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Perguntas e Respostas – Religiões Afro-brasileiras

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Perguntas e Respostas – Religiões Afro-brasileiras


Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho

Transcrição não revisada ou corrigida pelo professor.

Pergunta: “No estudo que estamos fazendo, como as religiões africanas


devem ser entendidas? Fenômenos como um médium que recebe um Orixá devem
ser entendidos como fenômenos de magia ou de ordem metafísica? Práticas como
Umbanda e Candomblé devem ser entendidas dentro de qual contexto?”.

Prof: Explicar o que é Umbanda e Candomblé é muito simples, até mais


simples do que explicar o que é Espiritismo; isso só se torna complicado pelo fato de
que existem muitas pessoas no Brasil que são adeptas do Espiritismo, ou da
Umbanda, ou do Candomblé, ou de todas elas juntas, ou de alguma mescla das duas.
Mas a questão das religiões de origem africana no Brasil é muito simples: a maior
parte delas não consiste em nada mais que um conjunto bem reduzido de fragmentos
de religiões tribais originais da África, e que podiam ter lá uma vitalidade espiritual.

Há dois problemas com as religiões africanas no Brasil. Primeiro, a maior parte


das religiões tribais tem sua base ritual, doutrinal e mesmo escritural em duas coisas:
[1] a natureza em torno, e [2] canções, cânticos, poemas – que são transmitidos
oralmente. A natureza em torno não pode ser transplantada da África para o Brasil.
Por exemplo, uma certa religião africana tem o rinoceronte com um papel simbólico
importante, assim como na religião do índio Sioux norte-americano, o bisão (o
búfalo americano) tem um simbolismo fundamental, uma importância fundamental;
aí o sujeito muda para a Austrália – “Ah, não tem problema, é só tirar o bisão e pôr o
canguru”. Você mudou a religião! Seria a mesma coisa que, no Cristianismo,
[decidir] “Não tem problema, tira o pão de trigo e o vinho de uva, e põe um pão de
soja e um vinho de qualquer outra coisa”. Esses elementos não são escolhidos
arbitrariamente, eles são parte essencial da religião.

Em religiões como o Cristianismo, o Judaísmo, o Islamismo, o Budismo, que


são religiões que já nasceram em contexto civilizacionais adiantados, a própria
forma da religião já é mais ou menos independente, ela depende de poucos
elementos da natureza em torno. Mesmo quando ela faz referência a um simbolismo
natural, os elementos da natureza que o sacerdote e o fiel daquela religião têm que
pegar da natureza, para fazer o uso ritual ou simbólico, já são muito poucos e

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geralmente podem ser transferidos de um lugar para o outro. No caso das religiões
africanas, assim como no caso das religiões dos índios das Américas, isso não é
possível. Isso significa que não é possível um Sioux ser um Sioux na Mongólia, ou
um xamã mongol ser um xamã mongol no Brasil; não é possível ele praticar a
religião dele, porque as principais qualidades divinas são representadas sempre por
certos animais nessas religiões, e estes animais são os animais presentes onde aquele
povo vivia. Não dá para “traduzir por um equivalente”: isto é pensar que a religião
foi uma invenção humana, uma mera elaboração, que você pode reelaborar também
por uma iniciativa humana. Portanto, primeiro por esse motivo fundamental, não há
como tirar as religiões autênticas da África, essas religiões de caráter tribal, do
ambiente africano.

A segunda dificuldade foi a perda da língua. Mesmo os cânticos foram


perdidos. Acontece que o sujeito que veio trazido da África para cá não veio para
fazer alguma coisa, ele foi conquistado e vendido como escravo. Aí era o seguinte:
há um escravo saudável aqui, uma escrava saudável ali; [e o senhor decidia] “Vocês
dois cruzem, porque eu quero mais escravinhos saudáveis!”. Só que um é de uma
tribo, que tem uma religião, que tem uma língua, de uma região; aquela é de outra
tribo, de outra religião, de outra região; e um não entende o outro. E o filho deles já
não sabe exatamente qual a língua dele – a língua dele já é uma mistura da língua do
pai com a língua da mãe, com a língua do senhor. Faça isso duas, três, quatro
gerações... O sujeito não sabe mais nada sobre a sua religião original! Ele tem alguns
elementos exíguos dela aos quais ele se apega, para não perder completamente a sua
identidade, aquilo que o diferencia, mas ele mesmo já não sabe o que eles
significam. Então, ele pode ter uma divindade que é de uma religião, outra que é de
outra, com um nome de uma terceira que é de outra ainda; e tudo isso ainda
representado por santos cristãos, porque todos eles tinham que fingir que eram
cristãos. Iemanjá é nossa senhora, não sei quem é São Francisco... Isso é uma
confusão danada!

Eu sei que ouvir isso dói nas pessoas que são adeptas dessas religiões. Elas
podem até não concordar comigo, mas vão lá na África e tentem retraçar, pegar
todos os elementos da sua religião, da sua linhagem do Candomblé ou da Umbanda,
peguem as práticas rituais, os nomes das divindades, as orientações morais, e tentem
achar uma tribo na África em que tenha essa religião! Não vão achar em lugar
nenhum! Vão achar o nome de uma divindade numa tribo, o nome de outra na outra,
a prática ritual numa terceira, e assim vai.

Para se ter uma ideia, a maior parte dos especialistas em linguagem acredita, e
é muito razoável crer, examinando os dialetos das principais tribos que foram
conquistadas e trazidas para cá, que o nome Oxalá seja uma corruptela do árabe
“inshaa Allah”, que significa “Se Deus o quer”. Porque existiram os escravos malês,
que eram muçulmanos. No entanto, o escravo malê tinha que casar com a escrava
não-malê, que era zulu ou uma outra coisa, por exemplo; e, no fim, só sobrou aquilo,

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inshaa Allah, que é um voto que o muçulmano fala quando decide se vai fazer
alguma coisa: “Vamos fazer tal trabalho amanhã? Insha allah”. Ou seja: “Eu tenho a
disposição, mas se Deus assim o quiser, será” (“Se Deus quiser”). Então, esse
escravo malê deve ter passado isso para seu filho, que passou para seu filho, e uma
hora isso se tornou Oxalá, que é uma divindade. É possível que um nome Oxalá
tenha sido agregado a alguma divindade africana original, só que já não é possível
saber mais o que é o quê. Ali existem elementos de Cristianismo, de Islamismo, de
várias religiões tribais africanas, e existem provavelmente elementos de religiões
indígenas nativas do Brasil, e você fala que isso é uma religião só!

Alguém poderia argumentar “Mas as grandes religiões como o Budismo, o


Islamismo, o Judaísmo também passaram por imensas transformações culturais ou
por imensos filtros no decorrer de sua longa e milenar história e sua passagem de um
povo para outro”. Isso é mais ou menos verdade, mas, por exemplo, se você ler um
livro chamado Mere Christianity (traduzido aqui como Cristianismo Puro e
Simples), do C.S Lewis, verá nesse livro ele fazer o seguinte: “Deixa eu ver o que há
em comum entre as mais diferentes denominações cristãs, o que há de comum entre
o evangélico presbiteriano, o evangélico anglicano, o católico, o ortodoxo etc., e ver
se sobra algo”. Quando ele faz essa análise ele vê que, primeiro, existe muito mais
terreno de concordância do que de discordância; e, segundo, o que sobra é aquilo
que todo mundo fala que é fundamental. Portanto, o núcleo espiritual original está
intacto apesar de todas as mudanças culturais, e não se encontra nenhum elemento
dito fundamental na religião cristã, ou muçulmana, ou judaica, ou budista, que seja
heterogêneo, estrangeiro, que não pertença àquele núcleo original que se identifica
no fundador [da religião], às teses originais que estão com o fundador.

Não é que na África não há religiões tribais tão autênticas quanto as religiões
tribais dos índios aqui. É claro que há. Todo lugar tem religião; onde há gente há
religião. Só que lá é onde eles continuaram praticando, primeiro, continuamente; e
segundo, sem misturar com outra tribo – porque lá eles não misturam com outra
tribo de jeito nenhum justamente para não perder a identidade religiosa espiritual
cultural! Então, lá eles têm a natureza que dá os símbolos, e a linguagem que dá os
poemas, os cânticos e o elemento doutrinal fundamental, isto é, o modo de
interpretar os símbolos. Mas aqui não há mais nada disso.

Eu não estou falando isso para alguém sair da sua religião [afro-brasileira] e ir
praticar outra. Eu estou falando isso porque o que você está chamando “a sua
religião” são vários pedaços de várias religiões, e isso é um fato objetivo.

Transcrição: Lucas Ventura, Carlos Augusto G. do Nascimento

Revisão: Ageu Marinho

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