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Lama Anagarika Govinda FUNDAMENTOS DO MISTICISMO TIBETANO De acordo com os ensinamentos esotericos do grande mantra OM MANI PADME HUM Pensamento FUNDAMENTOS DO MISTICISMO TIBETANO Lama Anagarika Govinda Devido ao seu isolamento natural, o Tibete — ultimo elo vivo que ainda nos liga as mais antigas civilizagdes — conseguiu conservar intacta e viva a tradigio do passado, o conhecimento das forcas ocultas da alma humana, bem como a mais alta rea- lizacao dos ensinamentos esotéricos dos sabios e santos da India. Considerando chegado 0 tempo de desvendar para o mundo os mistérios mais profundos desses ensinamentos, o autor deste livro, seguindo as instrugdes de seu mestre, Tomo Géshé Rim- poché — reconhecido como uma das mais altas autoridades do Tibete modetno e verdadeiro mestre da visio interior — reuniu neste volume os tesouros mais ocultos ¢ preciosos do pensa- mento humano preservados, por mais de um milénio, nessa re- gido sagrada da Asia. Dai a importancia e a conveniéncia da publicagao desta obra, uma verdadeira Revelacao, no sentido teoldgico da palavra, uma valiosa stimula de ensinamentos, ptilissima, alias, na enctuzilhada de grandes decisdes em que ora se encontra a Humanidade. ASUS, EDITORA PENSAMENTO aL4ei 922+ 140 SL 3 = = i) o I C4 a =) as ed i] = ay . de 2 AVALOKITESVARA a quem é dedicado 0 Mantra “OM MANI PADME HUM” Ki HAMAR FUNDAMENTOS DO MISTICISMO TIBETANO De acordo com os Ensinamentos Esotéricos do Grande Mantra OM MANI PADME HUM pelo LAMA ANAGARIKA GOVINDA (Anangavajra Khamsum-Wangchuk) Figuras fotografadas por Li Goramr Tradugéo do Dr. GEORGES DA SILVA E DE RITA HOMENKO W EDITORA PENSAMENTO So PAULO rc Outras obras de interesse: ANTIGA MACONARIA’ MfSTICA ORIENTAL, Swinburne Clymer © CALENDARIO DA SABEDORIA, Winifred Parker A CIENCIA SECRETA (2 vols.), Henri Durville DHAMMAPADA/ATTHAKA, diversos DIAS DE GRANDE PAZ, Mouni Sadhu DOUTRINAS ESOTERICAS, FILOSOFIAS E RELIGIOES DA INDIA, Yogue Ramachéraca A FRATERNIDADE DE ANJOS E DE HOMENS, Geoffrey Hodson FRAGMENTOS DE UM ENSINAMENTO DECONHECIDO, P. D. Ouspensky O LIVRO DO CAMINHO PERFEITO, Lao Tsé A LUZ DA ASIA, Edwin Arnold MENSAGEM DO ARUNCHALA, Paul Brunton OS MESTRES E A SENDA, C. W. Leadbeater FUNDAMENTOS DO MISTICISMO TIBETANO 2 de 2 Figura 1 Vairocana que personifica a Sabedoria da Lei Universal d A Magia das Palavras e o Poder do Verbo “Tudo que € visivel esté ligado ao invisivel, © audivel ao inaudivel, © tangivel ao intangfvel: © pensdvel talvez ao impensdvel.” Novas As palavras sfio chaves da mente, resultados ou, mais exata- mente, etapas de séries infinitas de experiéncias que, partindo do inimagindvel passado mais remoto, chegam ao presente, e encontram seu caminho num futuro igualmente inimagindvel. Elas sio “este audivel ligado ao inaudivel”, as formas ¢ potencialidades do pensa- mento que emergem daquilo que est4 além do pensamento. A natureza essencial das palavras, por isto, nao é esgotada pelo seu significado atual, nem a sua importancia esta limitada no seu uso como transmissores de idéias e pensamentos, porém expressam ao mesmo tempo qualidades que nao sao traduziveis em conceitos — tal como uma melodia, que podendo estar associada a um signi- ficado conceitual, nfo pode ser descrita por palavras ou qualquer outro meio de expresso. FE precisamente esta propriedade irracio- nal, que desperta os mais profundos sentimentos e eleva o mais intimo do nosso ser, e o faz vibrar com os outros. Assim, a magia que a poesia exerce sobre nds é devida a esta qualidade da palavra combinada ao ritmo. Ai esté a razio pela qual a magia da poesia mostra-se mais poderosa que o contetido objetivo das palavras — e até mais forte que a razio com toda sua légica, na qual acreditamos com tanta seguranca. O sucesso dos grandes oradores nao esta somente naquilo que eles dizem, porém, mais precisamente, no modo como eles dizem. Se os povos pudessem ser convencidos pela légica e provas cientificas, desde h4 muito os 19 de se achar numa encruzilhada de grandes decisdes: diante dela esta o Caminho do Poder através do controle das forcas da natureza — caminho que leva 4 escravidao e autodestruicéo —, e o Caminho da Iluminagao, que através do controle da forga interior existente em nés conduz 4 liberdade e auto-realizagéo. Apontar este caminho (0 Bodhisattva-mérga) e transformé-lo em realidade, foi o trabalho vital de Tomo Géshé Rimpoché. O exemplo vivo deste grande mestre, das maos do qual ha vinte e cinco anos o autor recebeu sua primeira iniciagéo, foi o impulso espiritual mais profundo da sua vida e lhe abriu as portas dos mistérios do Tibete. Encorajando-o, além do mais, a transmitir aos outros € ao mundo o conhecimento e experiéncia adquiridos, tanto quanto se possa em palavras transmitir. Se, apesar de todas as imperfeigdes inerentes a um tal empreendimento, o autor for capaz de ser uma ajuda a outros pesquisadores, o mérito é devido em primeiro lugar ao Guru, que deu o mdximo de si mesmo. E com ele o autor lembra igualmente os outros instrutores que tomaram o lugar do seu primeiro Guru apés sua partida, a fim de levar & maturidade as sementes por ele langadas. A todos eles o autor confessa sua profunda gratidao. Através deles todos cintila a figura primordial do Guru (Sakyamuni), que reside imperecivel no mais intimo do coragao dos seus discfpulos. Honrado seja Ele, o Iuminado! OM MUNI MUNI MAHA-MUNI SAKYAMUNIYE SVAHA! Kasar Devi Ashram, Kumaon Himalaya, India, no quinto més do ano 2500 depois do Parinirvana do Buda (Outubro de 1956). O autor 16 Primeira Parte MC O Caminho da Universalidade 2de2 en sis Prefacio A importancia da tradigfo Tibetana para nossos dias e para o desenvolvimento espiritual da humanidade reside no fato de o Tibete ser o ultimo elo vivo que nos une as civilizagdes de um passado distante. Os cultos misteriosos do Egito, Mesopotamia e Grécia, dos Incas e Maias pereceram com a destruigio de suas civilizagdes e¢ estéo perdidos para sempre, restando apenas escassos fragmentos. As antigas civilizagdes da India e da China, apesar de bem preservadas pela arte antiga e literatura, ainda brilhando em diver- sos pontos sob as cinzas do pensamento moderno, estéo recober- tas e penetradas por tantas camadas de diferentes influéncias cultu- tais, que 6 bem diffcil, sendo impossfvel, distinguir seus varios elementos e reconhecer sua natureza original. O Tibete, devido ao seu isolamento natural e inacessibilidade (reforcada pelas condiges politicas dos. dltimos séculos), conseguiu nao somente preservar, mas conservar viva a tradicfo do passado mais remoto, 0 conhecimento das forgas ocultas da alma humana, assim como a mais alta realizagfo dos ensinamentos esotéricos dos sAbios e santos da India. Porém, na tormenta dos eventos que transformaram o mundo, & qual nenhuma nacdo na terra péde escapar, e que tirou o Tibete do seu isolamento, estas suas realizagSes espirituais iréo se perder para sempre, a nfo ser que se tornem no futuro uma parte inte- grante de uma cultura humana mais elevada. Antecipando o futuro, Tomo Géshé Rimpoché (tro-mo dge-bses rin-po-che), reconhecido como uma das mais altas autoridades do Tibete modetno e verdadeiro mestre da visio interior, deixou seu distante ermitério da montanha, onde durante doze anos praticou meditagéo, e proclamou que havia chegado o tempo de desvendar para o mundo os tesouros espirituais escondidos e preservados no Tibete por mais de um milénio, Isto devido ao fato de a humanida-. 15 8 AMOGHASIDDHI WN ak wN a 10 i 12 13 reer ratm morrm O Gesto da Intrepidez DESENHOS A PINCEL Guru Négérjuna Guru Karkanapa O Vajra, nas Suas Trés Fases de Expansao A “Roda da Vida” Tibetana (reproduzida por Li Gotami) DIAGRAMAS Manas como Ponto de Encontro da Consciéncia Empfrica e Consciéncia Universal O Létus ou Mandala dos Cinco Dhyéni-Buddhas Os Quatro Centros Superiores Os Trés Centros Inferiores Diagtama Simplificado dos Centros da Forca Psiquica de Acordo com a Tradigéo do Yoga-Kundalini As Cinco “Bainhas” (kosa) Os Centros Ps{quicos no Ioga do Fogo Interior Relagdes entre os Centros, Silabas-Semente, Elementos e Dhyéni-Buddhas Elementos Formativos do Chorten (Stipa) Simbolismo da Sflaba-Semente HUM A Mandala das Divindades Detentoras do Saber de Acor- do com o Bardo Thédol Mandalas dos Trés Centros Superiores Diagrama da “Roda da Vida” 295 Reproduzidos das representagées pict6ricas da tradigaéo tibetana 58 64 67 256 79 130 155 156 157 160 188 198 200 203 219 220 261 14 uk wn Relagdo dos Dhyéni-Buddhas e das Seis Silabas Sagradas com as Seis Esferas do Mundo Samsérico S{MBOLOS E S{LABAS-SEMENTE A Roda de Oito Raios (cakra) e a Silaba-‘Semente OM A Triplice Jéia (mani) e a Silaba-Semente TRAM O Létus (padma) com a Silaba-‘Semente HRIH no Centro O Vajra de Nove Raios e a Silaba-‘Semente HUM OM MANI PADME HUM como um Létus de Seis Pétalas com a Sflaba-Semente HRIH no Centro O Vajra-Duplo (visva-vajra) com a Sflaba-Semente AH no Centro 273 17 53 93 137 227 279 de 2 2 — Sabedoria Totalmente Realizada de Amoghasiddhi como Liberagio da Lei do Carma 286 3 — A Intrepidez do Caminho do Bodhisattva 294 FL a rr 305 1 — AmotagGes 2... eee cee nee 307 2 — Métodos de Transliteragiio e de Prontncia das Palavras Hindus e Tibetanas .. 310 K Jeeeegel 5111/1)" 2° 1) INSBPERO ApS SFaNPERC SRE SEEDERS NaN PEReren SERSIrannerEaa! 315 10 Tlustracées Figuras fotografadas por Li Gotami (Membro da Expedicéo Tsaparang) AVALOKITESVARA A Quem é Dedicado o Mantra “OM MANI PADME HUM” 2 VAIROCANA Que Personifica a Sabedoria da Lei Universal 18 RATNASAMBHAVA Que Personifica a Sabedoria da Eqiiidade 54 AMITHABA Que Personifica a Sabedoria da Visio do Discernimento 94 AKSOBHYA Que Personifica a Sabedoria do Grande Espelho 138 KUMBUM O Templo dos Cem Mil Budas 201 AVALOKITESVARA DOS MIL BRACOS A Personificagéo da Compaixao Ativa 228 AMOGHASIDDHI Que Personifica a Sabedoria Totalmente Realizada 280 Quarta Parte: HUM — O Caminho da Integracio 7 — O Duplo Papel da Mente (Manas) .............. 8 — A “Reviravolta no Ponto mais Profundo da Consciéncia” 9 — Transformagio e a Realizagio da Plenitude Terceira Parte: PADMA — O Caminho da Visio Criativa ... 1 — O Létus como Simbolo da, Expansio Espiritual .... 2 — O Simbolismo Antropomérfico dos Tantras ........ 3 — Conhecimento e Poder: Prajfia versus Sakti ... 4 — A Polaridade dos Principios Masculinos e Femininos n na Linguagem Simbélica do Vajrayana 5 — Visfio como Realidade Criativa ........... 6 — Os Cinco Dhyani-Buddhas e as Cinco Sabedorias .... 7 — Tara, Aksobhya e Vairocana no Sistema Tibetano de Meditag$o 0.1... cece eee ete eee ee ene eens 8 — O Simbolismo do Espago, Cores, "Blementos, Gestos e Qualidades Espirituais ............. 0. cee eee ee eee 9 — A Importincia do Bardo Thédol como um Guia na Es- fera da Visio Criativa 1 — OM e HUM como Valores Complementares da Expe- rigncia e como Simbolos Metafisicos 2°— A Doutrina coe Coates Pera ae anomie te Budismo 3 — Os Princfpios do Espago e do Movimento 4 — Os Centros Psiquicos do Kundalini-Yoga ¢ seus Cortela- tivos Fisiolégicos 5— A Doutrina das Bnergas Psguias e das “Cinco Came- das ou Bainhas” ...0... 6... ete e eee e eee eens 6 — Fungdes Fisicas e Psiquicas do Prana e 0 Principio do Movimento (Vayu) como Ponto de Partida da Medi- RGM EEE .CEaStteoCttyut lett bta-atadatete-ote-otadotate-sbadatete-etadatoda 7 — As Trés Correntes de Forca e seus Canais no Corpo Hu- mano 8 — O Yoga do Fogo Interior no Sistema Tibetano de Medi- tagio (Tapas e gTum-mo) 82 86 93 95 97 100 106 112 116 119 124 131 137 139 144 147 150 157 161 167 9 — Processos Psicofisicos no Yoga do Fogo Interior .... 179 10 — Os Centros da Forga an no Yoga do Fogo Interior (QTUM-MO) ccc c cate cine e cece seer ee ne enee 187 11 — Dhyani-Buddhas, Silabas-Semente e Elementos no Siste- ” * tema Cakra Budista ............00 esse sence eee 191 12 — O Simbolismo da S{laba-Semente HUM como Sintese das Cinco Sabedorias 13 — A Silaba-Semente HUM e a Importancia da Dakini no Processo da Meditagéo (Dakini versus Kundalini) .. 204 14 — Iniciagdo de Padmasambhava 15 — O Extase da Abertura do Caminho através da Experién- cia da Meditacio e o Mandala das Divindades Deten- toras do Saber 213 16 — “ O Mistério do Corpo, da Palavra e da Mente” e “O Caminho Interior do Vajrasattva” na Silaba-Semente HUM 221 Quinta Parte: OM MANI PADME HUM — O Caminho do Grande Mantra ...... 0.0... cece cence 227 1 — A Doutrina dos “Trés Corpos” e os Trés planos da Rea- 1 (a 229 2 — Maya como Principio Criativo e as Dimensies da Cons- [6 (3 oS 234 3 — O Nirmanakaya como a mais Alta Forma de Realizacio 238 4 — O Dharmakaya ¢ 0 Mistétio do Corpo ............ 242 5 — A Multidimensionalidade do Grande Mantra ........ 246 6 — A Descida de Avalokitesvara nas Seis Esferas do Mundo 253 7 — A Fé6rmula da Originagio Dependente ............. 260 8 — O Principio da Polaridade no Simbolismo das Seis Esfe- ras e dos Cinco Dhyani-Buddhas .................- 266 9 — A Relacio das Seis Silabas Sagradas para as Seis Esferas 272 Epilogo e Sintese: AH — O Caminho da agio 279 1 — Amoghasiddhi: O Senhor da Sabedoria Totalmente Realizada 2de2 | TustragBes ieee ee eee beeeean aptgcatece-btacebae- ntact 11 Prefdcio: oo. eee eee Anne errr itcatbtacotadetadat elect 15 Primeira Parte: OM — O Caminho da Universilidade ....... 17 1 — A Magia das Palavras e o Poder do Verbo ......... 19 2 — Origem e Cunho Universal da Sflaba Sagrada OM .... 23 3 — A idéia do Som Criador e a Teoria da Vibracio .... 28 4 — Declinio da Tradigfo Mantrica ............ tacbiacates 32 5 — Tendéncias Mantricas do Budismo Primitivo .......- 35 6 — O Budismo como Experiéncia Viva ............5+ 39 7 — A Alita Univeral do Mahayana eo Weal do Bodhi 1 — “A Pedra Filosofal” ¢ “o Elixir da Vida” ........:. 55 2 — Guru Nagarjuna e a Alquimia Mistica dos Siddhas 58 3 — Mani, a Jéia da Mente, como “a Pedra Filosofal” e Pri- ma Matéria 61 4 — Mani como Cetro Diamantino .. 65 5 — Mente e Matéria..............5 » 70 6 — Os Cinco Skandhas ¢ & Doutrina da Consciéncia 74 Titulo do original: Foundations of Tibetan Mysticism © Lama Anagarika Govinda 1960 Nota: Nas palavras em sanscrito, alguns sinais diacri- ticos e indicagdes de vogais breves e longas deixaram de ser colocados em fung&éo das dificuldades da composicaio grafica, o que nao prejudicou, natural- mente, a compreenséo do texto. ae Soe ee ot) 90-91-92-93-04-95, Direitos reservados EDITORA PENSAMENTO LTDA. Rua Dr. Mario Vicente, 374 -04270 Sao Paulo, SP - Fone: 272-1399 1 Impresto en: nossas oficinas grdficas. A meméria do Meu Guru O Venerdval TOMO GESHE RIMPOCHE NGAWANG KALZANG Abade Superior do Mosteiro da Concha Branca no Vale Tomo (Tibete) cuja vida consistiu na realizagéo do Ideal Bodhisattva zaez eel el oat fildsofos teriam convertido para seus pontos de vista a maior parte da humanidade. Por outro lado, os livros sagrados das grandes religides do mun- do nunca teriam exercido tamanha influéncia, pois o que eles comu- nicam em forma de pensamento é fraco, comparado as obras de grandes sdbios e filésofos. Desta forma, podemos ent&o justificar dizendo que o poder daquelas sagradas escrituras é devido a magia da palavra, isto é, devido ao poder sagrado, que era conhecido dos SAbios do passado, pois eles ainda se encontravam préximos das fontes ou origem da expressao oral. O surgir do verbo ou da fala foi também o da humanidade. Cada palavra era o som ou equivalente fonético de uma experién- cia ou acontecimento, em conexéo a um estimulo interior ou exte- tior, Um poderoso esforgo criativo estava envolvido neste processo, que teve necessidade de se estender. por longo perfodo de tempo; e foi por este esforco que o homem péde se elevar acima do animal. Se a arte pode ser chamada de nova criag&éo e expressio formal da realidade por meio da experiéncia humana, entéo podemos con- siderar a criag&o do verbo como a maior realizagao da arte. Cada palavra originariamente era um foco de energias, nas quais a trans- formagéo da realidade em vibragées da voz humana — expressdo viva da alma humana — surgiu. Através destas criagbes vocais o homem se apossou do mundo, e mais ainda: descobriu uma nova dimensio, um mundo no interior de si mesmo, através do qual se abriu a perspectiva de uma mais alta forma de vida, muito além do estado presente da humanidade, como a consciéncia do homem civilizado * est4 acima de um animal. O pressentimento do mais alto estado de existéncia est4 ligado a certas experiéncias, que sdo téo fundamentais que nado podem ser explicadas, nem mesmo descritas. Elas s4o t4o sutis que nao hi nada com que possam ser comparadas, nada que o pensamento ou imagi- nacdo possa alcancar. E, no entanto, tais experiéncias sio mais reais do que qualquer outra coisa que possa ser vista, pensada, tocada, provada, ouvida ou mesmo sentida pelo olfato, pois elas abrangem tudo aquilo que precede ¢ engloba quaisquer sensagdes, as quais, por estas razées, ndo podem ser identificadas com nenhu- ma delas. E por isso que o sentido destas experiéncias s6 pode ser sugerido através de simbolos, e estes simbolos, por sua vez, nao sio inventados arbitrariamente, porém sao expressdes espontaneas que _ Surgem das mais profundas regides da mente humana. * Nota do Tradutor: homem espiritualizado. 20 “As formas da vida divina no universo e na natureza surgem no vidente como visio, no cantor como som, e aparecem direta- mente na magia da visio e do som, puras e indisfargaveis. Sua exis- téncia é a caracteristica do poder sacerdotal do poeta vidente (do kavi que é drashtar). O que proclama sua boca no sdo palavras comuns, o shabda, com que compdem seus discursos. B 0 mantra, a coergaéo tendo em vista criar a imagem mental, um poder acima daquilo que EB, para que seja tal como realmente é na sua pura esséncia. Entdo este é o conhecimento. Esta é a verdade do ser, além do verdadeiro e do falso; é o verdadeiro ser, além do pensa- mento ¢ da reflexao. & o ‘conhecimento’ puro e simples, o conheci- mento da Esséncia, Veda (em grego “oida”, em alemao “wissen”, em portugués “saber”). E a imediata e simultinea percepcio do conhecedor e do conhecido. Tal como foi uma espécie de compul- s&o espiritual com a qual o poder superior irrompia sobre o poeta vidente pela visio e palavra, entdo, para todos os tempos, aquele que souber como utilizar as palavras-mantras possuiré o poder mé- gico de invocar a realidade imediata — seja ela sob a forma de deuses ou no jogo de forgas. “Na palavra mantra encontramos a raiz man = ‘pensar’ (do grego “menos” e do latim “mens”) combinada ao elemento tra, que forma palavras-instrumento. Assim, mantra é 0 ‘instrumento para pensar’, ‘aquilo que cria uma imagem mental’. Através do seu som © mantra expressa seu contetdo, num estado de realidade imediata. O mantra é poder, ¢ nao um simples dizer que a mente pode con- tradizer ou eludir. O que o mantra expressa pelo seu som, existe e se produz. Aqui, e se em qualquer lugar palavras sio agdes, atuam de imediato. Esta é a peculiaridade do verdadeiro poeta cuja pala- vra cria realidade, chama e revela alguma coisa de real. A sua pa- lavra nao fala — age!” Desta forma, a palavra ao nascer era um centro de forga e de realidade, e somente o hdbito a estereotipou como um simples meio convencional de expresséo. O mantra escapou deste fato, num certo sentido, porque nao tinha nenhum significado concreto e conse- qiientemente ndo se prestava para fins utilitarios. No entanto, apesar de os mantras sobreviverem, sua tradicao ficou quase extinta: atualmente, poucos sdéo aqueles que ainda tém consciéncia da verdadeira natureza dos mantras e de como utiliz4- los. Nos dias de hoje, a humanidade nao é capaz de imaginar o quanto a magia da palavra e do verbo foi vivida nas civilizagées anti- 1, H. Zimmer. Ewiges Indien (India Eterna), p. 81 s. “2 gas e que influéncia poderosa exerceu na vida em seu conjunto, e de sobremodo no aspecto religioso. Nesta era do radio e dos jornais, onde as palavras faladas e escritas so multiplicadas por milhdes de vezes ¢ atiradas no mundo inteiro indiscriminadamente, o seu valor alcangou um nivel tao baixo que é mesmo dificil dar ao homem atual uma idéia, mesmo longin- qua, da atitude respeitosa com que os povos dos tempos mais espi- ritualizados ou das civilizagdes mais religiosas abordavam a palavra, considerada por estes povos como transmissora da tradicio sagrada e da personificagao do espirito. Os diltimos remanescentes destas civilizagdes podem ainda ser encontrados nos paises do Oriente. Mas somente um pais conseguiu conservar viva até os presentes dias a tradic¢ao mAntrica: o Tibete. Ai, no somente a palavra, mas todos os sons da qual ela. consiste e todas as letras do alfabeto séo considerados como simbolos sagra- dos. Mesmo servindo para fins profanos, sua origem nunca foi esquecida ou completamente ignorada. A palavra escrita, da mesma forma, sempre é tratada com respeito e nunca jogada descuidada- mente, onde pudesse ser espezinhada por homens ou animais. E tratando-se de palavras ou escrituras de. natureza religiosa, mesmo o menor fragmento é cuidado com o respeito com que-se trata uma preciosa reliquia e nao destrufdo intencionalmente; mesmo nao tendo mais utilidade, eram depositadas em santudérios ou em pequenos receptaculos especialmente construidos, ou, entéo, em gru- tas, onde eram deixadas até a sua desintegragio natural. Para quem superficialmente observa tais ages, separadamente de suas conexdes psicolégicas ¢ de fundo espiritual, pode parecer supersticéo primitiva. O Tibetano nao é tao primitivo como poderia- mos pensar; o que est4 em causa nao é um pedaco de papel com sinais escritos (como um ingénuo desenhista poderia fazer), mas ele atribui importancia maior a atitude da sua propria mente, que encon- tra sua expressio em cada uma destas agGes, e tem seu fundamen- to no reconhecimento de uma mais alta realidade sempre presente, evocada e tornada efetiva em nds pelo constante contato com estes simbolos. Desta maneira, o sfmbolo nunca é aviltado como um simples objeto de utilidade tempordria, nem reservado somente para “uso dominical” ou devogao ocasional, porém é uma presenga viva pata a qual todas as coisas profanas e matetiais e todas as necessidades da vida estado subordinadas. Em verdade, o que chamamos de “pro- fano” e “material” € despojado de seus atributos terrenos e mate- tiais, tornando-se o expoente de uma realidade por detrfs de todos 22 os fenémenos —- uma realidade que confere um sentido 4 nossa vida e agdes e que integra até a menor e mais insignificante das coisas na vasta conexfo dos acontecimentos universais. “Na minima coisa poder4s encontrar um mestre, que do mais intimo do teu ser nunca poderés satisfazer” (Rilke). Se esta atitude espiritual pudesse ser interrompida em qualquer ponto, ela perderia sua unidade fundamental e portanto sua estabilidade e forca. O vidente, o poeta ¢ o cantor, o criador espiritual, 0 psiquica- mente receptivo e sensitivo, o santo: eles todos sabem acerca da esséncia da forma na palavra e no som, no visual e no tangivel. Eles nao desprezam o que aparentemente 6 pequeno ou insignificante, porque sabem discernir o que hd de grande nele. Através deles a palavra torna-se mantra, e os sons e sinais dos quais é formada tornam-se os veiculos de forgas misteriosas. Através deles o visivel torna-se simbolo, o tangfvel torna-se um instrumento criador do espi- rito e a vida uma torrente profunda fluindo de uma eternidade para outra, B bom ser relembrado, de vez em quando, que a atitude do Oriente também tinha seu lugar no Ocidente e a tradigdo da palavra “interior” ou espiritualizada e da realidade e eficiéncia do simbolo tinha seus profetas mesmo nos tempos atuais. Nés podemos nos li- mitar a mencionar 0 conceito mantrico da “palavra” de Rainer Maria Rilke, que revelou 0 poder da verdadeira esséncia mantrica: “Wo sich langsam aus dem Schon-Vergessen, Einst Erfahrenes sich uns entgegenhebt, Rein gemeistert, milde, ynermessen Und im Unantastbaren erlebt: Dart beginnt das Wort, wie wir es meinen, Seine Geltung iibertrifft uns still! — Denn der Geist, der uns vereinsamt, will Vollig sicher sein, uns zu vereinen”? 2, Como a tradugio literal do verso nfo estaria de acordo com a beleza do original em alemfo, o que se segue torna-se Gtil para os de lingua por- t 2 “Do lugar donde lentamente hi muito esquecido, A passada experiéncia revela-se em nés, Perfeitamiente domada, suave ¢ imensurével, E realizada no intangivel: Ai comega o verbo, tal como o concebemos, E seu significado serenamente passa além de nés — Pois a mente que nos mantém solitérios, quer Estar certa de nos poder unir novamente”. zZdez 2 Origem ¢ Cunho Universal da Silaba Sagrada OM A importancia conferida 4 palavra na fndia antiga pode ser percebida na citac&o seguinte: “A esséncia de todos os seres é a terra, a esséncia da terra é a 4gua, a esséncia da 4gua sio as plantas, a esséncia das plantas é o homem, a esséncia do homem é 0 verbo, a esséncia do verbo é o Rgveda, a esséncia do Reveda € o Samaveda, a esséncia do Samaveda 6 o Udgita (0 qual é OM). Fate Udgita é a methor e a mais elevada de todas as esséncias, & digno do lugar mais elevado, 0 oitavo”. (CHANDOGYA UPANISAD) Em outras palavras: as forgas e propriedades latentes da terra e da Agua sfo concentradas e transformadas num organismo mais elevado, a planta: as forgas das plantas sao transformaclas e concen- tradas no home, as forgas do homem sao concentradas nas facul- dades da reflex mental e da expressio por meio de equivalentes sonoros, que combinados produzem a forma interior (conceitual) e a forma exterior (audivel) da linguagem, pela qual o homem se distingue de todas as formas inferiores de vida. A expresso mais preciosa desta realizagéo espiritual, a sintese destas experiéncias, constitui o conhecimento sagrado (veda), em forma de poesia (Rgveda) e de misica (Sdmaveda). A poesia é mais sutil que a prosa, porque seu ritmo produz maior unidade e atenua os grilhdes da nossa mente. Porém, a misica é mais sutil que a poesia, porque nos eleva acima do significado da palavra, num estado de receptividade intuitiva. Finalmente, ambos, ritmo e melodia, encontram sua sfintese e solugéo (que poderia parecer como dissolugdo para o intelecto co- mum) na vibragio profunda do sagrado som OM, que abrange tudo. Af o cume da piramide foi alcangado, se elevando da planicie da maior diferenciagZio e materlalizaco (“dos elementos grosseiros”: mahdbhiita) até o ponto extremo de unificagéo e espiritualizacao, que contém as propriedades latentes de todos os estdgios prelimina- 24 res, tal como consegue uma semente ou germe (bija). Neste sentido, OM € a quinta-esséncia, a silaba-semente (bfja-mantra) do universo, a palavra mAgica por exceléncia (que era o significado original da palavra “brahman”), a forca universal da consciéncia que tudo abrange. Através da identificagao da palavra sagrada com o universo, © conceito brahman tornou-se um equivalente da mente universal, o poder da consciéncia onipresente, na qual participam homens, deuses (seres divinos) ¢ animais, que entretanto s6 pode ser expe- timentada na sua plenitude pelos santos e pelo Muminado. “OM jé tinha sido empregado no paralelismo césmico do ceri- monial sacrificial Védico ¢ tornou-se um dos mais importantes simbo- los do yoga. Apés ter-se libertado do misticismo e da magia das praticas sacrificiais, como também do pensamento e das especulagdes filoséficas das religides ulteriores, ele tornou-se um dos meios essen- ciais na pratica da meditag#o e¢ da unificagao interior (que é o atual significado do termo yoga). Entao, o simbolo metafisico OM tornou- se uma espécie de instrumento psicolégico ou meio de concentragao. “Tal como a aranha sobe no fio da teia e alcanga a liberdade, assim o iogue alcanga a liberagéo por meio da sflaba OM.” No Maitréyana Upanisad, OM é comparado a uma flecha, cuja ponta, ‘manas (pensamento), esta colocada no arco do corpo humano, ¢ depois de penetrar a escuridao da ignorancia alcanga a luz do Estado Supremo. Uma passagem similar é encontrada no Mundaka Upanisad: “Tendo empunhado como arco a grande arma do Ensinamento Coloca-se nele a fecha afiada pela constante Meditacao, Secreto (Upanisad) Esticando-o com a mente repleta Deste (Brahman, Consciéncia Universal) Penetra, © belo jovem, esse Imperecivel como o Alvo. pranava (OM) € 0 arco; a flecha 6 0 eu; O Brahman é 0 alvo. — Pela vigilancia Ele pode ser alcangado; B preciso ser uno com Ele como a flecha no alvo”.1 No Méndtikya Upanisad o valor do som da silaba OM e a sua interpretacao simbélica so analisados da seguinte forma: o “O” é 1. Sri Krishna Prem, tradugo de seu livro Yoga of the Bhagavat Gtta. 25 a combinacio de “A” e “U"; a sflaba inteira, portanto, consiste de trés elementos, respectivamente, A-U-M. Desde que OM é a expressio da mais alta faculdade da consciéncia, estes trés elementos so explicados de acordo com os trés planos da consciéncia: “A” como consciéncia vigilante ou desperta (jdgrat), “U” como conscién- cia no estado de sonho (svapna) e “M” como consciéncia no estado de sono profundo (susupti). OM como representacgfo da totalidade que engloba tudo constitui o estado de consciéncia césmica (turiya) no quarto plano, além das palavras e conceitos — a consciéncia da quarta dimensfo. As expresses “consciéncia desperta”, “consciéncia do sonho” e “consciéncia do sono profundo” n&o devem ser tomadas ao pé da letra ou literalmente, porém como: 1. a consciéncia subjetiva do mundo exterior, isto é, nossa consciéncia comum; 2. a consciéncia do nosso mundo interior, isto 6, 0 mundo dos nossos pensamentos, sentimentos, desejos e aspiracdes, que também podemos chamar de nossa consciéncia espiritual; e 3. a consciéncia da unidade indiferen- ciada, onde nao hé mais separacdo entre pessoa e objeto, que repousa completamente em si mesma. No Budismo é descrito como estado de vazio inqualificdvel (stinyatd). © quarto e supremo estado (turiya), por isso, é descrito de diversos modos pelas diferentes escolas de pensamento, de acordo com suas concepges que elas consideram ser o mais alto objetivo ou ideal. Para alguns é o estado de isolamento (kevalatva), da pré- pria existéncia pura; para outros € a unido a um ser superior (sayujyatva) ou no estado impessoal do universal brahman; ou, ainda, segundo outros, na liberdade indefinida e independéncia (svdtantrya), etc. Porém, todas estas escolas estéo de acordo que é um estado de imortalidade sem sofrimento, onde nao ha nasci- mento nem velhice; e quanto mais nos aproximamos da era Budista, mais se torna claro que este objetivo nfo pode ser alcangado sem © abandono de tudo que constitui o nosso téo chamado “eu” ou “ego”. Desta maneira, OM esta associado 4 liberacio, seja como meio de realizé-la, ou como simbolo desta realizagéo. Apesar dos dife- rentes caminhos por que esta liberac&o foi procurada e definida, OM nunca foi propriedade exclusiva de qualquer escola filos6fica de pensamento, porém permaneceu fie! ao seu cunho simbélico, a saber, expressar aquilo que est4 além das palavras e formas, além das limita- gGes e classificagdes (discriminagdes), além das definigdes e explica- g6es: é a experiéncia do infinito no nosso interior, podendo dar a sen- sacio de um objetivo distante, tal como um mero pressentimento, ou 26 uma saudade —- podendo ser reconhecida como uma crescenté reali- . dade ou realizada pela destruicdo das nossas limitagdes e escravidao. Ha tantas infinidades como dimensdes, tantas formas de libera- cao como de temperamentos. Todas, no entanto, experimentam a mesma impressfio. Os que sofrem na escravidéo e no encarcera- mento experimentarao a liberagZo como expansdo infinita. Os que sofrem na escuridio (ignorancia) a experimentaréo como luz infi- nita. Os que gemem sob o peso da morte e da transitoriedade a experimentario como eternidade. Os que estdo na inquictude goza- Tao esta experiéncia como paz e harmonia infinita. Porém, todos estes termos, sem esgotar seus ptéprios atributos, mantém o mesmo significado: “infinito”. Isto é importante, porque nos mostra que mesmo as mais altas realizagdes podem conservar algum sabor individual — 0 sabor do solo onde elas se desenvol- veram —, sem prejuizo, no entanto, do seu valor universal. Mesmo nestes mais altos estados de consciéncia, no sentido absoluto, nao encontramos nem identidade nem nao-identidade. Persiste entre eles uma profunda relagio, porém nao uma igualdade tola que nunca poderd ser o resultado da vida e do crescimento, mas apenas um produto de um mecanismo sem vida. Assim, a experiéncia do infinito estava expressa pelos antigos Vedas em termos de cosmologia,. pelos Bréhmanas em termos de ritual m4gico, nos Upanisads em termos de monismo idealfstico, no Jainismo em termos de biologia, no Budismo em termos de psicolo- gia (baseada nas experiéncias da meditacaio profunda), no Vedantis- mo em termos de metaffsica, no Vishnuismo em termos de bhakti (amor mistico e devocional), no Shivaismo em termos de “nao-duali- dade” (advaita) e ascetismo, nos Tantray Hindus em termos de poder criativo feminino do universo (sakti), e no Budismo TAntrico em termos de transformacio das forgas e fendmenos psicocésmicos penetrando-os com a luz do conhecimento transcendental (prajfid). Isto nfo esgota as possibilidades diferentes de expresso, nem as excluem das suas combinagdes e miitua penetragio. Pelo -contrd- rio: muito de suas caracteristicas estéo geralmente combinadas, e os pensamentos e praticas dos diferentes sistemas religiosos nao esto estritamente separados, mas se interpenetram em parte uns com os outros. Entretanto, a énfase de uma ou de outra destas caracteristicas dé para cada um desses sistemas seu cardter préprio e “sabor” particular. Em _conseqiiéncia, OM aparece para alguns como simbolo de um universo divino, para outros como simbolo do poder infinito, 27 2dez para um seguinte como espago infinito, para outro como existéncia infinita ou vida eterna. Para alguns, OM representa a luz onipre- sente, para outros significa a lei universal, ¢ ainda outros a inter- pretam como a consciéncia onipotente, como onipenetrante divinda- de, ou em termos de athor que tudo envolve, ritmo césmico, forga criadora sempre presente, ou conhecimento ilimitado, e assim ad infinitum, ; Como um espelho que reflete todas as formas e cores sem mu- dar sua prépria natureza, assim OM reflete os matizes de todos os temperamentos e toma a forma de todos os ideais elevados, sem se restringir exclusivamente a nenhum deles. Se esta silaba sagrada fosse identificada por um significado conceitual, ou estivesse voltada para algum ideal particular, sem preservar sua qualidade irracional e intangivel da sua esséncia, nunca poderia ser capaz de simbolizar aquele estado de supraconsciéncia da mente no qual todas as aspi- ragdes individuais encontram sua sintese e realizacdo. 3 A Idéia do Som Criador e a Teoria da Vibracio Como todas as coisas viventes, os simbolos também tém seus periodos de crescimento ¢ declinio. Quando seu poder alcangou o zénite ou apogeu, eles descem pelos diferentes caminhos (procedi- mentos) da vida cotidiana até se tornarem expressées convencionais, que nao tém mais conexdes com a experiéncia original, e quando ocorrem tomam um significado tao estreito ou de tal modo genera- lizado que o seu sentido profundo se perde. Entdo, outros simbolos tomam seu lugar, enquanto eles se recolhem num circulo intimo de iniciados, onde renascerao quando seu tempo chegar. * Aqui, “iniciados” nao significa alguns homens organizados em grupos, mas aqueles individuos que em virtude de sua prdpria sensi- bilidade se tornaram acessiveis 4s vibragdes sutis dos simbolos que vieram 4 existéncia neles, pela tradigéo ou prépria intuigéo. No caso dos simbolos mntricos, as vibragées sutis do som tém uma fungo muito importante, contudo as associagdes mentais, que se cristalizam em volta deles através da tradigfo ou por experiéncia individual, contribuem muito para intensificar seu poder. O segredo deste poder oculto do som ou vibracao, que consti- tui a chave dos mistérios da criacio e da criatividade (forca criativa), 28 como revela a natureza das coisas e os fendmenos da vida, foi bem compreendido pelos videntes do passado: os Rishis que viviam nas encostas do Himalaia, os Magos do Ira, os adeptos da Mesopotamia, os sacerdotes do Egito e os misticos da Grécia — mencionando apenas aqueles que deixaram alguns vestigios na tradic¢ao. Pitégoras, que foi um iniciado na sabedoria Oriental e funda- dor de uma das mais influentes escolas de filosofia mistica no Oci- dente, falava da “Harmonia das Esferas”, de acordo com a qual cada corpo celeste — de fato, cada um e todos os 4tomos — produz um som particular devido a seus movimentos, ritmo ou vibragdo. Todos estes sons e vibragdes formavam uma harmonia universal em que cada elemento, conservando seus atributos e sua fungdo prdpria, contribufam para a unidade do todo. A idéia do som criativ> continuou através dos ensinamentos do logos, que foram parcialmente absorvidos pelo Cristianismo pri- mitivo, tal como podemos ver no Evangelho de Sao Joao, que come- ga com palavras misteriosas: “No comego estava o Verbo, e 0 Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus... e 0 Verbo se tornou came...”. : Se estes ensinamentos profundos, que estavam em vias de unir © Cristianismo & filosofia Gnéstica e as tradigdes Orientais, tivessem conseguido manter sua influéncia, a mensagem universal de Cristo teria sido salva da ‘armadilha d2 intolerancia e da estreiteza da mente. Na fndia, entretanto, o conhecimento do som criativo sobrevi- veu. Ele se desenvolveu mais tarde nos diferentes sistemas do Yoga € encontrou plenitude naque.as Escolas do Budismo que tinham sua base filoséfica na doutrina dos Vijfiinavddins. Esta doutrina também era conhecida’ como Yogécdra, e sua tradicdo foi preservada até nos- sos dias, tanto na teoria como na pratica, nos pafses do Budismo Mahdydna do Tibete ao Japio. Alexandra David-Neel, no oitavo capitulo de seu livro Tibetan Journey, descreve um “mestre do som”, que n&éo somente era capaz de produzir com seu instrumento, uma espécie de cimbalo, toda modalidade ‘de sons estranhos, como também explicou que todos os seres ou coisas emitem sons de acordo com sua natureza e no estado particular em que se encontram — como Pitagoras. “Isto acontece”, disse ele, “porque estes seres ¢ coisas s4o agregados de 4tomos que dangam e através de seus movimentos produzem sons. Quando o ritmo da danga muda, o som que eles emitem também muda... Cada 4tomo entoa perpetuamente seu canto, e o som criado, a 29 cada momento, cria formas densas ou sutis. Tal como existem sons criadores, existem sons destruidores. Aquele que for capaz de emitir estes sons, pode, a seu bel-prazer, criar ou destruir.” Devemos ter cuidado em nfo interpretar estas declaracdes em termos de ciéncia materialista. Foi afirmado que o poder dos mantras reside no efeito de ‘“ondas sonoras” ou vibragdes de infimas parti- culas de matéria que, como pode ser demonstrado por experiéncias, se agrupam em determinados arranjos e figuras geométricas, corres- pondendo exatamente 4 qualidade, intensidade e ritmo do som. ‘Se um mantra pudesse agir de tal modo mecanicamente, entio poderia se obter o mesmo efeito quando reproduzido por um disco de fondégrafo (ou fita gravada). Porém, sua repetigéo, mesmo por intermédio de um homem comum, nfo teria nenhum efeito se execu- tado por uma pessoa ignorante, mesmo que a entonacio fosse idénti- ca & de um mestre.* A superstigfo de que a eficicia de um mantra depende da sua entonacfio é a conseqiiéncia direta de uma teoria superficial de vibragGes de diletantes pseudocientfficos, que confun- dem os efeitos das forgas ou vibracdes espirituais com as das ondas sonoras fisicas. Se a eficcia dos mantras dependesse da correta pro- ndncia, ent&éo todos os mantras do Tibete deveriam ter perdido seu significado e poder, devido ao fato de nao serem pronunciados de acordo com as regras do Sfnscrito, mas de acordo com as leis fonéticas da lIfngua Tibetana (nao, por exemplo, OM MANI PADME HOM, porém “OM MANI Péme HUM”). Isto demonstra que o poder e efeito de um mantra dependem da atitude espiritual, do conhecimento e da receptividade individual. O sabda ou som do mantra nao é um som fisico (apesar de poder estar acompanhado dele), porém um som espiritual. Nao pode ser percebido pelo ouvido, mas somente pelo coragdo e¢ nio pode ser expresso pela boca, mas somente pela mente. O mantra tem poder e significado somente para o iniciado, isto é, para aquele que passou por uma forma particular de experiéncia ligada a6 mantra, Tal como uma férmula quimica da forga somente Aqueles que estéio familiarizados com os simbolos da qual ela consiste ¢ das leis de sua aplicacio, do mesmo modo o mantra dé poder somente Aque- les que esto cénscios do seu significado profundo e familiarizados com sua maneira de atuar, e que sabem ser um recurso para desper- tar forcas latentes dentro de nds, através das quais somos capazes de dirigir nosso destino e influenciar nossos circundantes, * Nota do Tradutor: Pode acontecer que o som bem emitido possa despertar numa pessoa sensivel a experiéncia do mantra. Neste caso, o Mes- tre foi a prépria mente da pessoa que percebeu. 30 Mantras nao so “férmulas mégicas”, como freqiientemente afirmam proeminentes eruditos do Ocidente, nem séo aqueles que conseguiram lograr alguma proficiéncia, isto é, “poder psiquico” (siddhi) como os “feiticeiros” (chamados de Siddhas por Griinwe- del). Os mantras nfo atuam por conta de sua natureza “magica”, mas somente através da mente que os experimenta. Eles no pos- suem forga prépria; eles sio apenas os meios para concentrar forgas jA existentes — tal qual uma lente de aumento, que apesar de nao possuir nenhum calor préprio, € capaz de concentrar os raios solares e transformar seu calor ameno em calor incandescente. Isto pode parecer feitigaria para um matuto, porque ele vé somente o efeito, sem conhecer as causas e suas .conexées interiores. Por conseqtiéncia, aqueles que confundem conhecimento méntrico com feiticaria no sio muito diferentes nos seus pontos de vista da atitude do matuto. E se houve eruditos que experimentaram desco- brir a natureza dos mantras por meio de conhecimentos filolégicos, e chegaram a conclusio que eram “desprovidos de sentido”? porque eles nao tinham nem estrutura gramatical nem significado légico, entio podemos apenas dizer que tal procedimento era igual a per- seguir borboletas com uma marreta. Sem falar da impropriedade dos meios, é espantoso que tais eruditos, sem possuir a menor experiéncia pessoal neste dominio e sem mesmo ter tentado estudar a natureza e os métodos da tradi- gao mA&ntrica e exercitar-se orientados por um instrutor espiritual competente (guru), se arrogaram o direito de julgar e de dar opinises. Foi somente através do trabalho precursor e corajoso de Artur Avalon (especialmente no setor do Tantra Hindu, onde encontrou um talentoso e genial intérprete no indologista alemio Heinrich Zimmer) que o mundo viu pela primeira vez que o Tantrismo nio era nem Hinduismo degenerado nem Budismo corrompido, e que na tradig&o mantrica estava a expressio do mais profundo conhecimen- to e experiéncia no domfnio da psicologia humana. Todavia, esta experiéncia s6 pode ser adquirida sob a orienta- gao de um Guru competente (personificagio viva da tradicio) e pela pratica pessoal através de um treino constante. Se, ent&o, depois de tal preparacgo o mantra é utilizado, todas as associagdes neces- sfrias e forgas acumuladas das experiéncias anteriores est4o desper- tadas no iniciado e produzem a atmosfera e o poder para o qual o mantra é intencionado. Porém, o n4o-iniciado podera pronunciat 1. L. A. Waddell.. The Buddhism of Tibet or Lamaism, Londres, 1895. 31 2dez © mantra quantas vezes quiser, que nao conseguir4 obter o mais leve resultado. Portanto, os mantras podem ser impressos nos livros aos milhares, sem libertar seu segredo ou perder seu valor. Seu “segredo” nao é algo intencionalmente oculto, porém algo que s6 pode ser adquirido pela autodisciplina, concentragéo, expe- riéncia interior e viséo interior. Como toda coisa valiosa e toda forma de conhecimento, nao é obtido sem esforgo. Somente neste sentido é que é esotérico, como toda sabedoria profunda nao se descobre ao primeiro relance, porque nao ¢ matéria de conhecimento super- ficial, porém de uma realizag&o no fundo da nossa propria mente. Por isto, quando o discipulo Hui-néng perguntou ao quinto Patriar- ca da Escola Budista Chinesa Ch’an se ele tinha algum ensinamen- to esotérico para ensinar, ele respondeu: “O que eu posso te dizer nao é esotérico. Se tu olhares para o teu interior, descobrirds que o esotérico est dentro da tua prépria mente”. Entao o conhecimento esatérico esté aberto a todos gs que estio dispostos-a se exercitar sin- ceramente e que tenham a capacidade de aprender com a mente aberta. Do mesmo modo como os que sao admitides para instrugdo su- perior nas universidades ou instituigdes sitnilares precisam dos neces- sdrios dons e qualificagdes, assim também os mestres espirituais de todos os tempos exigiam de seus discfpulos certas qualidades e quali- ficagdes, antes de serem iniciados nos ensinamentos profundos da ciéncia mantrica. Pois nada é mais perigoso que um conhecimento insuficiente ou apenas tedrico. As qualidades requeridas eram: f€ sincera no Guru, devogio perfeita ao ideal que ele representa, e profundo respeito para todas as coisas espirituais. As qualificagdes especiais eram: conhecimento basi¢o dos principais principios das sagradas escrituras ou tradigao, e resolugio de devotar um certo nimero de anos ao estudo e prati- ca dos ensinamentos profundos sob a diregio do Guru. 4 Declinio da Tradigéo Mantrica O conhecimento mantrico pode ser chamado de doutrina secre- ta no mesmo sentido que altos estudos de matemiatica, fisica ou quimica para o homem comum, nio afeito aos simbolos ou férmulas destas ciéncias, possa parecer um livto fechado a sete chaves. Assim 32 como as tltimas descobertas destas ciéncias podem ser mal utilizadas para fins de poder pessoal ou politico, e por esta tazio estéo manti- das em segredo pelas partes interessadas (como os governos), do mesmo modo o conhecimento m@ntrico em determinadas épocas tor- nou-se vitima do poder politico de determinadas castas ou classes sociais. Na India antiga, os Braémanes, a classe sacerdotal, fizeram do conhecimento mantrico o apandgio ou privilégio de sua casta, obri- gando assim todos os que nao pertenciam a sua classe a aceitar cega- mente os ditames da tradicio. E assim aconteceu que o que no inicio era a flamula do éxtase e inspiragao religiosa, transformou-se em dogma e finalmente reagindo mesmo nos criadores desta tradicao com irrelutével coagéo. O conhecimento tornou-se mera crenga e a crenga, sem a corretiva experiéncia, tornou-se supersticao. Em quase todas as superstigées do mundo podemos encontrar vestigios de algumas verdades, que ficaram separadas das suas corre- laces originais, e perderam seu significado, Elas sdo, no sentido lite- ral da palavra “residuos”, alguma coisa que subsistiu (“super-slitia”). E devido as circunstincias ¢ caminhos pelos quais estas verdades ou idéias foram encontradas, isto é, suas conexdes légicas, espirituais ou histéricas, ficaram esquecidas, tornaram-se simples credo, que mada tem em comum com a verdadeira fé ou confianga razodvel na ver- dade ou poder de uma idéia ou de um individuo, uma confianga que cresce em uma conviccdo interior, quando nascida da experién- -cia e em harmonia com as leis da razdo e da realidade. Este tipo de 6 & a precondigo necesséria para qualquer atividade mental ou espiritual, quer seja ciéncia ou filosofia, religiao ou arte. E a atitu- de positiva da nossa mente e de todo o nosso ser, sem a qual nenhum Progresso espiritual pode ser alcangado. Esta é a saddha que o Buda exigia dos que queriam seguir o seu caminho. “Apdruté tesam amatassa dvdrd, ye sotavanté pamujicantu saddham.” “Abertas estio as portas da imortalidade; vés que tendes ouvidos, ougam, libertem vossa fé!” Estas foram as palavras com as quais o Buda iniciou sua carreira de instrutor religioso. “Pamuficantu saddham” significa: “Déem livre curso a vossa f€, 4 vossa verdade e confianga interior, afastem os obstdculos interiores e abri-vos 4 verdade!” Foi este tipo de f6, de prontidao interior e abertura mental, que encontrou no sagrado som OM a expressdo espont4nea e a libe- ragio da esmagadora pressdo psiquica. Neste simbolo mfntrico todas as forgas positivas e propulsivas da mente humana (que tentam romper suas limitagdes e quebrar os grilhdes da ignorfncia) ficam unidas e concentradas como na “ponta de uma flecha”. 33 Porém, muito cedo esta expressio verdadeira da experiéncia profunda caiu vitima da especulag&o; porque os que nao tinham par- ticipado desta experiéncia tentaram pesquisar seus resultados. Ndo era suficiente para eles saber que uma vez removidas as causas das trevas, a luz toma a brilhar. Eles queriam debater as propriedades da luz mesmo antes de tentar penetrar na escuriddo; e assim discu- tindo eles edificaram e desenvolveram uma teologia requintada, na qual o sagrado OM ficou tao artisticamente intrincado, que tornou-se impossfvel desenred4-lo. Em vez de confiar nas suas préprias forgas, esperavam a ajuda de algum agente sobrenatural..Enquanto especulavam acerca do obje- tivo, esqueceram que © esforco de “atirar a flecha” deveria ser feito por eles mesmos e nao por algum poder magico do interior da flecha ou do alvo. Eles adornaram e fizeram culto da flecha em vez de utili- z4-la, empregando todas as suas energias disponiveis. Eles afrouxaram © arco da mente e do corpo, em vez de exercita-lo. Entao aconteceu que no tempo do Buda este grande simbolo méntrico ficara tao emaranhado na teologia da fé bramanica, que n&o péde ser utilizado numa doutrina que procurava se livrar tanto da tutela dos Bramanes, como dos dogmas e teorias supérfluas, e que acentuava a autodeterminacao, a auto-responsabilidade do ho- mem e sua independéncia do poder dos deuses. O primeiro e mais importante empreendimento do Budismo foi “esticar de novo o arco do corpo e da mente” pelo correto treina- mento e disciplina, E depois, quando a autoconfianga do homem ficou restabelecida e a nova doutrina firmemente estabelecida, os adornos, as teias e a especulacio da teologia murcharam e cairam da ponta da flecha sagrada OM, e esta pdde ficar novamente atada a flecha da meditagio. Como j4 foi mencionado, OM estava estreitamente ligado ao desenvolvimento do Yoga, o qual, como uma espécie de sistema inter- religioso de métodos de treino corporal ¢ mental, recebia e contri- bufa para as diferentes escolas de pensamento religioso. O Budismo, logo no seu comego, aceitou e desenvolveu as praticas do Yoga, e uma constante troca de continuas experiéncias se estabeleceu entre o Budismo e outros sistemas religiosos, que se mantém aproxima- damente ha dois milénios. Por conseguinte, nado é admirdvel que, conquanto a silaba OM provisoriamente tivesse sentido a sua importancia simbélica, a pratica religiosa do Budismo primitivo langasse mao da férmula mantrica, quando necessério como um meio de despertar a confianga na fé 34 (saddha), para libertagdo dos obstéculos interiores, e para auxiliar a concentracao a fim de atingir o supremo objetivo. 5 Tendéncias Mantricas do Budismo Primitivo J4 os primitivos Mahdsdnghikas possufam nos seus CAnones uma colegio especial de férmulas mantricas sob o nome de Dhdrani ou Vidyddhara-pitaka. Dhdranis eram meios de fixar a mente sobre uma idéia ou pensamento, uma visdo ou experiéncia obtida.na medi- tacdo. Estas (férmulas mAntricas) podem representar a quinta-essén- cia de um ensinamento, como também a experiéncia de determinados estados de consciéncia, que desta maneira podem ser relembrados ou recriados deliberadamente a qualquer momento. Por isso sio tam- bém chamados de suportes, recepticulos ou bercos da sabedoria (vidyddhara). Eles nao sio funcionalmente diferentes dos mantras, mas em certo grau nas suas formas, visto que podem atingir con- siderdvel extensio e algumas vezes representam a combinacfo de varios mantras ou “sflabas-sementes” (bfja-mantras), ou a quinta- esséncia de um texto sagrado. Eles eram tanto um produto, meios de meditacio: “Através profunda concentragio (samédhi) adquire-se uma verdade, através o dhdrani ela é fixada e retida na meméria”, Apesar de a importancia dos mantras e dos dhdrani como meio ou instrumento de meditacio ainda nfo ter sido evidenciada no Budismo Theravdda, a sua eficiéncia nunca foi posta em diivida. Nos mais antigos textos Pdli encontramos mantras de protegdo ou parittas para afastar perigos, doencas, cobras, espiritos, influéncias nefastas e outras, como também de criar condigdes benéficas, como de satide, felicidade, paz, um feliz renascimento, riqueza, etc. (Khuddakapdtha; Anguttara-Nikéya, YW, 67, Aténdtiya-Sutta, Digha-Nikdya, 32, etc.) No Majjhima-Nikdya, 86, 0 Buda induziu Angulimdld (um antigo bandido convertido pelo Buda) a curar uma mulher, sofrendo em consegiiéncia de um aborto, pela enunciagdo da verdade, isto 6, através do poder mantrico, Nunca é demais acentuar que isto con- siste principalmenfe na pureza e sinceridade do propésito da pessoa que a enuncia, intensificada e tornada forca consciente pelo modo solene da pronincia vocal. Embora a atitude interior do orador seja 35 zZdez a fonte principal do poder, nao é menos irrelevante a forma como ele a expressa. Ela deve ser adequada ao contetido espiritual, me- Iddico, ritmico, vigoroso, e apoiado pelas associagées mentais e emo- cionais, criadas pela tradicfo ou experiéncia pessoal. Neste sentido, nao somente as solenes elocugdes do Ratana-Sutta, no qual cada verso termina com a afirmagaio “que o poder desta verdade possa trazer felicidade” (etena saccena suvatthi hotu), devem ser considerados como mantras, como também as férmulas em Pali do antigo refagio que até presentemente so recitadas com tanta ve- neragdo nos pafses do Budismo Theravdda, como seus correspondentes mantras Sanscritos das Escolas do Norte. Seu paralelismo perfeito de som, ritmo e idéia, sua concen- tragio nos simbolos mais elevados, tais como Buddha, Dhamma (doutrina; Sanscrito: Dharma) e Sangha (comunidade dos discfpulos) e sua atitude devocional basica, na qual saddha (confianga na convicgio) e mettd (amor, compaixio) ocupam o primeiro plano, convertendo estas férmulas em mantras, no melhor sentido da palavra, Que a sua expresséo formal é téo importante como seu conceito, est4 acentuada na triplice recitagio e no fato que algumas destas férmulas recitadas trés vezes so repetidas duas vezes com ligeiras diferengas de pronéncia numa mesma ceriménia (como por exemplo na Birmania, no decorrer das ceriménias do pujd, paritta, upasampadd, patimokkha ou em ocasiées similares) para estarem certos da forma correta, da reprodu¢ao correta do simbolo-som, san- tificado pela tradigao, o qual como uma correnteza viva corre do passado para o futuro, reunindo assim o individuo as passadas e futuras geracgdes de devotos que se esforcavam para o mesmo objetivo. Neste particular, encontramos a magia da palavra mantrica e © seu poder mistico sobre o individuo. Como o verdadeiro budista néo espera que o Buda ou seus discipulos ou o Dharma atendam suas preces, ou ser beneficiado de uma maneira milagrosa, esta claro para ele que a eficdcia de tais férmulas dependem uhicamente da harmoniosa cooperacio da forma (som e ritmo), sentimento (impulso devocional: f6, amor, veneracao) e da idéia (associagSes mentais: conhecimento e experiéncia) que despertam, intensificam ¢ transformam as forgas psiquicas latentes (das quais determinagaéo e forga de vontade conscientes sfo apenas pequenas frag6es). A forma é indispensdvel, pois € 0 receptéculo que guarda as outras qualidades; o sentimenta é indispensdvel porque cria unidade (igual ao calor que pela fusio de diferentes metais os amalgama 36 numa nova unidade homogénea), enquanto a idéia é a substdncia, a “prima matéria” que vitaliza todos os elementos da mente humana, desperta-a de suas energias latentes. Porém, € necessdrio notar que o termo idéia no deveré ser compreendido como representando uma simples abstragio, mas — como no sentido original da palavra grega “eidos” — uma imagem criativa ou uma forma de experiéncia na qual a realidade é refletida e reproduzida continuadamente de outra forma. Enquanto a forma tornou-se cristalizada da pratica de passadas geragées, a idéia que a inspirou é dédiva do Buda — e somente neste sentido pode-se dizer que o poder espiritual do Buda esta pre- sente no mantra —, porém o impulso que fusionou as qualidades do coracio e da mente e as forcas criativas que reagem a idéia e a preenchem com a vida, é isto com que o discipulo deve contribuir. Se sua f€ nao é pura, ele nao realizar4 a unidade interior; se sua Mente nao € treinada, ele nao sera capaz de assimilar a idéia; se ele é embotado psiquicamente, suas energias nao atenderfo ao chamado; e se lhe falta concentragio, nao sera capaz de coordenar forma, coraciio e mente. Desta forma, 0s mantras nao séo métodos que nao necessitam esforgos para escapar das més conseqiiéncias da vida, isto é, das nossas préprias acdes, mas um meio que requer esforgo, tal como qualquer outra via de libertacdo. Se for dito que a acdo méntrica néo falha quando corretamente usada, ndo significa que ela pode interromper as leis da Natureza ou contrariar os efeitos do karma. Isto significa apenas que aquele que é perfeito na sua concentracao, na sua fé e no seu conhecimento nao poderd falhar na realizagio da libertag&o — porque ele j4 é senhor do seu carma (lit. “agdio” que produz conseqiiéncias ou efeitos), isto é, dele mesmo. Da mesma maneira, nas formas posteriores do Mantraydna (chamadas Escolas M&ntricas do Budismo) foi bem compreendido que o carma nao podia ser neutralizado simplesmente murmurando mantras ou por outra qualquer espécie de ritual religioso ou poder magico, mas somente por um coraco puro e uma mente sincera, Milarepa, um dos maiores Mestres do Som, e que pode ser consi- derado a maior autoridade neste assunto, disse: “Se perguntares se o mau carma pode ou nao ser neutralizado, entdo saiba que ele € neutralizado pelo desejo da bondade”. :Sem harmonizar o corpo. a palavra e a mente na Doutrina, Que proveito pode ser obtido celebrando rituais religiosos? Se a célera pode ser vencida pelo seu antidoto, (o amor) 37 Que proveito pode ser obtido celebrando rituais religiosos? Salvo meditando no amor ao préximo mais do que a si mesmo, Que proveito pode ser obtido falando apenas com as lébios: ‘O, tenha piedade {das criaturas sencientes]?” 1 Palavras como estas podem ser encontradas em grande nimero para provar que, apesar das grandes mudangas nos métodos da pratica teligiosa no decorrer do tempo, o espirito do Budismo perdurou sempre vivo. Nao era contraditério 4s idéias do Budismo utilizar mantras como ajuda adicional na meditacéo e nos exercicios de- vocionais, enquanto forem meios de libertagéo e nado assumirem o papel paralisante do dogma, isto é, até que as pessoas tenham uma nogio clara das causas e efeitos e do significado interior dos mantras € nao fizerem deles objetos de fé cega ou meios de beneffcio mundano. No tempo do Buda, no dogmatismo teolégico do ritual sacri- ficial do Bramanismo, este conhecimento foi perdido em grande parte e as palavras mfntricas degeneraram em uma simples convengio e ntim meio conveniente de escapar As suas préprias responsabilidades, confiando nos poderes m4gicos de deus e nas férmulas constran- gedoras do deménio. O Buda, no entanto, que colocou o homem no centro do seu universo e que acreditava na libertagao somente através dos préprios esforgos, e nao através de intervengao divina, néo péde edificar sobre um sistema mAntrico teologicamente contaminado, mas teve que deixar ao tempo e as necessidades interiores e experiéncias dos seus seguidores de encontrarem novas formas de expressio. O Buda péde apenas apontar o caminho pelo qual todos podem chegar 4 sua prépria experiéncia. Porque mantras nao podem ser fabricados; eles devem crescer, e crescem somente da experiéncia e do conhecimento coletivo de muitas geragées. O desenvolvimento da ciéncia Budista dos mantras nao foi, fo, uma “recafda” nos usos bramfnicos ou um sinal de “degeneragio”, porém a conseqiiéncia natural do crescimento espi- ritual, que em cada fase do seu desenvolvimento produziu pela ne- cessidade suas préprias formas de expresséo. E mesmo assim, onde estas formas tivessem semelhanga as de épocas remotas, nio eram uma simples repetig&éo do passado, porém uma nova criagao resul- tante da plenitude esmagadora da experiéncia direta. 1. Tibets Great Yogi Milarepa, traduzido pelo Lama Dawa Samdup, editado pelo Dr. W. Y. Evans-Wentz, p. 263 s. 38 6 O Budismo como Experiéncia Viva Cada experiéncia nova, cada nova situagao da vida alarga nosso panorama mental e provoca uma transformacio sutil no nosso interior. Desta maneira, nossa natureza muda continuadamente, nfo somente devido as condigdes da vida, mas — mesmo que estas per- manecessem estfticas — porque, devido 4 constante acumulacio de novas impressées, a estrutura da nossa mente torna-se cada vez mais diversificada e complexa. Seja que chamemos isto de “progresso” ou “degeneragao”, temos que admitir 0 fato que isto é a lei de toda vida, na qual diferenciagio e coordenacSo equilibram-se reciprocamente. Deste modo, cada geragio tem seus préprios problemas e ne- cessita encontrar suas préprias solugdes. Os problemas, assim como os meios de resolvé-los, crescem das condigSes do passado e con- seqiientemente estaio ligados a ele, porém eles nunca podem ser idénticos com este passado. Eles nado sio nem completamente idénticos nem completamente diferentes. Eles sfio o resultado de um processo continuo de ajustamento. De modo similar, temos que considerar o desenvolvimento dos problemas religiosos. Quer os consideremos como “progresso” ou “degeneragao”, eles sio necessidades da vida espiritual, que nao se deixam imobilizar em férmulas rigidas imutaveis. Grandes religides e atitudes filoséficas profundamente arraigadas nao sao criag6es individuais, néo obstante o impulso inicial ser dado por grandes personalidades. Elas crescem dos germes das idéias cria- tivas, das grandes experiéncias e das visdes profundas. Crescem através de muitas geragdes de acordo com suas préprias leis inerentes, tal como uma 4rvore ou qualquer outro organismo vivo. Elas sao 0 que podemos chamar de “eventos naturais do espirito”. Porém, sew crescimento, sua expansfo e maturidade necessitam de tempo. Ainda que a 4rvore inteira esteja contida potencialmente na semente, requer tempo para se transformar numa forma visivel. O que o Buda podia ensinar em palavras, era apenas uma fracio do que transmitia pela sua simples presenga, sua persona- lidade e seu exemplo vivo. E todas elas em conjunto representavam apenas uma pequena fracdo da sua experiéncia espiritual. O préprio Buda estava consciente das deficiéncias e limitagdes da palavra e da linguagem, quando hesitante em ensinar a sua doutrina pondo em palavras qualquer coisa que era demasiado profunda e sutil para 39 2daez ser alcangada pela mera légica e pelo raciocinio do homem comum, (No entanto, hd ainda pessoas que nao véem no Budismo nada além do que uma “religiéo da razdo”, e para eles “razao” esta estrita- mente limitada 4 iluminacdo cientifica ¢ 4 légica infalivel deste Ultimo século ou das “tltimas” descobertas da ciéncia!) A despeito disto, quando o Buda resolveu finalmente revelar a verdade, por compaixao para os poucos “cujos olhos estavam apenas cobertos de um pouco de poeira”, ele evitou falar acerca das ver- dades dltimas e se recusava a responder qualquer pergunta no que concerne o estado supramundano da Realizacéo ou problemas si- milates que estavam além da capacidade do intelecto humano. Ele se limitou a mostrar o caminho pratico que levava 4 solugao de todos aqueles problemas, e indicando-o, explicava sempre seus ensinamentos essenciais numa forma que cortespondia 4 capacidade dos seus ouvintes. Para o camponés falava.em termos agricolas, aos artesios em termos correspondentes a profisséo que exerciam, aos bramanes se dirigia em linguagem filoséfica e assuntos similares as suas concepgdes do universo ou as suas praticas religiosas (como rituais sacrificiais, etc.), para os cidadfos e chefes de familia falava dos deveres civis e das virtudes da vida familiar, e enquanto isto con- fiava o aspecto profundo dos seus ensinamentos e de suas expe- riéncias nos mais altos estégios da meditacéo a um pequeno grupo de discipulos adiantados, especialmente aos membros de sua Ordem. As escolas ulteriores do Budismo ficaram fiéis a este principio em modificar seus métodos de ensinamento e meios de realiz4-lo, de acordo com as necessidades individuais e desenvolvimento espi- ritual do seu tempo (ou condicionado historicamente). Quando a filosofia Budista tornou-se mais elaborada e extensa, surgiu um maior nimero de métodos de ensino, adequados a cada estado da mente individual. Tal como Buda guiava seus discipulos em diferentes etapas, do mesmo modo as escolas ulteriores do Budismo reservaram os aspectos mais dificeis dos seus ensinamentos aos que necessitavam um padriio mais alto de educacaéo e conhecimento, para aqueles que preenchiam estas condicgdes e que j4 tinham passado pelas formas preliminares de treinamento. Estes ensinamentos mais adiantados tém sido descritos como esotéricos ou doutrinas “secretas”; contudo, 0 seu propésito nao foi excluir a qualquer um o alcance as mais altas realizagdes ou conhe- cimento, mas evitar conversas vazias e vas especulagdes dos que antecipadamente experimentavam alcangar intelectualmente estes ele- vados estados de consciéncia, sem empregar os esforcos necessdrios para adquiri-los, isto 6, pela pratica e experiéncia, 40 e. Quando o Buda censurou a reserva e o mistério de pretensiosos sacerdotes que consideravam seus conhecimentos ou encargos como um privilégio de sua casta, ou quando declarou que ndo fazia dis- tingfo entre o ensinamento esotérico (interior) e o exotérico (exterior) e que nada guardava oculto no seu punho cerrado, isto certamente nfo significava que ele nao fazia nenhuma diferenga entre um s&bio e um tolo, porém estava pronto para ensinar sem res- trigdes a todos os que estavam dispostos a segui-lo, Uma restricéo, entretanto, existia por parte dos seus ouvintes e discipulos, a saber, a propria capacidade de compreensao, e aqui o Buda fixou o limite entre o que ele sabia e o que considerava util para o ensinamento. Certa vez, quando o Iluminado habitava no bosque de Simsapa, pegou um punhado de folhas e mostrando-as aos seus discipulos disse-lhes que assim como estas folhas na sua mao eram poucas em comparaco as folhas do bosque inteiro, do mesmo modo aquilo que tinha ensinado representava apenas uma pequena frag&o daquilo que sabia, mas que no entanto queria revelar somente o que era necess4rio a seus discfpulos para alcangar a libertaco. Esta espécie de discriminagéo deve ser praticada por todo instrutor, nio somente de um modo geral, porém em cada caso individual. O Dharma nao deve ser imposto aos que the s4o indi- ferentes ou aos que ainda nao estio amadurecidos para ele; é pre- ciso reserva-lo apenas aos que estfo sedentos por altos conhecimentos, porém no tempo e no lugar oportunos. Aplicado ao desenvolvimento do Budismo, isto significa que em cada época e em seu devido tempo cada pais encontra sua prépria forma de expresso e seus préprios métodos de ensino, de modo a manter viva a idéia do Budismo. Esta “idéia” nao é uma tese filo- s6fica ou dogma metafisico, porém um impulso para uma nova ati- tude da mente, em razdo da qual o mundo e o fendmeno da nossa prépria consciéncia nao serao vistos do ponto de vista do “Eu”, porém do “nao-Eu”. Nesta reversio de pontos de vista, todas as coisas repentinamen‘e aparecem numa nova perspectiva, de tal modo que o mundo interior e o mundo exterior tornam-se igualmente e mutuamente fendmenos dependentes da nossa consciéncia — uma consciéncia que, de acordo com seu grau de desenvolvimento, expe- rimenta uma espécie diferente de realidade, um mundo diferente. O grau de desenvolvimento, no entanto, depende do grau em que o “Bu-Ilusio” for superado e com isto a perspectiva egocéntrica, que deforma todas as coisas e eventos, quebrando suas intimas relacées. O restabelecimento de um perfeito equilibrio espiritual pela supe- Al ragio desta ilusio do eu, fonte de todo édio, avidez e sofrimento, constitui o estado de iluminagéo. Tudo que conduz 4 realizagio deste estado é o caminho do Buda, um caminho que nao é fixado de uma vez e para sempre, e que no existe independentemente do tempo e dos individuos, mas somente no movimento e progresso do peregrino em direg&o ao objetivo apontado pelo Buda. E um caminho que deve ser realizado e recriado por todo peregrino. Mesmo a mais perfeita formulacdo da doutrina do Buda nfio teria salvo seus seguidores da necessidade de novas formulagées, porque apesar da doutrina do Buda ser perfeita, o povo para quem ele a pregava nao 0 era, e o que eles podiam compreender e trans- mitir aos demais sofria das limitagdes inerentes a todo pensamento humano. Além disto, precisamos nfo esquecer que o Buda foi compelido a expressar-se na linguagem e nas concepgées populares do seu tempo, de modo a se fazer compreender. Mesmo se todos aqueles que pre- servaram as palavras do Buda fossem Arahans (santos), isto nao poderia em nada mudar o fato que os ensinamentos que eles trans- mitiram desta forma eram conceitualmente e lingiiisticamente for- mulagdes condicionadas pelo tempo. Nem eles podiam antecipar pro- blemas que ainda nao existiam, e mesmo se fosse possivel prevé-los, eles nado poderiam ser capazes de expressd-los, porque a linguagem na qual eles poderiam ser expressos e compreendidos ainda nao teria nascido. O Buda mesmo teria expresso seus ensinamentos de . outro modo se ele tivesse vivido no sexto século D.C., em vez de no sexto século A.C. — e isto néo porque o Dharma, ou a verdade que ele iria ensinar fosse outra diferente, mas porque aqueles a quem ele deveria falar j4 teriam adicionado em suas respectivas consciéncias doze séculos de experiéncia histérica, pratica mental e espiritual e- teriam nfo sé maior acimulo de conceitos e meios de expressio, mas também uma atitude mental diferente, com diferentes problemas e perspectivas, e diferentes métodos de resolvé-los. Aqueles que cegamente acreditam em palavras, assim como aqueles para os quais a antiguidade histérica é mais importante que a Verdade, nunca admitirao isto, Eles acusarfo as escolas Budistas ulteriores de terem ido além do Buda, enquanto que na realidade elas somente foram além dos conceitos condicionados pelo tempo dos contemporaneos do Buda e de seus sucessores. Coisas espirituais, assim como coisas vivas, nio podem ser “fixadas”. Quando cessa o crescimento, nada resta além de uma 42 forma morta. Podemos preservar formas mumificadas a tftulo de curiosidade histérica, mas nfo vida. Se, no entanto, na pesquisa da verdade nao confiamos no testemunho real da histéria, nado que du- videmos da veracidade formal ou da sinceridade da intengdo por parte dos que a preservaram e a transmitiram nestas formas, mas nfo acreditamos que formas criadas h4 milénios no passado possam ser adotadas indiscriminadamente sem causar sérios danos 4 nossa constituigéo mental. Mesmo o melhor alimento, se conservado de- masiadamente, torna-se veneno. O mesmo se da com o nutrimento espiritual. Verdades nfio podem ser “adotadas”, necessitam ser con- tinuadamente redescobertas. Devem sempre ser reformuladas e trans- formadas, se quisermos preservar seu significado, seu valor vivo ou seu valor nutritivo espiritual. Esta é a lei do crescimento espiritual, donde resulta a necessidade de experimentar as mesmas verdades em cada forma nova, ¢ cultivar e propagar nao tanto os resultados, porém os métodos através dos quais nés adquirimos 0 conhecimento © experimentamos a Realidade. Se este processo de crescimento espiritual é repetido e expe- rimentado em cada individuo, isto nfo s6 significa que o individuo se tornar4 o elo que liga o passado ao presente, mas também, do mesmo modo, o passado torna-se revitalizado ¢ rejuvenescido na experiéncia presente e transforma-se em germe criativo do futuro. Deste modo, a histéria torna a tomar forma novamente na presente vida, tornando-se parte do nosso préprio ser ¢ no simplesmente um objeto de estudo ou de veneragio que, separado das suas origens e das condigdes orginicas do seu crescimento, perderia seu valor essencial. Logo que compreendemos este crescimento organico, cessamos de julgar suas diversas fases como “certas” ou “erradas”, “valiosas” ou “sem valor”, e chegaremos melhor 4 conclusiio que as modu- lagdes do mesmo tema ou “motivo” acentuam, pela prépria forga dos seus contrastes, o fator comum, o fundamento essencial. A natureza essencial de uma drvore, por exemplo, nao estd li- mitada as suas raizes, nem ao seu tronco, seus galhos, ramagens ou folhas, nem as suas flores ou frutos. A natureza real da drvore teside no desenvolvimento orginico e relacionamento de todas estas partes, isto é, na totalidade do seu desenvolvimento espacial ¢ temporal. De modo similar, femos que compreender que a natureza essencial do Budismo nao pode ser encontrada no dominio néo- espacial do pensamento abstrato, nem num dogma consagrado pela 43 2dez ae antigiiidade, porém somente na sua expansio no tempo e no espago, na imensidade do seu movimento e desenvolvimento, na sua influéncia sem limite sobre a vida em todos os seus aspectos, em resumo: na sua universalidade. 7 A Atitude Universal do Mahayana e o Ideal do Bodhisattva A universalidade do Budismo, que a principio apresentava-se numa variedade desnorteadora de escolas religiosas e filosdficas, elevou-se num principio consciente pelo Mahdyand, o Grande Veiculo, que foi bastante amplo para reconhecer as diferengas entre todas as escolas e ideais como formas necessdrias de expresso das di- ferentes indoles ¢ graus de compreensio. Isto se realizou através da énfase dada ao ideal Bodhisattva, que colocou no centro da vida religiosa a figura do Buda como a personificagéo da mais alta realizagdo. De qualquer maneira que se tenha definido a realidade ou irrealidade do mundo ou de suas relagdes para com a experiéncia espiritual, ou do estado de liber- tagio e do nirvdna final, uma coisa estava estabelecida: o estado de perfeigado, de iluminagéo, 0 estado Bidico foi alcancado por um ser humano, e que estava nas maos de qualquer individuo alcangar este estado pela mesma via. Neste ponto estavam unidas todas as escolas Budistas. Esta via, entretanto, nao era escapar do mundo, mas conquistd-lo através de um conhecimento crescente (prajfté), pelo amor ativo (maitrt) a todos os seres vivos, pela participagao interior nas alegrias e sofrimentos dos outros (karund muditd), e através da equanimidade (upeksd) em relacéo ao préprio bem estar ou inforténio. Este ca- minho foi vividamente ilustrado pelas inumerdveis formas de exis- téncia do Buda, descritas no Jdtakas, estérias dos seus nascimentos anteriores (até o seu Ultimo, como Gautama Sékyamuni). Mesmo se nao quisermos atribuir valor histérico a estas est6rias, elas no entanto demonstram a atitude dos primitivos Budistas e suas idéias no per- correr o caminho do desenvolvimento de um Perfeitamente Iuminado. No Tipitaka, escrituras canénicas do Budismo em Pdéli, também conhecidas como Theravdda ou “Ensinamentos dos Antigos”, que predomina nos paises Budistas do Sul, distinguem-se trés tipos de Liberados: primeiro, o santo ou Arahan, que venceu as paixGes e 44 a ilusio de um eu, sem no entanto possuir o conhecimento que abrange o todo, e a onipenetrante consciéncia da Perfeita Huminagado (que o tornaria capaz de conduzir intimeros outros seres a este estado de exaltacio, em vez de alcangar a libertagio somente para si); segundo, o Iluminado Silencioso ou Paccekabuddha, aquele que alcangou o conhecimento de um Buda, mas nfo a capacidade de transmiti-lo aos outros; e, finalmente, 0 Sammdsambuddha, o Per- feitamente Iluminado, que nado é apenas um santo, um sdbio, um iluminado, mas um Ser Perfeito, um ser que se tornou integro, com- pleto em si mesmo, isto é, aquele em que todas as faculdades espi- rituais e psiquicas chegaram a perfeigio, 4 maturidade, a um estado de perfeita harmonia e cuja consciéncia abrange a infinidade do universo, Um tal ser nao pode mais ser identificado nos limites da sua personalidade individual, do seu cardter e de sua existéncia individual; dele é dito com razdo: “Nao h4 nada com que ele possa ser avaliado, nio ha palavras para descrevé-lo”. (“Atthangatassa na foreg atthi yena nam vajju tam tassa na ‘tthi’”; Sutta-Nipdta, Parece que originalmente 0 Arahan, o Paccekabuddha e 0 Sammdsambuddha eram clasificados apenas como diferentes tipos de homens ou estdgios de realizacéo. Mas, de acordo com o ponto de vista Budista, o homem nao é “criado” definitivamente com um certo conjunto de predisposigées ou cardter fixo, ele é o que faz de si mesmo, o conhecimento destas trés possibilidades conduzem ne- cessariamente as formulagdes dos trés ideais; e deste ponto de vista nado podia haver divida que o ideal do Perfeitamente Iluminado era o mais elevado. Visto ser capaz de conduzir inumerdveis seres através do oceano escuro deste mundo efémero de nascimentos ¢ mortes (samséra) 4s margens luminosas da liberagdo, este ideal foi chamado de Mahdydna, “o Grande Veiculo”, enquanto os outros ideais (particularmente 0 do Arahan), que concernem somente 2 li- bertacdo individual, eram chamados Hinaydna, “o Pequeno Vefculo”. As designagdes Hinaydna e Mahdydna foram postas em evi- déncia pela primeira vez durante o Concilio do Rei Kaniska, no primeiro século D.C., quando os diferentes ideais e vias de libe- ragéo foram discutidos pelos representantes das diferentes escolas. Ocasifo em que o ideal Mahdydna mostrou ser o tnico suficiente- mente amplo para conectar as diferengas entre todas as seitas Budistas. Nao foi, entretanto, nenhuma surpresa que a maioria dos presentes neste Concilio votaram a favor do Mahdydna e que os me- nores grupos que apoiavam o Hinaydna desapareceram pouco depois. 45 Entretanto, os Theravddins, que nao estavam presentes neste Concilio (desde que j4 tinham desaparecidos da India continental), estritamente falando nao podem ser identificados com o Hinaydna, porque eles nfo rejeitam 0 ideal Bodhisattva, Nérada Mahdé-Thera, um dos reconhecidos lideres do Budismo Cingalés, expressou con- vincentemente 0 ponto de vista dos Theravddins no tocante ao ideal Bodhisattva nas seguintes palavras: “Budismo € um ensinamento que se dirige igualmente aos que se esforcam para alcancar a prdépria salvacio e aos que trabalham em ambas, tanto para sua salvagdo pessoal como para a salvacio dos outros. “HA entre nés alguns que compreendem a futilidade dos pra- zeres terrenos, e que estéo tao pertinentemente convencidos da uni- versalidade do sofrimento, que procuram a primeira oportunidade para escapar deste ciclo de nascimento e morte e obter sua emancipacio. “Hé alguns outros que no s6 compreendem como sentem todos os sofrimentos da vida; tio ilimitado é seu amor e¢ t&o penetrante é sua compaixdo que eles renunciam a sua salvacio pessoal e de- dicam as suas vidas ao sublime propésito de servir 4 humanidade e ao préprio aperfeigoamento. “Assim € 0 nobre ideal do Bodhisattva. Este ideal Bodhisattva é 0 mais puro e o mais belo em tempo algum apresentado ao mundo; que pode haver de mais nobre do que uma vida de servigos pres- tados generosamente e de pureza perfeita? “Pode se dizer que 0 ideal Bodhisattva é um ensinamento pu- tamente Budista”. Seria, no entanto, uma grande incompreensio pensar que 0 ser- vigo ao préximo implicaria num adiamento ou enfraquecimento para a realizagio do mais alto objetivo. Milarepa, que o realizou, pre- veniu seus discipulos deste erro quando disse: “Nao se deve ser demasiadamente ansioso e precipitado na intengdo de servir aos outros antes de termos em nés mesmos realizado a Verdade em toda sua plenitude; de outro modo, seriamos iguais a um cego guiando outro cego. Enquanto perdurar o céu, nunca faltar4 seres sencientes para servir a alguém; para tal servico cada um de nés poderd encontrar a oportunidade. Até a ocasi&o chegar, exorto cada um de vés a ter uma tnica resolugao, a saber, atingir 0 estado de Buda para o bem de todas as coisas viventes”. A fim de conseguir isto, 6 necesséria a pratica das mais altas virtudes (pdramitd) de um Bodhisattva. 46 Estas nfo consistem apenas em evitar o mal, porém cultivar o bem: pela realizagéo de atos de abnegacao, de amor e¢ compaixio, nascidos do fogo do sofrimento universal, onde as dores dos outros seres so ressentidas com igual intensidade em seu préprio ser. Um Bodhisattva n&o ambiciona instruir os outros, a nado ser pelo seu préprio exemplo, e prossegue no seu caminho espiritual sem nunca perder de vista 0 bem-estar dos seus semelhantes. Assim ele ama- durece em diregZo ao seu objetivo supremo, inspirando outros a fazer 0 mesmo. Enquanto prosseguimos no nosso caminho, néo é em vio nenhum sacrificio que fizermos pelos outros, mesmo se nao for re- conhecido ou talvez até mal utilizado por aqueles que tinhamos a intengfio de beneficiar. Cada sacrificio € um ato de rentncia, uma vitéria sobre nés mesmos, e portanto um ato de liberagéo. Cada um destes atos, qualquer que seja seu efeito externo, é um passo a mais que nos aproxima do nosso objetivo ¢ transforma o conhecimento te6rico da idéia do andtma num conhecimento vivo e certeza da experiéncia. Quanto mais perdermos nosso ego e destruirmos as muralhas da prisio por nés criada, maior se torna a claridade e radiancia do nosso ser e a forga convincente da nossa vida. E isto através do que ajudamos os outros — mais do que pelas agdes filantrépicas de caridade, e mais do que através de palavras piedosas e sermées religiosos. Porém, aqueles que se mantém afastados do contato da vida perdem as oportunidades de sacrificio, de abnegacio, do abandono dos bens dificilmente adquiridos, da rendncia daquilo que Ihes é caro ou que parega désejavel, do servigo aos outros, ¢ de experi- mentar suas forgas nas tentaches e provacgdes da vida. E repetindo: ajudar aos outros e a si mesmo, ir de maos dadas. Um nao pode ir sem o outro. No entanto, nao devemos impor aos outros nossas boas agdes com um sentimento de superioridade moral, mas agir espontanea- mente com desprendida bondade natural que flui do conhecimento da solidariedade de tudo que vive e da experiéncia indescritivel da unidade, alcangada na méditagao — uma experiéncia cujo cardter universal est4 expresso na silaba sagrada OM e na atitude geral teligiosa do Mahdydna. Era este conhecimento de solidariedade requerido por Milarepa como base da moralidade e das virtudes do Bodhisattva, Foi este conhecimento que, apesar de imperfeito no seu inicio, guiou o Buda nas suas vidas anteriores no caminho da iluminagao ¢ o fez renunciar 47 2dez & sua propria liberago imediata (ao encontrar o Buda de uma era precedente) a fim de alcangar o perfeito estado Budico através da- experiéncia e sofrimentos de sem-ndmero de renascimentos na pratica das virtudes do Bodhisattva, que foi capaz de alcangar o mais alto objetivo, nfo somente para ele, como também para o beneficio de inumeraveis outros seres vivos. Foi este conhecimento que fez o Buda se afastar da Arvore da Iluminag&o, a fim de proclamar seu Evangelho da Luz, de acordo com o qual a faculdade da iluminagao (bodhicitta) & inerente a todo ser vivo. Onde quer que esta faculdade se torne em qualquer ser uma forga consciente, um Bodhisattva nasce. Despertar esta consciéncia foi a obra da vida do Buda. Foi isto que o obrigou a assumir a pentria de uma vida errante por quarenta longos anos, ao invés de usufruir egoisticamente a felicidade da liberagao. 8 O Caminho Universal e a Revalorizacgao da Silaba Sagrada OM Os continuadores imediatos do Buda, na ansiedade de preservar todas as palavras e regras do Mestre, assim como todos os detalhes do modo de vida dos seus primeiros discfpulos, criaram um cédice com inumerdveis regras monasticas e regulamentos, esquecendo assim © sentido espiritual da mensagem; e em vez de levarem uma exis- téncia simples, n&o-egofsta e esponténea de apéstolos inspirados ¢ de errantes sem lar, desenvolveram-se em um monacato organizado, auto-satisfatério e isolado do mundo, que escapava das agitagées e lutas da vida em conventos bem abastecidos, afastados tanto da vida dos leigos como do mundo em geral. Quase todas as dissidéncias, discord&ncias e controvérsias sectérias durante os primeiros séculos da histéria Budista tiveram sua causa nfo na esséncia da doutrina ou questées religiosas, mas em opinides divergentes relativas as regras da Ordem, ou de inter- Pretagdes puramente académicas e tedricas de certos conceitos, ou ainda na maior énfase acerca de um ou outro aspecto da doutrina e de suas escrituras correspondentes. A primeira dissidéncia ocorreu cem anos apés a morte do Buda, no Concilio de Vaisdli, onde o grupo ortodoxo dos Sthaviravddins (em Paéli: Theravddins) se separaram do corpo principal da Ordem 48 ' | | } Budista, devido a se recusarem reconhecer a maioria dos votos em favor de uma interpretacdo mais liberal das menores regras da Ordem. De acordo com a decisiio aceita e aprovada pela maioria da assembiéia, maior tensio pesou no espirito do ensinamento ¢ no senso de responsabilidade individual. Aqui esto as opinides de dois historiadores proeminentes: “O quanto ha de verdade na estéria do Concilio de Vaisdli no pode ser decidido, porque os relatos conhecidos por nés sao contra- ditétios em muitos pontos e sio geralmente prejudicados a favor dos Sthaviravddins, No entanto, hd um fato importante: os Budistas atribuem a cisiéo nao por diferencas dogmaticas, porém por dife- Tengas no que concerne a disciplina da Ordem” (H. von Glasenapp).* A maioria dos pontos divergentes, relatados pelos Theravddins (que consideravam os adeptos da Grande Assembléia, os Mahdsdnghikas, como hereges), eram tao insignificantes que é espantoso como eles puderam criar tanto tumulto. Porém, Mrs. C. A. F. Rhys Davids comenta corretamente: “O ponto realmente em causa foram os direitos do individuo, como também daqueles das comunidades provinciais, contra as pres- crigdes de uma hierarquia centralizada. Néo somente como uma uni- dade, mas também em grupos menores, 0 homem seria mais valorizado; ele queria ser considerado como um homem e nao como uma simples unidade, que ele seria, mesmo numa Ordem monistica, se sua existéncia consistisse em por em pratica esta Lei, e isto com a monotonia da vida de um rebanho. Ele seria capaz como homem de caminhar na Via atta-dhammo: escolhendo e decidindo de acordo com sua ‘consciéncia’ ”.? Somente quando os Budistas novamente voltaram a refletir conscientemente na figura do Buda, cuja vida e agdes eram a expressio mais vital dos seus ensinamentos, foi que o Budismo emergiu de numerosas seitas em dissengdo ao nivel de uma religiio universal. Nos fogos cruzados dos pontos de vista e opinides con- flitantes, que poderia ser mais certo do que seguir o exemplo do Buda? Suas palavras, de acordo com as diferentes épocas, podem ser interpretadas de varios modos; seu exemplo vivo, entretanto, fala uma lingua eterna, que pode ser compreendida em todos os tempos, enquanto existirem seres humanos. A grandiosa figura do Buda e © profundo simbolismo da sua vida, tanto real como legendaria, na qual o seu desenvolvimento interior esté retratado — e da qual 1. Der Buddhismus im Indien und im Fernen Osten, p. 51. 2. Sakya, p. 355. 49 4 | { af 4 surgiram obras imortais de arte e literatura Budista —, tudo isto € para a humanidade de muito maior importincia do que todos os sis~ temas filoséficos e todas as classificagdes abstratas do Abhidharma. Poderé existir uma demonstracio mais profunda de abnegacao, da Doutrina do Nao-Eu (andtma-vdda), do Caminho Octuplo, das Quatro Nobres Verdades, da Lei da Originagéio Dependente, ilu- minacao e liberagdo, do que o caminho do Buda, que abrange todas as alturas e profundezas do universo? “Qualquer que seja a mais alta perfeicio da mente humana, possa eu realizd-la para o beneficio de todos que vivem!” Este é 0 sentido do voto do Bodhisattva, Tal como um artista que segue o valioso exemplo dos maiores mestres, independentemente de ser ou nao capaz de lhes alcancar a perfeig&o, todo aquele que quer progredir espiritualmente deve voltar- se para o mais alto ideal ao alcance da sua compreensdo. Isto poderd inspiré-lo continuadamente as mais altas realizacdes. Pois ninguém pode predizer onde esto os limites de sua capacidade — de fato, o mais provavel é que a intensidade do nosso esforgo & que determi- na estes limites. Aquele que. se esforca para o mais alto (ideal), compartilharé das mais elevadas forgas, e desta maneira ele mesmo poderd elevar seus limites ao infinito: ele realizar4 o infinito no fi- nito, fazendo do finito o receptéculo do infinito, e do temporal o veiculo do atemporal. Com a finalidade de gravar esta atitude universal do Mahdydna no devoto ou Sddhaka com o poder sugestivo de um simbolo con- centrador, a silaba sagrada OM inicia toda evocagio solene, toda forma de culto, toda meditacfio. Esta atitude nao poderia ter sido expressa mais perfeitamente por nenhum outro simbolo como através da silaba sagrada OM, que como Rabindranath Tagore tio lindamente define, “é a palavra simbélica para o infinito, o perfeito, o eterno. O som ja perfeito em si representa a totalidade das coisas. Todas as nossas contempla- Ges religiosas principiam com OM e terminam com OM. E o meio para preencher a mente com pressentimento da perfeigio eterna e liberté-la do mundo do egoismo mesquinho”. Entdo aconteceu que no momento em que o Budismo tornou- se cOnscio da sua misséo no mundo e entrou na arena das grandes religides, a silaba sagrada OM tornou-se novamente o “motivo condutor” da vida religidsa, o simbolo que tudo envolve no impulso da liberag&o, no qual a experiéncia da unidade e solidariedade nao so 0 objetivo final mas a precondigao da libertagdo real e perfeita 50 Tluminagdo. Foi o simbolo para o impulso da liberag&o, que nao era mais a ansiosa preocupagao da propria salvagdéo ou da unido da prépria alma (dtman) com a alma do universo (brahman), porém que estava baseada na compreensdéo de que todos os seres e coisas estéo inseparavelmente conectados e entrelacados uns com os outros, de tal maneira que toda discriminacao de “eu” e “outro” € iluséria, e que primeiro temos que destruir esta ilusio pela penetragfio da consciéncia universal em nds, antes que possamos realizar a obra da libertacdo. OM, entretanto, no sistema mantrico do Budismo, nao é o mais elevado e definitivo (ultimo), como veremos no decorrer deste trabalho, porém o fundamento, que se situa no inicid do Caminho do Bodhisattva e, portanto, no inicio de quase todo mantra, de cada forma de culto, de toda meditacio de contemplagao religjosa, etc.; porém; no no fim. A via Budista, pode-se dizer, comeca onde termi- na a via dos Upanisads; apesar do mesmo simbolo (OM) ser com- partilhado pelos dois sistemas, sua avaliacdo nfo é a mesma, desde que depende da posig&o que o simbolo ocupa em cada sistema parti- cular e em relac#o a outros simbolos pertencentes a ele. Entretanto, seria uma completa incompreensio interpretar o uso da silaba sagra- da OM no Budismo como uma recaida na tradig&io bramfnica ou uma assimilagéo ou um retorno aos ensinamentos dos Upanisads. Isto seria um erro tio grande como a conclusio que pelo fato de o termo “nirvana” ser utilizado por ambos, pelos Budistas e pelos segui- dores do sistema bramanico, o significado deste termo seria entéo © mesmo para os Budistas e Hindus. A revalorizacao da silaba OM no Budismo Mahdydna s6 pode ser compreendida corretamente quando contemplada do ponto de vista do sistema inteiro e na prdtica dos mantras. No momento, basta salientar a mente libertadora e a natureza da abertura da alma da silaba sagrada. Seu som abre o mais intimo do ser humano para as vibragGes de uma maior realidade — nao uma realidade fora dele, mas uma que estava para sempre presente dentro e em volta dele, da qual, entretanto, ele se excluiu, construindo fronteiras arbi- trérias em volta do seu ilusério eu. OM € o meio pelo qual destrui- mos estas limitagdes artificiais e nos tornamos conscientes do infi- nito da nossa verdadeira natureza e da nossa unidade com tudo que vive. OM € o som primordial da realidade atemporal, que vibra dentro de nés de um passado sem principio e que repercute em nés, se tivermos desenvolvido o nosso sentido interior da audigaéo pela 51 2dez pacificagdo perfeita da nossa mente. E o som transcendental da lei inata de todas as coisas, o eterno ritmo de tudo que se move, um ritmo no qual a lei se torna a expresséo da libertagao perfeita. Por isso estd dito no Stirangama Stitra: “Vocés aprenderam os Ensinametttos ouvindo as palavras do Senhor Buda e confiando-as 4 memoria. Por que nao aprendem por vocés mesmos, ouvindo o som do Dharma Intrinseco dentro de sua prépria Mente e praticando a reflexdio sobre ele?”.3 O som OM, se pronunciado no coragéo e nos labios de um sincero devoto com toda a f€ (sraddha; Pdli: saddha), & como, de bracos abertos, abragar tudo que vive. Nao é a expressdo da expan- so egofsta, porém da disposigéo de um acolhimento universal, de- vogao e receptividade, compardvel aquela de uma flor, que abre suas pétalas para a juz e para todos os que compartilham da sua inocente beleza e perfume. B um modo de dar e receber ao mesmo tempo; tomando aquilo que esté livre da cobica e dando aquilo que nao espera reconhecimento. Desta maneira, OM torna-se o simbolo da atitude universal do Budismo no seu ideal Mahdydna, que nao estabelece diferengas entre seitas, tal como um Bodhisattva, que se esforga em salvar sem dis- tingo todos os seres.¢ que ao mesmo tempo ajuda qualquer um em conformidade com suas préprias necessidades, sua propria natu- reza € seu proprio caminho. Tal ideal o distingue do dogma, e tanto quanto possivel convida e da coragem 4 liberdade individual de decisio. Nao depende de justificativas nos documentos histéricos, porém somente do seu valor atual — nfo em provas légicas, mas na sua faculdade de inspiragéo e na sua influéncia criativa sobre o futuro. 3. Traduzido por Bhikshu Wai-tao e Dwight Goddard, em A Buddhist Bible, p. 258. 52

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