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DILMA, TEMER
E
BOLSONARO
crise, ruptura e tendências
na política brasileira

3
DIREÇÃO EDITORIAL: Willames Frank
DIAGRAMAÇÃO: Willames Frank
DESIGNER DE CAPA: Willames Frank

O padrão ortográfico, o sistema de citações e referências bibliográficas são


prerrogativas do autor. Da mesma forma, o conteúdo da obra é de inteira e
exclusiva responsabilidade de seu autor.

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da Creative Commons 4.0
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2020 Editora PHILLOS ACADEMY


Av. Santa Maria, Parque Oeste, 601.
Goiânia-GO
www.phillosacademy.com
phillosacademy@gmail.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S170p
BOITO JR, Armando.

Dilma, Temer e Bolsonaro: crise, ruptura e tendências na política


brasileira. [recurso digital] / Armando Boito Jr.. Coleção Párias Ideias: Orgs.
Antônio Camêlo; Virgínio Gouveia. – Goiânia-GO: Editora Phillos Academy,
2020.

ISBN: 978-65-88994-00-9

Disponível em: http://www.phillosacademy.com

1. Política. 2. Democracia. 3. História do Brasil. 4. Sociedade Brasileira.


5. Ciência Política. I. Título.
CDD: 320

Índices para catálogo sistemático:


Ciência Política 320
4
ARMANDO BOITO JR.

DILMA, TEMER
E
BOLSONARO
crise, ruptura e tendências
na política brasileira

5
Direção Editorial
Willames Frank da Silva Nascimento

Comitê Científico Editorial

Dr. Alberto Vivar Flores


Universidade Federal de Alagoas | UFAL (Brasil)

Drª. María Josefina Israel Semino


Universidade Federal do Rio Grande | FURG (Brasil)

Dr. Arivaldo Sezyshta


Universidade Federal da Paraíba | UFPB (Brasil)

Dr. Dante Ramaglia


Universidad Nacional de Cuyo | UNCUYO (Argentina)

Dr. Francisco Pereira Sousa


Universidade Federal de Alagoas | UFAL (Brasil)

Dr. Sirio Lopez Velasco


Universidade Federal do Rio Grande | FURG(Brasil)

Dr. Thierno Diop


Université Cheikh Anta Diop de Dakar | (Senegal)

Dr. Pablo Díaz Estevez


Universidad De La República Uruguay | UDELAR (Uruguai)

6
SOBRE A COLEÇÃO PÁRIAS IDEIAS

Párias Ideias pretende ser uma contribuição a influir


no presente, para que este, em lugar de se tornar uma
reencarnação de mitologias dantescas do jovem pretérito
nacional, venha a ser um futuro com todas as possibilidades
de liberdades abertas pelas veias da história.
A presente coleção surge em uma ocasião oportuna.
Uma vez que o sub-humanismo organizado pretende reviver
um passado recente – de quando algumas disciplinas e
pensamentos foram criminalizados e banidos das salas de aula
–, ao passo que acusa determinadas ideias, grupos e classes
como sendo “párias”, urge, assim acreditamos, a necessidade
de que o conhecimento volte a ser perigoso para o status
oficial e confronte a censura, resistindo à mordaça. Ir de
encontro - munidos pela crítica criadora - às atuais
governantes formas silenciadores e repressoras da atividade
do pensar e de - 10 - sentir é o objetivo da Coleção de bolso
Párias Ideias.
Nesse sentido, é que as temáticas tratadas e
problematizadas de nossa Coleção – longe de dogmas – giram
em torno dos seguintes eixos temáticos: Retorno à KM; Nova
Esquerda; Memória; Sub-humanismo; Retroescravismo;
Marxismo etc. É com o espírito convicto que convidamos os
leitores a um passeio crítico, com reflexão éticopraticante,
para caminhar pelas avenidas abertas de nossas páginas e
contribuir na tentativa de não deixar a caverna autoritária
engolir com suas sombras e falsas ideias nossa realidade
histórico - cultural.
7
SUMÁRIO

POR QUE ESTE PEQUENO LIVRO? .............................. 11


PARTE 1
Dilma e Temer: a crise do neodesenvolvimentismo e o
golpe neoliberal........................................................................14
A NATUREZA DA CRISE POLÍTICA DE 2015-2016 ... 15
Antes da crise ......................................................................... 17
A hora da crise ....................................................................... 21
O movimento popular e a crise política ............................. 27
BALANÇO DO CICLO DE GOVERNOS DO PT ........ 29
Conquistas e acumulação de forças .................................... 30
Limites e debilidades ............................................................. 32
O governo instável de Michel Temer e a nossa posição .. 37
A BURGUESIA BRASILEIRA E O GOLPE DO
IMPEACHMENT ..................................................................... 44
OS TRABALHADORES DA MASSA MARGINAL E O
GOLPE DO IMPEACHMENT ............................................ 49
AS RECLAMAÇÕES TARDIAS DA FIESP ...................... 54
O CONFLITO INSTITUCIONAL COMO CONFLITO
DE CLASSE............................................................................... 57
NOVIDADES SOBRE O PAPEL DA BURGUESIA NO
GOLPE DO IMPEACHMENT ............................................ 61
Em que pé estava o debate................................................... 61
As novidades .......................................................................... 63
O médio capital no golpe de Estado de 2016 ................... 65
A OPACIDADE DO PROCESSO POLÍTICO E AS
FACETAS OCULTAS DA LAVA-JATO ............................ 70
8
A intransparência do processo político .............................. 70
O lugar da corrupção para a classe média .......................... 74
O imperialismo, a burguesia e a burocracia de Estado .... 77
POR QUE O GOVERNO TEMER É UM GOVERNO
INSTÁVEL?............................................................................... 81
QUAIS SÃO OS REAIS MOTIVOS DAS DIVISÕES NO
CAMPO GOLPISTA?.............................................................. 85
PARTE 2
O Governo Bolsonaro, o neofascismo
e o neoliberalismo....................................................................90
O FASCISMO É UM FENÔMENO HISTÓRICO
IRREPETÍVEL?........................................................................ 91
O NEOFASCISMO JÁ É REALIDADE NO BRASIL .... 97
AS DIFICULDADES DA LUTA POPULAR DIANTE DO
FASCISMO .............................................................................. 104
A BURGUESIA, O “LUMPESINATO” E O GOVERNO
BOLSONARO ........................................................................ 113
O que mais importa é o conteúdo da decisão ................. 114
Dois conceitos de representação política ....................... 117
A quem serve a “desconstrução do país” ....................... 121
A POLÍTICA ECONÔMICA DE BOLSONARO SERIA
CONTRÁRIA AO CAPITAL FINANCEIRO? ............... 124
O CONTEÚDO DO NACIONALISMO DE
BOLSONARO ........................................................................ 130
A DEMOCRACIA EM PEDAÇOS: O PERIGO DE
GOLPE FASCISTA ............................................................... 137
O golpe de 2016 e o nascimento do movimento fascista
................................................................................................ 138

9
Os fascistas, os militares e os liberais ............................... 143
A ofensiva política fascista ................................................. 149
A TRÉGUA: CONCILIAÇÃO DA OPOSIÇÃO LIBERAL
COM O GOVERNO NEOFASCISTA ............................. 155
ENTREVISTA SOBRE A HISTÓRIA POLÍTICA
RECENTE DO BRASIL ....................................................... 159

10
POR QUE ESTE PEQUENO LIVRO?

Este livro reúne textos mais ou menos curtos


publicados em diversos jornais, revistas e sites sobre a política
brasileira contemporânea. Apresenta para um público não
acadêmico artigos sobre a crise política do impeachment,
sobre o papel de diferentes classes sociais e frações de classe
nessa crise, sobre a herança dos governos do PT, sobre a
instabilidade política que tem caracterizado há alguns anos a
política brasileira, sobre a dimensão política e social da
Operação Lava-Jato, sobre os interesses defendidos pelo
Governo Temer e pelo Governo Bolsonaro – que é aqui
caracterizado como um governo neoliberal e neofascista – e
sobre a conjuntura do primeiro semestre de 2020. Essa
conjuntura é um momento crítico da história brasileira. Ela
reuniu a crise sanitária provocada pela epidemia do novo
coronavirus e potencializada pela política negacionista do
Governo Bolsonaro; a crise econômica, que precedeu a crise
sanitária e foi por ela agravada; e a crise política, provocada
pela tentativa de Jair Bolsonaro de efetuar um golpe de Estado
para implantar uma ditadura no Brasil. Os textos iniciais do
livro, referentes à crise do impeachment e ao balanço dos
governos do PT, retomam, com formulações distintas, o
essencial de teses que desenvolvi no meu livro Reforma e crise
política no Brasil – os conflitos de classe nos governos do PT
(Coedição das Editoras da Unicamp e da Unesp, 2018). Todos
os demais textos são fruto de reflexões posteriores nas quais
faço um esforço para esclarecer os rumos da política brasileira
a partir do impeachment de 2016. Com duas ou três exceções,
11
os textos seguem a ordem cronológica de sua produção que
coincide com a cronologia da evolução dos acontecimentos.
Para facilitar ao leitor a percepção do conjunto e da unidade
do livro, alterei o título original de alguns dos textos aqui
compilados.
Faço um rápido esclarecimento dos motivos pelos
quais considero e denomino ao longo do livro o impeachment
de Dilma Rousseff um golpe de Estado. O processo de
impeachment imputou a Dilma Rousseff um suposto crime
de responsabilidade representado por uma prática fiscal
corrente nos executivos federal, estaduais e municipais do
país. O Senador Antonio Anastasia (PSDB – MG), relator do
processo de impeachment no Senado da República, foi
criticado em plenário por defender o impeachment alegando
como motivo uma operação fiscal que ele próprio, Anastasia,
tinha realizado mais de trinta vezes quando governador de
Minas Gerais. Com a esperteza e a frieza que lembra o
comportamento daqueles que vivem de expedientes,
respondeu que não era ele o réu do processo que então
relatava. E seguiu adiante. O impeachment, além de negar a
universalidade da lei, aplicando a Dilma Rousseff o que não
fora aplicado aos demais chefes de poder executivo – tanto
aos que a antecederam, quanto aos seus contemporâneos –
mudou o rumo da política econômica, social, cultural e
externa do Estado brasileiro. Foi uma ruptura da legalidade
democrática visando a mudar o rumo da política nacional.
Este livro está voltado para um público amplo, debate
com ideias presentes nas análises correntes sobre a política
brasileira e procura intervir no debate político. Alguns textos
que o integram analisam conjunturas e acontecimentos

12
específicos, enquanto outros apresentam reflexões que
possuem a pretensão de esclarecer, inclusive com breves
incursões na teoria política, temas mais abrangentes
suscitados pelas sucessivas conjunturas do período – como é
o caso dos textos que caracterizam o Governo Bolsonaro
como fascista, do texto sobre a natureza social e política da
Operação Lava-Jato e daquele que trata das relações entre, de
um lado, os conflitos institucionais que têm atravessado o
Estado brasileiro nas conjunturas recentes e, de outro, os
conflitos de interesses presentes na economia e na sociedade.
O momento político brasileiro é muito grave para o
campo democrático e popular. Espero que este pequeno livro
contribua para o debate sobre essa situação e, assim fazendo,
possa contribuir, ainda que muito modestamente, para
superá-la.
São Paulo, agosto de 2020

13
Dilma e Temer
a crise do
neodesenvolvimentismo
e o golpe neoliberal

14
A NATUREZA DA CRISE POLÍTICA DE 2015-2016

Vamos começar por um truísmo: neste mês de março


de 2016, a conjuntura política é complexa e difícil para as
classes populares e para a democracia no Brasil e na América
Latina. No caso do Brasil, em que consistem essa
complexidade e essa dificuldade? Ambas procedem,
fundamentalmente, de duas características interligadas e
definidoras da crise política atual: a ofensiva política restauradora
da direita neoliberal, que foi a iniciativa que provocou a crise
política, e a decisão do governo neodesenvolvimentista de
Dilma Rousseff de adotar uma política de recuo passivo diante
da ofensiva política da qual é vítima.
Essa ofensiva pode ser denominada restauradora
porque ela visa a restaurar, por intermédio do resgate do
programa neoliberal da década de 1990, a hegemonia no bloco
no poder do grande capital internacional e da fração da
burguesia brasileira a ele integrada. Tal ofensiva restauradora
tem como base social de apoio mais ativa a fração superior da
classe média, que tem tomado as ruas do país em
manifestações pelo impeachment da Presidenta Dilma
Roussef, e logrou, também, neutralizar ou atrair setores
burgueses e populares que, anteriormente, dispensavam apoio
político aos governos do PT. A Fiesp, que até há pouco
perfilava com os governos petistas, passou a fazer oposição à
política econômica do Governo Dilma Rousseff, e a Força
Sindical, na sequência de seus movimentos giratórios, acabou


Artigo publicado no Le Monde Diplomatique – Brasil. Edição número 104,
de março de 2016.
15
estacionando numa posição militante pelo impeachment da
presidenta. Para uma referência rápida, podemos dizer que
esse campo representa “a direita”. Porém, é preciso ter claro
quais são as classes e frações de classe social que o integram e
quais interesses elas perseguem, sem o que ficaremos
prisioneiros de uma visão superficial e distorcida da crise
política.
O recuo passivo do Governo Dilma Rousseff dificulta
a definição da estratégia dos movimentos populares na crise
atual. Se o governo resistisse à ofensiva política restauradora,
mesmo que fazendo concessões menores e táticas para dividir
o inimigo, os movimentos populares teriam um quadro mais
favorável para, em primeiro lugar, barrar o golpe de Estado
branco que ainda se encontra em marcha, uma vez que nessa
luta estariam somando forças com o governo, e poderiam, em
segundo lugar e ao mesmo tempo, lutar pela adoção de um
programa mais ambicioso de reformas, posto que as reformas
modestas da era PT estariam preservadas. Teríamos, nesse
cenário, uma continuidade, em bases novas, do quadro que se
desenhou no segundo turno da eleição presidencial de 2014:
Dilma respondeu, no discurso de campanha, à ofensiva
restauradora que a direita já então iniciara. O seu discurso e a
publicidade de TV bateram de frente com a ofensiva
neoliberal. Porém, uma vez eleita, tendo optado – e se tratou
sim de uma opção – por adotar uma política de recuo passivo,
e tendo, inclusive, dado mostras de compartilhar ideias da
oposição neoliberal, o Governo Dilma Roussef criou um
cenário novo e muito desfavorável para os trabalhadores.
Esse cenário obrigou as classes populares a lutarem –
praticamente sozinhas pois a resistência do governo e do seu

16
partido tem sido pífia – contra a tentativa de golpe de Estado
branco da direita e, ao mesmo tempo, resistirem às medidas e
às ameaças do Governo Dilma Rousseff às pequenas
conquistas dos últimos anos. A situação é de defensiva em
toda a linha.

Antes da crise

Os governos do PT, inclusive o Governo Dilma


Rousseff, expressaram e expressam os interesses
heterogêneos de uma ampla frente política que poderíamos
denominar frente neodesenvolvimentista1.
A força social hegemônica nessa frente política foi a
grande burguesia interna brasileira, que é composta pelas
grandes empresas nacionais que atuam na construção pesada,
na construção naval, no agronegócio, na mineração, em
variados ramos industriais e, inclusive, no setor financeiro.
Isso significa que a burguesia brasileira não se integrou de
maneira homogênea e geral ao capitalismo internacional. É
certo que não estamos diante de uma burguesia nacional, que
seria interessada em combater o imperialismo, mas existe sim
um setor da burguesia com base de acumulação própria, no
interior do país, que possui conflitos com o capital
internacional, mesmo que seja dependente dele. Essa fração
burguesa não criou o seu partido político. O que ela fez foi
assediar e envolver um partido político que fora criado pelos
movimentos populares para que esse partido, que é o PT, e

1Ver a esse respeito Armando Boito Jr. Reforma e crise política no Brasil – os
conflitos de classe nos governos do PT. Campinas e São Paulo: coedição
Unicamp e Unesp. 2018. [Nota de 2020]
17
principalmente os governos encabeçados por esse partido,
passassem a representar, prioritariamente, os seus interesses.
É essa prioridade, que não deve ser confundia com
exclusividade, que indica a hegemonia política.
Na década de 1990, a burguesia interna, embora tenha
se beneficiado com vários aspectos do modelo político
neoliberal, teve, também, muitos de seus interesses
contrariados pela abertura comercial e pelo definhamento do
papel do Estado e do BNDES como propulsores dos
investimentos produtivos. No final dos anos 90, essa fração
burguesa se foi se aproximando do PT e da CUT. A diretoria
da Fiesp chegou a prestar apoio oficial, público e ativo à greve
geral contra a recessão convocada pela CUT e pela Força
Sindical em junho de 19962. Com a ascensão dos governos do
PT, essa fração da burguesia foi contemplada com a
intervenção do Estado na economia para estimular, embora
dentro dos limites dados pelo modelo capitalista neoliberal, o
crescimento econômico. A política de investimentos públicos
em obras de infraestrutura – usinas hidrelétricas, desvio do
leito do São Francisco, estradas de ferro, obras da Copa do
Mundo e da Olímpiada –, a política de conteúdo local que
prioriza a compra de produtos e serviços nacionais,
protegendo parte da produção interna frente à concorrência
estrangeira, o ativismo do BNDES como financiador das
grandes empresas nacionais e as medidas anticíclicas de
política econômica diante da crise econômica internacional
formaram um contraste gritante com a abertura comercial
sem peias, com o Estado raquítico, o BNDES privatizante e

2Armando Boito Jr., Política neoliberal e sindicalismo no Brasil. São Paulo:


Editora Xamã. 1999. [Nota de 2020]
18
as medidas monetaristas ortodoxas do governo diante das
crises internacionais que caracterizaram o período FHC.
Porém, além dessa força hegemônica, a frente
neodesenvolvimentista incorporou setores importantes das
classes populares. A política neodesenvolvimentista da grande
burguesia interna fez crescer o emprego, favoreceu a luta
sindical por aumento real dos salários, e esteve ligada a uma
série de políticas sociais que atenderam alguns interesses de
distintos setores populares. Os programas de transferência de
renda, a recuperação do salário mínimo, o programa de
construção de casas populares, o financiamento da agricultura
familiar, as quotas raciais e sociais, o programa de construção
de cisternas no semiárido, a reabertura dos concursos
públicos, a expansão do ensino superior público e a facilitação
do acesso às universidades públicas e privadas, essas de outras
políticas sociais fizeram com que grande parte da baixa classe
média, do operariado, do campesinato e dos trabalhadores da
massa marginal se tornassem, de maneiras distintas, base de
apoio popular à política dos governos petistas.
A oposição neoliberal ortodoxa, capitaneada no plano
partidário pelo PSDB, vinha expressando e ainda expressa
interesses, também heterogêneos, de outro campo político.
Na cabeça desse campo, temos o grande capital internacional
e a fração da burguesia brasileira integrada, das maneiras as
mais diversas, a esse capital. O grande capital internacional se
relaciona de modos variados com a economia brasileira e a sua
vinculação a essa economia apresenta uma certa gradação: vai
desde uma relação eventual e exterior até uma relação mais
orgânica e permanente. Esse capital engloba os fundos
financeiros internacionais que especulam com títulos da

19
dívida pública, com divisas e com ações das empresas
brasileiras; as empresas industriais europeias, estadunidense e
outras que, sem plantas no Brasil, limitam-se a exportar seus
produtos para o mercado brasileiro; as seguradoras que
abriram filiais no país e, ainda mais integradas à economia
nacional, temos as empresas multinacionais do setor
produtivo, industriais e do agronegócio, que possuem plantas
e filiais no Brasil. A fração da burguesia brasileira integrada
como sócia menor ou dependente desse capital internacional
engloba as casas de importação de veículos, de confecções, de
alimentos, bebidas e tantos outros produtos; os fornecedores
de componentes para as empresas estrangeiras aqui
implantadas – como a indústria de autopeças; os capitalistas
nacionais que são sócios minoritários em empreendimentos
com o capital forâneo. É o bloco voltado para fora, o mais
interessado – embora não seja sempre o único interessado –
na abertura da economia, na redução do papel do Estado, na
privatização, na política monetarista mais rígida e no
definhamento do BNDES, enfim, no programa neoliberal
puro e duro aplicado na década de 1990. Como indicamos
acima, o principal representante partidário do capital
internacional e da fração da burguesia brasileira a ele associada
é o PSDB.
Fora do âmbito da classe dominante, esse campo
político neoliberal tem contado com o apoio militante da
fração superior da classe média – a alta classe média. Foi essa
fração da classe média que, como indicam abundantemente os
levantamentos empíricos feitos por diversos institutos de
pesquisa, que tomou as ruas das grandes cidades do país em
manifestações contra o Governo Dilma Rousseff ao longo do

20
ano de 2015 e nesse início de 2016. A alta classe média
mobiliza-se contra o governo por razões econômicas e
ideológicas e o que mais a incomoda não é a política
econômica dos governos do PT, mas, sim, a sua política social.
O alto funcionalismo público, os diretores, gerentes e alto
funcionariado das empresas privadas, os profissionais liberais
economicamente bem-sucedidos, todos esses setores
abastados da classe média têm a percepção de que são eles
quem pagam, com impostos que consideram escorchantes, as
políticas sociais voltadas para a população de baixa renda.
Ademais, veem com maus olhos a presença de indivíduos
oriundos das classes populares frequentando instituições e
locais que, antes, eram frequentados apenas pelos “bem
nascidos”. Esse mal-estar da alta classe média é visível nas
diversas redes sociais. Ademais, esse campo conservador
conta, também, com algum apoio popular. Há uma central
sindical, a Força Sindical, que ao longo do período de
governos petistas, sempre oscilou entre o
neodesenvolvimentismo e o neoliberalismo ortodoxo. Mais
recentemente, a agitação em torno da corrupção, obtida por
intermédio da ação articulada de instituições do Estado com
a grande imprensa, permitiu que o campo neoliberal ortodoxo
neutralizasse e até atraísse setores importantes das classes
populares.

A hora da crise

As divisões socioeconômicas de classe e de fração não


se reproduzem de modo exato e fixo no processo político.
Dito de outro modo, a linha que divide o campo

21
neodesenvolvimentista do campo neoliberal ortodoxo não é
reta nem rígida. É sinuosa e flexível. Um fato conhecido e
estudado é que a partir da eleição presidencial de 2006, grande
parte dos trabalhadores da massa marginal, que votavam nos
candidatos do campo conservador, bandearam-se para o lado
do PT3. A política da frente neodesenvolvimentista estava,
então, ingressando no seu período de ouro com apoio político
crescente, com a economia internacional marcada pelo
aumento de preços das commodities e com o PIB nacional
obtendo, num ou noutro ano, taxas de crescimento jamais
imaginadas nos anos 90. Os neoliberais do PSDB
encontravam-se na defensiva. A figura do ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso estava em franco declínio. Os
candidatos a cargos executivos do PSDB esquivavam-se do
ex-presidente e evitavam o seu apoio eleitoral. Nas eleições
municipais de 2012, a oposição teve péssima performance.
Foi no início de 2013 que a correlação de forças começou a
mudar.
A economia, que crescera 7,5% em 2010, permaneceu
o biênio de 2011 e 2012 com crescimento próximo de zero. A
oposição neoliberal levantou, então, a cabeça. Percebeu uma
oportunidade e retomou a iniciativa política. Elegeu o ex-
Ministro da Fazenda Guido Mantega e a sua “nova matriz de
política econômica” como inimigo principal. Os cadernos de
economia dos grandes jornais passaram a martelar na
necessidade de reduzir os gastos do Estado, acabar com as
desonerações fiscais e aumentar a taxa de juros. A Selic tinha
sido reduzida gradativamente da casa de 12,50% em julho de

3André Singer, Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras.


2012.
22
2011 para 7,25% em março de 2013. A inflação anual em
2011, 2012 e 2013 foi, respectivamente, de 6,50% 5,84% e
5,91%. O rendimento dos investimentos financeiros
aproximaram-se de zero pela primeira vez em duas décadas.
Esse ponto é fundamental. Quem provocou a crise foi
a ofensiva política do campo neoliberal ortodoxo, dirigido
pelo capital internacional e pela fração da burguesia brasileira
a ele integrada, e não a luta popular. Muitos se confundem ao
examinar esse problema. O fato de as pesquisas de opinião
indicarem que a imagem do Governo Dilma Rousseff foi
abalada em decorrência das manifestações de junho de 2013
e, desde então, nunca mais ter voltado aos patamares
anteriores àquelas manifestações, esse fato leva alguns
analistas e observadores a sugerirem que a crise política foi
provocada pelo ascenso da luta popular. Duplo engano.
Primeiro, porque apenas a primeira fase das manifestações de
junho de 2013 teve um caráter popular. Foi a fase em que o
Movimento Passe Livre (MPL) lutava contra o aumento das
tarifas de transporte. Foi a chamada Revolta da Tarifa que, de
resto, saiu-se vitoriosa. Numa segunda fase, as manifestações
diversificaram os setores sociais envolvidos, incorporaram a
alta classe média e mudaram também suas palavras-de-ordem,
substituindo a luta contra o aumento das tarifas pelo discurso
genérico contra a corrupção, pegando carona na agitação da
mídia no ano anterior, de 2012, durante a Ação Penal 470 – a
dita Crise do Mensalão. Surgiram os cartazes contra a PEC 37
e as manifestações, até então combatidas pela mídia, se
tornaram dependentes dela que passou a orientá-las contra o
governo federal. Um movimento inicialmente popular foi
apropriado pelo campo neoliberal, prolongou-se na agitação

23
contra a Copa do Mundo e desembocou no crescimento das
candidaturas neoliberais na eleição presidencial de 2014.
O que temos aí é uma articulação complexa entre dois
tipos de contradição. A contradição principal, que provocou
a crise política, que é aquela que opõe o campo da burguesia
internacional ao campo da frente neodesenvolvimentista,
articulou-se, de maneira favorável ao campo neoliberal
ortodoxo, com as contradições existentes no próprio interior
da frente neodesenvolvimentisa. A Revolta da Tarifa reuniu,
como mostram as pesquisas disponíveis, jovens de baixa
classe média, trabalhadores que, na maioria dos casos, são
também estudantes. É o setor beneficiário da política dos
governos petistas de expansão do ensino superior público e
privado e de facilitação de acesso dos trabalhadores às
universidades. Essa política, da qual fazem parte o Prouni, o
Reuni e o Fies, dobrou o número de universitários brasileiros.
Ocorre que o mercado de trabalho para os diplomados nas
universidades cresceu muito pouco. Os empregos gerados nos
governos do PT foram, devido à reativação da função
primário-exportadora da economia brasileira,
predominantemente empregos que dispensam alta
qualificação e pagam baixo salário4. Foi a frustração da
juventude de baixa classe média que se expressou na Revolta
da Tarifa e mesmo na segunda fase das manifestações de
junho5. Essa frustração, contudo, como permaneceu
politicamente acéfala, inclusive devido ao culto do

4 Marcio Pochmann, Nova Classe Média? São Paulo: Boitempo. 2012.


5 Marcelo Ridenti, “Que juventude é essa?”. Folha de S Paulo. 23 de junho
de 2013. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/06/1299690-marcelo-
ridenti-que-juventude-e-essa.shtml
24
espontaneísmo que caracteriza o MPL, pôde ser confiscada
pela reação e canalizada para o crescimento das candidaturas
neoliberais no ano seguinte.
Como indicamos acima, há contradições no seio da
frente neodesenvolvimentista. A contradição da juventude de
baixa classe média com a frente foi uma contradição nova, que
se desenvolveu conforme se expandia o estudantado
universitário sem a correspondente expansão dos empregos
para os diplomados. Mas, havia e há, também, contradições
originárias, que estiveram presentes desde o início dos
governos da frente neodesenvolvimentista. No campo das
classes populares, o movimento sindical foi muito ativo nesse
período na luta grevista e logrou obter uma melhoria geral dos
salários6. Conflitos econômicos duros ocorreram entre os
sindicatos e os grupos da grande burguesia interna. O
movimento camponês, apesar das políticas sociais que
beneficiaram os camponeses assentados, sempre esteve
insatisfeito com a drástica redução das desapropriações de
terra para a criação de novos assentamentos. No âmbito das
classes dominantes, havia e há contradições no interior da
própria burguesia interna. O mais notório é o conflito entre
os grandes bancos nacionais e o setor produtivo nacional em
torno da política fiscal e da taxa de juro. Surgiram, também,
contradições novas. O deslocamento da política energética da
prioridade para o etanol para a prioridade para o petróleo do

6 Armando Boito Jr., Andréia Galvão e Paula Marcelino, "A nova fase do
sindicalismo brasileiro", In Seminário Internacional 'Sindicalismo
Contemporâneo: 1º de maio – uma nova visão para o Movimento Sindical Brasileiro',
Campinas: Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit),
Unicamp. 2015. pp.206-223,
25
pré-sal afastou o setor sucroalcooleiro do Governo Dilma
Rousseff.
O fato é o seguinte: quando o campo neoliberal
ortodoxo iniciou a sua ofensiva política restauradora, a frente
neodesenvolvimentista vinha se esgarçando. Isso apareceu em
diversos aspectos da cena política. Acabou o apoio unânime
das grandes centrais sindicais em torno do Governo Dilma
Rousseff, o Partido Socialista Brasileiro passou para o campo
da oposição, o PMDB dividiu-se e uma entidade empresarial
da importância da Fiesp passou, como já indicamos, do apoio
ativo aos governos neodesenvolvimentistas a uma política de
oposição7.
Um ponto que mereceria uma análise à parte é o uso
político da corrupção que é feito pela oposição neoliberal. O
discurso contra a corrupção, muito usado na história política
brasileira contra os governos desenvolvimentistas como o de
Getúlio Vargas, é um discurso enganoso que ilude o
observador, esconde a verdadeira natureza da crise política e
neutraliza ou atrai setores das classes populares para o campo
da reação. A oposição neoliberal não pode mostrar para o
grande público o seu programa político real que é mais
abertura da economia, mais privatização, mais
desregulamentação do trabalho. Esse programa e suas
consequências não são bem vistos pela maioria da população
trabalhadora. Ela agita, então, um programa retórico de
combate à corrupção. Ela pode levantar essa bandeira

7Para o apoio ativo da Fiesp ao segundo Governo Lula ver Armando


Boito Jr., “Governos Lula: a nova burguesia nacional no poder”. In
Armando Boito Jr. e Andréia Galvão, Política e classes sociais no Brasil dos anos
2000. São Paulo: Editora Alameda. 2012.
26
fundamentalmente por dois motivos. Primeiro, porque o PT,
tendo abandonado a política de organização da massa
trabalhadora em núcleos de base e, consequentemente, a
política de autofinanciamento do partido baseada na
contribuição dos militantes, está envolvido, de fato, com
ampla e diversificada prática de corrupção para financiamento
de campanhas eleitorais. Em segundo lugar, a oposição
neoliberal pode agir à vontade na apuração da corrupção
porque sabe que o Judiciário, o Ministério Público e a Política
Federal são rigorosos e até abusivos na investigação da
corrupção dos políticos do governo e das grandes empresas
que integram a burguesia interna e condescendentes e
cúmplices com a corrupção dos governos e dos partidos da
oposição neoliberal. Os juízes, procuradores e delegados que
controlam aquelas instituições do Estado pertencem, eles
próprios, à alta classe média e estão engajados na luta contra
os governos do PT.

O movimento popular e a crise política

Em caso de deposição do Governo Dilma Rousseff


apenas a oposição burguesa neoliberal ortodoxa tem
condições de assumir o governo. O movimento popular
encontra-se, ainda, numa fase de luta reivindicativa e a sua luta
é segmentada. Não há programa e organização política
orientando e enquadrando as massas trabalhadoras. Nessa
situação, o principal inimigo a ser combatido é o golpe de
Estado branco preparado pelo PSDB com o apoio das
instituições estatais incumbidas de manter a ordem – Polícia
Federal, Ministério Público, Judiciário. Contudo, quanto mais
o Governo Dilma Rousseff afunda-se na sua política de recuo
27
passivo frente à ofensiva restauradora, mais o movimento
popular tem de combater a política desse governo e, portanto,
afastar-se dele. No limite, pode se tornar inviável a defesa do
governo que, nesse caso, ver-se-á isolado diante da ofensiva
da reação.
Março de 2016

28
BALANÇO DO CICLO DE GOVERNOS DO PT 

O governo Dilma Rousseff foi deposto por um golpe


de Estado parlamentar que interrompeu o ciclo de quatro
governos consecutivos do PT. A admissibilidade do processo
de impeachment venceu, em 17 abril de 2016, por 367 votos
contra 137 na Câmara Federal e o impeachment foi aprovado,
em 31 de agosto do mesmo ano, por 61 votos contra apenas
20 no Senado. Derrota acachapante do governo, ainda mais
se tivermos em conta que grande parte dos que votaram pelo
impeachment compunham, até então, a base de apoio do
governo no Congresso Nacional e que a maioria dos
deputados fez questão de justificar o seu voto recorrendo a
valores retrógrados do patriarcalismo e de um hipócrita
“combate à corrupção”.
Neste momento, setembro de 2016, e ainda no calor
da hora, devemos, nós da Consulta Popular, levantar algumas
questões. Como é que as organizações socialistas e populares
que, sem participar de tais governos, dispensaram-lhes apoio
crítico devem avaliar o período que agora se encerra? Temos
de nos precaver contra as avaliações unilaterais e precipitadas
que podem ser estimuladas pelo momento atual que é um
momento de derrota. Temos de fazer um esforço para
contemplar todos os aspectos, favoráveis e desfavoráveis ao
movimento operário e popular, e que devem ser considerados
numa avaliação séria desse período.


Artigo publicado no Caderno de Debates da organização política
Consulta Popular. Número 1, setembro de 2016.
29
Conquistas e acumulação de forças

Em primeiro lugar, não podemos nos esquecer que,


nesses governos, os trabalhadores obtiveram conquistas
materiais modestas, mas importantes. A política econômica
propiciou um crescimento econômico maior, reduziu
drasticamente o desemprego e fortaleceu o setor capitalista de
Estado e privado nacional. A política social permitiu uma
moderada distribuição da renda, maior acesso das camadas
pauperizadas a serviços públicos e equipamentos básicos –
iluminação, água, atendimento médico, moradia e outros.
Promoveu também medidas de democratização do acesso ao
ensino universitário e técnico para a baixa classe média, a
classe operária e para os trabalhadores da massa marginal e
fortaleceu a agricultura familiar. A política externa dos
governos petistas deu uma retaguarda econômica, política e
diplomática aos governos de esquerda da América Latina. A
política de reconhecimento dos direitos das mulheres, da
população negra e indígena e das minorias sexuais, embora
tímida, representou um contraste significativo com a situação
das décadas anteriores. Em segundo lugar, o fato de os
governos do PT reconhecerem o direito à reivindicação das
classes populares criou condições mais propícias para a sua
organização e para a sua luta. O movimento operário e
popular acumulou força.
Nesse período, o movimento sindical logrou uma
forte recuperação. A segunda metade da década de 1990 e os
primeiros anos da década de 2000 foram um período de
refluxo e de derrotas para o movimento sindical. No ano de
2003, quando se inicia o ciclo de governos petistas, começou

30
a recuperação. Em 2003, ocorreram 312 greves e apenas 18%
das convenções coletivas e dos acordos assinados entre
trabalhadores e patrões estabeleceram um reajuste maior que
a inflação passada. Ou seja, a enormidade de 82% dos
trabalhadores permaneceram com salários congelados ou
tiveram seus ganhos diminuídos. Após um crescimento
contínuo desses dois indicadores, chegou-se no ano de 2013
ao total de 2150 greves, um recorde histórico no Brasil, e ao
impressionante escore de 95% das convenções coletivas e dos
acordos assinados com reajuste acima da inflação passada. O
aumento real de salário tinha se tornado regra. Somente a
partir de 2015, mas, principalmente, em 2016, com o grande
crescimento do desemprego e com o comando do país
entregue ao governo Michel Temer é que essa linha
ascendente está sofrendo uma brusca inflexão.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra,
que fora sistematicamente perseguido e criminalizado durante
o segundo mandato de FHC, conquistou maior liberdade de
ação, obteve mais créditos e mercados institucionais para a
agricultura familiar, embora não tenha logrado obter um
programa de desapropriações de terra. A luta por moradia
também se fortaleceu muito e, como se sabe, produziu
resultados no plano da política habitacional. Nenhum
movimento popular, feminista, negro ou de minorias sexuais
sofreu retrocesso. As condições de organização e de luta
foram favoráveis. Superamos o refluxo da década de 1990.
Isso ficou claro na reativação da Frente Brasil Popular no
momento de resistência ao golpe parlamentar.
As organizações socialistas e populares que
dispensaram apoio crítico aos governos petistas, combinando

31
de maneira complexa o apoio a tais governos com a crítica, a
cobrança, a pressão e a luta, definiram a tática correta para
esse período. As duas outras opções, tanto a de integrar-se aos
governos petistas, quanto a de defini-los como o inimigo
principal, ambas revelaram-se prejudiciais para a luta socialista
e popular. No momento crítico do golpe parlamentar que
depôs Dilma Rousseff, o campo popular, que soube combinar
o apoio com a crítica e a pressão sobre os governos petistas,
esteve na linha de frente de resistência aos golpistas. Os
governistas demoraram muito para reagir, e quando o fizeram
priorizaram ou circunscreveram a luta no Judiciário e no
Congresso Nacional, enquanto os ultraesquerdistas
permaneceram neutros, indiferentes diante da violação da
democracia, e suas organizações entraram em crise.

Limites e debilidades

A nossa organização, a Consulta Popular, nunca


nutriu ilusões diante dos governos do PT.
Não dissemos, como pretendiam muitos petistas, que
se tratava de um governo popular ou dos trabalhadores. O
fato de tais governos não terem realizado reformas estruturais
e de aplicarem uma política econômica cujo objetivo central
foi o de fortalecer os grandes bancos e as grandes empresas
em geral é suficiente para afastarmos a hipótese de que esse
seria um governo dos trabalhadores. A lista de reformas
engavetadas é grande, mas uma singela comparação com o
neoperonismo na Argentina basta para constatarmos o
quanto os governos petistas ficaram devendo. No país
vizinho, os governos de Nestor e Cristina Kirchner puniram
32
os torturadores da época da ditadura militar e os seus
mandantes, realizaram uma reforma antimonopolista da mídia
e estabeleceram um imposto sobre a exportação de
commodities. Se fizéssemos comparações com outros
governos latino-americanos, o PT ficaria ainda pior na
fotografia.
Mas nós não caímos, tampouco, no simplismo de
identificar os governos do PT como governos neoliberais e de
afirmar que os governos petistas representariam a burguesia
no seu conjunto, ao contrário da análise das organizações
ultraesquerdistas. Com tal análise, essas organizações nunca
puderam explicar como e porque os governos do PT foram,
ao longo de todo esse período, alvo de uma persistente e ativa
oposição burguesa. Tampouco se deram conta de que
também eles, que tanto criticam toda e qualquer política de
frente com qualquer setor da burguesia, formavam, na luta
prática, uma frente política com a fração burguesa que se
opunha ao neodesenvolvimentismo e que defendia o golpe de
Estado.
Nossa tese era a de que esses governos representavam
uma fração da burguesia brasileira, que denominamos grande
burguesia interna, em conflito com outra fração importante,
essa completamente integrada ao capital internacional e que
era, esta sim, a parte da burguesia que sempre fez oposição
aos governos do PT. Se tais governos propiciaram algo às
classes populares foi porque a grande burguesia interna
apoiou-se numa frente política ampla, heterogênea e
contraditória que reuniu importantes contingentes das classes
populares – operariado, baixa classe média, campesinato e
trabalhadores da massa marginal. Numa situação como a

33
brasileira, que não é revolucionária, o movimento operário e
popular, impossibilitado que está de fazer a revolução, não
pode ignorar as divisões no seio da burguesia quando tais
divisões podem ser exploradas em proveito dos interesses
materiais e políticos das classes populares. Foi o que se fez.
Alertamos, contudo, que essa frente era instável e que o seu
prazo de validade poderia ser curto.
Foi o programa dessa frente que denominamos
neodesenvolvimentista. Salientamos que se tratava de um
desenvolvimentismo fraco quando comparado com o
desenvolvimentismo clássico e esclarecemos que se tratava do
desenvolvimentismo possível para um partido e um governo
que se recusavam a romper com o modelo capitalista
neoliberal. Aqui, cabem alguns esclarecimentos.
É preciso distinguir o conceito de modelo econômico
capitalista do conceito de política econômica e social. O
primeiro indica a unidade de certo perfil da economia com
instituições funcionais para a sua reprodução, enquanto o
segundo indica medidas de política de Estado que se inserem
dentro de um determinado modelo de capitalismo. O modelo
capitalista desenvolvimentista clássico era baseado no
intervencionismo do Estado em prol do crescimento
econômico, no estímulo à industrialização, no protecionismo
do mercado interno, e no tripé empresas estatais, empresas
estrangeiras e empresas nacionais. Foi o modelo que
substituiu a velha forma de dependência baseada na produção
agromercantil voltada para a exportação de bens primários,
instituindo uma nova forma de dependência compatível com
a industrialização capitalista do país. Dentro desse modelo,
couberam políticas econômicas e sociais distintas. Basta ver o

34
contraste entre o nacionalismo econômico do segundo
governo Vargas (1951-1954) com a política de abertura ao
capital estrangeiro industrializante do governo Juscelino
Kubitschek (1956-1961). O modelo capitalista neoliberal, que
substituiu o modelo desenvolvimentista, é baseado no Estado
mínimo, no fortalecimento do capitalismo privado, na
abertura comercial desindustrializante, na internacionalização
crescente da economia nacional e na dominação do capital
financeiro. Dentro desse modelo, também cabem políticas
distintas e foi essa possibilidade que os governos do PT
exploraram. Sem pôr abaixo os pilares do modelo, trataram
de moderar os seus efeitos necessariamente negativos sobre o
crescimento econômico e sobre a distribuição de renda.
Os governos do PT aceitaram a dominância do capital
financeiro, a política de juros elevados, a abertura comercial e
a desregulamentação do mercado de trabalho que tinham sido
legadas pelos governos FHC. Trataram, porém, de moderar
os efeitos negativos desses pilares do modelo capitalista
neoliberal sobre o crescimento econômico com o
fortalecimento do BNDES e dos bancos públicos e suas
políticas ambiciosas de financiamento das grandes empresas
nacionais, com o fortalecimento da Petrobrás, com a política
de conteúdo local para estimular a produção interna e
tomaram algumas medidas visando à formalização do
mercado de trabalho. Em resumo, todas medidas que, agora,
estão sendo minadas ou revogadas pelo governo Michel
Temer que representa a vitória do grande capital internacional
e da fração da burguesia brasileira a ele integrada.
A frente neodesenvolvimentista possuía várias
debilidades, tanto na sua cúpula como na sua base.

35
Na cúpula, a sua força dirigente era uma fração da
burguesia que, embora concorra com o capital estrangeiro na
disputa pelo mercado nacional, é, ao mesmo tempo, uma
força dependente daquele capital. Depende dele
tecnologicamente e financeiramente, pois aspira à
incorporação de tecnologia dos países centrais e conta com a
poupança externa para ampliar os seus negócios. Ademais, a
burguesia interna é uma fração burguesa atravessada por
conflitos – entre o capital bancário e o capital produtivo, entre
o grande e o médio capital e outras – e alçou voo no plano
internacional, com investimentos importantes nos países
dependentes menos desenvolvidos.
Na base popular da frente, a insatisfação cresceu
conforme caiu o crescimento econômico e a agitação sobre a
corrupção fez o resto. Grande parte dos setores populares,
mormente os trabalhadores da massa marginal, que era
beneficiado pela política neodesenvolvimentista do PT
encontrava-se desorganizado e politicamente impotente. Os
governos Lula da Silva e Dilma Rousseff entabularam com
esses setores uma relação de tipo populista, tradicional na
política brasileira, beneficiando-os do alto e sem qualquer
preocupação em transformar esse benefício em apoio político
organizado e consciente. Eles não compareceram, no
momento do golpe, para defender o governo. Outro
segmento popular, esse organizado, que esteve ausente da
resistência contra o golpe foi o movimento sindical – as
direções da CUT, da CTB e da Intersindical lutaram contra o
golpe, mas os grandes sindicatos primaram pela ausência. A
responsabilidade aqui cabe tanto ao governo, quanto ao
sindicalismo. De um lado, os governos petistas ignoraram

36
pontos fundamentais da pauta sindical – jornada de 40 horas,
fim do fator previdenciário, regulamentação restritiva da
terceirização – e, de outro, os sindicalistas brasileiros,
educados pela estrutura sindical corporativa de Estado, focam
sua ação na campanha salarial da sua categoria, descurando ou
ignorando a importância da política nacional para o seu
movimento. Como dissemos, as direções da CUT, da CTB e
da Intersindical compareceram nas manifestações contra o
golpe, mas os grandes sindicatos ausentaram-se por completo
da luta. No momento da crise política, portanto, parte da
burguesia interna bandeou-se para o lado do movimento
golpista e grande parte das classes populares assistiu de longe
e passivamente a deposição do governo Dilma Rousseff.
Por último, o Partido dos Trabalhadores e os
governos petistas não se mostraram à altura da tarefa histórica
de resistir ao golpe de Estado. Privilegiaram a luta na cúpula
do Estado capitalista – no Congresso Nacional e no
Judiciário; subestimaram o perigo representado pela
mobilização massiva da alta classe média; não organizaram a
resistência nas ruas e a presidenta Dilma Rousseff não
participou de nenhuma manifestação contra o movimento
golpista pelo menos até a admissão do processo de
impeachment pela Câmara dos Deputados, que foi o passo
primeiro e decisivo do golpe de Estado. Quando acordou, era
tarde.

O governo instável de Michel Temer e a nossa posição

O episódio da crise política que redundou no golpe


parlamentar que depôs a presidenta Dilma Rousseff não é um
37
detalhe menor. Ele representa uma tentativa de restaurar a
plataforma neoliberal da década de 1990 e está promovendo
uma desidratação da democracia brasileira. A partir de agora,
toda eleição para prefeito, governador ou presidente estará
pendente à espera do veredito dos legislativos que podem
sobrepor-se ao voto popular. É um novo tipo de degola,
semelhante à prática em uso na época da República Velha,
quando os candidatos que desagradavam a oligarquia quando
eleitos não eram diplomados. Por essas duas razões, o golpe
parlamentar, portanto, marca profundamente a política
brasileira. Ora, as organizações e os intelectuais que se
guiavam pela tese segundo a qual os governos do PT eram
governos neoliberais sem mais, que apenas dariam
continuidade aos governos FHC, essas organizações não têm
como explicar nem a crise política, nem o golpe de Estado. Se
os governos do PT fossem iguais aos governos do PSDB, por
que é que esse último organizaria um golpe contra o primeiro?
O golpe parlamentar foi o resultado de uma ofensiva
restauradora da fração da grande burguesia integrada ao
capital internacional que, apoiada na alta classe média
mobilizada pelos grandes meios de comunicação e pela
Operação Lava Jato, logrou depor o governo Dilma Rousseff
e procura agora, sob o governo Michel Temer, retomar o
programa de reformas neoliberais. O governo Michel Temer
tem futuro? Representa o início do fim definitivo do ciclo de
governos petistas?
É moeda corrente a ideia de que estaríamos
presenciando o fim do neodesenvolvimentismo e do ciclo de
governos do PT. Essa ideia pode significar duas coisas muito
diferentes. A primeira é a seguinte: o neodesenvolvimentismo

38
esgotou-se no sentido de que ele, com a derrota de 2016, não
logrará mais se recompor. A segunda significação possível
dessa tese é diferente: mesmo que o neodesenvolvimentismo
recomponha-se, não é mais do interesse das classes populares
dispensar apoio, ainda que crítico, a governos
neodesenvolvimentistas.
Examinemos a primeira significação. É certo que o
neodesenvolvimentismo tem contra si as crises econômicas
internacional e nacional, que se revelam prolongadas, e
restringem a margem de manobra para uma política de
crescimento sem rompimento com o modelo capitalista
neoliberal. O neodesenvolvimentismo sofre também o
assédio das forças conjugadas do campo imperialista e
neoliberal, a mobilização estridente da alta classe média e o
desgaste profundo daquele que foi, até aqui, seu principal
instrumento político, o Partido dos Trabalhadores. Sem
dúvida, encontrará dificuldade para se reerguer. Porém, o
campo imperialista e neoliberal não está alçando voo num céu
de brigadeiro. Esse campo chegou ao poder por intermédio
de uma manobra golpista, sem voto, e é obrigado a governar,
não com os seus representantes políticos orgânicos, que são o
PSDB e o DEM, mas com o fisiológico PMDB. O governo
Michel Temer tem hesitado muito, recuou diversas vezes, é
assediado pela Lava Jato e encontra dificuldade em manter sua
unidade interna devido às cobranças neoliberais mais
ortodoxas dos tucanos. Esse não parece ser um governo que
disponha de força para bloquear as pressões organizadas e
difusas das classes populares por distribuição de renda e
tampouco para conter a pressão pelo crescimento econômico
que virá, também, dos empresários. Seria um erro descartar a

39
possibilidade de recomposição do neodesenvolvimentismo,
seja com o PT de Lula, com o PDT de Ciro Gomes ou com
outra via.
Se o neodesenvolvimentismo se recompuser, isto é, se
o poder governamental voltar às mãos de um governo
comprometido com o crescimento econômico moderado e a
distribuição de renda modesta que é o que se pode fazer se
não se rompe com o modelo capitalista neoliberal, deveria o
movimento popular eleger esse governo como o seu inimigo
principal? Deveria entender que o neodesenvolvimentismo,
mesmo não tendo se esgotado historicamente, teria se
esgotado politicamente para as classes populares? Essa
pergunta, é claro, só pode ser respondida diante de um
governo real e específico, mas não em geral e em tese. O
neodesenvolvimentismo pode voltar ao poder com política
externa e política social mais tímidas e, num caso como esse,
o movimento popular poderá ter de reavaliar a tática que
defendeu até aqui.
O que, sim, podemos avançar é que, em primeiro
lugar, interessa ao movimento popular colocar em pé um
programa mais ambicioso que o programa
neodesenvolvimentista. Estando esse programa em crise, é
hora de fazermos avançar nossas propostas de reformas
estruturais e procurar consagrá-las num programa político que
aglutine forças mais amplas: Constituinte para a reforma do
sistema político, democratização da mídia, reforma agrária e
outras.
Não devemos, contudo, descartar, de saída, acordos
ou frentes com todo e qualquer setor da burguesia. Sobre isso,
cabem duas observações.

40
Primeiro, não é correto afirmar pura e simplesmente
que “a burguesia interna” aderiu ao golpe. As posições
políticas no seio dessa fração foram variadas. Tivemos, num
dos extremos, a atividade pública e militante da Fiesp pelo
golpe de Estado e, noutro, a posição de resistência do
segmento da construção pesada à perseguição que lhe faz a
Operação Lava Jato. A posição da Fiesp deve refletir
fundamentalmente os interesses da indústria local de
transformação cujo mercado foi invadido por produtos
importados, mormente chineses. Exceção feita ao período de
2006 a 2011, a indústria de transformação perdeu participação
no PIB. Para um governo neodesenvolvimentista, que, como
tal, não cogita romper com o modelo capitalista neoliberal, é
muito mais fácil criar nichos protecionistas nas compras
públicas, com a política de conteúdo local, do que erguer, por
intermédio da depreciação cambial ou de medidas
alfandegárias, proteção para a indústria de transformação
local. Já, a indústria da construção pesada e da construção
naval, que foram mais bem aquinhoadas com a política de
conteúdo local do neodesenvolvimentismo, esse segmento
teve uma posição diferente na crise do governo Dilma
Rousseff. A posição que parece ter predominado
considerando os diferentes segmentos da burguesia interna
foi a posição que consistiu em manter-se neutra diante da
crise, com as suas associações corporativas apresentando
reivindicações que indicavam, ora a aspiração por um governo
que retomasse o programa de reformas neoliberais, ora a
aspiração por um governo disposto a intervir na economia em
prol do crescimento econômico. Esse fato indica, inclusive, as

41
dificuldades que o governo Michel Temer deverá enfrentar
junto à classe dominante.
A segunda observação a ser feita no que respeita à
possibilidade de acordos com setores da burguesia é que a
divisão entre a burguesia interna e a burguesia associada não
é a única divisão existente na classe dominante. Há outras, e
elas se articulam de modo complexo com a divisão já citada.
No período atual, ainda é a divisão entre a grande burguesia
interna e a grande burguesia associada que tem se mantido
como contradição principal no seio da classe dominante e, de
resto, na política brasileira. Porém, as contradições
secundárias existentes na classe burguesa poderão se
desenvolver e se aguçar. Uma que interessa de perto ao
movimento operário e popular é a clivagem existente entre o
grande e o médio capital. O segmento priorizado pela política
neodesenvolvimentista foi o grande capital – é por isso que
falamos em grande burguesia interna. Um número muito
pequeno de empresas nacionais gigantes nas áreas da
mineração, da construção civil, da construção naval, do setor
bancário e do agronegócio foi o foco da política econômica
petista. É verdade que as pequenas e médias empresas não
possuem organização politicamente relevante, mas não se
pode descartar a possibilidade de vir a ocorrer um
aguçamento do conflito das pequenas e médias empresas
rurais e urbanas com as grandes empresas nacionais e
internacionais. O programa mais avançado que o movimento
popular deve elaborar para a etapa atual deve ter em mente
essa situação e procurar explorá-la politicamente.
Voltemos às exigências práticas do momento atual. O
quadro político do país está indefinido. O governo Dilma

42
Rousseff foi deposto, mas a crise política não acabou e o
governo Michel Temer ainda vive uma situação de
instabilidade. Neste momento, a luta pela deposição desse
governo é nossa tarefa central.

Setembro de 2016

43
A BURGUESIA BRASILEIRA E O GOLPE DO
IMPEACHMENT

Por que, durante a crise política de 2015-2016, a


presidenta Dilma Rousseff foi abandonada por setores sociais
que, até então, vinham se beneficiando com as políticas
implementadas por seu governo? Essa pergunta vale, dentre
outros, para o movimento sindical, para os trabalhadores da
massa marginal e, também, para boa parte da burguesia
brasileira. Ao longo das próximas semanas, vamos tentar
oferecer alguns elementos de resposta para cada um desses
casos. No texto que publicamos agora, veremos o caso da
burguesia.
Para obtermos informação sobre a posição dos
setores burgueses frente à política governamental, podemos
usar, com método e parcimônia, as reportagens da grande
imprensa, mas devemos dar especial atenção à imprensa
própria das grandes associações empresariais. A burguesia
brasileira está organizada em sindicatos oficiais, agrupados em
federações e confederações, e também em associações civis
que reúnem segmentos empresariais determinados e que têm
um papel importante na vocalização e na organização de
interesses. Coordenamos um levantamento de informações
no material publicado pela imprensa de algumas importantes
entidades empresariais durante o primeiro governo Dilma e
durante os anos da crise política. O levantamento contemplou
confederações, federações, sindicatos e associações


Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 06 de janeiro de 2017.
44
estratégicos da agricultura e da indústria – com destaque para
a Confederação Nacional da Indústria (CNI), Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Sindicato da
Indústria Naval (Sinaval), Associação Brasileira da Indústria
de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), Associação Brasileira
de Infraestrutura e Indústria de Base (ABDIB), Confederação
Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), e
Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). Partimos,
como é necessário e inevitável, de alguns conceitos prévios
relativos à burguesia e à sua relação com o Estado.
A burguesia brasileira mantém relações variadas e
complexas com o capital internacional. Não há no Brasil uma
burguesia nacional antiimperialista, mas tampouco chegou-se
a uma situação na qual todas as empresas capitalistas aqui
atuantes seriam empresas estrangeiras e empresas integradas
ao capital internacional. Temos uma fração da burguesia
brasileira, a burguesia interna, que, embora não hostilize o
capital estrangeiro, concorre com ele, disputando posições na
economia nacional e, em menor grau, também na economia
internacional. Os governos do PT representavam essa fração
da burguesia apoiados em setores das classes populares e o
golpe contra o governo Dilma foi dirigido, justamente, pelo
capital internacional e pelo setor da burguesia brasileira a ele
associado, contando com o apoio ativo da fração superior da
classe média. O fato notório e muito importante de o governo
Temer ter abandonado a política (moderadamente)
nacionalista para a cadeia do petróleo e gás – regime de
exploração, refino, fornecimento de navios, de equipamentos
pesados etc. – serve para ilustrar essa tese. Pois, bem, por que
é que a fração burguesa que vinha sendo beneficiada pelos

45
governos do PT não defendeu o governo Dilma?
A burguesia e suas frações agem premidas por
circunstâncias dadas. Elas não possuem a clareza de interesses,
a unidade política, a capacidade de organização e a liberdade
de ação que supõem muitos dos analistas de esquerda. No
caso do Brasil, a burguesia interna era representada pelo
governo organizado por um partido político que não fora
construído pela própria burguesia, mas que, justamente por
isso, teve maior liberdade para impor alguns sacrifícios à
burguesia interna, angariando-lhe com isso uma base de apoio
popular. Foi o que permitiu que os interesses maiores dessa
fração prevalecessem frente ao capital internacional e à
burguesia associada. Nascia a frente política
neodesenvolvimentista que encerrou a hegemonia exercida
pelo capital internacional e pela burguesia associada durante a
década de 1990. A leitura da imprensa das associações
empresarias permite ver que, durante os anos de crescimento
econômico, e quando ainda estava fresca na memória da
burguesia interna a estagnação e a abertura econômica radical
dos governos FHC, essa fração burguesa aceitou tais
sacrifícios – valorização do salário mínimo, transferência de
renda, reconhecimento do direito dos trabalhadores à luta
reivindicativa, expansão do serviço público etc. Os
documentos das associações empresariais não concediam
destaque à política social dos governos do PT quando
arrolavam aqueles que seriam os problemas, gargalos e
dificuldades da economia brasileira.
A situação começou a mudar a partir de 2013. Os
fatos relevantes foram o baixo crescimento econômico, a
ofensiva ideológica do capital internacional contra a nova

46
matriz de política econômica ensaiada pelo Ministro Guido
Mantega e, finalmente, o ajuste fiscal do segundo governo
Dilma. Foi nessa nova conjuntura que os sacrifícios burgueses
que garantiam o apoio popular ao neodesenvolvimentismo
passaram a ser vistos como um preço muito alto.
As associações de industriais e do setor agrícola
pesquisadas têm algumas reivindicações que aparecem de
modo recorrente ao longo de todo o segundo mandato Dilma
Rousseff e durante o período de crise. Nesse elenco de
reivindicações destacam-se dois grupos. O primeiro aponta
contra os interesses do capital internacional e financeiro,
enquanto o segundo aponta contra os trabalhadores; o
primeiro prevaleceu durante o primeiro biênio do governo,
enquanto o segundo foi ganhando destaque a partir do ano de
2013. No primeiro grupo de reivindicações recorrentes,
temos: juro baixo, câmbio depreciado, financiamento público
a juro subsidiado para os investimentos, investimento em
infraestrutura, política de conteúdo local, política industrial e
outras. No segundo grupo de reivindicações recorrentes,
temos: reforma da previdência, reforma trabalhista, ajuste
fiscal baseado na redução dos gastos sociais e no arrocho do
funcionalismo e outras. Acompanhando a imprensa das
associações empresariais, fica claro que o segundo grupo de
reivindicações vai ganhando proeminência à medida que o
período de crescimento baixo e de crise econômica
prolongava-se e que a campanha pelo ajuste fiscal pesado
ganhava força.
A burguesia interna não fez esse movimento em
bloco. Parte dela foi perseguida judicialmente, graças ao fato
de as forças articuladas do imperialismo, da burguesia

47
associada e da alta classe média terem utilizado a corrupção
como arma para isolar e mesmo destruir as empresas
nacionais de construção e engenharia pesada; parte aderiu
ativamente ao golpe – os casos mais importantes são a CNI,
a Fiesp, pelo que se pode constatar lendo a imprensa dessas
associações. A indústria de transformação encontrava-se,
desde 2011, em trajetória declinante devido à penetração dos
manufaturados chineses; parte da burguesia interna, ainda,
ficou neutra na crise – foi o caso da indústria de construção
naval que, tendo crescido a taxas de 19% ao ano, relutou em
aderir ao golpe do impeachment e hoje está em campanha
contra o desmonte da política de conteúdo local pelo governo
Temer.
A resultante, contudo, foi que se abriu uma crise de
representação. O representado, a grande burguesia interna,
não se reconhecia mais no representante, o governo Dilma –
governo que, repito, fora apoiado e aplaudido por essa fração
burguesa até pelo menos o ano de 2012. A ofensiva
restauradora do grande capital internacional e da fração da
burguesia brasileira a ele associada, apoiados na mobilização
da alta classe média, encontrou, então, caminho livre para
avançar.

Janeiro de 2017

48
OS TRABALHADORES DA MASSA MARGINAL E O
GOLPE DO IMPEACHMENT

Este artigo é o segundo de uma série na qual analiso a


debilidade da resistência ao golpe que depôs a presidente
Dilma Rousseff em 31 agosto de 2016.
No artigo anterior, também publicado no portal do
Brasil de Fato, analisamos a atuação da burguesia interna na
crise política de 2015-2016. Vimos que diferentes segmentos
dessa fração da burguesia, cujos interesses foram priorizados
pelos governos do PT, assumiram posições distintas na crise
política. A construção pesada brasileira foi designada como
alvo principal da campanha golpista promovida pelo capital
internacional, pela fração da burguesia brasileira a ele
associada e pela alta classe média, tornando as grandes
construtoras vítima da Lava Jato e colocando-as fora de
combate ainda nos capítulos iniciais da crise. Já a construção
naval e outros segmentos mantiveram-se neutros, enquanto a
indústria de transformação, com o crescimento bloqueado
pela importação de manufaturados chineses, aderiu
ativamente ao movimento golpista. Tentamos indicar, naquele
primeiro artigo, as razões dessa divisão. No presente texto,
iremos analisar a posição política dos trabalhadores da massa
marginal.
O capitalismo dependente brasileiro sempre manteve
um grande contingente de trabalhadores apenas periférica e
superficialmente integrado à produção estritamente
capitalista. A maneira específica de o capitalismo integrar o


Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 20 de janeiro de 2017.
49
trabalhador é o assalariamento para a produção e a realização
da mais-valia. Ora, os trabalhadores e trabalhadoras
domésticas, os camponeses com pouca terra, os trabalhadores
urbanos por conta própria, os camelôs, prestadores de
serviços variados, os subempregados e outros não são
assalariados em empresas capitalistas ou integram-se a essas
empresas apenas como assalariados eventuais, como
vendedores ocasionais e autônomos de mercadorias
eventualmente produzidas pelas empresas capitalistas ou, no
limite, apenas como consumidores. Estão na margem do
sistema. O modelo capitalista neoliberal e dependente fez
crescer o contingente de trabalhadores dessa massa marginal.
Como é sabido, esses trabalhadores votavam, em sua grande
maioria, nos candidatos à presidência do Partido dos
Trabalhadores. Eles formaram a principal base eleitoral de
massa dos governos do PT.
Essa relação política nada tem a ver com aquilo que
imaginam e apregoam os liberais, os seus partidos e a
imprensa comercial. Não se trata de cidadãos cuja opção de
voto resultaria da desinformação, do suposto carisma de Lula
ou do clientelismo. Os governos do PT atenderam a interesses
reais desses setores e o fizeram com uma política de massa e
não com favores pontuais em troca de apoio político, como é
próprio do clientelismo. Não custa lembrar, estamos nos
referindo ao Bolsa Família, ao incentivo ao usufruto do
Auxílio de Prestação Continuada, ao Luz para Todos, ao
Pronatec, ao Minha Casa, Minha Vida, ao Programa de
Cisternas para o Semi-árido e a outros programas de
transferência de renda e de fornecimento de bens e serviços a
setores populares que tiveram a massa marginal como

50
beneficiária principal ou importante. Os trabalhadores da
massa marginal ao descarregarem o seu voto no PT
procediam, portanto, do mesmo modo que procedem todas
as demais classes e camadas sociais: votavam no candidato
que, de algum modo e com maior ou menor amplitude,
atendia aos seus interesses.
Apesar desse elemento geral, a relação desses
trabalhadores com os governos do PT apresentava uma
particularidade. Era uma relação de tipo populista, ou, para
ser mais preciso neopopulista. Sabemos bem que esse
conceito é mal visto por grande parte dos intelectuais de
esquerda. Mas, atenção, não convém se perder em discussões
terminológicas. Já mostramos, no parágrafo anterior, que,
embora usemos a palavra populismo, não utilizamos o
mesmo conceito – ideia – de populismo que é mobilizado
pelos liberais. Para esses, o político populista obtém apoio
popular engabelando, tapeando ou até hipnotizando as
“massas incultas”. Já indicamos que na relação populista o
político deve atender, minimamente, os interesses de sua base
social. No caso do Brasil, esse interesse é a distribuição de
renda que, pelo seu caráter popular e progressista, diferencia
o populismo do bonapartismo, já que nesse último a demanda
da base social é conservadora.
Getúlio Vargas, no populismo clássico brasileiro,
apoiou-se no proletariado recém-chegado do campo e sem
experiência organizativa – a nova geração proletária que
substituía a geração de operários imigrantes europeus da
República Velha – amealhando apoio popular para a política
desenvolvimentista de industrialização. Sua arma e bandeira
foi a Consolidação dos Direitos do Trabalho, a CLT, estatuto

51
legal que, até os dias de hoje, assombra os neoliberais. No
período posterior ao regime militar, o novo sindicalismo
evidenciou que a classe operária e demais assalariados urbanos
tinham maior capacidade de organização e de luta que os
trabalhadores do período pré-1964. Lula da Silva e Dilma
Rousseff, para implantarem o neopopulismo, apoiaram-se
nos trabalhadores da massa marginal, composta por
segmentos das classes trabalhadoras com baixa capacidade de
organização e de pressão, encontrando então nesses
segmentos apoio popular para o neodesenvolvimentismo, a
política que reformou o modelo capitalista neoliberal até hoje
vigente no Brasil. A tradição populista brasileira encontrou
um novo assento e falou mais alto que as intenções iniciais
dos fundadores do Partido dos Trabalhadores que visavam,
justamente, a superar a Era Vargas pela esquerda.
Pois bem, a relação populista imobiliza politicamente
o trabalhador. Um setor social com baixa capacidade de
organização, interpelado do alto por políticos profissionais ou
governos, torna-se prisioneiro daquilo que poderíamos
denominar o culto ou fetiche do Estado protetor. Ele delega
ao Estado capitalista, cujas instituições parecem situar-se
acima das classes sociais, a função de proteger os “pobres”. É
verdade que parte dos trabalhadores da massa marginal
organiza-se e luta em movimentos pela terra e por moradia.
Essa parte esteve, de resto, ativa na resistência ao golpe.
Contudo, ela representa ainda uma pequena minoria. O
grande contingente de trabalhadores da massa marginal
ausentou-se da luta e deixou a caravana do golpe de Estado
passar. Esse contingente vê o Estado como uma entidade livre
e soberana, a qual deve tomar a iniciativa de proteger os

52
“pobres” e cuja ação independe da relação de forças entre as
classes sociais – residindo aí o motivo de utilizarmos também
a expressão fetiche do Estado.
O trabalhador da massa marginal foi de fundamental
importância para as vitórias eleitorais dos candidatos à
presidência do PT, mas ele não tem consciência clara desse
fato. Não percebe o impacto do seu voto na situação política
nacional; não percebe que se os seus interesses dependiam dos
governos petistas, esses, por sua vez, dependiam, e ainda mais,
do apoio político e não apenas eleitoral da massa marginal.
No momento da crise, quando a força e a soberania do
governo petista desmancharam-se no ar, os trabalhadores da
massa marginal não tinham condições ideológicas e nem
organizativas para saírem na defesa do governo. Os governos
Lula e Dilma e o próprio PT abriram mão de organizar essa
massa, de levá-la a superar o populismo e fazê-la ver que ela
deve depender de suas próprias forças. Não quiseram e não
puderam recorrer a ela em sua defesa.
No populismo clássico, em agosto de 1954, a
passividade política dos segmentos populares mantidos sob o
fascínio do populismo transformou-se no seu contrário e
idêntico: irrompeu nas ruas em grandes e impotentes quebra-
quebras, ataques à grande imprensa comercial e a consulados
estadunidenses. Carlos Lacerda, apavorado, fugiu para a
Bolívia. Em agosto de 2016, nem esse espetáculo de revolta e
impotência o neopopulismo nos ofereceu. Aécio Neves e
outros desfilam tranquilos pelas ruas do Rio de Janeiro e de
Curitiba. Dilma Rousseff tampouco deixou algo que
lembrasse o apelo trágico da Carta Testamento de Vargas.
Janeiro de 2017

53
AS RECLAMAÇÕES TARDIAS DA FIESP

Depois participarem do movimento golpista ou


ficarem (favoravelmente) neutros diante desse movimento,
lideranças empresariais importantes, como Paulo Skaf,
presidente da Fiesp e candidato a político profissional, e
Benjamin Steinbruch, do Grupo Vicunha, da CSN, do Banco
Fibra e 1o vice-presidente da Fiesp, vieram a público, por
intermédio de artigos seguidos, publicados no jornal Folha de
S. Paulo, fazer críticas à política econômica do governo Temer.
Paulo Skaf saiu em defesa da política de conteúdo local para
a cadeia do petróleo e gás, enalteceu, e alguns poderão
considerar que cinicamente, a política aplicada nos últimos 13
anos, e criticou a nova onda de importação de equipamentos
pela Petrobrás. No dia seguinte, Benjamin Steinbruch elevou
a crítica para um plano mais geral: o erro é o neoliberalismo
exacerbado que abre o mercado interno até num momento
em que vários países fazem o caminho no sentido oposto.
A relação das grandes empresas brasileiras, em vários
setores da economia, com o programa neoliberal de
desregulamentação de direitos dos trabalhadores, abertura
comercial e financeira e privatizações é complexa. Na década
de 1990, após apoiarem ativamente FHC, foram, aos poucos,
afastando-se do programa neoliberal e se aproximando da
plataforma neodesenvolvimentista do PT e da candidatura
Lula. Nunca apoiaram integralmente o neoliberalismo.


Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 17 de fevereiro de
2017.
54
Sempre reclamaram – a palavra é essa mesmo: reclamaram –
da abertura comercial, ou melhor, da “abertura comercial
exagerada”, enquanto apoiavam as privatizações, com as quais
grandes empresas ampliaram seu patrimônio adquirindo
estatais a preço vil, e, evidentemente, e apoiavam o corte dos
direitos sociais e trabalhistas. Quando aderiram ao programa
dos governos petistas de moderar o neoliberalismo para
estimular o crescimento econômico, tampouco aderiram sem
reservas. Sempre foram críticos ou reticentes diante do
crescimento do gasto do Estado com assistência e direitos
sociais, não pararam de criticar a carga tributária – excessiva,
segundo a burguesia brasileira – e sempre temeram o
intervencionismo excessivo na economia.
Essa posição origina uma espécie de movimento
pendular da grande burguesia interna, exatamente como já
destacaram os pioneiros na análise crítica do capitalismo
brasileiro – Florestan Fernandes, Jacob Gorender e outros. A
trajetória política foi a seguinte: na década de 1990, a
burguesia interna esteve com FHC; na década de 2000, com
o PT; e, agora, na década de 2010, iniciou um movimento de
retorno à posição política dos anos 90.
Os grandes empresários brasileiros privilegiam um ou
outro ponto da política econômica de acordo com a situação
econômica do país, com a conjuntura política e ideológica.
Recentemente, com a queda do crescimento econômico,
foram convencidos, pela luta ideológica no próprio interior da
burguesia, que o caminho seria apertar os cintos dos
trabalhadores. Os documentos e publicações da CNI, da
Fiesp, da CNA e de outras grandes associações empresariais
passaram a enfatizar, não mais a crítica à abertura comercial,

55
ao juro extorsivo ou aos estrangulamentos da infraestrutura,
mas, sim, o excesso do gasto público, principalmente da
previdência, a dita “camisa de força” dos direitos trabalhistas
e por aí embarcaram no movimento golpistas ou, como
dissemos, assumiram uma postura de neutralidade que
favoreceu o golpe.
O movimento popular deve acompanhar e analisar
esses movimentos. É motivo de revolta ver Paulo Skaf depois
de fazer o que fez para depor a Presidenta Dilma Rousseff,
vir a público reclamar do resultado de sua própria ação como
se a abertura do pré-sal fosse algo inesperado e inexplicável.
Mas, é preciso, também, notar que essas reclamações
arranham a base de apoio do governo Temer na grande
burguesia sem ter ilusões quanto ao protagonismo desses
setores burgueses na reversão do estado de coisas atual.

Fevereiro de 2017

56
O CONFLITO INSTITUCIONAL COMO CONFLITO DE
CLASSE

É público e notório que se instalou um conflito


institucional no Estado brasileiro. Ele opõe tanto o Executivo
quanto o Legislativo Federal a setores politicamente ativos do
Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal. O que
não é do conhecimento de todos é que esse conflito
institucional que atravessa o Estado brasileiro é, também e
principalmente, um conflito de classes. Os setores
politicamente ativos do Judiciário, do Ministério Público e da
Polícia Federal representam de um modo muito peculiar,
embora já verificado em outros momentos da história política
do Brasil, a alta classe média, que foi a base de apoio do golpe
de Estado que depôs Dilma Rousseff; o Executivo Federal e
as forças majoritárias no Legislativo representam a fração da
burguesia que foi a força dirigente desse golpe de Estado. A
força política dirigente do golpe, a fração da burguesia
brasileira associada ao capital internacional e interessada na
restauração do neoliberalismo puro e duro, perdeu o controle
da base de massa do golpe, cuja mobilização a burguesia
incentivou, até agosto de 2016, para poder depor a presidente
Dilma.
Os conflitos políticos envolvem classes e frações de
classe variadas e repercutem, de maneiras distintas, nas
instituições políticas e nas lutas de ideias. Parte importante do


Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 07 de dezembro de
2016.
57
pensamento socialista e de esquerda no Brasil não logra
analisar o conflito institucional atual como conflito de classe
porque restringe a observação ao conflito capital/trabalho e
descura a importância do fracionamento que divide a
burguesia e também a importância da presença política da
classe média. Até 2014, a burguesia brasileira encontrava-se
dividida diante da política econômica, social e externa dos
governos do Partido dos Trabalhadores (PT). A fração que
denominamos burguesia interna apoiava ativamente, como se
pode verificar pela consulta à imprensa das associações
empresariais, a política neodesenvolvimentista desses
governos, enquanto a fração integrada ao capital internacional
e esse próprio capital, cujos interesses eram vocalizados pelo
PSDB e por agências internacionais variadas, opunham-se a
tais políticas.
A partir de 2013, a burguesia associada, valendo-se
principalmente da oportunidade oferecida pela queda do
crescimento econômico e pela mobilização da alta classe
média contra o governo, iniciou uma ofensiva política
restauradora para derrotar o neodesenvolvimentismo e
restaurar a política neoliberal. As peripécias da crise, seus
variados componentes, fizeram com que parte importante da
burguesia interna mantivesse uma posição de neutralidade
favorável à ofensiva da fração adversária ou, inclusive,
aderisse a ela – como foi o caso patente dos industriais
paulistas representados pela Fiesp. Parte ainda da burguesia
interna foi violentamente atacada pela Operação Lava Jato e
capitulou. A correlação de forças mudou radicalmente e o
golpe de Estado foi bem-sucedido. Muitos analistas e
observadores socialistas imaginavam que, deposto o Governo

58
Dilma, o comando da Lava Jato desmobilizaria em pouco
tempo a operação. Não foi o que aconteceu. O PT é sim o
inimigo principal da Lava Jato e da alta classe média, mas não
é o seu único inimigo.
Juízes, procuradores e delegados são, ao mesmo
tempo, burocratas do ramo repressivo do aparelho de Estado
e integrantes da fração superior da alta classe média. A ação
desses agentes está, por isso, duplamente determinada. Como
agentes da ordem, insurgiram-se contra aquilo que
consideram a condescendência dos governos do PT para com
os movimentos populares. Preferem a repressão dura dos
governos tucanos – FHC, Alckmin, Beto Richa e outros.
Como segmento social e economicamente privilegiado do
funcionalismo público, têm a mesma disposição da alta classe
média contra as políticas distributivas dos governos do PT.
Até aí, falavam a linguagem do campo burguês. Ocorre que
foi a agitação contra a corrupção que uniu esses agentes do
Estado à mobilização de rua da alta classe média. Por razões
que não podemos analisar aqui, a centralidade da bandeira da
luta contra a corrupção é tradição da classe média, não do
movimento camponês ou do movimento operário. Esse tipo
de agitação moralista desse setor social é uma constante nas
crises políticas da história do Brasil republicano. A alta classe
média, convocada pelo MBL e pelo Vem pra Rua, passou a se
reconhecer politicamente na Operação Lava Jato e os
responsáveis dessa operação assumiram o papel de
representantes políticos desse setor social. Depor o governo
do PT era o objetivo principal, mas o discurso contra a
corrupção não era mera pretexto. Mesmo sem o respaldo da
mídia burguesa e mesmo contra os aliados da véspera, a alta

59
classe média, ou parte dela, não se conforma com uma postura
de acomodação e quer dar sequência àquilo que julgam ser a
moralização do Brasil.
O Governo Temer está cumprindo tudo o que
prometeu ao capital internacional e à burguesia associada, mas
há diferenças de interesses e de valores entre a alta classe
média e a burguesia. A base de apoio do golpe quer prosseguir
na luta e está criando turbulência política que não interessa em
nada à força dirigente do golpe de Estado. Essa última
pretende “estancar a sangria da Lava Jato” – para retomar a
frase dita em ligação telefônica vazada para a imprensa pelo
Senador Romero Jucá – e voltar à normalidade para impor
tranquilamente o arrocho fiscal, as novas rodadas de
privatização e de abertura da economia ao capital
internacional.
A grande burguesia, quando atiçou ao longo do ano
de 2015 e de 2016 manifestações na Avenida Paulista, em
Copacabana, no Farol da Barra e em outros logradouros de
nossas capitais, liberou forças que não está conseguindo mais
controlar. Domingo, dia 04 de dezembro, o MBL e o Vem pra
Rua realizaram novas manifestações em dezenas de cidades
do país e desta vez contra o presidente do Senado e da Câmara
Federal e em defesa do “Partido da Lava Jato”. A destituição
de Renan Calheiros da presidência do Senado na segunda-
feira por um ministro do STF foi mais uma demonstração da
sintonia fina existente entre o Judiciário e a alta classe média.
A relação é forte: representantes e representados
reconhecem-se mutuamente como tais. Até onde conseguirão
ir?
Dezembro de 2016

60
NOVIDADES SOBRE O PAPEL DA BURGUESIA NO
GOLPE DO IMPEACHMENT

Quem deu o golpe? Este dossiê está reaberto. A


pesquisa científica não para e as fronteiras do conhecido
avançam. Pesquisas recém encerradas ou ainda em curso têm
trazido novidades sobre essa matéria. A questão que colocam
é esta: onde estavam e o que fizeram as pequenas e médias
empresas na conjuntura do impeachment?
A resposta para a pergunta sobre quem deu o golpe
não parte, e não pode partir, apenas e diretamente dos fatos,
ao contrário do que supõe o empirismo radical. Tal pesquisa
depende também do dispositivo conceitual que o analista
mobiliza. Seguindo a tradição marxista, que concebe o
processo político como a resultante de um conflito entre
classes e frações de classe que, na cena política, organizam-se
em partidos e associações diversas, a pergunta sobre o papel
da burguesia no golpe de 2016 é fundamental.

Em que pé estava o debate

Não existe entre aqueles que trabalham com o


enfoque das classes sociais uma resposta consensual para a
questão sobre a autoria do golpe de 2016. Alguns entendem
que o golpe do impeachment foi uma ação do conjunto da
classe burguesa, concebida como um coletivo sem fissuras,
contra a ascensão da luta e das conquistas, ainda que


Artigo publicado no site A terra é redonda em 18 de junho de 2020.
61
modestas, das classes trabalhadoras. Pensamos que isso é
parte da verdade, mas não é a verdade toda. Outros detectam
divisões no interior da burguesia, não se satisfazem com a
ideia de uma burguesia homogênea. Uma primeira versão
dessa linha de análise, e que é a versão predominante, sem
negar que as diferentes frações da classe dominante acabaram
em boa medida convergindo no final de 2015 e início de 2016
para uma posição favorável à deposição do Governo Dilma,
afirmam que se tratou de uma ação dirigida principalmente
pelo segmento rentista da classe dominante contra o setor
produtivo dessa mesma classe social, setor produtivo que,
paradoxalmente, já que também insatisfeito com o Governo
Dilma, acabou abandonando-o. Uma segunda versão da
análise que se preocupa com o conflito de classes e que
valoriza analiticamente as divisões no interior da burguesia,
versão que desenvolvo em livro que publiquei sobre o tema
(Reforma e crise política no Brasil – os conflitos de classe nos
governos do PT, Editoras Unicamp e Unesp, 2018), sustenta
que a força dirigente do golpe foi a burguesia associada ao
capital internacional. A grande burguesia interna, fração
ao mesmo tempo dependente e concorrente do capital
internacional, e cujos interesses os governos do PT
priorizavam, acabou, também devido a insatisfações com o
Governo Dilma e com a ascensão do movimento popular, se
dividindo – uma parte defendeu Dilma até as vésperas do
impeachment, outra permaneceu politicamente neutra e uma
terceira parte aderiu ativamente ao golpe.

62
As novidades

As análises acima citadas têm os olhos voltados para a


grande burguesia. Não têm examinado de perto o
comportamento político do segmento da pequena e média
empresa que, como é sabido, é o contingente, de longe,
majoritário no universo das empresas brasileiras. Esse olhar
seletivo, voltado para as grandes empresas, em parte é
justificado. O médio capital não tem agido como força social
autônoma no processo político brasileiro. Isto é, embora
exista como força social distinta, já que tem interesses
próprios e tais interesses podem provocar efeitos
pertinentes no processo político nacional, não possui
programa político próprio, deixando, por causa disso, de
contar entre as forças sociais que mais pesam na definição
dos rumos da política brasileira. Porém, os tais efeitos
pertinentes podem ser também muito importantes. É o que
mostra a ótima dissertação de mestrado de Fernanda Perrin
defendida este mês de junho na USP e intitulada O ovo do pato
– uma análise do deslocamento político da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo. É o que estão mostrando
também as pesquisas de Felipe Queiroz Braga sobre a mesma
Fiesp e de Octávio Fonseca Del Passo sobre a construção
civil. Em todas elas, aparece a importância da presença da
média burguesia do setor industrial na política brasileira
contemporânea. De certo modo, o tema aparecera também
no livro de Danilo Martuscelli intitulado Crises políticas e
capitalismo neoliberal no Brasil (Editora CRV, 2015).
Peço licença ao leitor para falar da análise que tenho
feito da política brasileira de modo a poder esclarecê-lo sobre

63
esta minha intervenção neste debate. Nessa análise, a fração
burguesa que Nicos Poulantzas denominou burguesia
interna, eu sempre a denominei, para tratar da política
brasileira contemporânea, grande burguesia interna e
considerei essa fração burguesa como a fração hegemônica
nos governos encabeçados pelo PT. Isso quer dizer que as
políticas econômica, social e externa desses governos, sem
excluir os interesses das demais frações burguesas e inclusive
da burguesia associada e do próprio capital internacional,
priorizaram os interesses daquela fração. Eu combino dois
sistemas de fracionamento ao falar de grande burguesia
interna. O fracionamento pelo porte do capital – trata-se do
grande capital – e o fracionamento pela origem do capital – é
o capital nacional, embora não seja uma burguesia nacional
antiimperialista. Ocorre que, se faz sentido falar em grande
burguesia interna, é porque, e somente porque, deve existir
uma média burguesia interna.
No primeiro capítulo do meu citado livro, eu formulei
a seguinte ideia. A política econômica neoliberal estabelece
uma hierarquia no interior do bloco no poder. Ela privilegia,
no que respeita à função do capital, o capital financeiro; no
que respeita ao porte das empresas, o grande capital; e no que
respeita à nacionalidade, o capital estrangeiro e associado.
Concluía que no topo da hierarquia desse bloco no poder
encontrava-se o capital financeiro internacional, e na sua base,
o médio capital produtivo nacional voltado para o mercado
interno. Entre o topo e a base dessa hierarquia distribuíam-se
outras combinações desse fracionamento (Reforma e crise política
no Brasil – p. 51). Há um médio capital bancário na posição
intermediária. O pesquisador Ary Minella, pioneiro no estudo

64
político dos bancos, mostrou que no Governo FHC cerca de
200 bancos de médio e pequeno porte foram à falência. É
preciso, como mostra Francisco Farias em um ensaio teórico
intitulado “Frações burguesas e bloco no poder”, publicado
na revista Crítica Marxista n. 28, chamar a atenção para o fato
que os sistemas de fracionamento – função do capital, seu
porte, sua origem e outros – se cruzam o que indica a
complexidade que é a análise do bloco no poder. Contudo,
voltando ao que eu dizia sobre o meu próprio trabalho, eu não
pesquisei o comportamento político desse segmento burguês,
a média burguesia interna e ignorava, até pouco tempo,
pesquisas mais sistemáticas que o tivessem feito. As pesquisas
acima citadas trazem novidades importantes justamente sobre
isso e podem exigir da parte nossa, todos os que pesquisamos
a política brasileira como resultado de um conflito de classes
e frações de classe, acréscimos ou retificações, maiores ou
menores, na nossa análise.

O médio capital no golpe de Estado de 2016

O que mostra a dissertação de Fernanda Perrin? Ela


argumenta, e até que novas pesquisas demonstrem o contrário
a argumentação é convincente, que a Fiesp sob a gestão de
Paulo Skaf está apoiada, fundamentalmente, no médio capital,
isto é, nas pequenas e médias empresas industriais que são
empresas de capital nacional – explico logo abaixo porque
prefiro dizer “está apoiada” e não que “representa” esse
médio capital. O argumento de Felipe Queiroz Braga é o
mesmo. Ambos pesquisadores realizaram numerosas
entrevistas com diretores da Fiesp, de sindicatos que integram
65
essa federação e com dirigentes de pequenas e médias
empresas. Mostraram, inclusive, a insatisfação dos pequenos
e médios empresários com aspectos importantes da política
econômica dos governos do PT. Em destaque, a insatisfação
desses pequenos e médios empresários com a política de
financiamento do BNDES focada nos chamados “Campeões
Nacionais”, que, como a própria expressão indica, designa um
seleto grupo de empresas brasileiras grandes e poderosas. As
consequências dessa descoberta são importantes.
O inefável Paulo Skaf quando mobilizou a Fiesp
contra o Governo Dilma fazia-o, é o que argumenta Fernanda
Perrin na sua dissertação, representando, afirma ela, as
pequenas e médias empresas e não na grande burguesia. Os
grandes empresários, diferentemente, teriam hesitado muito
em aderir à campanha do impeachment, tanto grandes
empresários do setor produtivo, quanto grandes empresários
do setor bancário. Fernanda Perrin, cuja dissertação logo
estará disponível no repositório de teses da USP, mostra isso
utilizando reportagens da imprensa e entrevistas que realizou.
André Flores, em dissertação de mestrado defendida na
Unicamp (Divisão e reunificação do capital financeiro – do
impeachment ao Governo Temer), tinha mostrado que o
capital bancário nacional manteve o seu apoio ao Governo
Dilma até fevereiro de 2016. Temos, então, dois
comportamentos políticos distintos num momento crucial da
história política do Brasil: o médio capital industrial e
nacional, segmento do qual se poderia esperar um
comportamento mais progressista, assumiu uma posição mais
conservadora que o grande capital produtivo ou bancário
nacional. Tal fato enseja muitas reflexões.

66
A primeira delas é a seguinte: isso significa, então, que
o golpe do impeachment foi uma ação vitoriosa da média
burguesia interna contra a grande? Uma vitória das
pequenas empresas brasileiras contra o grande capital nacional
ou estrangeiro? A dissertação de Fernanda Perrin sugere essa
tese em inúmeras passagens. Na banca de defesa de sua
dissertação, ela esclareceu que não era essa a sua intenção. Mas
a questão permanece: qual foi o papel político do médio
capital? Penso que nesse ponto, que é crucial para entender os
interesses envolvidos naquele golpe, devemos fazer intervir os
conceitos de força dirigente e de força motriz de um
processo político qualquer. Mao Zedong elabora esses
conceitos discorrendo sobre os processos revolucionários. A
força dirigente é a classe social ou a fração de classe que logra
impor os objetivos políticos da luta e a força motriz é a classe
ou fração que fornece os quadros e os ativistas para tal luta –
Mao distingue ainda a força motriz principal que é aquela
que fornece a maioria dos quadros e dos ativistas. Pois bem,
tenho para mim – e até segunda ordem porque a pesquisa e as
descobertas não param... – que a força dirigente do
movimento golpista foi sim o capital estrangeiro e a burguesia
associada que procurou, depondo o governo da frente política
neodesenvolvimentista capitaneada pela grande burguesia
interna, restaurar a hegemonia política que usufruíra na
década de 1990. Porém entre as força motrizes desse golpe
contou, a julgar pelas pesquisas que estou comentando, o
médio capital, além das frações abastada e remediada da classe
média, organizadas em movimentos como o Vem pra Rua e o
Movimento Brasil Livre (MBL). O golpe não representou uma
vitória do médio contra o grande capital. Na verdade, o

67
grande capital internacional e a grande burguesia associada
instrumentalizaram politicamente a insatisfação do médio
capital nacional, jogando-o contra o grande capital também
nacional.
Uma questão, ainda relacionada com o problema da
força dirigente do golpe, ficou em aberto. Refiro-me ao
seguinte. Paulo Skaf apoiou-se no médio capital, mas não
apresentou um programa positivo de defesa dos interesses
dessa fração burguesa. Esse é também um ponto sobre o qual
essas novas e excelentes pesquisas precisariam refletir. Paulo
Skaf aliou-se ao vice-presidente Michel Temer e defendeu,
junto ao empresariado, o programa do MDB Uma ponte para o
futuro. Ele só poderia ser considerado um representante
orgânico do médio capital, se tivesse organizado um programa
político específico representando os interesses desse
segmento. Mas não foi isso que aconteceu. Ele, segundo
minha avaliação, apenas se apoiou na insatisfação do médio
capital. É por isso que estou usando a palavra apoio e não
representação. Esse é outro ponto para mais reflexão e
pesquisa.
É uma ironia da história: o segmento politicamente
mais conservador do capitalismo brasileiro, o grande capital
estrangeiro e a burguesia associada, atacou o governo do PT
“pela esquerda”. Ou seja, exploraram os privilégios
concedidos aos grandes capitalistas para atiçar o médio capital
nacional contra o grande, fazendo, paradoxalmente, passar a
sua proposta reacionária de mais abertura e mais
internacionalização da economia brasileira. Cabe lembrar
inclusive que mais de um integrante das equipes
governamentais de Temer e de Bolsonaro, diretores do

68
BNDES e do Banco do Brasil, valeram-se do fato de os
governos do PT terem privilegiado o grande capital nacional,
para proferirem um discurso demagógico de defesa dos
pequenos e médios empresários. Discursaram em defesa “dos
pequenos que mais necessitam de crédito” – em defesa do
“seu Manoel da padaria” disse um deles – contra os
privilegiados “campeões nacionais”. Enquanto faziam esse
discurso demagógico vendiam e entregavam o que resta de
nacional na economia brasileira.
Podemos verificar que essas novidades introduzem
mais um ponto para o balanço dos governos do PT: a
esquerda pode sim, penso eu, e de maneiras específicas que
não cabe discutir aqui, defender empresas nacionais frente a
empresas estrangeiras, mas não pode atrelar-se aos interesses
do capital monopolista contra os interesses do médio capital.
Esse procedimento inverteu tudo aquilo que o movimento
comunista latino-americano e europeu tinham estabelecido
sobre a questão das alianças de classe possíveis e desejáveis
nas primeiras etapas da revolução.

Junho de 2020

69
A OPACIDADE DO PROCESSO POLÍTICO E AS
FACETAS OCULTAS DA LAVA-JATO

Diversos atores institucionais vinculados, de modos


complexos e distintos, a diferentes interesses de classe e de
frações de classe, convergiram para a criação e o apoio à
Operação Lava-Jato: a burocracia do aparelho de Estado, o
Departamento de Justiça dos Estados Unidos, os movimentos
da alta classe média (Vem pra Rua, MBL, Revoltados Online
etc.), a grande imprensa e outros. Nenhum deles agiu de
maneira aberta e transparente no processo político e, entre os
próprios aliados congregados na organização e na sustentação
da operação, nem sempre os objetivos de cada um estavam
claros para os demais. É por isso que a análise do cientista
político pode revelar muita coisa ainda sobre a Lava-Jato. Falo
de um tipo de revelação de natureza diferente daquela que
consiste em trazer à luz fatos até então desconhecidos, como
vem sendo feito pelas excelentes reportagens do jornal
Intercept.

A intransparência do processo político

Na análise do processo político, processo que é uma


sequência determinada de acontecimentos encadeados
oriundos de conflitos de interesses e de valores os mais
variados, nessa análise, o observador deve sempre ter em


Artigo publicado no Le monde diplomatique – Brasil. Edição número 146
de setembro de 2019.
70
mente que os atores, no mais das vezes, atuam nas sombras
ou mascarados. Em primeiro lugar, dizemos que os atores
atuam “nas sombras”, porque parte muito importante do
processo decisório tem lugar nos corredores e gabinetes da
burocracia de Estado, longe dos olhos do público.
Reportagem da revista Carta Capital acaba de revelar a
ocorrência de reuniões – secretas como geralmente são as
reuniões dos organismos burocráticos – da cúpula das Forças
Armadas com a presidência do STF para assegurar que Lula
da Silva não participaria das eleições de 2018. Sabia-se do
famigerado twite do general Eduardo Villas Bôas em abril de
2018 enquadrando o STF na véspera do julgamento de habeas
corpus do ex-presidente. Começa-se a saber agora que a
interferência das Forças Armadas no processo eleitoral foi
algo muito mais amplo. Para usar um clichê: e essa é apenas a
ponta do iceberg. Em segundo lugar, dizemos que os atores
atuam “mascarados”, porque a grande maioria deles não é o
que parece ser. Estamos nos referindo aos dirigentes dos
partidos políticos, principalmente dos partidos burgueses, aos
burocratas do Estado envolvidos em decisões políticas, aos
órgãos da grande imprensa que funcionam como
representantes políticos de interesses minoritários na
sociedade e a outras organizações que intervêm na política
nacional. E não são o que parecem ser por sólidas razões.
Numa sociedade, como a sociedade capitalista, onde, a
despeito das enormes desigualdades de classe, todos os
indivíduos são considerados iguais como cidadãos e aptos a
algum tipo de participação política, nesse tipo de sociedade,
os grupos minoritários, cujos interesses estão em conflito com
as necessidades da maioria, esses grupos necessitam esconder-

71
se e/ou mascarar os seus interesses, apresentá-los com vestes
universalistas – não particularistas e egoístas como realmente
são – se quiserem convertê-los em interesses aparentemente
gerais. Os rentistas jamais dirão que a taxa de juros deve ser
alta para que eles ganhem muito dinheiro, mas sim para evitar
– é o que sustentam com base em argumentos econômicos
contestáveis – o retorno da inflação em prejuízo de toda a
“coletividade”. O processo político na sociedade capitalista é
necessariamente intransparente.
Nada disso significa que os atores do processo político
sejam mentirosos contumazes que manipulam os fatos e as
versões ao seu bel prazer para enganar o público. Foi por essa
razão que usei a palavra “mascarados” entre aspas.
Rigorosamente falando, não caberia a comparação com um
folião que se fantasia para o carnaval, isto é, que escolhe livre
e conscientemente um personagem e o encarna por uma
breve ocasião. Não. As vestes dos personagens do processo
político estão coladas na pele e na mente dos atores que as
portam, de tal modo que eles próprios acreditam, no geral,
que são aquilo que parecem ser. Dizemos “no geral” porque
é verdade que eles podem mentir, manipular e agir
hipocritamente. Porém, quando agem assim, fazem-no no
“varejo”, não no “atacado”. Explico. Existe a hipocrisia.
Quando o juiz Sergio Moro enviava mensagens pelo Instagram
aos procuradores coordenando a investigação e instruindo a
acusação contra os réus diante dos quais ele deveria se portar
como parte terceira e neutra, Moro, embora soubesse que
estava burlando as regras do direito, procurava manter,
hipocritamente, a aparência pública de imparcialidade.
Contudo, e isso faz diferença, por trás de uma mentira

72
consciente sempre há um princípio, valor ou objetivo que o
mentiroso e o hipócrita julgam nobre e com o qual eles
justificam para si mesmo a sua ação. É por isso que afirmamos
que mentem no varejo. Juízes e procuradores da Operação
Lava-Jato acreditavam que a sua ação ilegal era legítima
porque estava a serviço daquilo que seria um bem maior: a
suposta função do Judiciário e do Ministério Público de
“combater a corrupção em defesa do interesse geral do país”.
Portanto, a crença na existência de uma função pública, e não
de classe, do judiciário, bem como a crença na existência de
um suposto “interesse geral do país”, que estaria acima dos
interesses de classe, essas crenças ideológicas estão na base da
ação dos burocratas do Estado. O analista precisa, então,
tomar essa crença em consideração, não pode supor que ela
seja um fingimento para iludir o público, mas deve ir além
dela, deve, analisar a coerência de tais discursos ou suas
eventuais contradições, cotejar esses discursos com a prática
e examinar a coerência dessa prática. Sem lançar mão de
imputações arbitrárias, o analista do processo político tem de
detectar quais são os verdadeiros, e muitas vezes ocultos,
motivos últimos da ação dos personagens, os fins que, muitas
vezes inconscientemente, eles próprios perseguem. A tese da
teoria política marxista a esse respeito é que apenas o
movimento operário socialista e a análise científica podem
romper com esse jogo de sombras e lançar luz sobre os
subterrâneos do processo político.

73
O lugar da corrupção para a classe média

Voltemos à Lava-Jato. Segundo o que diziam os


apoiadores ativos dessa operação, em sua grande maioria
pertencentes à fração superior da classe média, setor social
abastado e preconceituoso, tal operação visava a combater a
corrupção. Era o que diziam. No entanto, eles lançaram e
organizaram, por intermédio de movimentos como o MBL, o
Vem pra Rua e outros, a campanha pelo impeachment de
Dilma Rousseff, sabendo que o resultado de tal campanha
seria a ascensão à Presidência da República de um notório
corrupto como Michel Temer. A prática negava o discurso.
Esse discurso seria, então, mero disfarce, uma máscara de
ocasião? Ele era sim uma máscara, mas não ocasional. É
possível demonstrar que a classe média, e notadamente a sua
fração superior, estava muito incomodada com a política
social dos governos do PT. Muitas e variadas manifestações
nos ambientes de trabalho, nos ambientes domésticos e nas
redes sociais evidenciavam esse incômodo – o inconformismo
com o Bolsa Família, as famigeradas mensagens sobre
aeroportos que se pareciam com rodoviárias, os comentários
sobre a presença indesejada de populares em laboratórios de
exames clínicos e em hospitais, as referências ofensivas e
preconceituosas aos brasileiros da Região Nordeste, as críticas
à extensão dos direitos trabalhistas às empregadas domésticas
etc. A hipótese que se pode levantar é que esse inegável
incômodo foi o motivo principal da revolta da alta classe
média contra os governos do PT. A luta contra a corrupção
foi um motivo de menor importância e se foi colocado em
primeiro plano no discurso da campanha pelo impeachment

74
foi porque o motivo principal, se proclamado abertamente em
manifestações coletivas públicas, isolaria politicamente o
movimento, enquanto a luta contra a corrupção,
diferentemente, poderia obter algum apoio popular para a
deposição de Dilma. Apresentar o secundário como sendo o
principal é uma manobra que os segmentos sociais podem
fazer instintivamente, sem a necessidade de discussão
consciente, para conferir uma aparência universalista às suas
demandas.
Continuemos destacando agora um fato histórico e
geral: colocar o discurso contra a corrupção no centro é algo
muito característico dos movimentos de classe média; o
movimento operário e o movimento camponês nunca fizeram
desse discurso algo central em suas lutas. Por que essa marca
de classe? Essa é uma questão complexa e deve ser tratada em
dois níveis. Num primeiro nível, podemos dizer que os
movimentos das classes trabalhadoras, entre os quais se inclui
os movimentos de classe média, tendem a se opor à corrupção
porque veem nela uma forma de parasitismo. Porém, num
segundo nível, a situação particular da classe média faz com
que ela, primeiro, dê importância maior à questão da
corrupção e, segundo, acrescente à ideia de parasitismo uma
ideia específica, de classe média. Vejamos.
A ideologia e, portanto, os interesses da classe média
são feridos de maneira especial pela prática da corrupção ou,
mais exatamente, pelo fato de o grande público tomar
conhecimento da prática da corrupção. Explico. A classe
média depende, para justificar a situação privilegiada que
ocupa frente ao trabalhador manual, da aceitação pela
sociedade da imagem do Estado como uma instituição

75
pública, acima dos interesses particularistas de classe. Tal
imagem é o terreno no qual a ideologia meritocrática, aquela
que justifica as vantagens econômicas e sociais dos
trabalhadores de classe média frente aos trabalhadores
manuais, pode vicejar. As posições e profissões privilegiadas
são ocupadas, diz a ideologia meritocrática, por aqueles que
têm mais dons e méritos. Venceram os de menor mérito e
venceram numa competição justa, pois as regras e as
instituições são públicas e iguais para todos. Dito de outro
modo, para que a ideologia meritocrática possa legitimar as
vantagens econômicas e sociais usufruídas pela classe média
frente ao trabalhador manual é preciso que o Estado apareça
como o garantidor da neutralidade e da igualdade na disputa.
A escola, os concursos públicos, a atuação da justiça, tudo
deve parecer público, socialmente neutro, garantindo uma
disputa justa entre os cidadãos por educação, emprego e
justiça. A corrupção fere essa imagem do Estado e a defesa
dessa imagem é a motivação específica da classe média para
se indispor com a corrupção – e muitas vezes é também a
motivação principal. Não se trata apenas de uma revolta de
trabalhadores contra parasitas que ocupam o Estado para
obter vantagens pessoais. Trata-se também da indignação da
classe média contra aqueles que mancham a imagem pública
do Estado. Logo, além de apresentar o secundário no lugar do
principal, isto é, a luta contra a corrupção no lugar da luta
contra a ascensão das classes populares, os personagens dessa
cruzada contra a corrupção mascaravam os seus interesses
egoístas de classe – defender a ideologia meritocrática e os
interesses que ela legitima – com um discurso moralista e
aparentemente altruísta.

76
O imperialismo, a burguesia e a burocracia de Estado

Mas a Lava-Jato não foi apenas obra da classe média.


O Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal, a grande
mídia e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos
também foram atores importantes dessa operação. E a ação
desses outros atores tampouco era transparente.
O Departamento de Justiça agiu nas sombras. Apenas
algum tempo depois de iniciada a operação é que o
jornalismo, ou melhor, o que sobrou de bom jornalismo e
que, hoje, muito se assemelha à atividade de espionagem, foi
revelando o amplo envolvimento dessa agência do Estado
estadunidense com a operação. Sociólogos e jornalistas têm
mostrado que o imperialismo estadunidense vem fomentando
há anos a formação de uma rede de instituições internacionais
que se apresentam como organizações de combate à
corrupção e que, na verdade, funcionam como organizações
para acuar governos incômodos ao redor do mundo8. No caso
brasileiro, os convênios entre os judiciários brasileiro e
estadunidense, a formação de quadros e o fornecimento de
informações para a Lava-Jato contribuíram decisivamente
para o sucesso da operação. O resultado foi não apenas a
destruição da construção pesada e da engenharia brasileira que
monopolizavam o mercado de obras públicas no Brasil e
concorriam no mercado internacional com as empresas
estadunidenses e europeias, como também a asfixia da
Petrobrás e a abertura da exploração do petróleo da camada

8 Ver o estudo de Peter Bratsis “A corrupção política na era do capitalismo


transnacional”. Revista Crítica Marxista, n. 44. Pp. 21-42.
https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/
77
do pré-sal às petroleiras internacionais. A Operação Lava-Jato
funcionou, ademais, como instrumento político para a
burguesia associada brasileira minar a hegemonia da grande
burguesia interna no bloco no poder. Assim, os burocratas de
Estado – desembargadores, juízes, procuradores e delegados
– agiram em nome de interesses variados. Mantinham relação
de representação política com a alta classe média da qual, de
resto, faziam parte, e, ao mesmo tempo, representavam os
interesses do imperialismo estadunidense e da fração da
burguesia brasileira associada ao capital internacional. No
primeiro caso, agiram para bloquear a pequena ascensão social
das camadas de baixa renda; no segundo caso, para abrir ainda
mais a economia nacional ao capital estrangeiro. Nenhum
desses resultados foram ou são apresentados como objetivos
dessa operação.
As instituições do Estado têm um modo de
funcionamento complexo. Elas estão limitadas por regras e
valores próprios de cada uma delas e, ao mesmo tempo,
acabam se vinculando, ou sendo capturadas, por diferentes
segmentos da classe capitalista que disputam entre si o
controle da política de Estado. Desse modo, aquilo que
aparece à primeira vista como um simples conflito
institucional, por exemplo, entre o Judiciário e o Legislativo
ou entre esse último e o Executivo, não é, na verdade, sequer
principalmente um conflito institucional, mas sim um conflito
entre interesses econômicos e sociais que o conflito
institucional representa e ao mesmo tempo dissimula.
A burguesia é a classe dominante nas sociedades
capitalistas, mas ela não é um bloco homogêneo sem fissuras.
Ela pode se dividir, no que respeita aos seus interesses

78
econômicos de curto prazo, em frações, isto é, em partes da
classe burguesa que se organizam em busca de interesses
econômicos específicos e em disputa com os interesses
específicos de outras frações. Um dos sistemas de
fracionamento da classe burguesa é a relação que as empresas
capitalistas de um país como o Brasil entretêm com o capital
internacional. Há segmentos burgueses perfeitamente
integrados ao capital internacional e outros que apresentam
conflitos moderados com esse capital. Temos denominado o
primeiro segmento de burguesia associada e o segundo de
burguesia interna. Na luta entre si, essas diferentes frações da
burguesia brasileira capturaram diferentes instituições do
Estado9. A grande burguesia interna, que pretendida durante
os governos do PT estabelecer alguns limites, ainda que
tímidos, à penetração do capital estrangeiro no Brasil,
capturou, por exemplo, grandes empresas estatais como o
BNDES e a Petrobrás. Tal captura permitiu-lhes obter
financiamento farto e a juros subsidiados e a estabelecer uma
reserva de mercado para a construção pesada e a construção
naval brasileira – a famosa política de conteúdo local. O
capital internacional e a grande burguesia associada
capturaram, juntamente com a alta classe média, o sistema de
justiça – judiciário, ministério público, polícia federal. Essa
captura, possível em grande medida devido ao pertencimento
de desembargadores, juízes, promotores e delegados à alta
classe média, permitiu o desmonte de segmentos inteiros da
economia controlados pela grande burguesia interna, da

9Desenvolvi essa análise no meu livro Reforma e crise política no Brasil – os


conflitos de classe nos governos do PT. São Paulo e Campinas: Editoras
Unesp e Unicamp. 2018.
79
política neodesenvolvimentista dos governos do PT e, passo
a passo, poderá levar ao desmonte da própria democracia no
Brasil.
A Operação Lava-Jato teve grande impacto no
processo político brasileiro e os interesses por ela
representados mantiveram-se ocultos para a grande parte da
população. Hoje, tendo ela cumprido o papel de alterar o
bloco no poder no Brasil, permitindo a constituição da
hegemonia do capital internacional e da fração da burguesia a
ele associada, essa operação encontra-se sob ataque tanto das
forças progressistas que foram as suas principais vítimas,
quanto dos partidos e lideranças do campo conservador, onde
abunda a corrupção. Os seus dirigentes, como Moro e
Dallagnol, outrora tão poderosos têm, hoje, um futuro
incerto. Podem ser tragados pela crise como o foram Aécio
Neves, Eduardo Cunha, Michel Temer e tantos outros.

Setembro de 2019

80
POR QUE O GOVERNO TEMER É UM GOVERNO
INSTÁVEL?

A revelação do encontro secreto, ocorrido em março


de 2017 no Palácio do Jaburu, entre o presidente Michel
Temer e o empresário Joesley Batista, proprietário do Grupo
JBS, e o pedido de Michel Temer para que o empresário
continuasse pagando propina ao Deputado Eduardo Cunha
de modo a evitar que esse fizesse uma delação premiada,
revelação teve o efeito de uma bomba na política nacional. O
governo Michel Temer balançou, embora ainda não tenha
caído. É um governo instável. Para entender o que está
ocorrendo, é preciso desvencilhar-se de ideias correntes que
são verdadeiros obstáculos no caminho da compreensão do
momento atual: a) a ideia de que a “direita”, essa noção
genérica, vaga e imprecisa, seria um campo unificado, b) a
ideia de que a burguesia seria uma classe homogênea e com
poder de controlar todo o processo político, c) a ideia de que
o Estado seria um instrumento passivo nas suas mãos e, ainda,
d) a ideia segundo a qual os conflitos de classe oporiam apenas
dois polos – o “capital” e o “trabalho”.
O governo Michel Temer foi concebido pela força
dirigente da oposição ao governo Dilma Rousseff como um
governo que deveria restaurar a hegemonia do capital
internacional e da burguesia associada. Como é sabido, ele
tem tomado muitas medidas e elaborado planos nessa direção:
desnacionalização do pré-sal, desnacionalização da cadeia


Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 20 de maio de 2017.
81
produtiva do óleo e gás, desnacionalização das terras, dos
aeroportos, do Aquífero Guarani e outras. Porém, o governo
Michel Temer não está conseguindo, a despeito de tudo fazer
para atender os interesses internacionais e também os
interesses manifestos do conjunto da classe burguesa, como
são os casos da reforma trabalhista e previdenciária, esse
governo não está conseguindo, dizíamos, estabelecer
hegemonia alguma, já que a hegemonia pressupõe um
governo minimamente estável, coisa que esse governo não é.
Qual força social está desestabilizando o governo
Michel Temer? É certo que o fato de ele não ter sido eleito e
também o fato de ser contestado pelo movimento sindical e
popular minam sua base de sustentação. A greve geral de 28
de abril passado, embora não tenha atingido o nível de uma
“greve argentina”, foi um protesto amplo e importante. Deve-
se acrescentar a isso um fator de importância menor mas que
também conta. Segmentos da burguesia interna têm, ainda
que moderadamente, se oposto a algumas medidas de política
econômica do governo – as empresas da cadeia de petróleo e
gás acionaram a justiça contra o desmonte da política de
conteúdo local e grandes empresas nacionais já estão
protestando contra o impacto do ajuste fiscal na política de
financiamento do BNDES. Contudo, a falta de legitimidade,
o protesto sindical e popular e insatisfações localizadas da
grande burguesia interna tornam o governo vulnerável, mas
não são o elemento ativo da instabilidade governamental. O
elemento ativo é outro: a ação do sistema de justiça (PF, MPF
e Judiciário) contra os integrantes do Executivo Federal e de
sua base aliada no Congresso Nacional. É verdade que esse
sistema usou e usa politicamente o combate à corrupção para

82
combater o PT, que é o seu inimigo principal. Mas esse
sistema quer também combater a corrupção, mesmo aquela
praticada por outros partidos. Definem o inimigo principal,
escalonam prioridades, concentram-se sobre um ou outro
alvo de acordo com o momento, enfim, fazem cálculos
políticos táticos, como toda e qualquer força que intervém no
processo político – e ao fazer isso agem como grupo político
e embora esse comportamento contrarie as normas do direito
Esse sistema de justiça teve muitos dos seus
integrantes treinados pelo Departamento de Justiça dos EUA,
recebeu informações privilegiadas dessa mesma instituição e
foi estimulado a dar um combate sem tréguas à grande
burguesia interna e ao PT. Mas, não fez isso como
instrumento passivo nas mãos do imperialismo. Ele tem uma
base social própria na alta classe média, base que se reconhece
nele, sai às ruas quando é por ele interpelada, e, de sua parte,
esse sistema tem consciência clara de que tal base social é o
seu maior trunfo político. Dito de outro modo, o que está
desestabilizando o governo Michel Temer é que a força
dirigente do golpe do impeachment perdeu o controle da sua
base de massa. O capital internacional e a burguesia associada,
que, após atrair grande parte da burguesia interna e estimular
a mobilização da alta classe média, chegaram ao poder com
Michel Temer, perderam o controle da base de apoio do
golpe. A frente golpista rachou e o estabelecimento de uma
nova hegemonia ficou comprometido.
A maior parte dos setores ativos do sistema de justiça,
cuja ação provoca a instabilidade do governo Michel Temer,
age, então, como representante político da alta classe média.
Agiu juntamente com o imperialismo no movimento golpista

83
mas, hoje, toma um rumo próprio. A Lava Jato não parou,
contrariando o que muitos petistas imaginaram que
aconteceria após a deposição de Dilma Rousseff, e tomou um
rumo que representa um verdadeiro estorvo para a ala
burguesa do golpe. O conjunto da burguesia quer as reformas
trabalhista e previdenciária, a burguesia associada e o
imperialismo querem a desnacionalização da economia,
Henrique Meireles está, como dizem os boleiros, “fazendo o
seu melhor” e tem à sua disposição uma equipe econômica
dos sonhos para esses setores. Porém, a Lava Jato e outros
setores do sistema de justiça estão pondo tudo isso em risco.
Fazem-no como representantes políticos da alta classe média
e, também, por motivos corporativos. A PF e o MPF estão
insatisfeitos com o governo Michel Temer devido à sua
reforma da previdência e à sua relutância em nomear para a
PGR o mais votado da lista corporativa do MPF.
Vivemos uma situação de crise de hegemonia ou de
instabilidade hegemônica e, portanto, uma situação de
instabilidade política. É certo que a briga entre o sistema de
justiça, de um lado, e o executivo federal e as forças
majoritárias do Congresso Nacional, de outro, é uma “briga
de brancos”. Nenhum dos dois lados defende propostas
progressistas. Contudo, esse conflito pode favorecer o
movimento popular já que desgasta ambas as partes e abre
brechas para o movimento operário e popular fazerem passar,
com mobilização nas ruas, a bandeiras do “Fora Temer” e das
“Diretas Já”. Enquanto dois brigam, o terceiro pode sair
ganhando.

Maio de 2017

84
QUAIS SÃO OS REAIS MOTIVOS DAS DIVISÕES NO
CAMPO GOLPISTA?

Está claro para todos que o campo golpista está


dividido. Nas últimas semanas o que temos visto é o
agravamento do conflito entre, de um lado, aqueles que
defendem a manutenção de Michel Temer na presidência e,
de outro, aqueles que propugnam a realização de uma eleição
indireta para substituí-lo. Entre essas duas posições há uma
gama de posições centristas daqueles que hesitam, pendendo
ora para um lado, ora para outro.
Circula no campo do movimento popular uma
proposta de análise que procura explicar tais divisões. Ela está
presente em documentos e nos debates públicos que se fazem
sobre o tema. Essa análise sustenta que teríamos uma disputa
entre três alas do campo golpista: a econômica, a política e a
ideológica. A ala econômica seria composta pelos grandes
empresários interessados, sobretudo, nas reformas trabalhista
e previdenciária; da ala política fariam parte os partidos e seus
parlamentares que teriam uma atuação pragmática,
procurando, muitos deles, agir apenas para salvar-se da
condenação judicial; a ala ideológica, constituída pelo sistema
de justiça (Judiciário, MPF, PF), teria como objetivo combater
a corrupção e o PT. Cada uma dessas alas, por perseguirem,
todas elas, objetivos particulares, entraria em conflito com as
demais e tais conflitos estariam cada vez mais graves. O
campo golpista teria, então, ficado sem um comando


Artigo publicado no jornal Brasil de Fato. Edição de 05 de junho de 2017.
85
unificado. A divisão da frente golpista nessas três alas e as
consequências que dela se tiram nos parecem incorretas.
Aquilo que nessa divisão aparece como ala política ou
pragmática foi, na verdade, o agente que concebeu o
programa político e ideológico do golpe do impeachment.
Refiro-me ao programa “Ponte para o futuro” elaborado pelo
PMDB em outubro de 2015. Portanto, ao mesmo tempo em
que o senador Romero Jucá pensava na solução Michel Temer
para, nas suas próprias palavras, “estancar a sangria da Lava
Jato” e se salvar da cadeia, ele e o seu partido sistematizavam
também as bases ideológicas e os objetivos políticos do
movimento golpista: congelamento do gasto público real,
reforma trabalhista, reforma previdenciária, mais abertura da
economia ao capital estrangeiro, alinhamento com a política
externa dos EUA etc. Aquilo que é erroneamente
denominado “classe política” não se sustenta no ar. Para
tentar se safar da justiça, que era o interesse corporativo dos
peemedebistas na condição de políticos profissionais, tiveram
de se candidatar a representantes dos interesses de classe que
moviam a campanha contra o governo Dilma Rousseff. Hoje,
perseguem com a mesma tenacidade dois objetivos
complementares: advogados para escapar da cadeia e a
aprovação das reformas que interessa ao poder econômico,
isto é, à burguesia. Tiveram de se amalgamar com aquela que
seria a ala econômica do golpe.
Tampouco a chamada ala ideológica faz jus a essa
denominação. Se a ala dita pragmática é também ideológica e
está vinculada à ala econômica, a ala ideológica é também
pragmática. Juízes, procuradores e delegados da Polícia
Federal têm motivos corporativos, econômicos, para opor-se

86
ao governo Michel Temer. Eles estão em campanha contra a
reforma da previdência. Já foram prejudicados pela reforma
implantada no primeiro governo Lula da Silva e podem sê-lo,
novamente, com a reforma proposta pelo governo atual.
Segundo matéria de Leonel Rocha, publicada no blog
Congresso em foco, as associações ligadas a juízes, procuradores
e promotores estão revoltadas com a proposta original da
reforma enviada ao Congresso porque ela equipara suas
aposentadorias à dos trabalhadores do setor privado, geridas
pelo INSS. O deputado Lincoln Portela (PRB-MG)
apresentou, a pedido dessas associações, emenda excluindo a
casta judicial da reforma. A emenda apresentada pelo
deputado Portela teve o apoio da Associação Nacional dos
Juízes Federais (Ajufe), da Associação dos Magistrados
Brasileiros (AMB), da Associação Nacional dos Procuradores
da República (ANPR), da Frente Associativa da Magistratura
e do Ministério Público (Frentas) e da Confederação que
representa os membros do Ministério Público.
A ideologia sempre deforma a realidade de maneira
interessada, e mesmo que inconscientemente. Os
procuradores podem ver-se como salvadores da pátria,
embora ajam de fato para salvar a si mesmos. Para além da
reforma da previdência que é um dado conjuntural, é preciso
esclarecer que juízes, promotores, procuradores e delegados
têm interesse econômico em coibir a corrupção. Não me
refiro a este ou àquele juiz ou promotor que, sendo ele próprio
corrupto, tira proveito da corrupção. Refiro-me aos interesses
do conjunto dessa categoria social de Estado. A legitimidade
dos seus ganhos exorbitantes, do seu elevado prestígio social
e do seu poder autoritário como altos funcionários do Estado

87
advém do fato de terem sido aprovados em concursos
públicos muito concorridos e percebidos por grande parte da
população como processos seletivos socialmente neutros e
eficazes para selecionar aqueles que teriam mais dons e mais
méritos para ocupar tais cargos. Ora, se a imagem universalista
do Estado for comprometida aos olhos da população pela
prática generalizada da corrupção, do compadrio e do
patrimonialismo, a legitimidade de tais concursos estará
abalada e, com ela, a legitimidade de todos os privilégios de
juízes e consortes.
E a ala econômica? Tudo que pudemos aprender
observando a crise política brasileira é que o poder econômico
converte-se, facilmente, em poder político: financiamento
empresarial de campanha eleitoral, pagamento de propinas a
funcionários públicos, fornecimento de meios materiais para
a campanha do impeachment etc. O PMDB agiu como
instrumento do grande empresariado quando elaborou o
programa “Ponte para o futuro”. Ele agiu como representante
político do poder econômico. A ala econômica é também
política.
Já afirmamos que muitos deputados têm agido para
salvar a própria pele. Os políticos profissionais da classe
dominante têm interesses específicos devido à sua inserção
particular no processo político. Mas, separá-los da classe e das
frações de classe que representam é um erro. Eles podem se
salvar, mas não lograrão fazê-lo contra os interesses dessas
últimas.
O que divide, em última instância, o campo golpista
não são as particularidades das assim chamadas ala
econômica, ala política e ala ideológica do golpe, tampouco os

88
conflitos que seriam oriundos dos objetivos específicos de
cada uma dessas alas, mas o fato de que a frente política que
promoveu o golpe ser uma frente composta por classes e
frações de classes com interesses distintos. Uniram-se na luta
contra o PT; estão se separando sob o governo Michel Temer.
As instituições como os partidos políticos, o sistema de
justiça, a mídia, devem ser analisadas como instituições
vinculadas, direta ou indiretamente, de maneira mais
complexa ou mais simples, às classes e frações de classe em
presença. Porém, esclarecer essa ideia seria tema para outro
artigo.

Junho de 2017

89
O Governo Bolsonaro,
o neofascismo e o
neoliberalismo

90
O FASCISMO É UM FENÔMENO HISTÓRICO
IRREPETÍVEL?

Atilio Boron publicou um artigo no jornal Brasil de


Fato no qual recusa peremptoriamente a caracterização do
governo Jair Bolsonaro como fascista e recusa até a
possibilidade de esse governo vir a se converter, no futuro,
num governo fascista10. O leitor poderia se perguntar se tal
diagnóstico não seria precoce, pois quando o texto de Boron
foi publicado o governo Bolsonaro encontrava-se em seu
primeiro dia de existência, e poderia se perguntar também se
tanta certeza sobre a evolução futura do governo não seria um
abuso na prática da análise prospectiva. Contudo, observando
as razões apresentadas por Boron para fundamentar o seu
prognóstico entendemos o porquê do seu texto ser tão
taxativo. Boron sustenta que o fascismo é um fenômeno
histórico único, restrito à Europa das décadas de 1920 e 1930,
e portanto, afirma ele, irrepetível. Boron é autor de textos que
ensinam muito, mas nós discordamos dele sobre essa questão.
O fascismo não pode ser excluído das possibilidades


Este é o primeiro artigo de uma série de quatro que publicamos no portal
do jornal Brasil de Fato. Nessa série, defendemos a tese de que o
bolsonarismo deve ser caracterizado como neofascismo e analisamos
diferentes aspectos desse fenômeno. Esta primeira parte foi publicada em
10 de janeiro de 2019 com o título “A questão do fascismo no governo
Bolsonaro”.
10 Atilio Boron, “Caracterizar o governo Bolsonaro como fascista é um

grave erro”. Portal Brasil de Fato. Link:


https://www.brasildefato.com.br/2019/01/02/artigo-or-caracterizar-o-
governo-de-jair-bolsonaro-como-fascista-e-um-erro-grave/
91
presentes na atual conjuntura brasileira. Vou tentar mostrar
por quê.
Boron inicia a sua análise caracterizando o fascismo
como “uma forma excepcional do Estado capitalista”, distinta
da democracia burguesa, que seria a forma típica desse
Estado, e distinta também, lembra ele na parte final do seu
texto, de outras formas excepcionais, como a ditadura militar.
O Estado burguês apresentar-se-ia, então, correntemente sob
a forma democrática e excepcionalmente sob a forma
ditatorial – fascista ou militar. É uma linha de análise muito
semelhante àquela desenvolvida por Nicos Poulantzas em sua
obra Fascismo e ditadura. Escreve Boron:

“[O fascismo é] uma forma excepcional do Estado


capitalista, com características absolutamente únicas e
irrepetíveis, que irrompeu quando seu modo ideal de
dominação, a democracia burguesa, enfrentou uma
gravíssima crise no período entre a Primeira e a Segunda
Guerra mundiais.”.

Contudo, essa caracterização é apresentada apenas de


passagem no texto. Quando Boron vai argumentar sobre a
impossibilidade do ressurgimento de Estados fascistas na
atualidade, ele surpreendentemente abandona a caracterização
do fascismo como forma de Estado e passa a discorrer sobre
o bloco no poder do período dos fascismos clássicos, ou seja,
deixa de tratar da forma de organização do Estado capitalista
– democracia? ditadura militar? ditadura fascista? – e passa a
discorrer sobre o arranjo específico existente entre as classes
e frações de classe que exerceram o poder de Estado naquele
mesmo período. Das quatro características fundamentais do
fascismo que o autor arrola, três delas referem-se à

92
composição e à hierarquia do bloco no poder na Itália e na
Alemanha das décadas de1920 e 1930: a fração burguesa
hegemônica nesse bloco e as políticas econômica e externa
que expressam essa hegemonia. O fascismo seria um regime
ou governo da burguesia nacional, com uma política
econômica intervencionista e nacionalista e com uma política
externa centrada na obtenção de uma “divisão do mundo”
mais favorável a essa mesma burguesia nacional. Isso posto,
conclui que seria impossível o ressurgimento do fascismo na
atualidade devido à nova fase do capitalismo, caracterizada
pelo aprofundamento da internacionalização e da
financeirização da economia, que teria eliminado as
burguesias nacionais.

“Hoje, na era da transnacionalização e financeirização do


capital, com o predomínio das megacorporações que
operam em escala mundial, a burguesia nacional descansa
no cemitério das velhas classes dominantes. Seu lugar é
ocupado agora por uma burguesia imperial e multinacional
que subordinou e fagocitou seus congêneres nacionais
(incluindo as dos países do capitalismo desenvolvido) e atua
no tabuleiro mundial com uma unidade de poder que
periodicamente se reúne em Davos para traçar estratégias
globais de acumulação e dominação política. E sem
burguesia nacional não existe regime fascista devido à
ausência de seu principal protagonista.”

Verifica-se, portanto, e muito claramente, uma


oscilação teórica no texto de Boron ao caracterizar o fascismo:
ora ele é apresentado como uma forma de Estado, que é a
caracterização inicial e não desenvolvida no texto, ora como
um tipo de bloco no poder, que é a caracterização que o texto
desenvolve e que de fato aplica. Para que o leitor perceba as
consequências dessa oscilação, observemos o seguinte. No
93
período de entre guerras, os Estados francês, britânico e
estadunidense também tiveram a “burguesia nacional como
protagonista” – exceção feita ao período do governo de
Frente Popular na França –, também praticaram, a partir da
crise de 1929, uma política econômica intervencionista e
nacionalista e tampouco deixaram de procurar a melhor
posição para suas burguesias nacionais no cenário
internacional. Se considerássemos o fascismo um tipo de
bloco no poder, teríamos de caracterizar os regimes desses
países nesse período como fascistas. Por que não procedemos
assim? Porque nos atemos à forma de Estado que, no caso, se
tratava de regimes de democracia burguesa. Logo, é esse
aspecto, a forma de Estado, que devemos considerar quando
falamos de fascismo.
O fascismo é uma forma de Estado, como o é a
democracia burguesa ou a ditadura militar. Na forma
democrático-burguesa do Estado capitalista, são possíveis
diferentes composições e hierarquias das forças que integram
o bloco no poder. A história evidencia esse fato de maneira
tão abundante que não vale a pena exemplificar. Também sob
a ditadura militar variam muito a composição de classes e
frações e a posição de cada uma delas no bloco no poder.
Restringindo-nos exclusivamente ao período mais recente da
história da América Latina, basta lembrar os casos, de um
lado, das ditaduras militares chilena e argentina, que aplicaram
uma política econômica neoliberal, e, de outro, a ditadura
militar brasileira, que manteve e aprofundou, após um breve
período inicial liberalizante, a política econômica
desenvolvimentista. Um e outro programa de política
econômica expressavam posições distintas das diferentes

94
frações burguesas na hierarquia do bloco no poder desses
Estados - capital internacional e capital local, capital industrial
e capital comercial etc. Aliás, o próprio Boron chega a
reconhecer, implicitamente, a possibilidade de variar o bloco
no poder sob um mesmo arranjo institucional. Ele caracteriza
o governo Peron como um “cesarismo progressivo”.
Cesarismo diz respeito ao tipo de jogo político que se
estabelece entre o governo e as forças políticas em presença,
e não a esta ou aquela política econômica, externa ou social
específica que é o que expressa, sempre, a composição e a
hierarquia do bloco no poder. É o adjetivo “progressivo” que
se refere a tais políticas. E se é necessário acrescentar o
adjetivo “progressivo” ao cesarismo de Peron é porque, para
Boron, existe, evidentemente, um “cesarismo regressivo”.
Logo, temos aí, novamente, a questão do conteúdo variável
dentro de uma mesma forma de Estado.
Enfim, se o bloco no poder pode variar e varia na
forma democrático-burguesa e na forma ditadura militar, por
que seria diferente com o fascismo? Apenas para essa forma
de Estado teríamos um único e específico bloco no poder e
nenhum outro? Não pensamos assim. Sob um Estado fascista
pode-se ter uma política econômica nacionalista ou
entreguista, intervencionista ou neoliberal, políticas essas que
refletirão composições e arranjos distintos dos blocos no
poder vigentes. Por essa razão, pensamos que é sim possível
o reaparecimento do fascismo no século XXI. E também que
não devemos descartar a hipótese de o governo Bolsonaro vir
a implantar um regime fascista no Brasil. O que seria esse
regime? Qual é a possibilidade de isso vir, de fato, a ocorrer?

95
São questões que poderemos tentar responder num próximo
texto.
Janeiro de 2019

96
O NEOFASCISMO JÁ É REALIDADE NO BRASIL

Como caracterizar o movimento de extrema direita


que chegou ao poder no Brasil? E como caracterizar o
governo Bolsonaro? Neoliberal? Neocolonial? Neofascista?
Todas as anteriores?
Em artigo que publiquei no mês de janeiro no portal
do Brasil de Fato, polemizando com um texto de Atilio Boron
publicado também neste jornal, sustentei que não se pode, ao
contrário do que afirma Boron, descartar a hipótese de que
essa nova direita e esse governo sejam fascistas ou, mais
precisamente, neofascistas. Boron havia afirmado que o
fenômeno fascista seria irrepetível porque o seu principal
protagonista, a burguesia nacional, teria desaparecido.
Argumentei, então, que ao falar em Estado fascista fazemos
referência, em primeiro lugar, à forma de Estado e não às
classes e frações de classe específicas que participam do bloco
no poder. Dentro de uma mesma forma de Estado – seja a
democracia, a ditadura militar ou a ditadura fascista – são
possíveis diferentes blocos no poder. A ditadura fascista num
país imperialista não terá o mesmo bloco no poder que uma
similar sua implantada num país cuja economia e cujo Estado
são dependentes. Isso significa que, teoricamente, é possível
contemplar a hipótese de que um eventual Estado fascista no
Brasil poderia vir a servir ao capital internacional, não à
burguesia nacional como sucedeu no fascismo clássico, e, para
tanto, aplicar uma política neoliberal e “neocolonial”.


Este artigo foi publicado no jornal Brasil de Fato em 19 de março de 2019.
97
Fascismo, neoliberalismo e neocolonialismo não são
excludentes.
A distinção entre forma de Estado e bloco no poder é
fundamental. Porém, para caracterizar o neofascismo já em
vigor no Brasil, é necessário mobilizarmos também outras
distinções conceituais. O fascismo é uma das formas
ditatoriais do Estado capitalista, mas essa forma supõe a
existência de uma ideologia, a ideologia fascista, e tal forma de
Estado somente se torna realidade se houver um movimento
social, o movimento fascista movido pela ideologia fascista,
que assuma a luta para a sua implantação. Os fascistas também
fazem cálculos táticos. Eles podem, numa determinada
conjuntura, abrir mão ou postergar a luta pela implantação de
uma ditadura fascista. Segundo Palmiro Togliatti no seu livro
Lições sobre o fascismo, foi exatamente isso que fez Mussolini
quando assumiu a chefia do governo em 1922 e foi o que ele
continuou fazendo pelo menos até 1923. Ou seja,
teoricamente é possível admitir que um movimento fascista,
movido pela ideologia fascista, chegue ao governo e não
implante uma ditadura fascista. Pois bem, no Brasil de hoje
temos a ideologia neofascista, o movimento neofascista, um
governo no qual os neofascistas disputam a hegemonia com
o grupo militar – esse último apegado a um autoritarismo mais
propenso a outro tipo de ditadura – mas não temos um regime
político fascista – o que temos é uma democracia burguesa
deteriorada e em crise.
As definições são sempre problemáticas, mas
podemos arriscar a afirmação de que, nas suas características
mais gerais, o fascismo é um movimento reacionário de massa
enraizado em classes intermediárias das formações sociais

98
capitalistas. Ele é movido por um discurso superficialmente
crítico – e, ao mesmo tempo, profundamente conservador –
sobre a economia capitalista e a democracia burguesa. A sua
ideologia é heterogênea, pouco sistemática, e nela se destacam
a designação da esquerda como o inimigo a ser destruído, o
culto da violência, um nacionalismo autoritário e conservador
e a politização do racismo e do machismo. E, aspecto da
maior importância, o fascismo é um movimento que chega ao
poder, não como representante de tais classes intermediárias,
mas, sim, após ter sido politicamente confiscado pela
burguesia ou uma de suas frações com o objetivo de, apoiada
nele, superar uma crise política e implantar um governo
antidemocrático, antioperário e antipopular. Essa dinâmica,
com detalhes que não poderemos abordar aqui, prevaleceu
tanto no fascismo clássico quanto no neofascismo brasileiro
– um estudo importante para se compreender o tipo de crise
política na qual pode nascer a ditadura fascista é o livro de
Nicos Poulantzas intitulado Fascismo e ditadura.
O fascismo tem por objetivo eliminar – e não
simplesmente derrotar – a “esquerda” do processo político.
“Esquerda” é um termo genérico e meramente indicativo. No
fascismo clássico essa “esquerda” era composta por dois
partidos operários de massa, seguindo com essa definição a
caracterização do cientista político francês Maurice Duverger
em seu clássico Os partidos políticos. Ou seja, são partidos de
massa aqueles cuja organização envolve as bases, seja em
seções por local de moradia ou em células nos locais de
trabalho; cuja ação política é perene, e não sazonal – apenas
em anos de eleição; e cuja atividade de educação política e
ideológica das massas é constante. Estamos nos referindo ao

99
Partido Socialista e ao Partido Comunista italianos e alemães,
partidos que, de resto, retiveram para si a votação do
operariado enquanto houve eleições livres nesses dois países
– o que contraria, diga-se de passagem, o mito segundo o qual
o fascismo teria impactado indistintamente os
“trabalhadores” ou as “massas”, como pretendem alguns
estudos de psicologia social do fascismo. Já no neofascismo
brasileiro, a “esquerda” a ser eliminada é o movimento
democrático e popular que esteve, até aqui, sob a direção do
Partido dos Trabalhadores, que, de há muito tempo, deixou
de ser um partido de massa e se tornou um partido de quadros
ou de notáveis – organização separada das massas, atividade
política fundamentalmente sazonal e eleitoral e subestimação
da importância do trabalho de educação política e ideológica
dos trabalhadores.
O inimigo do fascismo clássico ameaça abertamente o
capitalismo, organiza partidariamente as grandes massas
operárias e, por isso, exige do fascismo um partido também
de massa para a ele se opor. Esse partido de massa foi um
partido pequeno-burguês, que comportava também militantes
e dirigentes recrutados em setores desqualificados da
sociedade. Já o inimigo do neofascismo brasileiro não é uma
ameaça aberta ao capitalismo, visa reformar o modelo
capitalista neoliberal e se apoia, sem organizar politicamente,
na heterogênea parcela da população, típica dos países de
capitalismo dependente, que podemos denominar
“trabalhadores da massa marginal”. Por isso, o neofascismo
pode dispensar um partido de massa, pode mobilizar suas

100
bases para lutas específicas pelas redes sociais11, e é um
movimento tipicamente de frações da classe média, além de
militantes e apoiadores, como ocorreu com o fascismo
clássico, em setores do lumpemproletariado – a respeito desse
ponto, seria importante uma análise estritamente política da
atuação das Milícias dos morros do Rio de Janeiro.
Acrescentemos que o movimento neofascista da alta
classe média, mobilizado quando da pré-campanha eleitoral
de Jair Bolsonaro já em 2016 e 2017, contou, desde o seu
início, com a adesão de grandes e médios proprietários de
terra principalmente das regiões Sul, Sudeste e Centro-
Oeste12.
Se no fascismo clássico, o grande capital nacional,
diante da crise dos partidos políticos que tradicionalmente o
representavam, confiscou o movimento pequeno-burguês,
apoiou-se nele, para implantar a sua hegemonia; no
neofascismo brasileiro, foi o capital internacional que, tendo
em vista a crise do seu tradicional representante no Brasil, o
PSDB, tetracampeão em derrotas nas eleições presidenciais e
vislumbrando um possível hexa já que Lula poderia ser
candidato em 2018 e 2022, foi esse capital, principalmente o

11 Luiz Filgueiras e Graça Druck, O governo Bolsonaro, o neofascismo e


a resistência democrática. Le Monde Diplomatique Brasil, novembro de
2018. Acessível em https://diplomatique.org.br/o-governo-bolsonaro-o-
neofascismo-e-a-resistencia-democratica/
12 Anoto sobre esse ponto uma semelhança menor. Tratando do fascismo

italiano, Gramsci, num texto de 1921, fala da existência de dois fascismos


desde o início do movimento: um da pequena burguesia e outro dos
proprietários rurais da Emilia, Toscana, Veneto e Umbria. Ver “I due
fascismi”. In Antonio Gramsci, Sul Fascismo. A cura di Enzo Santarelli.
Roma: Editori Riuniti. 1973.
101
estadunidense, que confiscou, em aliança com segmentos da
grande burguesia brasileira, o movimento da alta classe média.
Foi a alta classe média que tomou a iniciativa de iniciar
a luta pelo impeachment, enquanto o PSDB dividido hesitava,
e foi daquele movimento que surgiu o movimento neofascista.
Cabe lembrar a mobilização, a partir de provocação
presidencial, no domingo 17 de março do MBL, do Vem pra
Rua, do Revoltados on Line, bem como de outros grupos que
animaram as manifestações pelo impeachment, para protestar
contra recente decisão do STF, alguns propondo até o
fechamento daquela corte de justiça. Do antipetismo de 2015
ao neofascismo de 2019 o caminho não é tão tortuoso. O
capital internacional e segmentos da grande burguesia
brasileira confiscaram esse movimento de classe média para,
no caso do capital estadunidense e dos segmentos da grande
burguesia brasileira a ele associados, perfilar o Estado e a
economia brasileira ao lado dos Estados Unidos na disputa de
hegemonia com a China.
Nos dois casos, no fascismo clássico e no neofascismo
brasileiro, o principal do processo político resulta dos
conflitos entre frações da burguesia – grande capital versus
médio capital, no primeiro caso, burguesia associada e capital
internacional versus a burguesia interna, no segundo – e
também da intervenção política massiva de uma classe social
intermediária – a pequena burguesia no fascismo clássico e a
classe média no neofascismo. Essa dinâmica particular do
processo político só pode ser devidamente compreendida se
se tem em conta que nas fases mais avançadas do processo de
fascistização, tanto no fascismo clássico, quanto no
neofascismo, as classes populares vêm de seguidas derrotas e

102
se encontram politicamente na defensiva –
momentaneamente incapacitadas, portanto, para
apresentarem alternativas políticas próprias e viáveis.
Considero que o neofascismo poderá ganhar a
hegemonia no governo e vir a implantar uma ditadura
neofascista no Brasil – embora eu não veja essa hipótese como
a mais provável no momento. Há a possibilidade de a
democracia burguesa deteriorada sobreviver ou, ainda, a
possibilidade de sermos levados para uma ditadura militar.
Afinal de contas, qual é a importância prática de distinguirmos
conceitualmente democracia de ditadura e, especificamente,
ditadura militar de ditadura fascista? Faz alguma diferença
para o movimento operário e popular? E se fizer, qual é essa
diferença? Isso poderia ser tema para outro artigo.

Março de 2019

103
AS DIFICULDADES DA LUTA POPULAR DIANTE DO
FASCISMO

Este é o terceiro e último artigo de uma série que estou


publicando aqui no portal do Brasil de Fato sobre o
neofascismo no Brasil de Bolsonaro. Neste último texto,
pretendo indicar rapidamente quais são as dificuldades
específicas da luta operária e popular diante de um
movimento neofascista como esse que enfrentamos no Brasil
atual. O tema é complexo e eu pretendo voltar a ele
futuramente e em um trabalho mais alentado. Neste pequeno
texto irei apenas indicar alguns pontos.
Convém recordar o que escrevemos nos dois artigos
anteriores desta série. No primeiro deles, procurei mostrar
que o fascismo não deve ser considerado um fenômeno
histórico único, irrepetível, adstrito apenas a alguns países
europeus no período 1919-1945. Para tanto, argumentei que
o fascismo é uma forma do Estado capitalista, uma ditadura
de tipo particular, e é também o movimento social – dotado
de ideologia e base social específica – e o governo que lutam
pela implantação dessa forma de Estado. Esse tipo particular
de ditadura que é a ditadura fascista serviu para organizar a
hegemonia política do capital monopolista em Estados
imperialistas nas décadas de 1920 e 1930, mas poderá servir,
na periferia latino-americana no século XXI, para organizar a
hegemonia política do capital internacional, principalmente
estadunidense, em Estados dependentes como o Brasil.


Artigo publicado no portal do jornal Brasil de Fato em 12 de abril de 2019.
104
Podemos, portanto, conceber teoricamente a hipótese de uma
ditadura fascista neoliberal ou neocolonial.
No segundo artigo, comparando, de um lado, os
movimentos animados por Mussolini Hitler e, de outro, o
bolsonarismo no Brasil, apresentei o que considero serem as
semelhanças de fundo entre tais movimentos, que são o que
justificam o emprego do conceito geral de fascismo para
todos os três, e também as diferenças existentes entre o
fascismo clássico e o bolsonarismo, que justificam o emprego
do prefixo neo para denominar o caso brasileiro como uma
variante particular daquele fenômeno. Aliás, em grande
medida, a etapa histórica atual representa uma retomada, em
condições históricas novas, de programas e ideologias de
períodos anteriores, de tal sorte que nos deparamos com o
neoliberalismo, o neodesenvolvimentismo, o neopopulismo
e, agora, com o neofascismo. O que eu defendi foi que
embora não tenhamos um regime de ditadura fascista no
Brasil, mas sim uma democracia burguesa deteriorada e em
crise, temos sim um movimento neofascista ativo e um
governo cuja chefia está entregue ao principal representante
desse movimento.
Passemos agora ao tema deste terceiro artigo. Que
diferença faz, no que diz respeito à luta política, saber se
enfrentamos um movimento fascista ou um movimento
reacionário qualquer? Uma ditadura neofascista ou uma
ditadura burocrática ou militar? Essas distinções não seriam
preciosismos conceituais meramente acadêmicos? Não é
aconselhável desdenhar do esforço intelectual para bem
caracterizar os fenômenos políticos. Mesmo que esta ou
aquela diferença entre um e outro regime político, entre um e

105
outro partido ou ainda entre uma e outra ideologia não
apresentar, pelo menos num primeiro momento, qualquer
pertinência para organizar a luta prática, essa diferença não
deve, por isso, ser desprezada e posta de lado. No processo
de conhecimento, importa conhecer e, ademais, aquilo que
hoje parece indiferente para a ação prática, amanhã poderá se
revelar importante. Dito isso, cabe mostrar que no caso do
fascismo, é sim pertinente para a prática política mostrar a
especificidade dessa forma de Estado, bem como do
movimento que pode conduzir a ela, quando comparada com
os demais regimes políticos e movimentos ditatoriais e isso
porque as condições da luta operária e democrático-popular
variam de um para outro.
Retomemos, então, o nosso problema. As condições
de luta da classe operária e do movimento democrático-
popular variam muito de acordo com a forma que assume o
Estado burguês. No Brasil de hoje, ainda ouvimos em debates
públicos a ideia segundo a qual seria indiferente para os
trabalhadores a forma ditatorial ou forma democrática do
Estado burguês. Comecemos, então, por esse ponto básico e
elementar: a democracia burguesa é muito mais favorável para
a organização e a luta dos trabalhadores que a ditadura
burguesa. Na forma democrática, em grau maior ou menor,
os trabalhadores usufruem o direito de pensamento,
expressão, manifestação, organização e de votar e ser votado.
Podem lançar mão desses direitos para organizarem-se em
sindicatos, comitês de empresa, associações populares,
partidos políticos e possuírem imprensa própria. De posse
desses meios de luta, podem defender seus interesses
imediatos e também para organizarem-se politicamente para

106
a luta pelo socialismo. É certo que a burguesia usufrui muito
mais amplamente tais direitos, pois dispõe de meios
econômicos muito superiores àqueles de que podem dispor
os trabalhadores, mas isso apenas mostra que os direitos
democrático-burgueses são usufruídos, regra geral, de modo
desigual por uma classe e por outra, e não que tais direitos
sejam, para a classe operária, formas desprovidas de conteúdo.
A democracia importa sim para os trabalhadores.
A importância da democracia é aceita por grande parte
– creio que pela maioria – do movimento socialista e popular.
Mas permanece a questão específica: que diferença existiria
entre lutar contra um tipo ou outro de ditadura, seja ela militar
ou fascista? Que diferença faria saber se estamos diante de um
movimento que nos ameaça com a implantação de uma
ditadura de um tipo ou de outro? Ditadura militar e ditadura
fascista bem como os movimentos que defendem tais regimes
não seriam inimigos por igual do movimento operário e
popular? Sim, a ditadura no Estado burguês, seja do tipo que
for, restringe ou suprime, em grau maior ou menor, as
liberdades civis e políticas e combate a organização popular.
Contudo, há uma diferença que importa: a ditadura militar
não organiza um movimento popular de apoio e subestima a
importância daquilo que Gramsci denominou a luta pela
hegemonia cultural e moral na sociedade, enquanto a ditadura
fascista, bem como o movimento que pode levar a ela,
organiza e mobiliza setores populares. Foi por isso que no
segundo artigo desta série eu dei uma definição sintética do
fascismo que era justamente a seguinte: um movimento reacionário
de massa.

107
O fascismo é um movimento reacionário porque,
como eu escrevi, trata-se de um movimento para eliminar a
esquerda do processo político – seja ela socialista, comunista
ou democrático-popular – almejando uma organização
ditatorial do Estado, mas, por ser de massa, esse movimento
contém elementos ideológicos não burgueses e
superficialmente críticos da economia e do Estado capitalista.
No fascismo clássico, tratava-se, predominantemente, de
elementos ideológicos pequeno-burgueses; no neofascismo,
de elementos ideológicos de classe média. Em conformidade
com a sua base social pequeno-burgesa, aquele criticava
principalmente o nascente capitalismo dos monopólios que
agrava a situação do pequeno proprietário, o garrote dos
bancos sobre as pequenas propriedades etc; já o neofascismo,
em conformidade com a sua base social de classe média,
critica principalmente a corrupção, a insegurança pessoal
diante da criminalidade e o jogo sujo da “velha política”.
Ambos, o fascismo original e o neofascismo, são, de
diferentes maneiras, racistas e defendem a organização
patriarcal da família, sendo hostis aos direitos das mulheres.
Tanto no primeiro, como no segundo caso, o discurso fascista
pode extrapolar a sua base social de origem e impactar outros
segmentos populares, mesmo que aqueles elementos
ideológicos superficialmente críticos, e profundamente
conservadores, sejam percebidos de modos distintos de
acordo com o segmento social concernido. Por exemplo, no
neofascismo os trabalhadores assalariados manuais podem se
revoltar contra a corrupção por vê-la como parasitismo,
enquanto os trabalhadores de classe média, além dessa
motivação, tendem a destacar a necessidade de “higienizar” as

108
instituições do Estado burguês, preservando-lhes a aparência
de instituições públicas.
Esses elementos superficialmente críticos, e
vinculados ao discurso profundamente conservador de
eliminação do movimento democrático e popular, convergem
para a ideia de reforçar o autoritarismo do Estado brasileiro:
o projeto dito de segurança de Sergio Moro que suspende,
arbitrariamente, garantias constitucionais; a prática da
ilegalidade no processo penal para a punição exemplar e
espetacular da corrupção – preferencialmente quando tal
prática puder ser imputada às empresas nacionais e à centro-
esquerda representada pelo PT; desprezo pela atividade
política que é identificada apenas como a política praticada no
Congresso Nacional, mal disfarçado desprezo pela
democracia e assim por diante. Um movimento de massa
contém, obrigatoriamente, elementos ideológicos não
burgueses, que podem atrair segmentos das classes populares
e mobilizá-las. No fascismo clássico, havia um partido de
massa; no neofascismo, como aventaram os professores Luiz
Filgueiras e Graça Druck, a mobilização pelas redes sociais
pode vir a substituir esse partido que falta ao bolsonarismo. E
é justamente aí que residem as dificuldades específicas da
esquerda quando se trata de enfrentar um movimento fascista.
O discurso fascista obtém a adesão ativa de certos segmentos
das classes dominadas e pode neutralizar outros.
Tanto na ditadura militar, quanto na ditadura fascista,
os trabalhadores estão desprovidos de inúmeros direitos civis
– pensamento, expressão, manifestação, organização – e dos
direitos políticos. Porém, na ditadura militar, não tivemos o
fenômeno da mobilização popular nem antes do golpe de

109
1964 e nem durante a ditadura. As Forças Armadas não
mobilizaram os setores populares, não obtiveram e não
procuraram obter a sua adesão ativa. A chamada “Marcha
com deus, pela família e pela liberdade” foi algo muito breve,
pontual, e em muitas cidades, a começar pelo Rio de Janeiro,
aconteceram apenas depois que os militares já tinham tomado
o poder. É algo muito diferente da situação atual na qual
nasceu o bolsonarismo. Foram três ou quatro anos de grandes
manifestações de rua em centenas de cidades brasileiras
contra a esquerda e a centro-esquerda, pela deposição do
governo Dilma e ditas contra a corrupção e contra a “velha
política”. O bolsonarismo nasceu aí. Hoje, o MBL, o Vem pra
Rua, o Revoltados Online e o Intervenção, para citar os
grupos mais importantes, continuam apoiando o governo ou
convergem com o essencial de suas posições.
Diante desse movimento e desse discurso, a esquerda
encontra dificuldades. Basta lembrar como episódio maior e
fundador as manifestações de junho de 2013. Já tínhamos
então grupos neofascistas, lutando contra a PEC 37,
mandando a esquerda embora para Cuba, proibindo
manifestantes de portarem bandeiras de partido político –
partido de esquerda, claro. Mal se sabia dizer se se tratava de
grupos neoanarquistas, os horizontalistas, ou neofascistas. O
fenômeno ainda não estava muito claro, salvo nos casos em
que à proibição de portar bandeiras seguiam-se agressões
físicas violentas contra os manifestantes de esquerda, como
ocorreram, para citar apenas dois exemplos, nas cidades de
São Paulo e de Campinas. E, desde então, parte dessa
ambiguidade permaneceu. Os militantes socialistas,
comunistas e populares não podem ignorar as críticas que os

110
neofascistas fazem à corrupção, àquilo que denominam
“velha política” do “toma lá, dá cá” e à insegurança pessoal
nos bairros populares. Veem-se na defensiva diante de tais
discursos. É uma luta ideológica difícil em que os fascistas
estão presentes e minimamente organizados nas escolas, nas
ruas e em outros locais públicos e em que o seu discurso
superficialmente crítico e profundamente reacionário obtém
algum impacto popular. Esses militantes de esquerda não
podem fazer tábula rasa desse discurso. Mais que isso, têm de
reconhecer que os governos da centro-esquerda no Brasil não
só não resolveram tais problemas denunciados pelos
neofascistas – corrupção, insegurança, política de favores –
como passaram a fazer parte deles, por exemplo,
aperfeiçoando a política clientelista com os partidos de
patronagem e conservadores do Congresso Nacional.
É preciso dar o devido destaque à crítica que fazem
Olavo de Carvalho – principal ideólogo do neofascismo – e
os seus seguidores ao fato de a ditadura militar não ter
assumido o que eles denominam a guerra cultural contra o
marxismo. Essa foi, segundo repetem os “olavetes”, a grande
“falha” do regime militar. Afirmam que o regime militar
realizou uma obra econômica meritória, mas, no plano
político e cultural, teria deixado o Brasil vulnerável à esquerda
porque foi omisso nessa batalha. Aqui, não há como não
recordar a análise de Roberto Schwarz sustentando que, ao
menos nos anos imediatamente posteriores ao golpe de 1964,
a hegemonia cultural na sociedade brasileira teria
permanecido com a esquerda. Pois bem, o que estão nos
dizendo os olavetes e o mentor intelectual deles? Exatamente
isto: a ditadura militar não é a melhor fórmula, precisamos de

111
uma ditadura fascista – é ela que poderá fazer a luta ideológica
contra o “marxismo cultural”.

Abril de 2019

112
A BURGUESIA, O “LUMPESINATO” E O GOVERNO
BOLSONARO

Gilberto Maringoni e Artur Araújo escreveram um


texto, publicado no Le Monde Diplomatique – Brasil do corrente
mês e intitulado “O lumpesinato no poder”, onde defendem
a tese, anunciada claramente no próprio título do texto,
segundo a qual o poder de Estado no Brasil teria sido
conquistado pelo lumpesinato13. Afirmam os autores:

O governo de Jair Messias Bolsonaro representa um feito


inédito em termos mundiais. Trata-se da primeira vez em
que o lumpesinato, de forma organizada, chega ao poder
de Estado. Não existe experiência semelhante em países
da dimensão do Brasil. (...) O principal representante do
lumpesinato nas esferas do poder é o próprio presidente
da República.

Dos dois autores, conheço melhor os textos de


Maringoni e aprendo muito com eles. Maringoni é um analista
arguto da conjuntura política. Recentemente, foi o primeiro a
esclarecer, com base em argumentos convincentes e
conhecedor que é da Venezuela, que a operação Juan Guaidó,
na sua fase de “ajuda humanitária”, patrocinada pelo
imperialismo com a colaboração ativa do governo Bolsonaro,
tinha resultado em fiasco. Porém, nesse texto sobre o
lumpesinato, avalio que longe de esclarecer, ele e Artur Araújo
confundiram as coisas.


Este artigo foi publicado no jornal Brasil de Fato em 20 abril de 2019.
13 GilbertoMaringoni e Artur Araújo “O lumpesinato no poder”. Le Monde
Diplomatique – Brasil, abril de 2019.
113
A ideia segundo a qual seria o lumpesinato que ocupa
o poder é sedutora. Jair Bolsonaro é um político abjeto,
inimigo jurado da democracia e do socialismo, e concebê-lo,
não apenas como integrante, mas também como
representante político do lumpesinato alivia o justo ódio que
sentem por ele todos aqueles que amam o povo trabalhador.
Ademais, a tese parece esclarecedora, pois, de fato, a equipe
de governo é formada por políticos desclassificados, militares
desocupados, professores que fracassaram na academia,
economistas marginais, pastores inescrupulosos, coiteiros de
milicianos e alpinistas sociais de história duvidosa. No
entanto, sabe-se que nem sempre as coisas são o que parecem
ser. A teoria política marxista ensina que é necessário
distinguir aquele que toma a decisão – eventualmente, um
economista neoliberal desprezado pelos próprios neoliberais
ou um militar desprezado pelos próprios militares – daquele
que se beneficia com ela – o capital internacional, os grandes
bancos etc. Definir a natureza de classe de um governo a partir
do pertencimento social da equipe governamental é um
equívoco teórico que induz a erros na prática política. Não é o
“lumpesinato” que está no poder. É o grande capital e, em
primeiro lugar, o capital internacional e a grande burguesia a
ele associada.

O que mais importa é o conteúdo da decisão

É a teoria das elites, tanto na sua versão clássica


quanto na sua versão moderna, que elege a pergunta “quem
governa?” como eixo de suas análises. Ora, como se sabe,
essa teoria foi produzida para combater a teoria política
114
marxista, da qual, no entanto, o texto de Maringoni e Araújo
declara-se seguidor. A teoria política marxista guia-se por
outra pergunta: “para quem governa?”. A burguesia
industrial na Inglaterra e na Alemanha, para dirigir a
transição ao domínio da grande indústria, se serviu, segundo
as análises de Marx e de Engels, de governos organizados
pelos grandes proprietários de terra que não podiam mais
aspirar realisticamente à hegemonia no bloco no poder 14.
Mudando o que deve ser mudado, os proprietários de terra
decadentes no Brasil, que eram a base do antigo PSD,
forneciam apoio parlamentar e quadros para a política de
industrialização de Vargas e de Juscelino. Não estamos
dizendo que a pergunta sobre o “quem governa” deva ser
abandonada – até porque a composição social da equipe
governamental pode influir, embora secundariamente, no
teor das medidas tomadas –, mas sim que ela deve ser
deslocada para segundo plano e inserida num dispositivo
conceitual muito distinto daquele da teoria das elites.
Não é isso o que faz o artigo que estamos criticando.
Nele, analisa-se o pertencimento social do pessoal
governamental para se verificar a classe ou o setor social que
se encontra no poder. Nada se diz sobre o conteúdo da
política econômica, da política social e da política externa
que esse pessoal implementou, e que é a única análise que
poderia nos colocar na pista das classes e frações de classe
que compõem o bloco no poder. Depois de definirem o que

14Sobre essa tese de Marx, ver o seu texto “Eleições na Inglaterra – Tories
e Whigs”, cuja tradução brasileira foi publicada pela revista Crítica Marxista
número 47. Disponível em:
https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/
115
seria o conceito de lumpesinato, valendo-se abundantemente
de textos de Marx, os autores colocam a seguinte questão:
“A partir de tais definições, vale a pena tentar entender que
classes e frações de classe compõem o primeiro escalão da
administração eleita em 2018.”. E passam a discorrer sobre
a composição da equipe governamental, nada sobre a política
de Estado. Sim! Temos algo que poderia ser definido, de
modo genérico, como lumpesinato nos altos escalões do
governo e são eles que tomam as decisões. Porém, no que
respeita ao conteúdo das decisões que estão tomando, ele
atende ao lumpesinato ou ao capital internacional e à grande
burguesia associada a esse capital? Segundo entendemos, o
conteúdo da política externa, da política econômica e da
política social do governo Bolsonaro prioriza os interesses
do grande capital internacional, principalmente o
estadunidense, e dos segmentos da burguesia brasileira a ele
associados, e atende também, embora secundariamente,
outros segmentos da burguesia brasileira. Portanto, são o
imperialismo, a burguesia brasileira e, principalmente, a sua
fração associada ao capital internacional que ocupam o
poder de Estado, e não o lumpesinato que lhes presta um
serviço político.
De resto, causa estranheza o fato de o texto afirmar,
de um lado, que o lumpesinato brasileiro realizou o feito,
inédito segundo os próprios autores, de conquistar o poder
de Estado e, de outro lado, sustentar que o lumpesinato é
politicamente incapaz. Cito uma passagem do texto: “O
lumpesinato, por característica inata, é avesso a qualquer
projeto coletivo de longo prazo. Não é classe, não é coletivo,
não forma grupos. Não há previsibilidade ou rotina possível

116
em um conjunto de indivíduos para os quais vigoram as
saídas individuais e a disputa de cada um contra todos.” Ora,
se são politicamente incapazes, como é que poderiam ter
chegado ao poder?!

Dois conceitos de representação política

Parece-me que lumpesinato é um conceito mal


definido, impreciso. Porém, se o aceitarmos para efeito de
discussão, diríamos, concordando com o texto, que Jair
Bolsonaro e grande parte de sua equipe governamental
integram o lumpesinato, mas, e agora discordando, diríamos
que eles não o representam politicamente. E nesse ponto, é
necessário estabelecer distinções de sentido ocultas na
palavra “representar”.
Há dois conceitos (ideias) de representação política que
se encontram, infelizmente, abrigados numa mesma e única
palavra (representação). É preciso cuidado para não se perder
nessa polissemia. Um governo ou um partido político pode
representar uma classe social, um conjunto de frações de
classe etc. no sentido de que a sua política contempla os
interesses econômicos e políticos de tais segmentos. Para
citar o Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, o livro de Marx
utilizado no texto que estamos comentando, é nesse sentido
que Marx utiliza o termo quando diz que os monarquistas
legitimistas representavam o latifúndio enquanto os
monarquistas orleanistas representavam a grande burguesia
industrial e financeira. Porém, a representação pode também
indicar um laço meramente ideológico entre um governo ou
um partido, de um lado, e uma classe ou fração de classe, de
117
outro. É nesse segundo sentido que Marx afirma no mesmo
livro que Luis Napoleão representava o campesinato, uma
classe popular excluída do bloco no poder. Como mostrou
Nicos Poulantzas, no seu livro Poder político e classes sociais, a
política de Luis Napoleão não atende aos interesses dos
camponeses, mas esses se constituem, por motivos
ideológicos analisados no livro de Marx, em base de apoio
do presidente que, mais tarde, se tornou imperador.
Eu penso que entre esses dois extremos,
representação objetiva de interesses econômicos e
representação baseada em ilusão ideológica, podemos
conceber situações intermediárias e complexas que
misturam, de maneiras e em dosagens variadas, uma coisa e
outra. Temos no Brasil atual o fenômeno do lulismo, onde a
liderança política, apoiada principalmente nos trabalhadores
da massa marginal, baseia-se tanto no atendimento, mesmo
que superficial, de interesses desses trabalhadores, quanto
nas ilusões ideológicas desse populoso segmento social
acerca da força e da natureza de uma liderança personalizada,
desprovida de vínculo orgânico com a sua base de apoio e
cujo laço de representação real vinculava-a, acima de tudo, à
grande burguesia interna.
Pois bem, no primeiro sentido do termo, Bolsonaro
representa, acima de tudo e como já indicamos, o capital
internacional e a burguesia associada. Esse sentido faz
referência, no caso da política de um determinado governo,
à maneira como o poder político regula a economia do país,
estabelece relações internacionais, aplica a política de ordem
etc. É a dimensão da atividade governamental que mais afeta,
e isso de modo amplo e profundo, a vida de toda a

118
população. Já no seu segundo sentido, ou num ponto muito
mais próximo do segundo que do primeiro, o governo
Bolsonaro representa a classe média, principalmente a classe
média abastada que se mobilizou para a deposição de Dilma
Rousseff, e os caminhoneiros que, também eles e em ação
conjunta com o MBL, Vem pra Rua, Revoltados on Line e
outros grupos de extrema-direita, se mobilizaram pelo
impeachment e, na sequência, se engajaram na candidatura
presidencial do capitão reformado. Esse segundo laço de
representação, embora não tenha a importância econômica,
social e política que tem o primeiro, já que esse pode
remodelar toda uma sociedade, é, todavia, um laço
importante no jogo político e é, no caso que analisamos, um
recurso político do governo Bolsonaro. Os proprietários de
terra também aderiram desde a primeira hora à campanha do
capitão. Reivindicavam o direito de se armar, a liberdade
para desmatar e mais repressão contra os movimentos
camponês, indígena e quilombola. Como mostraram
reportagens da imprensa, ao longo do ano de 2017, os
proprietários de terra se juntaram aos jovens de alta classe
média para a recepção ao presidenciável Bolsonaro nos
aeroportos do país. Foi a pré-campanha eleitoral do capitão
reformado. Nenhum desses segmentos sociais – capital
internacional, burguesia associada, proprietários de terra, alta
classe média, caminhoneiros – podem ser caracterizados
como lumpesinato.
A classe média, principalmente a sua fração abastada,
e os proprietários de terra são as duas pernas sobre as quais
caminha o movimento – falo aqui do fascismo como
movimento social – neofascista no Brasil. Os setores da

119
sociedade que poderiam ser identificados com o conceito
impreciso de lumpesinato, conceito com o qual os autores
designam tanto indivíduos da classe burguesa quanto
indivíduos das classes populares, não se mobilizaram
coletivamente, que seja do meu conhecimento, na campanha
de Bolsonaro. Forneceram material humano para o seu
partido político de ocasião e para a equipe governamental,
do mesmo modo que no fascismo clássico os ex-
combatentes da Primeira Grande Guerra forneceram
quadros para os partidos fascista e nazista, sem que isso
tenha negado que a base social do movimento italiano e
alemão tenha sido a pequena burguesia. O movimento
fascista clássico foi um movimento reacionário de massa
dirigido contra a esquerda, como ocorre com todas as
variantes do fascismo, e ditadura que ele, com o beneplácito
da burguesia, chegou a constituir foi uma ditadura do grande
capital apoiado na – embora muitas vezes em conflito com
– a pequena burguesia, e não um “governo dos ex-
combatentes” ou do “lumpesinato”. De resto, algo intrigante
é o fato de Maringoni e Araújo, que tanto utilizaram o livro
de Marx sobre o bonapartismo em seu artigo, terem
afirmado que o Governo Bolsonaro seria o primeiro caso em
toda história de chegada do lumpesinato ao poder. O citado
livro de Marx discorre muito sobre o fato de que Bonaparte
governava com a chamada Sociedade 10 de dezembro que, nos
diz ainda Marx, congregava o lumpesinato – e nos diz sem
ter concluído que, por isso, o bonapartismo seria o poder do
lumpesinato.
Quando há conflitos entre, de um lado, aqueles cujos
interesses o governo Bolsonaro de fato representa e, de

120
outro, os interesses daqueles que se imaginam representados
pelo mesmo governo, esse tende a decidir a favor dos
primeiros. São o capital internacional e a burguesia associada
que detêm a hegemonia no bloco no poder; a classe média e
os caminhoneiros sequer participam desse condomínio
fechado. Os segmentos de classe média que dependem da
aposentadoria estão engolindo a reforma da previdência que
interessa ao capital financeiro; os caminhoneiros estão
engolindo a política de preços da Petrobrás que interessa aos
acionistas privados nacionais e internacionais da petroleira –
aliás, Maringoni e Araújo publicaram no facebook uma
esclarecedora conversa sobre o conflito em torno do preço
do Diesel; e os proprietários de terra, embora integrem o
bloco no poder e embora tenham recebido cargos no
governo e tudo o mais o que o governo poderia oferecer em
detrimento das classes populares e da ecologia, esses estão
engolindo o enxugamento do crédito público subsidiado do
qual dependem e a provável perda de parcelas do mercado
chinês e dos países árabes, pois tais “inconvenientes” são
consequências necessárias da aplicação do ajuste fiscal que
interessa ao capital financeiro nacional e internacional e do
alinhamento subserviente do Estado brasileiro ao
imperialismo estadunidense na sua disputa com a China.

A quem serve a “desconstrução do país”

Os autores dão um fecho no seu texto referindo-se à


fala de Bolsonaro nos EUA na qual o chefe de governo
afirmou que era preciso desconstruir o que existe no Brasil.

121
Essa de fato, e concordando com os autores, é uma frase
representativa da linha de ação do governo. Afirmam eles:

Não há descrição mais apropriada para um mundo


traçado por Jair Bolsonaro em discurso proferido para
uma plateia de extrema direita em Washington, em março
último: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós
pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós
temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita
coisa.” [Prosseguem, então, os autores.] São frases-síntese
de um governo lumpem que se move por pequenos e
grandes negócios de ocasião. Em geral, eles se dão por
fora da política institucional e de suas regras e, não raro,
apelando para situações de força. Uma administração de
todos contra todos.

Porém, e ao contrário do que afirma o texto, a


desconstrução não tem nada a ver com o lumpesinato e sim
com os interesses dos verdadeiros ocupantes do poder de
Estado – que não são, para retomar o nosso argumento geral
sob outra formulação, os mesmos que ocupam o aparelho de
Estado. Essa desconstrução não resulta da visão caótica,
individualista e destrutiva do lumpesinato. Fernando
Henrique Cardoso e os tucanos falavam em desconstruir a
“Era Vargas” e eles não têm nada de lumpesinato. Trata-se
de uma política coerente e construtiva de uma nova
hegemonia, a hegemonia do capital internacional e dos
segmentos da burguesia brasileira a ele associado – a
burguesia interna, que foi a fração hegemônica nos governos
do PT, sofreu defecções e foi deslocada para uma posição
subordinada no interior do bloco no poder. A
“desconstrução” da qual falou Jair Bolsonaro nos EUA é a
desconstrução para o capital internacional e para a burguesia
associada, em primeiro lugar, e, em segundo lugar, para a
122
burguesia interna, não pelo e para o lumpesinato que se
moveria “(...) por pequenos e grandes negócios de ocasião”.
Não é uma política errática. O equívoco aqui é grande. Ele
oculta que a proteção da economia nacional, a garantia dos
direitos dos trabalhadores, a CLT e a própria Constituição
de 1988 estão sendo “desconstruídas” para atender ao
imperialismo dos EUA e não ao lumpesinato que, como
indicam os próprios autores, sequer têm capacidade política
e projeto de poder.

Abril de 2019

123
A POLÍTICA ECONÔMICA DE BOLSONARO SERIA
CONTRÁRIA AO CAPITAL FINANCEIRO?

A política econômica do Governo Bolsonaro sugere


que devem ser revistas algumas teses consagradas sobre o
capitalismo e o Estado brasileiro no período recente. Talvez,
seria melhor dizer, devem ser retificadas. Escrevo este texto
com a intenção de iniciar um debate sobre essa retificação.
Dois fatos ocorridos no início do mês de fevereiro
servem como ponto de partida para a reflexão. O Banco
Central voltou a reduzir a taxa Selic e o Ministério da Fazenda
suspendeu alguns obstáculos legais que dificultavam a
participação das construtoras estrangeiras em obras de
infraestrutura no Brasil. Não são fatos isolados. Quem
acompanha o noticiário sabe que o Governo Bolsonaro tem
tomado várias medidas que não são propriamente do agrado
de segmentos importantes do capital financeiro e outras tantas
que atendem amplamente os interesses do capital
internacional.
Predomina amplamente no meio acadêmico e no
jornalismo progressistas a visão segundo a qual o “capital
financeiro” genericamente apresentado domina o “capital
produtivo”, também apresentado nessa expressão geral. O
modelo geral é muito bem conhecido e foi aplicado tal e qual
aqui no Brasil. Antecipo uma observação: uma tese produzida
nos países centrais e tendo em vista, fundamentalmente, a
realidade do capitalismo desses países, foi transplantada e


Artigo publicado no site A Terra é redonda em março de 2020.
124
aplicada tal e qual em um país de capitalismo dependente
como o Brasil. Voltaremos a esse ponto.
Agora, vejamos o tal modelo geral: a) na atual fase do
capitalismo, teríamos a acumulação de capital sob a égide do
capital financeiro – o capital que se valorizaria sem deixar a
esfera financeira, segundo a definição de François Chesnais
inspirado no conceito de capital portador de juros de Marx;
b) tendo o Brasil ingressado, pelo menos desde os governos
Fernando Henrique Cardoso, no modelo capitalista
neoliberal, predominaria aqui o capital financeiro e, terceiro
passo do raciocínio, c) estaríamos sob a hegemonia política
dessa fração da burguesia. A pergunta então é a seguinte: o
Governo Bolsonaro estaria desafiando o modelo atual de
capitalismo? A pergunta procede porque o Banco Central, sob
o seu governo, vem derrubando sistematicamente a taxa
básica de juros e o presidente da República usou os bancos
públicos para pressionar os bancos privados a reduzirem a
taxa de juros do cheque especial. O presidente chegou a fazer
provocações públicas aos banqueiros, afirmando algo como:
“A Caixa Federal vai tomar todos os clientes deles”. Paulo
Guedes, por sua vez, discursou em Davos contra a
escravização da economia brasileira por meia dúzia de bancos.
Parecem-se com as afirmações feitas pelo ex-Ministro da
Economia Guido Mantega, afirmações às quais se atribuiu
aquela que teria sido a participação ativa do capital financeiro
no movimento golpista.
Uma primeira tentativa de solução seria
considerarmos a hipótese de que o capital financeiro não
domina a economia brasileira e tampouco detém a hegemonia
no bloco no poder. Mas, os fatos e análises existentes são

125
consistentes para vetar esse caminho. Um segundo
encaminhamento seria perguntarmos se a noção de capital
financeiro e a representação do seu conflito com o capital
produtivo não seriam utilizadas sem as devidas adaptações à
realidade do capitalismo brasileiro, que é um capitalismo
dependente. Esse é o caminho que nos parece mais indicado.
A solução ficaria, mais ou menos, como segue.
Comecemos pelo modelo explicativo mais geral. No
capitalismo neoliberal, a subordinação da economia dos países
dependentes entra numa nova fase. Mais desnacionalização da
economia, desindustrialização precoce e concentrada nos
segmentos de maior densidade tecnológica, isto é, reativação,
em bases históricas novas, de alguns elementos do tipo de
dependência do período pré-1930. O capital financeiro, nesse
modelo, precisa ser desmembrado. Temos um segmento no
Brasil, o mercado de bancos comerciais principalmente, que é
dominado por grandes bancos nacionais públicos e privados.
Quem é prejudicado pelas medidas de política econômica do
Governo Bolsonaro é o segmento nacional do capital
financeiro. É contra ele que se pronunciou Guedes em Davos
e é contra ele que Bolsonaro delegou ao presidente do Banco
Central a autoridade para abrir o mercado bancário nacional
aos bancos estrangeiros. O objetivo parece ser o mesmo que
Fernando Henrique e Pedro Malan perseguiram, com êxito,
na década de 1990. Sim, Fernando Henrique não representava
o “capital financeiro” em geral, mas, particularmente, o capital
financeiro internacional. Essa política sofreu uma reversão
durante os Governos Lula.
Do que é que estamos falando? Do imperialismo e da
dependência. No Brasil, não se pode importar, sem

126
especificações, a tese do predomínio do capital financeiro.
Aqui, o conflito mais importante no seio da classe capitalista
tem sido, ao longo dos últimos anos, o conflito entre a grande
burguesia interna, que compreende inclusive o capital
bancário, e a burguesia associada ao capital internacional, que
abrange segmentos do capital produtivo. Os dois sistemas de
fracionamento se cruzam. Do mesmo modo que no segmento
do capital financeiro temos um setor que integra a burguesia
interna e outro que integra a burguesia associada, assim
também no segmento do capital produtivo temos burguesia
interna e burguesia associada. Essa divisão é clara na indústria
de transformação e na cúspide do agronegócio, onde a
nacional JBS convive com a multinacional Bunge. Os dois
sistemas de fracionamento se cruzam, mas qual seria o
principal?
Desde a crise de 2015-2016, os conflitos intra-
burgueses entraram numa fase de moderação. A burguesia
interna sem ter se dissolvido como fração de classe, já que
mantém uma política de pressão sobre o governo como
estamos vendo na resistência à redução da tarifa comum do
Mercosul, abandonou a posição de fração autônoma, isto é,
dotada de um programa político próprio com vistas à
hegemonia política, ao aderir, em sua maioria, e atraída por
políticas como a reforma trabalhista e reforma da previdência,
ao Governo Bolsonaro. É um conflito que, mesmo
moderado, permanece e, nele, o Governo Bolsonaro toma
partido claramente do lado do capital internacional:
privatizações que estão passando empresas públicas para as
mãos do capital estrangeiro, venda da Embraer, abertura do
mercado de obras públicas após a destruição das empresas de

127
engenharia nacional, alinhamento passivo e explícito com a
política externa dos Estados Unidos e assim por diante.
O Governo Bolsonaro não representa
prioritariamente o capital financeiro em geral. Representa o
segmento associado e internacional desse capital – bancos de
investimentos brasileiros voltados para a captação de recursos
externos, seguradoras e bancos de investimentos estrangeiros.
A posição dos grandes bancos privados nacionais, que, diga-
se de passagem, sustentaram o Governo Dilma até a véspera
do impeachment, como mostra pesquisa de André Flores da
Unicamp15, essa posição está ameaçada. Eles continuam com
lucros altíssimos, mas perderam o controle da política de
Estado. Poderão, nos próximos anos, perder também o
controle do mercado bancário nacional. O mesmo vale para o
segmento produtivo da burguesia interna. Muitas empresas
industriais e do agronegócio poderão ter o mesmo destino que
tiveram as grandes empreiteiras.
No interior da burguesia interna, temos sim um
conflito entre o capital financeiro interno e o capital produtivo
interno, mas esse não é o principal conflito existente no
interior da burguesia brasileira. O principal é o conflito do
conjunto da grande burguesia interna com a burguesia
associada e o capital internacional. É do lado desses dois
últimos segmentos que se encontra, sem possibilidade alguma
de dúvida, o governo neofascista de Jair Bolsonaro.

15André Flores Penha Valle, Divisão e reunificação do capital financeiro: do


impeachment ao Governo Temer. Dissertação de Mestrado. Unicamp.
2019.

128
Os analistas da política brasileira do período recente e
atual que supõem ser possível discorrer sobre o conflito entre
“rentistas” e “capital produtivo”, omitindo a dependência e o
imperialismo, precisam rever suas análises.

Março de 2020

129
O CONTEÚDO DO NACIONALISMO DE
BOLSONARO

Por ocasião do 7 de Setembro, o campo democrático


e popular deparou-se novamente com a questão: o Governo
Bolsonaro e o movimento que o apoia é, de fato, nacionalista?
Alguns intelectuais e agrupamentos de esquerda respondem
negativamente a essa questão. Afirmam que o nacionalismo
de Bolsonaro é vazio, demagógico ou que não seria um
“verdadeiro nacionalismo”. Não pensamos que essa seja uma
maneira correta de analisar a questão e vamos tentar explicar
por que.
A dúvida de alguns sobre o nacionalismo de
Bolsonaro deve-se, como se sabe, ao fato de o seu governo
ser entreguista no plano da economia e subserviente aos
Estados Unidos no plano da política externa. Lembremos que
ele deu sequência, nessa matéria, ao que fora iniciado pelo
Governo Temer: alinhamento com a política dos EUA para a
América Latina, desnacionalização dos aeroportos; venda de
parte da Petrobrás; modificação, a pedido das petroleiras
internacionais, do regime de exploração do petróleo do pré-
sal; entrega da Base de Alcântara aos Estados Unidos etc. Mas,
aqui, já se pode observar um fato interessante: o Governo
Temer era entreguista, tal qual o de Bolsonaro, mas o
primeiro, diferentemente do segundo, não ostentava um
discurso nacionalista. Praticava discretamente o entreguismo,
enquanto o Governo Bolsonaro pratica-o alardeando
nacionalismo. E pensar que se trata justamente do presidente


Artigo publicado no site A Terra é Redonda em 11 de setembro de 2020.
130
que fez continência para a bandeira estadunidense! Temos
algo novo aí. Mera demagogia para enganar as massas? Não
cremos.
O nacionalismo de Bolsonaro tem substância própria
e pode, a justo título, reivindicar-se nacionalista. Não se trata
de um discurso usurpador. Por que? Porque existem vários
tipos de nacionalismo e todos eles, sem exceção, descendem
de um tronco comum. O tronco comum é a ideia de nação
que todos os nacionalismos compartilham, a despeito de
poderem, na luta de ideias e na luta prática, colocarem-se em
campos opostos.
Qual ideia de nação é essa? A de um coletivo de
cidadãos, habitantes de um mesmo território e que seriam
dotados de valores e interesses comuns. Essa ideia de
comunidade de interesses e de valores não decorre do
território, de uma língua ou de uma história comum. Há
povos que falam a mesma língua e estão organizados em
nações diferentes, como há nações cuja população fala
diferentes línguas. Tampouco decorre de perfis culturais e
psicológicos que abrangeriam todo um “povo”. Essa
concepção culturalista de povo ou de nacionalidade não
encontra apoio empírico nas nações modernas. Qual é o traço
cultural ou o perfil psicológico que caracterizaria o conjunto
dos brasileiros? A cordialidade, a extroversão e a
hospitalidade, como ainda acreditam alguns? Fosse assim, o
Brasil não teria produzido o bolsonarismo.
Na verdade, a nação, como unidade política e como
ideia, foi uma criação das revoluções políticas burguesas.
Como? Realizando duas transformações jurídicas e políticas
que, combinadas, produziram aquele resultado.

131
Aquela revolução dissolveu as antigas ordens (de um
lado, homens livres, de outro, servos ou escravos) e
estamentos (nobres e plebeus) e implantou a igualdade
jurídica entre os cidadãos. Essa transformação abriu caminho
para a segunda que consistiu em liquidar o monopólio que a
classe dominante detinha dos postos do Estado – monopólio
que era viabilizado pela reserva, legalmente estabelecida, de
tais postos à ordem superior (homens livres) ou até mesmo
apenas ao estamento superior da ordem superior (nobres) – e
substituí-lo pela abertura formal, jurídica, de tais postos a
indivíduos egressos de todas as classes sociais. Operário,
camponês, profissional de classe média, industrial ou
banqueiro, nada obsta, do ponto de vista jurídico, que
qualquer um deles assuma qualquer posto em qualquer um
dos ramos do Estado. Na prática, a grande maioria dos postos
de mando são ocupados por indivíduos provenientes de
famílias burguesas ou abastadas, mas seria um erro concluir
daí que nada mudou. O fato de tais postos serem
juridicamente acessíveis para os indivíduos provenientes de
famílias das classes trabalhadoras e o fato de que, embora
minoritariamente, indivíduos egressos das classes populares
ocupem, de fato, altos postos de mando no Estado, esses
fatos produzem efeitos ideológicos fundamentais. O
resultado da dupla transformação é o seguinte. Os indivíduos
se tornam formalmente iguais, e por isso potencialmente
dotados de interesses que seriam comuns, e o Estado, que
aparentemente a todos acolhe, pode se apresentar como se
fosse a instituição que a todos representa. Forma-se, então, o
coletivo imaginário que denominamos nação.

132
O coletivo é imaginário porque esses cidadãos
habitantes de um mesmo território estão divididos, já que
esposam valores e possuem interesses conflitantes ou
contraditórios: valores e interesses de classe, de gênero, de
raça etc. Em tal situação, isto é, numa situação em que a
grande maioria se vê como integrante do coletivo nacional e
o valoriza, a tendência é que as classes e demais segmentos
sociais, caso não rompam com a ideologia nacional, procurem
torcê-la para colocá-la a serviço dos seus valores e interesses
específicos. Esse é o caminho para apresentar como
universais valores e interesses que, de fato, são particulares –
caminho espontaneamente buscado pela maioria das
ideologias.
Nos países imperialistas, a burguesia e os aliados que
ela lograr conquistar nas classes dominadas, irão esgrimir a
ideia de interesses nacionais para legitimar políticas
imperialistas que negam aos povos oprimidos a afirmação
nacional. É nacionalismo negando nacionalismo. Nos países
dependentes, as classes dominadas podem lançar mão da ideia
de nação para legitimar um nacionalismo econômico e
político, visando ao usufruto das riquezas do território
nacional pela grande maioria dos seus habitantes e visando à
necessária soberania do Estado nacional para lograr o
controle de tais riquezas. Esse será um nacionalismo
democrático e popular, oposto ao nacionalismo imperialista
anteriormente citado. Tem mais. Um governo ou regime
fascista poderá, como a história ilustra à saciedade, lançar mão
da ideia de nação, esse coletivo imaginário, homogêneo e
legitimado pela grande maioria, para combater e criminalizar
a luta de classes – entenda-se: a luta da classe operária pelo

133
socialismo. Hitler e Mussolini foram nacionalistas. Em seu
livro Lições sobre o fascismo, o dirigente comunista italiano
Palmiro Togliatti sustenta que o elemento ideológico mais
importante do fascismo é o “nacionalismo exacerbado”.
O nacionalismo do Governo Bolsonaro e do
bolsonarismo é um nacionalismo de tipo fascista. Ele consiste
em lançar contra os movimentos de trabalhadores, de
mulheres, de negros, contra a população indígena e LGBT a
acusação de que estão dividindo e conspurcando a nação. O
raciocínio dos bolsonaristas – na verdade, o seu procedimento
instintivo já que o ideólogo pratica a sua ideologia sem
conhecê-la – é este: a nação – no caso, o Brasil – é um coletivo
homogêneo e aqueles que minam, corrompem e ameaçam
essa homogeneidade devem ser combatidos como se
combatem os criminosos. É um nacionalismo retrógrado e
autoritário. Recorrendo ao coletivo nacional imaginário,
pretendem universalizar sua ideologia pró-capitalista, racista e
patriarcal que seriam, para os bolsonaristas, os atributos da
nacionalidade brasileira. Desprovido de um programa de
afirmação da economia e do Estado brasileiro no cenário
internacional, esse nacionalismo se expressa, seguindo o
Governo Trump, no discurso contra o globalismo, contra as
instituições multilaterais, e no mero fetiche de símbolos
nacionais – a camisa amarela, a bandeira etc. Mas, o
nacionalismo de Bolsonaro não é falso e nem demagógico, ele
é conservador, fascista, uma das variantes possíveis da
ideologia nacional.
As variantes da ideologia nacionalista são muitas e,
embora diferentes e até antagônicas, descendem de um tronco
comum. É possível fazer algumas generalizações que

134
contribuam para discernir tais variantes. Nos países centrais,
a ideologia nacional é no geral reacionária. A resposta
conhecida dos operários europeus a essa ideologia foi o
internacionalismo proletário e a negação de laços nacionais
que uniriam classes antagônicas. Nos países dependentes, a
ideia de nação ainda tem um papel progressista a cumprir na
primeira fase do processo revolucionário desses países. Tanto
as tarefas dessa fase, quanto as forças que a integram em razão
de sua inserção econômica e social, induzem a coesão do
movimento revolucionário com o recurso à ideologia
nacional. Esse movimento poderá falar em nome do “povo
brasileiro”, mas o povo aqui é definido politicamente e não de
modo culturalista. A ideia de povo e de nação expressará uma
aliança política de classes que poderá reunir as classes
populares – operariado, campesinato, classes médias,
trabalhadores da massa marginal – e até de setores burgueses
– pequenas e média empresas. Assim, em tais países, podemos
encontrar um nacionalismo democrático e popular, embora
também haja espaço para o nacionalismo fascista.
Mas os revolucionários da África, da Ásia e da
América Latina não podem se esquecer que a nação é uma
criação da burguesia e que o objetivo do movimento operário
socialista sempre foi o de superar a divisão nacional. Tal
divisão é, no plano político e ideológico, uma criação das
revoluções burguesas e uma realidade própria do capitalismo.
Superar o capitalismo implica a superação do Estado nacional.
É certo que seria ilusão pleitear, aqui e agora, uma instituição
supranacional e soberana – se tal instituição chegasse a existir,
ela estaria sob o controle de uma ou mais potência
imperialista. Contudo, tampouco se pode perder de vista que,

135
já hoje, problemas candentes da humanidade, citemos apenas
a crise ambiental e climática, não podem ser resolvidos dentro
dos limites estreitos impostos pelos Estados nacionais.

136
A DEMOCRACIA EM PEDAÇOS: O PERIGO DE
GOLPE FASCISTA

A democracia brasileira encontra-se seriamente


ameaçada. O campo autoritário, composto pela ala militar e
pela ala fascista do Governo Bolsonaro, está forte e, apesar de
pressionado pelo Superior Tribunal Federal (STF) durante
este mês de maio, ainda detém a iniciativa política. A
resistência ao fascismo, composta pelo campo liberal
conservador e pelo campo democrático e popular está fraca,
dividida e na defensiva. Aproximamo-nos perigosamente,
neste mês de maio de 2020, de uma ditadura fascista.
Essa situação política é muito mais complexa do que
aquela que conhecíamos sob os governos encabeçados pelo
PT. Tínhamos uma polarização partidária moderada que
opunha na cena política o PT ao PSDB e que girava
basicamente em torno da definição da política econômica e
social – neoliberalismo ou neodesenvolvimentisto? Nenhum
desses dois campos era homogêneo, congregavam classes e de
frações de classe com interesses conflitantes, mas, a despeito
desse fato, essa divisão fundamental se impunha e cada força
tratava de acomodar-se, mesmo que criticamente, de um lado
ou de outro da linha que dividia a política nacional. Era a
contradição principal, para retomarmos o conceito cunhado
por Mao Zedong.
Desde a crise do impeachment, surgiram conflitos
novos, outros, até então fracos, ganharam nova dimensão, e


Artigo publicado no site A terra é redonda em 29 de maio de 2020.
137
todos eles se entrecruzaram com os conflitos antigos que,
embora deslocados para um plano secundário, permanecem
ativos no processo político. Na situação atual, os interesses
das diversas forças sociais em presença possuem múltiplas
facetas que ora aproximam tais forças, ora as repelem e, em
consequência, a linha que as divide tornou-se muito móvel e
flexível. A polarização partidária moderada desapareceu,
partidos tradicionais da burguesia entraram em crise, o micro
Partido Social Liberal (PSL) tornou-se grande graças ao
tsunami eleitoral em 2018, o sistema partidário tornou-se
fluido e as instituições do Estado tornaram-se os atores
centrais da cena política. No sistema judiciário nasceu um
partido em sentido lato, a Lava-Jato, os militares, cuja atuação
era difusa, discreta e puramente defensiva durante os
governos do PT, tornaram-se um grupo politicamente
organizado e são força destacada no governo e o Superior
Tribunal Federal (STF) protagoniza conflitos agudos com o
Executivo Federal.
Neste texto, abusivamente extenso talvez para o
padrão do site A Terra é redonda, vou procurar indicar o que
foi que mudou na política brasileira, para depois então
examinar o ponto em que chegamos.

O golpe de 2016 e o nascimento do movimento fascista16

Até 2015, a política brasileira apresentava uma divisão


de campos relativamente simples. Tínhamos, de um lado, o

16 Nos capítulos 12, 13 e 14 deste livro, justifico porque é correto


caracterizar o Governo Bolsonaro como um governo fascista, embora não
tenhamos, até aqui, uma ditadura fascista no Brasil.
138
campo neoliberal mais ortodoxo, e, de outro, o campo
neodesenvolvimentista17. O primeiro representava os
interesses do capital internacional, da fração da burguesia
brasileira integrada a esse capital e se apoiava principalmente
nos segmentos rico e remediado da classe média. Possuía,
também, alguma base no movimento operário – basta lembrar
as oscilações da central sindical Força Sindical. No plano
partidário, o principal representante desse campo político era
o PSDB. O segundo campo representava os interesses da
grande burguesia interna brasileira, fração burguesa
dependente do capital estrangeiro, mas que mantém conflitos
moderados com esse capital. A política
neodesenvolvimentista, de intervenção do Estado para
estimular o crescimento econômico e proteger
moderadamente o mercado interno atendia, prioritariamente,
os interesses dessa fração. Tal política se apoiava em amplos
setores das classes populares – operariado, campesinato, baixa
classe média e, segmento muito importante, os trabalhadores
da massa marginal. A intervenção do Estado no combate à
pobreza e uma moderada expansão de direitos sociais
contemplavam, ainda que secundariamente, os interesses
desses segmentos populares. Formou-se, na verdade, uma
frente política ampla e heterogênea que denominamos frente
neodesenvolvimentista e essa frente era representada no
plano partidário pelo PT. Essa divisão entre neoliberais
ortodoxos e neodesenvolvimentistas não ameaçava o regime

17Desenvolvo essa análise no meu livro Reforma e crise política no Brasil – os


conflitos de classe nos governos do PT. São Paulo e Campinas: Editora
Unesp e Unicamp. 2018.
139
democrático e a percepção dominante era a de que a
democracia estava consolidada no Brasil.
Porém, em outubro de 2014, diante da quarta derrota
consecutiva na eleição presidencial, o PSDB decidiu
abandonar o jogo democrático e deu início a uma nova fase
da ofensiva política restauradora do campo neoliberal,
ofensiva que vinha em curso desde 2013. O afastamento da
ex-presidente Dilma em maio de 2016 revelou debilidades da
frente política neodesenvolvimentista, debilidades oriundas,
de resto, de características de longa duração da política
brasileira, e promoveu duas alterações de grande importância.
Na cúpula da frente neodesenvolvimentista, a grande
burguesia interna, tal qual ocorrera em outros momentos da
história política do país, oscilou politicamente. Dividiu-se
entre a adesão ao movimento golpista e uma posição de
neutralidade prejudicial ao governo. Na base dessa mesma
frente, o principal apoio social do lulismo – o enorme
contingente de trabalhadores da massa marginal – não se
mobilizou em defesa do governo de cuja política era também
beneficiário. A relação populista dos governos do PT com
esse segmento popular, relação que bloqueava a organização
política desses trabalhadores, cobrou o seu preço no
momento da crise – tampouco em 1964 ocorrera mobilização
popular contra o golpe de Estado. Quanto ao resultado da
deposição de Dilma, o Governo Temer, de um lado, e
perseguindo os objetivos da força política dirigente do golpe
do impeachment, mudou o rumo da política econômica,
social e externa do Estado brasileiro e, de outro, representou
uma situação de instabilidade na democracia brasileira. Temer
passou a legislar prioritariamente para o capital internacional

140
e para a fração burguesa integrada a esse capital – privatização
com preferência para o capital estrangeiro, política de
enxugamento do orçamento do BNDES, maior abertura
comercial etc. Mas, legislou também para a grande burguesia
interna, embora o fizesse, principalmente, quando atacava, em
nome de toda a classe burguesa, e não apenas de uma de suas
frações, os interesses dos trabalhadores – reforma neoliberal
do direito do trabalho, emenda constitucional do teto de
gastos, projeto de reforma da previdência e outras medidas.
Com o Governo Temer, a democracia fora violada,
entrou numa fase de instabilidade, mas predominava entre as
forças golpistas a defesa de uma estratégia de “intervenção
política cirúrgica”: uma ruptura da democracia que fosse
pontual e limitada no tempo. A eleição de 2018, e contando
com um presidente eleito, poderia, é o que pensavam os
promotores do golpe, retomar a “normalidade democrática”.
Tratava-se de partidos políticos, de meios de comunicação e
de agentes do Judiciário que professavam um liberalismo
político conservador. Embora tivessem assumido uma
posição autoritária e golpista em 2016, ainda atribuíam algum
valor à liberdade de expressão, ao direito de associação, à
representação política pelo sufrágio etc. Mas as coisas não se
passaram como desejavam e previam esses liberais. Ocorreu
que o movimento pela deposição do Governo Dilma
organizado pela alta classe média18 adquiriu força e dinâmica

18 Santiane Arias e Sávio Cavalcante fazem uma análise detalhada da


composição social do movimento pelo impeachment. Ver “A divisão da
classe média na crise política brasileira (2013-2016)”. In Paul Boufartigue,
Armando Boito, Sophie Bérroud e Andréia Galvão (orgs.), O Brasil e a
França na mundialização neoliberal – mudanças políticas e contestações
sociais. São Paulo: Editorial Alameda. 2019. Pp. 97-125.
141
próprias e as candidaturas do campo neoliberal ortodoxo,
apesar de fortalecido pela adesão da maior parte da grande
burguesia interna, essas candidaturas revelaram-se
eleitoralmente inviáveis. A grande burguesia e os seus
representantes liberais decidiram, então, pragmaticamente,
abraçar a candidatura neofascista de Jair Bolsonaro e
principalmente após o então candidato à presidência anunciar
que entregaria o Ministério da Fazenda para o ultraliberal –
estamos agora nos referindo ao liberalismo econômico –
Paulo Guedes.
O neofascismo e o seu candidato nasceram de duas
fontes. Em primeiro lugar, da depuração do movimento
reacionário da alta classe média pela deposição do Governo
Dilma. Nem todas organizações e grupos que empolgaram
aquele movimento tomaram o caminho do fascismo, mas
todos eles sem exceção apoiaram, movidos pelo antipetismo,
o candidato fascista. O seu objetivo era barrar a modesta
ascensão social das camadas populares que fora propiciada
pelo neodesenvolvimentismo. Em segundo lugar, o
neofascismo recebeu apoio, já no seu período inicial, dos
proprietários de terra, principalmente das regiões Centro-
Oeste e Sul, proprietários cujo principal objetivo era adquirir
cobertura legal para se armarem e para tratarem, literalmente,
a ferro e fogo os camponeses, indígenas e quilombolas. A
grande burguesia chegou mais tarde. Até o início de 2018,
mantivera-se afastada do movimento neofascista, mas em
meados daquele ano decidiu adotá-lo. Bolsonaro foi então
maquiado para se tornar um candidato como outro qualquer
e venceu a eleição de 2018, graças também a outros fatores
que não interessa analisar aqui. No segundo turno da eleição

142
presidencial, dirigentes do PSDB asseguravam que o
candidato fascista não representaria ameaça alguma ao regime
democrático.

Os fascistas, os militares e os liberais

Já no Governo Temer, um novo ator passou a atuar


abertamente no processo político: o grupo militar. Num
crescendo, esse grupo foi assumindo uma posição tutelar
sobre as instituições democráticas. Recordemos dois marcos
desse processo. O General Sergio Etchegoyen, Ministro do
Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da
República durante o Governo Temer, dispensou a Dilma
Rousseff, então afastada da presidência mas ainda residindo
no Palácio da Alvorada, o tratamento que se dispensa a um
prisioneiro e, dois anos depois, o então Comandante do
Exército, Gal. Eduardo Villas Bôas, fez, em 03 de abril de
2018, intervenção pública constrangendo o STF a recusar o
habeas corpus solicitado pela defesa do ex-presidente Lula.
Nesse meio tempo, os militares de alta patente, da ativa e da
reserva, se pronunciaram impunemente sobre tudo o que lhes
convinha para barrar a volta do Partido dos Trabalhadores ao
governo. Como reagiram os liberais? Pouco tempo antes, com
a abertura do processo de impeachment, eles já tinham
recusado o resultado da eleição de 2014, lançado o voto
popular no descrédito e minado, por consequência, a força da
representação política que é arma de que dispõem os partidos
e o Congresso Nacional diante das pretensões autoritárias da
burocracia de Estado – civil ou militar. Agora, aceitaram
também a escalada dos generais sobre a vida política, afinal
143
barrar o PT era, segundo seus cálculos, fundamental para que
o país pudesse voltar à dita “normalidade democrática”. Os
militares foram, então, avançando cuidadosa e
sistematicamente. Hoje, estão no governo com o grupo
fascista e ameaçam abertamente a democracia.
Examinemos mais de perto essas três forças e as
relações entre elas. Primeiro, é necessário dizer que o
fundamental do jogo político se dá entre elas porque a
esquerda e a centro-esquerda foram jogadas para o fundo da
cena política. Acumularam derrota atrás de derrota desde
maio de 2016, estão fragilizadas e na defensiva. Em segundo
lugar, destaque-se que fascistas, militares e liberais
conservadores são três forças que representam interesses da
burguesia. O fascismo é um caso especial. Não era burguês,
nasceu de baixo para cima. Era um movimento de classe
média que, mesmo contando com o apoio de setores da
burguesia, mantinha uma dinâmica própria. Contudo, para
chegar ao governo o fascismo teve, tal qual ocorrera com o
fascismo original na Itália e na Alemanha, de se curvar
politicamente diante da burguesia e passar a representar, uma
vez no governo, os interesses da classe capitalista. No caso do
fascismo original, Mussolini e Hitler cuidaram da implantação
da hegemonia do grande capital na passagem do capitalismo
concorrencial para o capitalismo monopolista19; no caso do
Brasil, o Governo Bolsonaro, seguindo o que fora iniciado no
Governo Temer, organiza a hegemonia do capital
internacional e da fração da burguesia brasileira integrada a
esse capital contando, até aqui, com a participação
subordinada da grande burguesia interna nesse arranjo de

19 Nicos Poulantzas, Fascisme et dictature. Paris: François Maspero. 1970.


144
poder. Em terceiro lugar, fascistas, militares e liberais
conservadores defendem, a despeito de diferenças que os
afastam, a política econômica e social neoliberal e uma política
externa de alinhamento passivo com os EUA. Há, então, uma
unidade de fundo entre elas; mas, há também diferenças. As
diferenças entre militares e fascistas são de menor
importância, estão juntos no governo e agem de modo
harmonioso. A diferença maior é entre a corrente política
liberal conservadora e os dois grupos anteriores. Hoje, no
Brasil, a oposição ao governo Bolsonaro é dirigida pela
corrente burguesa liberal e isso tem consequências.
O grupo fascista controla o governo. O seu objetivo
estratégico é eliminar a esquerda do processo político
nacional, objetivo que Bolsonaro proclamou durante a
campanha e continua a proclamar e a perseguir uma vez no
governo, objetivo de resto que é o que direciona esse grupo
para a implantação de uma ditadura no Brasil. Esse grupo é
composto pelo presidente Bolsonaro e pela maioria dos
ministros civis – aí incluído Paulo Guedes que não está no
governo apenas por pragmatismo, mas, como mostram suas
declarações e entrevistas, também por partilhar as ideias
fascistas do seu chefe. Nesse grupo, os ministros representam
diferentes tendências ideológicas emanadas das bases
fascistas. Damares Alves zela pela politização do
patriarcalismo e Abraham Weintraub, lídimo representante da
fração da classe média conquistada pelo autoritarismo, zela
pela luta contra a esquerda e a plutocracia que, segundo ele,
seriam, seguindo o padrão do discurso fascista, duas forças

145
aliadas20. Ele cultiva também o sentimento de repulsa àquilo
que os fascistas denominam velha política, mas que é, na
verdade, repulsa à política democrática. Ricardo Salles é o
homem dos grandes proprietários, principalmente da Região
Centro-Oeste, que aderiram ao fascismo antes mesmo que a
grande burguesia financeira e internacional o fizesse. Sergio
Moro não fazia parte desse grupo. Representava a classe
média liberal e conservadora que, diante dos governos do PT,
assumiu uma posição autoritária e golpista, mas sem se
converter doutrinariamente ao autoritarismo – movimentos
como o MBL e o Vem Pra Rua já tinham abandonado
Bolsonaro antes mesmo de Sergio Moro deixar o governo.
Bolsonaro dá a última palavra em todas as decisões
governamentais. Demonstra determinação e não se intimida
diante dos generais – o que foi evidenciado pela exibição do
vídeo da famigerada reunião ministerial de 22 de abril quando,
dentre outras coisas, Bolsonaro proclamou, diante de militares
que permaneceram calados, a necessidade de “armar a
população” para enfrentar os governadores e prefeitos que
impunham o isolamento social no enfrentamento da epidemia
do novo coronavirus.
Os militares, apesar da grande influência no governo,
não conseguiram impedir Bolsonaro de demitir os ministros
da Saúde da Justiça e abaixaram a cabeça até mesmo diante
das ofensas e deboches proferidos contra as Forças Armadas
pelo mentor intelectual do grupo fascista, o escritor Olavo de

20 Ver a palestra o atual ministro da educação no Congresso Conservador


de São Paulo. Esse evento foi realizado no Hotel Transamérica nos dias
11 e 12 de outubro de 2019. As palestras encontram-se no Youtube. Eis o
link para acessar a palestra de Abraham Weintraub:
https://www.youtube.com/watch?v=4ZJavgrhwQc.
146
Carvalho. Estão unidos ao grupo fascista pelo ódio à
esquerda, que foi revigorado devido ao trabalho, sob o
Governo Dilma, da Comissão Nacional da Verdade que pôs
a nu o compromisso da instituição militar com a tortura; pela
aspiração à implantação de um regime ditatorial no Brasil e,
não menos importante, estão unidos aos fascistas também
pelos escandalosos privilégios salariais e previdenciários que
o Governo Bolsonaro lhes propiciou. O que afasta esse grupo
do grupo fascista é algo adjetivo: o tipo de regime ditatorial
que mais conviria ao Brasil. Os fascistas pleiteiam, como
ocorreu com o fascismo original, uma ditadura com
mobilização política e com luta cultural. Olavo de Carvalho
tem um diagnóstico claro sobre a ditadura militar: teve
méritos na economia, mas deixou o campo da cultura livre
para a esquerda atuar, isto é, não criou um movimento
cultural, que Carvalho chama eufemisticamente de
conservador, para disputar a hegemonia com a esquerda. O
resultado, continua o ideólogo fascista, foi que na primeira
crise política do regime, a esquerda ocupou posição
hegemônica nas instituições culturais e estabeleceu um longo
reinado de 1994 a 2016 – esse ideólogo e seus seguidores
consideram tanto o PSDB quanto o PT igualmente “de
esquerda” ou “comunistas”. Ele e seu grupo almejam uma
ditadura, mas não uma ditadura burocrática, sem mobilização
política, que é o modelo que mais seduz os militares. Claro,
podem, como antidemocráticos que são, chegar a um acordo
até mesmo sobre um regime ditatorial misto, que combinasse
elementos do fascismo com elementos da ditadura militar. Os
conflitos entre esses dois grupos são, portanto, secundários,
moderados e passíveis de acomodação.

147
O conflito mais sério é aquele que opõe a corrente
liberal conservadora ao governo composto por fascistas e por
militares. Essa corrente representa, prioritariamente, o grande
capital internacional e a fração da burguesia brasileira a ele
integrada. Por que, então, surgem conflitos entre os
representantes tradicionais dessa fração burguesa e o
Governo Bolsonaro que, como argumentei, tem priorizado os
interesses dessa mesma fração? Tanto no fascismo original,
quanto no fascismo brasileiro, a burguesia não logra converter
o movimento fascista em mero instrumento passivo dos seus
desígnios. Bolsonaro tem de dar alguma satisfação à sua base
social, isto é, aos caminhoneiros, ao pequeno comércio e a
segmentos da classe média. A burguesia favoreceu a ascensão
do fascismo ao poder, ganhou muito com isso, mas, agora,
não logra controla-lo como o desejaria.
A corrente liberal conservadora congrega partidos
políticos, como o PSDB e o DEM, e a grande imprensa, como
a Folha de S. Paulo, O Globo e o Estado de S. Paulo, e tem o
controle de importantes instituições do Estado, a começar
pelo STF. Poderiam objetar: como denominar liberais atores
que participaram do golpe de 2016? O pensamento e a política
liberal, de Stuart Mill a John Rawls, da antiga União
Democrática Nacional (UDN) ao PSDB, nunca descartaram
medidas autoritárias para prevenir o avanço do movimento
operário e popular. Nos momentos de crise, o liberalismo
aproxima-se do autoritarismo, mas sem aderir
doutrinariamente a esse último e isso faz diferença. A corrente
politicamente liberal conservadora, hoje, opõe-se ao grupo
fascista na sua caminhada para implantar uma ditadura no
Brasil. Ocorre que essa corrente é também, como já

148
indicamos, neoliberal, ou seja, defende o Estado mínimo no
terreno da economia. Ora, Paulo Guedes tem uma política
econômica radicalmente neoliberal e, por isso, conta com o
apoio da burguesia que deu o golpe de 2016 e da corrente
liberal conservadora a ela ligada. Essa corrente sabe muito
bem separar, quando criticam o Governo Bolsonaro, o joio
do trigo. Poupam Paulo Guedes e concentram a crítica na
figura do presidente. Estão divididos entre a resistência ao
fascismo e o apoio à política econômica do governo fascista.
Não parecem suficientemente decididos a brecar a ofensiva
fascista.

A ofensiva política fascista

Uma percepção talvez dominante na imprensa realça


unilateralmente as dificuldades atuais – agora, deste mês de
maio – efetivamente enfrentadas pelo Governo Bolsonaro.
Alguns concebem um suposto encurralamento do governo
pelo STF e pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Outros,
mais comedidamente, falam da existência de um equilíbrio de
forças entre as partes em conflito. Entendo que essas análises
são equivocadas. Parece-me que o governo fascista está na
ofensiva política rumo a uma ditadura, age com desenvoltura
e rompe, sucessivamente, um limite após o outro. Testa as
forças democráticas e não encontra resistência à altura. Essa
ofensiva é visível no interior do governo, nas instituições do
Estado e também no âmbito mais amplo da sociedade.
Na análise das mudanças no Ministério da Saúde e da
Justiça ocorridas em abril, a imprensa destacou
unilateralmente o desgaste sofrido pelo governo. Sim, houve
149
desgaste, mas houve também um aumento do controle do
grupo fascista sobre a equipe governamental. Em primeiro
lugar, graças às duas substituições no Ministério da Saúde, o
governo pôde avançar na sua linha de ignorar a epidemia para
manter – é o que imagina – a acumulação de capital. A
militarização desse ministério foi uma decisão ousada que
acabou com toda hesitação e ambiguidade da política nessa
área que é, na atual conjuntura, uma área vital dos governos
em todo o mundo. Impera agora inconteste a linha fascista
diante da epidemia: morra quem tiver que morrer, mas a
acumulação capitalista não pode parar. E, acrescente-se, essa
linha atrai pequenos proprietários e trabalhadores cujos
negócios e empregos são sacrificados pelo isolamento social.
Em segundo lugar, com a substituição no Ministério da
Justiça, o governo assumiu o controle da Polícia Federal (PF).
O Diário Oficial da União publicou decisões que reestruturam
os cargos de direção e o funcionamento da PF em todo o país
e não somente no Rio de Janeiro. Além de colocar a si próprio,
seus familiares, amigos e correligionários fora do alcance da
Justiça, Bolsonaro dá mostras de que poderá converter a PF
na sua polícia política – peça institucional imprescindível de
uma ditadura fascista. Os governadores que implantaram a
quarentena para enfrentar a epidemia estão sendo alvo de
operações espalhafatosas com o suposto objetivo de
combater a corrupção – entenda-se: a corrupção pode existir,
mas o objetivo de tais operações é outro e não propriamente
combatê-la. Esses governadores estão sendo encurralados. É
certo que existem sinais contraditórios. A mesma PF está
agindo duramente, desde ontem 27 de maio, na investigação
do chamado Gabinete do Ódio, produtor bolsonarista de fake

150
news. Parece que há resistência interna ao bolsonarismo no
interior da PF. Nos próximos dias, teremos um quadro mais
claro da situação.
O fascismo está muito mais forte então no governo e
nas instituições do Estado do que estava antes da epidemia.
Manteve o apoio das Forças Armadas, contrariando aqueles
que achavam que sua linha de ignorar a epidemia o desgastaria
diante dos militares, e assumiu o controle da PF. No que
respeita ao Congresso Nacional, Bolsonaro logrou obter
apoio do chamado Centrão e, ao menos no momento atual,
está afastada qualquer possibilidade de impeachment ou o
êxito de qualquer outro processo contra ele que dependa de
aprovação com maioria qualificada no Congresso Nacional.
No nível da sociedade, até aqui, apenas a direita faz
manifestações de rua – manifestações em apoio ao governo, à
sua política genocida diante da epidemia e pelo fechamento
do STF e do Congresso Nacional. Há ainda a possibilidade de
armamento de grupos fascistas. Um podcast do site A Terra
é redonda analisou, com muita propriedade e valendo-se das
informações propiciadas pelo vídeo da reunião ministerial de
22 de abril passado, aquilo que denominaram “uma agenda
oculta” do governo e que consiste, em poucas palavras, no
armamento dos seus apoiadores para o combate aos
opositores, inclusive aqueles que integram a oposição liberal21.
É possível que estejam sendo organizadas, a partir das
chamadas Milícias, dos Clubes de Tiro, dos Clubes de Caça e
de outros pontos de apoio verdadeiras milícias do

21 Ver “Uma agenda oculta”, podcast com Leonardo Avritzer, Eugênio


Bucci e Ricardo Musse. Aterraeredonda
https://aterraeredonda.com.br/uma-agenda-oculta/
151
neofascismo brasileiro. A cada lance do jogo político,
multiplicam-se as ameaças do grupo militar – as últimas mais
graves foram proferidas pelo Gal. Augusto Heleno, chefe do
GSI; a primeira ameaçando o STF e a segunda afirmando que
Bolsonaro irá se rebelar contra eventual ordem da Justiça para
que ele entregue para perícia o seu telefone celular. A cúpula
do grupo fascista, pela voz do deputado Eduardo Bolsonaro,
já defende abertamente o golpe de Estado – a questão,
afirmou o deputado, não é “se”, mas “quando”.
Diante de tais ameaças, as autoridades civis, regra
geral, se calam ou tomam atitudes tímidas. O autoritarismo
fascista e militar avança e os liberais conservadores não
organizam uma verdadeira contraofensiva. A instituição do
Estado que melhor representa o liberalismo conservador na
conjuntura é o STF. As suas iniciativas contra o chefe do
Executivo Federal são as principais ações de resistência ao
avanço do campo autoritário. Também se agravaram os
conflitos de competências entre o Executivo Federal e os
Executivos Estaduais e Municipais, nesse caso conta, além da
contradição entre ditadura e democracia, a resistência de
governadores, nem todos democratas, contra o negacionismo
da epidemia. Constatamos assim o fenômeno que poderíamos
denominar, na falta de outro termo, “crise institucional”,
fenômeno que foi característico também da conjuntura que
precedeu a implantação da ditadura no fascismo original.
O movimento popular, os partidos políticos de
esquerda e os de centro-esquerda estão na retaguarda. E isso
não se deve apenas e tão-somente à epidemia que impõe o
isolamento social. Seria possível organizar carreatas,
sanitariamente muito seguras, em defesa do processo que o

152
STF, por intermédio do Ministro Alexandre Moraes – um
liberal conservador – move contra o chamado Gabinete do
Ódio. Esse não é um episódio qualquer. Trata-se, até aqui, da
ação mais ousada do liberalismo conservador contra o grupo
fascista. O tal “gabinete” é o coração do bolsonarismo no
plano da organização e da agitação política – as milícias
digitais têm sido o sucedâneo no neofascismo brasileiro do
partido de massa do fascismo original. Daí a reação violenta
de Bolsonaro, afirmando publicamente, na manhã do 29 de
maio, que não mais cumprirá ordens do STF quando essas lhe
parecerem “absurdas”. O conflito é duro, embora não haja
entre o STF e o Executivo Federal diferença de fundo no que
respeita à política econômica e social ultraliberal do governo.
Trata-se da luta entre aqueles que querem implantar uma
ditadura, e que controlam o Executivo Federal, e os que
tomam a defesa, ainda que timidamente, da democracia, e que
controlam o STF – a esquerda não pode ficar indiferente
diante desse conflito.
Nós não nos encontramos, porém, numa conjuntura
política estável. A epidemia, o desemprego e a perda de renda
continuam crescendo. A atitude de Bolsonaro diante da
epidemia já abalou o apoio ao seu governo junto à classe
média. As pesquisas de opinião indicam, de um lado, uma
perda de apoio do governo na classe média rica e remediada,
como já vinham sugerindo os panelaços em bairros de alta
renda, e, de outro lado, uma melhoria, ainda que moderada,
da imagem do governo junto aos setores populares. O
desespero da população de baixa renda torna-a sensível à
proposta de reabertura precoce das atividades econômicas e o
auxílio emergencial de R$600,00 reforçou a aproximação de

153
Bolsonaro com esses setores. Ou seja, os efeitos políticos da
situação econômica e sanitária têm sido, até aqui,
contraditórios. De resto, o agravamento da crise econômica e
sanitária não favorece mecanicamente a oposição democrática
e popular. Se houver a percepção majoritária de que
mergulhamos no caos, um golpe para “restaurar a ordem”
poderá ser bem recebido até por segmentos que normalmente
não o aceitariam. Porém, se a oposição lograr a deixar clara a
responsabilidade do governo federal no agravamento da
epidemia, no aumento dos pedidos de recuperação judicial ou
de falência e no crescimento do desemprego, quando tudo
isso se agravar – e isso é para breve – poderemos lograr a
depor o fascismo do poder governamental.
Maio de 2020

154
A TRÉGUA: CONCILIAÇÃO DA OPOSIÇÃO LIBERAL
COM O GOVERNO NEOFASCISTA

Até o final do mês de maio deste ano de 2020, havia


pelo menos três tipos de análise da conjuntura política
brasileira. Agora, no final do mês de junho e nesse início de
julho, seria instrutivo retomarmos aquelas análises e
verificarmos como a conjuntura evoluiu.
A primeira dessas análises, com a qual eu concordava,
afirmava que o Governo Bolsonaro estava mais forte que a
oposição e dirigia uma ação ofensiva contra a democracia.
Contava com o apoio das Forças Armadas, apoio sempre
essencial e mormente na situação de recolhimento criada pela
epidemia. As ruas eram suas e de seus seguidores, a esquerda
só saía de casa quando obrigada a fazê-lo para trabalhar ou
comprar produtos essenciais. Em todos os finais de semana,
ocorriam manifestações de apoio ao Governo Bolsonaro e
pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e
do Congresso Nacional. A oposição ativa ao governo era uma
oposição hesitante e tímida, dirigida pelo campo liberal
conservador. Era assim porque essa oposição queria brecar a
escalada autoritária, mas sem perturbar o programa de
reformas ultraliberais do Ministro Paulo Guedes.
A outra análise era aquela que invertia a anterior.
Sustentava que o Governo Bolsonaro estava se
enfraquecendo e se isolando cada vez mais, que a oposição
crescia e encurralava o governo graças à ação do STF, com o


Artigo publicado no site A Terra é Redonda em 29 junho de 2020.
155
processo sobre a produção de fake news, e do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), onde tramita o processo de cassação
da chapa Bolsonaro-Mourão. Garantia, ainda, que as Forças
Armadas não se aventurariam a dar ou emprestar o seu apoio
a um golpe de Estado. Uma coisa seria apoiar o governo e,
até, ameaçar a oposição. Outra, bem diferente, seria mobilizar
tropas e fechar as instituições da democracia representativa.
Esse segundo passo as Forças Armadas não dariam e até
porque a situação internacional inviabilizaria esse tipo de ação
golpista.
Uma terceira análise mesclava as duas anteriores. No
meu modo de ver o economista Luiz Filgueiras, em live em
evento da Universidade Federal da Bahia, e o jornalista Luiz
Nassif no jornal GGN eram representativos desse enfoque.
De um lado, Bolsonaro estaria, de fato, cada vez mais isolado,
como assegurava a segunda análise. Nassif apresentava mais
de uma vez ao longo do texto esta ideia: “O governo
Bolsonaro agoniza. Fica cada vez mais claro que o Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) está disposto a interromper a
destruição do país”. Mais à frente, sustenta: “Todos os sinais
indicam que a atual geração das Forças Armadas é imune a
aventuras golpistas”. Porém, de outro lado e ao mesmo
tempo, Nassif e Filgueiras sustentavam, concordando agora
com a primeira análise, que Bolsonaro partira para a ofensiva
política e ameaçava a democracia. Ou seja, ele estaria ao
mesmo tempo isolado e na ofensiva. Tentava, portanto, é a
conclusão que se impõe, uma ação política para a qual não
disporia de força suficiente. Teria avaliado mal a correlação de
forças e, tudo indica, iria quebrar a cara.

156
Penso que a conjuntura deste final de mês de junho e
início de julho está indicando que caminhamos para uma
solução conciliadora entre os de cima. Diante da prisão de
Fabrício Queiroz e das buscas e apreensões realizadas nas
residências de blogueiros neofascistas e de integrantes do
chamado “Gabinete do Ódio”, e diante do fato de
organizações populares terem logrado quebrar o monopólio
que a extrema-direita detinha das ruas com manifestações em
defesa da democracia e mais numerosas que as dos apoiadores
de Bolsonaro, o presidente percebeu que tinha de recuar.
Vendo esse recuo, a oposição liberal, em vez de partir de vez
para o ataque, resolveu estender a mão ao governo e propor
uma conciliação.
De um lado, o grupo militar e o grupo neofascista no
governo abdicam, pelo menos por ora, às suas pretensões
autoritárias e, de outro lado, o campo liberal conservador
assume o compromisso de garantir o mandato de Jair M.
Bolsonaro até 2022. A decisão do PSDB de barrar o
impeachment, as conversações entre ministros do STF e
representantes do Executivo Federal e a manifestação virtual
do movimento Juntos no dia 26 de junho apontam nessa
direção. Claro que, o agravamento da crise econômica e
sanitária poderá inviabilizar esse acordo e isso,
principalmente, se os debaixo ingressarem de vez na disputa
política. Porém, no momento atual é a conciliação que parece
prevalecer. Os liberais refletem muito antes de cada passo:
querem brecar a escalada autoritária, mas, como já dissemos,
querem manter o ultraliberalismo econômico e, ainda mais,
temem favorecer a volta do PT ao governo.

157
Se essa avaliação estiver correta, penso que o
desenrolar da conjuntura nas últimas semanas indicou que
havia um equilíbrio de forças entre o campo que almeja o
fechamento do regime e o campo que pretende impedi-lo.
Essa conciliação tem futuro? Manter-se-á, como
desejam os liberais, até 2022? Uma coisa é certa: com o
fascismo no governo a ameaça de ditadura estará sempre
presente.

Julho de 2020

158
ENTREVISTA SOBRE A HISTÓRIA POLÍTICA
RECENTE DO BRASIL

1. As pesquisas desenvolvidas pelo senhor indicam a


centralidade do estudo das classes sociais e suas frações
para que seja possível apreender as condições históricas
que possibilitaram a construção de uma “frente política
neodesenvolvimentista” que sustentou os governos
petistas (2003-2016).

Armando Boito Jr. De fato, pouco ou nada se pode


compreender das instituições e do processo político se não se
parte das classes sociais e dos seus conflitos. E não basta,
como fazem alguns autores, considerar, de modo genérico e
equivocado, a oposição entre a classe capitalista e os
trabalhadores assalariados. Isso porque a classe capitalista,
como mostram Marx, Engels e a maior parte dos autores
marxistas, está dividida, não de modo rígido e estático é
verdade, em frações e, por seu turno, o mundo do trabalho é
composto de mais de uma classe social: a classe operária em
sentido estrito, que são os trabalhadores assalariados manuais
dos diferentes setores da economia, mas também a classe
média, assalariada ou profissionais liberais, o campesinato e
aquele setor que a sociologia crítica latino-americana
denominou “trabalhadores da massa marginal”, que é,
considerado isoladamente, o maior contingente de
trabalhadores do capitalismo (dependente) brasileiro e que,


Entrevista concedida a Bruna Irineu e Leonardo Alves e publicada na
revista Direitos, trabalho e política social, da Universidade Federal do
Mato Grosso, volume 6, número 10, janeiro-junho de 2020.
159
aliás cresceu muito sob o modelo capitalista neoliberal – os
camponeses de regiões rurais decadentes, os subempregados,
os trabalhadores domésticos, camelôs etc. Esses
trabalhadores da massa marginal foram e são a base social
mais fiel do lulismo. E a coisa é tão mais complexa porque se
você vai analisar o campesinato ou a classe média, logo se dá
conta que essas classes não intervêm de modo unificado no
processo político. Elas também se subdividem em frações
com demandas específicas – o camponês sem terra,
acampado, quer terra, pressiona por desapropriações; o
camponês assentado, com terra suficiente, quer
financiamento, assistência técnica e mercado para seus
produtos. No caso dos governos do PT, eles focaram sua
política social para o campo no camponês com terra, e não no
campesinato pobre, sem-terra. O financiamento para a
agricultura familiar e os mercados institucionais para seus
produtos cresceram enormemente, mas as desapropriações de
terra praticamente foram congeladas.

Essas classes, frações de classes e camadas sociais,


como seus interesses específicos, disputam entre si a
distribuição da riqueza produzida, é isso que eu denomino
conflito de classes e é isso que temos e tivemos no Brasil. A
luta de classes propriamente dita é algo distinto. É a disputa
pela organização geral da sociedade, da economia e do poder
político – capitalismo ou socialismo – e isso nós não temos
no Brasil contemporâneo. Pois bem, esses conflitos de classe
e de frações repercutem nas instituições e no processo
político. Algumas classes ou frações se fazem presente com
organizações políticas próprias, com programa político
específico; outras se fazem presentes apenas indiretamente,
160
representadas por terceiros; outras sequer intervêm no
processo político – a análise política pode deixa-las de lado. E
as relações de classe ensejam, ainda, além dos conflitos,
convergências de interesses que podem se converter em
alianças para alcançar objetivos comuns. E tudo isso é
dinâmico: a posição que uma classe ou fração tem hoje não
será, necessariamente, a mesma que terá amanhã. No Brasil
do período dos governos encabeçados pelo PT se formou
uma grande frente política, heterogênea e policlassista, que
deu sustentação a esses governos e à sua política
neodesenvolvimentista, pelo menos até 2014.

Quanto às instituições políticas, elas são construídas,


capturadas ou se apoiam em uma ou mais classes e frações.
Essas instituições têm suas regras e seus valores mas, para se
manterem, necessitam de apoio social que é um apoio de
classe. E surgem as combinações as mais complexas entre tais
instituições e os interesses e as práticas das classes sociais. A
Operação Lava-Jato é um exemplo de tal complexidade: a
classe média abastada, que monopoliza os cargos no Judiciário
e no Mistério Público, mobilizou, com o apoio do
Departamento de Justiça dos Estados Unidos, esse ramo do
aparelho de Estado, lançando mão das normas e dos valores
que lhe são próprios, a serviço do capital internacional. A
análise tem de pegar essas duas pontas: de um lado, a ponta
mais importante, que são as classes sociais e seus conflitos, e,
de outro, as instituições que, a maioria delas, encobre e ao
mesmo tempo participa do conflito de classes.

161
2. Qual o balanço que o senhor faz do ciclo
neodesenvolvimentista? Como o senhor analisa as
rupturas no interior desta grande frente política?

Armando Boito Jr. Esse ciclo propiciou a melhoria das


condições de vida de boa parte da população trabalhadora, o
desenvolvimento do grande capital nacional – na construção
pesada, no agronegócio, no setor bancário – e, parte que nos
diz respeito que somos professores, propiciou também a
expansão do sistema educacional e universitário público.
Permitiu, ainda, uma maior autonomia do Estado brasileiro
no cenário internacional, particularmente vis-à-vis às
exigências do imperialismo estadunidense. Isso tudo foi
possível graças à formação daquela frente política ampla e
heterogênea que eu denominei frente política
neodesenvolvimentista. O Estado foi chamado a intervir na
economia para estimular o crescimento econômico e para
reduzir a pobreza. Essa não é a política do Estado mínimo
neoliberal. Contudo, se mudou a política econômica, de
neoliberal para neodesenvolvimentista, não mudou o modelo
econômico de capitalismo, que seguiu sendo neoliberal – o
mercado interno continuou aberto, as empresas estatais
privatizadas seguiram nessa condição, não se tocou na
desregulamentação financeira e assim por diante. Isso impôs
limites estreitos ao desenvolvimentismo dos governos do PT.
Como o Estado pode investir pesado se tem uma dívida
pública astronômica para rolar? Como desenvolver o
capitalismo interno se o mercado segue aberto? Ademais, e
esse é um aspecto político cujo peso sentimos até hoje,
preocupado em manter as grandes empresas nacionais, a
fração que eu denomino grande burguesia interna, ao seu lado,
162
o PT não organizou politicamente os trabalhadores. Temia a
acusação de bolivarianismo e temia perder o aliado burguês.
O resultado foi que, quando o grande capital internacional
iniciou a sua ofensiva política restauradora em 2014, com o
fito de restabelecer a hegemonia política que perdera em 2002
com a derrota do tucano José Serra para Lula, os beneficiários
populares do neodesenvolvimentismo não estavam
organizados e nem educados politicamente de modo a poder
identificar o perigo e agir em defesa do governo. Vimos que a
resistência ao golpe parlamentar de abril de 2016 foi muito
fraca, bem como a resistência e a luta contra a perseguição
judicial que foi vítima o ex-presidente Lula. Grande parte do
movimento popular estava, e está, politicamente neutralizado.
No topo, a grande burguesia interna, que fora a principal
beneficiada pelo neodesenvolvimentismo petista, foi, devido
à crise econômica e a outros fatores, abandonando o campo
de apoio ao governo e passando para a oposição. Foi um
movimento gradativo e desigual. Houve adesão e omissão
diante do golpe da parte dessa burguesia interna e isso fez a
correlação de forças pender para o lado do campo neoliberal
dirigido pelo capital internacional, pela fração da burguesia
brasileira integrada a esse capital e cuja base de apoio era a alta
classe média que combatia, nas ruas, o PT e seus governos
devido à sua política social de redução da pobreza. A camada
superior da classe média via na modesta ascensão das camadas
populares uma ameaça. Foi de onde se originou a Operação
Lava-Jato e a instrumentalização do Judiciário e do Ministério
Público para fins políticos.

163
3. O senhor tem sido um dos intelectuais que tem
empenhado em seus estudos para explicar o avanço da
“extrema direita” ou “Nova Direita”, como alguns
pesquisadores têm nomeado, no Brasil. De que maneira
é possível caracterizar esta ofensiva da direita no Brasil?

Armando Boito Jr. Essa ofensiva é uma ofensiva, como disse


acima, do capital internacional e da burguesia associada
apoiada na alta classe média. Desde 2018, esse campo logrou
atrair, graças, dentre outros fatores, à atuação das igrejas
evangélicas, segmentos das classes populares. É uma ofensiva
reacionária de massa que eu caracterizo como neofascista. Do
ponto de vista dos interesses que representa, essa ofensiva
política representa os interesses do capital internacional e da
burguesia associada. O seu objetivo é abrir e entregar mais
ainda a economia nacional aos interesses do imperialismo.
Isso é o principal. Porém, isso foi obtido, não por intermédio
do PSDB, que sempre foi o representante partidário desses
interesses no Brasil, mas, sim, por intermédio de um
movimento de massa, surgido na luta pela deposição de Dilma
Rousseff em 2015, que é um movimento reacionário cujos
objetivos são eliminar a esquerda do processo político,
combater o comunismo e restaurar valores sociais e familiares
tradicionais. É um novo tipo de fascismo. Características
básicas da ideologia fascista – autoritarismo, anticomunismo,
culto da violência, negativismo, irracionalismo, machismo etc.
– dão o tom desse movimento. Vivemos uma fase nova.
Agora é ultraneoliberalismo na economia e fascismo na
política. Temos um movimento e um governo fascista. Ainda
não chegamos, e devemos nos manter alerta para que não
cheguemos, a uma ditadura fascista. Numa situação dessas,
164
caracterizar o Governo Bolsonaro como populista (de direita)
é cometer um erro teórico e também um erro político, é
subestimar o perigo que nos ameaça.

4. Como o senhor analisa a movimentação das classes


sociais e suas frações nas eleições de 2018 e o seu
comportamento nos primeiros meses do governo do
presidente Jair Bolsonaro (PSL)?

Armando Boito Jr. No governo Jair Bolsonaro podemos


verificar uma dinâmica política que é característica dos
governos fascistas: tem de organizar a hegemonia de uma
fração reacionária da burguesia sem se descolar por completo
da sua base social que não é burguesa.

Ele governa para o capital internacional e para a


burguesia associada. Isso gera contradições. Para seguir os
Estados Unidos e seus interesses, Bolsonaro provoca
insatisfações na burguesia interna – o agronegócio está com a
orelha em pé devido à promessa, hoje um tanto esquecida, de
afastar o Brasil da China; a indústria não pode nem ouvir falar
em rompimento com o Mercosul já que se encontra aí o
principal destino das exportações brasileiras de
manufaturados. Porém, tais insatisfações têm sido
compensadas, com sobra, devido ao ataque contra os direitos
dos trabalhadores que agrada, e muito, o conjunto da
burguesia, independentemente do pertencimento de fração
deste ou daquele capitalista: reforma trabalhista e reforma da
Previdência são música para os ouvidos burgueses. Até
quando prevalecerá a unidade burguesa, não sabemos.

165
No campo de classe média e popular, Bolsonaro, que
foi, é bom insistir, uma candidatura que nasceu de baixo para
cima produzida por um movimento reacionário de massa,
Bolsonaro, eu dizia, não pode se descolar por completo da
alta classe média e dos segmentos populares, que, refiro-me a
esses últimos, aderiram tardiamente ao bolsonarismo. O
fascista se põe, então, a fazer declarações e tomar iniciativas
do agrado dessa base: liberação de armas, afrouxamento da
fiscalização no trânsito, liberação da violência policial, ameaça
contra a cultura e os direitos das mulheres e outras medidas.
No caso dos caminhoneiros, esse equilíbrio está deixando
Bolsonaro na corda bamba. Muitas dessas medidas não
agradam a burguesia. Surge a aspiração, muito presente na
grande imprensa, de um governo com Paulo Guedes sem Jair
Bolsonaro, sem Damares Alves e sem Abraham Weintraub.
Mas esse é um desejo de baixa intensidade e, na verdade, vão.
Tudo é amplamente compensado pelo serviço que Bolsonaro
presta ao capital internacional e ao grande capital em geral.

Ele tenta agora criar o seu próprio partido político. O


programa da Aliança pelo Brasil é destacadamente neofascista
e muito moderadamente neoliberal. Nem mesmo sabemos se
terá sucesso. Mas, o fato é que o sistema partidário que
vigorou desde a década de 1990, pluripartidário e organizado
em torno de uma polarização (moderada) entre PT e PSDB,
está em crise. Surge uma nova polarização, agora entre a
extrema direita neofascista e a centro esquerda capitaneada
pelo PT.

166
5. Recentemente, a partir da decisão do STF de
assegurar o cumprimento da Constituição com a
revogação da prisão em segunda instância, definiu-se o
quadro de libertação do ex presidente Luís Inácio Lula
da Silva. Como você avalia a correlação de forças entre
as classes a partir da libertação do Lula? Há perspectivas
de unidade da esquerda para as eleições municipais de
2020?

Armando Boito Jr. A soltura de Lula foi uma vitória. Abateu


os dirigentes da extrema direita e animou o campo
democrático e popular. Porém, não podemos superestimar o
seu alcance. A soltura não é liberdade. Não extinguiu, como
seria justo, processos viciados contra Lula e nem suspendeu
sentenças condenatórias. E mais. Essa soltura foi obtida mais
em razão do conflito entre uma ala do STF, que representa a
posição burguesa tradicional, e a Lava-Jato, que representa o
neofascismo, e menos em razão da mobilização popular, que
existiu, foi valente, perseverante, mas foi frágil. Ademais, o
buraco é mais embaixo. O lulismo é uma corrente política
limitada. Lula entretinha e entretém uma relação de tipo
neopopulista com a sua base social. Não me refiro àquilo que
os liberais entendem por populismo – uma liderança
demagógica ludibriando e manipulando uma massa ignorante
e desinformada. Isso, simplesmente, não existe. Tampouco
me refiro ao conceito weberiano, infelizmente
contrabandeado por intelectuais e dirigentes de esquerda, de
liderança carismática. Nada do que temos visto se deve a um
suposto – e inexplicável – “carisma de Lula”. A relação é
política. Os trabalhadores da massa marginal apoiam Lula e os
governos do PT porque esses governos aplicaram uma
167
política social que atendeu alguns interesses dessa massa –
Bolsa Família, Luz para Todos, Programa de Cisternas, Minha
Casa, Minha Vida, Pronatec etc. Mas, então, por que devemos
denominar essa política com o conceito de populismo? Por
que não chamá-la, por exemplo, socialdemocrata ou
simplesmente popular? Vários autores evitam o conceito de
populismo e preferem falar, quando se referem a Vargas, em
“trabalhismo” ou, quando se referem a Lula, apenas e tão
somente em “lulismo” sem maiores cuidados conceituais.
Devemos mobilizar o conceito de populismo porque Lula e
os governos do PT atenderam interesses de uma massa
desorganizada, sem partido e sem programa sistemático,
consciente, massa essa que manteve, e mantém com Lula, uma
relação que, na sua aparência, é uma relação pessoal, embora
seja, no essencial, uma relação política. De sua parte, Lula e o
PT nada fizeram para mudar isso. Ele e o seu partido não dão
passos para superar esse déficit organizativo, não investem na
organização político-partidária da grande massa. Ora, para
sairmos da situação atual, não bastará ter um candidato
eleitoralmente forte para 2022. A situação é muito grave. As
mudanças reacionárias foram profundas e continuarão na
mesma direção – feriram de morte a Previdência Pública, o
direito do trabalho, as empresas estatais e importantes
instituições democráticas. Os trabalhadores brasileiros
devem, ao mesmo tempo, defender os direitos políticos de
Lula e superar o lulismo. Necessitamos de organização
político-partidária de massa.

6. A América Latina vivencia um momento de agitação


política como se pode perceber nos embates travados
entre as classes sociais na Venezuela, no Chile e, mais
168
recentemente, na Bolívia com o golpe de Estado. A
vitória da esquerda na Argentina e a expectativa de
derrota da direita no Uruguai também tem reveses no
projeto imperialista dos EUA de intervenção na América
Latina. Como o senhor avalia a conjuntura latino-
americana, os interesses do imperialistas na região e os
impactos disso no Brasil?

Armando Boito Jr. Vocês já indicaram o caminho para a


resposta: os sinais são contraditórios. Vitória eleitoral do
neodesenvolvimentismo na Argentina e grandes
manifestações de massa no Chile convivem com derrota na
Bolívia, no Uruguai e, acima de tudo, derrota acachapante no
Brasil. Os sinais são contraditórios, mas predominam
amplamente os sinais que indicam a força da reação. Se
pensarmos que a extrema direita está forte e cresce nos
Estados Unidos e a Europa teremos uma dimensão realista do
quadro atual. Toda longa marcha começa com um primeiro
passo, disse Mao Zedong. Temos de dar o primeiro passo,
saber para qual direção, mas essa nossa marcha, parece-me,
será muito longa.

169
www.phillosacademy.com

170

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