
públicos para pressionar os bancos privados a reduzirem a
taxa de juros do cheque especial. O presidente chegou a fazer
provocações públicas aos banqueiros, afirmando algo como:
“A Caixa Federal vai tomar todos os clientes deles”. Paulo
Guedes, por sua vez, discursou em Davos contra a
escravização da economia brasileira por meia dúzia de bancos.
Parecem-se com as afirmações feitas pelo ex-Ministro da
Economia Guido Mantega, afirmações às quais se atribuiu
aquela que teria sido a participação ativa do capital financeiro
no movimento golpista.
Uma primeira tentativa de solução seria
considerarmos a hipótese de que o capital financeiro não
domina a economia brasileira e tampouco detém a hegemonia
no bloco no poder. Mas, os fatos e análises existentes são
125
consistentes para vetar esse caminho. Um segundo
encaminhamento seria perguntarmos se a noção de capital
financeiro e a representação do seu conflito com o capital
produtivo não seriam utilizadas sem as devidas adaptações à
realidade do capitalismo brasileiro, que é um capitalismo
dependente. Esse é o caminho que nos parece mais indicado.
A solução ficaria, mais ou menos, como segue.
Comecemos pelo modelo explicativo mais geral. No
capitalismo neoliberal, a subordinação da economia dos países
dependentes entra numa nova fase. Mais desnacionalização da
economia, desindustrialização precoce e concentrada nos
segmentos de maior densidade tecnológica, isto é, reativação,
em bases históricas novas, de alguns elementos do tipo de
dependência do período pré-1930. O capital financeiro, nesse
modelo, precisa ser desmembrado. Temos um segmento no
Brasil, o mercado de bancos comerciais principalmente, que é
dominado por grandes bancos nacionais públicos e privados.
Quem é prejudicado pelas medidas de política econômica do
Governo Bolsonaro é o segmento nacional do capital
financeiro. É contra ele que se pronunciou Guedes em Davos
e é contra ele que Bolsonaro delegou ao presidente do Banco
Central a autoridade para abrir o mercado bancário nacional
aos bancos estrangeiros. O objetivo parece ser o mesmo que
Fernando Henrique e Pedro Malan perseguiram, com êxito,
na década de 1990. Sim, Fernando Henrique não representava
o “capital financeiro” em geral, mas, particularmente, o capital
financeiro internacional. Essa política sofreu uma reversão
durante os Governos Lula.
Do que é que estamos falando? Do imperialismo e da
dependência. No Brasil, não se pode importar, sem
126
especificações, a tese do predomínio do capital financeiro.
Aqui, o conflito mais importante no seio da classe capitalista
tem sido, ao longo dos últimos anos, o conflito entre a grande
burguesia interna, que compreende inclusive o capital
bancário, e a burguesia associada ao capital internacional, que
abrange segmentos do capital produtivo. Os dois sistemas de
fracionamento se cruzam. Do mesmo modo que no segmento
do capital financeiro temos um setor que integra a burguesia
interna e outro que integra a burguesia associada, assim
também no segmento do capital produtivo temos burguesia
interna e burguesia associada. Essa divisão é clara na indústria
de transformação e na cúspide do agronegócio, onde a
nacional JBS convive com a multinacional Bunge. Os dois
sistemas de fracionamento se cruzam, mas qual seria o
principal?
Desde a crise de 2015-2016, os conflitos intra-
burgueses entraram numa fase de moderação. A burguesia
interna sem ter se dissolvido como fração de classe, já que
mantém uma política de pressão sobre o governo como
estamos vendo na resistência à redução da tarifa comum do
Mercosul, abandonou a posição de fração autônoma, isto é,
dotada de um programa político próprio com vistas à
hegemonia política, ao aderir, em sua maioria, e atraída por
políticas como a reforma trabalhista e reforma da previdência,
ao Governo Bolsonaro. É um conflito que, mesmo
moderado, permanece e, nele, o Governo Bolsonaro toma
partido claramente do lado do capital internacional:
privatizações que estão passando empresas públicas para as
mãos do capital estrangeiro, venda da Embraer, abertura do
mercado de obras públicas após a destruição das empresas de
127
engenharia nacional, alinhamento passivo e explícito com a
política externa dos Estados Unidos e assim por diante.
O Governo Bolsonaro não representa
prioritariamente o capital financeiro em geral. Representa o
segmento associado e internacional desse capital – bancos de
investimentos brasileiros voltados para a captação de recursos
externos, seguradoras e bancos de investimentos estrangeiros.
A posição dos grandes bancos privados nacionais, que, diga-
se de passagem, sustentaram o Governo Dilma até a véspera
do impeachment, como mostra pesquisa de André Flores da
Unicamp15, essa posição está ameaçada. Eles continuam com
lucros altíssimos, mas perderam o controle da política de
Estado. Poderão, nos próximos anos, perder também o
controle do mercado bancário nacional. O mesmo vale para o
segmento produtivo da burguesia interna. Muitas empresas
industriais e do agronegócio poderão ter o mesmo destino que
tiveram as grandes empreiteiras.
No interior da burguesia interna, temos sim um
conflito entre o capital financeiro interno e o capital produtivo
interno, mas esse não é o principal conflito existente no
interior da burguesia brasileira. O principal é o conflito do
conjunto da grande burguesia interna com a burguesia
associada e o capital internacional. É do lado desses dois
últimos segmentos que se encontra, sem possibilidade alguma
de dúvida, o governo neofascista de Jair Bolsonaro.
128
Os analistas da política brasileira do período recente e
atual que supõem ser possível discorrer sobre o conflito entre
“rentistas” e “capital produtivo”, omitindo a dependência e o
imperialismo, precisam rever suas análises.
Março de 2020
129
O CONTEÚDO DO NACIONALISMO DE
BOLSONARO
Artigo publicado no site A Terra é Redonda em 11 de setembro de 2020.
130
que fez continência para a bandeira estadunidense! Temos
algo novo aí. Mera demagogia para enganar as massas? Não
cremos.
O nacionalismo de Bolsonaro tem substância própria
e pode, a justo título, reivindicar-se nacionalista. Não se trata
de um discurso usurpador. Por que? Porque existem vários
tipos de nacionalismo e todos eles, sem exceção, descendem
de um tronco comum. O tronco comum é a ideia de nação
que todos os nacionalismos compartilham, a despeito de
poderem, na luta de ideias e na luta prática, colocarem-se em
campos opostos.
Qual ideia de nação é essa? A de um coletivo de
cidadãos, habitantes de um mesmo território e que seriam
dotados de valores e interesses comuns. Essa ideia de
comunidade de interesses e de valores não decorre do
território, de uma língua ou de uma história comum. Há
povos que falam a mesma língua e estão organizados em
nações diferentes, como há nações cuja população fala
diferentes línguas. Tampouco decorre de perfis culturais e
psicológicos que abrangeriam todo um “povo”. Essa
concepção culturalista de povo ou de nacionalidade não
encontra apoio empírico nas nações modernas. Qual é o traço
cultural ou o perfil psicológico que caracterizaria o conjunto
dos brasileiros? A cordialidade, a extroversão e a
hospitalidade, como ainda acreditam alguns? Fosse assim, o
Brasil não teria produzido o bolsonarismo.
Na verdade, a nação, como unidade política e como
ideia, foi uma criação das revoluções políticas burguesas.
Como? Realizando duas transformações jurídicas e políticas
que, combinadas, produziram aquele resultado.
131
Aquela revolução dissolveu as antigas ordens (de um
lado, homens livres, de outro, servos ou escravos) e
estamentos (nobres e plebeus) e implantou a igualdade
jurídica entre os cidadãos. Essa transformação abriu caminho
para a segunda que consistiu em liquidar o monopólio que a
classe dominante detinha dos postos do Estado – monopólio
que era viabilizado pela reserva, legalmente estabelecida, de
tais postos à ordem superior (homens livres) ou até mesmo
apenas ao estamento superior da ordem superior (nobres) – e
substituí-lo pela abertura formal, jurídica, de tais postos a
indivíduos egressos de todas as classes sociais. Operário,
camponês, profissional de classe média, industrial ou
banqueiro, nada obsta, do ponto de vista jurídico, que
qualquer um deles assuma qualquer posto em qualquer um
dos ramos do Estado. Na prática, a grande maioria dos postos
de mando são ocupados por indivíduos provenientes de
famílias burguesas ou abastadas, mas seria um erro concluir
daí que nada mudou. O fato de tais postos serem
juridicamente acessíveis para os indivíduos provenientes de
famílias das classes trabalhadoras e o fato de que, embora
minoritariamente, indivíduos egressos das classes populares
ocupem, de fato, altos postos de mando no Estado, esses
fatos produzem efeitos ideológicos fundamentais. O
resultado da dupla transformação é o seguinte. Os indivíduos
se tornam formalmente iguais, e por isso potencialmente
dotados de interesses que seriam comuns, e o Estado, que
aparentemente a todos acolhe, pode se apresentar como se
fosse a instituição que a todos representa. Forma-se, então, o
coletivo imaginário que denominamos nação.
132
O coletivo é imaginário porque esses cidadãos
habitantes de um mesmo território estão divididos, já que
esposam valores e possuem interesses conflitantes ou
contraditórios: valores e interesses de classe, de gênero, de
raça etc. Em tal situação, isto é, numa situação em que a
grande maioria se vê como integrante do coletivo nacional e
o valoriza, a tendência é que as classes e demais segmentos
sociais, caso não rompam com a ideologia nacional, procurem
torcê-la para colocá-la a serviço dos seus valores e interesses
específicos. Esse é o caminho para apresentar como
universais valores e interesses que, de fato, são particulares –
caminho espontaneamente buscado pela maioria das
ideologias.
Nos países imperialistas, a burguesia e os aliados que
ela lograr conquistar nas classes dominadas, irão esgrimir a
ideia de interesses nacionais para legitimar políticas
imperialistas que negam aos povos oprimidos a afirmação
nacional. É nacionalismo negando nacionalismo. Nos países
dependentes, as classes dominadas podem lançar mão da ideia
de nação para legitimar um nacionalismo econômico e
político, visando ao usufruto das riquezas do território
nacional pela grande maioria dos seus habitantes e visando à
necessária soberania do Estado nacional para lograr o
controle de tais riquezas. Esse será um nacionalismo
democrático e popular, oposto ao nacionalismo imperialista
anteriormente citado. Tem mais. Um governo ou regime
fascista poderá, como a história ilustra à saciedade, lançar mão
da ideia de nação, esse coletivo imaginário, homogêneo e
legitimado pela grande maioria, para combater e criminalizar
a luta de classes – entenda-se: a luta da classe operária pelo
133
socialismo. Hitler e Mussolini foram nacionalistas. Em seu
livro Lições sobre o fascismo, o dirigente comunista italiano
Palmiro Togliatti sustenta que o elemento ideológico mais
importante do fascismo é o “nacionalismo exacerbado”.
O nacionalismo do Governo Bolsonaro e do
bolsonarismo é um nacionalismo de tipo fascista. Ele consiste
em lançar contra os movimentos de trabalhadores, de
mulheres, de negros, contra a população indígena e LGBT a
acusação de que estão dividindo e conspurcando a nação. O
raciocínio dos bolsonaristas – na verdade, o seu procedimento
instintivo já que o ideólogo pratica a sua ideologia sem
conhecê-la – é este: a nação – no caso, o Brasil – é um coletivo
homogêneo e aqueles que minam, corrompem e ameaçam
essa homogeneidade devem ser combatidos como se
combatem os criminosos. É um nacionalismo retrógrado e
autoritário. Recorrendo ao coletivo nacional imaginário,
pretendem universalizar sua ideologia pró-capitalista, racista e
patriarcal que seriam, para os bolsonaristas, os atributos da
nacionalidade brasileira. Desprovido de um programa de
afirmação da economia e do Estado brasileiro no cenário
internacional, esse nacionalismo se expressa, seguindo o
Governo Trump, no discurso contra o globalismo, contra as
instituições multilaterais, e no mero fetiche de símbolos
nacionais – a camisa amarela, a bandeira etc. Mas, o
nacionalismo de Bolsonaro não é falso e nem demagógico, ele
é conservador, fascista, uma das variantes possíveis da
ideologia nacional.
As variantes da ideologia nacionalista são muitas e,
embora diferentes e até antagônicas, descendem de um tronco
comum. É possível fazer algumas generalizações que
134
contribuam para discernir tais variantes. Nos países centrais,
a ideologia nacional é no geral reacionária. A resposta
conhecida dos operários europeus a essa ideologia foi o
internacionalismo proletário e a negação de laços nacionais
que uniriam classes antagônicas. Nos países dependentes, a
ideia de nação ainda tem um papel progressista a cumprir na
primeira fase do processo revolucionário desses países. Tanto
as tarefas dessa fase, quanto as forças que a integram em razão
de sua inserção econômica e social, induzem a coesão do
movimento revolucionário com o recurso à ideologia
nacional. Esse movimento poderá falar em nome do “povo
brasileiro”, mas o povo aqui é definido politicamente e não de
modo culturalista. A ideia de povo e de nação expressará uma
aliança política de classes que poderá reunir as classes
populares – operariado, campesinato, classes médias,
trabalhadores da massa marginal – e até de setores burgueses
– pequenas e média empresas. Assim, em tais países, podemos
encontrar um nacionalismo democrático e popular, embora
também haja espaço para o nacionalismo fascista.
Mas os revolucionários da África, da Ásia e da
América Latina não podem se esquecer que a nação é uma
criação da burguesia e que o objetivo do movimento operário
socialista sempre foi o de superar a divisão nacional. Tal
divisão é, no plano político e ideológico, uma criação das
revoluções burguesas e uma realidade própria do capitalismo.
Superar o capitalismo implica a superação do Estado nacional.
É certo que seria ilusão pleitear, aqui e agora, uma instituição
supranacional e soberana – se tal instituição chegasse a existir,
ela estaria sob o controle de uma ou mais potência
imperialista. Contudo, tampouco se pode perder de vista que,
135
já hoje, problemas candentes da humanidade, citemos apenas
a crise ambiental e climática, não podem ser resolvidos dentro
dos limites estreitos impostos pelos Estados nacionais.
136
A DEMOCRACIA EM PEDAÇOS: O PERIGO DE
GOLPE FASCISTA
Artigo publicado no site A terra é redonda em 29 de maio de 2020.
137
todos eles se entrecruzaram com os conflitos antigos que,
embora deslocados para um plano secundário, permanecem
ativos no processo político. Na situação atual, os interesses
das diversas forças sociais em presença possuem múltiplas
facetas que ora aproximam tais forças, ora as repelem e, em
consequência, a linha que as divide tornou-se muito móvel e
flexível. A polarização partidária moderada desapareceu,
partidos tradicionais da burguesia entraram em crise, o micro
Partido Social Liberal (PSL) tornou-se grande graças ao
tsunami eleitoral em 2018, o sistema partidário tornou-se
fluido e as instituições do Estado tornaram-se os atores
centrais da cena política. No sistema judiciário nasceu um
partido em sentido lato, a Lava-Jato, os militares, cuja atuação
era difusa, discreta e puramente defensiva durante os
governos do PT, tornaram-se um grupo politicamente
organizado e são força destacada no governo e o Superior
Tribunal Federal (STF) protagoniza conflitos agudos com o
Executivo Federal.
Neste texto, abusivamente extenso talvez para o
padrão do site A Terra é redonda, vou procurar indicar o que
foi que mudou na política brasileira, para depois então
examinar o ponto em que chegamos.
140
e para a fração burguesa integrada a esse capital – privatização
com preferência para o capital estrangeiro, política de
enxugamento do orçamento do BNDES, maior abertura
comercial etc. Mas, legislou também para a grande burguesia
interna, embora o fizesse, principalmente, quando atacava, em
nome de toda a classe burguesa, e não apenas de uma de suas
frações, os interesses dos trabalhadores – reforma neoliberal
do direito do trabalho, emenda constitucional do teto de
gastos, projeto de reforma da previdência e outras medidas.
Com o Governo Temer, a democracia fora violada,
entrou numa fase de instabilidade, mas predominava entre as
forças golpistas a defesa de uma estratégia de “intervenção
política cirúrgica”: uma ruptura da democracia que fosse
pontual e limitada no tempo. A eleição de 2018, e contando
com um presidente eleito, poderia, é o que pensavam os
promotores do golpe, retomar a “normalidade democrática”.
Tratava-se de partidos políticos, de meios de comunicação e
de agentes do Judiciário que professavam um liberalismo
político conservador. Embora tivessem assumido uma
posição autoritária e golpista em 2016, ainda atribuíam algum
valor à liberdade de expressão, ao direito de associação, à
representação política pelo sufrágio etc. Mas as coisas não se
passaram como desejavam e previam esses liberais. Ocorreu
que o movimento pela deposição do Governo Dilma
organizado pela alta classe média18 adquiriu força e dinâmica
142
presidencial, dirigentes do PSDB asseguravam que o
candidato fascista não representaria ameaça alguma ao regime
democrático.
145
aliadas20. Ele cultiva também o sentimento de repulsa àquilo
que os fascistas denominam velha política, mas que é, na
verdade, repulsa à política democrática. Ricardo Salles é o
homem dos grandes proprietários, principalmente da Região
Centro-Oeste, que aderiram ao fascismo antes mesmo que a
grande burguesia financeira e internacional o fizesse. Sergio
Moro não fazia parte desse grupo. Representava a classe
média liberal e conservadora que, diante dos governos do PT,
assumiu uma posição autoritária e golpista, mas sem se
converter doutrinariamente ao autoritarismo – movimentos
como o MBL e o Vem Pra Rua já tinham abandonado
Bolsonaro antes mesmo de Sergio Moro deixar o governo.
Bolsonaro dá a última palavra em todas as decisões
governamentais. Demonstra determinação e não se intimida
diante dos generais – o que foi evidenciado pela exibição do
vídeo da famigerada reunião ministerial de 22 de abril quando,
dentre outras coisas, Bolsonaro proclamou, diante de militares
que permaneceram calados, a necessidade de “armar a
população” para enfrentar os governadores e prefeitos que
impunham o isolamento social no enfrentamento da epidemia
do novo coronavirus.
Os militares, apesar da grande influência no governo,
não conseguiram impedir Bolsonaro de demitir os ministros
da Saúde da Justiça e abaixaram a cabeça até mesmo diante
das ofensas e deboches proferidos contra as Forças Armadas
pelo mentor intelectual do grupo fascista, o escritor Olavo de
147
O conflito mais sério é aquele que opõe a corrente
liberal conservadora ao governo composto por fascistas e por
militares. Essa corrente representa, prioritariamente, o grande
capital internacional e a fração da burguesia brasileira a ele
integrada. Por que, então, surgem conflitos entre os
representantes tradicionais dessa fração burguesa e o
Governo Bolsonaro que, como argumentei, tem priorizado os
interesses dessa mesma fração? Tanto no fascismo original,
quanto no fascismo brasileiro, a burguesia não logra converter
o movimento fascista em mero instrumento passivo dos seus
desígnios. Bolsonaro tem de dar alguma satisfação à sua base
social, isto é, aos caminhoneiros, ao pequeno comércio e a
segmentos da classe média. A burguesia favoreceu a ascensão
do fascismo ao poder, ganhou muito com isso, mas, agora,
não logra controla-lo como o desejaria.
A corrente liberal conservadora congrega partidos
políticos, como o PSDB e o DEM, e a grande imprensa, como
a Folha de S. Paulo, O Globo e o Estado de S. Paulo, e tem o
controle de importantes instituições do Estado, a começar
pelo STF. Poderiam objetar: como denominar liberais atores
que participaram do golpe de 2016? O pensamento e a política
liberal, de Stuart Mill a John Rawls, da antiga União
Democrática Nacional (UDN) ao PSDB, nunca descartaram
medidas autoritárias para prevenir o avanço do movimento
operário e popular. Nos momentos de crise, o liberalismo
aproxima-se do autoritarismo, mas sem aderir
doutrinariamente a esse último e isso faz diferença. A corrente
politicamente liberal conservadora, hoje, opõe-se ao grupo
fascista na sua caminhada para implantar uma ditadura no
Brasil. Ocorre que essa corrente é também, como já
148
indicamos, neoliberal, ou seja, defende o Estado mínimo no
terreno da economia. Ora, Paulo Guedes tem uma política
econômica radicalmente neoliberal e, por isso, conta com o
apoio da burguesia que deu o golpe de 2016 e da corrente
liberal conservadora a ela ligada. Essa corrente sabe muito
bem separar, quando criticam o Governo Bolsonaro, o joio
do trigo. Poupam Paulo Guedes e concentram a crítica na
figura do presidente. Estão divididos entre a resistência ao
fascismo e o apoio à política econômica do governo fascista.
Não parecem suficientemente decididos a brecar a ofensiva
fascista.
150
news. Parece que há resistência interna ao bolsonarismo no
interior da PF. Nos próximos dias, teremos um quadro mais
claro da situação.
O fascismo está muito mais forte então no governo e
nas instituições do Estado do que estava antes da epidemia.
Manteve o apoio das Forças Armadas, contrariando aqueles
que achavam que sua linha de ignorar a epidemia o desgastaria
diante dos militares, e assumiu o controle da PF. No que
respeita ao Congresso Nacional, Bolsonaro logrou obter
apoio do chamado Centrão e, ao menos no momento atual,
está afastada qualquer possibilidade de impeachment ou o
êxito de qualquer outro processo contra ele que dependa de
aprovação com maioria qualificada no Congresso Nacional.
No nível da sociedade, até aqui, apenas a direita faz
manifestações de rua – manifestações em apoio ao governo, à
sua política genocida diante da epidemia e pelo fechamento
do STF e do Congresso Nacional. Há ainda a possibilidade de
armamento de grupos fascistas. Um podcast do site A Terra
é redonda analisou, com muita propriedade e valendo-se das
informações propiciadas pelo vídeo da reunião ministerial de
22 de abril passado, aquilo que denominaram “uma agenda
oculta” do governo e que consiste, em poucas palavras, no
armamento dos seus apoiadores para o combate aos
opositores, inclusive aqueles que integram a oposição liberal21.
É possível que estejam sendo organizadas, a partir das
chamadas Milícias, dos Clubes de Tiro, dos Clubes de Caça e
de outros pontos de apoio verdadeiras milícias do
152
STF, por intermédio do Ministro Alexandre Moraes – um
liberal conservador – move contra o chamado Gabinete do
Ódio. Esse não é um episódio qualquer. Trata-se, até aqui, da
ação mais ousada do liberalismo conservador contra o grupo
fascista. O tal “gabinete” é o coração do bolsonarismo no
plano da organização e da agitação política – as milícias
digitais têm sido o sucedâneo no neofascismo brasileiro do
partido de massa do fascismo original. Daí a reação violenta
de Bolsonaro, afirmando publicamente, na manhã do 29 de
maio, que não mais cumprirá ordens do STF quando essas lhe
parecerem “absurdas”. O conflito é duro, embora não haja
entre o STF e o Executivo Federal diferença de fundo no que
respeita à política econômica e social ultraliberal do governo.
Trata-se da luta entre aqueles que querem implantar uma
ditadura, e que controlam o Executivo Federal, e os que
tomam a defesa, ainda que timidamente, da democracia, e que
controlam o STF – a esquerda não pode ficar indiferente
diante desse conflito.
Nós não nos encontramos, porém, numa conjuntura
política estável. A epidemia, o desemprego e a perda de renda
continuam crescendo. A atitude de Bolsonaro diante da
epidemia já abalou o apoio ao seu governo junto à classe
média. As pesquisas de opinião indicam, de um lado, uma
perda de apoio do governo na classe média rica e remediada,
como já vinham sugerindo os panelaços em bairros de alta
renda, e, de outro lado, uma melhoria, ainda que moderada,
da imagem do governo junto aos setores populares. O
desespero da população de baixa renda torna-a sensível à
proposta de reabertura precoce das atividades econômicas e o
auxílio emergencial de R$600,00 reforçou a aproximação de
153
Bolsonaro com esses setores. Ou seja, os efeitos políticos da
situação econômica e sanitária têm sido, até aqui,
contraditórios. De resto, o agravamento da crise econômica e
sanitária não favorece mecanicamente a oposição democrática
e popular. Se houver a percepção majoritária de que
mergulhamos no caos, um golpe para “restaurar a ordem”
poderá ser bem recebido até por segmentos que normalmente
não o aceitariam. Porém, se a oposição lograr a deixar clara a
responsabilidade do governo federal no agravamento da
epidemia, no aumento dos pedidos de recuperação judicial ou
de falência e no crescimento do desemprego, quando tudo
isso se agravar – e isso é para breve – poderemos lograr a
depor o fascismo do poder governamental.
Maio de 2020
154
A TRÉGUA: CONCILIAÇÃO DA OPOSIÇÃO LIBERAL
COM O GOVERNO NEOFASCISTA
Artigo publicado no site A Terra é Redonda em 29 junho de 2020.
155
processo sobre a produção de fake news, e do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), onde tramita o processo de cassação
da chapa Bolsonaro-Mourão. Garantia, ainda, que as Forças
Armadas não se aventurariam a dar ou emprestar o seu apoio
a um golpe de Estado. Uma coisa seria apoiar o governo e,
até, ameaçar a oposição. Outra, bem diferente, seria mobilizar
tropas e fechar as instituições da democracia representativa.
Esse segundo passo as Forças Armadas não dariam e até
porque a situação internacional inviabilizaria esse tipo de ação
golpista.
Uma terceira análise mesclava as duas anteriores. No
meu modo de ver o economista Luiz Filgueiras, em live em
evento da Universidade Federal da Bahia, e o jornalista Luiz
Nassif no jornal GGN eram representativos desse enfoque.
De um lado, Bolsonaro estaria, de fato, cada vez mais isolado,
como assegurava a segunda análise. Nassif apresentava mais
de uma vez ao longo do texto esta ideia: “O governo
Bolsonaro agoniza. Fica cada vez mais claro que o Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) está disposto a interromper a
destruição do país”. Mais à frente, sustenta: “Todos os sinais
indicam que a atual geração das Forças Armadas é imune a
aventuras golpistas”. Porém, de outro lado e ao mesmo
tempo, Nassif e Filgueiras sustentavam, concordando agora
com a primeira análise, que Bolsonaro partira para a ofensiva
política e ameaçava a democracia. Ou seja, ele estaria ao
mesmo tempo isolado e na ofensiva. Tentava, portanto, é a
conclusão que se impõe, uma ação política para a qual não
disporia de força suficiente. Teria avaliado mal a correlação de
forças e, tudo indica, iria quebrar a cara.
156
Penso que a conjuntura deste final de mês de junho e
início de julho está indicando que caminhamos para uma
solução conciliadora entre os de cima. Diante da prisão de
Fabrício Queiroz e das buscas e apreensões realizadas nas
residências de blogueiros neofascistas e de integrantes do
chamado “Gabinete do Ódio”, e diante do fato de
organizações populares terem logrado quebrar o monopólio
que a extrema-direita detinha das ruas com manifestações em
defesa da democracia e mais numerosas que as dos apoiadores
de Bolsonaro, o presidente percebeu que tinha de recuar.
Vendo esse recuo, a oposição liberal, em vez de partir de vez
para o ataque, resolveu estender a mão ao governo e propor
uma conciliação.
De um lado, o grupo militar e o grupo neofascista no
governo abdicam, pelo menos por ora, às suas pretensões
autoritárias e, de outro lado, o campo liberal conservador
assume o compromisso de garantir o mandato de Jair M.
Bolsonaro até 2022. A decisão do PSDB de barrar o
impeachment, as conversações entre ministros do STF e
representantes do Executivo Federal e a manifestação virtual
do movimento Juntos no dia 26 de junho apontam nessa
direção. Claro que, o agravamento da crise econômica e
sanitária poderá inviabilizar esse acordo e isso,
principalmente, se os debaixo ingressarem de vez na disputa
política. Porém, no momento atual é a conciliação que parece
prevalecer. Os liberais refletem muito antes de cada passo:
querem brecar a escalada autoritária, mas, como já dissemos,
querem manter o ultraliberalismo econômico e, ainda mais,
temem favorecer a volta do PT ao governo.
157
Se essa avaliação estiver correta, penso que o
desenrolar da conjuntura nas últimas semanas indicou que
havia um equilíbrio de forças entre o campo que almeja o
fechamento do regime e o campo que pretende impedi-lo.
Essa conciliação tem futuro? Manter-se-á, como
desejam os liberais, até 2022? Uma coisa é certa: com o
fascismo no governo a ameaça de ditadura estará sempre
presente.
Julho de 2020
158
ENTREVISTA SOBRE A HISTÓRIA POLÍTICA
RECENTE DO BRASIL
Entrevista concedida a Bruna Irineu e Leonardo Alves e publicada na
revista Direitos, trabalho e política social, da Universidade Federal do
Mato Grosso, volume 6, número 10, janeiro-junho de 2020.
159
aliás cresceu muito sob o modelo capitalista neoliberal – os
camponeses de regiões rurais decadentes, os subempregados,
os trabalhadores domésticos, camelôs etc. Esses
trabalhadores da massa marginal foram e são a base social
mais fiel do lulismo. E a coisa é tão mais complexa porque se
você vai analisar o campesinato ou a classe média, logo se dá
conta que essas classes não intervêm de modo unificado no
processo político. Elas também se subdividem em frações
com demandas específicas – o camponês sem terra,
acampado, quer terra, pressiona por desapropriações; o
camponês assentado, com terra suficiente, quer
financiamento, assistência técnica e mercado para seus
produtos. No caso dos governos do PT, eles focaram sua
política social para o campo no camponês com terra, e não no
campesinato pobre, sem-terra. O financiamento para a
agricultura familiar e os mercados institucionais para seus
produtos cresceram enormemente, mas as desapropriações de
terra praticamente foram congeladas.
161
2. Qual o balanço que o senhor faz do ciclo
neodesenvolvimentista? Como o senhor analisa as
rupturas no interior desta grande frente política?
163
3. O senhor tem sido um dos intelectuais que tem
empenhado em seus estudos para explicar o avanço da
“extrema direita” ou “Nova Direita”, como alguns
pesquisadores têm nomeado, no Brasil. De que maneira
é possível caracterizar esta ofensiva da direita no Brasil?
165
No campo de classe média e popular, Bolsonaro, que
foi, é bom insistir, uma candidatura que nasceu de baixo para
cima produzida por um movimento reacionário de massa,
Bolsonaro, eu dizia, não pode se descolar por completo da
alta classe média e dos segmentos populares, que, refiro-me a
esses últimos, aderiram tardiamente ao bolsonarismo. O
fascista se põe, então, a fazer declarações e tomar iniciativas
do agrado dessa base: liberação de armas, afrouxamento da
fiscalização no trânsito, liberação da violência policial, ameaça
contra a cultura e os direitos das mulheres e outras medidas.
No caso dos caminhoneiros, esse equilíbrio está deixando
Bolsonaro na corda bamba. Muitas dessas medidas não
agradam a burguesia. Surge a aspiração, muito presente na
grande imprensa, de um governo com Paulo Guedes sem Jair
Bolsonaro, sem Damares Alves e sem Abraham Weintraub.
Mas esse é um desejo de baixa intensidade e, na verdade, vão.
Tudo é amplamente compensado pelo serviço que Bolsonaro
presta ao capital internacional e ao grande capital em geral.
166
5. Recentemente, a partir da decisão do STF de
assegurar o cumprimento da Constituição com a
revogação da prisão em segunda instância, definiu-se o
quadro de libertação do ex presidente Luís Inácio Lula
da Silva. Como você avalia a correlação de forças entre
as classes a partir da libertação do Lula? Há perspectivas
de unidade da esquerda para as eleições municipais de
2020?
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