Você está na página 1de 14

O Magistério Do Papa Francisco e uma Hermenêutica Teológica da

COVID 19.

Paulo Fernando Carneiro de Andrade

1. Introdução

O Mundo foi surpreendido no inicio deste ano de 2020 por uma trágica e devastadora

pandemia originada por um novo vírus de alto poder de transmissão de pessoa a pessoa e

de significativa letalidade. A partir de seu surgimento na China a pandemia logo se

espalhou pela Ásia, Europa, Américas e África. As medidas sanitárias para tentar

controlar o contagio e reduzir o número de vítimas fatais tiveram de ser drásticas tendo

se adotado o isolamento social, o fechamento de fronteiras e o lockdown em muitos

países. O mundo mergulhou em uma crise assustadora, com graves consequências sociais,

políticas e econômicas. A crise sanitária está longe de ser resolvida, e as esperanças se

concentram na descoberta de uma vacina capaz de imunizar contra esta espécie de

Coronavirus.

Através de seu Magistérios expresso em um conjunto de homilias, cartas, mensagens

e ações, e de uma recente Encíclica. o Papa Francisco tem procurado oferecer aos

católicos e ao mundo orientações e consolo, que constituem uma profunda hermenêutica

teológica da atual pandemia. Neste artigo buscaremos apresentar o Magistério de Papa

Francisco sobre a COVID 19.


2

2. O Ensinamento do Papa Francisco

No dia 27 de março o Papa concedeu uma Benção Urbi et Orbis, como parte de um

momento extraordinário de oração no Adro da Basílica de São Pedro em Roma. Diante

de uma praça vazia, o papa orou e pronunciou uma profunda reflexão que assim se inicia:

“«Ao entardecer…» (Mc 4, 35): assim começa o Evangelho, que ouvimos. Desde há semanas
que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas
e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um
vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos,
dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. À semelhança dos discípulos do
Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda. Demo-nos
conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo
importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo
encorajamento. E, neste barco, estamos todos.”

Nesta reflexão emerge uma das primeiras imagens que Francisco usa no contexto da

Pandemia: estamos todos no mesmo barco. Esta mesma imagem havia sido usada em

referência à Pandemia pelo filósofo esloveno S. Zizek. Inusitadamente o jornal vaticano

L’Osservatore Romano publicou posteriormente, no dia 16 de março um artigo sobre

Zizek e um pequeno trecho de sua recente obra Pandemics. O Papa usa a metáfora da

barca, coligando-a com a passagem bíblica de Mc 4,35-41: quando os discípulos estavam,

ao cair da tarde, com Jesus em uma barca no Mar da Galileia (lago de Tiberíades)

sobrevém uma grande tempestade que lhes enche de medo. Acordam Jesus que dormia e

pedem para que Jesus lhes salvem. Estamos todos em uma mesma barca, pertencemos

todos a uma casa comum, como o Pontífice afirma na encíclica Laudato Sí. O Papa

afirma, como Zizek também, que não existe uma saída possível da Pandemia que não seja

comunitária, solidária. A pandemia afeta de modo radical todas as vidas e expõe a nem

sempre percebida interligação de todos e de tudo e a impossibilidade de se buscar

individualisticamente uma saída para esta grave crise.


3

O Pontífice também afirma: “A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e

deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos

programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades” Aqui a metáfora da

tempestade nos remete à tríade lacaniana do Real, do Simbólico e do Imaginário e ao

conceito de Acontecimento (Evento) tal como Zizek tratou em seu livro Event (A

Philosophical Journey Trough a Concept) de 2014 . O Real da Pandemia, invade e

desestrutura nosso Imaginário e nossa organização Simbólica. Ela desvela toda a

desordem de uma economia que mata ao pobre, exclui os vulneráveis e destrói a Mãe

Terra, gerando uma cultura do descarte e da busca de realização individual a qualquer

custo, como Francisco havia denunciado no discurso por ele pronunciado no seu Segundo

Encontro com os Movimentos Populares, em julho de 2015 na Bolívia. Esta economia

estruturou nossas vidas e relações, construindo um mundo de exploração e exclusão, que

se passa por justo e asséptico.

Na carta que escreveu aos sacerdotes da Diocese de Roma em 31 de maio o Papa usa

outra metáfora, a da janela, ao afirmar “Todos nós ouvimos os números e as percentagens

que, dia após dia, nos assaltavam; tocamos com as próprias mãos a dor do nosso povo.

Não eram dados distantes: as estatísticas tinham nomes, rostos, histórias partilhadas.

Como comunidade sacerdotal não éramos alheios a esta realidade e não a víamos pela

janela; encharcados pela tempestade que enfurecia, esforçastes-vos para estar presentes

e acompanhar as vossas comunidades: vistes o lobo que chegava e não fugistes nem

abandonastes o rebanho (cf. Jo 10, 12-13)”. Este é outro tema que nos remete e Zizek e

a Lacan. Em uma obra de 1991, Looking Awry. An Introduction to Jacques Lacan through

Popular Culture, publicada também em espanhol em Buenos Aires (ED Paidós) em 2000,

Zizek trata este tema tendo como referencia a novela de ficção científica A Desagradável
4

Profissão de Jonathan Hoag escrita por Robert Heinlein. Nela um casal de detetives

depois de encontrar um homem morto, que era um de seus contatos, prossegue assustado

o seu caminho:

Mas nós não podemos apenas deixá-lo aqui!” Randall insistiu alguns minutos depois.
“Teddy, ele sabia o que estava fazendo. O que devemos fazer é seguir suas instruções.”
“Bem – nós podemos parar em Waukegan e avisar a polícia.”
“Contar a eles que nós deixamos um homem morto em uma colina? Você acha que eles diriam, ‘Tudo
bem’, e deixariam nós irmos embora? Não, Teddy – apenas faremos o que ele nos disse para fazer.”
“Querida – você acredita nessa coisa toda que ele esteve nos contando?”
Ela olhou em seus olhos, seus próprios cheios de lágrimas, e disse, “Você acredita? Seja honesto
comigo, Teddy.”
Ele encontrou seu olhar por um momento, então baixou os olhos e disse. “Ah, deixe para lá! Nós faremos
o que ele disse. Entre no carro.”
A neblina que parecia ter engolido a cidade não era visível quando eles desceram a colina e voltaram até
Waukegan, e não a viram também quando viraram para o sul e dirigiram através da cidade. O dia estava
claro e ensolarado, como tinha sido no começo da manhã, apenas com frio suficiente para fazer com que
a sugestão de Hoag sobre deixar as janelas fechadas parecesse com bom senso.
Eles pegaram a rota do lago sul, pulando o trevo, com o objetivo de continuar para o sul até que
estivessem fora da cidade. O tráfego tinha aumentado um pouco em relação ao que estava no meio da
manhã; Randall forçou-se a dar mais atenção ao volante. Nenhum deles sentia-se com vontade de
conversar, e isso forneceu uma boa desculpa para não o fazer.
Eles deixaram o trevo para trás quando Randall falou, “Cynthia –”
“Sim.”
“Nós deveríamos contar a alguém. Eu vou pedir ao próximo policial pelo qual passarmos para chamar a
delegacia de Waukegan.”
“Teddy!”
“Não se preocupe. Eu vou dar a ele alguma dica que o fará investigar sem que suspeite de nós. O velho
correr-em-torno-do- rabo [31] – você sabe.”
Ela sabia que seus poderes de invenção eram férteis o suficiente para tal trabalho; ela não objetou mais.
Alguns blocos mais tarde Randall viu um patrulheiro parado no acostamento, aquecendo-se no sol, e
observando alguns garotos jogando football. Ele estacionou o carro atrás dele. “Abaixe a janela, Cyn.”
Ela obedeceu, então deu uma curta inspiração e engoliu um grito. Ele não gritou, mas gostaria de gritar.
Do lado de fora da janela aberta não havia luz do sol, policiais ou garotos – nada. Nada além de uma
névoa cinzenta e disforme, pulsando lentamente com vida incipiente. Eles não podiam ver nada da cidade
através disso, não porque fosse muito densa, mas porque estava – vazio.
Nenhum som saiu disso; nenhum movimento aparecia.
A coisa misturou-se com a moldura da janela e começou a deslizar para dentro. Randall gritou, “Feche a
janela!” Ela tentou obedecer, mas suas mãos não obedeciam; ele esticou o braço e tentou fechar a janela
ele mesmo, batendo ela firmemente em seu lugar.
A cena ensolarada foi restaurada; através do vidro eles viram o patrulheiro, o jogo dos garotos, o
acostamento, e a cidade além. Cynthia colocou uma mão em seu braço. “Dirija Teddy!”
“Espere um minuto,” ele disse tenso, e virou-se para a janela ao seu lado. Muito cuidadosamente ele a
abaixou – apenas uma fresta, menos de dois centímetros.
Foi o suficiente. A névoa cinzenta disforme estava fora, também; através do vidro o tráfego da cidade e a
rua ensolarada eram claros, através da fresta – nada.
“Dirija Teddy, por favor!”
Ela não precisava mais apressá-lo; ele já estava disparando o carro para frente com um tranco.

A janela separa o dentro e o fora provocando uma descontinuidade entre o interior

confortável e ordenado do carro e a desordem de fora (o Real). Ela serve de redoma onde

projetamos a fantasia e protegemos o nosso mundo (a nossa bolha) estruturado pelo nosso

imaginário e pela ordem simbólica. Ver o mundo pela janela é preservar, como afirma o
5

Papa, o nosso mundo asséptico do contato com a realidade, melhor falando, com o Real

da dor e do sofrimento do Outro. Os Pastores não podem fazer isto. Eles devem ir ao

encontro de suas ovelhas, abrir, romper a janela. Assim afirma Francisco nesta mesma

Carta: “Foi posta em questão a narrativa de uma sociedade de profilaxia, imperturbável

e sempre pronta para o consumo indefinido, revelando a falta de imunidade cultural e

espiritual diante dos conflitos.”

Francisco afirma ainda: “Experimentamos a nossa própria vulnerabilidade e

impotência. Tal como o forno testa os vasos do oleiro, também nós fomos postos à prova

(cf. Sr 27, 5). Desnorteados por tudo o que acontecia, sentimos de forma amplificada a

precariedade da nossa vida e dos nossos compromissos apostólicos. A imprevisibilidade

da situação pôs em evidencia a nossa incapacidade de viver e de enfrentar o

desconhecido, com aquilo que não podemos governar ou controlar e, como todos,

sentimo-nos confusos, assustados, indefesos”

Francisco nos diz que diante desta realidade descobrimos a nossa fragilidade: “A

complexidade do que tínhamos de enfrentar não tolerava receitas nem respostas de

manuais; exigia muito mais do que exortações fáceis ou discursos edificantes, incapazes

de criar raízes e de assumir conscientemente tudo o que a vida concreta exigia de nós. A

dor do nosso povo feriu-nos, as suas incertezas atingiram-nos, a nossa fragilidade

comum despojou-nos de qualquer falsa complacência idealista ou espiritualista, bem

como de toda a tentativa de fuga puritana. Ninguém é alheio a tudo o que acontece.

Podemos dizer que vivemos comunitariamente a hora do pranto do Senhor: choramos

diante do túmulo do amigo Lázaro (cf. Jo 11, 35), perante o fechamento do seu povo (cf.

Lc 13, 14; 19, 41), na noite escura do Getsémani (cf. Mc 14, 32-42; Lc 22, 44). É também
6

a hora do pranto do discípulo perante o mistério da Cruz e do mal que atinge muitos

inocentes. É o choro amargo de Pedro depois da negação (cf. Lc 22, 62) e de Maria

Madalena diante do sepulcro (cf. Jo 20, 11). “

Este é um tempo de dor. O Papa afasta-se de qualquer interpretação apocalíptica. Na

já mencionada Benção Urbi et Orbis de 27 de março ele afirmou: (Senhor) “Chama-nos

a aproveitar este tempo de prova como um tempo de decisão. Não é o tempo do teu juízo,

mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é

necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor,

e aos outros”. A Pandemia, como o Real que invade os registros Simbólico e Imaginário,

se constitui em um evento profundamente traumático, provoca uma crise, uma ruptura.

Não se trata do tempo do juízo de Deus sobre a humanidade. Este é o tempo do nosso

juízo, o tempo no qual inevitavelmente temos de nos decidir. Ao desvelar nossas

fragilidades e as ilusões de um mundo que construímos sobre a morte, a dor, a destruição

e a exclusão, somos convocados, como única possibilidade de sobrevivência, a apostar

na vida, na solidariedade, a nos fazermos próximos das vítimas, a socorrer os vulneráveis.

E neste caminho, estamos como na noite do Sábado, que sucedeu a Crucifixão e

antecedeu a Ressurreição. Noite de medo, de sentimento de abandono, como o Papa

expressou em sua outra Mensagem Urbi et Orbis, desta vez por ocasião da Páscoa. Nesta

noite escura da humanidade encontramos aqueles que como as mulheres que saíram na

noite, na Madrugada (Mc 16, 1-3), para ungir o Corpo de Jesus, arriscam a vida para

aliviar a nossa dor, salvar vidas, estar vizinho aos que sofrem e aos que estão morrendo.

O Papa os enumera: são médicos, enfermeiros, paramédicos, os que cuidam da limpeza e

assepsia dos hospitais e locais públicos, e também os que mantêm os serviços essenciais,
7

a segurança, o transporte de bens e serviços necessários à manutenção da vida, as pessoas

que cuidam de idosos e vulneráveis. Todos aqueles que de algum modo ajudam a

preservar a vida ou ajudam a suportar o sofrimento e a dor cuidam de nós, oferecem a

unção da crisma.

Ao Sábado sucedeu o Domingo da Ressureição. Na já citada Carta aos sacerdotes de

Roma o Papa nos recorda: “«Chegou Jesus, pôs-se no meio deles, e disse-lhes: “A paz

seja convosco”. E, dizendo isto, mostrou-lhes as suas mãos e o seu lado. Os discípulos

alegraram-se, vendo o Senhor. Disse-lhes, pois, Jesus novamente: “A paz seja

convosco!”» (Jo 20, 19-21).

O Senhor não escolheu nem procurou uma situação ideal para entrar na vida dos seus

discípulos. Certamente teríamos preferido que tudo o que aconteceu não tivesse ocorrido,

mas aconteceu; e assim como os discípulos de Emaús, também nós podemos continuar a

murmurar com tristeza pelo caminho (cf. Lc 24, 13-21). Ao aparecer no Cenáculo com

as portas fechadas, no meio do isolamento, do medo e da insegurança em que viviam, o

Senhor foi capaz de transformar toda a logica e dar um novo sentido à história e aos

acontecimentos. Qualquer tempo é adequado para a proclamação da paz, nenhuma

circunstância está desprovida da sua graça. A sua presença no meio do confinamento e

das ausências forcadas anuncia, tanto para os discípulos de ontem como para nós hoje,

um novo dia capaz de questionar a imobilidade e a resignação, e de mobilizar todos os

dons ao serviço da comunidade. Com a sua presença, o confinamento tornou-se fecundo,

dando vida à nova comunidade apostólica.”


8

Afirma ainda Francisco: “Que as mãos chagadas do Ressuscitado consolem as nossas

tristezas, elevem a nossa esperança e nos impulsionem a procurar o Reino de Deus para

além dos nossos refúgios habituais.”

Nestas passagens se coloca de forma extraordinária a realidade proclamada na Fé

Cristã de que o Ressuscitado é o Crucificado, com suas chagas, suas feridas, sua vida de

proximidade com os pobres e marginalizados, história de vida que se inscreve em seu

corpo ferido, carregado de chagas e cicatrizes, que se fazem realidade tangivel no

Ressuscitado, ao ponto de Tomé o reconhecer justamente ao tocar em suas feridas. No

corpo dos enfermos de hoje Francisco nos convoca a ver e encontrar a Jesus. O necessário

afastamento social devido à Pandemia não pode nos levar a temer o Outro, mas nos deve

tornar mais próximo do sofrimento. Aqui coloca-se a tensão entre isolamento e

proximidade. Tema que coincidentemente também trata Zizek no artigo publicado no

L’Osservatore Romano.

Neste tempo de pandemia, por ocasião da Páscoa, o Papa escreveu,

extraordinariamente, um pequeno ensaio para a revista cristã Vida Nueva que se intitula

Um Plano para Ressuscitar (17 de abril). Ali Francisco retornou o tema da unção: “Vimos

la unción derramada por médicos, enfermeros y enfermeras, reponedores de góndolas,

limpiadores, cuidadores, transportistas, fuerzas de seguridad, voluntarios, sacerdotes,

religiosas, abuelos y educadores y tantos otros que se animaron a entregar todo lo que

poseían para aportar un poco de cura, de calma y alma a la situación.” São pessoas que,

como as mulheres que foram ao sepulcro ungir Jesus, venceram o medo e não ficaram

paralisadas pela desesperança. Francisco escreve que ainda que todos tivessem a mesma

pergunta feita pelas mulheres enquanto caminhavam para o túmulo de Jesus, “¿Quién
9

nos correrá́ la piedra del sepulcro?” (Mc 16, 3), todos ellos no dejaron de hacer lo que

sentían que podían y tenían que dar”.

E então Francisco afirma que “este é um tempo propício para encontrar a coragem de

uma nova imaginação do possível, com o realismo que só o evangelho pode nos

oferecer.” Trata-se de uma exortação para uma profunda mudança de rumo de toda a

humanidade. Se antes o Papa, na Encíclica Laudato Sí e nos discurso feitos por ocasião

dos Encontros com os Movimentos Populares, denunciava o sistema econômico concreto

em que vivemos como um sistema que se tornou Global, que se configura em estruturas

econômicas, políticas e sociais que Matam, Excluem e Destroem, agora ele com mais

ênfase nos convoca a ir além, a imaginar “um outro mundo possível” como o lema do

Fórum Social Mundial. O mundo de antes da Pandemia não pode ser reconstruído.

Segundo Francisco este evento traumático nos dá a possibilidade de nos reconciliarmos

enquanto humanidade conosco mesmo, com a Mãe Terra e com todo o Criado.

Em nove Audiências Gerais, entre 5 de agosto e 30 de setembro, o Papa volta a abordar

a questão da pandemia. Estas Audiências foram chamadas de Catequeses “Curar o

Mundo” e tiveram desenvolveram os seguintes temas:

i) Introdução (5/8)

ii) Fé e Dignidade Humana (12/8)

iii) A Opção Preferencial pelos Pobres e a Virtude da Caridade (19/8)

iv) O Destino Universal dos Bens e a Virtude da Esperança (26/8)

v) A Solidariedade e a Virtude da Fé (2/9)

vi) Amor e Bem Comum (9/9)

vii) Cuidado da Casa Comum e Atitude Contemplativa (16/9)


10

viii) Subsidiariedade e Virtude da Esperança (23/9)

ix) Prepara o Futuro com Jesus que Salva e Cura (30/9)

Nestas Catequeses o Papa retoma algumas ideias centrais que havia desenvolvido

sobre a pandemia e aprofunda alguns temas. A pandemia irrompe em nosso mundo e em

nossa época como um Evento que abre uma profunda crise. Atravessando uma crise de

tal magnitude nunca saímos dela do mesmo modo como entramos. Podemos sair melhores

ou piores. A crise não é um Juízo, um castigo de Deus para a humanidade, mas ela abre

uma ocasião de juízo. Diante dela somos chamados a tomarmos uma posição clara. A

pandemia revela ao mesmo tempo nossa interdependência e a doença que nos atinge, e

que não se reduz ao vírus letal. A pandemia revela que vivemos em um mundo doente,

cujas estruturas econômicas matam as pessoas e destroem a Mãe Terra. Um Mundo

profundamente desigual e injusto. Embora estejamos todos no mesmo barco, como

estavam todos os passageiros no Tinanic, não estamos na mesma classe. Alguns tem a

disposição potentes botes salva vidas, víveres e condições de enfrentar a crise com poucos

riscos, outros encontram quase que inevitavelmente a morte, sofrem devido a pandemia,

violentamente, a fome e o desamparo. Ao desvelar isto, a pandemia nos oferece uma

grande oportunidade de mudar a realidade. Para mudar esta realidade é necessário

instaurar novas estruturas em que o principio da fraternidade seja a base, e que os que

hoje são excluídos e descartados tenham lugar como sujeitos. Os princípios da Opção

pelos Pobres, da identificação entre os Pobres e Cristo e da Destinação Universal dos

Bens é fortemente sublinhado. O Papa faz também uma interpretação nova do princípio

da subsidiariedade. Este princípio inclui para Francisco tornar os membros mais

vulneráveis de nossa sociedade sujeitos de seus destinos. Trata-se de torna-los

protagonistas. Não se reduzir a ser a voz do que não tem voz, mas buscar dar voz aos que

não tem voz. A sociedade deve ser construída de baixo para cima. Do mesmo modo o
11

princípio da Destinação Universal dos Bens implica que todos tem direito aos cuidados

necessário à vida e que a vacina que tanto se busca não pode ser propriedade de um grupo

ou país, mas que deve ser acessível a todos. Jesus médico nos oferece a cura de nossas

doenças físicas, espirituais e sociais.

Também em Setembro o Papa abordou o tema da Pandemia, no dia 25, na Mensagem

que dirigiu à Abertura da 75a Assembleia Geral das Nações Unidas. Na sua mensagem, o

Papa sublinha:

“Atualmente, o nosso mundo está afetado pela pandemia da Covid-19, o que levou à perda de

muitas vidas. Esta crise está a mudar o nosso modo de vida, questionando os nossos sistemas

econômicos, de saúde e sociais, e expondo a nossa fragilidade como criaturas.

Com efeito, a pandemia chama-nos «a aproveitar este tempo de prova como um tempo de

decisão [...]: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo

que não o é»[2]. Pode representar uma oportunidade real para a conversão, a transformação,

para repensar o nosso modo de vida e os nossos sistemas econômicos e sociais, que estão a

alargar a distância entre pobres e ricos, raiz de uma injusta distribuição dos recursos. Mas

também pode ser uma possibilidade para uma “retirada defensiva” com caraterísticas

individualistas e elitistas.

Portanto, deparamo-nos com a escolha entre um dos dois caminhos possíveis: um conduz ao

fortalecimento do multilateralismo, expressão de uma renovada corresponsabilidade mundial,

de uma solidariedade baseada na justiça e no cumprimento da paz e da unidade da família

humana, projeto de Deus para o mundo; o outro dá preferência às atitudes de autossuficiência,

nacionalismo, protecionismo, individualismo e isolamento, deixando de fora os mais pobres, os

mais vulneráveis, os habitantes das periferias existenciais. E será certamente prejudicial para

toda a comunidade, causando danos a todos. E isto não deve prevalecer.”

Neste contexto e dirigindo-se a todos os membros da Assembleia o Papa apela aos

responsáveis políticos e ao setor privado para que “tomem as medidas adequadas para
12

assegurar o acesso às vacinas contra a Covid-19 e às tecnologias essenciais necessárias

para cuidar dos enfermos. E se alguém deve ser privilegiado, que seja o mais pobre, o

mais vulnerável, aquele que é normalmente discriminado porque não tem poder nem

recursos econômicos.”

Nesta Mensagem o Papa expressa mais uma vez sua preocupação com o Mundo pós

pandemia. A pandemia torna-se uma grande ocasião para que tomemos consciência de

que o rumo no qual o Mundo se encontra nos leva a uma situação catastrófica. Uma

economia que Mata os vulneráveis e que destrói a Natureza agrava de modo radical os

efeitos do Coronavírus. Passada a pandemia não podemos retornar a mesma situação

anterior. É necessário também que de imediato a cura da pandemia seja disponibilizada a

todos, de modo especial aos mais pobres.

No dia 3 de Outubro o Papa em Assis assina e promulga sua nova Encíclica Fratelli

Tutti. O tema central da Encíclica é o da afirmação de que somos todos irmãos e irmãs,

não obstante todas as diferenças étnicas, culturais, religiosas, de nacionalidade, condição

econômica e social. Esta realidade implica em um dever de corresponsabilidade,

solidariedade e compaixão. Ao tratar na Encíclica da pandemia do COVID 19 (ns 32-36),

o Papa ressalta mais uma vez como ela desvelou a tragédia do Mundo em que vivemos,

marcado profundamente pela desigualdade, pela cultura do descarte e a agressão e

destruição da natureza para o benefício de uns poucos, e nos mostrou como tudo e todos

estamos interligados, de tal modo que não é possível pensar em uma saída da crise sem

pensar no conjunto da humanidade e em nossa relação com a Mãe Terra. Diante da

pandemia é impossível sustentar como “alguns pretendiam fazer-nos crer que era

suficiente a liberdade de mercado para garantir tudo”.


13

O Papa alerta mais uma vez:

35. “Passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e

em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam «os outros», mas apenas

um «nós». Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de

aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores, em

parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá

não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e

descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade

renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos.

36. Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença

e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão

global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio. Além disso, não se deveria

ignorar, ingenuamente, que «a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando

poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição

recíproca».[35] O princípio «salve-se quem puder» traduzir-se-á rapidamente no lema «todos

contra todos», e isso será pior que uma pandemia”

3. Conclusão

Podemos agora para concluir apresentar de foram concisa os elementos fundamentais

de uma hermeutica teológica contidas no Magistério do Papa Francisco:

i) A Pandemia do COVID 19 não é resultado de um castigo de Deus sobre a

humanidade

ii) Não é um juízo sobre a humanidade, mas um Evento traumático, uma Crise

inimaginável, que abre uma ocasião de Juízo.


14

iii) Como diante desta crise nos posicionamos? Negamos a Crise, buscamos um

refúgio seguro e uma saída individual, ou reconhecendo que estamos todos no

mesmo barco, e que a solidariedade nos impõe o mutuo socorro, a compaixão,

o cuidado de todos, de modo especial dos mais frágeis?

iv) A pandemia não é limitada ao vírus. Ela expõe um Mundo doente. Ele exige

para sua superação o fim de uma estrutura econômica e de poder frontalmente

contrária aos desígnios de Deus. Uma estrutura que exclui, mata e destrói a

natureza.

v) São os pobres e os vulneráveis os mais atingidos pela Crise. A fé nos revela

que Cristo se identifica com os Pobres e neles Cristo sofre. Todos somos

convocados ao cuidado fraterno, de modo especial ao cuidado dos mais

vulneráveis.

vi) Desta Crise podemos sair melhores ou piores, como pessoas, como Igreja e

como humanidade.

vii) Os princípios da Opção pelos Pobres e da Destinação Universal dos Bens,

assim como da Subsidiariedade devem nos guiar na construção de um Novo

Mundo Possível, segundo o desejo de Deus para toda sua Criação.

Você também pode gostar