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Precedentes do modelo mariano atual

ELIZABET A. JOHNSON, Nossa verdadeira irmã. Teologia de Maria na comunhão dos santos. São Paulo:
Ed. Loyola, 2006, PP. 151-174

Dois milênios, dois modelos

O perigo de pintar a história com largas pinceladas é omitir distinções e nuanças especiais e,
consequentemente, ignorar a pluralidade e a ambiguidade inerentes a toda tradição e arriscar-se à
má interpretação. Entretanto, devido à imensa expansão do fenômeno mariano, a busca de
precedentes para o projeto deste livro torna essas largas pinceladas necessárias. Consciente da
distinção entre devoção popular, teologia refletiva e doutrina oficial, concentro-me aqui na
teologia, ou nas ideias sistemáticas a respeito de Maria e seu papel que moldaram a forma de
rezar e pregar.
Ao pintar um quadro grande, pressuponho que nos dois mil anos de cristianismo católico
ocidental o pensamento a respeito de Maria dividiu-se em dois tipos basicamente diferentes.
Durante o primeiro milênio, em especial nos séculos iniciais, a teologia, se é que chegou a tratar
de Maria, entendeu que sua importância estava em grande parte na economia da salvação
centralizada na misericórdia de Deus concedida em Cristo por intermédio do Espírito. Em
contraste, o segundo milênio, principalmente em seus últimos séculos, viu a tendência crescente a
separar Maria desse contexto, o que resultou em reflexões cada vez mais exaltadas sobre seus
privilégios, poderes e glórias. Embora a tendência isolante do segundo milênio encontre-se no
primeiro e ainda que em sua melhor forma o segundo milênio preservasse uma visão integrada de
Maria, esses dois modelos descrevem padrões reconhecidamente distintos de teologia mariana
em cada era.
Continuando com pinceladas largas, reconheço que no Concilio Vaticano II os tipos distintos do
primeiro e do segundo milênios entraram em conflito. O primeiro milênio venceu. Ao ocorrer,
como de fato ocorreu, praticamente no início do terceiro milênio cristão, o ensinamento do
Concilio indica o caminho para novas interpretações de Maria mais de acordo com antigos
modelos antigos de crença, embora modificados pelas pretensões intelectuais, pelas lutas e pela
prática espiritual contemporâneas. Nessa perspectiva, o precedente imediato para minha
proposta é o Vaticano II, que, com sua importante decisão de integrar o ensinamento a respeito
de Maria no documento sobre a Igreja, abre uma porta para que passe a reflexão feminista.

O primeiro milênio
A proposta de interpretar a mulher Maria na comunidade de fiéis tem raízes antigas na
Escritura, na liturgia e na teologia cristã primitiva. Nenhuma dessas fontes foi criada de um ponto
de vista explicitamente feminista; de fato, todas elas trazem a marca do contexto patriarcal no
qual foram criadas. Entretanto, quando interpretadas em uma hermenêutica feminista com seus
movimentos de suspeita e também de lembrança, elas vêm a ser precedentes que proporcionam o
apoio da tradição para a colocação de Maria entre outras mulheres e outros homens santificados
pelo Espírito.
As narrativas neotestamentárias que mencionam Maria formam uma fonte importante da qual
mais tarde surge a interpretação. Quer vendo-a na companhia dos irmãos de Jesus em uma luz
negativa fora do círculo dos discípulos, à maneira de Marcos, quer identificando-a em uma
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genealogia de antepassados judeus e pagãos, à maneira de Mateus, ou apresentando-a como


mulher de fé, à maneira de Lucas, ou fazendo dela um símbolo em Caná e aos pés da cruz, à
maneira de João, os evangelhos a mencionam como parte da vinda messiânica da salvação de
Deus. Nisso ela não está sozinha, mas é uma de muitas personagens com uma participação
irrestrita importante para a mensagem perfeita do Evangelho. Principalmente para Lucas, ela é
mulher repleta do Espírito, profundamente ligada ao povo de Israel e à emergente comunidade
cristã de discípulos. A última descrição lucana de Maria coloca-a na sala superior juntamente com
120 mulheres e homens que eram discípulos e os irmãos de Jesus, todos em oração, à espera da
vinda do Espírito. A última menção joanina da mãe de Jesus descreve-a em companhia de sua
irmã, Maria de Clopas, Maria de Mágdala e o discípulo que Jesus amava, formando uma
comunidade nascida da cruz. Em cada um dos evangelhos, a ligação especial de Maria com Jesus,
por ser sua mãe, e explicitamente mencionada. A história dela não é história de ninguém mais. Ao
mesmo tempo, em termos literários e teológicos, sua história mistura-se à obra misericordiosa do
Deus redentor juntamente com a dos outros que estavam presentes no nascimento da Igreja. Na
imagem bíblica, Maria está dentro da grande nuvem de testemunhas, um precedente básico para
nossa proposta.
Desde os primeiros séculos, a liturgia dirige orações ao Deus trinitário de acordo com um
padrão bem definido: “ao Pai pelo Filho na unidade do Espírito Santo”. No período de perseguição
sob o império romano, a comunidade que estava na terra começou a pensar que os mártires que
estavam no céu se juntavam a ela no louvor eucarístico de Deus. A partir daí, a oração eucarística
principal faz menção ao grande número de pessoas que morreram em Cristo, cuja memória
aumenta o coro da Igreja em adoração. Em suas muitas variações, essa menção evoca a comunhão
mútua entre o povo reunido na terra e a comunidade do céu. Para citar textos atualmente em uso
na Igreja Católica: a primeira Oração Eucarística, que se baseia no antigo cânon romano, lembra
duas vezes os santos do céu. Da primeira vez, rezamos em comunhão com Maria, seu esposo José,
alguns apóstolos e mártires chamados pelo nome e “todos os vossos santos”. Da segunda vez, a
oração continua: “E a todos nós pecadores [.. . ] concedei-nos [...] o convívio dos Apóstolos e
Mártires: João Batista e Estêvão, Matias e Barnabé, Inácio, Alexandre, Marcelino e Pedro;
Felicidade e Perpétua, Agueda e Luzia, Inês, Cecília, Anastácia e todos os vossos santos”. Temos a
impressão de toda uma comunidade de fiéis unida através do tempo para louvar o Deus vivo. A
mãe de Jesus faz parte desse grupo. As orações eucarísticas de origem mais recente estão repletas
desse mesmo discernimento. Os textos da Missa de Reconciliação rezam ao Deus trino:
“Ajudai-nos a trabalhar na construção do vosso reino, até o dia em que, diante de vós, formos
santos com os vossos santos, ao lado da Virgem Maria e dos Apóstolos, com nossos irmãos e irmãs
já falecidos que confiamos a vossa misericórdia” (I) e: “Assim como aqui nos reunistes, ó Pai, à
mesa do vosso Filho, em união com a Virgem Maria, Mãe de Deus, e com todos os santos, reuni no
mundo novo, onde brilha a vossa paz, os homens e as mulheres de todas as classes e nações, de
todas as raças e línguas, para a ceia da comunhão eterna, por Jesus Cristo, nosso Senhor” (II). A
oração litúrgica identifica Maria na comunhão dos fiéis, vivos e mortos, e propicia outro
precedente para nossa proposta.
A luz do que surgiria mais tarde na teologia mariana, é digno de nota o silêncio relativo dos três
primeiros séculos cristãos. Muitos teólogos nem sequer a mencionam. Ainda mais extraordinário é
o fato de não haver nesses séculos nenhuma veneração pública oficial de Maria. A Igreja celebrava
dias de festa em honra dos mártires que haviam dado testemunho de Cristo a ponto de
derramarem sangue e, dessa forma, incentivava a fé no resto do povo. Por não ser mártir, Maria
não recebia a veneração da comunidade dessa maneira formal.
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O principal veículo para chamar a atenção teológica para Maria, naqueles anos, foi a crescente
discussão quanto à identidade de Jesus Cristo. No debate cada vez mais acalorado, foram
utilizadas ideias a respeito de sua maternidade para defender primeiro a humanidade e depois a
divindade do Messias. A heresia cristológica mais primitiva, o docetismo, afirmava que o corpo de
Jesus não era carne humana verdadeira, mas só parecia sê-lo. Ao procurar reverenciar a dignidade
transcendente de Deus, protegendo a divindade do contato com o mundo material, essa
concepção afirmava que o corpo de Jesus era uma espécie de disfarce que permitia a Deus ser
visto e ouvido na terra, mas não era a mesma substância da qual Adão e Eva e seus descendentes
haviam sido feitos. Para contrabalançar essa ideia, que procura atingir a própria realidade da
encarnação, os teólogos voltaram-se para Maria. Evocaram sua gravidez histórica para resguardar
a autenticidade do corpo de Jesus. Um grupo docetista, os valentinianos, apresentou a ideia de
que Jesus passara por Maria como a água passa por um tubo: duas substâncias diferentes, sem
que uma afetasse a outra1. Em contraste com essa concepção, o Credo dos Apóstolos incorporou a
frase segundo a qual Jesus nasceu ex Maria virgine, “da Virgem Maria”, isto é, de seu corpo. Ele é
feito da mesma substância que ela. Consequentemente, está em unidade com o resto da
humanidade segundo a carne2.
Depois que a divindade de Cristo foi formalmente confessada em Nicéia em 325, explodiu um
conflito quanto ao entendimento da unidade das naturezas humana e divina na pessoa única de
Jesus Cristo. Em um extremo, a escola de Antioquia apoiava a visão moral da unidade de suas duas
naturezas, considerando Jesus Cristo o ser humano no qual habita o Verbo divino, semelhante à
maneira como Deus habita no Templo. Embora apresentasse uma visão um tanto fraca da unidade
em Cristo, de modo que é possível dizer que ele agia às vezes por uma natureza (sentindo fome
em sua humanidade) e às vezes pela outra natureza (fazendo milagres por meio de sua divindade),
essa cristologia tinha a vantagem de preservar os contrastes das naturezas e, desse modo, garantir
a humanidade genuína de Jesus. Nesta escola, o título preferido para Maria era Christotokos, mãe
de Cristo, o que significava que ela era mãe do ser humano que é habitado pelo Logos e, por isso,
é o Cristo. No outro extremo, a escola de Alexandria defendia uma forma ontológica mais forte de
união, na qual o divino Filho de Deus unia-se pessoalmente à natureza humana. Embora
salvaguardasse a unidade das naturezas na pessoa de Cristo, esta concepção inclinava-se a
enfraquecer sua humanidade, considerando-a de alguma forma misturada à divindade
transcendente ou absorvida por ela. Nesta escola, o título apaixonadamente preferido para Maria
era Theotokos, mãe de Deus, o que significava ser ela mãe daquele que era pessoalmente o Verbo
de Deus. Embora a essência da controvérsia fosse cristológica, o título mariano em si era o motivo
principal do debate. Quando em 431 o Concilio de Éfeso optou pelo título Theotokos, ele se
difundiu rapidamente, mantendo a forma original no Oriente e transformando-se na expressão
mais coloquial “Mãe de Deus” no Ocidente. Segundo a maioria dos estudiosos, o ímpeto desse
concilio permitiu que o fenômeno do culto mariano se popularizasse na Igreja. Embora existisse
para expressar verdades cristológicas, o discurso a respeito de Maria ampliou a trajetória dessas
verdades em que a atenção concentrava-se em Maria por si mesma.
Passou a ser significativa a diferença entre o Oriente e o Ocidente à medida que esses séculos
avançavam. Numerosos casos de reflexão fervorosa, entusiástica e de interesse espiritualmente
produtivo em Maria originaram-se na Igreja oriental de língua grega. Em contraste, a Igreja
ocidental de língua latina manifestava uma sobriedade mais parecida com os evangelhos e os
teólogos orientais primitivos. Frequentemente, quando chegavam ao Ocidente, essas criações
marianas do Oriente depressa fincavam raízes e floresciam. Mas nos primeiros séculos o Ocidente
pouco fez para gerar ardor poético fervoroso, e pensava em Maria mais relacionada com o
mistério de Cristo e a vida de graça da comunidade. Um bom exemplo é a pregação de Agostinho
no século V. Muito complexa, sua visão de Maria mistura-se a suas posições doutrinais a respeito
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do pecado e da redenção e também a sua dúbia ideia filosófica da natureza feminina passiva e do
papel que as mulheres devem desempenhar. E bastante interessante que ele se abstivesse de usar
o título Theotokos, com medo de que Maria fosse confundida com a Grande Mãe, deusa das
religiões mediterrâneas, que é, ela própria, divina. Porém, quanto à relação de Maria com os
outros cristãos, Agostinho demonstrou uma nítida ligação que abre outro precedente para minha
proposta. Pregou claramente que Maria faz parte da comunidade de fiéis: “Maria é santa, Maria é
abençoada, mas a Igreja é algo melhor que a Virgem Maria. Por quê? Porque Maria faz parte da
Igreja, membro santo, membro muito excepcional, o membro supremamente maravilhoso, mas
ainda membro do corpo inteiro. Sendo assim, segue-se que o corpo é uma coisa maior que o
membro”3, o corpo inteiro que tem Cristo como sua cabeça. A essa luz, a relação de Maria com
Jesus como sua mãe biológica é importante para a confissão cristã mais por causa da fé com que
ela o teve do que por causa da maternidade em si. Consideremos a passagem em que a mãe e os
irmãos de Jesus estão do lado de fora procurando falar-lhe, enquanto Jesus, dentro, responde que
“todo aquele que faz a vontade do meu Pai, que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã,
minha mãe” (Mt 12,46-50). Agostinho afirma que a fé de Maria qualifica-a para ser mãe de Jesus.
Na verdade, “significa mais para ela, uma bênção completamente maior, ter sido discípula de
Cristo que ter sido sua mãe”4. Aqui as intérpretes feministas assinalam o perigo de menosprezar a
atividade sexual das mulheres, considerada por Agostinho violação da integridade feminina que
levava a uma depreciação da virtude; a virgindade era preferível como caminho de uma vida
santa5. Mas ironicamente, lida hoje, sua ênfase no discipulado acima da maternidade biológica
tem o efeito de atenuar a ênfase tradicionalmente forte na maternidade, ligada a Maria, como a
única vocação das mulheres. Além disso, torna a vocação de Maria acessível a todos na Igreja.
Agostinho pregou a respeito do mesmo texto: “Temos coragem de chamar a nós mesmos mãe de
Cristo”6. Por quê? Porque estando grávidos (gravidá) da crença em Cristo, carregando-o em nosso
coração cheio de amor, trazemos o Salvador ao mundo necessitado.
Alguns outros teólogos dos primeiros séculos cristãos analisaram de modo simples o tema da
participação de Maria na história da salvação por meio do fato de ser mãe de Jesus e de sua fé e
seu discipulado. Ao manter meu olhar resolutamente fixo na teologia, negligenciei, claro, outros
fatores dinâmicos que também moldaram a tradição mariana do primeiro milênio. O principal
deles é a devoção popular, veneração que não se restringia às pessoas simples, aos incultos, mas
era comum também entre sacerdotes e bispos. A historiadora E. Ann Matter observa sabiamente
que “a prática dos devotos muitas vezes segue seu curso normal e às vezes é forte o bastante para
atrair a teoria teológica atrás de si. E o caso da devoção a Maria; em nenhum outro campo da
teologia cristã a teoria segue a prática tão de perto e, até pode-se dizer, tão a contragosto”7.
Entretanto, o que nos interessa é a maneira como a teologia cristã primitiva do Ocidente
configurou-se à Escritura e à liturgia para situar Maria no meio da comunidade em vez de acima
dela, considerando-a um entre muitos modelos notáveis de fé, inclusive os apóstolos e mártires.
Esse padrão levou alguns estudiosos a caracterizar a teologia mariana ocidental do primeiro
milênio como “objetiva”, na medida em que não exigia entusiástica devoção pessoal a Maria, mas
reverenciava-a ao lado de outros santos na espaçosa estrutura de fé bíblica e baseada no Credo 8.
Uma disposição muito diferente domina o segundo milênio, quando um tipo emocional mais
“subjetivo” de relação glorifica cada vez mais Maria por seus próprios méritos, em especial sua
capacidade de obter e conceder misericórdia.

O segundo milênio
Novos fatores em ação na Igreja, em especial o crescente caráter jurídico do múnus
eclesiástico, um sistema penitencial cada vez mais severo e o afastamento correspondente do
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Cristo ressuscitado na teologia e na arte medievais, provocaram notável mudança na teologia de


Maria no Ocidente durante o segundo milênio. Devido à propensão humana ao pecado e ao
aparato eclesiástico que confrontava o pecador, a possibilidade de alcançar a salvação eterna era
considerada excessivamente difícil; o tormento do inferno acenava. Nessa situação, a mãe de Deus
passou a ser vista como ajuda particularmente forte para os pecadores, poder celeste que, graças
a seu coração materno, tomava o partido do pecador. Como era também a mãe do Juiz que
certamente a reverenciava com devoção filial, ela estava singularmente posicionada para
persuadi-lo a salvar os pobres pecadores. Com o prolongamento dessa trajetória, a reflexão
mariana se afastava da narrativa evangélica da história da salvação e prosseguia em um
isolamento que ficava cada vez mais intenso à medida que o milênio avançava.
A ideia de Maria como medianeira é um exemplo 9. Na teologia mais primitiva, essa ideia
raramente era mencionada. Quando isso acontecia, o fundamento era seu papel singular na
encarnação, pela qual o Filho de Deus tornou-se ser humano. Depois de consentir livremente na
fé, ela o concebeu em seu corpo e, por meio da gravidez física e do parto, entregou ao mundo o
Salvador. Assim, ela era considerada o meio pelo qual Deus viera à terra, o “mediador” feminino,
por assim dizer, da presença salvífica de Cristo na história. Entretanto, sua intercessão então
começou a atuar ao contrário, para fazer a humanidade pecadora voltar a Deus. O teólogo Pedro
Damião escreveu: “Do mesmo modo que o Filho de Deus dignou-se descer até nós por intermédio
de ti, nós também precisamos chegar até ele por intermédio de ti. [...]”10. Essa descoberta
encontrou expressão nas imagens populares de Maria como o “pescoço” que liga Cristo a seu
corpo, a Igreja, e o “aqueduto” pelo qual fluem as graças de Cristo. Com retórica eloquente,
Bernardo de Claraval pregou que é desejo de Deus que veneremos Maria com grande ternura, pois
Deus “deseja que tenhamos tudo por intermédio de Maria”11 — palavras que seriam citadas no
ensinamento mariano de papas mais tardios e se tornariam axioma clássico na literatura da
mariologia. Na verdade, continua ele, o Pai nos deu Jesus como nosso Mediador eficaz; ele é nosso
irmão misericordioso, feito de nossa carne. Mas trememos ao nos aproximarmos dele, pois ele é
também Deus de impressionante majestade divina. Se desejamos ter um advogado junto a ele,
recorramos a Maria, pois ela é completamente meiga e amável, cheia de indulgência e
misericórdia. O Filho ouve a mãe, o Pai ouve o Filho e, assim, todos recebemos o favor divino.
Uma força espantosa foi dada a esse papel mediador de Maria pela ênfase em Cristo, o Justo
Juiz. Sendo a mãe do Juiz e também dos que estão em julgamento, Maria suaviza o coração do
Filho e alcança a misericórdia para os pecadores, mesmo que estes sejam indignos. O epítome do
contraste sentido entre Cristo e Maria foi expresso em influente sermão de autor desconhecido,
que até o século XX se pensava ser Boaventura: “A Santíssima Virgem escolheu a melhor parte,
pois tornou-se Rainha de Misericórdia, enquanto seu Filho permaneceu Rei de Justiça”12. Maria
era então poderosa protetora de seus devotos, que afastava a justa cólera de Cristo. Devido a seu
poder de influenciar até Cristo, o Senhor, também atribuíam-lhe a capacidade de proteger as
pessoas dos ataques do diabo e das desgraças terrenas da fome, da peste e da guerra. No século
XV Bernardino de Sena resumiu de forma incisiva a percepção geral:
Toda graça comunicada a este mundo tem tripla progressão. Com efeito, de Deus para Cristo, de
Cristo para a Virgem, da Virgem para nós, é dispensada de modo ordenadíssimo [...]. Não hesito em
dizer que a Virgem recebeu certa jurisdição sobre todas as graças [...], que são ministradas por suas
mãos a quem ela quer, quando quer, como quer e tanto quanto quer13.
Os teólogos de hoje observam como é lamentável que Maria substitua o Espírito Santo nessa
concessão divina da graça. Mas, devido ao entendimento então predominante, não é de admirar
que a devoção a Maria desabrochasse em uma profusão de orações, hinos, catedrais,
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peregrinações, poemas, histórias de milagres, dramas, cânticos, imagens e práticas em uma


torrente que é impossível codificar.
A reforma na Europa quinhentista aconteceu quando a teologia e a piedade estavam em maré
baixa. A devoção mariana era alternativamente sentimental e supersticiosa, dedicada, por um
lado, a uma virgem tímida e recatada, bela, mas não sagrada, e, por outro, à mãe poderosa que
prometia a salvação apesar da falta de ética na vida da pessoa. A situação chegou ao ponto em
que, segundo Laurentin, “repelidas por um intelectualismo árido, as pessoas procuravam vida no
plano imaginativo e sentimental. Durante todo esse período de decadência, o entusiasmo popular
pela Bem-aventurada Virgem jamais titubeou, mas o alimento adulterado com que se nutria
consistia em milagres ilusórios, lemas ambíguos e divagações inconsistentes”14. A crítica dos
reformadores era em grande parte justificada, e o reformador Concilio deTrento exigiu a correção
dos abusos. Entretanto, com o passar do tempo, os líderes protestantes que se concentravam
somente em Cristo como mediador entre Deus e a humanidade pecadora acharam que a reforma
católica não avançara o bastante. No espírito da época, surgiu uma guerra psicológica, com cada
golpe respondido com um contragolpe. Entre os católicos, a devoção a Maria tornou-se símbolo
de identidade; a polêmica contra os que não a reverenciavam elevou-se a um ato de fidelidade; a
agressividade na divulgação de suas glórias transformou-se em virtude. Os séculos que se
seguiram a essa divisão na Igreja ocidental viram a polarização das posições. No que se referia a
Maria, os católicos contraíram um caso grave de fixação, enquanto os protestantes contraíram um
caso grave de amnésia.
No século XVII, floresceram novas festas, instituições e formas de devoção marianas, enquanto
uma literatura especializada chegava a milhares de volumes. Era esse o ambiente existencial para
a origem da disciplina erudita que tecnicamente veio a ser chamada “mariologia”. O termo foi
inventado por Nicolau Nigido no tratado Summa sacrae Mariologiae, escrito em 1602. Inspirado
no espírito racional da época do iluminismo, esse tratado começava com um princípio básico, a
maternidade de Maria, e dele deduzia como corolários toda espécie de privilégios gloriosos que
resultavam para sua pessoa.15 Esse tipo de mariologia, que se espalhou rapidamente, tomou para
si a piedade da época e deu-lhe base teológica. O efeito foi separar o pensamento a respeito de
Maria do resto da teologia, em especial das análises de Cristo, da salvação, do Espírito Santo e da
Igreja, que, de qualquer modo, haviam perdido a força criativa. Assim, Patrick Bearseley escreve:
“Temos a imagem de uma vigorosa mariologia que crescia exuberantemente em um jardim
teológico sob outros aspectos empobrecido”16.
Esse rio encapelou-se nos séculos XIX e XX com o chamado movimento mariano, um aumento
de entusiasmo assinalado da maneira mais notável pela proclamação papal de dois dogmas
marianos, a Imaculada Conceição (1854) e a Assunção (1950). Os temas da intercessão universal
de Maria para alcançar a graça divina e sua proteção do pecador ecoavam nos escritos de
teólogos, guias espirituais, pregadores e papas. Leão XIII, por exemplo, dedicou onze de suas 42
encíclicas ao tema de Maria 17 . Novas expressões de reverência multiplicavam-se, inclusive
aparições e peregrinações a santuários marianos tais como Lourdes e Fátima. As ordens religiosas
dedicadas em nome dela floresciam — Laurentin conta 65 encontradas nos cem anos que se
seguiram a I83518. Associações leigas militantes como o Exército Azul e a Legião de Maria atraíam
milhões de membros. Consagrações, coroações, medalhas, pinturas sagradas e imagens
itinerantes eram onipresentes. Os periódicos e as sociedades de estudos marianos proliferavam,
juntamente com congressos marianos nacionais e internacionais; houve mais de setenta dessas
reuniões nos dez anos que se seguiram a 1947.
Em termos de teologia sistemática, a mariologia era agora um tema independente claramente
assinalado, fundado no princípio da maternidade de Maria e governado por um conjunto de
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regras: a regra da singularidade (Maria é única); a regra da analogia (à sua maneira, Maria
assemelha-se a Cristo em tudo); a regra da eminência (Maria ultrapassa os outros cristãos em
tudo, de modo que de Maria nunquam satis, o que traduzido livremente significa “a respeito de
Maria nunca dizemos o bastante”); e a regra da conformidade, expressa no axioma derivado de
Duns Escoto, potuit, decuit, fecit, ou Deus “poderia ter feito, deveria fazer e portanto realmente
fez” grandes coisas para sua mãe. O resultado foi uma visão de Maria como a única,
imaculadamente concebida virgem mãe de Deus por excelência, dotada de virtude perfeita, a
totalmente obediente, humilde serva que também era a Rainha do Céu com poder para interceder
por nossa salvação e que foi levada ao céu de corpo e alma. Internamente, o calcanhar de aquiles
desse modelo de pensamento era que ele ficava isolado da teologia como um todo; a mariologia
tinha, na verdade, seguido um caminho próprio. Externamente, não tinha ressonância para as
formas modernas de pensamento e espiritualidade. Entretanto, floresceu, pois preencheu uma
grande necessidade.

VATICANO II: EMBATE DE TITÃS

Às vésperas do conflito
Depois de 1950 ocorreu uma divisão entre os que desejavam continuar fazendo novas
conquistas para Maria com novos títulos e definições dogmáticas e os que desejavam renovar a
teologia e a devoção marianas por meio de uma volta às fontes originais. Esta última posição foi o
resultado de três movimentos que começaram no início do século XX, a saber, as renovações
bíblicas, litúrgicas e ecumênicas. Originalmente combatidos pela Igreja hierárquica, esses
movimentos começavam agora a dar frutos. Ao ler os livros bíblicos conforme a integridade do
gênero, não como prova doutrinal, o movimento bíblico trouxe mais uma vez para o primeiro
plano a boa nova dos caminhos misericordiosos de Deus na historia da salvação. Ao promover a
oração ao Deus trino pela comunidade de culto, o movimento litúrgico colocou a Eucaristia no
centro da vida pública da Igreja e incluiu Maria e os santos como parte da comunidade orante. Ao
iniciar o diálogo com as irmãs e os irmãos separados, o movimento ecumênico trouxe à luz
intuições reformadoras e permitiu que os católicos ouvissem como o maximalismo mariano soava
estranho aos ouvidos protestantes. Além desses três movimentos, o impulso para a reforma
também se originou de estudiosos católicos que havia algumas décadas procuravam retornar às
fontes da teologia cristã primitiva e seu enfoque de Maria mais voltado para os evangelhos. A sua
maneira, todos esses avanços restabeleceram a grande verdade de que a salvação vem
copiosamente de Deus por intermédio de Jesus Cristo e nos alcança neste exato momento pelo
poder do Espírito. Todos colocaram Maria de volta na comunidade dos fiéis 19.
Uma primeira escaramuça foi presságio do que estava por vir. Naquela década, os teólogos
envolvidos na redação de tratados de mariologia enredaram-se em uma controvérsia sobre o que
chamavam de “princípio fundamental” dessa disciplina. Em sua maioria, os principais envolvidos
afirmavam que a maternidade de Maria, o papel que ela desempenhou como mãe de Deus, devia
proporcionar a ideia orientadora para todos os privilégios e poderes subsequentes. Expressaram
esse princípio de várias maneiras, favorecendo sua maternidade divina, sua maternidade universal
do Cristo todo, o que incluía cabeça e membros, sua maternidade física, sua maternidade
espiritual ou sua maternidade nupcial. Discordando dos colegas, Karl Rahner sugeriu que a graça,
não a maternidade, deveria ser a ideia fundamental da teologia mariana. Falando “simples e
ponderadamente”, ele lembrou aos ouvintes a realidade à qual os cristãos confiam a vida: o Deus
vivo dá aos seres humanos o dom da graça que justifica e perdoa. Entretanto, essa graça não é um
dom criado, mas a comunicação do próprio Deus, que vem aos seres humanos e dessa forma os
influencia a fim de que livremente se preparem “para que toda a vida infinita gloriosa do Deus
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trino entre no pobre coração dessa minúscula criatura”20. Da parte de Deus, isso é o amor dele
pelos seres humanos. De nossa parte, isso é amor a Deus, que no ensinamento de Cristo inclui o
amor ao próximo. A vida cristã consiste principalmente “em recebermos toda a vida divina pelo
poder da graça de Deus, com fé e amor, nas profundezas de nosso coração de maneira tal que ele
se estenda e resulte em uma bênção para os outros que, ao nosso lado e como nós, devem
receber a salvação única do Deus eterno”21.
Ao colocar Maria nesse contexto, Rahner a considera uma concretização real desse mistério. Ela
recebe a graça salvífica e misericordiosa de Deus e, como parte da história humana, como
“inteiramente um de nós”, ela conclui a história de sua vida. Essa história assume importância
singular para a nossa salvação, em vista de Jesus Cristo, que ela concebeu pelo livre
consentimento de sua fé e pela realidade física de sua maternidade. Escolhida por Deus para
desempenhar esse papel, ela é dotada de graça comensurável com sua tarefa. No processo, ela
concretiza em si mesma o que a fé diz a respeito da plenitude de graça e salvação que se difunde
em serviço para os outros. Maria é a figura que realmente representa o sentido da graça com
santidade e dignidade incomparáveis. “Contudo, o que Maria tem deve, em última instância, ser
nosso também. Nós também vamos nos tornar o que ela é”22, isto é, os que ouvimos a palavra de
Deus e a seguimos de todo o coração. O Deus vivo que se comunica por Jesus Cristo em graça
salvífica, conclui Rahner, é a realidade insuperável. Essa ideia deve organizar e fundamentar nossa
reflexão para integrar Maria novamente à teologia.
Às vésperas do Concilio Vaticano II, a extensa trajetória do segundo milênio estava claramente
entrando em tensão com facetas mais moderadas do primeiro. No linguajar da época que serviu
para cristalizar as escolas de pensamento oposto, a posição do movimento mariano do segundo
milênio era chamada maximalista. Sua mariologia era considerada cristotípica porque imaginava
Maria uma criatura totalmente especial com privilégios semelhantes aos de Cristo. Em contraste, a
posição assinalada pela volta ao primeiro milênio nos movimentos bíblicos, litúrgicos e
ecumênicos unidos à renovação patrística era chamada minimalista. Sua mariologia era
considerada eclesiotípica porque imaginava Maria apenas recebedora de graça e membro especial
da comunidade da Igreja. Conforme caracterizada por Laurentin, a mariologia cristotípica tinha um
tom espiritualmente místico, guiava-se pelo amor, concentrava-se nas glórias de Maria, cheia de
fervor emocional, e dedicava-se a considerar Maria o pescoço que ligava a cabeça e os membros
do corpo de Cristo. A mariologia eclesiotípica tinha um tom criticamente racional, guiava-se pela
busca da verdade, concentrava-se em Jesus Cristo, era perspicaz quanto às necessidades do
mundo moderno e se assustava com a metáfora do pescoço. Por trás de cada uma das posições
estavam compromissos teológicos anteriores que levaram séculos para se formar e que exigiam
lealdades profundas. Devido ao sucesso dos séculos XIX e XX na glorificação de Maria, não é de
admirar que ao ir para o concilio os entusiastas marianos ansiassem por colocar outra joia na
coroa da mãe de Deus, fazendo o concilio declarar como dogma que ela era a medianeira de todas
as graças. Com a mesma insistência, os que lideravam os movimentos de renovação na
perspectiva do mundo moderno desejavam brecar a exuberância mariológica e restaurar uma
orientação evangélica. Seu embate foi a luta mais turbulenta, mais emocional de todo o concilio.

Embate de titãs
O ensinamento a respeito de Maria deve ou não ser tratado no esquema que trata da Igreja?
Essa pergunta aparentemente simples e direta foi motivo de amarga disputa na qual as diferenças
titânicas entre os dois milênios ficaram aparentes 23. O problema foi abordado durante a segunda
sessão do concilio, no outono de 1963. Obviamente, os que promoviam as glórias de Maria
opuseram-se ao movimento para incluir e, em vez disso, defenderam um documento
independente que desse a Maria o devido respeito como superior à Igreja. Os favoráveis à inclusão
Precedentes do modelo mariano atual 9

achavam que seria mais vantajoso ecumenicamente e também mais de acordo com o tema
principal do próprio concilio reprimir exageros trazendo Maria de volta à teologia da Igreja. As
características nacionais influenciaram essa divisão, com personalidades espanholas, italianas e
polonesas defendendo a estratégia maximalista entusiástica e ardente, enquanto os
temperamentos alemães, ingleses, franceses, belgas e holandeses inclinaram-se para uma atitude
mais baseada na Bíblia e teologicamente rigorosa. Durante a discussão, a atmosfera tornou-se
explosiva. Laurentin descreve-a como quase violenta24. Os partidários dos privilégios denunciaram
que o movimento de inclusão era uma trama contra Nossa Senhora e se valeram de acusações
exaltadas e apelos sentimentais para defender sua causa. Os partidários da reforma rejeitaram a
caracterização de sua ideia como trama desonesta e afirmaram que a veneração de Maria seria
mais ardente se fosse baseada em um fundamento mais esclarecido. A assembleia toda ficou
impregnada de angústia.
Para chegar a uma decisão de maneira mais calma, mais bem informada, foi organizado um
debate em sessão plenária. O cardeal Rufino Santos, de Manila, falou em nome do partido do
“esquema independente”, e o cardeal Franz König, de Viena, em nome do partido da “inclusão na
Igreja”. Reunindo os melhores argumentos para suas posições, eles fizeram apresentações com
diferenças que dificilmente poderiam ser exageradas. Santos apresentou dez argumentos a favor
de um esquema independente, entre eles o argumento teológico de que, devido a sua relação
com a Trindade, Maria tem uma posição de prioridade quanto à Igreja, fora do nível do laicato e
da hierarquia; o argumento pastoral de que os fiéis considerariam sua inclusão na Igreja redução e
perda; e o argumento prático de que a constituição da Igreja já composta não tinha um lugar onde
ela pudesse ser harmoniosamente acrescentada. Por sua vez, König deu voz a quatro razões pelas
quais o ensinamento sobre Maria deveria ser incorporado ao esquema da Igreja, entre elas a razão
teológica de que o lugar de Maria é ali, pois ela é um tipo da Igreja e prefigura sua realização
escatológica; a razão pastoral de que os fiéis eram incentivados a purificar sua devoção a Maria e
voltar aos princípios básicos da Escritura; e a razão ecumênica de que uma mariologia eclesiotípica
possibilitava o diálogo com as tradições orientais e protestantes. O problema foi tratado não
apenas no nível intelectual. Como observou Gérard Philips, enquanto “os dois oradores
mantiveram um nível de pensamento notavelmente elevado, a disposição de ânimo geral era tudo
menos imparcial”25.
Nos dias entre esse debate e a votação da assembléia, o ambiente ficou ainda mais tenso. Os
partidários de cada posição distribuíram panfletos, duplicaram materiais e folhetos de propaganda
e se utilizaram de truques sujos para promover sua causa. “Um bispo ucraniano distribuiu
panfletos em frente do Palácio; os espanhóis distribuíram folhetos em toda parte; Roschini
produziu uma brochura; havia quem falasse de uma batalha a favor e contra a Madona; Balic
distribuiu um livrinho prolixo impresso na Imprensa Vaticana em forma de um esquema”26, este
último dando a entender que era uma declaração oficial o que na verdade não passava de um
panfleto seu. Por ter difundido uma nota a favor da inclusão, o abade Butler foi violentamente
insultado no diário Il Tempo. Liderando a mariologia de privilégios, Balic atacou severamente o
conhecido teólogo Yves Congar, que criticara a “mariologia galopante”, acusando-o de católico
desleal. Um simples problema de colocação transformou-se em rancoroso melodrama.
Finalmente, em 29 de outubro de 1963, houve a votação. Foi a votação mais equilibrada do
concilio: 1.114 votos a favor da incorporação do ensinamento mariano ao esquema da Igreja,
1.074 contra. A moção passou com a maioria legítima e suficiente de quarenta votos, mas se
apenas vinte bispos se declarassem contrários teria havido um empate. A votação foi recebida
com um silêncio impressionante, “um momento de incredulidade estupefata”27. Acostumados a
decidir questões com quase unanimidade até então, os bispos estavam terrivelmente
Precedentes do modelo mariano atual 10

consternados. Como podia a mãe de Deus, no seio de quem aconteceu a união fundamental entre
Deus e a humanidade, ter causado uma tão grande divisão?
Os comentaristas dessa votação observam que, do ponto de vista teológico, a mentalidade da
ortodoxia autoritária não histórica, acompanhada por uma piedade que se concentrava no mundo
que há de vir, foi vencida pelas forças pró-renovação que convocavam a Igreja para entrar na
história e assumir compromisso com as consequências sociais e políticas do Evangelho. Do ponto
de vista político, os representantes da “Época de Maria” perderam para a aliança europeia
setentrional que defendia o diálogo com o mundo moderno. Em meu modo de ver, o que
aconteceu foi uma espécie de terremoto em que a terra teológica fatigada e inchada voltou a
alinhar-se com o modelo do primeiro milênio. E importante observar que um ano, numerosos
esboços e emendas e muitos argumentos depois, a versão final da Constituição Dogmática sobre a
Igreja (Lumen gentium), com o esquema mariano firmemente implantado como último capítulo,
foi confirmada em assembleia solene com apenas cinco votos negativos.

DE MEDIANEIRA A MODELO
A acalorada e nada acadêmica atmosfera que cercou a votação do lugar de Maria dificultou a
redação de um texto que satisfizesse os dois lados. A controvérsia continuou; uma série de
esboços sucediam-se uns aos outros enquanto os dois lados procuravam influenciar o
ensinamento oficial. O grupo da mariologia cristotípica continuou a exortar o concilio a definir
solenemente o dogma de que Maria era a medianeira de todas as graças, estreitamente engajada
na obra de redenção como associada de seu Filho, ou pelo menos a declarar a doutrina de que ela
era a mãe da Igreja. Do outro lado estavam os que insistiam que novos dogmas atrapalhariam a
causa da unidade; era preciso aprender a pronunciar o nome de Maria, mulher de fé, como parte
da visão da Igreja. Dos “embates espirituais”, “discursos irados”, “debates de intensa emoção” e
“grandes conflitos” que marcaram a discussão do penúltimo esboço, o texto final chegou a um
meio-termo que, apesar das conciliações, ainda conseguiu devolver Maria ao padrão do primeiro
milênio. Intitulado “A Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, no Mistério de Cristo e da
Igreja”, apresenta um precedente para a proposta que fazemos aqui, na colocação e também no
conteúdo.
Quanto à colocação, a Constituição sobre a Igreja começa com a retumbante proclamação de
que Cristo é “a luz dos povos” ou Lumen gentium (§ I). Resplandecente com essa luz e refletindo-a
como a lua reflete o sol, a Igreja ajuda a espalhar essa luz sobre o mundo quando proclama o
Evangelho a toda criatura. Essa, então, é a relação fundamental que constitui a própria essência da
Igreja: Cristo Redentor e a Igreja como assembleia de todos os que creem nele e dele dão
testemunho ao mundo. Os capítulos subsequentes contemplam aspectos dessa comunidade na
terra: a Igreja que caminha pela história como o povo peregrino de Deus, o episcopado e o clero,
os leigos, o chamado de toda a Igreja à santidade e as ordens religiosas. Mas a realidade da Igreja
não se esgota aqui, nos que ainda estão vivos em determinado momento; ao morrer não saímos
da Igreja. Portanto, a constituição prossegue e contempla os fiéis defuntos, os “amigos e
co-herdeiros de Jesus Cristo” (§ 50) com quem os vivos formam uma só comunidade. Então, nesse
contexto de toda a Igreja, vivos e mortos, a constituição analisa Maria, membro preeminente da
Igreja e mãe cheia de fé de Jesus Cristo, outrora ela mesma peregrina na terra e agora com Deus
na glória. E digno de nota que essa colocação é descrição precisa do programa para elaborar uma
teologia de Maria na comunhão dos santos.
Quanto ao conteúdo, o capítulo mariano volta a fontes bíblicas e cristãs primitivas para traçar a
importância de Maria em relação a Cristo e à Igreja. Primeiro, conta a história de sua vida em
Precedentes do modelo mariano atual 11

relação a Cristo, reunindo em narrativa harmoniosa vários relatos evangélicos. E enfatizada sua
maternidade, por meio da qual o Redentor veio ao mundo, e sua fé, que a levou a responder
criativamente ao chamado de Deus em diversas situações. Diz-se que o dinamismo de sua vida
está na maneira como ela avançou em “peregrinação de fé” (§ 58), desde o anúncio do
nascimento de Cristo até a sala superior em Pentecostes. Essa peregrinação acabou por levá-la
para a glória de Deus. Assim, a realidade de sua vida mistura-se aos grandes acontecimentos da
vinda da salvação. E possível ver a luta entre as duas escolas de pensamento na estrutura de
“contudo” de muitos parágrafos. Por exemplo, o documento declara que o papel singular de Maria
na salvação como mãe do Redentor encarnado lhe dá uma relação especial com o Deus trino
(cristotípica). “Mas ao mesmo tempo está unida, na estirpe de Adão, com todos os homens a
serem salvos” (eclesiotípica, § 53). Unida ao Filho na obra da salvação desde o tempo do
nascimento de Cristo até estar presente ao lado dele no céu (cristotípica), contudo não entendeu a
resposta dele quando o encontrou no Templo, mas conservou tudo isso no coração para meditar
(eclesiotípica, § 57).
Além de relacionar Maria com Cristo, o capítulo também posiciona Maria como membro da
Igreja. Aqui o concilio teve de contornar a disputa vexatória sobre o título de medianeira, que
ainda fervilhava. Declarou cuidadosamente que “a Bemaventurada Virgem Maria é invocada na
Igreja sob os títulos de Advogada, Auxiliadora, Adiutrix, Medianeira. Isto, porém, se entende de tal
modo que nada derrogue, nada acrescente à dignidade e eficácia de Cristo, o único Mediador”(§
62)28. Em vez de definição doutrinal, o título Medianeira é relativizado aqui de três maneiras: é
colocado ao lado de outros títulos; é posto no contexto de devoção, não de doutrina, e, desse
modo, é descritivo de prática, não prescritivo; e é limitado por restrições cristológicas. Em lugar de
Maria como medianeira, o concilio recorreu à cristologia cristã primitiva e enfatizou a ideia de que
Maria é modelo da Igreja: “Já Sto. Ambrósio ensinava que a Mãe de Deus é o tipo da Igreja na
ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo” (§ 63). Como modelo, ela indica o que a
Igreja é chamada a ser em sua melhor forma espiritual. Essa ideia também expressa o argumento
final do documento a respeito da veneração de Maria. Evitando o falso exagero e também a
estreiteza de espírito, os fiéis devem se lembrar de “que a verdadeira devoção não consiste num
estéril e transitório afeto, nem numa certa vã credulidade, mas procede da fé verdadeira pela qual
somos levados a reconhecer a excelência da Mãe de Deus, excitados a um amor filial para com
nossa Mãe e à imitação das suas virtudes” (§ 67).
Os críticos do capítulo mariano mencionam a impropriedade de sua exegese bíblica, que junta
todos os textos marianos sem levar em consideração gênero nem autor e combina em um só todo
a narrativa bíblica e declarações dogmáticas mais tardias, como se, na verdade, fosse possível
escrever uma biografia de Maria. Outra deficiência grave é o caráter egocêntrico do capítulo, já
que não coloca a teologia mariana em diálogo com o mundo moderno, medida fundamental para
os documentos mais significativos do concilio 29. O capítulo também é criticado por sua falta quase
total de uma pneumatologia forte, ausência que faz com que funções do Espírito Santo sejam
atribuídas à intercessão maternal de Maria. E não há nenhum emprego da mariologia libertadora
criativamente desenvolvida pela Igreja dos pobres. Perguntando o que estava em jogo para as
mulheres no debate conciliar ardentemente emotivo, Anne Carr aprova a colocação de Maria
dentro da ampla estrutura de toda a economia da salvação, o que possibilita uma nova ligação
entre Maria e as mulheres. Entretanto, ao mesmo tempo, o texto idealiza essa mulher única, usa
excessivamente a linguagem da perfeição, considera-a modelo de receptividade da graça de Deus,
mas não de ação e poder, usa a perniciosa dicotomia Eva—Maria e emprega a linguagem da
subordinação30. Kari Borresen aponta para o problema fundamental de “que a mulher ainda
representava a humanidade em sua relação subordinada ao homem, Cristo” 31. Contudo, como
Precedentes do modelo mariano atual 12

Carr reconhece, é “surpreendente” que o catolicismo afirme ser uma mulher uma figura
autenticamente religiosa no horizonte espiritual da comunidade.
De modo geral, ao voltar para as fontes originais e interromper a trajetória isolante do segundo
milênio, o concilio favoreceu a renovação da teologia mariana para o terceiro milênio. Em
especial, a decisão consciente e alcançada com dificuldade que o concilio tomou de incluir na
doutrina da Igreja seu ensinamento a respeito de Maria, ligando-a assim novamente a toda a
comunhão dos santos vivos e mortos, indica um novo ponto de partida. Trabalhando nesse
panorama de nova configuração, a pesquisa teológica em andamento neste livro apoia-se nas
decisões básicas do concilio como precedente.
Uma consequência então inesperada leva ao último precedente que alego. Depois do concilio,
o interesse pelas coisas marianas diminuiu rapidamente nos países industrializados. Por um lado, a
teologia ocupou-se intensamente com questões de Cristo e fé em Deus ao lado das questões
morais e sociais que surgiram no mundo moderno. A torrente de escritos mariológicos
transformou-se em uma gota. Ao avaliar a imagem universal 25 anos depois, Stefano De Fiores
demonstrou que a mariologia tradicional tinha colidido com uma crise profunda, e seu método e
seu conteúdo haviam sido ignorados. Surpreendentemente, até mesmo os poucos que
continuaram a escrever nesse campo ignoraram a posição do concilio: “Nem um só dos manuais
mariológicos pós-conciliares adota a metodologia indicada pelo Concilio”32. Por outro lado, entre
os sacerdotes e os leigos, a reorientação que o concilio deu à espiritualidade católica no sentido da
Escritura e da Eucaristia começou a criar raízes. Em resultado, a devoção mariana superabundante
que tanto havia marcado a época pré-conciliar implodiu discretamente. O concilio pretendia que
essas devoções fossem reformadas, não eliminadas. Mas elas desapareceram, a ponto de um
estudioso chegar a se referir ao “naufrágio” da devoção pós-conciliar a Maria 33. No mínimo,
podemos nos perguntar por que o avanço conciliar no tocante a Maria como modelo da Igreja não
prendeu a imaginação dos fiéis. Na verdade, é um estudo de caso que solucionar uma controvérsia
interna entre dois grupos de elite da Igreja não atrai necessariamente o interesse religioso da
comunidade mais ampla que luta com fé em um contexto cultural em constante mudança.

“NOSSA VERDADEIRA IRMÔ


Dez anos depois do concilio, cônscio do declínio exagerado da tradicional veneração a Maria,
Paulo VI redige uma carta apostólica, Marialis cultus, para incentivar a devoção mariana renovada,
de acordo com as normas conciliares 34. Ao admitir que mudanças no comportamento social, nas
expressões literárias e artísticas e nos meios de comunicação influenciaram o espírito religioso de
nosso tempo, ele reconhece que certas práticas piedosas que há não muito tempo pareciam
adequadas são agora rejeitadas. Ele não promove essas devoções porque elas estão ligadas a
padrões sociais e culturais de uma época passada. Mas, para não deixar o culto a Maria definhar
porque suas formas mostram “o desgaste do tempo”, Paulo VI conclama de modo notável toda a
Igreja a renovar essas formas de acordo com as sensibilidades contemporâneas 35:
Ora, isto põe em evidência a necessidade de as Conferências Episcopais, as Igrejas locais, as
Famílias religiosas e as Comunidades de fiéis favorecerem uma genuína atividade criadora e
procederem, simultaneamente, a uma diligente revisão dos exercícios de piedade para com a
Virgem Santíssima. Desejaríamos, entretanto, que tal revisão se processasse no respeito pela sã
tradição e com abertura para receber as legítimas instâncias dos homens de nosso tempo (§ 24).
Para apressar o processo, Paulo VI anuncia quatro diretrizes baseadas no ensinamento do
concilio. Essas diretrizes permitem aos fiéis avaliar mais facilmente a ligação de Maria com o
mistério da Igreja e “seu eminente lugar na Comunhão dos Santos” (§ 28) e, assim, faculta-lhes
Precedentes do modelo mariano atual 13

renovar a devoção de um modo criativamente fiel. Para mim, a paráclase entre os dois milênios
torna-se radicalmente clara quando comparamos essas quatro diretrizes papais com os quatro
princípios mencionados acima que governaram a elaboração da mariologia pré-conciliar. Saltamos
dos princípios de singularidade, analogia, eminência e conformidade para critérios bíblicos,
litúrgicos, ecumênicos e antropológicos.
Primeiro, instrui esta carta, a veneração de Maria deve ter um cunho bíblico, o que não impõe
apenas fazer uso diligente de certos textos aplicáveis, mas impregnar a devoção a Maria dos
grandes temas da mensagem de salvação cristã. Em seguida, as práticas que veneram Maria
devem também ser litúrgicas, o que significa que devem derivar da oração da Eucaristia e a ela
conduzir, e harmonizar-se com os tempos litúrgicos, sendo especialmente adequados o Advento e
o Natal. Terceiro, as práticas de veneração a Maria devem também ser ecumênicas, isto é,
consolidadas em uma forte base escriturística e claras quanto à centralidade de Cristo. Ao desejar
a plena comunhão na fé entre todos os discípulos de Cristo, a Igreja deseja que na vida devocional
“sejam evitados, com todo o cuidado, quaisquer exageros que possam induzir em erro os outros
irmãos cristãos acerca da verdadeira doutrina da Igreja Católica” (§ 32). Quarto, e de pertinência
especial para a reflexão feminista, a devoção renovada a Maria deve também ser antropológica,
isto é, estar em estreita harmonia com as ciências humanas que projetam as condições
psicológicas e sociológicas mudadas nas quais vivem as pessoas modernas, principalmente as
mulheres. A descrição de Paulo VI é cuidadosa:
[..._] no ambiente doméstico [...] tanto as leis como a evolução dos costumes tendem
justamente para lhe reconhecer a igualdade e a corresponsabilidade com o homem na direção da
vida familiar; [...] no campo político [...] ela conquistou, em muitos países, um poder de intervenção
na coisa pública a par do homem; [...] no campo social [... J ela desenvolve a sua atividade nos mais
variados setores operativos, deixando cada dia mais o restrito ambiente do lar; [...] no campo
cultural [...] lhe são proporcionadas possibilidades novas de pesquisa científica e de afirmação
intelectual (§ 34).
Em consequência, ele conjectura, as pessoas contemporâneas, e as mulheres em especial,
sentem-se distantes de Maria, pois a devoção tradicional apresenta-a como “uma mulher
passivamente submissa ou de uma religiosidade alienante” (§ 37), mulher com uma vida limitada
por horizontes muito restritos. Até parece que ele leu os capítulos anteriores deste livro. Essa
imagem, ele continua, foi formada por gerações anteriores que recorreram a suas normas
culturais a respeito das mulheres, normas que não são eternas. A Igreja alegra-se com a longa
história da devoção mariana, mas “não se liga aos esquemas representativos das várias épocas
culturais, nem às particulares concepções antropológicas que lhes estão subjacentes” (§ 36). Ao
contrário, nossa tarefa agora é usar nossa percepção, especificar os problemas com sinceridade e
fazer uma apresentação adequada a esta época.
Para estimular essa tarefa, Paulo VI descreve Maria como mulher forte e inteligente, que teve o
bom senso de retrucar com perguntas quando o anjo se dirigiu a ela, mulher que conheceu de
perto a pobreza e o sofrimento, a fuga e o exílio. Em meio a essas dificuldades, ela
consistentemente deu consentimento ativo e responsável ao chamado de Deus, fez escolhas
corajosas e trabalhou para fortalecer a fé dos outros. Em vez de ser piedosa de maneira submissa,
foi “uma mulher que não duvidou em afirmar que Deus é vingador dos humildes e dos oprimidos e
derruba dos seus tronos os poderosos do mundo” (§ 37). Na passagem mais citada dessa carta, o
papa declara então que, longe de endossar as peculiaridades da vida de Maria como exemplares, a
Igreja a apresenta aos fiéis como exemplo a ser imitado:
não exatamente pelo tipo de vida que ela levou ou, menos ainda, por causa do ambiente
sociocultural em que se desenrolou a sua existência, hoje superado quase por toda a parte; mas
Precedentes do modelo mariano atual 14

sim porque, nas condições concretas da sua vida, Ela aderiu total e responsavelmente à vontade de
Deus (cf. Lc 1,38); porque soube acolher a sua palavra e pô-la em prática; porque a sua ação foi
animada pela caridade e pelo espírito de serviço; e porque, em suma, Ela foi a primeira e a mais
perfeita discípula de Cristo (§ 35).
Em outras palavras, a posição dessa mulher na Galiléia do século I não é determinante para os
modos de ser e agir das mulheres no mundo de hoje. O que tem valor exemplar permanente e
universal é a maneira como ela seguiu o caminho de sua vida diante de Deus, o que pode instruir e
inspirar as respostas criativas das pessoas neste novo tempo. Somos inspirados por seu exemplo
porque somos todos humanos juntos. Maria é “da nossa estirpe”, “verdadeira filha de Eva”, na
verdade “nossa verdadeira irmã, que compartilhou plenamente, mulher humilde e pobre como foi,
a nossa condição” (§ 56).
Essa carta apostólica termina com uma confortante reflexão quanto ao valor do Rosário, oração
inspirada nos evangelhos, que se enquadra nas quatro diretrizes. Seu ritmo tranquilo e suas
repetições prolongadas concentram a mente e levam em conta a atenção contemplativa aos
mistérios da salvação. Entretanto, mesmo aqui é enfatizado um ponto vital: “Queremos
entretanto recomendar que, na difusão de tão salutar devoção, as suas reais proporções não
sejam nunca alteradas, e que jamais ela seja apresentada com inoportuno exclusivismo: o Rosário
é uma oração excelente, em relação à qual, contudo, os fiéis se devem sentir serenamente livres”
(§ 55). Já que é uma questão de espiritualidade, as pessoas são conduzidas pelo Espírito a rezar de
diversas maneiras, o que deve ser respeitado.
As quatro diretrizes de Paulo VI apresentadas à Igreja com tanta persuasão tratam
primordialmente de expressões concretas de devoção. Por causa da ligação orgânica entre
espiritualidade e teologia, creio que também formam um precedente para este projeto. Se essas
diretrizes servem para orientar a oração em uma direção certa, também podem orientar o
pensamento. Juntamente com os precedentes teológicos bíblicos, litúrgicos e cristãos primitivos
do primeiro milênio e com o precedente do concilio do fim do segundo milênio cujo ensinamento
essas diretrizes papais buscam aplicar, elas dão suporte à direção teológica deste livro, a saber,
uma teologia de Maria com uma visão unificadora que consiste em interpretá-la como amiga de
Deus e profeta dentro do círculo de todos os que procuram Deus, a comunidade dos santos vivos e
mortos.

1
Mencionada em IRENEU DE LIÃO, Contra as Heresias 1,7,2; ver 3,11,3. Essa disputa está relatada
em Mary in the New Testament, 270 (ver cap. I, nota 4).
2
KELLY, Early Christian Creeds, 144-146, 332-338 (ver cap. 5, nota 18); a frase "nascido da
Virgem Maria" foi colocada no antigo credo romano por volta de 175 a.C.
3
AGOSTINHO, Sermons, John Rotelle, org., trad. e notas Edmund HILL, Brooklyn, N.Y., New City
Press, 1990-1995, 3,288, Sermão 72A,7. 10 v.
4
Ibidem, 3,287.
5
GRAEF, Mary. A History of Doctrine and Devotion, 94-100 (ver cap. I, nota I); Kim POWER,
Veiled Desire; Augustine on Women, New York, Continuum, 1996, 171-2II (parte 5: "Mary"); e
E. Ann MATTER,"Women", in Augustine Through the Ages; An Encyclopedia, Allan FITZGERALD,
org., Grand Rapids, Eerdmans, 1999, 887-892.
6
AGOSTINHO, Sermons, 3, 288. Sermão 72A,8.
7
E. ANN MATTER, "THE VIRGIN MARY; A GODDESS?", IN THE BOOK OF THE GODDESS, PAST AND PRESENT, CARL
OLSEN, ORG., NEW YORK, CROSSROAD, 1990, 81.
Precedentes do modelo mariano atual 15

8
Leo SCHEFFCZYC, Das Mariettgeheimnis in Frommigkeit und Lehre der Karolingerzeit, Leipzig,
St. Benno Ver- lag, 1959.
9
PEIIKAN, Growth of Medieval Theology, 158-174 (ver cap. 4, nota 12); Oberman, Harvest of
Medieval Theology, 281-322 (ver cap. 4, nota 12); e Elizabeth JOHNSON, "Marian Devotion in
the Western Church", in Christian Spirituality, v. 2: High Middle Ages and Reformation, Jill
RAITT, org., New York, Crossroad, 1987, 392-414.
10
PEDRO DAMIÃO em Patrologiae cursus completus; Series latina, J. P. MLGNE, org., Paris,
1857-1866. 144,761, in GRAEF, Mary; A History of Doctrine and Devotion, 207.
11
BERNARDO DE CLARAVAL, "Sermo in Nativitate B.V Mariae (De aqueductu)", in Patrologiae cursus
completus; Series latina, 183,441.
12
GRAEF, Mary; A History of Doctrine and Devotion, 289.
13
BERNADINO DE SENA, “Sermo 5 De Nativitate B.M.V”. cap. 8 in Opera Omnia, Lugduni, 4,96.
14
René LAURENTIN, Queen of Heaven; A Short Treatise on Marían Theology, London, Burns, Oates
& Washbourne, 1956, 60.
15
NLGIDO, Summa sacrae Mariologiae pars prima, Panhormi, 1602; ver GRAEF, Mary; A History of
Doctrine and Devotion, 2,43. O exagero associado a essa palavra explica a preferência de hoje
pela frase teologia de Maria; ver Donal FLANAGAN, The Theology of Mary, Hales, Corner, Wis.,
Clergy Books Service, 1976.
16
Patrick BEARSLEY, "The Metamorphosis of Mariology", Clergy Review 69 (1984), 67.
17
The Papal Encyclicals; 1740-1981, v. 2, Claudia CARLEN, org., Wilmington, N.C., McGrath Pub.,
1981.
18
LAURENTIN, Question of Mary, 10 (ver cap. 2, nota 49); esse livro tem excelente análise do
movimento mariano e das duas tendências mariológicas opostas às vésperas do Concilio.
19
Ao escrever na época do Concilio Vaticano II, Laurentin salienta o choque dessas
recuperações: "Basta recordar a posição da Bíblia na vida da Igreja Católica trinta anos atrás.
Ela não só era negligenciada, mas ainda era voz corrente em certos círculos católicos que o
Antigo Testamento (ou mesmo a Bíblia toda) estava no índex. Quando jovem, ouvi essa
opinião repetida até por sacerdotes. Há bem pouco tempo, os jornais, até os católicos,
relataram sem o menor abalo as palavras de um convertido entusiasmadíssimo que lançou
um punhal e uma 'Bíblia protestante' aos pés de Pio XII, dizendo: 'Eis a arma com a qual eu
queria matar-te e o livro no qual aprendi meu falso ensinamento'. Nessa época, a publicação
de Bíblias católicas estava em maré baixa, em nítido contraste com a posição entre os
protestantes. Que longo caminho percorremos!" (Question of Mary, 33).
20
RAHNER, Mary, Mother of the Lord, 35 (ver cap. 5, nota 4).

Ibidem. 35-36.
22
Ibidem, 40. O ensaio original é seu "Le príncipe fondamental de la théologie mariale",
Recherches de Science Religieuse 42 (1954), 481-522.
Precedentes do modelo mariano atual 16

23
Ver a documentação completa em Commentary on the Documents of Vatican II,v.l, Herbert
VORGRIMLER» org., New York, Herder & Herder, 1967, em especial Gérard PHILIPS, "Dogmatic
Constitution on the Church; History of the Constitution", 105-137; e Otto SEMMELROTH,
"Chapter VIII; The Role of the Blessed Virgin Mary, Mother of God, in the Mystery of Christ
and the Church", 285- 296. Também History of Vatican II, v. 3, Giuseppe ALBERIGO & Joseph
KOMONCHAK, orgs., Maryknoll, N.Y., Orbis, 2000, 95-98, 366-372, 425-428. Relatos de
testemunhas oculares são reproduzidos por Karl RAHNER, "Zur konziliaren Mariology",
Stimmen der Zeit 174 (1964), 87-101; e René LAURENTIN, La Vierge au Concile, Paris,
Lethielleux, 1965.
24
LAURENTIN, Question of Mary, 136.
25
PHILIPS, in Commentary on the Documents of Vatican II, 1,125.
26
RAHNER, citado em History of Vatican II, 97-98.
27
LAURENTIN, Question of Mary, 137.
28
Ver detalhes em Elizabeth Johnson, "Mary as Mediatrix: History and Interpretation", in The
One Mediator, the Saints, and Mary, 311 -326 (ver cap. I, nota 4).
29
Mary HLNES, "Mary and the Prophetic Mission of the Church", Journal of Ecumenical Studies
28 (1991), 289.
30
Anne CARR, "Mary in the Mystery of the Church; Vatican Council II", in Mary according to
Women (ver cap. I, nota 35).
31
BORRESEN, "Mary in Catholic Theology", in Mary in the Churches, 54 (ver cap. 2, nota 25).
32
Stefano DE FIORES, "Mary in Postconciliar Theology", in Vatican II; Assessrnent and
Perspectives I, René LATOURELLE, org., New York, Paulist, 1988, 478.
33
Van DEN HENGEL, "Mary; Miriam of Nazareth or the Symbol of the Eternal Feminine?", 320.
34
PAULO VI, Carta Apostólica Marialis Cultus (O culto da Virgem Maria), São Paulo, Loyola, 1974.
35
Donal FLANAGAN observa que esse convite papal para uma nova visão foi feito a uma
mariologia em choque, se não em declínio, e não foi adotado em nenhum grau significativo
(“The Impact of Feminism on Mariology”, One in Christ 21 [1985], 75-78).

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