Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
COVID 19.
1. Introdução
O Mundo foi surpreendido no inicio deste ano de 2020 por uma trágica e devastadora
pandemia originada por um novo vírus de alto poder de transmissão de pessoa a pessoa e
espalhou pela Ásia, Europa, Américas e África. As medidas sanitárias para tentar
controlar o contagio e reduzir o número de vítimas fatais tiveram de ser drásticas tendo
países. O mundo mergulhou em uma crise assustadora, com graves consequências sociais,
Coronavirus.
e ações, e de uma recente Encíclica. o Papa Francisco tem procurado oferecer aos
No dia 27 de março o Papa concedeu uma Benção Urbi et Orbis, como parte de um
de uma praça vazia, o papa orou e pronunciou uma profunda reflexão que assim se inicia:
“«Ao entardecer…» (Mc 4, 35): assim começa o Evangelho, que ouvimos. Desde há semanas
que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas
e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um
vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos,
dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. À semelhança dos discípulos do
Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda. Demo-nos
conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo
importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo
encorajamento. E, neste barco, estamos todos.”
Nesta reflexão emerge uma das primeiras imagens que Francisco usa no contexto da
Pandemia: estamos todos no mesmo barco. Esta mesma imagem havia sido usada em
Zizek e um pequeno trecho de sua recente obra Pandemics. O Papa usa a metáfora da
ao cair da tarde, com Jesus em uma barca no Mar da Galileia (lago de Tiberíades)
sobrevém uma grande tempestade que lhes enche de medo. Acordam Jesus que dormia e
pedem para que Jesus lhes salvem. Estamos todos em uma mesma barca, pertencemos
todos a uma casa comum, como o Pontífice afirma na encíclica Laudato Sí. O Papa
afirma, como Zizek também, que não existe uma saída possível da Pandemia que não seja
comunitária, solidária. A pandemia afeta de modo radical todas as vidas e expõe a nem
conceito de Acontecimento (Evento) tal como Zizek tratou em seu livro Event (A
desordem de uma economia que mata ao pobre, exclui os vulneráveis e destrói a Mãe
custo, como Francisco havia denunciado no discurso por ele pronunciado no seu Segundo
Na carta que escreveu aos sacerdotes da Diocese de Roma em 31 de maio o Papa usa
que, dia após dia, nos assaltavam; tocamos com as próprias mãos a dor do nosso povo.
Não eram dados distantes: as estatísticas tinham nomes, rostos, histórias partilhadas.
Como comunidade sacerdotal não éramos alheios a esta realidade e não a víamos pela
janela; encharcados pela tempestade que enfurecia, esforçastes-vos para estar presentes
e acompanhar as vossas comunidades: vistes o lobo que chegava e não fugistes nem
abandonastes o rebanho (cf. Jo 10, 12-13)”. Este é outro tema que nos remete e Zizek e
a Lacan. Em uma obra de 1991, Looking Awry. An Introduction to Jacques Lacan through
Popular Culture, publicada também em espanhol em Buenos Aires (ED Paidós) em 2000,
Zizek trata este tema tendo como referencia a novela de ficção científica A Desagradável
4
Profissão de Jonathan Hoag escrita por Robert Heinlein. Nela um casal de detetives
depois de encontrar um homem morto, que era um de seus contatos, prossegue assustado
o seu caminho:
Mas nós não podemos apenas deixá-lo aqui!” Randall insistiu alguns minutos depois.
“Teddy, ele sabia o que estava fazendo. O que devemos fazer é seguir suas instruções.”
“Bem – nós podemos parar em Waukegan e avisar a polícia.”
“Contar a eles que nós deixamos um homem morto em uma colina? Você acha que eles diriam, ‘Tudo
bem’, e deixariam nós irmos embora? Não, Teddy – apenas faremos o que ele nos disse para fazer.”
“Querida – você acredita nessa coisa toda que ele esteve nos contando?”
Ela olhou em seus olhos, seus próprios cheios de lágrimas, e disse, “Você acredita? Seja honesto
comigo, Teddy.”
Ele encontrou seu olhar por um momento, então baixou os olhos e disse. “Ah, deixe para lá! Nós faremos
o que ele disse. Entre no carro.”
A neblina que parecia ter engolido a cidade não era visível quando eles desceram a colina e voltaram até
Waukegan, e não a viram também quando viraram para o sul e dirigiram através da cidade. O dia estava
claro e ensolarado, como tinha sido no começo da manhã, apenas com frio suficiente para fazer com que
a sugestão de Hoag sobre deixar as janelas fechadas parecesse com bom senso.
Eles pegaram a rota do lago sul, pulando o trevo, com o objetivo de continuar para o sul até que
estivessem fora da cidade. O tráfego tinha aumentado um pouco em relação ao que estava no meio da
manhã; Randall forçou-se a dar mais atenção ao volante. Nenhum deles sentia-se com vontade de
conversar, e isso forneceu uma boa desculpa para não o fazer.
Eles deixaram o trevo para trás quando Randall falou, “Cynthia –”
“Sim.”
“Nós deveríamos contar a alguém. Eu vou pedir ao próximo policial pelo qual passarmos para chamar a
delegacia de Waukegan.”
“Teddy!”
“Não se preocupe. Eu vou dar a ele alguma dica que o fará investigar sem que suspeite de nós. O velho
correr-em-torno-do- rabo [31] – você sabe.”
Ela sabia que seus poderes de invenção eram férteis o suficiente para tal trabalho; ela não objetou mais.
Alguns blocos mais tarde Randall viu um patrulheiro parado no acostamento, aquecendo-se no sol, e
observando alguns garotos jogando football. Ele estacionou o carro atrás dele. “Abaixe a janela, Cyn.”
Ela obedeceu, então deu uma curta inspiração e engoliu um grito. Ele não gritou, mas gostaria de gritar.
Do lado de fora da janela aberta não havia luz do sol, policiais ou garotos – nada. Nada além de uma
névoa cinzenta e disforme, pulsando lentamente com vida incipiente. Eles não podiam ver nada da cidade
através disso, não porque fosse muito densa, mas porque estava – vazio.
Nenhum som saiu disso; nenhum movimento aparecia.
A coisa misturou-se com a moldura da janela e começou a deslizar para dentro. Randall gritou, “Feche a
janela!” Ela tentou obedecer, mas suas mãos não obedeciam; ele esticou o braço e tentou fechar a janela
ele mesmo, batendo ela firmemente em seu lugar.
A cena ensolarada foi restaurada; através do vidro eles viram o patrulheiro, o jogo dos garotos, o
acostamento, e a cidade além. Cynthia colocou uma mão em seu braço. “Dirija Teddy!”
“Espere um minuto,” ele disse tenso, e virou-se para a janela ao seu lado. Muito cuidadosamente ele a
abaixou – apenas uma fresta, menos de dois centímetros.
Foi o suficiente. A névoa cinzenta disforme estava fora, também; através do vidro o tráfego da cidade e a
rua ensolarada eram claros, através da fresta – nada.
“Dirija Teddy, por favor!”
Ela não precisava mais apressá-lo; ele já estava disparando o carro para frente com um tranco.
confortável e ordenado do carro e a desordem de fora (o Real). Ela serve de redoma onde
projetamos a fantasia e protegemos o nosso mundo (a nossa bolha) estruturado pelo nosso
imaginário e pela ordem simbólica. Ver o mundo pela janela é preservar, como afirma o
5
Papa, o nosso mundo asséptico do contato com a realidade, melhor falando, com o Real
da dor e do sofrimento do Outro. Os Pastores não podem fazer isto. Eles devem ir ao
encontro de suas ovelhas, abrir, romper a janela. Assim afirma Francisco nesta mesma
impotência. Tal como o forno testa os vasos do oleiro, também nós fomos postos à prova
(cf. Sr 27, 5). Desnorteados por tudo o que acontecia, sentimos de forma amplificada a
desconhecido, com aquilo que não podemos governar ou controlar e, como todos,
Francisco nos diz que diante desta realidade descobrimos a nossa fragilidade: “A
manuais; exigia muito mais do que exortações fáceis ou discursos edificantes, incapazes
de criar raízes e de assumir conscientemente tudo o que a vida concreta exigia de nós. A
como de toda a tentativa de fuga puritana. Ninguém é alheio a tudo o que acontece.
diante do túmulo do amigo Lázaro (cf. Jo 11, 35), perante o fechamento do seu povo (cf.
Lc 13, 14; 19, 41), na noite escura do Getsémani (cf. Mc 14, 32-42; Lc 22, 44). É também
6
a hora do pranto do discípulo perante o mistério da Cruz e do mal que atinge muitos
inocentes. É o choro amargo de Pedro depois da negação (cf. Lc 22, 62) e de Maria
a aproveitar este tempo de prova como um tempo de decisão. Não é o tempo do teu juízo,
mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é
necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor,
e aos outros”. A Pandemia, como o Real que invade os registros Simbólico e Imaginário,
Não se trata do tempo do juízo de Deus sobre a humanidade. Este é o tempo do nosso
expressou em sua outra Mensagem Urbi et Orbis, desta vez por ocasião da Páscoa. Nesta
noite escura da humanidade encontramos aqueles que como as mulheres que saíram na
noite, na Madrugada (Mc 16, 1-3), para ungir o Corpo de Jesus, arriscam a vida para
aliviar a nossa dor, salvar vidas, estar vizinho aos que sofrem e aos que estão morrendo.
assepsia dos hospitais e locais públicos, e também os que mantêm os serviços essenciais,
7
que cuidam de idosos e vulneráveis. Todos aqueles que de algum modo ajudam a
unção da crisma.
Roma o Papa nos recorda: “«Chegou Jesus, pôs-se no meio deles, e disse-lhes: “A paz
seja convosco”. E, dizendo isto, mostrou-lhes as suas mãos e o seu lado. Os discípulos
O Senhor não escolheu nem procurou uma situação ideal para entrar na vida dos seus
discípulos. Certamente teríamos preferido que tudo o que aconteceu não tivesse ocorrido,
mas aconteceu; e assim como os discípulos de Emaús, também nós podemos continuar a
murmurar com tristeza pelo caminho (cf. Lc 24, 13-21). Ao aparecer no Cenáculo com
Senhor foi capaz de transformar toda a logica e dar um novo sentido à história e aos
das ausências forcadas anuncia, tanto para os discípulos de ontem como para nós hoje,
tristezas, elevem a nossa esperança e nos impulsionem a procurar o Reino de Deus para
Cristã de que o Ressuscitado é o Crucificado, com suas chagas, suas feridas, sua vida de
corpo dos enfermos de hoje Francisco nos convoca a ver e encontrar a Jesus. O necessário
afastamento social devido à Pandemia não pode nos levar a temer o Outro, mas nos deve
L’Osservatore Romano.
extraordinariamente, um pequeno ensaio para a revista cristã Vida Nueva que se intitula
Um Plano para Ressuscitar (17 de abril). Ali Francisco retornou o tema da unção: “Vimos
religiosas, abuelos y educadores y tantos otros que se animaron a entregar todo lo que
poseían para aportar un poco de cura, de calma y alma a la situación.” São pessoas que,
como as mulheres que foram ao sepulcro ungir Jesus, venceram o medo e não ficaram
paralisadas pela desesperança. Francisco escreve que ainda que todos tivessem a mesma
pergunta feita pelas mulheres enquanto caminhavam para o túmulo de Jesus, “¿Quién
9
nos correrá́ la piedra del sepulcro?” (Mc 16, 3), todos ellos no dejaron de hacer lo que
E então Francisco afirma que “este é um tempo propício para encontrar a coragem de
uma nova imaginação do possível, com o realismo que só o evangelho pode nos
oferecer.” Trata-se de uma exortação para uma profunda mudança de rumo de toda a
humanidade. Se antes o Papa, na Encíclica Laudato Sí e nos discurso feitos por ocasião
em que vivemos como um sistema que se tornou Global, que se configura em estruturas
econômicas, políticas e sociais que Matam, Excluem e Destroem, agora ele com mais
ênfase nos convoca a ir além, a imaginar “um outro mundo possível” como o lema do
Fórum Social Mundial. O mundo de antes da Pandemia não pode ser reconstruído.
enquanto humanidade conosco mesmo, com a Mãe Terra e com todo o Criado.
i) Introdução (5/8)
Nestas Catequeses o Papa retoma algumas ideias centrais que havia desenvolvido
nossa época como um Evento que abre uma profunda crise. Atravessando uma crise de
tal magnitude nunca saímos dela do mesmo modo como entramos. Podemos sair melhores
ou piores. A crise não é um Juízo, um castigo de Deus para a humanidade, mas ela abre
uma ocasião de juízo. Diante dela somos chamados a tomarmos uma posição clara. A
pandemia revela ao mesmo tempo nossa interdependência e a doença que nos atinge, e
que não se reduz ao vírus letal. A pandemia revela que vivemos em um mundo doente,
estavam todos os passageiros no Tinanic, não estamos na mesma classe. Alguns tem a
disposição potentes botes salva vidas, víveres e condições de enfrentar a crise com poucos
riscos, outros encontram quase que inevitavelmente a morte, sofrem devido a pandemia,
instaurar novas estruturas em que o principio da fraternidade seja a base, e que os que
hoje são excluídos e descartados tenham lugar como sujeitos. Os princípios da Opção
Bens é fortemente sublinhado. O Papa faz também uma interpretação nova do princípio
protagonistas. Não se reduzir a ser a voz do que não tem voz, mas buscar dar voz aos que
não tem voz. A sociedade deve ser construída de baixo para cima. Do mesmo modo o
11
princípio da Destinação Universal dos Bens implica que todos tem direito aos cuidados
necessário à vida e que a vacina que tanto se busca não pode ser propriedade de um grupo
ou país, mas que deve ser acessível a todos. Jesus médico nos oferece a cura de nossas
que dirigiu à Abertura da 75a Assembleia Geral das Nações Unidas. Na sua mensagem, o
Papa sublinha:
“Atualmente, o nosso mundo está afetado pela pandemia da Covid-19, o que levou à perda de
muitas vidas. Esta crise está a mudar o nosso modo de vida, questionando os nossos sistemas
Com efeito, a pandemia chama-nos «a aproveitar este tempo de prova como um tempo de
decisão [...]: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo
que não o é»[2]. Pode representar uma oportunidade real para a conversão, a transformação,
para repensar o nosso modo de vida e os nossos sistemas econômicos e sociais, que estão a
alargar a distância entre pobres e ricos, raiz de uma injusta distribuição dos recursos. Mas
também pode ser uma possibilidade para uma “retirada defensiva” com caraterísticas
individualistas e elitistas.
Portanto, deparamo-nos com a escolha entre um dos dois caminhos possíveis: um conduz ao
mais vulneráveis, os habitantes das periferias existenciais. E será certamente prejudicial para
responsáveis políticos e ao setor privado para que “tomem as medidas adequadas para
12
para cuidar dos enfermos. E se alguém deve ser privilegiado, que seja o mais pobre, o
mais vulnerável, aquele que é normalmente discriminado porque não tem poder nem
recursos econômicos.”
Nesta Mensagem o Papa expressa mais uma vez sua preocupação com o Mundo pós
pandemia. A pandemia torna-se uma grande ocasião para que tomemos consciência de
que o rumo no qual o Mundo se encontra nos leva a uma situação catastrófica. Uma
economia que Mata os vulneráveis e que destrói a Natureza agrava de modo radical os
No dia 3 de Outubro o Papa em Assis assina e promulga sua nova Encíclica Fratelli
Tutti. O tema central da Encíclica é o da afirmação de que somos todos irmãos e irmãs,
o Papa ressalta mais uma vez como ela desvelou a tragédia do Mundo em que vivemos,
destruição da natureza para o benefício de uns poucos, e nos mostrou como tudo e todos
estamos interligados, de tal modo que não é possível pensar em uma saída da crise sem
pandemia é impossível sustentar como “alguns pretendiam fazer-nos crer que era
35. “Passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e
em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam «os outros», mas apenas
um «nós». Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de
aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores, em
parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá
não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e
descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade
renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos.
36. Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença
e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão
global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio. Além disso, não se deveria
ignorar, ingenuamente, que «a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando
3. Conclusão
humanidade
ii) Não é um juízo sobre a humanidade, mas um Evento traumático, uma Crise
iii) Como diante desta crise nos posicionamos? Negamos a Crise, buscamos um
iv) A pandemia não é limitada ao vírus. Ela expõe um Mundo doente. Ele exige
contrária aos desígnios de Deus. Uma estrutura que exclui, mata e destrói a
natureza.
que Cristo se identifica com os Pobres e neles Cristo sofre. Todos somos
vulneráveis.
vi) Desta Crise podemos sair melhores ou piores, como pessoas, como Igreja e
como humanidade.