CONCERTAÇÃO E PODER
O agronegócio como fenômeno político no Brasil
Caio Pompeia (1)
https://orcid.org/0000-0002-1692-1985
(1) Universidade de São Paulo (USP), São Paulo - SP, Brasil. Email: caporine@gmail.com
DOI: 10.1590/3510410/2020
organizado e sistemático, em função da agudização as formas de operação que são atribuídas às situações
de disputas fundiárias e conflitos socioambientais, da de concertação. Para isso, recorre-se a cientistas
orquestração política no campo do agronegócio. Essa políticos. Doner e Compston identificam nela um
convergência crescente não significa retorno à unidade elevado grau de organização tanto dos atores privados,
de representação, marcante no primeiro padrão, quanto dos públicos, além de sistematicidade e
nem reverte a multiafiliação, notável no segundo. alta institucionalização nas relações entre ambos
Diferentemente, reposiciona ambas em uma nova (Doner, 1991; Compston, 2003). Apoiado em tais
estrutura de ação política, mais apta a tratar de questões características, Doner aponta a concertação como
amplas, como a indígena, a ambiental, a agrária, a uma forma forte de coalizão.
trabalhista e a alimentar. Esse reposicionamento – em Com fundamento nessas definições sobre o
que coexistem elementos organizacionais típicos dos termo, na literatura citada anteriormente e nas
três padrões – será evidenciado ao longo deste trabalho. observações durante o trabalho de campo, o presente
Para atribuir maior inteligibilidade a essa nova artigo apreende a concertação política como uma
conformação de ação política e operacionalizar a análise configuração historicamente situada de relações
empreendida sobre ela, utiliza-se, no presente estudo, de convergência no campo do agronegócio. Suas
o conceito de concertação política do agronegócio. principais características são: a intersetorialidade,1 a
O sentido de concertação aqui adotado tem conexão abrangência privado-estatal, a multilateralidade,2 a
tanto com características etimológicas do termo, elevada institucionalização, e a sistematicidade nas
quanto com sua mobilização na literatura científica. interações.
Em latim, concertatio – e as demais palavras da mesma Essas interações ocorrem em três níveis
família – referia-se a ocasiões nas quais adversários principais: (1) entre entidades, na conformação de
debatiam e disputavam posições entre si (Tachard, núcleos intersetoriais ampliados, como o Instituto
1687, p. 274). Nas acepções contemporâneas, em Pensar Agropecuária (IPA) e o bloco Confederação
línguas como francês, inglês e português, o termo foi da Agricultura e Pecuária do Brasil/Conselho das
paulatinamente inflexionado, passando a remeter a Entidades do Setor Agropecuário (CNA/Conselho do
circunstâncias de cooperação e consultas voltadas à Agro); (2) entre essas nucleações amplas; e (3) entre
produção de acordos. Aceitando, provisoriamente, tais núcleos e determinados agentes do Estado,3 a
entendimento que sintetize os sentidos descritos acima, exemplo da Frente Parlamentar Mista da Agropecuária
tem-se a concertação como situação na qual agentes (FPA) e do Ministério da Agricultura, Pecuária e
em oposição procuram racionalizar suas diferenças Abastecimento (Mapa).
com vistas a encontrar consensos. Por meio de dispositivos de convergência mobilizados
Em seguida, é fundamental identificar de quais nesses diversos níveis da concertação política do
“agentes em oposição” se está a tratar com o uso agronegócio, os agentes ampliam a racionalização
do termo. Para cumprir esse objetivo, reporta-se a de suas diferenças, competições e conflitos com o
pesquisas da economia e sociologia rural. Baseando‑se propósito de negociar acordos que facilitem, de um
em Moyano (1985), pioneiro na área a utilizar a lado, a agregação de representatividade, recursos
expressão, Graziano da Silva mobiliza a ideia de financeiros e saberes técnicos, e, de outro, a atuação
concertação no âmbito de análise política dos CAIs política conjunta em relação à opinião pública e ao
(Graziano da Silva, 1991). Assumindo o complexo Estado.
como fenômeno determinado a cada conjuntura Para ampliar o que Fraser chama de capacidade de
histórica, o autor apresenta-o como desdobramento tradução, aludindo à força para transformar pleitos em
de uma “concertação” entre, de um lado, múltiplos mudanças legislativas e poder administrativo (Fraser,
interesses privados, e, de outro, aqueles estatais 2014), os agentes da concertação operam um aparato
(Graziano da Silva, 1991, p. 21-23). de justificação na esfera pública.4 Com inspiração na
Adotando-se, em acordo com Graziano da Silva, o sociologia pragmática francesa (Boltanski & Chiapello,
caráter público-privado do termo, resta compreender 2005; Boltanski & Thévenot, 2006), entende-se o
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referido aparato como um conjunto de proposições que, para administrar oposições, produzir consensos e
fundamentando um imaginário – ou um “espírito”, maximizar a eficácia política.
nas palavras dos autores – relacionado ao agronegócio A análise tem sua fundamentação principal em
no Brasil, contribuem para justificar os agentes da pesquisa de campo, composta pelo acompanhamento
concertação e encorajam, por desdobramento, endosso sistemático – durante o período de oito meses
de parcela da opinião pública às suas pautas políticas (de dezembro de 2018 a julho de 2019) – de núcleos
e apoio da cúpula do Estado a elas. do campo do agronegócio e pela realização de trinta
Não obstante sua eficácia, tal aparato apresenta e oito entrevistas com líderes empresariais e políticos.
relevantes simulações, que se baseiam em indistinção Os principais espaços nos quais se fez o trabalho de
entre as dimensões política e analítica do campo do campo foram o IPA, o Congresso Nacional e a CNA.
agronegócio. Totalizadora, a noção cunhada nos Dentre os entrevistados, podem-se destacar três
Estados Unidos, e posteriormente consolidada como conjuntos: dirigentes de associações, parlamentares
categoria no Brasil, engloba toda a agropecuária e a e ministros.
totalidade da ampla relação de funções situadas a
montante e jusante dela (ver Davis, 1955; Davis &
Goldberg, 1957; Bittencourt de Araújo; Wedekin; Concertação e justificações: a ação política
Pinazza, 1990; Centro de Estudos Avançados para incidir em temas amplos
em Economia Aplicada, 2017).5 Entretanto, nos
núcleos da concertação tomados em conjunto, parte Ainda na segunda metade dos anos 2000, disputas
crescentes com o governo federal e setores progressistas
considerável dessas funções não se faz presente,
da sociedade civil relacionadas às questões agrícola,
podendo-se citar, dentre os déficits mais relevantes,
agrária, ambiental, indígena e trabalhista haviam
tanto as redes varejistas e atacadistas, quanto os
levado a Associação Mato-grossense do Algodão
restaurantes e estabelecimentos que servem comida,
(Ampa) e a Associação dos Produtores de Soja e Milho
além da maior parte das representações não patronais
de Mato Grosso (Aprosoja-MT)7 a ampliarem suas
da agropecuária e de porção relevante das indústrias
ações no Congresso Nacional. Nessa mobilização,
de alimentos (Pompeia, 2018; 2020).
elas aproximaram-se de modo mais sistemático de
Apesar desses déficits, líderes da concertação
parlamentares da FPA, que, por seu turno, também
operam sinédoques políticas – ações deliberadas que demandavam maior apoio empresarial (Pompeia,
provocam confusões entre partes e totalidades – ao 2018).
agenciar estatísticas macroeconômicas baseadas na Intensificava-se, à época, o fenômeno que a
categoria agronegócio para passar a impressão pública literatura passou a intitular de land grabbing, ou
de que representam muito mais agentes econômicos do escalada global da apropriação de terras (Sauer;
que de fato o fazem. Ou seja, ao projetar indistinção Borras Jr., 2016), movimento estimulado, em parte
entre as dimensões analítica (totalizadora) e política relevante, pela maior demanda global por commodities
(menos abrangente) do campo do agronegócio, o agropecuárias e seu acentuado aumento de preços
que se procura, portanto, por meio da sinédoque, é (Sauer; Leite, 2012; Flexor; Leite, 2017). Não por
simular uma representatividade superdimensionada acaso, em São Paulo, fóruns do agronegócio com
para a opinião pública e o Estado.6 participação predominante de indústrias – como
O artigo está dividido em três partes: na primeira, a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e
apresenta-se exame lógico-histórico dos modos como o Conselho Superior do Agronegócio (Cosag), da
a concertação se consolidou no processo político Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
nacional e mobilizou um aparato de justificação (Fiesp) – inflexionavam suas cartas programáticas para
para atuar em relação a grandes questões nacionais; questionar as Terras Indígenas (TIs) e as Unidades
na segunda, atenta-se aos conflitos e competições de Conservação (UCs) (ver Abag, 2010).
existentes em seus diversos níveis; por fim, na terceira, No processo de aumento dos interesses de agentes
estudam-se os dispositivos empregados em seu âmbito privados por novas áreas no Brasil, a dispersão política
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no campo do agronegócio – que prevalecera durante líderes do campo, ameaças ao avanço de sua apropriação
as décadas seguintes à fase de industrialização da de terras no país. Ao promover a percepção do que
agricultura, conforme identifica Graziano da Silva seriam as adversidades políticas mais importantes
(2010) – começou a refluir. Estando a reforma para esses atores – primeiramente, quanto ao tema
agrária fora da agenda governamental (Pompeia, ambiental; em seguida, ao indígena; e, por fim,
2018), o impulso substancial de ordem prática para em relação a outras questões –, o agenciamento do
essa inflexão – a qual pode ser considerada marco termo facilitou a aproximação de representações da
para a consolidação da concertação política do agropecuária e das indústrias a montante e jusante
agronegócio – foram os embates em torno do Código (Pompeia, 2018). Além disso, a versão positivada
Florestal no início da década de 2010. Com o objetivo da categoria, “segurança jurídica”, auxiliou-os a
principal de anistiar desmatadores e reduzir previsões organizar suas agendas com pleitos direcionados às
de proteção ambiental desse Código, representantes questões amplas – como a ambiental, a indígena e
do setor secundário, liderados por entidades como a quilombola.
a União da Indústria de Cana de Açúcar (UNICA), Procurando aprofundar as “agroestratégias” – termo
aproximaram-se do núcleo parlamentar que a Ampa que Almeida emprega para tratar de operações
e a Aprosoja-MT vinham impulsionando. coordenadas entre agentes do agronegócio para
Em 2011, o trio agricultura-indústria-Parlamento enfraquecer os instrumentos de proteção aos direitos
daria materialidade ao IPA, na primeira manifestação territoriais das minorias rurais e intensificar processos
decisiva para o surgimento do terceiro padrão de de desterritorialização (Almeida, 2010) –, núcleos
representação no campo do agronegócio, como da concertação passaram, ademais, a intensificar a
apontado na Introdução. Com forte sustentação das promoção conjunta de um aparato de justificação
distintas entidades presentes nesse fórum – além da para questionar as lógicas inerentes às questões
atuação da CNA, presidida, à época, pela senadora amplas, particularmente aquelas relativas à terra.
Kátia Abreu (então afiliada ao Partido Social Não fortuitamente, a ênfase para mudar a imagem
Democrático, por Tocantins) –, a FPA administrou do “agronegócio” constava da carta política redigida
suas diferenças internas e conseguiu agir de forma pela Fiesp e pela Abag, em 2010 (ver Abag, 2010).
concertada para alterar substancialmente o Código Tratava-se, nas palavras de Almeida, de engendrar
Florestal (Pompeia, 2018) e, ato contínuo, focar uma “visão triunfalista dos agronegócios” (Almeida,
suas atenções na contestação dos direitos territoriais 2010, p. 110).
indígenas e de populações tradicionais (Carneiro da Próprias de regimes de justiça, as justificações estão
Cunha, 2018). envoltas em contextos nos quais atores em disputa se
Embora a terceira parte do presente artigo veem provocados, diante de críticas, a fundamentar
analise detidamente as tecnologias organizacionais suas posições. Para argumentar com eficácia, eles
empregadas, no âmbito da concertação, para promover precisam remeter seus discursos a determinadas
aproximação política no campo do agronegócio, cabe regras comuns de aceitabilidade, que seriam lógicas
destacar, neste trecho, o uso de um discurso que de justificação (Boltanski & Chiapello, 2005;
adquiria importância naquele começo dos anos 2010. Boltanski & Thévenot, 2006).8 Desse pressuposto
De acordo com o que mostram Montero, Arruti e das distintas lógicas resulta que um dos principais
Pompa (2012), em sua proposta de Antropologia do embates nesses regimes consiste em estabelecer
Político, a mobilização de determinadas categorias qual delas é a mais legítima para ser utilizada em
pode ser operada como ferramenta para promover cada controvérsia – conceito que Montero emprega
a convergência de atores anteriormente dispersos. para aludir a debates que acabam por instituir um
Esse foi, exatamente, o caso da ideia de “insegurança problema social, a ser tratado de maneira pública
jurídica” (ver CNA, 2008; Abag, 2010, p. 31), que (Montero, 2012).
passou a ser utilizada reiteradamente para identificar, Em controvérsias ligadas a questões como a agrária,
em uma narrativa mais inteligível, na perspectiva de a ambiental e a indígena, agentes da concertação
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respondem a críticas procurando desestabilizar e metade dos anos 2010, o IPA continuaria a se
substituir as lógicas de justificação sobre as quais se fortalecer, atraindo mais entidades para sua órbita
ancoram os atores que os contestam. Com efeito, e estabelecendo-se, paulatinamente, em articulação
no lugar de debates assentados em valores como institucionalizada com a FPA, como o principal
distribuição, sustentabilidade e direitos, eles procuram núcleo de representação no campo do agronegócio.
forçar a proeminência de lógicas macroeconômicas, Em consequência, tal fato implicou a reorganização
mobilizando reiteradamente, para tanto, em arenas de outras nucleações importantes nesse domínio,
dominantes da esfera pública (Fraser, 1997), estatísticas como a CNA.
como aquelas que enfatizam a importância do Se as relações entre essa Confederação e as entidades
“agronegócio” no Produto Interno Bruto (PIB) e agrupadas no IPA foram mais congruentes durante
nos empregos do país.9 os embates acerca do Código Florestal, elas seriam
Entretanto, é importante enfatizar que essa substantivamente alteradas nos anos que se seguiram
tecnologia estatística é operada por meio de sinédoques a tais confrontos legislativos. Para essa modificação,
políticas, como indicado anteriormente. Enquanto a transição de Kátia Abreu em direção ao Mapa
o “peso” do agronegócio na economia é medido mostrou-se essencial (Pompeia, 2018).
com base na noção de agribusiness, os dividendos Com o objetivo de respaldar o segundo mandato
dessa mobilização são auferidos, substancialmente, de Dilma Rousseff, crescentemente antagonizado
por núcleos da concertação, os quais, considerados por núcleos da concertação, a então ministra fez uso
conjuntamente em sua representatividade política,
de sua autoridade sobre a CNA – como presidente
não conseguem abranger o amplo perímetro de
licenciada – para tentar administrar os protestos de
funções previstas na noção. Se, como categoria, o
agentes patronais em relação ao governo federal.
agronegócio é “tudo”, conforme anuncia a campanha
Paralelamente, procurando disputar a liderança da
veiculada pela Rede Globo, sua dimensão política – a
representação no campo do agronegócio, Abreu
concertação – é somente parte dele. A despeito das
decidiu criar um órgão composto por representações
sinédoques, as estatísticas macroeconômicas têm sido,
da agricultura patronal e indústrias, o Fórum das
ao lado de ideias-força como promoção de segurança
Entidades Representativas do Agronegócio (FERAB)
alimentar, elemento fundamental a contribuir para o
(Sociedade Nacional de Agricultura, 2015).
aumento da capacidade de tradução de pleitos dessas
nucleações em ações do Estado (Pompeia, 2018). No entanto, a contrariedade dos demais agentes
O êxito das agroestratégias é exemplar do referido da concertação com o Executivo prevaleceu. Depois
poder. No governo de Dilma Rousseff (Partido dos de um breve período de medição de forças com o IPA,
Trabalhadores, 2011-2016), coetâneo à criação e à o FERAB retrocedeu, enquanto o governo Dilma
consolidação do IPA, as demarcações de TIs foram caminhava para seu fim. Nessas disputas, um grupo
praticamente paralisadas (Pompeia, 2018)10. Nas gestões de entidades afastou-se da órbita da CNA e inseriu-se
de Michel Temer (Movimento Democrático Brasileiro, no Instituto, tornando-o ainda mais relevante para
2016-2018) e, principalmente, de Jair Bolsonaro tratar de questões transversais – como a ambiental e
(sem partido11, 2019-), nucleações dominantes da a indígena – e, em contrapartida, deixando menos
concertação, inserindo-se de modo central no processo influente a Confederação.12
político nacional, passaram a direcionar sua ação no A gestão que, em seguida, assumiu essa organização
tema indígena no sentido de legitimar o uso de áreas sindical de âmbito nacional buscaria a reaproximação
de TIs demarcadas para a produção de commodities com a FPA, ao mesmo tempo em que criaria o Conselho
agropecuárias. do Agro, nele envolvendo as principais representações
Contudo, as movimentações políticas que da agricultura patronal (ver CNA, 2018). Era uma
contribuíram decisivamente para o incremento da tentativa de recuperação de poder diante do destaque
influência de líderes da concertação em relação ao do IPA. A partir de então, para serem eficazes em
Estado foram bastante tortuosas. Durante a primeira temas políticos amplos, representações do campo do
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agronegócio precisariam ter capacidade de agregar, de dos agentes empresariais com o governo federal.
modo organizado, grande número de atores. Os embates nos referidos núcleos acontecem tanto
Tal movimento de tendência centrípeta, entre representações de um mesmo setor, quanto
fortalecendo o terceiro padrão de representatividade entre setores. No primeiro caso, trata-se, na maior
nesse campo, afetou de modo marcante as relações parte, de atritos pela centralidade na condução de
dos agentes privados com os Poderes Legislativo seus procedimentos internos. Um exemplo foi a
e Executivo. No que se refere ao Parlamento, a competição entre representações do algodão e da soja
consolidação do IPA, atribuindo caráter sistemático pela liderança do IPA na metade dos anos 2010 (Tavares,
e institucionalizado às negociações entre empresários 2018).13 Os desacordos são igualmente relevantes
e políticos, foi a pedra angular para ampliar a coesão entre as indústrias. Os casos mais marcantes são os
da FPA. Simultaneamente, o progressivo concerto desentendimentos relacionados a habilitações para
entre IPA, FPA e CNA funcionaria, a despeito de exportar entre a Associação Brasileira das Indústrias
alguns desencontros, para aprofundar o pacto de Exportadoras de Carnes (Abiec), liderada pela JBS,
economia política dos núcleos do agronegócio com e a Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo),
o governo federal. que representa médios frigoríficos, além da Marfrig.
Considerando a reconfiguração política no As rivalidades intersetoriais são mais frequentes
campo do agronegócio nos anos 2010 como fator do que as intrassetoriais. Nesse sentido, o executivo
fundamental para o aumento de poder de agentes de uma instituição da agropecuária patronal admite
da concertação, cabe em seguida examinar, de modo que, embora existam incentivos à cooperação entre
sistemático – e com fundamento em trabalho de
setores dentro dos CAIs, “[...] há momentos em que
campo –, seu modus operandi. Em outras palavras,
essa relação não é tão amistosa assim” (Associação 1,
cumpre estudar quais os problemas mais relevantes
entrevista, 16 fev. 2019). Nas interações entre a
para os atores heterogêneos atuarem em concerto e
agropecuária e indústrias, as disputas distributivas
quais os dispositivos instituídos por eles para lidar
são um dos aspectos mais salientes (Graziano da
com tais adversidades. Inicia-se pelo exame das
Silva, 1991). No que se refere a tais embates, um caso
dificuldades.
frequentemente relatado pelas poucas entidades que se
dispõem a tratar do tema é aquele entre representações
Conflitos internos no campo do agronegócio: dos pecuaristas e dos frigoríficos, cabendo destaque,
ameaças à concertação política ainda, para as relações entre sojicultores e tradings,
e entre representações da agricultura patronal e
Se não eram raras as divergências entre representações corporações de agrotóxicos. Não é casual, portanto,
patronais no contexto de fragmentação que se que a entrada de entidades industriais sofra resistência
seguiu à industrialização da agricultura (Graziano nos fóruns dominantes do agronegócio.
da Silva, 1991; 2010; Mendonça, 2008; Bruno, A seguir, remetemos aos conflitos entre as
2017), há, atualmente, no que se identifica como nucleações ampliadas, nas quais a rivalidade central
terceiro padrão de representação política no campo ocorre entre o IPA (na retaguarda da FPA) e a CNA.
do agronegócio, discordâncias nos três níveis da Nesse caso, há mais uma concorrência pela liderança
concertação. Tais problemas têm potencial, dentre da representação do vasto, amplo e heterogêneo
outros desdobramentos, para afetar negativamente sua conjunto de atores privados da concertação do
coordenação, minorando a capacidade de tradução que diferenças quanto ao posicionamento político.
de seus agentes. A Confederação e a FPA têm, a propósito, um histórico
Dentre os conflitos, podem-se destacar os que de competição (ver Tavares, 2018), que inclui projetos
ocorrem entre as entidades – internamente aos pessoais de seus líderes, acusações de contrabando
núcleos políticos intersetoriais –, como também de informações estratégicas e casos de cooptação
aqueles que se manifestam nas relações entre essas de membros – dentre eles a contratação, em 2019,
nucleações ampliadas, e os que abrangem as interações pela Confederação, do ex-presidente da FPA, Nilson
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Leitão. Tal medição de forças prejudica as estratégias Enquanto, no Poder Executivo Federal, o
de convergência: por um lado, dificultando algumas Mapa – e, mais recentemente, o Ministério do Meio
iniciativas legislativas – como no caso relacionado à Ambiente (MMA), embora de maneira não tão bem
proteção de cultivares –, e, por outro lado, gerando coordenada14 – tem operado sob influência de líderes
sombreamento de funções. da concertação, há, em contrapartida, ministérios
Para além do IPA e da CNA, cabe mencionar estratégicos com os quais tais lideranças se indispõem
outros agentes que têm obtido crescente incidência frequentemente. O receituário neoliberal do Ministro
no campo do agronegócio e, por vezes, antagonizado da Economia, Paulo Guedes, por exemplo, confronta-se
as decisões políticas dessas nucleações dominantes. com os constantes apelos pela manutenção de isenções
Em 2019, a proximidade – pessoal e política – entre tributárias e por maior aporte de recursos públicos.
o presidente Jair Bolsonaro e Luiz Antônio Nabhan Por sua vez, a atuação do Ministério das Relações
Garcia garantiu inédito destaque a esse líder da Exteriores, com as críticas políticas à China e com a
UDR, atribuindo influência para uma entidade de aproximação a Israel, dentre outras ações, é vista, no
representação monossetorial que há muito se havia campo do agronegócio, como potencial geradora de
enfraquecido no âmbito do agronegócio. Na agenda problemas para a venda de commodities aos chineses
ambiental, especificamente, deve-se ressaltar que a e aos países árabes, notáveis parceiros comerciais da
Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura (Coalizão) inserção primário-exportadora do Brasil.
tem apresentado posicionamentos progressistas em Na administração desses problemas, os agentes da
defesa do meio ambiente, com propostas e justificações concertação mobilizam uma série de expedientes, que
contrárias àquelas avançadas pela maioria dos núcleos são o tema da próxima (e última) parte deste artigo.
da concertação política do agronegócio.
Por fim, outra dimensão de atritos envolve as
relações entre os agentes privados e determinados Dispositivos de racionalização do tratamento
atores do Estado. Inicia-se pela análise relativa das relações: promoção da convergência
ao Poder Legislativo. As divergências entre as política
nucleações do campo do agronegócio traduzem-se,
em determinadas ocasiões, em divisões no âmago Consideradas as inúmeras divergências nas relações
da FPA, o que enfraquece a tradução da agenda dos entre os agentes do campo do agronegócio, as estratégias
atores privados em agenda parlamentar. O trabalho de concertação somente podem funcionar de forma
de campo permitiu constatar, ademais, a existência de exitosa por meio da mobilização de dispositivos de
deputados e senadores que atuam concertados com aproximação política, administração de conflitos e
o IPA e, paralelamente, a ação de parlamentares que negociação de acordos. Dentre os mais relevantes,
operam de maneira mais independente do Instituto. serão analisados: (1) o agenciamento da categoria
Aliás, a dificuldade de coordenação entre atores agronegócio; (2) a ênfase em temas políticos amplos;
políticos desses dois grupos da bancada é um dos (3) o protocolo de administração de conflitos nos
fatores de maior relevo a intensificar discordâncias bastidores; e (4) o estabelecimento de hierarquias e
sobre a questão ambiental no campo do agronegócio. divisão de funções.
Durante a pesquisa no Congresso Nacional, foi
possível identificar, ainda, diferenças relevantes entre
a Câmara dos Deputados e o Senado Federal no que A categoria agronegócio
diz respeito a tramitações vinculadas diretamente a
interesses de líderes da concertação. Sobretudo os Criada na década de 1950, nos Estados Unidos,
deputados estão sistematicamente próximos ao IPA, por demanda das indústrias de alimentação, que
ao passo que é mais frágil a participação de senadores. precisavam aprofundar o entendimento de suas
Esse descompasso resulta em problemas nas votações, relações com a agropecuária, a noção de agribusiness
como no caso da tentativa de alteração do Código procurava romper com perspectivas compartimentadas
Florestal em 2019 (ver Brasil, 2018). de estudo do mundo rural. Ao lado do lançamento de
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metodologia contábil para esse novo objeto de análise Brasil (Rural Brasil) – foram formados durante quase
– a definição original de agribusiness era “[...] a soma duas décadas, em longo movimento de tentativas e
total de todas as operações envolvidas na produção erros, embates e aproximações, entre representações
e distribuição de alimentos e fibras” (Davis, 1955, dos setores primário e secundário. Tais experiências
p. 5)15 –, a ênfase intersetorial sobressaía-se dentre práticas foram basilares para que, nos anos 2010,
as principais características da noção. a atuação intersetorial pudesse ser consolidada no
No Brasil, o termo seria incorporado em pesquisas campo do agronegócio. Essa consolidação constitui,
a partir de desdobramentos da industrialização da por sua vez, referência central para a proeminência do
agricultura (Kageyama et al., 1990). Assim, foi com terceiro padrão de organização e representatividade
o intuito de melhor compreender a constituição nesse campo, conforme se argumenta no início do
de cadeias produtivas que o referido termo passou trabalho.
a ser usado (Passos Guimarães, 1975). Embora a A fim de embasar a afirmação sobre o estabelecimento
ideia de aproximações intersetoriais relacionadas à da intersetorialidade como forma dominante de ação
agropecuária tenha sido apreendida (e nomeada) de patronal no campo do agronegócio, apresentam-se, a
várias formas a partir dos anos 1970 (Belik, 2007; seguir, elementos que a corroboram, com indicações
Ramos, 2007), e também influenciada por autores das composições relativas atuais de seus principais
franceses – a exemplo de Malassis (1975) –, CAI foi núcleos. Para realizar as quantificações, adotou-se
a expressão que adquiriu maior relevo para defini-la, divisão setorial entre entidades da “agropecuária”
seja em sua forma agregada (Muller, 1989), seja na e das “indústrias”. Cabe ressaltar que a separação é
desagregada (Kageyama et al., 1990). aproximativa, pois há casos tanto daquelas com atuação
Com a deterioração da política de crédito rural destacada no setor primário que também acumulam
subsidiado, os agentes patronais que procuraram revertê‑la funções secundárias (sendo o principal exemplo a
tomaram a decisão de recuperar o termo original Organização das Cooperativas Brasileiras), quanto
de Davis e Goldberg para fundamentar um projeto de associações industriais cujos integrantes atuam,
político-econômico de agribusiness no país (Bittencourt verticalmente, na agricultura (como a UNICA).
de Araújo; Wedekin; Pinazza, 1990). Dentre outras Salienta-se que, dado o foco da segmentação
razões, eles entendiam que, enquanto essa categoria proposta – privilegiando a comparação, internamente
norte-americana trazia uma série de incentivos para a cada núcleo, entre entidades dos dois setores
as aproximações intersetoriais, assumindo-as como politicamente mais relevantes no domínio da
complementares e não conflitivas, as formulações concertação –, foram consideradas nos cálculos
com base na noção de CAI(s) abordavam-nas, em as associações nacionais, regionais e estaduais da
contrapartida, de forma crítica (Pompeia, 2018). “agropecuária” e das “indústrias”, e desconsideradas
Ao longo dos anos 1990 e 2000, uma materialização empresas e organizações de segmentos terciários.
essencial do referido projeto consistiu em complexo Os dados foram obtidos entre março e maio de 2019.
processo de tradução da perspectiva de agribusiness/ O IPA tem destacada participação das “indústrias”,
agronegócio em coletivos políticos intersetoriais, que somam 26 entidades (60,5% do total), diante
exatamente no sentido descrito por Montero, de 17 da “agropecuária” (39,5%) (elaboração própria
Arruti e Pompa, quando enfatizam a importância da com base em IPA, 2019). A sólida presença do setor
historicização de categorias em seu modelo antropológico secundário no Instituto foi essencial para sua eficácia
de constituição e atuação de coletivos políticos na relação com o Estado e para a centralidade que
(Montero, Arruti e Pompa, 2012). Com fundamento adquiriu na concertação. Com essa composição, em
na noção de agronegócio – e também em reação que há relevante participação tanto do setor primário
ao agenciamento político da categoria –, núcleos quanto do secundário, “[...] a representatividade fica
apresentando preponderância das indústrias – como maior”, como enfatiza o dirigente de uma organização
a Abag – e da agricultura patronal – a exemplo do por produto (Associação 2, entrevista, 13 fev. 2019).
Conselho Superior de Agricultura e Pecuária do Já o presidente de uma entidade da agricultura
CONCERTAÇÃO E PODER 9
patronal afirma que a influência no Parlamento seria duas (18,2%) da “agropecuária” (elaboração própria
bem menos efetiva se não houvesse no IPA essa face com base em Abag, 2019).
intersetorial: “Não podemos levar para o Congresso Cumpre apontar ainda um segundo desdobramento
propostas de legislação que tenham impacto no relevante do agenciamento da categoria agribusiness:
agronegócio sem ouvir a todos” (Associação 3, sua utilização, por núcleos da concertação, para
entrevista, 04 abr. 2019).16 a construção do aparato de justificação no país.
Diante do crescimento da representatividade do Com a mobilização de estatísticas amparadas na
IPA, outros líderes do agronegócio foram forçados visão agregada e intersetorial da categoria, pôde ser
a reagir na direção da intersetorialidade. Em 2015, defendida a proposição de que, tomado em conjunto,
quando criou o FERAB no âmbito das disputas por o “agronegócio” seria – ao contrário da agropecuária
influência no campo, Kátia Abreu precisou incluir no em si – extremamente relevante para a economia
fórum, além das representações da agricultura patronal, nacional (Pompeia, 2018).
No entanto, conforme mostrado anteriormente,
aquelas do setor secundário. Do total de entidades
os agenciamentos de quantificações macroeconômicas
oficialmente participantes no FERAB, 10 (58,8%)
frequentemente são operações de sinédoque política,
eram da “agropecuária”, enquanto 7 (41,2%)
uma vez que o “tamanho” do agronegócio no PIB e
vinculavam‑se às “indústrias” (elaboração própria com
nos empregos é medido com fundamento na noção
base em Sociedade Nacional de Agricultura, 2015).
de agribusiness, ao passo que os dividendos dessa
No planejamento inicial do Conselho do Agro mobilização são apropriados, em importante medida,
constava, segundo alguns dos entrevistados, a decisão por líderes da concertação, a qual, como manifestação
de abranger somente representações do setor primário. política, inexiste com tal perímetro de funções previstas
Contudo, a presença do setor secundário não tardou a na noção. Enquanto o agronegócio como conceito é
se impor: no ano seguinte à fundação desse Conselho, totalizador, sua dimensão política é consideravelmente
a Abag passou a compô-lo oficialmente; nas eleições menos abrangente (Pompeia, 2020).
de 2018, a Fiesp e a UNICA associaram-se a ele
para escrever a carta de pleitos mais influente da
Temas amplos
concertação: “Futuro é Agro” (CNA, 2018); no início
de 2019, a UNICA integrou-se oficialmente ao
fórum. Embora a predominância no Conselho do Ao conseguirem diminuir a relevância atribuída à
questão agrária nas agendas pública e estatal durante
Agro seja, indubitavelmente, da “agropecuária”, com
os anos 2000, atores do campo do agronegócio
14 entidades (87,5%), as “indústrias” têm conquistado
tinham passado a focar as demais grandes questões
espaço, participando com 2 associações (12,5%) em
relacionadas diretamente à terra – afora outras, como
sua composição relativa (elaboração própria com base
a trabalhista e a alimentar. Na referida década, a
em CNA, 2019).
fragmentação política entre organizações – característica
Apresentando atuação mais independente no campo tipificada por Graziano da Silva em referência a um
do agronegócio, ou seja, menos ligada aos pleitos dos segundo padrão de representatividade nesse campo
agentes dominantes da concertação – como as duplas – implicava ineficácia relevante para a ação política
FPA/IPA e CNA/Conselho do Agro –, a Coalizão com tais temas amplos.
também se caracteriza pela composição intersetorial. Um passo essencial para superar essa dificuldade
Há nela nove associações das “indústrias” (75%) e foi dar maior inteligibilidade às referidas questões.
três da “agropecuária” (25%) (elaboração própria Para isso, foi significativo o agenciamento de algumas
com base em Coalizão, 2019).17 categorias, como (in)segurança jurídica, que passara a
A Abag continua, em 2019, a ser uma organização ser utilizada para ajudar a unificar, em uma narrativa
com preponderante participação do setor secundário. mais evidente para atores do campo do agronegócio,
Ao se analisarem entidades a ela associadas, verifica‑se o que seriam as grandes ameaças ao aprofundamento
a presença de nove (81,8%) das “indústrias”, ante de suas agroestratégias. Auxiliada por palavras como a
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que não o integram de modo oficial. No caso específico Entretanto, enquanto as estratégias de inserção
da dupla IPA/FPA, o protocolo de portas fechadas privilegiada de lideranças da agropecuária nos núcleos
serve tanto para entidades que não querem aparecer atribuem, de um lado, certa proeminência e força política
defendendo determinados pleitos, quanto para aos segmentos primários, elas também apresentam
parlamentares em busca de notabilidade. As associações outra face, que interessa diretamente às indústrias,
organizam-se nos bastidores, decidindo agendas e pois o que tende a ser encenado e apreendido como
criando, com auxílio técnico, subsídios jurídicos para de interesse do “produtor” constitui, ao mesmo
implementá-las e justificações para legitimá-las; os tempo, um mecanismo de legitimação que permite
políticos recebem-nas em espaço privado, avaliam às corporações do setor secundário, especialmente
sua oportunidade e defendem-nas no Congresso19. às multinacionais, avançarem suas agendas sem
Com o Poder Executivo, negociações a portas grande alarde. Conforme revela o presidente de uma
fechadas também são fundamentais. Nesse sentido, organização nacional de indústrias a montante da
destaca-se a tradicional incidência de líderes da FPA agropecuária, “[...] o agricultor tem uma imagem
e da CNA sobre o Mapa. Com outros ministérios [...] de que precisa desse apoio, de que precisa dessa
e a Presidência da República, também ocorre o reivindicação, de que é mais agredido em vários pontos
do que, entre aspas, uma indústria” (Associação 4,
diálogo de bastidores, mas de maneira assistemática
entrevista, 23 abr. 2019).
e usualmente em situações franqueadas por líderes do
Além disso, é importante chamar atenção para a
governo federal, sobretudo quando da proximidade
divisão de funções entre as distintas entidades dentro
de importantes votações que requeiram a influência
do IPA, que acontece por meio de suas comissões – das
da Frente. Porém, esses canais estabelecidos com
quais se tratou anteriormente –, ordenadas por temas
o Planalto têm mostrado eficácia relativa: mesmo
amplos. Nelas, os atores empresariais se agrupam em
funcionando com êxito em certas circunstâncias, eles torno de assuntos transversais que mais lhes interessam,
não têm evitado algumas confusões e desentendimentos, em interação organizada com um parlamentar também
como, por exemplo, na questão ambiental. concentrado na mesma questão.
No que concerne às relações entre núcleos, as
Hierarquias e divisão de funções hierarquias e divisões de funções são parte essencial
da intensificação da convergência e do aumento da
O quarto e último dispositivo a ser analisado eficácia de suas ações políticas pactuadas. A dupla
é o emprego de hierarquias e divisão de funções FPA/IPA é dominante nesse campo, tendo sua
para ampliar a racionalização das relações de poder atuação basilar no Parlamento – embora também
e garantir maior êxito às ações convergentes no tenha notável capacidade de influenciar a agenda
do governo federal.
âmbito da concertação. Nas nucleações dominantes
Já a CNA e seu Conselho do Agro figuram em
do campo do agronegócio, a ascendência formal da
segundo lugar, com foco nas relações com o Executivo;
agropecuária é elemento primordial para equilibrar as
sua força, a propósito, advém de dois elementos
interações com as indústrias, as quais têm vantagem
preponderantes: (1) o fato de a Confederação ser o
no contexto econômico dos CAIs. órgão máximo de representação oficial da agricultura
Se, no Conselho do Agro, é possível notar a presença patronal – frequentemente entendido pelo Estado
predominante de entidades do setor primário – além como o principal agente a ser ouvido sobre esse
da liderança da própria CNA –, no IPA, as associações segmento; e (2) a capacidade de seu Conselho em reunir
da “agropecuária” têm asseguradas, desde a fundação entidades representantes das principais commodities
do Instituto, a presidência e a maioria das posições agropecuárias. Como destacado antes, foi a CNA que,
na direção. Trata-se de fator extremamente relevante, acompanhada de seu fórum de entidades, da Fiesp
pois cabe ao presidente do IPA, auxiliado pela direção, e da UNICA, liderou a elaboração do documento
arbitrar o planejamento estratégico das agendas de propostas com maior influência na campanha
prioritárias e liderar os contatos com a cúpula da FPA. presidencial de 2018 (ver CNA, 2018).
12 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 35 N° 104
Apesar das competições e desencontros entre os Após destaque na segunda metade dos anos 2000,
dois agentes dominantes na concertação – IPA/FPA o Cosag/Fiesp tem perdido relevância no campo do
e CNA/Conselho do Agro –, ambos têm ampliado agronegócio,20 embora a força das indústrias sediadas
sua convergência, somando forças para agir em temas em São Paulo ainda lhe garanta certo prestígio.
estratégicos, como os relacionados à política agrícola, Reconhecendo a diminuição de sua centralidade, essa
à tributação, aos povos indígenas e ao meio ambiente, representação associou-se, recentemente, ao IPA, e
para citar alguns dos principais. Ademais, dada sua aproximou-se da CNA. Porém, enquanto a Abag é
capacidade técnica – citada por muitos entrevistados –, apontada como bastante dinâmica, o Cosag é visto
a CNA frequentemente constrói relatórios para que como menos efetivo, por constituir-se, acima de
pleitos transversais da concertação sejam justificados tudo, como fórum de debates, e não de ação política
no Congresso e na imprensa, o que contribui de direta – conforme indica o diretor executivo de entidade
modo importante para a ampliação da capacidade de indústrias a montante da agropecuária (Associação 5,
de tradução de seus atores políticos. entrevista, 25 fev. 2019). Há, ainda, aqueles que
Por outro lado, como observado no trabalho de ressaltam seu caráter mais circunscrito a São Paulo
campo, os encaminhamentos legislativos decididos (Associação 3, entrevista, 04 abr. 2019), enquanto
em seu Conselho do Agro precisam da FPA, pois outros, como o presidente de uma representação
a força dessa Frente assegura bastante agilidade e da agricultura patronal (Associação 6, entrevista,
influência nas tramitações no Congresso Nacional. 02 abr. 2019), apontam que sua atuação é orientada
Vale destacar, nessa direção, que sua articulação – por com maior ênfase para a produção sucroalcooleira
vezes, conflituosa – com o IPA garante que a ação não – efetivamente, a área de seu atual presidente, que
ocorra por intermediação parlamentar fragmentada, trabalha para a francesa Tereos.
de deputado em deputado, mas sim por meio de Com novo ímpeto, a UDR quase chegou, por
bloco político. Foi por essa razão, a propósito, que meio de seu líder, Nabhan Garcia, a estar à frente
a Confederação recentemente se associou, de modo do Mapa em 2019. Ao tomarem conhecimento de
formal, ao Instituto, em mais uma demonstração da tal possibilidade, as entidades presentes no IPA e
consolidação do terceiro padrão de representatividade a direção da FPA agiram para evitá-la, indicando
no campo do agronegócio. para assumir o posto a então presidente da Frente,
A Abag continua participando ativamente em deputada Tereza Cristina (Democratas, Mato Grosso
diversos âmbitos da concertação, embora de forma do Sul). Ao mesmo tempo, esses agentes inseriram a
distante do objetivo maior de seu fundador, Ney UDR subalternamente no referido ministério, nos
Bittencourt de Araújo, para quem a entidade deveria temas fundiários sobre os quais essa organização
liderar a representação política do agronegócio coincide politicamente com os núcleos dominantes
(Abag, 1993). O caráter de multiafiliação no campo, da concertação.
identificado por Graziano da Silva (1991; 2010) e De sua parte, a Coalizão tem funcionado – conforme
Bruno (2015) – ou seja, a inserção de suas entidades indicado anteriormente – como órgão relativamente
em uma ampla gama de fóruns –, faz bastante autônomo em relação aos núcleos preponderantes
sentido para a Abag: essa Associação financia o IPA, é na concertação política do agronegócio. Embora
membro oficial do Conselho do Agro, tem liderança alguns de seus associados integrem tais nucleações,
na Coalizão e participação no Cosag. Entretanto, sua ênfase em pauta de atuação definida nas questões
ela é entendida como uma entidade a mais por ambiental e climática, com marcante participação de
alguns dos entrevistados, ou como representação das ambientalistas, traduz-se em posições que, por vezes,
indústrias, por outros. Para essa perda de influência, opõem-se àquelas da FPA e da CNA. No entanto,
contribuíram conflitos – ocorridos nos anos 1990 e a presença de entidades do agronegócio no fórum
2000 – relacionados à liderança das ações do campo opera para dificultar sua atuação mais incisiva em
agronegócio, bem como o fato de a Abag ter se algumas agendas, como a de defesa das TIs.
estabelecido antes como um agrupamento de empresas No que se refere ao Estado, devem-se citar as
do que de entidades (Pompeia, 2018). hierarquias dentro da bancada, que é liderada por
CONCERTAÇÃO E PODER 13
aproximadamente dez membros de sua mesa diretora. Nesse sentido, mostrou-se que a mobilização
Além disso, há as divisões dos parlamentares entre de um aparato de justificação por esses agentes é
(1) as comissões do IPA e (2) as comissões da Câmara instrumental. Contrapondo o limitado perímetro
dos Deputados (Vigna, 2001; Bruno, 2015), neste político dos núcleos concertados ao abrangente
espaço hegemonizando a de Agricultura, Pecuária, conjunto de funções agroalimentares abarcadas na
Abastecimento e Desenvolvimento Rural, e inserindo categoria agronegócio, apontaram-se sinédoques
seus principais quadros em outras comissões altamente políticas (confusões entre partes e totalidades) na
importantes para líderes da concertação, como a de faceta macroeconômica do referido aparato. Apesar
Constituição e Justiça e de Cidadania, e a de Finanças de essas nucleações não abrangerem várias das funções
e Tributação. Na estrutura do Poder Executivo, o Mapa levadas em consideração – com base na categoria – para
e, de certa forma, o MMA, funcionam, conforme calcular números sobre o PIB e os empregos do
apontado antes, como órgãos estatais sob influência agronegócio, seus líderes agem como se o fizessem,
dos agentes concertados nos temas, respectivamente, tentando assim superestimar sua representatividade
da agropecuária e do meio ambiente, permanecendo, perante a opinião pública e o Estado.
entretanto, maior dificuldade de coordenação com Tratando, pois, do agronegócio como fenômeno
outras pastas. político, o artigo procurou contribuir com a literatura
de referência, no estudo sobre seu poder, ao identificar,
historicizar e analisar sistematicamente sua estrutura
Considerações finais de ação concertada.
no presente artigo, com o que se define como terceiro 14 Deve-se enfatizar que a maior incidência sobre o
padrão. MMA tem sido de representações que ainda veem o
3 Sobre as relações público-privadas envolvendo o campo meio ambiente como problema, e não daquelas que
do agronegócio, é necessário um esclarecimento. Por um manifestam posições mais cuidadosas sobre o tema –
lado, há determinados agentes estatais que operam como a Coalizão.
sistematicamente na concertação política aqui definida, 15 Tradução do autor de excerto do texto original “[...] the
como a FPA; por outro lado, os agentes em concertação, sum total of all operations involved in the production and
incluindo, pois, os públicos, atuam para disputar as distribution of food and fiber” (Davis, 1955, p. 5).
agendas e definições – orçamentárias e regulatórias – do 16 O termo “todos”, empregado pelo entrevistado, deve ser
Estado, nesse caso apreendido em sentido amplo. entendido como operação de sinédoque política, pois o
4 A esfera pública é entendida, no texto, como uma IPA está muito distante de incluir a totalidade dos atores
arena de interação discursiva e disputa política com abrangidos no conceito englobante de agronegócio.
influências sobre as agendas pública e estatal (Fraser,
17 Deve-se ressaltar que, no final de 2019, um conflito
1997; Montero, 2012).
relacionado à questão ambiental resultou na saída
5 Para análise sobre a criação da noção de agribusiness, sua
de influentes entidades da Coalizão e ampliou a
inserção no Brasil e o processo de sociogênese desdobrado
representatividade relativa das associações “industriais”
de sua mobilização no país, ver Pompeia (2018).
nesse núcleo.
6 Sobre as operações de sinédoque política, ver Pompeia
(2018; 2020). 18 Embora criticada, a quebra da regra bastidores/esfera
pública ocorre em alguns casos, como nas recentes ações
7 Tratava-se de duas entidades por produto e multiproduto,
da Abag na imprensa confrontando a posição majoritária
típicas do que Graziano da Silva (1991) nomeou como
segundo padrão de relações público-privadas no campo no IPA de tentar mudar, novamente, o Código Florestal.
do agronegócio, conforme abordado no início do presente 19 É importante sublinhar que o lobbying não é regulamentado
artigo. no país.
8 Cabe ressaltar que o presente trabalho se apropria 20 Um exemplo relevante ajuda a evidenciar essa afirmação:
antes do pressuposto da diferenciação entre lógicas de com a criação do Conselho do Agro na CNA, algumas
justificação do que dos princípios específicos com os entidades deixaram de frequentar assiduamente esse
quais os autores citados trabalham. órgão da Fiesp.
9 Vale sublinhar que tal estratégia funciona com menor
êxito quando utilizada em relação aos embates sobre
temas ambientais, que, envolvendo escalas internacionais
da esfera pública, reequilibram a disparidade de poder BIBLIOGRAFIA
entre os atores em disputa e forçam líderes da concertação
a inflexionar o “espírito” do agronegócio, nos termos ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. (2010),
da sociologia pragmática francesa. Para análise dessa
“Agroestratégias e desterritorialização: os direitos
inflexão no tema ambiental, ver Pompeia (2018).
territoriais e étnicos na mira dos estrategistas
10 Mesmo atendendo a esse e a outros pleitos de núcleos
da concertação, o procedimento para retirar Rousseff dos agronegócios”, in A. W. B. Almeida et al.
do poder, em 2016, contou com decisiva participação Capitalismo globalizado e recursos territoriais:
de parlamentares ligados à FPA (Pompeia, 2018). fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo.
11 Jair Bolsonaro desfiliou-se do Partido Social Liberal em Rio de Janeiro, Lamparina: 101-143.
novembro de 2019.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO AGRONEGÓCIO.
12 Essa transição poderia ser apreendida, à primeira
(1993), Segurança alimentar: uma abordagem de
vista, como deslocamento típico entre os dois padrões
identificados por Graziano da Silva (1991), conforme Agribusiness. São Paulo, Abag.
apontado na Introdução do presente artigo. Contudo, ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO AGRONEGÓCIO.
em lugar de fortalecer a fragmentação, tal transição dava (2010), Plano de ação 2011-2014-2020 – propostas
ímpeto à agregação política em um fórum de natureza
aos presidenciáveis. Brasília, DF.
inédita no campo do agronegócio, o IPA.
13 Embora o livro citado traga importantes informações
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO AGRONEGÓCIO.
sobre a FPA, ele deve ser lido com ressalvas, dada a (2019), Associados. Disponível em: <http://www.
adesão política do autor a essa Frente. abag.com.br/>. Acesso em: 07 mar. 2019.
CONCERTAÇÃO E PODER 15
GRAZIANO DA SILVA, José. (2010), “Os desafios POMPEIA, Caio. Formação Política do Agronegócio.
das agriculturas brasileiras”, in J. G. Gasques; J. (2018), (352 p.). Tese de Doutorado . Universidade
E. R Vieira Filho; Z. Navarro (org.). Agricultura Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia
brasileira: desempenho, desafios e perspectivas. e Ciências Humanas, Harvard University,
Brasília, DF, IPEA: 157-184. Campinas, SP.
INSTITUTO PENSAR AGROPECUÁRIA. (2019), POMPEIA, Caio. (2020), “‘Agro é tudo’: simulações
IPA: informação [08 abr. 2019]. Informação no aparato de legitimação do agronegócio”. Horiz.
concedida ao autor. antropol., Porto Alegre, v. 26, n. 56, abril: 195-224.
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agrícola brasileiro: do complexo rural aos complexos analítico sobre a agropecuária brasileira”, in P.
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Complexo Agroindustrial”. Opinião, 21 nov. grupo de interesse. Brasília, INESC.
RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 17
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