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Souvenir Iraquiano

Palavra do autor
Tudo começou em 1996, quando o editor-chefe do jornal onde eu trabalhava sugeriu
que corresse atrás da história de um veterano da Segunda Guerra Mundial que estaria
morando, na época, em Indaial, cidade limítrofe de Blumenau, no interior do Estado de
Santa Catarina.
Ninguém sabia ao certo quem era o cara, onde morava. Ele tinha uma história muito
interessante, que não cabe aqui detalhar. A bem da verdade, devo confessar que não
consegui encontrá-lo.
Nas buscas, uma fonte não muito fidedigna me disse, com bafo de cachaça, que não
conhecia o tal veterano de guerra que eu estava procurando, mas que poderia me
ajudar a encontrar, no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, três homens que conseguiram
escapar, na última hora, da Guerra do Golfo – a primeira, de 1991. Aquela informação
não ajudaria em nada a escrever a história do brasileiro que lutara do lado de Hitler na
Alemanha, mas era muito interessante. Buscaria as duas histórias paralelamente.
Depois de encontrar a mesma fonte, desta vez curtindo uma ressaca - e não uma
bebedeira - confirmei que ele não estava inventando aquela história. Existia um fundo
de verdade no que dissera. Ele me deu dicas e fui atrás das pessoas.
Não foi nada fácil. Passei três meses procurando um iraquiano e dois brasileiros em
três cidades diferentes. Os depoimentos apontavam para lados opostos, datas que não
batiam, mas sempre conduziam meu faro para algum lado onde sinalizava que
realmente os personagens existiam.
Ao contrário do que esperava que acontecesse, não encontrei o trio. Eles me
encontraram. Estavam preocupados com um estranho futucando por aí em busca de
seus nomes, seus endereços. Não foram amistosos.
Gastei mais tempo tentando convencê-los de que o que eu queria era apenas ouvir
suas histórias... e, no final das contas, não consegui acreditar em nenhuma vírgula do
que haviam dito.
O ano já era 1997, quando, num site norte-americano de notícias esdrúxulas, encontrei
um fato que começaria a fazer com que aquelas fantasias que toscamente anotara
começassem a fazer sentido. A notícia era sobre um grupo de norte-americanos presos
na Turquia por roubar relíquias iraquianas, entre outros artefatos arqueológicos.
Em 1999, consegui encontrar um desses ladrões de tumbas. Foram dois anos de
buscas, de dinheiro torrado com ligações para os EUA e para Turquia, dois
computadores, modens e horas de sono perdidas. Tudo foi compensado com um
telefonema no qual o ladrão, de dentro de um presídio agrícola no Sul dos EUA,
confirmou boa parte do que aqueles dois brasileiros e o iraquiano haviam falado.
Afinal de contas, era verdade.
Agora, tudo o que esses quatro inusitados personagens contaram para mim está no
papel, nas páginas a seguir. Nem tudo segue à risca o que realmente aconteceu. Tive
que mudar umas coisas, até mesmo para completar lacunas que realmente
continuariam para sempre em aberto.
Muitas testemunhas dessa história não existem mais. As vivas não gostariam de ver
seus nomes revelados.
Os motivos são óbvios.

Agradecimento
Esse livro não teria sido concluído sem a ajuda sempre voluntariosa do engenheiro
Ricardo Escribano Campmany. Com ele, consegui reunir informações sobre como era
realmente a vida entre o Tigre e o Eufrates nos dias que precederam o bombardeio ao
Iraque em 1991. Ele, junto com centenas de brasileiros, deixou o país uma semana
antes do ataque dos EUA. Valeu, Ricardo.
Agradeço também a colaboração das pessoas que dispuseram de seu tempo, na
maioria das vezes, valioso, para servirem de cobaia para este romance, o meu primeiro
de fôlego, fruto de devaneios, pesquisas e desprendimento.
Sumário
Prólogo 11
Capítulo 1
Quebra de contrato 17
Capítulo 2
Sonhos de grandeza 31
Capítulo 3
A Viagem 109
Capítulo 4
Na terra de Saddam 115
Capítulo 5
Desesperança 143
Capítulo 6
Hora do perdão - 10 dias menos 1 163
Capítulo 7
Tentativas - 10 dias menos 2 171
Capítulo 8
Perguntas - 10 dias menos 3 181
Capítulo 9
Conexões - 10 dias menos 4 185
Capítulo 10
Nervosismo - 10 dias menos 5 187
Capítulo 11
Mãos atadas - 10 dias menos 6 193
Capítulo 12
Confissão - 10 dias menos 7 199
Capítulo 13
Ultimato - 10 dias menos 8 205
Capítulo 14
Ninguém morre de véspera
Dia 15 de janeiro de 1991 211
Capítulo 15
O telefonema 237

Capítulo 1
Quebra de contrato
Os dados não costumam errar. Luciano pensava nisso desde 1981, quando, de uma
forma ou de outra, fizeram-no estar longe do lugar errado, na hora errada. Ninguém,
em sã consciência, acha uma boa estar dentro de um prédio subterrâneo na hora em
que meia dúzia de bombas - contabilizando mais de uma tonelada de explosivos -
atravessa o telhado.
Desta vez, quase 10 anos depois, levou tempo para convencer os dois amigos de que
se havia dúvida, o melhor seria deixar a cargo de outra opinião - mesmo que de objetos
inanimados - a decisão.
E assim foi feito. Os velhos dados foram ao ar novamente e caíram no chão, mostrando
números talhados há milhares de anos. Era uma boa idéia respeitar aquela decisão tão
experiente. Melhor seria simplesmente recolher os cubinhos do chão e dar o fora dali.
- Eu não acredito nisso... - dizia o mais baixo e mais agitado. O mais alto revelava-se
resignado. Estava ali para qualquer situação, mas também faltava ímpeto para dizer
que a opção estava errada. Em silêncio, concordou com o dono dos dados.
Conheciam vagamente a história dos amuletos. Entraram no carro e deixaram aquele
bairro residencial o mais rápido possível.
- E o equipamento?
- O que está no carro está no carro e pronto!
- Cara, está tudo cheio de digitais nossas!
- Quer voltar lá para pegar? Pode ir, eu estou entrando no carro agora...
- Pelo amor de Deus, vocês dois... as pessoas estão olhando...
- Não tem ninguém olh...
- Luciano, o Aurélio vai cobrar da gente aquelas coisas!
- Você ouviu o telefone, Luís, fomos grampeados.
- A gente combinou, sem nomes aqui! – sussurrou o maior dos três, puxando o mais
baixo para dentro do veículo – Primeiro vamos escapar da prisão, depois pensamos
nos detalhes, ok?

O carro fez o contorno de quase 360 graus e parou na ponte que passava sobre o rio.
A madrugada chegara à metade de seu ciclo. Não havia uma pessoa por perto. Os três
homens saíram atentos do veículo de quatro portas, vasculhando todos os lados, todas
as possibilidades. Paranóia era a palavra certa para descrever o momento.
- Ok, ok... o que vamos fazer agora? – perguntou Luís Carlos.
- Nos livrar de tudo... – respondeu Luciano.
- Caras, caras... vocês não podem dizer que aquele barulho foi um grampo...
- Eu conheço grampo, Luís, e foi um grampo, sim. – retrucou Hermes, o maior.
- Então por que não apareceu ninguém ali, para segurar a gente?
- Porque não fizemos nada. Você fez alguma coisa? Eu não fiz nada. Iam segurar a
gente por quê? Desconfiança?
O porta-malas foi aberto e os volumes que estavam em seu interior retirados.
Seguiu-se uma breve e sussurrada discussão. A questão era sobre a distância do rio.
Se o objetivo era arremessar os volumes na água, por que não haviam chegado perto
da margem? A resposta veio num tom sensato, lembrando que nenhum deles ali
conhecia bem o terreno - e se o veículo ficasse atolado? A margem em questão estava
atrás de um matagal. Ficaria mais suspeito um grupo entrar no meio da vegetação.
Mas o lugar estava deserto, correto?
Era o que os três achavam. Por isso, não existia motivo para preocupação com o
splash na água quando os tais volumes atingissem a superfície do rio. Era ponto
pacífico. Quando houvesse o splash, o motor do Diplomata já estaria ligado. Em dois
ou três segundos, os dois homens restantes já estariam a bordo do veículo e zarpando
para longe dali. Não ruidosamente. O motor 4.1 podia ser bastante barulhento,
principalmente se o escapamento não fosse novo, o que não era o caso ali. O carro
fora muito bem escolhido, assim como os volumes que estavam prestes a ser
arremessados na água turva daquele rio, até então anônimo para o trio. Aquela água
parecia perfeita. O material, pesado, nunca seria encontrado depois de afundar.
Primeiro porque o rio era barrento - os afluentes tinham uma considerável ação
lixiviadora, arrastando uma densa suspensão de terra. Segundo, porque não haveria
motivo para ninguém pensar em vasculhar aquelas águas em busca de algo que
ninguém sabia o que era. Eles não haviam feito nada, certo?
- Nós não fizemos nada... Entendem? Fiquem tranqüilos... a polícia...
- A polícia, Luciano, é a última das minhas preocupações, cara... – disse Luís Carlos.
Isso era bom e mau, ao mesmo tempo, e os três estavam completamente cientes
disso. Seria um problema se o planejado tivesse ocorrido - um problema seguido de
uma solução, mas cercada de outras dores de cabeça. Já que nenhum crime fora
cometido, os problemas anteriores continuariam existindo e outros seriam agregados
ao rol de preocupações. Mas o que poderia ser feito, a não ser arremessar aquelas
coisas na água?
Há 15 dias, uma idéia assim nunca teria sido sequer cogitada, mas as coisas mudam.
O velho não parecia tão desguarnecido assim, e o treinamento que haviam recebido já
não se mostrava tão completo. Não para aquilo. Treinaram para outras situações.
Hermes não só treinara, mas realizara coisas do tipo. Mas era diferente. Naquele
tempo não precisava esconder nada de ninguém. Era a boa e velha cortina de fumaça
que ocultava tudo, todo um mecanismo pronto, e ele, como uma pequena engrenagem,
sentia a liberdade de um quati para enfiar o seu nariz onde quisesse. Desta vez, não.
Duas semaninhas de nada foram o suficiente para que percebessem que aquela idéia
inteira não passava de loucura.
Mas havia outro nome para definir o que estava no porvir.
Quando o primeiro volume atingiu o rio, um equipamento caríssimo de escuta telefônica
foi danificado assim que a água atravessou os fechos nada impermeáveis da bolsa
Tiger. Quanto aquilo havia custado? Sabe-se lá. Nunca mais, mesmo se fosse achado
o equipamento, poderia ser utilizado novamente.
Já o segundo pacote tinha chances de ser reutilizado. Submetralhadoras Heckel &
Koch são resistentes à água, por isso costumam pertencer aos arsenais das melhores
forças policiais e paramilitares do mundo. As duas pistolas Beretta também poderiam
agüentar um pouco de água por alguns dias. Uma boa manutenção seria capaz de
reabilitá-las. Mas os donos não iriam querer aquilo tudo de volta. De forma alguma. O
equipamento custara dinheiro. O plano havia sido caro. Tudo tivera um custo - o carro,
a gasolina, os hotéis e a compra do casarão e da informação. Tudo aquilo por nada.
Tudo aquilo deveria sumir, rastros deveriam ser apagados...
- Será que isso basta? – perguntou Hermes. Os três homens se olharam. Sabiam que
não seriam eles a decidir isso.
Era assim, eles imaginavam, enquanto o motor Chevrolet bebia gasolina barata em
belas golfadas. O carro seguia já longe. Assim como as mentes dos três homens. Em
que estariam pensando? Em como poderiam ser tão idiotas a ponto de darem uma
guinada tão absurda em suas vidas por causa de dinheiro? Sempre o dinheiro...
Mas quem pode negar que é uma delícia tirar o cartão de crédito do bolso e comprar
aquela coisa (ou pessoa) que se quer, sem fazer contas, sem pechinchar ou se
incomodar com outras picuinhas?
Você pode?
Hermes, Luciano e Luís Carlos, a bordo do Diplomata marrom 1989, a 120 quilômetros
por hora rumo à rodovia que liga Blumenau a Curitiba, em março de 1990, não
poderiam alegar o contrário.

O telefone só toca depois da meia-noite para trazer más notícias. Ninguém liga para a
sua casa às 3 horas da madrugada para dizer que se lembrou de você e o está
convidando para um final de semana numa ilha particular, cercado de bailarinas árabes
e champanhe francês. Isso não acontece. É tolice. O telefone toca à noite para alguma
voz acre dizer que seu filho capotou o carro, que seu marido foi visto num lugar
suspeito ou que aquele carregamento foi roubado.
O telefone de Aurélio não soava para notícias diferentes. Era um aparelhinho comum,
tipo grilo, que um cunhado trouxera de Manaus numa daquelas viagens para a qual
você agradece por não ter recebido um convite. O aparelho até que era bonzinho, mas
volta e meia tombava de lado e dava sinal de ocupado para quem quisesse ligar para a
casa do ex-policial. Naquela noite, não. O grilo estava no lugar, direitinho, paradinho...
e começou a soar.
Quem atendeu foi Suzete, esposa de Aurélio há longos 11 anos. Por longos e
insuportáveis anos, costumava pensar o rotundo ex-comissário, que nem abriu os olhos
para tomar o telefone da mulher, que não conseguia, entorpecido pelo sono, pronunciar
palavra.
Aurélio também não precisou falar nada. O homem do outro lado estava agitado. Muito
agitado. A notícia, como era de se esperar, não era boa. Notícia estava programada
para chegar dentro de 48 horas. Ou deveria estar. Naquela madrugada, só significava
uma coisa: tudo dera errado.
“Iniciantes de merda”, pensou Aurélio, antes de recostar novamente a cabeça no
travesseiro, na dúvida se terminaria a noite de sono ou se aproveitaria a oportunidade
para sair de perto de Suzete um pouco mais cedo. Desta vez, suas frustrações teriam
três bons alvos nos quais descontar.

A primeira coisa a fazer depois de deixar Blumenau - ou seria a segunda coisa a fazer?
- seria sumir com o carro. O Diplomata podia ser quente perante a polícia, já que havia
sido comprado numa pequena e idônea concessionária em São Paulo, mas a partir do
momento em que comprovassem (Aurélio e seus assessores) que o velho estava são e
salvo, aquele mesmo carro poderia ser dado por roubado perante as polícias Civil,
Militar e Rodoviária dos estados abaixo do Rio de Janeiro. Dentro do porta-luvas estava
apenas o IPVA. O Documento Único para Transferência estava sabiamente guardado
nas mãos de quem planejou todo o esquema. Antes que isso acontecesse, eles
precisariam de um outro meio de transporte até a capital carioca.
O trato era de seqüestrar um grande empresário de uma pequena cidade do interior
catarinense. Em 1990, aquela era uma região completamente desguarnecida de forças
policiais Anti-Seqüestro. Por isso, um alvo considerado fácil. Assim que a operação
iniciasse, eles entrariam em contato com um homem que deveria avisar outro homem
chamado Aurélio - aquele que fornecera os equipamentos que foram beijar o leito do rio
- que tudo estava correndo bem. Eles precisariam colocar o empresário no telefone,
para a história ser comprovada. De outra forma, nada feito.
Assim sendo, “nada feito” era o termo que melhor descrevia a noite. Por isso tinham
que trocar o carro. Eram agora pessoas que deviam mais dinheiro do que haviam
emprestado há 15 dias - ainda mais levando em conta a inflação galopante que
consumia suas reservas financeiras antes mesmo que elas pudessem se consolidar no
setor das meras expectativas.
- Precisamos trocar de carro o quanto antes... – disse Hermes.
- Depois de encontrar um telefone.
- Você... – questionava Luís Carlos, quando Luciano explodiu.
- Cara! A gente precisa pensar, e não ficar encagaçado! E o que eu penso é o seguinte:
a única fragilidade nossa no momento são as nossas famílias! Não nossa pele! Nossas
famílias precisam se esconder!
- Fizemos cagada... – admitiu Luís Carlos, mais centrado – tínhamos que ter escondido
eles antes de sair...
- Sim, mas não fizemos isso. Temos que ligar agora... ali na frente! Um posto!
Um posto de gasolina dotado de uma churrascaria de caminhoneiros deveria servir. Era
madrugada, mas, como toda parada em rodovia, o movimento não era tão
insignificante a ponto de que pessoas em suas sonolentas posições de trabalho
reparassem mais detalhadamente em mais três estranhos. Ali todos eram estranhos,
gente que é vista em breves espaços de tempo vindo de algum lugar ignorado em rumo
a outra locação desconhecida. Isso confortava Luciano e seus companheiros.
Hermes estacionou discretamente o Diplomata num canto do posto que continuaria
escuro pelo menos por mais umas quatro horas. Luciano e Luís Carlos desceram do
veículo, trazendo consigo bagagem suficiente para não revelar intenção de não voltar
mais ao Chevrolet.
Juntos, tinham dinheiro para sair dali, mas não com a liberdade da qual necessitavam.
O dinheiro fazia parte do caixa destinado ao seqüestro, uma espécie de “diária”,
adiantada pelo tal Aurélio. As notas estavam num dos bolsos da jaqueta de Hermes, e
ali queimavam como carvão em brasa.
- Como vamos fazer? - pensou Luciano, alto o suficiente para ser ouvido pelos
colegas.
- Temos que ligar pra Helena. Ela vai até a sua casa e pega a Mara e a menina. Ela
pode ir com o carro da irmã dela...
- Ela não vai emprestar...
- Vai sim. Tem que fazer isso.
- Para onde elas vão?
- Uma coisa de cada vez. Primeiro vamos ligar...
- E se estiver grampeado?
- Eu não acredito nisso...
- Você não acredita? E eu? Posso acreditar nisso? Estamos falando de US$ 500 mil.
Se você precisasse cercar todas as possibilidades de não perder US$ 500 mil, não se
daria ao trabalho de fazer um grampinho?

Em 1990, no Brasil, ainda não existia um corriqueiro conforto dos dias atuais: o telefone
celular. Hoje, é difícil imaginar que alguém pudesse ficar, numa situação de crise
facilmente delineável, sem comunicação. No início dos anos 90, era comum acontecer
isso. As pessoas dependiam de bipes, telefones convencionais, orelhões ou
rádio-comunicadores, como equipamentos de PX ou PY. Apesar de ter uma invejável
conta bancária e a necessidade de estar freqüentemente bem conectado a seus
associados, Aurélio não era diferente da maioria dos outros brasileiros de então. Dentro
do carro, ele estava tão isolado quanto no Himalaia. A informação necessária estava
longe, parar de madrugada no Rio de Janeiro era perigoso, mesmo para quem tinha
uma 45 no coldre sob o braço, e a tranqüilidade só viria com o teclado do telefone de
seu escritório, no Méier.
Lá estavam dois de seus associados, que tinham mais informação atualizada sobre o
que estava acontecendo. As notícias o irritaram. Não eram nada boas. Haviam lhe
passado a perna em alguns milhares de dólares (quem perderia tempo para fazer as
contas em cruzados novos?). E Aurélio não gostava nada disso. Dinheiro era assunto
sério e merecia seriedade em seu trato. Isso significava que Mauricinho Vila Isabel
seria chamado. Tinha trabalho para o homem.
O nome expresso em diminutivo poderia enganar os incautos, mas ninguém no Rio de
Janeiro incomodava tanto as pessoas com pendengas financeiras quanto Mauricinho.
Dívidas, por menores que fossem, eram assuntos que lhe tiravam o sono enquanto não
fossem resolvidas em papel moeda, dentes de ouro ou dente, ossos ou orelhas de
verdade. Pior ainda num caso como o que Aurélio estava disposto a transferir para sua
responsabilidade.
Honra era, na concepção de Mauricinho, a melhor palavra para mostrar a
responsabilidade sobre uma dívida. Logo, pessoas incapazes de pagar dívidas eram
desonradas. Pessoas que contraíam dívidas à força, contra a vontade do credor,
pertenciam às escalas mais baixas da humanidade - dentro da ótica do cobrador
nascido e criado em Vila Isabel - revelando-se criaturas descontroladas, incapazes de
conter suas sanhas mais bestiais. Estas, para o famoso credor, eram destituídas de
honra e noção de perigo.
- Qual o tratamento, seu Aurélio?
- Atira primeiro e cobra depois, que na altura do campeonato esses putos já sumiram
com a minha grana!
Mas, antes de ser um açougueiro, Vila Isabel era um homem de negócios. Sua
profissão era de cobrador, não de matador. Por isso, a logística de seu trabalho sempre
rumava para prover o credor com o dinheiro que lhe dizia respeito.
- Acho que podemos conferir se esse dinheiro sumiu, seu Aurélio, apertando os
familiares daqueles três...
- Isso não vai levar tempo?
- Tanto quanto achar os três ordinários.
Aurélio, já sem um pingo de sono graças à tensão e à caneca de café já pela metade,
resolveu levar em consideração a sugestão do talentoso cobrador. Às vezes, para se
reaver um investimento considerado perdido, era preciso estômago e tolerância.
- Se for assim...

Luciano sabia que o negócio proposto por Aurélio renderia US$ 500 mil, e que o
investimento havia sido de quase US$ 25 mil. Ficaria com o agenciador a quantia de
US$ 200 mil e, para cada um dos executantes, a bagatela de US$ 100 mil. A proposta
era interessantíssima. Nenhum assalto a banco renderia tanto. Talvez uma série de
assaltos a bancos muito bem engendrados, sem nenhum revés. Uma utopia.
Como todos sabiam, para que cada um conseguisse levantar US$ 100 mil com
assaltos a banco, haveria muito risco envolvido.
Número 1: na hora de planejar o assalto. Se um outro bando descobrisse seu plano,
poderia querer aproveitar-se de seu esforço e levar o dinheiro sem ter o trabalho de
entrar e sair da agência.
Número 2: o assalto propriamente dito. Na maioria das vezes, sempre é possível
convencer um ou dois seguranças dos bancos a participar do negócio. Em outras
ocasiões, isso não acontece. Muitos deles são velhos, lentos e atiram mal - logo,
pensam duas vezes antes de puxar a arma. Em outras ocasiões, as exceções falam
mais alto.
Número 3: nem sempre é possível correr antes da polícia chegar. Por mais que se
tenha um acordo com os oficiais da lei, sempre se corre o risco de aparecer alguém
para mostrar serviço e contribuir para fazer com que tudo dê errado.
Número 4: após tudo ter dado certo, na hora da divisão, os ânimos de seus associados
podem se alterar. Afinal de contas, assaltos a banco são atividades cheias de
adrenalina. Adrenalina e testosterona formam uma mistura tão perigosa quanto cerveja
e vinho.
Além disso tudo, Luciano sabia que não haviam sido moldados para algo assim. Existia
a necessidade de dinheiro fácil, imediato e polpudo, mas eles tinham um limite, uma
ética. Pessoas poderiam morrer de verdade num negócio como esse.

- Companheiros, esse é Aurélio Lisboa. Foi dele que eu falei no outro dia... -
apresentou Hermes.
- Boa noite... - disse o homem rotundo. Poderia ser qualquer um, o padeiro, o cara da
banca de revistas, mas eles sabiam que se tratava do “seu Aurélio”, o cara de quem
Hermes havia falado no outro dia. Não esperavam outra aparência.
- Quer beber alguma coisa?
- Vocês estão tomando o quê? Scotch?
- Sim...
- Quero um também, com gelo.
A bebida foi servida por uma morena com celulite na bunda. Era possível perceber
porque as garçonetes não usavam roupa.
- Vocês estão procurando um negócio, certo? O Hermes me falou que vocês precisam
de grana alta... Qual de vocês é o Luciano?
- Sou eu... - respondeu, sentindo-se encolher. “Não preciso da sua piedade, cara”.
- Sinto muito pela sua filha. Se eu tivesse o dinheiro, te emprestaria a longo prazo, mas
não tenho. No meu negócio, é preciso liquidez, entende? Não sou um banco, não tenho
como dispor de US$ 80 mil assim, mas posso criar a oportunidade para você fazer
mais que isso. Para que vocês três façam mais que isso, cada um...
Era um passo decisivo. Haveria algum retorno a partir dali?
Da forma como Aurélio explicou todo o plano, seria a coisa mais fácil do mundo. Ir para
uma pequena cidade no interior de Santa Catarina, seqüestrar um empresário
milionário e exigir meio milhão de dólares como resgate. A cidade estava muito distante
dos centros onde as forças policiais já estavam acostumadas com estratégias
anti-seqüestro. O velho não seria maltratado para que os familiares dispusessem do
dinheiro. Aurélio já tinha tudo estudado. O velho era tão poderoso, tão autoritário, que
ele mesmo daria a ordem para o pagamento.
Chegar na cidade, pegar o velho, tomar o dinheiro, deixá-lo ir embora e sumir.
Parecera fácil na ocasião, tratado de uma forma tão seca e profissional, que a
impressão que os três tiveram era de que discutiam a abertura de um restaurante
especializado em pratos comerciais.
- Você cozinha, ele faz a feira, eu fico no caixa.
Aurélio ficou olhando para os três, esperando uma resposta que já sabia qual era. Já
havia visto centenas de olhos ansiosos como aqueles, esperançosos de que suas
palavras traduzissem a realidade, sem questionamentos morais nem nada. Aqueles
três não seriam os primeiros, tão pouco os últimos a precisar de altas somas de
dinheiro em pouco tempo. Cada um tinha seu histórico, seus dramas, suas cantilenas
tristes cheias de traumas de infância e outras fraquezas.
O “sim” veio com o balançar de cabeça dos homens. Aurélio gostou do que viu. Tinha
três militares treinados, capacitados, inteligentes, com aparência de pais-de-família da
classe média baixa. Rostos que facilmente se confundiriam na multidão sem despertar
suspeitas. Três homens que poderiam ser vistos dentro de um carro sem atrair a
atenção de uma patrulha policial. Isso era coisa rara dentro de seu ramo de negócios.
- Vou fazer um adiantamento para as despesas iniciais e posso entregar o
equipamento que vocês vão precisar dentro de, no máximo, duas semanas. Vocês
sabem utilizar equipamentos de escuta, não sabem?
- Eu sou da S2... - desta vez foi Hermes, percebendo que há muito não se sentia
orgulhoso de mencionar sua especialidade profissional dentro do Exército Brasileiro.
Com ele ficaria a responsabilidade da vigilância eletrônica que garantiria a captura e o
controle em torno do velho. Luciano seria a ponte com o mundo exterior. Luís Carlos, o
cara da segurança. Parecia tudo certo.
Sem mais para discutir, afastaram as barrigas da mesa e abriram espaço para que as
mulheres sentassem em seus colos e pedissem doses de Campari ao barman.
- Alô? - disse a voz feminina.
- Lena, só me escuta, não diz nada e faz o que eu disser... sem reclamar! - ordenou
Luís Carlos. Não adiantaria muita coisa.
- Cacá, tem um homem aqui em casa! Ele diz que você deve dinheiro pra ele!
A batida expressão “tarde demais” foi vista no rosto de Luís Carlos pelos outros dois
homens, que esperavam perto do telefone público. Eles deixaram de vigiar ao redor
para se aproximar dele. O perigo não estava naquele posto de beira de estrada.
- Calma! Deixa eu falar com ele, Lena.
- O que está acontecendo, Luís Carlos??!!
- Passa o telefone pra ele, pelo amor de Deus!
Hermes tomou o telefone das mãos de Luís Carlos e o levou até o ouvido. Do outro
lado da linha, o aparelho também trocava de mãos.
- Bom noite ou bom dia? - já havia passado de 3h no Rolex de Vila Isabel.
- Quem é você?
- Onde vocês estão? Estão a caminho de casa ou tomaram o caminho inverso? Iam
deixar a dívida, que vocês estupidamente fizeram, para suas mulheres pagarem?
- Quem é você?
- Espero que você seja suficientemente inteligente para perceber que a única pergunta
que deve fazer agora é: “Onde e como posso pagar os US$ 200 mil que devo ao seu
Aurélio?” Outra pergunta é apenas perda de tempo.
- Quanto?! Duzentos?! Ele investiu bem menos que..
- Ele ia ganhar US$ 200 mil, companheiro. Era a parte dele do negócio. É isso que
vocês devem...
- Vocês vão ter o dinheiro de volta. Deixem as nossas famílias em paz.
- Nós não envolvemos suas famílias nisso. Vocês que tomaram essa iniciativa quando
decidiram colocar o rabo entre as pernas e melar um negócio que levou um ano para
ser desenvolvido.
- Vocês vão ter o dinheiro de volta, já disse. Precisamos apenas de tempo.
- Nem imagino qual prazo você deve estar calculando dentro dessa sua cabecinha... -
ridicularizou Mauricinho Vila Isabel, girando a pistola Desert Eagle 45 no dedo e
parando-a apontada para uma mulher apavorada.
- Qual prazo vocês podem nos dar para arrumar seus US$ 200 mil?
- Número um: é bom saber que vocês têm consciência de quem faz o prazo é o seu
Aurélio, e mais ninguém. Ponto para vocês. Número dois: torçam para que seu Aurélio
decida cobrar apenas os US$ 200 mil... - Vila Isabel fez uma pausa, deliciando-se com
o silêncio do outro lado da linha. Era o silêncio do pavor, com o qual ele já estava
acostumado. Às vezes, no meio deste silêncio, era possível ouvir alguma coisa, um
esgar, dentes rangendo, batendo. Ruídos facilmente associados ao odor de um
cachorro com medo. - Voltem para casa e aguardem o nosso contato. Quanto às
famílias de vocês, podem ficar tranqüilos. Não somos bárbaros.
Mauricinho Vila Isabel desligou o telefone, guardou a pistola no coldre sob o braço e
parou diante da mulher.
- Vocês precisam aprender uma coisa...
A mulher não estava curiosa. Estava amedrontada.
- ...Ou vocês entram para o negócio certo ou desistem de viver acima de suas
possibilidades.

A situação já estava ruim há meses. Almas otimistas apostariam que o alvorecer traria
novas e boas possibilidades. Diante dos novos fatos expostos por Hermes, o pior
pessimismo parecia utopia. A garrafa de uísque nacional barato estava rasa, copos
vazios sobre a mesa ensebada. Os três homens de barba por fazer, roupas
amarrotadas e olhares perdidos não conseguiam ficar bêbados. Pessoas desesperadas
precisam de doses cavalares de entorpecentes para separá-las dos grilhões da
realidade. Seria fácil comprar mais uma garrafa. O valor da bebida seria como uma
moedinha caindo no poço de suas dívidas.
Onde aquilo tudo tinha começado? A pergunta era de Luciano. A resposta estava
perdida em algum canto nebuloso de seu cérebro, numa gavetinha perdida. Seria
necessário vasculhar meticulosamente para se chegar a uma lembrança que,
encadeando-se a milhares de outros pensamentos associados, o levasse a algum lugar
esclarecedor. Onde havia deixado de ser o engenheiro brilhante, cheio de soluções
fantásticas para os problemas mais enigmáticos? Em qual ponto de sua vida isso
aconteceu tão imperceptivelmente que ele nem percebeu ter deixado de ser a pessoa
que era. Nem ele nem os outros ao seu redor. Se chegasse a esse ponto, saberia
desde quando vivia como que entorpecido, inebriado por algo que não conseguia
entender. Era preciso voltar.

Capítulo 2
Sonhos de grandeza
O mundo inteiro parecia interessado na energia nuclear. A ciência que havia ganhado
investimentos bilionários para desenvolver armas de destruição de massa agora era
enxergada - disfarçadamente sem preconceito - como uma ferramenta para a produção
de energia e para tratamentos de saúde. Era bem certo que nem todo o mundo tinha,
em seus propósitos, metas pacifistas em primeiro e segundo planos. Muitas pesquisas
panfletariamente humanistas não passariam de um disfarce para se chegar onde as
duas grandes potências haviam chegado ao final da Segunda Guerra Mundial -
caminho pelo qual foram seguidas por mais uma meia dúzia de outras nações mais
arrojadas.
Apesar de poucos no Hemisfério Norte terem a intenção de ver o clube crescer - ou
proliferar, como gostam de dizer - as pesquisas continuavam, o comércio existia.
Países como a Alemanha vendiam projetos de usinas nucleares para países como o
Brasil. Pessoas como Luciano desistiam da Medicina para se dedicar a um desafio
mais intrincado: entender os caprichos do átomo. QI não faltava.

Ele não tinha idéia se era preciso realmente ter muito QI para fazer seu trabalho. Um
cachorro aprende que não deve entrar em casa levando umas bordoadas, não
aprende? Na sua profissão, as bordoadas não podiam ser desconsideradas. Algumas
eram muito fortes, suficientes para deixar seqüelas e marcas indeléveis por dezenas de
anos. Seu país era uma prova disso. Oito anos de escaramuças contra um país vizinho
nos quais mais de 300 mil irmãos das mais variadas idades foram encontrar Alá sem
ter uma resposta digna ao tentar entrar no paraíso; haviam lutado contra irmãos, com
incentivo de infiéis, e ninguém vencera aquilo que chamaram de guerra.
Experiências como essa haviam talhado profundamente cicatrizes em seu povo e
cultura. Talharam uma personalidade pétrea em Ibrahim Al Fahed. As estrelas sobre
seus ombros não deixavam este argumento parecer uma mentira.
Do alto da colina, ele podia ver as colunas de tanques se alinhando para mais uma
refrega. Seria a terceira da semana. A hora fora calculada pelo pessoal da Inteligência
do quinto maior exército do mundo, na época. O ano era 1990. O mês, um julho quente
que teimava em esquentar ainda mais com os exercícios de combate - isso já
começava a incomodá-lo. Tinha a incumbência de treinar uma divisão de cavalaria, e
seu dead-line estava chegando perto. Anos depois da guerra contra o Irã, Fahed
passara a sentir-se incapaz de julgar aqueles exercícios com o mesmo critério de
antes. Teria sido forjado para estar ali em cima ou para fazer parte do grupo que comia
poeira lá embaixo? Daí as perguntas: “Será que é preciso QI para este trabalho ou
não? Será que algum dia alguém é capaz de dizer que aprendeu o que precisaria
aprender?”
Aprendera com os iranianos muitas lições de guerra. Uma delas fora a de que em
certos momentos o ideal era estar parado, em outros, em movimento, e, em outros, não
deveria estar ali. Lições que outros estrategistas e guerreiros aprenderam em outras
guerras, em outros cenários.
Seus homens, colina abaixo, eram um misto das forças regulares e da Guarda
Republicana do próprio Homem de Tikrit, como costumavam chamar Saddam Hussein.
Pessoal treinado junto com pessoal extremamente bem treinado. Muitos deles com
batismo de fogo feito nos mais encarniçados combates, muitos com meses, poucos
com anos de guerras nas costas. Ele mesmo, tinha mais de seis anos de combate.
Precisaria, para tal experiência, ter um determinado - e elevado - QI?
Reformular a questão às vezes servia para encontrar a resposta. Em outras, não.
Ouviu vozes pipocarem no alto-falante do rádio-comunicador e percebeu-as muito
distantes. O jogo estava começando e aquilo tinha muito pouca importância naquele
momento. Perder ou ganhar a manobra... Já pensara naquilo noites a fio. O dead-line
se aproximava a cada dia, e a dúvida se o que estava fazendo era certo oscilava. Não
interessava quanto tempo tivesse gastado raciocinando sobre o assunto. Era sempre a
mesma coisa, um dilema moral.
Os tanques se deslocavam na planície, e com eles, nuvens de areia. Fahed desceu do
blindado e andou os poucos metros que separavam o veículo com nome de cobra do
topo da colina. Tinha 20 minutos para começar o exercício. Era muito tempo para um
homem que viveu a vida inteira na caserna, e boa parte dela em conflitos.
Decidiu sentar.
O sargento Basuud na torre do velho Urutu não chamaria a atenção do comandante de
seu grupo de combate. Fahed era uma lenda no Exército Iraquiano, um legítimo
membro da Guarda Republicana, criador de talentos na arte da guerra. Mestres como
ele tinha direito a suas excentricidades. A do homem que acabara de se sentar no alto
da colina era ouvir música antes de entrar em combate ou lidar com atividades que
lembrassem violência (exatamente o que estava no porvir). Basuud não entendia as
letras das músicas que estavam gravadas naquela velha fita magnética que Fahed
carregava em seu walkman. Certa vez a tivera nas mãos, mas a única coisa que
descobriu é que as palavras escritas no cassete pareciam ser da mesma língua que
encontrara no manual do tanque que aprendera a pilotar na guerra contra o Irã.
Sentado no topo da colina, Ibrahim Al Fahed tentava se lembrar das explicações que
um velho amigo dera sobre as músicas contidas na fita. Elas falavam sobre uma
espécie de sensualidade sem culpas, sem véus negros ou ameaças de apedrejamento.
Falavam da beleza feminina com tranqüilidade, lembrou-se.
- Imagine nós, como estamos aqui, tomando essa cerveja, mas numa praia cheia de
mulheres bonitas, de biquíni...
- Alá! Eu não ia ficar tomando álcool se tivesse um monte de mulheres de biquíni por
perto!...
- Claro que ia! Não é alguma coisa rara, é comum. Você se acostuma, é sério...
- Vocês são estranhos, meu amigo. Se acostumar com mulheres de biquíni! Eu já vi
fotos das praias de vocês, com o tal fio dental!
- Olha, estão ouvindo essa música?
- Eu conheço essa música...
- Conhece a letra?
- Não, mas fala de uma moça...
- Sim. Uma moça lindíssima, especial, ela se destaca entre todos os outros biquínis. Eu
vou traduzir a letra pra vocês entenderem o que eu quero dizer...
- Rapaz!!! - Fahed voltou-se para o homem atrás do balcão e ordenou que surgisse
imediatamente caneta e papel em sua mesa.
Fahed lembrou-se disso com um sorriso nos lábios. Nunca havia conhecido a terra
daquele bom amigo, assim como nunca tinha entendido bem o modo dele encarar a
vida. Lembrou-se do momento com aquela estranha saudade daquilo que nunca
tivemos. Conferiu mais uma vez o relógio. Tinha ainda 15 minutos para ouvir Tom
Jobim, antes de descer e ajudar a treinar seus rapazes para invadir um país vizinho.

Centenas de quilômetros acima e ao oeste, o solo iraquiano chega ao fim e dá lugar ao


território turco. A região nunca fora pacífica, e agora não tinha motivos para ser descrito
de forma diferente. Apesar dos esforços do exército e das forças policiais de Saddam
Hussein, o fluxo de pessoas entrando e saindo entre os dois países era grande. Bem
maior que o desejado pelo Homem de Tikrit. Mas também não se tratava de uma das
maiores dores de cabeça do estadista que se mantinha no poder desde os anos 60.
Hussein tinha outras preocupações mais sérias no sudoeste do país, além das
costumeiras crises intestinas - o que era normal de acontecer durante um mandato tão
longo. Geralmente as pessoas começam a deixar de concordar em ver a mesma
fotografia durante tanto tempo nas repartições públicas. A coisa fica ainda mais
complicada quando a política do país se torna fundamentalmente personalista.
Farina morara a maior parte de sua existência abaixo da linha que separava a Turquia
do Iraque. Aos 32 anos, ainda guardava o viço da juventude, enquanto a maioria das
outras mulheres da mesma idade padecia de um envelhecimento precoce causado
pela rusticidade e dureza da vida.
Esta mesma sina de dor e espinhos ensinara à Farina truques fundamentais de
sobrevivência num mundo de homens, ainda mais numa terra onde a mulher, durante
muito tempo, tinha alguns direitos a mais que uma mula. Era bem certo que se levando
em conta a maioria dos países islâmicos, o Iraque ainda oferecia alguns privilégios
para quem não tinha uma bolsa escrotal entre as pernas, como, por exemplo, a
permissão para guiar automóveis. Mas qual seria a mulher que teria possibilidades de
juntar dinheiro suficiente para adquirir um automóvel? E diga-se: juntar dinheiro de
forma honrada, para evitar o risco de apedrejamento. Deixando a limitada realidade de
uma Bagdá do final dos anos 80, mais nenhum outro lugar entre o Tigre e o Eufrates
permitia tamanha ousadia.
Seu nome inspirava respeito numa considerável faixa de terra acima e abaixo da
fronteira, geralmente motivado pelo conhecimento da reputação que a cercava. Por
isso, era possível desempenhar a delicada profissão de comerciante de relíquias
roubadas das entranhas do solo iraquiano - dentre catacumbas, templos e cidadelas
assírias e sumérias que brotavam em profusão da areia. Eram mais de 10 mil sítios
arqueológicos espalhados em seu ex-país, a maioria sem muito controle do
Departamento Iraquiano de Arqueologia e Patrimônio.
Isso não a incomodava nem um pouco.
Muito pelo contrário. Era o relaxamento iraquiano para com a cultura e memória,
naquele momento de expansão militarista, que servia de sustento - ou enriquecimento -
para Farina. Um painel impresso em gigantografia do rosto bigodudo de Hussein
parecia ter mais valor para o governo que uma cabeça de um leão alado esculpida por
algum contemporâneo de Nabucodonosor.
Naquela madrugada, mais um carregamento de relíquias estava chegando à Turquia
sob encomenda, e Farina estava lá, em seu Land Rover, aguardando, como costumava
fazer. Ela não era do tipo de pessoa que ficava esperando dentro de casa as coisas
acontecerem. Tudo que conseguira na vida fora fiscalizando in loco, não
confidenciando aos outros o que sabia que tinha que fazer pessoalmente. Era o único
comportamento plausível para uma pessoa que crescera sem condições de confiar em
ninguém.
Absorta nessas lembranças, a mulher observava o céu escuro, sem nenhum traço do
luar. Algumas estrelas bruxuleavam entre uma nuvem ou outra que passava. Isso era
interessante para quem estava lidando com material roubado. Havia pouco o que se
ver.
O primeiro a perceber alguma movimentação foi Hishnam, o braço direito de Farina, um
homem magro e alto, com sobrancelhas e bigode fartos. A pele escura do curdo só
permitiu que Farina o visse quando estava quase à janela do veículo de fabricação
britânica.
- Está vindo um carro... Parece um quatro por quatro.
- De onde?
- Sudeste. Está com os faróis apagados.
Bons ouvidos tinha Hishnam, os quais já haviam safado o curdo uma meia dúzia de
vezes. Farina estreitou os olhos e passou a mão pelo pára-brisas do carro. Não dava
para ver nada. Desdenhando do frio naquela região montanhosa, a mulher desceu do
Land Rover e ajeitou a pistola PPK atrás da cintura, presa na calça. Nunca se sabe o
que vai surgir numa noite tão escura.
Hishnam ergueu o AK-47 que estava indolentemente pendurado em seu ombro e
caminhou à frente da chefe, preocupado agora com a sua segurança. Pararam atrás de
um par de rochas que obstruía o caminho, e já ouviam melhor o ruído do veículo.
Farina tirou uma pequena lanterna do bolso e piscou na direção do barulho do motor.
Duas piscadelas de faróis com adesivos de blecaute anunciaram que o quatro por
quatro estava mais perto do que imaginavam, o que fez a mulher levar a mão direita
para trás, instintivamente. Se Hishnam não já tivesse engatilhado sua arma, o teria feito
agora.
As rodas frearam levantando cascalho e o veículo parou a alguns metros do grupo de
Farina. Uma porta se abriu, havia uma silhueta escura recortada num céu pouco mais
claro que o solo. A luz de serviço de dentro do carro foi acesa.
Um homem de jaqueta de couro caminhou rumo ao norte, com as mãos levantadas.
- O material está no carro.
- Ninguém veio atrás de vocês? - perguntou Hishnam.
- Não. Os soldados estão muito preocupados com manobras ao sul. O que vocês
acham que está acontecendo?
- Parece que vai ter guerra. - disse um segundo empregado de Farina, que permanecia
calada, oculta na escuridão.
- O que trouxeram?
- Podemos ir até um lugar mais claro? Onde está Farina? Eu fiz o acordo com Farina.
- Eu estou aqui, estrangeiro. - respondeu a única mulher entre os dois grupos. - Vamos
começar a descarregar essas coisas. Não temos a noite inteira.
- Seu desejo... - respondeu o homem da jaqueta de couro, num tom que não agradou a
líder do grupo de mercadores de relíquias. Havia alguma coisa no ar.
Não era a primeira vez que Farina fazia negócios com Azize. Também não seria a
primeira vez que ela se sentia desconfortável perto do contrabandista. Mas ele era um
dos melhores no ofício de entrar e sair do Iraque com relíquias. Ele era ignorante, mas
tinha um ótimo faro para escolher as peças que mais agradariam os compradores
europeus e norte-americanos. Desta forma, ela precisava relevar certas características
do iraquiano, como o total desprezo pela mulher como algo além de um objeto para
satisfazer perversões sexuais.
E era isso que mais incomodava em Azize. Por mais que Farina quisesse vê-lo como
um inofensivo filho de camponeses que se negara a escalavrar as mãos com o trabalho
duro, não conseguia. Olhava para ele e via a soberba em sua ostentação de roupas,
anéis, relógios caros. Dentre os ladrões com os quais trabalhava, aquele lhe parecia
mais insidioso. Por isso a presença da PPK em sua cintura a reconfortava.
Por sua vez, Azize também não gostava de encontrar Farina. Ela representava o que
não devia acontecer com uma mulher. Não o seu passado, mas o seu presente. Uma
mulher não deveria ser tão poderosa, deveria? É claro que não, pensava Azize, sempre
caprichando para que seus olhares para ela, seus comentários, dessem sempre a
impressão de estar lidando com alguém de uma casta inferior, alguém que estivesse
fora de seu meio. Ele considerava que Farina estava deslocada em sua posição de
líder do contrabando naquela região. Como os turcos a respeitavam? Como os
iraquianos a respeitavam? Ele ouvira algumas histórias, mas não diria a ninguém que
teria acreditado nelas. Por isso que acendeu sua lanterna e, antes de clarear o
caminho por onde deveria passar, iluminou o quadril de Farina.
Não havia nada para se ver ali, já que a mulher estava trajada com um casaco que
chegava até as coxas. Era apenas para irritá-la. E o plano parecia estar funcionando
muito bem.

Mais ao Sul e mais ao Oeste, se encontrava, entre tantos outros pequenos torrões de
terra, a Arábia Saudita. País rico em petróleo e governado por uma monarquia islâmica,
mantém, desde o final da Segunda Guerra Mundial, um alinhamento com os Estados
Unidos. Qualquer risco em suas fronteiras sempre atraiu imediatamente a atenção dos
norte-americanos, interessados em impedir que a mudança de influências numa região
tão delicada pudesse afetar o status quo mundial.
Em 1990, a situação era de cautela. A rede de satélites espiões KH, circulando na
órbita geoestacionária da Terra dezenas de vezes por dia, vinha captando para a
Inteligência dos EUA, há meses, sobre o solo iraquiano, mobilizações tão
denunciadoras quanto a retirada de peões das laterais do tabuleiro.
Não demorou muito para que fosse perceptível o crescimento da presença ianque
naquela parte do globo. Não somente naquele país, mas também no Iêmen e na
Turquia. Primeiro, homens sem uniformes aparecendo em discretos carros alugados
em idôneas empresas locais. Em seguida, começaram a pipocar, aqui e ali, alguns
adidos militares, meros observadores desarmados, com suas fardas de uso na
caserna. As tropas operacionais viriam depois, mas a hora não era aquela. Havia
chegado a vez dos homens com valises volumosas e seus equipamentos secretos,
como Jeffrey Wittmann.
Com a pele rosada, como boa parte de seus compatriotas, Wittmann desceu no
aeroporto internacional de Stambul com pouca bagagem para buscar na esteira. Isso o
fez se separar da maioria dos outros passageiros normais da United Airlines. Um
homem de paletó o aguardava sem uma plaqueta com seu nome. Saíram do aeroporto
e encontraram um clima quente. Wittmann ficou espantado como o seu anfitrião
conseguia ficar incólume dentro do paletó. Imaginou que teria se acostumado com o
clima local. Não era verdade. O homem havia retirado cirurgicamente algumas
glândulas responsáveis pela sudorese, devido à necessidade de conviver com as
temperaturas mediterrâneas daquela região. O norte-americano não conhecia as suas
histórias, e não parecia nem um pouco preocupado em conhecê-las. Sua viagem tinha
um propósito... O quanto ele estaria disposto a se desviar de tal destino?

Tudo começou nos loucos tempos da inflação galopante. Tem gente que não lembra.
Mas é impossível esquecer as corridas às casas de câmbio, as tentativas frustradas de
salvar o pagamento de uma desvalorização mensal de 80%. Quando Luciano ainda era
funcionário público, a coisa ainda era um pouco melhor, mas era apenas ilusória a
sensação de que ele estava ganhando mais que os outros no início do mês seguinte.
É incrível como tudo não explodiu numa guerra civil...

Pelo menos não numa guerra declarada. Levando-se em conta que as legiões de
traficantes e ladrões que infestam as capitais brasileiras são pessoas que se
revoltaram contra a incapacidade de subir na vida com trabalho honesto, é possível
acreditar que o Brasil vive numa guerra civil. Uma série de batalhas pessoais, sem
seguir exatamente uma ideologia, uma doutrina. É a lei do “Se a Farinha é Pouca, Meu
Pirão Primeiro”. É por isso que as pessoas fazem revoluções. Pela farinha. De
Barrabás a Ho Chi Min, passando por Garibaldi e Che Guevara, todos lutam por
farinha. Uns mais altruístas que outros, uns com necessidade de mais farinha, uns com
menos. Luciano, assim como qualquer pessoa no mundo, precisava desta farinha.
Ele tinha a sorte de ter um grande diferencial dentre a maioria dos brasileiros. Luciano
tinha conhecimento restrito a muito poucos e usava farda.

O Brasil atravessou uma época em que uma farda significava mais do que não ter a
preocupação de com que roupa ir ao trabalho no dia seguinte. O guarda da esquina
não incomodava quem usava farda, no caso de furar o sinal ou estacionar em local
proibido.
Não que Luciano gostasse de furar o sinal. É coisa que acontece. Mas ele não era
regra ou exceção - era mais um. Tinha gente, sim, que gostava de furar o sinal só para
ver depois o guarda pedir desculpas de cabeça baixa.
Eram tempos loucos. Luciano ganhou dinheiro, a indústria bélica brasileira cresceu e o
país arrotou ares de quem estava na pole position da corrida armamentista. Ele,
soldado e engenheiro, sentia-se no topo da cadeia alimentar. Conhecia pessoalmente
o capitão que inventou a revolucionária suspensão de um caminhão feito para lançar
mísseis (O cara era um gênio e ficou famoso ao ver sua idéia ser roubada e não poder
fazer muita coisa). Conversavam bastante e ele dava dicas sobre amortecedores. Isso
interessava muito a Luciano. Ele era um dos caras que aprendera com os alemães
como instalar uma usina nuclear. Seus colegas de faculdade se contorceriam de inveja
se soubessem. Mas não saberiam. Nunca. Ele havia jurado e assinado guardar
segredo. Já fazia parte de uma seleta comunidade verde-oliva.
Trocando em miúdos, Luciano era um gênio fardado, e o Exército queria que
aprendesse tudo sobre usinas nucleares. Luciano gostava disso. De noite, na cama,
olhando para o teto pensava: “Quantos no mundo sabem o que você sabe? Quanto
custa isso que você sabe fazer?” As respostas eram “poucas” e “muito”.

Seu pai era obrigado a dar o braço a torcer quando o via chegando de carro novo a
cada seis meses para o churrasco com a família. Seus sobrinhos ganhavam os
brinquedos que a pequena Cíntia não gostava mais. Seu pai, que sempre havia sido
um professor de História mais para a esquerda do que para a direita - mas sabiamente
posicionado no centro nas épocas mais duras - era obrigado a sentir orgulho do filho.
Até mesmo porque Luciano não estava por aí fazendo merda, batendo nos outros,
fazendo tropa ralar. Ele era um cientista. A farda era apenas uma roupa.
- Filho...
- Que é, pai?
- Angra vai funcionar mesmo?
- Vai, pai...
- Nós sabemos mesmo como aquilo funciona?
- Sabemos, pai. Podemos construir outra na hora que quisermos. É só preciso ter a
grana. Nem mesmo o bloqueio norte-americano vai nos impedir de controlar o átomo. A
tecnologia toda está por aí, no ar...
O velho ficava satisfeito. Acima de tudo, o filho era como ele. Estudioso, acadêmico,
cientista. Ele, voltado às ciências humanas. Luciano, para a ciência de matar humanos.
Mas era, como a farda, outro mero detalhe.

Mas um dia a farra acabou. Antes disso, Luciano fez coisas incríveis. Viagens
memoráveis, trabalhou em lugares que nem imaginaria existir, conhecendo pessoas
que pareciam ser de outro planeta.
Voltou para o Brasil e decidiu que havia chegado a hora de tirar a farda. O país estava
mudando. Ele pensou que seria bom ficar do lado civil da empreitada industrial-militar
brasileira. A impressão era de que havia lugar para muita gente, muito dinheiro
sobrando. Seus amigos que continuaram na caserna consideraram sua atitude
arriscada, porém oportuna. Além do mais, Luciano ainda era chamado de capitão
mesmo após pedir desligamento do Exército.

Wittmann pegou sua maleta, desceu do Range Rover e parou alguns instantes para ver
um KC-130 taxiando na pista da base aérea de Incirlink. O avião de carga fora
convertido para transportar passageiros do segundo escalão da Inteligência
norte-americana. Ele fora um dos últimos a chegar no país pelo aeroporto. Não haveria
vôos de primeira classe ou mesmo turística a partir de agora. Ninguém mais envolvido
com a operação chamada Tempestade do Deserto chegaria naquela região num vôo
civil. Os riscos eram grandes. Qualquer norte-americano circulando inocentemente fora
do país poderia ser considerado um alvo - mas isso não era desculpa para a mídia ficar
por dentro dos fatos. Era julho de 1990 e o mundo ainda não sabia da operação
Tempestade no Deserto.
Para falar a verdade, pouquíssimas pessoas sabiam de sua existência. E o que esse
seleto grupo de pessoas que estava se reunindo na Turquia sabia era bem pouco.
Apenas desconfiavam de que alguma coisa errada estava prestes a acontecer, e
quando isso surge no cenário mundial, a CIA envia homens dentro de aviões de carga.
Wittmann entrou no prédio principal da base militar de Incirlink e, apenas por um
segundo, sentiu saudades da época em que estava na outra ponta da corda. Não havia
tempo para reminiscências, já que um burocrata de gravata frouxa no pescoço
arremessou-lhe uma lata de Coca-Cola.
- Seja bem-vindo, Wittmann. Você é o cara do Departamento de Análise de Imagens,
certo?
- Sim...
- Vocês todos usam essas maletas metálicas, não é?
- E eu pensei que todos os agentes de campo viviam tomando café.
- A minha dose de cafeína eu tomo gelada. Além do mais não confio em café fora dos
States...
- Que paranóia é essa? Isso aqui é um pedacinho do Iwoa.
- Já estive numa base em que os taifeiros trocavam os pacotes de café que o US Army
enviava de casa por favores sexuais das nativas...
- Onde era isso? Nunca ouvi falar de mulheres tão loucas por café...
Os dois homens desceram para o primeiro andar no subsolo e o veterano na Turquia
abriu uma porta, atravessando-a primeiro. O ambiente era claro, bem ao contrário das
salas de crise que o cinema gosta tanto de mostrar - isso costuma aumentar o caráter
dramático. Não poderia deixar de existir a mesa no centro, grande, alta, com dezenas
de fotografias sobre um tampão de vidro translúcido.
Depois das apresentações costumeiras, quase dispensáveis, o anfitrião de Wittmann
revelou-se William “Bill” Ford e entregou-lhe um envelope. Encerrava ali os dias de
folga que aproveitara desde a chegada em Stambul...
- Olhe isso e diga o que vê...
Wittmann puxou uma banqueta e relaxou as pernas antes de abrir o envelope e deitar o
seu conteúdo sobre a mesa. Eram fotos de satélite de uma região no norte do Iraque.
- Você será a terceira opinião, Wittmann, antes de tomarmos uma decisão. Você tem
um ótimo conceito com o general Schwarzkopf, hein?
Foi a vez de Wittmann posar de veterano: - Já trabalhamos juntos em algum as
operações... A minha análise serviu para ele evitar perder uma companhia de elite...
Mas não foi nada demais...
- Imagino que não... - debochou Ford, sabendo muito bem o quanto custa perder 100
homens que valiam uma fortuna em treinamento ao Tio Sam.
Wittmann abriu a valise e pegou uma de suas lentes cuidadosamente guardadas. Não
gostava de lentes arranhadas por gente descuidada. Sem tirar os olhos dela, falou com
Ford: - Eu também poderia tomar antes a minha dose de cafeína bem gelada?

Luciano descobriu da maneira mais dura que a saúde de nossa indústria bélica não
andava tão bem quanto propalavam seus líderes. Um dos grandes baques foi o calote
dos tanques no Iraque. Os outros ele viu pessoalmente. Foi quando, após desistir da
farda, aceitou um convite para fazer parte de um grupo de engenheiros que construiria
uma usina de enriquecimento de urânio no norte da África. O dinheiro envolvido era
grande, e os riscos, como disseram amigos de Hermes, profundamente ligados ao
Serviço Nacional de Informações - hoje Agência Brasileira de Inteligência - eram
mínimos. Eles já haviam feito inúmeros negócios com aquele pessoal.
O local era perto da capital da Etiópia, Adis Abeba. As redondezas podiam ser
cercadas por uma pobreza estrutural, mas um bolsão sub-reptício de riqueza se
espalhava por onde o grupo de cientistas ocidentais andava. No início, isso
incomodava Luciano. Mas não por muito tempo. Acostumado que estava com as
paradas em semáforos no Rio de Janeiro, era uma questão de relatividade. Além do
mais, dizia quando se olhava no espelho do banheiro do hotel, que aquele não era seu
país. Se alguém no governo achava que ganhava mais investindo em tecnologia militar
que tentando salvar seu povo da miséria, o que ele tinha a ver com aquilo? Quer dizer,
além de ver seu bolso se enchendo de dinheiro?
Era um negócio fenomenal para o governo etíope. Sua localização periférica num palco
de constantes desavenças étnicas - mas com uma relativa neutralidade - devia ser
desfrutada. Domesticar o átomo ali, e oferecer os serviços relacionados parecia ser
uma infindável fonte de renda. Isso porque os países inimigos nunca deixariam seus
oponentes levarem a cabo um projeto nuclear. Ele já havia visto isso de perto em
Osirak, quando os israelenses destruíram boa parte de seu trabalho. Escapara por uma
questão de turnos.
Mas desta vez as coisas pareciam mais bem engendradas. Estavam em território
neutro, não estavam? Além disso, contavam com proteção de um muito bem forjado
manto de contra-inteligência. Ele não sabia exatamente quem estava cuidando da
maskirovska, mas sabia que tinha tudo para funcionar. Quando ligava para Mara,
geralmente dava carta branca para o que ela quisesse fazer - financeiramente falando -
pois o dinheiro estava entrando em cascatas, e tudo indicava que teria ainda pelo
menos um ano de polpudos “contracheques” (apesar de não receber assim).
Enquanto ela levava uma vida de mulher de homem rico no Brasil, Luciano vivia uma
vida nababesca no norte da África e no sul da Europa. Seus colegas alemães e
franceses mostravam-lhe o Velho Mundo com a despreocupação de quem recebe
dinheiro em cinco e seis dígitos. Nunca faltou nada durante aqueles três meses, até
que as coisas começaram a dar errado.
Os primeiros sinais, nunca ninguém percebe, ainda mais quando se está numa nação
estrangeira onde se fala uma miríade de línguas diferentes da sua. Os comentários em
amárico - a língua oficial do país - passavam por despercebidos, assim como as
notícias espalhadas nas dezenas de dialetos regionais. O inglês era a única fonte de
informação para os cientistas e engenheiros, e, por isso, mesmo, a linha de
comunicação mais filtrada.
Enquanto a comunidade nuclear de Adis Abeba tomava champanhe francês, a cúpula
do governo começava a olhar duas vezes para a comida antes da primeira garfada.
Mas não eram exatamente as garfadas que deveriam incomodar aquelas pessoas.
A hospitalidade dos povos africanos é notória porque eles são espontâneos, não
procuram esconder emoções, não agem como os europeus. São muito parecidos com
o brasileiro. A tranqüilidade muitas vezes confundida com indolência.
Se um africano oferece a casa para um visitante, está realmente fazendo isso. Vai dar
a ele o que há de melhor na casa - mesmo que às vezes não tenha algo para ser
considerado melhor - e espera que a pessoa se sinta bem, dispensando qualquer
cerimônia.
Em contrapartida, os povos africanos são notórios por deixar de lado qualquer sutileza
quando o assunto passa para o terreno dos descontentamentos.
E o povo da Etiópia estava descontente com o que estava acontecendo em seu país.
Na África, os descontentamentos sempre resultam em milhares de mortes. As
primeiras não vieram com comida envenenada, mas sim com explosões que podiam
ser ouvidas com toda a clareza do quarto do hotel, fazendo com que a ereção de
Luciano fosse cortada pela metade. Talvez ainda mais que a metade.

As primeiras mortes vieram com aquela velha impressão de que não passavam de
acidente. E na África há sempre uma boa oportunidade para um acidente que não
aconteceria fácil em outra parte do planeta. Quando Luciano percebeu o que estava
acontecendo, quase que se poderia dizer que era tarde demais. Mas não era.
Assim como os ladrões, cientistas sabem muito bem a hora de sumir. Ainda mais
quando se tratam de cientistas que fazem bombas atômicas para países que não
deveriam ter bombas atômicas. Os alemães deram as dicas para os brasileiros e
deixaram os franceses como maridos traídos. Últimos a saberem o que estava
acontecendo, trataram de providenciar heranças e seguros de vida para seus
beneficiários. Quem estava por trás daquilo, ninguém sabia.
Os únicos pontos sólidos eram os que uniam Adis Abeba às capitais mais próximas.
Existiam muitas linhas de interesse na região. Muitas e diferentes. O governo etíope
esmerara-se em manter em segredo sua intenção de se tornar um exportador de
tecnologia nuclear (do pacote pronto, é óbvio), mas a coisa não andara do jeito que
esperavam. De uma forma ou de outra, Luciano tinha a impressão de que sabia o que
estava acontecendo, e sentia que o SNI tinha algo a ver com aquele plano frustrado.
Seria mesmo? Nem o tempo diria, como costuma acontecer com quase a totalidade
das operações na área de inteligência.
Quando ele percebeu o que estava acontecendo, se viu no banco de um jipe russo em
direção ao aeroporto da capital. A cidade estava em convulsão como sempre, recheada
de gente faminta, mas existia algo mais que Luciano não conseguia perceber o que
era. Sentia apenas o rosto queimando, a indiscutível intuição de que deveria dar o fora
dali.
Seus documentos não precisaram sair da bolsa para abrir passagem até o que os
nativos etíopes chamavam de saguão do aeroporto. Até ali correra tudo muito bem.
- Sou brasileiro. - disse para o sargento que estava cuidando temporariamente do
departamento de alfândega. O militar não tinha a menor idéia do que estava
acontecendo, do que deveria fazer. Sentia-se à vontade apenas para dizer “não”. Na
negativa tinha a certeza de estar fazendo a coisa certa, já que não se arriscaria com
nenhuma atitude errada. - Tenho passagem, passaporte, tenho que ir embora! Minha
mulher está grávida no Brasil.
O argumento não parecia emocionar muito o militar, que continuava muito ocupado em
cutucar alguma imperfeição da pele nas costas.
- Sou brasileiro... Minha mulher está grávida! - repetiu Luciano, cometendo um grave
erro.

A ventania era insuportável e levantava paredes bruxuleantes de areia. Isso era ruim e
empolgante ao mesmo tempo. Eram todos homens de Cavalaria, e imaginar que o
vento e as lagartas dos T-80 eram responsáveis por aquele cenário apocalíptico, era
até afrodisíaco. O piloto do tanque de Fahed conferiu todos os instrumentos e
certificou-se que estavam prontos para a refrega. Os homens comandados pelo coronel
queriam dar um banho na equipe adversária. Era assim o espírito das manobras
militares em qualquer lugar do mundo, em qualquer arma. Homens se transformavam
em meninos e armamentos que custavam milhões (muitas vezes bilhões) de dólares
viravam brinquedos.
Ibrahim Al Fahed recebeu o sinal através do rádio. Era o que estava esperando há
horas. Agora, depois de ouvir Tom Jobim, estava pronto. Tocou no ombro do
sargento-piloto, que acionou o acelerador. O motor, uma máquina estúpida movida a
diesel, fez o veículo dar um salto para a frente. O T-80 de Fahed foi seguido por tantos
outros, sedentos de destruição (nem que fosse de brincadeirinha). Poucos ali tinham a
noção de que o inimigo seria uma decisão inglesa tomada no início do século XX por
causa de uma plantação de tamareiras.

Quando Cíntia nasceu, Luciano vendia consórcios de carros e motocicletas. O negócio


com seu cunhado mixara. Ele não agüentou aqueles bancários e falou meia dúzia de
palavrões numa reunião. Um deles não gostou que a mulher dele estivesse ouvindo
aquelas palavras de calão e tentou demover Luciano da idéia de proferi-las. Apesar de
ser um cientista, o lado militar sempre acatou o treinamento físico do Exército, o que
lhe concedeu massa muscular um pouco acima da média (não como Hermes). O
suficiente para deixar aquele bancário de olho roxo. O irmão de Mara levou três anos
para aparecer de novo na casa do cunhado...
Não é fácil vender consórcios. Tem dia que se vende e dia que não vende nada. Tem
semana que vende, semana que não... Tem mês que vende... Luciano nunca tentara
vender nada até então.
- Tente aprender com seus colegas... - sugeriu o chefe, um cara alto, largo, de cabelos
grisalhos e pele bronzeada. “O filho da mãe não deve sair da praia”, imaginava
Luciano.
A sugestão foi acatada. Levada a sério mesmo. Luciano começou a almoçar com os
caras, “beber” o que eles diziam. Ele fora obrigado a vender seu Diplomata e comprar
uma Brasília 1975 em 1983, enquanto eles dirigiam o recém-chegado Monza. Isso
queria dizer que eles sabiam o que estavam fazendo.
Nessa época, foi torrada uma grana preta com almoços e happy-hours para se ouvir
um monte de baboseira. Parecia uma fazenda: cantavam de galo, mas não ensinavam
o pulo do gato para o burro.
- Você tem que demonstrar que é amigo deles. A relação só no trabalho não consegue
perder o caráter de concorrência... - disse Mara, emprestando-lhe um pouco de
sabedoria feminina.
Ela estava certa, como sempre. Como era ela que estava conseguindo mais grana para
dentro de casa dando aulas particulares de gramática, não tinha como não acatar suas
idéias. Tentou virar amigo dos grandes vendedores de consórcio.

As fotos eram de uma região montanhosa no norte do Iraque, uma espécie de deserto
onde havia um lago sazonal num platô. Era chamada de Osirak e, um dia, em 1981,
fora sobrevoada por um raide de caças-bombardeiros F-16 da Força Aérea de Israel.
O satélite da série KH-11, uma linhagem de espiões que servira muito bem aos
Estados Unidos desde a Guerra Fria, havia girado ao redor do planeta numa órbita
geoestacionária e passado várias vezes, em intervalos de quatro horas, sobre aquilo
que um dia fora uma grande construção. Existiam dezenas de fotografias daquele local.
- Essas fotos são as mais recentes? - perguntou Wittmann, tomando um gole de seu
refrigerante.
- Você quer ver as mais antigas que temos?
- É isso aí.
- São essas dentro da pasta. São de logo depois do bombardeio dos israelenses,
quando eles estragaram os planos de Saddam...
Wittmann abriu a pasta: - Esses estraga-prazeres, hein? - e alinhou as fotos antigas
com as novas. - Não parece que os iraquianos tenham se preocupado em reformar os
estragos daquelas bombas, não é?
- É o que você vai ter que responder...
- Ok... Eles têm visitado Osirak recentemente. Começou quando? - perguntou
Wittmann, anotando as datas das fotos.
- Logo depois dos grandes treinamentos das forças terrestres. O que acha?
- Não sei. Quero estudar essas fotos e as fotos dos movimentos dos blindados.
- As manobras já foram analisadas. Tudo indica uma grande mobilização em direção à
fronteira com o Kuwait. Estamos trabalhando nisso há meses. Osirak é que virou uma
pulga atrás da nossa orelha...
- Quero avaliar o quadro completo, Bill. Às vezes as coisas estão conectadas,
balançando debaixo dos nossos narizes e não percebemos. Mas queria pedir um
favor...
- Diga.
- Quero tomar um banho, trocar de roupa e deitar por duas horas. Minhas costas estão
me matando.
- Entendo. Fique à vontade, Wittmann.
Ford observou o analista de imagens aéreas guardar as fotos dentro de sua valise e
caminhar para a porta: - Ei, Wittmann... Como anda lidando com a saudade do “ar”?
- As minhas costas não me deixam ter tantas saudades assim...

- Luciano, sabe qual é o seu problema? - disse um cara chamado Douglas, um mulato
baixinho, extremamente simpático, enquanto cutucava uma maravilhosa peça de
alcatra na churrasqueira de sua casa em Saquarema.
- Qual é, Douglas?
- Você é bom demais.
Luciano caiu na gargalhada. Se ele era bom demais, por que não tinha uma casa em
Saquarema, um Monza SR e dinheiro suficiente para manter um apartamento para uma
“dona” em Copacabana?
- Pára com isso, Douglas... - pelo que ele podia se lembrar, já tomara cerveja demais
naquela hora. Até passou a achar bonita a Soraia, uma das poucas vendedoras
mulheres da empresa, que se aproximara por trás, com uma saída de praia mezzo
transparente. Tentou não olhar para as celulites dela para que as celulites de Mara não
ficassem com ciúmes.
- Você está certo, Douglas. O problema do Luciano é que ele é bom demais.
- Eu não entendi...
- Vou explicar... - prontificou-se Soraia, fazendo uma breve pausa para petiscar um
pedaço de alcatra que Douglas acabara de cortar - Olhe para o Douglas. Ele é um cara
simpático, não é?
- É. Acho que é o cara mais simpático que conheci em toda minha vida...
- Mas ele não tem cara de alguém para quem você possa tentar vender... deixa eu
ver... o Viaduto de Madureira?
Ela estava me pedindo para confirmar que achava que Douglas tinha cara de idiota.
Seria o momento perfeito para ele explicar que sempre achou que todos naquela
empresa tinham cara de quem fugiu da escola na quarta série. Não fez isso.
- Não fala assim...
- Eu tenho cara de idiota, Luciano. A Soraia também tem. Ela não parece alguém que
não saiba fazer contas de juros?
- Eu não sei calcular juros! - corroborou Soraia.
- Olha lá o Hildebrando. Olha como ele ri. Ele ri assim na frente do cliente dele. Imagina
o que o cara que está na dúvida entre comprar um consórcio com ele e não comprar
merda nenhuma de consórcio pensa: Um cara que ri assim seria capaz de me
enganar? Claro que não!... Entendeu onde queremos chegar?
Claro que sim.
Luciano era um cientista. Não tinha cara de idiota. Poderia ter o semblante confiável
para um investidor em Wall Street, mas não para um assalariado que estaria se vendo
obrigado a apertar o cinto durante 50 meses. Havia entendido o recado. Afinal de
contas, ele não era como Douglas, Hildebrando e Soraia.
Mas continuou vendendo consórcios. Seu QI elevado o permitiu desenvolver uma
técnica de interpretação que o possibilitou aumentar a carteira de negócios. Os meses
passavam, os semestres passavam, e conseguia sempre um pouquinho mais. Nunca
para alcançar os patamares que havia conhecido antes, mas para resgatar um pouco
de dignidade.
Ao mesmo tempo em que se acomodava finalmente à vida profissional civil, sentia-se
cada vez mais como um peixe fora d’água entre os civis. Nunca mais foram à casa de
Douglas em Saquarema. Tinha uma necessidade de saber como estavam seus
colegas de caserna, seus verdadeiros amigos.
Passaram a se encontrar para tomar uma cervejinha e falar mal do governo.
Falar mal do governo e saber para onde foram amigos em comum, em que
organização militar estavam servindo etc. Nenhum deles chegara aos círculos que um
dia freqüentou dentro das Forças Armadas, por isso, seria impossível perguntar para
Luís Carlos como estava o projeto Aramar, se haviam resolvido os problemas com
centrifugação do plutônio a laser etc. Ele estava à margem, mas via muito bem em que
se transformaram.
Luciano não vestia mais a farda, mas se colocava junto com eles como vítima de uma
onda de um revanchismo injusto.

Wittmann passou quase um ano numa cama e depois levou seis meses para
reaprender a andar. Os médicos reumatologistas da Marinha ainda hoje estão se
perguntando como ele conseguira se recuperar tão rápido - outros ainda se perguntam
como ele conseguiu voltar a andar. Mas apesar de ter voltado a caminhar, Wittmann
nunca mais pôde pilotar um avião novamente. Consegue “entrar” num avião, mas
nunca mais teve coragem de sentar dentro de uma carlinga e empunhar uma manche.
Foi durante a terapia para tentar retornar à ativa que Wittmann descobriu que nunca
mais seria um piloto e que havia uma qualidade de sua profissão que poderia utilizar
ainda em serviço de seus país: reconhecer a topografia vista de cima. Sempre tivera
facilidade em visualizar mapas, entender o que estava acontecendo no solo com uma
breve olhada do alto.
Seu pai fora piloto na Segunda Guerra Mundial, nos tempos em que essa habilidade
era fundamental para se voar - hoje, num avião de combate, os radares e
computadores fazem boa parte do trabalho mais gostoso - e depois, nos tempos de
paz, abriu uma empresa de pulverização de agrotóxicos no Oregon.
Foi num pequeno monomotor que Wittmann aprendeu a pilotar, sempre observando o
solo para se localizar. Da pequena cabine podia ver as plantações, saber onde deveria
pulverizar ou não, e como achar o caminho para casa quando o tempo ficava feio.
Não foi difícil conseguir uma indicação de um ex-comandante com estreitas ligações
com a comunidade de inteligência para o Gabinete Nacional de Reconhecimento -
departamento instalado no sétimo andar do prédio da CIA especializado em análises
de imagens aéreas ou de satélite.
O que fez a diferença em sua carreira no GNR foi exatamente o fato de saber como era
estar lá em cima, discernir sombras, avaliar altitudes de elementos no solo. Em pouco
tempo, Wittmann passou a receber distinções especiais da diretoria da CIA, da Agência
de Segurança Nacional, do Serviço Secreto e do FBI. Centenas de fotos, muitas vezes
extremamente secretas, passaram a cair sobre sua mesa. Ele redigia os relatórios e
tratava de esquecer do que fizera - extremamente profissional. Sabia que muitas
daquelas imagens eram elementos vitais de operações secretas, às vezes
clandestinas, até, mas nunca se incomodou muito com isso. Era o que estava
acontecendo em Incirlink.

Hermes entrou para o Exército no mesmo ano que Luciano. Eles vieram de destinos
diferentes: Luciano, através de concurso civil; ele, direto da Escola Preparatória de
Cadetes do Exército. Desde que ele se entendia por gente, usava verde. Desenvolveu
extraordinariamente seu físico e a capacidade de liderança. O tipo do homem que, ao
chegar na portaria de um estádio de futebol, era capaz de organizar as duas torcidas
adversárias numa única fila. É bem certo que Luciano era obrigado a julgar que a vida
na caserna limitou um tanto quanto as ambições intelectuais de Hermes - nada que
afrontasse a inteligência humana - tornando-o um perfeito candidato às fileiras menos
cerebrais da Força.
Terminada a Academia Militar, ele foi um dos primeiros da turma a entrar para o seleto
quadro de pára-quedistas. Terminado o curso, não descansou enquanto não
costurasse em seu ombro a insígnia de Forças Especiais, amarela, com uma espada
atravessando uma caveira.
Nenhuma dessas empreitadas “macho” serviu para mudar o caráter pacífico de
Hermes. Ele encarava os cursos como desafios físicos - além de uma forma de agregar
valores ao soldo - e não como uma desculpa para a bestialização.
- Um colega nosso, cujo nome não vou revelar - contava Hermes, sempre que bebia -
fez o seguinte num exercício de sobrevivência: para preparar com mais facilidade um
gato do mato para o jantar, resolveu tirar a pele do bicho não somente ainda “quente”...
Fez isso com o bicho vivo. Sabe o que aconteceu com o cara? - e mostrava o punho. A
breve aventura rendera uma prisão de um dia para Hermes e o desligamento do
“colega” do curso de Forças Especiais - Não precisamos de mais gente louca...

A incômoda parada na rodoviária do Rio de Janeiro pouco significava para Luciano. Ele
tinha mais problemas que as preocupações corriqueiras daquele local. Considerada
uma sucursal de Nova Délhi no Brasil, aquela estação de entra e sai de gente e
veículos foi transposta em poucos minutos. Ele correu na direção de um ponto de
ônibus, mas não ficou ali 30 segundos. Não tinha tempo para esperar por um coletivo,
tão pouco descer a duas quadras do prédio. Tinha ainda algum dinheiro no bolso, não
sabia se o suficiente para pagar a corrida, mas não chegou a se incomodar com isso.
Não era hora para esse tipo de incômodo mesquinho, pequeno. Apenas disse o
endereço para o taxista e se agarrou na alça de mão traseira enquanto o carro
deslizava como um bólido pelas ruas da zona norte do Rio de Janeiro.
A pausa do caminho seria ideal para imaginar o próximo passo. Hermes e Luís Carlos
estariam chegando na cidade em poucas horas, cada um por um meio de transporte
diferente, como precaução. Era melhor do que os três fossem fuzilados num carro na
Avenida Brasil. Mas o que fazer no intervalo entre um evento e outro?
Dentro do táxi, além do motorista e das coisas que pertenciam ao veículo, havia
apenas uma bolsa com algumas cuecas e um jogo de barbear. Não havia dinheiro,
armas ou qualquer outro instrumento de persuasão. Isso enlouquecia Luciano, o
fragilizava.
O que encontraria em casa? Não queria pensar nisso, mas era obrigado porque, afinal
de contas, havia coisas piores do que a leucemia de Cíntia. Havia sim, e ele queria que
aquelas coisas continuassem existindo apenas dentro de sua cabeça, pelo menos em
relação à sua família.

- Seu desgraçado! O que você fez? O que está acontecendo? - gritava Mara, os olhos
injetados, vermelhos, os lábios brilhando de tão sangüíneos. Luciano estava caído,
prostrado no chão. As pernas haviam perdido a força ao entrar no apartamento.
O cobrador de Aurélio Lisboa também estivera na sua casa, mas não encontrara sinais
de violência. Não parecia que alguém estivera lá, não fosse pela histeria da mulher.
Cíntia estava deitada no sofá, fraca demais para tentar participar do drama.
Queria dizer para Mara ter coragem, só isso.

Deitado na cama, Wittmann observava as fotografias. Não estava com sono. Apenas
precisava relaxar as costas. Seu cérebro continuava aguçado, apesar da dor tênue.
Não tinha certeza do que estava ali nas imagens preto e branco, mas tinha a impressão
de que as marcas dos pneus dos caminhões poderiam dizer muito numa análise mais
acurada. Poderia chamar de intuição? Sim, poderia. Intuição é algo que existe e faz
muita diferença em qualquer ramo do trabalho humano. Funcionava quando era piloto,
continua operante diante de mesas de luz, slides e chapas fotográficas. Mas precisava
agora de um ampliador eletrônico, um bom computador que, já sabia, ainda não estava
disponível naquela base no reino. Ele havia sido a primeira ferramenta do gabinete a
chegar naquele canto do globo, realmente para fazer o que estava previsto em seu
contrato - reconhecer.
Mas o que aqueles caminhões faziam numa velha usina nuclear que nunca entrara em
operação? Será que aquilo representava uma nova frente iraquiana?
Os rapazes da SAS e das brigadas pára-quedistas de reconhecimento já estavam em
solo inimigo. Os ingleses conheciam muito bem o terreno, pois tinham décadas de
intimidade com o povo iraquiano. Para o MI5, que estava muito bem abastecido com
informações quentinhas como pão saído do forno, a coisa toda deveria se desenrolar
rumo sudoeste. Então o norte estaria em qual prioridade para Saddam?
Era bem certo que ele tinha o quinto maior exército do mundo, mas também era bem
certo que não era tolo. Mobilizar suas forças daquele jeito era como se avisasse ao
mundo inteiro que uma guerra estava prestes a começar, numa área de interesse
fundamental para mais de meio mundo. Ele não poderia dispor de poucas forças neste
teatro de operações.
Então o que estaria acontecendo em Osirak?
A velha intuição cochichava em seu ouvido interno, sugerindo que algumas coisas
poderiam ser feitas sobre o assunto. Pedir ampliações daquelas fotos feitas no GNR
era uma delas.
Mas não seria feito.
Valia a pena esperar os computadores chegarem com sua mágica na Turquia. O
segredo da mágica sempre foi não revelar o truque para ninguém.

- Como funciona isso?


Luís Carlos olhou para Luciano com uma expressão de cansaço. Já tinha explicado
duas vezes. Como não acreditava muito naquilo, demorou a compreender (ou aceitar?)
o mecanismo.
- Você vai à reunião, conhece o negócio, compra o pacote e daí vai procurar outras
pessoas que também queiram conhecer o negócio, entendeu? Até aqui entendeu?
- Claro que entendi. Não entendi como começa a ganhar dinheiro.
- Você vai começar a ganhar dinheiro quando as pessoas que entraram sob a sua
influência começarem a comprar os pacotes e a levar mais gente para entrar no
negócio. É como uma reação em cadeia...
- Espera aí, Luís. Numa reação em cadeia os átomos não têm escolha. Nessa sua
história, as pessoas têm. Elas podem escolher entre aceitar a proposta e efetuar a
compra do tal pacote e não aceitar, dar as costas e nunca mais voltar...
- Daí a necessidade de se levar muita gente, não interromper seus contatos, estar
sempre buscando mais gente...
- Você já começou a fazer isso?
- Já comprei o pacote...
- E o dinheiro começou a entrar?
- Cara, já te disse! Eu ainda não comecei a levar as pessoas lá. Assim que isso
começar a acontecer, o dinheiro vai começar a pintar para mim. Se você entrar, vai ser
a mesma história. Tudo depende de você...
- Fiquei boiando de novo. Como eu disse, as pessoas têm a opção de fugir dessa sua
“reação em cadeia”. Os átomos não. Nesse caso, não depende tudo de mim. Pra falar
a verdade, muito pouca coisa depende de mim nesta história...
Luís Carlos olhou para o relógio. Luciano o conhecia há muito tempo para saber que
ele estava nervoso. Tentou reverter a situação e sugeriu que comprassem umas
cervejas no bar lá embaixo.
- Deixa pra outro dia. Lembrei que tenho um compromisso...
E se foi. Um lado de Luciano dizia “ainda bem, não tenho dinheiro para a cerveja”,
enquanto outro lado se lamentava por deixar um amigo numa situação constrangedora.
Helena fazia parte deste segundo lado, como um grilo falante.
- Não precisava ter sido tão duro... Você o tratou como se ele fosse um idiota. - disse,
da porta da cozinha.
- Mas é mais ou menos isso, não é? Esse negócio é como uma pirâmide. A diferença é
que tem umas goiabas para o cara comprar. Só isso.
- Você tem certeza?
- Claro que tenho.
- Não me lembro de ter visto você experimentar, de ter coragem de experimentar
alguma coisa desse tipo.... - murmurou, voltando para a cozinha. Luciano a seguiu, pois
sabia que ela não estava encerrando o assunto.
- Onde quer chegar, Helena?
- A nenhum lugar...
Fez uma pausa, olhando para ela mexer o molho. Ela estava fazendo macarrão à
bolonhesa.
- Estamos casados há quanto tempo?
- Ok! Você já percebeu como às vezes pode ser extremamente superior?
Tinha que concordar. Certo ou errado, Luciano possuía essa habilidade de parecer
dono da situação.
- Você feriu o Luís Carlos. Deveria ter sido mais político.
- Como mais político, pelo amor de Deus!?
- Topar ir à tal reunião que ele falou! Só ir! Isso não ia arrancar nenhum pedaço da
gente, ia? Você acha que eles iam drogar a gente, nos hipnotizar, força a gente a
assinar uma procuração em branco?
- ...
- É... Não ia acontecer nada disso, não é?
- É...
- E depois era só a gente dizer que não gostou da conversa deles. Ponto final. Só isso.
Ninguém ia sair ofendido, pelo menos o Luís Carlos não ia sair ofendido, e ainda ia
aprender, com a própria experiência, que a coisa não é tão fácil quanto ele pensa...
Mas, com certeza, aprenderia isso sem ter que ouvir do melhor amigo dele que ele é
burro.
Não foi possível para Luciano dormir naquela noite. Tinha que admitir que havia sido
um monstro, e precisava se redimir.

O negócio funcionava sempre da mesma maneira. O transportador atravessava a


fronteira do Iraque com a Turquia, ajudava a fazer a troca de mercadorias de veículo
para veículo, recebia o dinheiro e ia embora de volta para o sul. Raramente a coisa
acontecia de forma diferente por um motivo relativamente óbvio: Farina não queria
saber de ser seguida nem de longe ou de perto por alguém com quem tinha acabado
de fazer um negócio escuso. Se Azize precisava ir até alguma cidade, que a
procurasse ao sul, ou que esperasse amanhecer e anoitecer de novo para seguir rumo
ao Lago Van. A desconfiança mútua era o único meio de manter vivas pessoas que
trabalhavam tão à margem de qualquer lei.
Por isso Farina seguia rumo ao seu depósito, sempre consultando o espelho retrovisor.
Ela também sabia que Ishnam estava fazendo a mesma coisa, no final do pequeno
comboio, além de manter seus prodigiosos ouvidos bem atentos.
Mas eles nunca ouviriam o deslocamento de Azize.
Um punhado de notas pequenas de dólar havia comprado informações sobre a posição
correta do local onde Farina guardaria aquela remessa até a chegada do comprador
europeu. Não era preciso muito dinheiro para garantir que a fidelidade à mulher fosse
enfraquecida. Para Farina, era uma luta diária vencer o preconceito e o machismo
dentre seus próprios servos - sempre haveria um disposto a considerar indigno
trabalhar para uma mulher.
Dessa forma, seria fácil para Azize e seus homens ficar no encalço da mercadoria,
mesmo que alguns quilômetros atrás, a uma distância segura o suficiente para que
suas luzes fossem vistas ou seus motores fossem ouvidos.
Seria uma lição e tanto, pensava Azize, conferindo a munição de sua arma. Há meses
vinha trabalhando para aquela mulher e se perguntando o motivo de mantê-la como
sua atravessadora. Por que permitia que deixasse o dinheiro mais volumoso para ela?
Por que ele mesmo não fazia os contatos com os compradores norte-americanos e
europeus? Por que perder para uma mulher, uma ex-meretriz - se é que fosse possível
existir tal coisa, complementava a pergunta.
Essas impropriedades teriam que acabar, e ele tinha a intenção de fazer com que isso
acontecesse o quanto antes. Seria preciso derramar sangue, seria preciso luta. Não
tinha conseguido comprar todos os homens de Farina, logo, teria que enfrentá-los.
Mas será que eles insistiriam na luta se a vissem morrer com os primeiros disparos?
Será que prefeririam morrer por uma mulher a trocar de mestre? Por um mestre
homem, algo muito mais oportuno e aceitável?
Isso fazia com que Azize pensasse em como Farina conseguia se manter viva e na
liderança do grupo há tanto tempo. Provavelmente seria por acomodação daqueles
homens - seriam mesmo homens?
Algo seria feio naquela noite.

Ajhina Fahed deixou o seu filho na cama ao ouvir o ruído do motor do velho Mercedes
entrando no quintal da casa. Não fosse pelo fato de não escutar aqueles pistões há
mais de um mês, não teria deixado a cabeceira do leito de Kathib.
Ela destrancou a porta freneticamente e desceu o curto lance de escadas que dava
para a garagem e abraçou o marido ainda à porta do veículo fumegando vapor do
compartimento do motor. Eram dias difíceis para encontrar peças automotivas a preços
baixos. Fahed trajava sua farda ainda suja de poeira, mas percebeu que a mulher não
se incomodava em sujar-se. Saudades.
Beijaram-se.
- Onde está Kathib?
- Kathib está com febre. Anda mal há três dias. Está deitado...
- Não devia ter deixado o menino sozinho, Ajhina... - repreendeu Fahed a esposa,
apenas por reflexo, sentindo-se incapaz de ser áspero. Abraçou seus ombros miúdos e
puxou-a para caminhar ao seu lado - Vamos ver como ele está.
- Você demorou... - a mulher reclamou com a voz sumindo, incapaz de deixar de se
sentir envergonhada de deixar o menino só à cama.
Fahed largou a sacola com os poucos pertences que levara à manobra, pegou uma
toalha úmida e atravessou o corredor diante da mulher, limpando o rosto e as mãos.
Entrou no quarto do menino.
Ajoelhou-se ao lado da cama do filho, confuso se seria melhor acordá-lo ou deixá-lo
reestabelecer-se da febre em seu sono.
Ajhina diria depois que sentia-se abençoada por Alá por ter se casado com Fahed, um
homem diferente de seus compatriotas. Olhá-lo ajoelhado ao lado da cama do menino
traçava os verdadeiros contornos de seu caráter que ela definia como “avançado”. Ele
era emotivo, quase carinhoso, compreensivo, desafeito às tradições bárbaras que
muitos iraquianos ainda mantinham por pura conveniência - para prevalecerem-se de
uma masculinidade pela qual não tiveram que pagar nada.
Ela sabia que este comportamento tinha uma raiz, e esta origem não era nada além do
livre arbítrio - a forma como Fahed escolhera para reagir às dores proporcionadas
pelos anos que passara na guerra fora bem diferente da forma pela qual a maioria dos
homens optava.
Num momento estava alisando os cabelos de Kathib sem tocá-los. No outro, acariciava
os seios da mulher com um carinho semelhante - obedecendo às devidas proporções.
Não se viam há mais de um mês e estavam fazendo sexo à ocidental, sem a
necessidade de procriar. Ela fechou os olhos e se recordou de que ele dissera que só
queria um filho. Ela, a princípio, estranhara, chegara a acreditar em algumas mentiras
que falavam sobre ele, pelas costas, é claro, mas descobrira da forma mais agradável
que tudo não passava de conversa fiada.
Às vezes Ajhina desejava ter outro filho. Uma menina, quem sabe, uma pessoa a quem
pudesse desejar a mesma sorte que tivera. Seria possível? Quantos homens como
Fahed seria possível encontrar em uma existência? Mas não adiantava insistir na
possibilidade de concretizar o desejo, de alimentar o sonho. Ela sabia que por mais que
Fahed fosse um ótimo homem, não conseguiria dobrar seus desígnios. Aquilo era um
tabu para o marido. Apenas um filho.

Luciano preferia nem lembrar como chegara naquele condomínio. Tinha a opinião de
que tudo não passara de uma armação de Mara. Estaria ela interessada em conhecer
aquelas propostas miraculosas de renda extra, sem esforços, sem compromisso? Ele
não tirava da cabeça que aquilo não passava de uma forma bem disfarçada de
estelionato, mas estava desarmado demais perante os argumentos da mulher. Ela o
fez enxergar como havia se transformado num cara individualista, soberbo, apesar de
não ter um canto onde cair morto - não estava errada.
Foram recebidos na porta por um casal muito bem vestido. O cara estava
alinhadíssimo e Luciano agradeceu a Deus por ter ouvido as recomendações de Mara -
afinal de contas foi ela quem o impedira de ter ido de jeans e camisa pólo. Teve a
impressão de que haviam sido os últimos a chegar, já que logo depois da entrada o
casal de anfitriões começou a organizar a recepção para a apresentação dos
“negócios”.
Enquanto eram feitos os ajustes no retroprojetor e no projetor de slides, a mulher tratou
de apresentá-los a outros casais, tão ou mais alinhados quanto os donos da casa. Eles
não apenas vestiam trajes bem cortados, como Mara destacou ao pé do seu ouvido a
cada griffe que reconhecia, mas portavam acessórios valiosos, como jóias pesadas,
relógios de marcas famosas. Coisa de louco. Não havia como não se empolgar com
aquela atmosfera de ostentação, ou se questionar se aquele negócio funcionava de
verdade.
Antes de serem convidados a sentar num salão convertido em anfiteatro, foi servido um
coquetel. Luciano tomou duas taças de vinho branco. Aprovou a marca dando o braço
a torcer de que havia um investimento ali. E onde há investimento, necessariamente as
pessoas esperam retorno. Dava para perceber que não era a primeira vez que muitos
ali se encontravam e que estavam acostumados aquele tipo de reunião. Se não era a
primeira vez, então poderia assumir que havia retorno, lucro, rentabilidade e que muitos
ali o estavam repartindo.
Enquanto delineava este raciocínio, viu Luís Carlos se aproximando, visivelmente feliz
com a presença dos amigos.
- Que bom que vocês vieram... - disse, segundos antes de começar a preleção do
homem que parecia ser o líder do encontro.

É fácil admitir que não se sabe usar uma camcorder, programar um videocassete ou
bater embaixadas. Difícil é explicar como e porque cargas d’águas num belo dia você
passa a acreditar que é possível ganhar dinheiro numa pirâmide. E o pior, como
explicar de onde arrumou dinheiro para entrar num insólito esquema onde as chances
de você perder dinheiro são tão certas quanto o sentido da queda da chuva. Luciano
não entrou nisso sozinho.
- Vai dar certo, Luciano. Se a gente acreditar, vai dar certo! - argumentou Mara toda
vez que ele demonstrava alguma dúvida. Mas, ao se recordar disso, Luciano não
colocava a culpa nela. Ele pensava da mesma forma e queria apenas o benefício da
cumplicidade.
É claro que os dois não possuíam o dinheiro para entrar no negócio. E também é óbvio
que não procuraram nenhum familiar ou amigo para obter os recursos necessários.
Eles precisariam do dinheiro na hora em que fossem convidados para participar da tal
“parceria”. A saída foi pegar dinheiro emprestado com uma financeira e entrar no
cheque especial.
A coisa funcionava como um jogo. Era como se estivessem em Las Vegas, indo para
uma das mesas para apostar. Fizeram diversos cálculos e julgaram que seria possível
arcar com os pagamentos dos empréstimos e com a rolagem do cheque especial até
que os primeiros lucros do “negócio” começassem a surgir. Loucura? Imagina...
Tinham o exemplo perto deles: Luís Carlos e a mulher estavam renovando o
guarda-roupas todo mês e haviam acabado de trocar um Chevette 85 por um Escort
conversível com ar-condicionado, som de primeira e pintura perolizada.
- Mara, temos que meter as caras nisso. O Luís Carlos está nadando em dinheiro.
- Eu só quero advertir você de uma coisa...
- O quê?
- Eu quero um carro igualzinho pra mim.

Chegara a vez de Luciano e Mara. Receberiam em casa o primeiro grupo de


convidados para entrar no “negócio”. Não estavam sozinhos. Luís Carlos e esposa os
assessoravam o tempo inteiro - eles já vinham fazendo as reuniões em casa há
tempos, e até passaram a promover os encontros em diversos clubes da cidade, pois
não tinham mais espaço para tanta gente.
- Será que servimos alguma coisa? Eu pensei num vinho branco, o Luciano disse que
não... - lamentou Mara para Denise, que estava sentada ao lado do marido.
- O Maia sempre foi um unha de fome. - brincou Luís Carlos, chamando Luciano pelo
seu nome de guerra, antes que Denise começasse a explicar.
- Maia, a Mara está certa. É melhor servir um vinhozinho branco. Está quente, um vinho
quase geladinho cai bem...
- Se é pelo calor, que tal cerveja? É mais barato... - ponderou Luciano Maia.
- Não é pelo calor. É para as pessoas se soltarem... - continuou Denise - O álcool,
dizem, é um lubrificante social. Vinho branco é uma bebida mais unânime... digo...
praticamente todo mundo toma vinho. Cerveja, muitas mulheres não tomam...
- Cerveja é uma bebida mais de macho! - brincou Luís Carlos.
- A Denise está certa. Eu não tomo cerveja, Lu...
- Ok, eu sei que a Denise está certa, mas o vinho branco é mais caro. Ainda mais
porque não adianta servir qualquer porcariazinha de vinho branco.
- Você está sem grana? - perguntou Luís Carlos. - Quanto você acha que vai precisar
para comprar o vinho?
- Olha, eu não tenho idéia... - respondeu, interrompendo a linha de raciocínio quando
percebeu que Mara estava se levantando.
- Gente, vocês não querem outro café? Lu, traz pra mim as xícaras, certo? É só um
minutinho...
Mara não teve a menor preocupação em disfarçar a interrupção no curso da conversa.
Obediente, imaginando que ela tinha seus motivos para agir dessa maneira, pegou as
xícaras na bandeja e a seguiu até a cozinha.
Nos filmes, todo mundo tem porta na cozinha, daquelas que abrem pra dentro ou para
fora, com mola. Nas casas de gente normal, como Luciano e Mara, a porta na cozinha
não é obrigatória, por isso ela falou quase que sem deixar a voz sair da boca.
Praticamente o homem teve que ler seus lábios.
- Não aceite dinheiro! Vamos comprar o vinho sozinhos!
- Mas como? Só se eu comprar com o cartão de crédito e usar o crédito rotativo!
- Faça assim.
- Droga, Mara. Eu consegui pagar mês passado a última fatura do cartão, fechei!
Vamos rolar a dívida de novo?
- Você quer ou não investir nesse negócio?
Pensou por uns instantes. Queria fazer aquilo. Balançou a cabeça positivamente e
voltaram para a sala não com café, mas com uma garrafa de vinho, tinto, que tinham
guardado para uma ocasião especial.
- Vamos comemorar? - perguntou Luís Carlos, sorridente, vendo o casal entrar na sala
com um ímpeto renovado; assustado, mas renovado.
- Vamos!
Luciano abriu a garrafa tentando seguir à risca as recomendações que um enólogo deu
numa coluna da Playboy e ergueram as taças remanescentes do casamento.
- A nós! - sugeriu uma empolgada Denise.
- À coragem de ousar! - retrucou Mara. Todos gostaram de sua sugestão.
À coragem de ousar. Ousadia já significa coragem, mas para ousar é necessário um
ímpeto, uma natureza desprendida, uma ausência de medo, de preconceito,
desenvoltura. Eles tinham coragem de ousar? Luciano havia direcionado sua vida rumo
a um futuro incerto, desde o início. Mesmo quando ainda estava na caserna sempre
apostou no caminho mais complicado. Ele queria ser cientista, estar à frente das
iniciativas mais tresloucadas, mais exageradas. Estudou parte da Física Nuclear e
muito de Engenharia, preparou-se para ser uma ferramenta para os sonhos mais
egocêntricos do poder. Ele tinha medo de ousar? Não. Via as pessoas comentando
“você acredita que o Brasil está fazendo uma arma nuclear?”, “isso é besteira, a gente
não tem tecnologia nem dinheiro para isso”, e era obrigado a ficar com pena dessa
gente. Eles não sabiam nada sobre ousadia.
Viviam num mundo em que a ousadia era desdenhada apenas para fazer jus ao ditado
“quem desdenha quer comprar”. Ele não tinha medo de ousar. Tinha coragem porque
queria uma vida melhor para ele e para sua família. Ia passar apertado uns tempos? Ia.
Teria que pagar juros? Dane-se! PAÍSES pagam juros! Por que alguém poderia
criticá-lo por usar dinheiro que não era dele para adquirir bens para e depois pagar
juros por isso? Por isso ergueu ainda mais a taça, sorrindo para a mulher e repetiu a
sua frase: - À coragem de ousar.
Sorveu o vinho pensando no aniversário do cartão de crédito.

Quando terminou de contar o que havia acontecido, até onde havia chegado, Mara o
abraçou. Tinha vontade de perguntar se ela também lembrara daquele brinde à
ousadia. Tudo tinha a ver com aquele momento, e com o que viera depois, quando
conseguiram contrair uma dívida incontrolável, que, embalada pela inflação, crescia
dia-a-dia. Tudo havia ganhado contornos irremediáveis a partir de então. A doença de
Cíntia fora apenas um catalisador para o inevitável, que seriam as contingências
forçá-lo a buscar dinheiro em algum lugar, em qualquer lugar.
O abraço de Mara era quente, reconfortante, cheio de perdão e cumplicidade. Era
como se quisesse dizer “vamos dar um jeito nisso também”, mas sem muita coragem
de fazê-lo. Até mesmo porque a mulher estava assustada demais e desorientada
demais para poder dizer que haveria uma saída. Poderia não existir. Ela não sabia de
todos os detalhes, pois o próprio Luciano desconhecia todos os meandros do labirinto
onde se entalara.
O telefone tocou cinco vezes antes dos dois perceberem o ruído. Luciano atendeu e
ouviu a voz de Hermes. Ele estava na casa de Luís Carlos, onde a situação parecia tão
caótica quanto à de sua família. Hermes não tinha pressa de ir em seu apartamento,
pois sabia que não haveria qualquer pessoa lá para ser pressionado por Aurélio. Mas
isso não o tornava incólume. Ligara para a casa de sua mãe e a acordara, deixando-a
preocupada e ignorando toda a situação. Menos mal assim.
Precisavam se reunir, era a necessidade mais premente. Tinham uma situação
delicada a resolver, medidas para avaliar. E nenhum deles tinha idéia do melhor meio
para começar a resolver o problema.

O sargento etíope ficou irritado com o modo como Luciano havia se dirigido a ele, com
impaciência e grosseria. Para o militar, que estava tão perdido quanto o brasileiro no
meio do que parecia ser um Golpe de Estado, pelo menos uma coisa estava clara:
naquele momento, ele tinha a faca e o queijo na mão, além de uma pistola calibre 45,
que fez questão de engatilhar e apontar para Luciano.
O brasileiro caiu de joelhos no chão, as mãos para frente lembrando uma reza trêmula.
O militar despejou uma torrente de imprecações que Luciano não conseguiu entender.
Falava em amárico, provavelmente, por estar nervoso. Quando começou a misturar o
dialeto oficial do país com o inglês (afinal de contas, aquilo era um aeroporto), Luciano
imaginou que teria alguma chance de se safar, e passou a pedir desculpas
copiosamente. Não precisava fingir arrependimento por ter sido rude. Estava realmente
assustado e arrependido, mas suas palavras não conseguiam mudar o humor do
sargento, que aproximou ainda mais a arma de sua cabeça.
Quando o cano frio e rotundo tocou sua testa, foi como se uma torneira tivesse sido
aberta.
A calça do brasileiro começou a ficar manchada, o líquido desceu pelas coxas, tocou o
joelho, encharcou a calça ali também, atravessou o tecido e tocou o abençoado solo
etíope.
Finalmente, Luciano dera um motivo para o militar mudar de humor. O homem desviou
o olhar do rosto do brasileiro e fitou o chão. Um sorriso de marfim começou a brotar em
seu rosto. Um sorriso que um homem dá quando percebe que está no comando da
situação, que é o vencedor. O sorriso se tornou uma gargalhada.
A arma retornou lentamente para o coldre do militar, que fez o internacionalmente
conhecido gesto de “pode passar”. Ou melhor, que queria dizer que “agora que você se
mijou na minha frente, seu idiota, e descobriu quem realmente manda aqui, pode
passar”.
E assim Luciano conseguiu embarcar no vôo de volta para o Brasil, fazendo uma
escala em Roma, outra em Lisboa e, finalmente, São Paulo e Rio de Janeiro. Somente
na capital portuguesa ele foi capaz de comprar uma calça e completar a viagem seco.

- Eu já tive uma arma apontada para minha cabeça e não gostei nada disso... - afirmou
Luciano, olhando para o tampo da mesa de centro da sala. Assim como Hermes e Luís
Carlos, esfregava sem parar as mãos suadas.
Fora o único comentário dos últimos 20 minutos, desde que os dois amigos haviam
chegado em sua casa e seria o único até que todos decidissem, de forma muda, que
mais um dia passaria sem uma solução. Cada um tinha vontade de abrir a boca, mas
tinha também medo de falar alguma idiotice, de começar, mais uma vez, com uma
nova proposta, um novo caminho para o cadafalso. E existiam tantos caminhos
capazes de levar os homens para esse destino.

- Ela tem leucemia.


- Como, doutor? - perguntou Mara, inclinando-se para frente, chegando mais perto da
mesa do médico.
O homem dentro do jaleco branco procurou ser o mais impassível que podia.
Pigarreou, fitou o casal nos olhos e repetiu o diagnóstico que os últimos exames - feitos
três vezes para evitar enganos - haviam apresentado. O casal ficou prostrado, sem
esboçar reação. Cada vez que era obrigado a dar uma notícia assim, surpreendia-se
com o quanto as reações humanas podem ser tão variadas. Algumas pessoas
começariam, daquele ponto, a gritar, chorar. Outras, começavam a rir, incrédulas,
achando que médicos teriam um senso de humor negro como o interior do cano de um
fuzil. Aquele casal não era único, raro. Era apenas mais um par de pessoas com suas
individualidades. O homem começou a piscar repetidas vezes, denunciando um
estresse que não encontraria um ponto para focalizar.
A mulher mudara de expressão como se tivesse recebido injeções de anestesia no
rosto. Baixara os olhos, parecendo muito preocupada com alguma coisa nas unhas.
- Isso significa exatamente o quê? - perguntou Luciano.
- Quer dizer que a filha de vocês tem uma doença muito séria, que não significa, nem
de perto, que a vida dela esteja com os dias contados. Não são dias contados, não são
meses ou anos. Existe tratamento para a doença, e nós vamos vencê-la. Com o apoio
de vocês, nós vamos vencê-la!
Aurélio Lisboa havia voltado para casa e dormira tranqüilamente. Não existia um real
motivo para ficar preocupado. Não perdera tanto dinheiro assim, não restaram traços
de sua participação na mal-fadada operação em Santa Catarina e a situação fora
domada com extrema eficiência por Mauricinho Vila Isabel. Os três patetas teriam
ficado apavorados, mas seu cobrador não os pressionara demais. Aurélio sabia muito
bem que nenhum inimigo podia ser tão acuado a ponto de se tornar perigoso. Não
precisava ler Sun Tzu para descobrir algo que as ruas ensinavam de graça.
Isso faria com que eles se sentissem obrigados a pagar US$ 200 mil, mas não
desesperados o suficiente para desistirem de pagar os US$ 200 mil e procurassem um
meio mais radical de eliminar a dívida, como, por exemplo, iniciar um confronto mortal
que resultasse na morte do credor. Essa era uma possibilidade que sempre pode
ocorrer às mentes exageradamente assustadas. No caso, o trabalho de Vila Isabel era
manter os devedores incomodados o suficiente para que fizessem o que precisava ser
feito para levantar o dinheiro. Como seria tratado mais adiante, não precisaria vir todo
de uma vez, mas também não se transformaria aquela dívida numa prestação do
Sistema Nacional da Habitação. Ainda mais porque o valor havia sido estabelecido em
dólares, a moeda mais forte do mundo desde Bretton Woods.

Mas se Aurélio Lisboa e Mauricinho Vila Isabel eram capazes de parcelar uma
incalculável dívida de US$ 200 mil, a leucemia não era tão condescendente assim. A
doença cobrava caro de Cíntia em grossas doses de saúde, e o hospital cobrava caro
um dinheiro que se esgotara há tempos das reservas, empréstimos e outras fontes de
crédito pessoal de Luciano e Mara Maia.
O mesmo médico que um dia havia afirmado que aquela família venceria a guerra
contra a doença - com uma entonação que lembraria Duque de Caxias exortando seus
homens para avançar em solo paraguaio - desta vez olhava para o casal com uma
clara demonstração de desapontamento.
Não que aquela mãe e aquele pai tivessem desistido da luta. Não que eles não
tivessem dando força, carinho e apoio para uma criança que era depauperada por uma
doença de ímpeto inexorável. O problema era que o casal não tinha mais dinheiro para
pagar um tratamento milionário para a época, o final dos anos 80.
- Pensei que estava lidando com gente séria... - disse o profissional que um dia fizera
um juramento em nome de um homem que curava pessoas num ponto remoto do
Império Persa.

O telefone não funcionava mais.


Quanto tempo levaria para a água ser cortada? Mara consultou mais uma vez o
contrato bancário, fingindo ler as letras miúdas. Que conseqüências terríveis poderiam
estar contidas naquelas linhas? Alguma pior das quais já vinham sofrendo? Mais uma
conta bancária seria aberta, de olho no limite do cheque especial. Eles já tinham
quantas contas?
Desta vez não precisara passar a vergonha de pedir um limite alto a um gerente
conhecido. O banco era pequeno e estava captando clientes, vendendo crédito como
se fossem grandes vantagens, para, com o tempo, começar a ceifar as fontes de
rendas dos mais desesperados. Era sempre assim, não era?
Acontece que a família Maia precisava de dinheiro. A família de Luís Carlos também
precisava, e, neste momento, assinava mais um contrato de cartão de crédito. Mais um
que não conseguiriam quitar.
O Kadet GS, que um dia fora motivo de orgulho para seu dono e de inveja para quem
via seu teto solar aberto, já tinha expedido um mandado de busca e apreensão. Era
uma questão de dias ou horas para que passasse a acumular poeira num
estacionamento de uma instituição financeira.
Enquanto Mara abria a conta, Luciano ficou em casa. “Eu vou cuidar da Cíntia”, ele
disse. A menina estava dormindo no quarto, alheia ao que estava acontecendo.
O pai abriu um armário no quarto de empregada.
No fundo do armário havia uma caixa. Dentro da caixa, uma garrafa. Ele mesmo
guardara lá a bebida. Ainda não eram duas horas da tarde e a vontade de tomar aquele
líquido deixava sua boca seca.
Voltou para sala, sentou no sofá e abriu a garrafa, despejando a bebida em um copo.
Ficou olhando para a televisão através do álcool girando dentro da peça de vidro. O
noticiário falava de uma crise no Oriente Médio. Coisa que acontecia todo tempo. O
líquido dentro do copo parecia mais interessante.
Houve um tempo, não muito distante, que aquele companheiro o aconselhara bastante.
Foram péssimos conselhos, mas ele esteve lá, ao seu lado, para tentar levantar seu
moral.

- Bando de filhos da puta! - gritou Hermes, batendo com o copo vazio sobre a mesa. -
Nenhum deles tem moral de falar mal do nosso governo! No nosso tempo não era essa
merda de inflação desse jeito!
- A inflação começou a ficar feia com o Figueiredo...
- Por quê? Porque ele começou a abrir as pernas! Se ele não tivesse aberto as pernas,
as coisas estariam boas! Quantos salários mínimos você ganhava antes, Luís?
- Ah, nem se compara! Dá mais uma garrafa aí, cara, acabou...
Luciano veio da cozinha com mais duas garrafas. Conhecia bem os amigos.
- Vocês reclamam, mas pelo menos estão com o garantido lá, entrando na conta todo
mês...
- Desculpa, cara, mas você foi um idiota... - afirmou Hermes, abrindo a garrafa que
ficaria destinada única e exclusivamente para abastecer seu copo.
- Foi minha escolha.
- É claro que foi sua escolha.
- Mas você viu coisas... - disse Luís Carlos, enchendo os dois copos. - Nós não vimos
tanto quanto você...
- É... - disse Luciano, olhando ao redor, procurando um jeito de se esquivar daquele ar
condescendente dos dois amigos. Seus olhos pararam sobre um objeto na estante ao
lado do sofá. Eram dois dados. - Eu já contei pra vocês de onde vieram esses dados?
Hermes e Luís Carlos olharam para as duas pequenas peças brancas. Pareciam
antigas. Hermes estreitou os olhos para fitar melhor os objetos. Estendeu a mão para
tocá-los e Luciano recuou um pouco.
- Cuidado! Isso é antigo...
- São dados... - disse Luís Carlos.
- Você já tentou contar de onde veio isso, acho. Não é verdade?
- É verdade. Eu acho que já tentei falar para vocês de onde vieram esses dois
“dadinhos”, mas acho que a gente tinha bebido demais e vocês não deram a menor
bola...
- Já bebemos demais de novo... - brincou Luís Carlos, virando o conteúdo do copo
goela abaixo. Hermes riu, mas decidiu dar a vez a Luciano.
- De onde veio isso?
- Do Iraque.
- Por que você trouxe isso do Iraque?
- Porque esses dados são sumérios.
- Dados sumérios? Dados de mais de mil anos? - perguntou Hermes.
- Mais de três mil anos, cara! Sumérios, assírios, esses caras foram o berço da
civilização no mundo! Eu trabalhei perto da cidade mais antiga do mundo!
Luís Carlos encheu de novo o copo e pegou os dados da mão de Luciano, que já
estava mais relaxado.
- Você vai trabalhar no Iraque, recebe só metade da grana que tinha que ganhar...
- Por causa dos israelenses, porra!
- ...E traz dados de lá? Essa não! Isso pelo menos funciona ou aqueles caras já faziam
dados viciados naquele tempo? Conta o raio da história desses dados, porra!

O copo custara muito barato. Para falar a verdade, saíra de graça, se fosse levar em
conta que o preço havia sido realmente o do requeijão que um dia estivera em seu
interior.
A mão direita de Hermes ainda segurava a garrafa de água. A porta da geladeira
estava aberta e a mão esquerda estava disposta como se segurasse o copo que
tombara no chão e se espatifado em dezenas de pedacinhos cortantes.
Os olhos e ouvidos de Hermes estavam atentos ao noticiário na televisão. “Será que só
eu estou vendo isso?”

Luís Carlos sempre fora o mais fantasioso dos três. Suas idéias eram sempre as mais
criativas, impossíveis, com as maiores chances de se transformarem em chacota.
Por isso ele estava correndo na rua, como um louco, com um punhado de moedas
fechadas na mão esquerda. Sabia que um ônibus passaria dentro de alguns minutos
no ponto depois da esquina.
Tinha que ser rápido para acompanhar o ritmo em que estava seu coração.

Gente havia morrido por aqueles dados. Por mais idiota que esta afirmação poderia
parecer saída da boca de Luciano, era a mais pura verdade. A história era difícil de
esquecer, mas também muito difícil de ser contada. Gente havia morrido diante de
seus olhos, e os dados foram parar em sua casa.
Luciano era um dos engenheiros brasileiros a trabalhar na construção de uma usina
nuclear numa região do Iraque chamada Osirak. A usina não seria utilizada como uma
simples forma de geração de energia termonuclear. Era um projeto criado, desde sua
concepção mais elucubrativa, para enriquecer plutônio a ponto de ser transformado
numa arma nuclear. Mas Luciano e os outros cientistas não tinham nada a ver com
aquilo, tinham? Até mesmo porque eles sabiam que havia um grande caminho a ser
traçado a partir do momento em que o yellow cake estivesse pronto.
Fazer uma arma nuclear não era tão fácil quanto Saddam Hussein gostaria que fosse.
Ele tinha dinheiro, mas tinha também muitos inimigos que fariam de tudo para impedir
que o resto da tecnologia entrasse no país. E o que vinha depois era até mesmo mais
avançado do que o enriquecimento da matéria-prima propriamente dita. Os próprios
Estados Unidos, que na época eram pró-Iraque pelo simples fato de que eram
contra-Irã, não se sentiam confortáveis sabendo que o bigodudo estava planejando
alçar um vôo que tão poucos países do mundo já haviam alçado.
Mas isso não impedia que Osirak prosseguisse de vento em popa, executada com um
detalhadíssimo projeto francês que Luciano conhecia muito bem.
As obras tinham duplo gerenciamento. Os cientistas e engenheiros civis tratavam dos
serviços de verdade, enquanto um grupo de militares cuidava para que os prazos
fossem respeitados dentro de uma lógica estratégica considerada superior até mesmo
às leis mais simples que regem a construção civil em si - e a parte científica em
especial.
Uma rusga começou nos canteiros de obras quando foi aventada a possibilidade de ser
feita uma pequena alteração no projeto original. A proposta foi anunciada por um civil
membro de um desgastado órgão público (ir)responsável pelo Departamento Iraquiano
de Arqueologia e Patrimônio. O órgão não passava de um pequeno departamento
hierarquicamente inferior, que sofria constantes ingerências até mesmo de forças
policiais.
O funcionário público chegara nos imensos canteiros de obras trajando um surrado
terno inglês, que combinava com seu sotaque contraído em Oxford, onde estudara
História. Ele procurava emanar mais poder do que realmente possuía, e isso inquietou,
imediatamente, a cúpula militar de Osirak.
- Esse homenzinho está procurando confusão, Maia... - sugeriu o então capitão
Ibrahim Al Fahed para seu colega brasileiro, uma pessoa de fácil trato que o
presenteara com inúmeros artigos que o ajudaram a compreender o país que sempre
despertara sua curiosidade.
- O que eles querem?
- Você vai saber. Tem muito a ver com a sua parte do trabalho...
Luciano era o responsável por uma das partes mais críticas de um reator nuclear. Ele
estava coordenando a preparação do solo para a instalação dos sistemas de
geoarrefecimento do reator - ou seja, como fazer para que a vibração do próprio reator
não acabasse refletindo no solo e servindo para danificá-lo.
A reunião foi marcada para o final da tarde, quando havia a troca dos turnos
vespertinos e noturno - a obra não parava um minuto sequer em Osirak. Estavam
presentes um general, dois coronéis, um engenheiro alemão, Luciano e o homenzinho
do Departamento Iraquiano de Arqueologia e Patrimônio. Os civis pareciam mais
dispostos a ouvi-lo que os militares. Os estrangeiros, sempre tão bem considerados,
teriam talvez o voto de Minerva.
- Em primeiro lugar, gostaria de deixar claro que nada que possa atrasar o cronograma
de entrega desta usina será sequer avaliado aqui nesta reunião. - disse o general
Zuafir Churukin. Sua afirmação deveria deixar o homenzinho desanimado, mas uma
olhada na plaqueta de identificação do militar serviu como alimento para a abertura de
sua argumentação.
- General Churukin, o senhor nasceu em Dur Churukin, ou em suas proximidades?
O militar procurou ficar impassível. Não se chegava ao posto de general no Iraque sem
saber jogar o xadrez, e, no xadrez, as emoções não são demonstradas, ainda mais
quando não se tem idéia da utilização que o oponente poderia dar para uma
demonstração de fraqueza furtivamente captada.
- Minha família é oriunda de Dur Churukin. Conhece a região?
- Muito, senhor. É um dos sítios arqueológicos mais maravilhosos onde já tive a
satisfação de trabalhar - dizia o homenzinho, utilizando-se da mundialmente conhecida
polidez do povo daquele canto do globo - Acredito que aquela terra ainda dará muitas
satisfações para a arqueologia deste país, e, com isso, para a nossa história.
- É realmente um local rico em história...
- Riquíssimo. Mossul, em Dur Churukin é um maravilhoso sítio arqueológico... Assim
como Osirak.
Era ali onde o homenzinho queria chegar, notou Luciano, segurando-se para não sorrir.
Pelo jeito, o arqueólogo não era um burocrata tão entediante e havia feito seu trabalho
de casa. Mas Luciano também sabia que o humor daquele povo era volátil como o
álcool que exala do frasco de perfume. Seria uma partida interessante aquela.
- Osirak não é mais um sítio arqueológico. Seu valor estratégico suplantou qualquer
valor histórico que esse local poderia ter até mesmo daqui a mil anos. É preciso
perceber que se os objetivos de Osirak forem perpetrados, o Iraque se tornará a mais
poderosa nação árabe, fazendo frente a qualquer tipo de artimanha que Israel possa
criar...
- Não ignoro esse fato, senhores. A intenção do departamento, que também funciona
sob os auspícios do nosso líder Saddam Hussein, é que os dois objetivos possam ser
alcançados: o resgate do passado e a aposta num futuro glorioso. Exatamente embaixo
desse local - há provas disso - existem restos de uma civilização suméria de quase três
mil anos. As evidências estão aqui...
E o homenzinho desenrolou um feltro, revelando algumas pequenas peças, relíquias
arqueológicas. Luciano nunca vira coisas como aquelas nem mesmo em museus.
Eram pedaços de coisas que um dia teriam sido utensílios primitivos, mas bem
elaborados. Havia um grampo para prender tecidos, pedaços de cerâmica com
inscrições, uma espécie de colher e um inusitado par de dados. Aos sumérios, o
homenzinho explicaria em outra oportunidade, era atribuída a invenção do cubo com
números pintados nos seis lados.
Os iraquianos não deram muita atenção para os artefatos. Não a mesma que Luciano
conferiu, já que eles pareciam estar acostumados a ver tais coisas em feiras livres.
Para o brasileiro, aquilo era novidade: abaixo do solo onde trabalhava havia um
tesouro. Estariam falando de um tesouro de verdade, de valor inestimável, como nos
contos de fada?
Luciano aprenderia depois que uma situação como aquela não era inusitada no Iraque.
Uma pessoa que nascera naquela região estava habituada com a possibilidade de, ao
escavar o jardim de casa para construir um porão, uma piscina, um silo, acabar por
revelar segredos de uma era perdida. O brasileiro imaginou que seria uma contingência
natural de se viver num local onde a maioria das civilizações humanas teria iniciado.
Por mais que se revolvesse a terra, sempre existiria uma antiga residência de mais de
dois mil anos por descobrir. E aquilo que um dia fora quinquilharia da casa de algum
cidadão de impérios que não existem mais, hoje mereceria a preocupação de homens
como o pequenino funcionário do Departamento Iraquiano de Arqueologia e
Patrimônio.
Mas quem se incomodava mais com esses espólios não era exatamente o governo.
Como Fahed mostraria depois, o comércio de relíquias era uma das grandes fontes de
riqueza daquela região do norte do Iraque, atravessando as fronteiras turca e curdistã.
Mercadores contratavam contrabandistas, que se associavam a pobres escavadores
iraquianos em busca de artefatos para vender a colecionadores e museus
norte-americanos ou europeus. Às vezes, arqueólogos de verdade se arriscavam a,
com alguma autorização governamental, fazer o mesmo serviço. Mas acontece que a
pilha de burocracia e a necessidade do cumprimento de uma interminável escala de
propinas muitas vezes desestimulava esses cientistas de trilharem os caminhos lícitos.
Por isso gente morria na fronteira entre os três países.
Mas também muita gente conseguia sustentar famílias com esse negócio... e poucas,
mas muito poucas mesmo, ficavam ricas.
Luciano sequer imaginava que uma pessoa como Farina pudesse existir...

Os dados voltaram a ser o centro das atenções. Os homens olhavam para eles com
dúvidas. As primeiras perguntas foram sobre o valor daquelas pequenas peças.
Provavelmente elas valeriam algum dinheiro. Eram dados do tempo de Nabucodonosor
ou algum imperador do mesmo naipe. Poderiam vendê-los. Mas onde? Prospectariam
algum museu? Museus compravam objetos sem algum tipo de certificado de
procedência? Existiria algum tipo de certificado dentro do mundo do mercado
arqueológico que comprovasse que algo não havia sido roubado ou eles não teriam o
menor escrúpulo com relação a isso?
Como funcionaria esse mercado?
Por que ninguém publicou um número de Pequenas Empresas Grandes Negócios
ensinando como negociar relíquias assírias ou sumérias? Seria um nicho pequeno ou
estaria em franca ascensão?
Luciano tinha certeza de uma coisa: gente morria por coisas como aquela. Ninguém
havia falado para ele, como uma daquelas histórias que um amigo conta que
aconteceu com o cunhado de um conhecido.
Acontecera diante de seus olhos.

A força terrestre iraquiana era grande. Formada basicamente por peças de artilharia e
tanques russos, contava também com os carros de combate brasileiros como Urutu e
Cascavel, que haviam sido transformados em sucata durante a guerra contra o Irã.
Enquanto a indústria bélica brasileira se vangloriava de ter criado tanques sem esteira
(esteiras duram poucos quilômetros no deserto) e de blindagem leve - o que conferia
uma velocidade espetacular aos veículos peso-pesado - os iraquianos desconfiavam
da capacidade efetiva de suas compras.
Na maioria das vezes, os soldados cavavam grandes trincheiras com rampas voltadas
para a retaguarda. Os cavalarianos entravam com os Cascavel dentro dos buracos e
os utilizavam dali, golpeando a frente de combate com os canhões - que não eram de
fabricação brasileira. Não pensavam seriamente em testar as tais blindagens leves que
faziam dos carros de combate brasileiros os mais rápidos em sua categoria -
velocidade essa que também era subutilizada.
Acontece que, apesar do tamanho - a quinta do mundo - as forças terrestres de
Saddam não eram tão bem equipadas assim em 1990. Muito menos durante a guerra
contra o Irã. Eles tinham armas, mas não tinham a tecnologia necessária para
utilizá-las de forma efetiva.
Com qual finalidade eles iriam querer veículos de combate velozes se não tinham como
coordenar a movimentação de suas forças? Um GPS que hoje pode ser encontrado em
relógios de pulso e integra a parafernália de qualquer pescador caprichoso, não fazia
parte dos equipamentos internos de tanques de guerra iraquianos. Eles tinham que se
orientar por estradas. Quem se orienta por estradas pode contar apenas com seu
poderio numérico. Não pode usufruir da vantagem de ofensivas rápidas e eficazes,
coisa para a qual a Cavalaria mecanizada havia sido desenhada.
Por isso, Wittmann olhava as fotos e podia ter uma nítida noção do que estava
acontecendo na borda iraquiana que dava para o Kuwait. Os ingleses e franceses
também já sabiam o que estava no porvir.
O que estava tirando o sono do ex-piloto era exatamente o que acontecia no lado
oposto do país, no norte, mais exatamente em Osirak. As trilhas de caminhões
entrando e saindo daquela destruída e inacabada usina nuclear.
A movimentação era clara, e agora, dias depois de chegar na Turquia e ter os primeiros
contatos com o material obtido pelos satélites do Gabinete de Reconhecimento
Nacional, Wittmann aguardava a chegada de seus computadores para comprovar uma
teoria que não poderia ser averiguada e atestada com a utilização dos simples
aparelhos óticos que Deus dera aos homens.
Mas isso era uma espécie de teoria pessoal, um projeto privado de Wittmann. Sua
função era mais simples ali, em solo turco, e tinha a impressão de que seu trabalho era
totalmente dispensável.
Existe uma grande diferença entre analisar dados obtidos através de pequenas
aeronaves espiãs e satélites - ambos projetos que custaram milhões de dólares para os
bolsos dos contribuintes norte-americanos - para que ações preventivas pudessem ser
tomadas, coisas que realmente fazem a diferença num cenário inteligível para as
pessoas comuns.
Não era exatamente o que faria ali. Seus relatórios seriam enviados para burocratas
chamados de analistas produzirem comentários que iriam parar sobre a mesa de
figurões de seu governo. Ele sabia que esses documentos não teriam vida tão curta.
Logo serviriam para que entidades financeiras tomassem decisões que protegeriam... a
quem?
Estavam falando sobre um dos cantos mais nervosos e importantes do planeta. Era o
cantinho do petróleo.
A Opep queria preços condizentes com a realidade de mercado. O Iraque precisava de
mais dinheiro - para comprar mais armas, talvez. Este dinheiro deveria vir de sua
produção petrolífera, uma das maiores do mundo. Bastava ler os noticiários.
Jornalistas estavam prestando esse serviço aos serviços de inteligência de vários
países sem cobrar um centavo a mais por suas matérias e artigos muitas vezes
presunçosos e míopes. É claro que ali estava apenas o grosso do negócio, sem o
refinamento que somente a ligação de pontos que estavam fixados em variados cantos
do globo poderia dar. Mas esse não era o papel de jornalista, era? Isso ficava na
incumbência dos rapazes e moças (mais rapazes que moças) para quem seus
relatórios seriam encaminhados nas próximas horas. E eles ajudariam gente poderosa
a continuar poderosa, gente rica a continuar rica e, com um golpe de sorte, ficar um
pouquinho ainda mais rica com a transferência, para suas mãos, do pouco de dinheiro
que ainda perambulava nas mãos dos outros.
Este tipo de raciocínio incomodava Wittmann. Não era exatamente isso que o sonho
americano pregava...
Era?

O homenzinho não parecia disposto a desistir. Os militares pediram um prazo para


levar o assunto alguns degraus hierárquicos acima, ao invés de dizerem imediatamente
não. Mas era óbvio que o “não” viria assim que expirasse o curto prazo proposto.
Enquanto isso, o pessoal do departamento de patrimônio, uma meia dúzia de
iraquianos que aparentavam inteligência um pouco acima da média dos outros que
Luciano conhecera, continuavam intrometidos entre os trabalhadores conterrâneos,
alemães e brasileiros. Eles tentavam garantir o mínimo de integridade nas escavações
auxiliares do sistema de sustentação e arrefecimento de vibrações, algo que tivera que
ser redimensionado devido aos planos de grandeza de Hussein. Não era incomum que
os arqueólogos - será que eram mesmo arqueólogos? - surgissem no nada erguendo
as mãos e bradando suas ladainhas em três línguas diferentes.
- Cuidado! Cuidado! Fiquem para trás!
Com seus pincéis e martelinhos, retiravam pedaços de azulejos e outras peças da
areia compactada pelas dezenas de metros de mais areia que fora depositada acima
daquele nível onde estavam as escavações.
Os atritos eram constantes. Os militares de níveis mais baixos ficavam irritados com
aquelas intromissões. Os engenheiros e técnicos estrangeiros acabavam se
empolgando com aquilo tudo e abriam lacunas de tempo para que os pincéis e
martelinhos resgatassem um pouco mais de história dentre o Tigre e o Eufrates.
Um dos militares que não parecia tão incomodado com aquilo tudo era Fahed. Ele
mesmo demonstrava simpatia por aquele trabalho. Arriscava a pegar uma ou outra
peça com um arremedo de respeito que as relíquias mereciam.
- Você já tinha visto algo assim? - Fahed mostrou para Luciano, durante o almoço nos
refeitórios abertos, à superfície, um azulejo delicadamente decorado. Havia uma ponta
de orgulho.
- Isso deve ter dois, três mil anos?...
- Mais ou menos isso. O que acha?
- Eu acho espetacular. Meu país tem menos de 500 anos... Se cavarmos o nosso solo,
vamos encontrar mais terra, ou no máximo fósseis.
Fahed aceitou o azulejo de volta das mãos de Luciano. O brasileiro e o iraquiano
tocavam o objeto com cuidado, e este último deixou a relíquia sobre um pano e
começou a envolvê-la. A pintura era milenar, e deveria continuar daquele jeito.
Enquanto tomava precauções para devolver a peça ao homenzinho, sua expressão
mudou um pouco.
- Você acha que o povo iraquiano não dá atenção para a própria história, não é?
- Meu povo não dá atenção à própria história...
- Estamos passando por uma fase difícil... Pessoas sempre se aproveitaram disso.
Pessoas daqui e de fora. Se você for a museus da Europa, vai ver castelos inteiros que
foram roubados de nosso país. Castelos inteiros. Conivência de quem? Nosso líder
pode até se negar a permitir uma alteração no cronograma desta usina, mas também
não permitirá que mais nenhum povo roube o que é nosso. Se tiver que ficar aqui... que
fique para sempre aqui...
Luciano apenas observava o militar dobrando o pano. Não havia o que comentar,
havia?
- Por isso, olhe bem para essas coisas... Poucas pessoas no mundo irão vê-las.

- Quanto eles têm?


Aurélio Lisboa tinha o passo apressado. Bem diferente do modo relaxado com o qual
Mauricinho Vila Isabel costumava se mover.
- Eles não têm nada. Continuam sem nada.
- O que eles querem comigo?
Vila Isabel apenas deu de ombros. Estavam chegando no laboratório. Era onde faziam
a cocaína render ainda mais dinheiro nas ruas.
- Se eles não têm dinheiro e querem tomar meu tempo, está na hora de mostrar
aqueles idiotas que precisam se incomodar com alguma coisa na vida.
- Vou fazer isso hoje à noite.
- Pode levar os irmãos e mais... três?
- Os irmãos e mais três parece suficiente. Um deles é grandão, mas podemos acabar
com um dos joelhos...
- Não. Isso não. Nada definitivo. Apenas o suficiente para assustar. Os caras precisam
estar inteiros se eu precisar que façam algo para mim.
- Linha da cintura?
- Assim. Nada para ficar mostrando no dia seguinte. Só para doer bastante. Nada que
eles olhem no espelho e fiquem com raiva de mim por terem perdido algum dente.
- O senhor tem razão...

Fahed parou o Mercedes numa vaga com seu nome no quartel da Guarda
Republicana, na Zona Sul de Bagdá. Sua farda estava impecável, com os galões
brilhando sobre os ombros. Atravessou o portão principal e retribuiu a continência a um
par de soldados. Era a mesma coisa em qualquer canto do mundo.
Ele caminhou pela pérgula principal do conjunto de prédios, já sem boina, passou pelo
seu gabinete, pegou um punhado de documentos e se dirigiu à sala de reuniões do
terceiro andar. Entrou no aposento ainda vazio depois de passar por dois ordenanças.
Fora o primeiro a chegar para a reunião de avaliação dos exercícios de Cavalaria que
se desenvolveram nas duas últimas semanas. Aquela, ele sabia, seria a primeira das
reuniões - provavelmente a menos importante, já que não teria a participação de
nenhum oficial de ligação direta com o comandante supremo das Forças Armadas
iraquianas. Outras viriam, até que chegasse a hora de mostrar os resultados dos
exercícios para o Homem de Tikrit em pessoa.
Fahed não estava exatamente preocupado com os resultados dos exercícios. Não fora
bem, mas não fora tão mal assim. Ou melhor: ninguém havia percebido que
desempenhara mal propositalmente seu papel de comandante de uma divisão
blindada. Levara tempo desenvolvendo aquela estratégia. Os nove anos de guerra com
o Irã e o treinamento com a doutrina russa serviram para ensinar como vencer um
combate terrestre. Forjar uma derrota convincente parecia mais difícil. Afinal de contas,
o que aconteceria se alguém percebesse que sua divisão gastara munição, rações e
combustível (apesar de petróleo não ser uma grande preocupação para a Guarda
Republicana iraquiana), à toa?
Sentado à mesa retangular feita de madeira trazida do outro lado do globo, o coronel
baixou a cabeça até encostar a testa nos nós dos dedos, entrelaçados como em uma
oração. Mas Fahed não podia se dar ao luxo de orar, podia? Traidores estariam em
qual categoria da cadeia alimentar? Ele não sabia disso, mas, um dia, um italiano
escrevera que os traidores seriam mascados por Lúcifer, no poço mais profundo do
inferno... Mas devia haver algum tipo de condescendência quando a traição tinha
algum bom motivo para ser executada.

A panela continha apenas arroz e legumes cortados em pequeninos pedaços - aqueles


que vinham em latas - e tinha que bastar para todos. Cada centavo estava sendo
poupado sob a vigilância de Mara. De uma regenerada Mara. Enquanto ela via a água
evaporando, torcia para que o gás não acabasse, para que a chama não se tornasse
azul e vermelha. O botijão já estava inclinado, encostado no fogão e na parede.
Sem que ela se desse conta, uma lágrima começou a escorrer pelo canto de olhos,
causando uma pequena sensação térmica, que era disfarçada pelo calor que sempre
acompanha o ato de cozinhar. Esta lágrima foi seguida de outra, e mais outra, quando
ela viu a chama do fogão ficar avermelhada, bruxuleante, falhando em alguns dos furos
do bocal. O gás estava acabando. A comida não estava pronta, não existia dinheiro
para outro botijão.
- Não, não, não... - Mara começou a murmurar, a voz crescendo gradativamente até se
transformar em gritos. O fogo sumia.
Luciano deixou os amigos na sala, acenando com a mão para que não o seguissem.
Não precisaria ter feito o gesto. Ele não tinha a menor idéia do motivo dos gritos.
Aproximou-se da cozinha, o corpo inclinado para a frente, procurando ver o que estava
acontecendo antes de entrar no aposento. Outros ruídos se seguiram aos gritos de
“não”. Eram panelas caindo no chão, pratos quebrando.
- O que...?
Mara saiu da cozinha como um furacão. Luciano olhou para dentro e viu o resultado da
comoção. Voltou-se para o quarto e correu atrás de Mara, encontrando-a gritando e
puxando roupas e caixas de dentro do armário. Ficou olhando para a mulher, sem fazer
nada. A sensação de ignorância foi-se desanuviando. Tinha uma noção do que estava
acontecendo ali, encostado na porta do quarto, olhando Mara destruir as roupas que
tinham custado uma fortuna. Roupas que ela nunca usara. Roupas, sapatos, semijóias
- as jóias de verdade já estavam no “prego” da Caixa Econômica Federal. Ela destruía
cada peça como se aquela fosse a culpada pelo gás ter acabado, por não terem
dinheiro para pagar a conta do telefone ou outra obrigação financeira nos últimos
quatro meses.
Luciano esperou uma brecha, o momento certo para intervir. Ele sabia identificar
quando uma pessoa precisava explodir. Destruir aquelas mercadorias que um dia
foram o motivo de tanta soberba, de tanta irresponsabilidade, não melhoraria em nada
a situação deles, mas serviria como um escape. Era preciso gritar, socar alguma coisa
para evitar aquela sensação de impotência. Afinal de contas, o arroz não ficaria pronto.
Foi quando Mara levou as mãos ao rosto que Luciano, aproximou-se por trás,
segurou-a com firmeza. Ela poderia acabar se machucando com toda aquela histeria.
Ele a abraçou, procurando ser terno, cúmplice. Por alguns segundos, ela tentou se
desvencilhar, mas nada demais, nada com muito vigor. Não era aquilo que ela
realmente queria. Quando se chega ao limite, ninguém sabe ao certo que rumo tomar.
Afinal de contas, é o limite, não é? Do limite só se pode voltar atrás, talvez trilhando o
mesmo caminho que fora usado para se chegar onde se encontra.
- Nós vamos dar um jeito nisso tudo... Vamos dar um jeito...
- Por que chegamos até aqui? Por quê?!
- Porque somos idiotas. Porque somos humanos. Porque estamos atingindo a
maturidade agora... Talvez EU esteja falando apenas de MIM... Você não teve...
- Eu tive tanta culpa quanto você! Olha isso! Pra que isso? E isso não é nada!!
Os dois sabiam muito bem que aquilo não era nada, e o barulho do interfone serviu
apenas para trazê-los de volta. Ficaram abraçados. Nenhum dos dois queria atender à
chamada que vinha do andar térreo, da portaria. Não havia uma boa notícia para
receber, e as pessoas que se acostumaram com a chegada de apenas más notícias,
não gostam de se arriscar a aumentar o rol de tristezas. Não gostam de olhar a caixa
do correio, de conferir extratos bancários, atender ao telefone ou ao interfone.
Mas o barulho era insistente.
Luís Carlos, constrangido, aproximou-se do corredor que conduzia para o quarto e
perguntou se poderia atender ao interfone. Luciano respondeu positivamente, sem se
afastar de Mara.
O barulho do aparelho vinha da cozinha. Luís Carlos passou por Hermes e fez uma
careta. Não gostava da idéia de estar lá depois de todo o barulho, de toda a confusão.
Sabia que devia ter acontecido algo ruim, tinha idéia do que seria, e sentia-se
constrangido por estar na casa de Luciano e Mara exatamente naquela hora. Mas o
mundo deixara de ser perfeito com uma mordida na proverbial maçã. Afastando com o
pé cacos de louça e panelas, caminhou até a parede ao lado da geladeira que sabia
estar vazia.
- Alô?
- ... - ninguém do outro lado.
- Alô? - repetiu, para uma portaria deserta. Ouviu apenas o ruído da porta batendo. Ela
era provida de uma mola, lembrou.
Isso o fez pensar por alguns segundos. Alguém tocara o interfone várias vezes. Ele
demorou a atender. A porta foi aberta por algum vizinho que estava saindo ou
chegando. Esse era um costume condenado em qualquer condomínio. Síndicos
continuariam gastando tinta e papel para deixar mensagens educativas sobre como
não abrir a porta para estranhos, e condôminos continuariam desrespeitando as
recomendações.
- Luciano... Vocês estão esperando alguém?

O coronel Osman era o tipo de homem que procurava sempre ocultar sua arrogância,
mas não era totalmente bem sucedido em suas intenções. Ele estava sentado na
cadeira diretamente oposta a de Fahed, olhando-o ocasionalmente nos olhos.
Conheciam-se há anos. Ambos lutaram os longos anos de guerra contra o Irã. Em
algumas batalhas, até lutaram em conjunto. Se pudessem enxergar alguma honra ou
harmonia estética ou moral em mover tanques de guerra e homens rumo à morte, à
destruição e à sobrevivência, poderiam dizer que travaram belas batalhas juntos. Mas
nenhum dos dois era capaz de se referir ao combate de verdade como algo que
pudesse compartilhar com flores os mesmos adjetivos.
Nem por isso eram amigos. Apenas se respeitavam como fazem os soldados
profissionais.
Mas agora estavam ali para reportar a superiores como havia perdido um exercício de
combate e como o outro o vencera.
Mas não era aquela a melhor palavra, não? O verbo vencer... vencer é meritório de um
prêmio. Que prêmio teria o coronel que se destacara nos exercícios de junho? Ele
ainda não tivera contato com as ordens que seriam explicitadas em envelopes pardos
nos dias seguintes, mas já podia imaginar que seu líder pretendia lançar, de novo, seu
país numa guerra territorial.

Wittmann estava diante de um complexo de mapas e fotos. Ao lado dele, o general


Cole Graham olhava as imagens e fazia anotações ininteligíveis num bloquinho com
capa de couro. Aquilo em sua mão era uma Mont Blanc? Parecia ser uma Mont Blanc
de algumas centenas de dólares. Quem leva uma caneta assim para uma situação
como a que estavam passando por aquele momento? Wittmann apenas arquivou
aquela imagem e voltou a se concentrar em seu trabalho.
- O que achou, general?
O homem era um três estrelas experiente. Estivera no Vietnã e em um punhado de
lugares onde havia sido necessário destacar homens e tanques. Tinha mais horas em
manobras e simuladores do que perante a coisa real. Mas quantas experiências
ocorreram aos norte-americanos e sua cavalaria, antes daquela guerra que estava para
começar?
Distante das Forças Armadas e mais perto de uma função que oferecia às Forças
Armadas o que elas realmente utilizariam como armas, Wittmann passou a encarar
qualquer um que não fosse da Infantaria como um mero burocrata. Ele mesmo havia
sido um.
- Definitivamente é uma manobra de invasão...
- Isso já conseguimos detectar, general. - disse Wittmann, da forma mais impassível
que conseguiu se expressar - A nossa... quero dizer, a minha dúvida é quanto a esses
exercícios... Eu selecionei esta série de fotografias tiradas por um KH-11.
O trabalho de Wittmann poderia ser feito de duas maneiras, assim como qualquer
trabalho no mundo: bem feito ou mal feito. Alguns colegas o faziam do modo mal feito,
e poucas pessoas percebiam a diferença. Eles simplesmente transformavam em
palavras o que as fotos já diziam com imagens. Mas esse comportamento não chegava
a ser comprometedor, porque, afinal de contas, a possibilidade de realizar fotos por
satélite, por si, já representava um grande diferencial entre as nações. Ainda mais com
aquela qualidade.
A opção de Wittmann era por fazer seu trabalho bem feito. Levantar uma série de
conclusões sobre as imagens que via. Era como se fosse um detetive que não pudesse
ir ao local do crime, mas, dando uma olhada na foto desse local, tinha condições de
sugerir que uma série de decisões fosse tomada - entre elas a decisão de obter
informações além-visual para que suas suposições pudessem ganhar contornos mais
tridimensionais que uma foto.
Desde que chegara na Turquia, duas imagens o deixaram curioso: a foto que revelara
movimento na desativada usina de Osirak, na região de Al-Tuwaitha, e uma série de
fotos de uma manobra de tanques no sul do Iraque.
A curiosidade teria sido motivada inicialmente apenas pela intuição, mas ele precisava
ter certeza. Pelo que pôde avaliar pelas fotos, duas brigadas faziam um treinamento de
combate. Eram exercícios com tanques T80, soviéticos, de ambos os lados. Em
princípio, deveriam ser comandadas pela elite do exército iraquiano, que atravessara
nove anos de guerra aprendendo alguma coisa - o homem sempre aprende alguma
coisa com a experiência, por mais que o ditado desse uma sugestão diametralmente
oposta.

Os reflexos de Hermes eram muito bons. Haviam sido treinados para funcionar em
qualquer lugar, a qualquer hora. Dos três amigos, ele era o que poderia ser realmente
considerado um soldado profissional. Depois da formação militar acadêmica, ele
resolveu investir na qualificação de sua carreira. Para um soldado que tem o Exército
correndo nas veias, como Hermes, isso significava apenas uma coisa: treinar para
fazer o mais difícil.
Para os homens de verde, existem várias formas de preparar alguém para o mais
difícil. Hermes escolheu o pára-quedismo - a opção imediata para as fileiras da
Infantaria.
Na linguagem dos quartéis, o pára-quedista é um “pé-de-poeira” da mais elevada
estirpe. Sua vida é saltar e correr. Correr muito, pois a doutrina pára-quedista estipula
que a grande utilidade de seu profissional fica atrás das linhas inimigas. E, desde que o
primeiro soldado alado da História desceu ao solo e se livrou de seu pára-quedas, a
primeira coisa que pensou a fazer foi correr. Correr para procurar um abrigo, pensar e
executar a missão.
Hermes procurava correr todo dia pelo menos 20 quilômetros. Alguns dias eram
melhores que os outros, mas, na média, o exercício sempre surtia bons resultados. Sua
musculatura era forte, porém flexível.
Por isso ele foi o primeiro a reagir.
Assim que a porta veio abaixo, ele saltou para a frente, na direção da passagem, sem
ainda saber o que viria dali. A idéia era diminuir o espaço entre ele e o agressor. Isso
era, na maioria das vezes, a melhor forma de escapar de um golpe ou de ser alvejado
por uma arma longa. É o tipo de ação instintiva para o homem.
Isso funcionou no primeiro momento.
A perna direita de Hermes ergueu-se e a planta do pé foi retraída e projetada para a
frente com toda a força que seus músculos permitiam. O homem que vinha em sua
direção sentiu o impacto na altura do estômago e viu tudo preto por um instante.
Tempo o suficiente para aquele estranho grandalhão atingi-lo com um gancho de
direita na têmpora. Depois disso sonhou com uma sala girando.
Mas ele não estava sozinho. Eram mais cinco homens entrando no apartamento de
Luciano. Hermes esteve sozinho na sala durante alguns segundos. Luís Carlos veio
logo que ouviu o ruído da porta caindo. Luciano demorou alguns segundos para
escolher a reação (defesa da família ou ataque ao inimigo), mas também correu para a
direção do barulho.
Hermes agarrou o pescoço de um segundo homem, quando sentiu a ponta de uma
pistola encostar em suas costelas. Depois outra.
Luís Carlos e Luciano não puderam fazer muito, pois já foram recebidos por armas em
punho e dedos nos gatilhos - o tipo de visão que costuma afrouxar o esfíncter de muita
gente que se considera corajosa.
Mauricinho Vila Isabel tocou no pescoço do homem caído no chão e procurou o
movimento na jugular. Onde está? Ah, está aqui. Mediu Hermes com os olhos. Nunca
se sabe o que os punhos de um homem daquele tamanho pode causar. Ele já vira um
“soldado” seu cair morto depois de um soco no nariz - e de um oponente menor que
Hermes. Se tivessem ido ao Instituto Médico Legal para ver o laudo do médico-legista,
descobririam que uma farpa de osso entrara no cérebro do pobre coitado. Mas o que
haviam feito mesmo com o corpo? Aquele ali agora não precisaria ser desovado - seus
dedos sentiram o fluxo de sangue na veia do pescoço. Se Deus, ajudasse, pensou Vila
Isabel, aquela seria uma noite de muita porrada, mas não teria que se livrar de nenhum
cadáver simplesmente porque não deveria acontecer nenhuma morte em decorrência
dos espancamentos. “Nada definitivo. Apenas o suficiente para assustar”, foram essas
a palavra do homem. Eram ordens de Aurélio Lisboa, e não precisavam estar escritas
para serem levadas ao pé da letra.
Enquanto Mara foi amordaçada e amarrada à cama (uma breve discussão entre os
homens de Vila Isabel eliminou qualquer intenção sexual com relação à mulher), os
três homens foram levados para uma Kombi parada diante do prédio. Eles não
tentaram nenhuma reação além daquela de Hermes. Armas falam mais alto. Sempre
falam.

Por esse motivo Farina sempre andava armada. Dentro do ramo no qual trabalhava,
precisava estar sempre equipada com esse tipo de ferramenta. Mesmo dentro do
armazém cercado por seus seguranças, ela matinha a PPK à cintura, à altura do
cóccix.
A mulher tinha uma prancheta à mão direita e uma caneta esferográfica na boca - que
pegava com a mão esquerda para as anotações. Aquelas folhas de papel registrariam
o rol de peças disponíveis, catalogadas por números que um funcionário que a seguia
tratava de anexar a cada item. Eles tinham o cuidado de prender as etiquetas com
pedaços de elástico - houve uma época, bem no início do negócio, que ela aderia os
números com etiquetas adesivas e perdera muito dinheiro com isso. Cada etiqueta
continha um código que mostrava o valor médio da peça. Caberia a Farina estabelecer,
caso a caso a margem de desconto ou o contrário.
Ela procurava gerenciar seu negócio da maneira mais organizada possível, pois o lucro
residiria exatamente naquilo, no controle. Daquela forma, cada centavo estaria
projetado e contabilizado, proporcionando à negociante a capacidade de manter-se no
mercado negro de forma diferenciada. Ou seja, ela conseguia enriquecer e pagar com
pontualidade os seus funcionários. E pagar bem. Era esse o seu segredo, o meio de
permanecer viva num negócio tão violento e preconceituosamente masculino. Seus
homens, diante das “folhas de pagamento” precisas e recheadas, não tinham objeções
em trabalhar para uma mulher. Ou pelo menos não demonstravam isso claramente.
O lote trazido por Azize era, assim como a maioria dos outros, um amontoado de peças
misteriosas. Os preços eram estabelecidos baseado em suas experiências de venda.
Mas como saber se ela havia sido enganada em suas vendas anteriores? Até então,
nenhum comprador perdera tempo tentando explicar o que eram aquelas peças, a qual
período da história pertencera e qual seu valor real. Muito pelo contrário, sempre
tentavam depreciar seus valores.
Assim, a melhor forma de avaliar seus preços era observar o que estava escrito nas
entrelinhas, agir como uma jogadora de cartas: olhos brilhavam? Mãos tremiam?
Sorrisos brotavam e eram contidos imediatamente? Tiques nervosos? Em algum lugar
sempre aparecia a reação denunciando que o comprador julgava estar fazendo um
grande negócio, de que ele estaria pensando “como essa mulher é burra! Ela está
vendendo essa maravilha por uma ninharia!” As reações sempre estavam lá, e quando
apareciam, eram anotadas e relacionadas à peça vendida. Dados eram cruzados e
Farina saberia, depois, diante de um novo lote de peças, quais relíquias deveriam ter
os valores majorados.
Essa tarefa era uma das mais importantes no trabalho de Farina. Deixar escapar uma
relíquia com preço abaixo do valor de mercado seria algo como fazer com que todo os
riscos envolvidos no negócio tivessem sido em vão. E não eram poucos os riscos. A
PPK em sua cintura servia para lembrar disso em todo momento. Por isso era tão
incômoda e reconfortante ao mesmo tempo. De outra forma, por que a arma ainda
estaria ali?

Do lado de fora do galpão, a noite era mais uma noite fria demais para o verão turco.
Se no oeste a temperatura ainda era agradável e levava turistas para as praias do
Mediterrâneo, naquela região montanhosa os prenúncios do inverno já eram comuns
para a época do ano. Um vigia olhava indolentemente para as esquinas, sem esperar
nada que fosse diferente da noite anterior e do outra também. Era um canto tão
civilizado no mundo como outro qualquer. O homem sequer segurava seu AK-47 no
punho - deixava-o pendurado na tão prática bandoleira. Nada aconteceria naquela
noite. Aconteceria? Nem podia pensar nisso. Estava com muita fome.
A porta se abriu e ele viu Hishnam, com um ar preocupado.
- Alguma coisa? - perguntou o braço direito de Farina.
- Fome. Só isso. Daria qualquer coisa por um donekebab!
- Eu também! Sabe como ela é. Antes tem que terminar tudo...
- Dá para agüentar.
- Dá mesmo... - completou Hishnam, fechando novamente a porta, como teria feito
todos os dias.

O vigia não percebeu o que o atingiu na nuca. A aparição de Hishnam fora apenas uma
dissimulação. O homem não chegara a tombar no solo. Um segundo assaltante o
agarrou antes da queda, impedindo um ruído denunciador.
O evento fora a primeira parte do assalto. Das sombras surgiram mais homens
correndo em direção ao galpão. Com o silêncio da noite respeitado, a erma vizinhança
pouco faria para trair a confiança dos invasores. Eram homens comuns em roupas
comuns, apenas empunhando armas. Não tinham nada a ver com a imagem que o
cinema invoca em cenas como essa - com homens trajados de negro ou camuflados,
equipados até os dentes.
O grupo se alinhou ao redor das entradas do prédio. As armas já estavam prontas para
o uso, mas nenhum deles gostaria de ter que usá-las. Queriam evitar o estrépito de um
tiroteio. Atrás da primeira horda que entraria no galpão, estava Azize, suando, a mão
erguida. Um gesto - seria um tapa no ombro - era aguardado pelos homens que
estavam a sua dianteira, olhos fixos nas portas. O momento era aquele, não havia
motivo para espera. Um dos homens olhou para trás, para Azize, como a questioná-lo.
“Paciência?”, pensou o líder. “Para que paciência? Já fizemos isso várias vezes
antes...”
A porta caiu e os homens invadiram a entrada norte do galpão. A entrada pelos outros
pontos cardeais não demorou dois segundos.
Assim que a primeira porta caiu, alguns homens de Farina ergueram suas armas,
procurando alvos. O movimento levou aqueles dois segundos e a desestabilidade
chegou com ruídos de invasão oriundos dos mais variados ângulos. Eles não estavam
preparados para uma coisa daquele tipo. Para onde atirariam? Quem atiraria para qual
lado? Algum flanco ficaria descoberto? A dúvida é irmã da inação. Não foi diferente
naqueles três primeiros segundos.
O quarto segundo começou com um dos “soldados” de Farina descobrindo que algo
precisava ser feito. Ele havia olhado para dois lados e, com sua visão periférica,
percebera que sua líder havia sacado a pistola e escolhido uma posição.
O quinto segundo foi aquele no qual o homem encontrou os olhos da mulher. Havia
urgência naquele olhar. Urgência e confiança. “Ela precisa que eu faça algo”, teria
pensado o soldado, num raciocínio associado à idéia de que seu ato seria
desencadeador da ação de seus companheiros. Cada um teria escolhido um lado e a
defesa poderia dar certo.
Mas eles não estavam numa guerra. E mesmo numa guerra existe a dúvida se o
inimigo quer trucidá-lo ou apenas subjugá-lo, fazendo-o prisioneiro. Essa possibilidade
foi cogitada por mais da metade da equipe de Farina. Até mesmo por Farina. Mas
antes que o sexto segundo se iniciasse, o homem pressionou o gatilho de seu AK-47
contra um grupo de invasores.

Diferente do que a maioria das pessoas pensa, atirar com rajadas não é a garantia de
que os tiros atingirão o grupo inteiro para o qual a arma está apontada. Se o atirador
não souber utilizar bem a arma, cada recuo acaba tornando o alvo inicial mais difícil de
ser atingido. Desta forma, muitas vezes o primeiro tiro é o que tem mais chances de ser
aquele que atingiria seu alvo. Mas e quando o primeiro tiro não foi tão bem calculado
assim? O combate é geralmente uma situação de grande tensão e, muitas vezes, de
completa surpresa.
Os invasores tiveram a vantagem de se deparar com um alvo parado. Os defensores,
não. Ambos tiveram a desvantagem de visualizar seus oponentes no mesmo momento
em que teriam que vencê-los - nenhum dos lados estava observando o outro em uma
tocaia.
Por isso, os tiros passaram pelo alto e ao lado de seus alvos, que se abaixaram com
um segundo de atraso - um reflexo desnecessário.
Enquanto os alvos se abaixavam, à esquerda do atirador outro gatilho fora premido.
Não de um fuzil, mas de uma pistola russa de 9mm. A uma distância de pouco mais de
15 metros, o tiro foi perfeito, varando a cabeça do homem e, de bônus, atingindo o
ombro de um segundo soldado de Farina.
Duas baixas tão rápidas servem geralmente para reduzir o moral de um grupo durante
um combate. Foi nesse momento que começaram os gritos - em três dialetos
diferentes.
Farina, com a pistola em punho, tentou encontrar um ponto fixo para onde olhar. Era
uma atitude instintiva, mas correta. Tinha que se concentrar... Ou perder tudo que
conquistara por um preço que não se paga duas vezes em apenas uma vida.

É possível passar uma vida inteira sem levar um soco no estômago. Um soco de
verdade, não coisa de brincadeira de irmãos. Um golpe desse tipo é capaz de causar
uma perfuração naquele órgão. Pode matar. Os “irmãos” sabiam muito bem disso.
Teriam aprendido com a experiência. Até que começassem a dosar com sabedoria a
força imposta num soco como aqueles, viram mais de um homem - e uma mulher,
infelizmente - se contorcer de dor e vomitar sangue até a morte. Em alguns casos,
foram pessoas que não poderiam morrer, criando situações muito difíceis de serem
contornadas. Mas eram ossos do ofício, e os irmãos, apesar do que a maioria das
pessoas julgava, eram espertos suficientemente para aprenderem com a experiência.
Assim como um cachorro que apanha sempre que destroça o jornal que acabou de cair
na varanda.
Se Luciano soubesse que os irmãos haviam acabado de ser condescendentes com
aquele soco, provavelmente teria agradecido. Mas estava ocupado demais sentindo
dor e ânsias de vômito. Não seria sangue. Seu estômago estava intacto, mas um
pouco abalado. Se não estivesse sendo apoiado pelos braços, teria caído emborcado
no chão. Nos filmes não parecia doer tanto assim.
Ele era o segundo a ser espancado. O primeiro fora escolhido sabiamente - Hermes - e
apanhara a valer. Os homens dedicaram quase 10 minutos golpeando-o, tentando
fazê-lo se curvar. Luís Carlos e Luciano, amordaçados, rezavam para que o amigo não
demonstrasse resistência. Quanto mais ele dava a impressão de que poderia agüentar
mais paulada, mais levava. Se fosse em qualquer outro dos dois, costelas teriam sido
moídas.
- Olha, acho que o cara está tentando vomitar...
- É mesmo... olha, você vai vomitar?
Luciano balbuciou que sim. O homem balançou a cabeça, impaciente.
- Tem que tirar a mordaça do cara. Tira a mordaça dele...
- Eu?
- Sim.
- Mas ele vai vomitar em mim!
- Tira rápido! Olha, o cara tá vomitando! Ele vai se afogar com o vômito, porra!
- Que merda! - o homem mais baixo puxou o pano da boca de Luciano, o que serviu
para abrir a comporta. O homem deu um salto para trás.
- Viu? Se um desses caras morrer a gente tá ferrado. Seu Aurélio não quer mais saber
de uma cagada dessas por causa de cobrança de dívida...
Luís Carlos aproveitou a interrupção na ordem do espancamento - ele seria o próximo -
e começou a gesticular, mostrando para os agressores que precisava falar. Talvez
desse certo, mas ele não tinha nenhum plano em mente.
Piedade, por menor que fosse, fez com que Mauricinho Vila Isabel erguesse a mão
direita e interrompesse a agenda. Ele imaginava que aquele homem não tinha nada a
dizer, a não ser pedir penico. Mesmo assim, resolveu dar uma chance. Afinal de
contas, aquilo não era uma execução, era? Se o homem queria falar, por que não?
Um dos irmãos retirou a mordaça de Luís Carlos com uma certa tranqüilidade - sabia
que dali não sairia vômito - mas ficou segurando o pano, pronto para recolocá-lo no
lugar de onde saíra.
Para surpresa dos agressores, Luís Carlos não começou a gritar. A atitude de permitir
que ele usasse a voz provocara uma calmaria.
- Precisamos falar com o Aurélio.
- Vocês têm o dinheiro?
- Precisamos falar com ele. É a única e melhor forma de obter o dinheiro.
Mauricinho não esperava por um comentário como aquele. O que queria
especificamente dizer?
- Vocês não têm o dinheiro e querem falar o que com ele?
- Precisamos fazer uma proposta. Não temos o dinheiro, mas se ele quiser, nós
podemos arrumar mais dinheiro que devemos pra ele. Vai sobrar dinheiro para todo
mundo. Mas precisamos falar com ele...
- Vocês já devem dinheiro para ele. O que vocês querem?
- Precisamos falar com ele... - insistiu Luís Carlos, prevendo que a surra poderia
recomeçar a qualquer momento, tão despropositada como começara.

De um lado armas caíram no chão. Do outro lado, tiros não foram disparados. O odor
no galpão era de medo - alguma coisa entre suor e fezes - mas a impressão que os
homens começaram a alimentar é de que poderiam escapar vivos dali. A cada arma
que era tombada e a cada tiro que não era disparado, mais armas tombavam. Menos a
de Farina e a de Hishnam, que sequer a retirou do coldre. A mulher continuava com a
PPK em riste, esboçando uma reação canhestra, inútil. Seus olhos procuravam um alvo
impossível, e acharam Azize. Fora ele. Seus lábios ficaram secos, o estômago, revolto.
- Ninguém vai morrer! Larguem as armas! - ordenou Azize. Ela sabia que ele estava
mentindo.
Todas as armas foram deixadas no solo. Dois homens começaram a recolher os fuzis,
metralhadoras e pistolas. Farina negava-se a largar sua PPK. Hishnam continuava
sobre o muro, sem assumir de que lado estava. A situação ainda não estava definida.
- Não adianta, Farina. Acabou seu reinado aqui. Largue a arma. É inútil insistir. Não
quero matar você...
- Não quer me matar? Não quer me MATAR?
- Se quer saber, não vou matar você agora, mas sabe que tenho que tirar você deste
caminho. Você traz uma mensagem muito ruim para essas pessoas aqui...
- Entendo...
- Se entende, largue a arma. Deixe as coisas como devem ser...
- Como devem ser as coisas, Azize? Você e seus bandidos vão me estuprar na frente
de meus homens, me humilhar, ensinar a eles que não devem trabalhar nunca mais
como alguém como eu, e depois me matar?
Azize não mudou a expressão: - Você sabe que sim...
A ameaça não assustava Farina. Já havia passado por parte daquilo - escapara da
morte - mas não tinha a intenção de dizer isso aqueles homens. O ódio que nutriam por
ela já era o suficiente para que soubessem que ela não os temia.
- Você não vai fazer isso. - disse Farina, imperativa. - Você só conseguiu chegar aqui
porque tem um traidor a seu serviço. Não é assim?! - ninguém precisava dizer que sim.
Hishnam continuava com uma expressão forçada de incredulidade no rosto.
- Largue a arma, Farina...
- Não. Eu não vou deixar que vocês todos me estuprem na frente de um traidor! Eu
rogo a você, por Deus, que me permita me vingar agora antes de morrer!
- Você quer que eu diga quem traiu você? Essa não é....
- Não! Não quero que você diga nada.
- O que você quer, mulher?!
- Eu quero que você me deixe usar essa arma como eu sei que devo usá-la...
- Do que você está...
- Não me importa qual deles seja o traidor! Eu não vou ser estuprada na frente dele!
- Você não pode estar...
Farina pára diante de um de seus homens e aponta a arma.

Ninguém mais apontava armas para eles. Estavam doloridos o bastante para perderem
qualquer vontade de tomar uma iniciativa. Luciano estava deitado no fundo da Kombi e
sentia a vibração que vinha direto do solo. Deu para identificar bem quando o veículo
parou. Luís Carlos, o que menos apanhou, foi o primeiro a sair, seguido de Hermes,
que teve que ajudar o amigo a se levantar. Vila Isabel e seus asseclas os escoltaram
para dentro da casa que era cercada por um imenso jardim. Estavam em um bairro
discreto de classe média, o tipo de lugar para onde os abastados cariocas tinham o
costume de se afugentar.
Aurélio esperava o grupo sentado na varanda que ficava de frente para a piscina - ou
seria lago? Estava escuro e o homem para quem deviam uma fortuna tinha nas mãos
um copo.
- Sabem como se faz whisky sauer?
Os três devedores estavam parados diante do cobrador. Luciano apoiado em Hermes e
Luís Carlos um pouco mais a frente.
- Com limão e açúcar... - respondeu Luís Carlos.
- Mas e a proporção de limão e açúcar?
- É mais ou menos... - respondia Luís Carlos.
- Se a gente errar... - murmurou Luciano. - ...você manda matar a gente?
Luís Carlos perde o rebolado e fita Aurélio, esperando uma resposta. Luciano e o
cobrador começaram a rir quase ao mesmo tempo.
- Parece que você não apanhou o bastante... - disse Aurélio, entre risos. Sua voz não
era agressiva.
- Pode crer que sim...
- Eu quero saber porque acho que errei. Não está bom o meu sauer.
Luís Carlos ajeita o cabelo: - Acho que é um terço de açúcar, um terço de suco de
limão... e o resto de whisky e gelo...
- E a bordinha com açúcar grudada com suco de limão, certo?
A cabeça balança em sinal positivo.
- Foi o que fiz... então a coisa é ruim mesmo...
- Às vezes é o limão...
- Então é o limão. O whisky é Bala 18.
- Esse é do bom... - concorda Luciano - Só rolava desse na minha casa, não era?
- Lembro... - responde Hermes, sem tirar os olhos de Aurélio, que bebericava o sauer.
- Ótimo... O que se passa na cabeça de vocês?
- Luciano tem uma proposta. Parece maluca, mas vai dar certo e vai ser bom para todo
mundo...
- Uma proposta melhor que simplesmente vocês me pagarem o que me devem? Você
ouviu a proposta antes, Vila?
- Ouvi sim, chefe. É meio coisa de doido. Se o senhor achar que estão tirando onda da
sua cara...
- Sei.
- Não é onda. - retrucou Luciano, com a cara fechada, empertigando-se sozinho, a
despeito da dor no estômago.

Farina não conta até três, não ensaia, não titubeia. O dedo pressiona o gatilho e a
cabeça explode. O sangue se espalha, gotículas ficam suspensas no ar. Asseclas de
Azize erguem suas armas, prontos para abater a mulher. O líder ergue a mão. Ela não
estava blefando, certo?
Os homens, tombados de joelhos ao solo, imploram a Farina, aos homens de Azize,
imploram a Azize. Um deles tenta se erguer contra a mulher, e ela o abate com um tiro
no pescoço. A morte é mais lenta, mais sangue esguicha e uma aorta rompida durante
alguns segundos e não pára o fluxo antes de um terceiro homem tombar morto.
O galpão ecoa gritos e lamentos. Azize sorri, lágrimas caem dos olhos de Farina, que
aponta a arma para outro homem.
Hishnam olha para Azize. “Você não vai fazer nada?!”, “Ela não vai chegar até a mim”,
e se afasta lentamente, levando a mão para trás. Azize ordena que ninguém atire em
Farina. Ele mesmo tinha a mulher sob sua mira. Estava gostando daquilo.
Os olhos de Hishnam não conseguem mais disfarçar. Farina encontra esse olhar
durante um ou dois segundos. Já vira algo assim. Não era apenas medo. Os outros
homens estavam com medo. Ele sentia algo acima do medo. Sentia-se indignado com
a traição. Ela via os olhos de Hishnam como um espelho. Podia ver seus próprios olhos
na hora em que o tiroteio começara. Era indignação. Não precisava de mais que dois
segundos para identificar - convivera muito tempo com aquele sentimento.
Mas por que a indignação? Não era com ela. Isso era óbvio. Hishnam não estava a
culpando. Dela, tinha medo. O outro sentimento era destinado a outra pessoa. Os
olhos, sempre os olhos, denunciavam. Ela poderia ter apontado a arma para Hishnam.
Poderia ter mirado sua cabeça, mas ela havia percebido que aquele não seria o gesto
mais correto.
O homem estava armado.
O homem não parecia disposto a apontar para ela.
A arma ainda estava no coldre. Por quê?
Farina deslizou o ódio para a direita e matou outro homem de quem conhecia a família.
Crianças - quantas eram? Seis. Eram seis! - perderiam um pai com um tiro no olho
esquerdo. O homem não pedira clemência.
O projétil entrou pelo olho mas desviou-se à esquerda, ao colidir com um pedaço do
crânio. Não saiu por trás. Saiu pela esquerda de Farina, destruindo a orelha direita do
homem. Pedaços de tecido, ossos e sangue respingaram em Hishnam.
Para um homem amedrontado e indignado, aquilo era suficiente.
O braço direito muito bem treinado de Hishnam moveu-se para trás e para frente
impulsionado pelo músculo deltóide hipertrofiado por exercícios de transporte de carga.
Foram dois movimentos rápidos. Muito rápidos.
O movimento para frente trouxe uma pistola já engatilhada e carregada. O cérebro
tentou acompanhar a velocidade.
Hishnam tinha dois alvos: Farina e Azize. Dois alvos exigem critério e prioridade. Não
se consegue atingir dois alvos ao mesmo tempo. Um dos dois será atingido primeiro e
isso causará algum efeito. O atirador tem que saber como tirar proveito desse evento.
O ideal seria atirar primeiro em Farina. Era ela que ameaçava mais diretamente sua
existência. Era ela que pretendia matar seu traidor, e esse alguém era ele. Era ela o
alvo preferencial.
Não era?
Questão de lógica: Farina não sabia que ele era o traidor. Ela estava enlouquecida,
matando todos os seus homens, mesmo os que sempre foram fiéis. Os olhos dela
haviam cruzado com os seus. Seria ele o próximo?
Azize havia sido o corruptor, o homem que prometera dinheiro, uma nova posição
dentro do negócio. E Azize era o homem que agora apenas apontava uma
submetralhadora contra Farina... e sorria. O que estava esperando? Ele não estava
completamente errado. Ela estava facilitando as coisas para Azize, eliminando seu
exército. Seriam homens com os quais não precisaria se preoupar. Mas, e se ela
apontasse a arma para Hishnam (como parecia que ia fazer dentro dos próximos
segundos)? Azize seria rápido o suficiente? Ele defenderia um traidor?
Quando o dedo direito de Hishnam roçou no gatilho, ele percebeu que aquela era a sua
melhor definição: era um traidor. Era o típico momento em que um traidor percebe que,
depois de cometer sua traição, não encontrará nenhum lugar do mundo onde possa
provar seu valor. Azize confiaria algo a Hishnam, depois de saber que o homem tinha
um preço, e que o preço... bem, o preço constitui outra situação lógica. Se um traidor é
caro, por que mantê-lo? Se um traidor é barato, por que mantê-lo?
Hishnam sentiu-se como há muito não se sentia. A arma elevou-se junto com seu
braço e não precisou descrever uma reta entre sua cabeça, a culatra e o alvo. O gatilho
fora pressionado um momento antes.
Farina não seria tão sortuda caso Hishnam tivesse feito a pontaria. Com uma arma na
mão, as pessoas sempre procuram acertar o coração ou a cabeça. O coração não fica
no lado esquerdo, como a maioria pensa, e a cabeça é um alvo difícil. Nos dois casos,
Azize teria a oportunidade de revidar.
Como Hishnam não teve a oportunidade de pensar no disparo, o fez com a arma ainda
na altura de sua cintura, apontando alguns graus para cima e na direção de Azize,
que, quando percebeu que alguma coisa havia funcionado mal, já não sentia nada do
pescoço para baixo e enxergava o teto do galpão.
A bala entrara no corpo através do plexo solar e subira um pouco - apenas um
pouquinho, sempre seguindo reto - o suficiente para atingir exatamente a coluna de
Azize, um pouco abaixo da linha dos ombros.
Antes que Hishnam pudesse ver o corpo de Azize tombar, sentiu um calor intenso na
boca, do lado esquerdo. Um calor e um gosto horrível de queimado e de sangue. O
impacto fora maior que um soco, mas parecera cruzar seu corpo. O pescoço, em
menos de um segundo, logo atrás, ardia também.
Depois foram os joelhos, os dois. Era indescritível. A arma caiu de sua mão quando
considerou mais importante tentar conter a hemorragia. Tudo ficara mais claro e
Hishnam viu Farina se aproximando, do alto - ele já estava tombado, aleijado. Ele viu,
tudo muito claro, a mulher encostar a arma em seu peito e apertar o gatilho.
Nada.
Se a munição tinha chegado ao fim, a fúria não.
Ele tentou falar alguma coisa, mas não tinha mais língua o suficiente. Sentiu-se fraco
para impedir que as mãos da mulher apertassem seu pescoço. A vista foi ficando turva,
os sons, distantes. O gosto ruim desapareceu.
Quando Farina terminou, existia um considerável número de homens mortos. Mas
também havia seis de seus ex-asseclas vivos e mais 10 homens de Azize olhando para
ela. O líder estava morto e eles não possuíam inteligência e objetivos suficientes para
decidir o que fazer. Ela ajeitou os cabelos que grudaram em seu rosto enquanto
estrangulava Hishnam. O ato deixara seu rosto manchado do sangue que escorrera do
rosto do homem e dali para suas mãos.
- Quem quiser ir embora, pode ir. Quem quiser ficar, me obedece.
Todos ficaram. Havia muito trabalho. Livrar-se de corpos sempre dá muito trabalho.

Cole Graham não levou muito tempo para avaliar as fotos. Isso não agradou Wittmann.
“Será que esse filho da puta tem tanta certeza do que está dizendo?”, perguntava-se,
com a impressão de que a resposta seria negativa.
- Você está desconfiado de que? Essas fotos, ao meu ver, mostram que os caras lá
são incompetentes. Vê esse tanque aqui, mais ao centro? É evidentemente o líder. Os
iraquianos, apesar da ajuda que demos a eles, adotaram a doutrina militar soviética. Os
cabeças ficam assim dispostos. Nós sacamos isso através de fotos como essa...
- Então, coronel, também acha que...
- Não sei. Nossa inteligência afirma que eles aprenderam muito com a guerra com o
Irã, mas também indica que eles não têm competência para lidar com um inimigo mais
bem equipado, mais rápido, com mais recursos... Eles sequer sabem se ocultar! Olha
essa foto!
Era exatamente a foto que despertara a curiosidade de Wittmann. Ela mostrava que o
líder de um dos grupamentos escolhera, voluntariamente, uma região livre de
obstáculos para se locomover rumo ao grupo “inimigo”. Poderia ser tolice, mas aquele
militar estava concordando com sua opinião.
Aquela decisão diminuíra drasticamente a duração do “jogo”. Por mais que o T80 fosse
um veículo ágil, robusto e de perfil tão baixo quanto poderia um tanque ser, aquele
comandante o colocara numa situação delicada ali. Precisaria de muita velocidade e
precisão para sair vitorioso daquela manobra, descendo um corredor de pedra que
serviria muito bem como esquife para quem decidisse fazer aquilo numa situação real.
Quem sabe o homem que estava por trás daquela decisão permitira-se trair pelo erro
mais básico de uma manobra militar: não se deixar esquecer de que aquilo tudo era
realmente uma manobra. Num caso desses, o militar acaba levando em conta que o
seu “inimigo” é alguém que conhece, e resolve considerar as suas fraquezas e forças,
como se no combate pudesse realmente contar com essas informações.
Pela seqüência de fotos, o T80 líder desceu algumas dezenas de metros em direção ao
pequeno vale levando uma falsa vantagem baseada na incompetência dos homens que
estavam nos outros tanques. Quem quer que representasse aqueles “inimigos”, estaria
realmente desprevenido.
Mas acontece que o grande motor do tanque não teria - caso fosse uma situação real,
Wittmann procurava anotar isso em seu raciocínio - necessidade de trabalhar por
muitos mais metros depois de passar para linha de visada do terceiro carro de combate
que deveria tê-lo visto desde o início da guinada que Cole Graham estava chamando
de manobra idiota.
Naquele momento, um sinal de rádio deve ter estalado nos fones de ouvido da
tripulação do tanque que tentara a disparada e os homens em seu interior teriam
recebido a notícia de que o jogo acabara. Game over, como aparecia nos antigos jogos
Atari. Naquela hora, não era tão diferente. Toda manobra militar é como uma
brincadeira de grandes e poderosas crianças. Quando a missão deixa de ser manobra,
é que a munição vira real e pessoas morrem e coisas explodem de verdade. Wittmann
sabia que essa hora chegaria. Não tinha certeza ainda de quando. Mas poderia apostar
algumas latas de cerveja de que para aquele comandante de tanque a hora demoraria
a chegar. Saddam Hussein não ia querer deixar em sua linha de frente um cavalariano
tão idiota... Ou esperto?

Aurélio era um policial simples. Um homem simples. Estava acostumado com uma
vida, dentro de seus parâmetros, de certa forma simples. Nada do que acontecia ao
seu redor fugia do que as pessoas estavam acostumadas a ler em jornais, a ver na TV.
Se ele ajudava a financiar assaltos a bancos, a fazer seqüestros, é porque muita gente
já fizera isso antes. Para ele, não havia a menor aventura naquilo tudo. Ele aprendera a
lidar com armas e violência assim como médicos lidam com bisturis e mercúrio cromo.
Mas o que aqueles homens falaram, o que eles propuseram, parecia loucura. Não fazia
muito sentido. Tanto que deixou o whisky sauer repousado na mesinha ao lado de sua
cadeira e nem pensou mais em beber o drinque. Não que estivesse se sentindo
bêbado, mas tinha que se concentrar.
Estariam seus devedores falando alguma idiotice? Estariam tirando uma onda de sua
cara? Não era seu metiê, e lidar com metiê, jargões e searas de outras pessoas
sempre nos faz parecer peixes fora d´água. Aurélio odiava isso.
Mas não poderia simplesmente explodir na frente dos homens e mandar cortar uma
série de cabeças. Tinha que entender melhor. Consultou o relógio. Tinha tempo para
mandar passar um café e fazer uma pilha de sanduíches.
- Todos estão com fome? Eu estou com fome e odeio ter que pensar de estômago
vazio... Eu quero entender melhor essa história de vocês. Quero ter certeza de que
estão falando sério...
- Seu Aurélio, eu sei que pode parecer estranho, mas tenha certeza de uma coisa: é
verdade. É verdade e é possível. Não precisa tomar uma decisão agora. Só queremos
tempo para fazer um estudo, um dossiê completo que prove que não estamos falando
nenhuma idiotice. Depois disso, o senhor pode escolher entre acreditar e entrar nessa
com a gente ou simplesmente... Não sei, nos matar...
- Ninguém aqui está falando nisso, em matar! Parem de besteira! Isso não é filme.
Ninguém aqui vai sair matando ninguém. Vocês me devem dinheiro, é como se
devessem dinheiro a um banco. Eu já devi dinheiro a um banco e o banco não me
matou. Eu quero apenas ter certeza de que vocês não estão desesperados e
inventando um monte de merda e se forçando a acreditar nesse monte de merda e
vindo falar pra mim um monte de merda como se meus ouvidos fossem penico. Aí eu
vou ter que mandar bater em vocês de novo até que vocês aprendam que eu não sou
otário e comecem a me pagar o que devem sem ficar falando babaquices... Certo?
- Que nós estamos desesperados, disso o senhor pode ter certeza. Demos passos
errados, seu Aurélio, e temos consciência disso... - Luciano tentava parecer o mais
eloqüente possível - Eu estou desesperado porque devo dinheiro para o senhor, devo
para vários bancos, minha filha pode morrer a qualquer momento se eu não tiver
dinheiro para bancar o tratamento dela. Mas essa proposta não é uma ilusão causada
por desespero... É fruto do desespero. E só.
Aurélio olhava para Luciano, seus olhos marejados. Eram olhos de um homem que
estava falando uma mentira? Não pareciam. Pareciam olhos desesperados, com
certeza, mas eram sinceros. O ex-comissário deixaria que eles fossem embora e que
fizessem o tal dossiê. Eram homens sérios, ele já percebera outra vez, e talvez,
movidos pelos seus medos e pela burrice que os encurralara, ajudariam Aurélio a ficar
rico com algo que ele nunca imaginaria que realmente existisse fora dos livros de
contos de fada.
“Quem diria”, pensou Aurélio. “Quem diria...”

Capítulo 3
A Viagem
- Por onde começamos?
A pergunta saiu da boca de Luís Carlos, mas poderia ter sido pronunciada por qualquer
um dos três. Nenhum deles tinha a resposta que apostariam estar correta. Haviam
vestido verde, foram treinados para acreditar em suas potencialidades em momentos
como aquele, mas ninguém espera que momentos como aquele surjam quando não se
tem uma instituição acima de sua cabeça. Eles não tinham o Exército, um serviço de
inteligência, consultores, nada. Eram três homens dispostos a fazer qualquer coisa
para se livrar de um problema que parecia insolúvel.
E essa qualquer coisa era o obstáculo.
- Que tal em como poderemos chegar ao Iraque? - perguntou Hermes, apenas dando a
deixa para a conversa ficar mais séria.
- Quantos de nós deve ir para lá? - Luís Carlos.
- Eu acho que não é bem assim... - Luciano.
Hermes ergueu as mãos, balançando-as como se pudesse apagar os pensamentos
dos três homens.
- Espera! O que temos que fazer? Vamos formar o quadro principal, o que queremos, o
que precisamos fazer, certo? - O grandalhão estava certo - Nós temos que sair daqui, ir
até o Iraque, retirar relíquias de uma usina nuclear destruída, levar para fora do país,
vender e voltar para casa com o dinheiro? É isso?
Era assim, da forma como Hermes descrevera. Precisavam delinear melhor, decupar
em passos.
O objetivo estava em Osirak. Sob dezenas e dezenas de metros de argila, areia e
rochas, existia uma cidade - ou o que restara dela. As escavações de Osirak revelaram
parte dessas construções milenares. Apenas parte. Mas haviam passado mais de 10
anos desde então. O que teria acontecido com as escavações depois que os
israelenses interromperam o processo de acionamento da usina com bombas? Os
iraquianos teriam continuado as escavações arqueológicas?
Luciano preferia acreditar que não, mas não se sentia exatamente idiota por isso.
Quando saíra de lá, o Iraque já lutava há aproximadamente um ano contra o vizinho
Irã, numa guerra que se prolongou por quase 10 anos. Uma guerra que custara muito
caro em recursos e vidas. E boa parte do dinheiro havia se originado do exterior. Osirak
estava intacta. Só poderia estar.
E se ele acreditava assim, assim o expôs para os colegas de empreitada. Todos
julgavam que lá existiria um tesouro a ser resgatado. Precisariam, talvez, fazer uma
rápida operação de escavação. Necessitariam de ferramentas, de pelo menos um
caminhão e víveres. Logo depois, teriam que levar as relíquias para a Turquia -
aproveitando a confusa fronteira entre os dois países. Isso sem esquecer que o Iraque
estava vivendo momentos de tensão, como viram na tevê.
Mas essa parte não incomodava Luciano. Ele estivera lá antes da guerra contra o Irã.
Não existia aquela coisa de filme de Segunda Guerra Mundial, guardas cercando cada
estrada exigindo documentos. O Iraque era, em 1990, um país com o quinto maior
exército do mundo, mas não era um país desenvolvido. Teria poucas diferenças com
relação aquilo que vira em 1980. Então deveriam, em princípio, se preocupar apenas
com a parte operacional do projeto. A segurança... Bem, a segurança não parecia um
incômodo.
O que Luciano não queria levar em conta - não conscientemente - era de que na outra
vez havia sido convidado a entrar no país.

Todo Estado - Estado com letra maiúscula - que se preza tem um serviço de
inteligência. Os anos 60 serviram para fazer com que as pessoas associassem sempre
este tipo de atividade com tortura e golpes de Estado. Não é exatamente assim - mas
não quer dizer que isso não aconteça. Haaji Sayid aprendera com os soviéticos que
havia muitos motivos para que um homem de inteligência fosse, acima de tudo, um
cavalheiro. Por isso era considerado uma raridade dentro da Amn-al-Amm, a Polícia
Secreta Iraquiana.

Wittmann não tinha acesso aos findings presidenciais assinados por Bush ou por
Reagan. Ele não sabia, oficialmente, do que seu país estava maquinando para aquela
região do mundo. Todo mundo ouvia falar alguma coisa. Todo mundo era capaz de
elocubrar, desenvolver teorias de conspiração sobre o assunto. Da mesma forma, a
CIA não tinha acesso a sua agenda.
Era um caderninho de capa marrom, de couro, onde o agente anotava idéias. Naquelas
páginas não existia nenhum tipo de censura, nenhum tipo de cerceamento. Foi com
uma caneta esferográfica comum que o ex-piloto norte-americano começou a tracejar
um devaneio.
Olhava para o horizonte trêmulo de ondas de calor, bem na direção do Iraque. À sua
frente, uma lata de Coca-Cola suava, avisando que seu consumidor teria que abdicar
do líquido nela contido em poucos minutos. A tal caneta esferográfica balançava entre
seus dedos.
- O que ele está tramando?... - perguntava-se Wittmann, sem mexer os lábios. Ele tinha
certeza de que havia alguma coisa por trás daquele deslize absurdo de estratégia de
combate de cavalaria. Alguma coisa o impulsionava a colocar, emparelhadas, as fotos
de Osirak e das manobras de tanques.
Esta mesma intuição parecia avisar, como sinos em sua cabeça, sobre a necessidade
da teoria se manter dentro daquela agenda. Somente ali. Em mais nenhum lugar.
Aquilo era intuição de que? De piloto? Ou de espião? Talvez não fosse nem uma, nem
outra, pensou Wittmann, quando confirmou que a Coca-Cola estava intragável. Virou a
lata, esvaziou-a do líquido e a amassou, lembrando como os norte-americanos eram
considerados fortes ao amassar latas de cerveja em filmes. Isso por que na maioria dos
países subdesenvolvidos, as latas eram bem mais grosseiras, mais pesadas, feitas de
forma menos inteligente. Lembrou como ele mesmo acreditara na conversa mole de
superioridade, de que vivia numa terra de oportunidades... A coisa não era bem
assim... era?
Estava com 46 anos. Arremessou a latinha amassada num recipiente de lixo e passou
a outro cálculo mental, vindo não se sabe de onde...
O que possuía?

A coisa toda era muito estranha. Aurélio já remoera o assunto quantas vezes? Já
estava ficando confuso, mas uma linha de raciocínio o manteve ligado à racionalidade:
o Iraque ficava ao lado da Turquia. E da Turquia vinha a heroína. Ele já vira gente
trazer heroína de lá. Era uma atividade arriscada, mas não era bicho de sete cabeças.
Precisaria de quê? Saber falar inglês, obviamente. “Todo mundo fala inglês”, pensou.
Até ele.
- Vila... lembra de algum cara que tenha trazido alguma coisa do lugar de onde eles
falaram?
- Estou entendendo o senhor... Conheço uns tipos.
- Bichos graúdos?
- Nem tanto. Dinheiro deixa quente as costas de qualquer um.
- Dinheiro e um pouquinho de coragem, que filho da mãe nenhum consegue se virar
num país distante se mijando nas calças.
- O senhor tem toda a razão.
- Eu quero falar com um cara desses. De preferência falar com mais de um, para poder
estabelecer um padrão. Quero entender a plausibilidade deste negócio...
- Considere feito, chefe...

Rolland Emmeret Jones tinha um nome composto por três palavras. Era um mau sinal,
diriam estudiosos que se dedicavam em dissecar a mente dos serial-killers da América.
Mas acontece que estudiosos se dedicam muitas vezes a bobagens sem medida. Anos
depois de Jones vistoriar pela enésima vez seu Apache a bordo do George Washington
- somente naquela temporada - um grupo de cientistas canadenses provariam por A +
B que roteiristas que haviam ganhado o Oscar tinham propensão a morrer mais cedo
do que os colegas de profissão que haviam sido apenas indicados.
A aeronave estava afiada como uma faca kukri. O navio estava boiando nas
maravilhosas águas do Mediterrâneo, o que explicava muito bem o bronzeado de
Jones, que empertigou ao ouvir seu nome bradado ao longe. Olhou na direção dos
elevadores do eixo principal da embarcação e viu um colega sacudindo uma folha
branca. Fax.
As linhas telecompostas falavam sobre... nada. E isso significava muita coisa. Era uma
“carta” de um velho amigo. Uma carta fechada, escrita em fax numa linha aberta.

A menina estava adormecida, cansada da bateria de exames. Era o melhor momento


para que Mara pudesse observá-la de perto e chorar ao mesmo tempo. Luciano deixou
o quarto e seguiu o médico pelo corredor. Entraram em um elevador, em silêncio, e
desceram um andar. Caminharam até o escritório. O homem de branco quebrou o
silêncio.
- O senhor era militar, certo?
- Sim.
- Meu pai também. Era um cara direto, que não gostava de rodeios, estava sempre
pronto para tudo... O quanto restou de militar no senhor?
- O suficiente para suportar o senhor dizer que minha filha vai morrer.
- Isso não é verdade. Ela não precisa morrer agora...
- Então o senhor tem uma boa notícia para mim.
O médico balançou a cabeça: - Eu não considero uma boa notícia. O transplante não
adiantou. Teremos que fazer outro.
- Então vamos fazer outro, doutor, vamos fazer o que for necessário para...
- Senhor Maia... Isso não é tão simples assim. É preciso...
- O senhor está falando de dinheiro?
- Eu estou falando de doador...
- O caralho que o senhor doutor está falando de doador... - o homem ficou parado no
meio de um suspiro - O senhor está falando de dinheiro... Não está?
Antes que o médico pudesse voltar a articular palavra, Luciano levantou-se e apoiou as
mãos na mesa.
- Dinheiro não é problema... - e caminhou na direção da porta. Assim como acontece
entre os animais, ao desviar os olhos, o oponente sentiu-se mais forte.
- É problema sim, senhor Maia. O tratamento do primeiro transplante ainda não está
pago. Como quer autorizar um segundo tratamento? Entenda uma coisa, senhor Maia:
Eu não quero me opor ao tratamento! Eu quero salvar sua filha! Eu pre-ci-so salvar sua
filha! Eu não deveria estar falando de dinheiro com o senhor, mas quero evitar que um
burocrata venha a falar de sua filha como se ela fosse um boleto bancário!
Os dois homens estavam à porta do consultório, Luciano com a mão direita na
maçaneta.
O hospital vai ter o dinheiro. O médico vai ter o dinheiro. O anestesista, as enfermeiras,
o cara que trança as gazes vai ter o dinheiro.
Capítulo 4
Na terra de Saddam
- O que é isso, exatamente, senhor Maia?
- Quando o senhor vai a um show de mágica, pergunta ao mágico como ele tirou o
coelho da cartola?
- Sinceramente, eu perguntaria... - respondeu o homem franzino segurando o
equipamento, os olhos curiosos. - O truque está aqui, não?
O homem estava segurando o pequeno cilindro posicionado perto de uma das
extremidades do cabo de borracha com miolo de cobre. Luciano sorriu, retirando a
peça das mãos do comerciante iraquiano. Ambos se comunicavam em inglês, com
sotaques diferentes.
- Sim. O segredo está aqui. Mas posso garantir que não adianta tentar abrir. O próprio
material usado como revestimento do circuito faz parte do circuito. Nossos engenheiros
pensaram muito bem antes de liberar o MaxForce para o mercado...
- Como os americanos não tentaram isso antes?
- Os americanos têm gasolina barata! É bem diferente o que acontece no Brasil. Nós
pagamos uma fortuna por litro de combustível...
- Mas nós temos gasolina muito barata aqui, senhor Maia...
- Mas sua frota não é tão nova assim... A maioria dos carros do povo é de veículos
antigos. Seu povo, assim como o meu, não tem a facilidade que os americanos têm de
trocar de carro a cada ano. O MaxForce é uma mina de ouro por que? Porque com ele
o consumidor tem, com pouco dinheiro, a sensação de que está dirigindo um carro
novo!
O homem franzino pegou de novo a peça das mãos de Luciano, que a segurava bem
perto do rosto do interlocutor, como se sacudisse uma lingüiça na frente de um
cachorro faminto. Conseguira despertar a curiosidade do comerciante iraquiano ou
não?
- Você sabe que nossa economia está sofrendo desde que tomamos a nossa 19ª
província...
- O Kuwait é de vocês e ninguém vai tomá-lo de volta! Já estamos em novembro. Se os
EUA tivessem coragem de enfrentar vocês, já teriam enfrentado...
O iraquiano suspirou, dando a impressão de que o brasileiro acreditava mais no que
falara do que ele mesmo.
- Eu quero ver se isso funciona...
É claro que funciona, pensara Luciano há quase 35 dias. Seus conhecimentos de
mecânica o levaram à idéia com a facilidade com a qual um estudante do ensino
fundamental deduz o resultado de uma soma algébrica.
Hermes, suando dentro de um terno de linho bege - ele imaginava que um ocidental no
Iraque deveria se vestir assim - seguiu os dois homens, desconfiado. Tinha chegado a
hora de colocar em prova a “invenção” do amigo. É claro que tinham feito testes em
cima de testes no Brasil, mas a insegurança não conseguia se manter distante. Será
que os iraquianos nunca haviam visto algo parecido?
Segundo Luciano, a beleza do truque estava em sua simplicidade.
O carro do homem era conhecido no Brasil como Voyage, mas comercializado há
alguns anos no Oriente Médio como Fox.
O motor Volkswagen não tinha segredos para Luciano. O que ele precisava era de
apenas um distribuidor e uma bobina para fazer sua mágica funcionar.

Do outro lado da rua, dentro de um Mercedes, dois homens estavam tentando não
demonstrar que estavam olhando para os três outros homens seguindo em direção ao
Lada, e pareciam estar conseguindo atingir seu objetivo. Como todos os agentes de
campo da polícia secreta iraquiana, eles haviam sido treinados (e muito bem) para isso.

- É só conectar o equipamento entre a bobina e o distribuidor e... pronto!


- É somente isso?
- Sim. Podemos dar uma volta? Você está bastante acostumado com o desempenho
de seu carro, certo? Pois vai ver a diferença...

O escritório central da Amn-al-Amm fica em uma avenida de Bagdá, de onde se pode


ver, em quase toda a totalidade, o Rio Tigre. O local não ficava muito longe de onde
Luciano iniciara o teste do equipamento chamado MaxForce. Para os agentes, aquilo
era um aspecto positivo daquele trabalho. Talvez o único.
- O que eles estavam fazendo?
A pergunta vinha do major Saad, olhando despreocupadamente para um dos homens
que estivera vigiando Luciano e Hermes horas antes.
- Pareciam estar genuinamente preocupados com uma transação de negócios com
este homem...
E o jovem tenente apresentou uma ficha para o oficial superior. Não era extamente
uma grande ficha policial, mas o homem tinha dado suas voltinhas pelo sistema policial
de Saddam.
- Esse Muzsharad... Ouvi dizer que se regenerou e não lidava mais com receptação ou
contrabando. O que me diz?
O tenente deu de ombros. Não parecia estar gostando daquele trabalho desde o início.
O cara em questão - um dos brasileiros - tinha uma ficha limpíssima. Era considerado
amigo do governo, para quem trabalhara num projeto de grande importância. Este
homem poderia representar algum risco? Claro que não. Era um brasileiro, e, até
então, os brasileiros haviam sempre se portado de forma neutra. Para o tenente, a
Amm-al-Amn deveria se preocupar com os ingleses e alemães infiltrados em seu país.
Afinal de contas, estavam em guerra ou não?
- É cedo para dizer qualquer coisa, mas os três homens não pareciam estar querendo
esconder nada.
Saad terminou de folhear a ficha do ex-receptador e pegou mais uma vez uma cópia do
passaporte de Luciano para dar uma olhada.
- Temos que ficar de olho nesse homem. Se Muzsharad está se sentindo tentado a
fazer algum tipo de negócio com esse tal de Maia, é porque deve haver alguma
proposta de dinheiro fácil...
E durante uma guerra, o termo dinheiro fácil poderia ter um sem fim de significados.

Mara pegou a carta com cuidado. As dobras do papel estavam quase rasgando.
Chegou a perguntar a si mesma: “De que adianta ler isso de novo? Não muda nunca!”
E realmente o texto não mudava nunca. O papel em branco aceita tudo, mas quando
aceita, não volta atrás. Não aquela folha de papel. E aquela era clara e obscura ao
mesmo tempo no que afirmava: “Querida” dizia Luciano, com uma caligrafia nervosa,
“Você me conhece. Não vou aceitar a sua idéia de campanha. Não vou me curvar, não
vou mendigar. Eu coloquei a gente neste buraco” Ela, toda vez que lia, não assumia o
quanto empunhara aquela alegórica pá, “e eu vou batalhar para nos tirar dele. Eu sei
que Cíntia não tem culpa, mas não sou este tipo de homem que você está querendo
que eu me torne. Desculpa. Eu vou voltar com o que precisamos. Te amo. Luciano”
E era sempre assim que a carta terminava. Parecia otimista, mas ao mesmo tempo
pedia desculpas... Desculpas pelo quê? Pelo fato de não ter aceitado a idéia de
fazerem uma campanha para arrecadar doações de dinheiro para salvar sua filha? Ou
desculpas por saber que poderia falhar?
Mas ele já havia falhado, não? Que tipo de pai deixaria um orgulho idiota atrapalhar a
luta contra uma doença como a leucemia? Ela dobrou a carta novamente, sentindo-se
sozinha, sentindo-se idiota por considerar aquele pedaço de papel um documento. Mas
era isso mesmo. Era uma prova de que haveria um culpado, para o caso de tudo dar
errado. Ao mesmo tempo, imaginava se, caso desse tudo errado, perderia tempo
apontando algum culpado.
Não. Mara não poderia perder tempo pensando no orgulho.
A coisa toda era um pouco mais prática.

Aquelas fotos pareciam ser bem mais conclusivas quando avaliadas através de um
computador de quase US$ 1 milhão. Agora ficara óbvio que o caminhão havia chegado
vazio e saído bem carregado. Isso aguçou a curiosidade (seria curiosidade mesmo?)
de Wittmann. Tinha que saber para onde ia aquele veículo, mas para isso precisaria
optar entre duas possibilidades:
1) Aguardar um golpe de sorte que permitisse que um satélite passasse exatamente no
local certo, na hora certa para que fizesse uma foto feliz;
2) Modificar os “planos de vôo” de um daqueles pássaros, correndo todos os prováveis
riscos que viriam em conseqüência deste desvario.
Optando pela segunda alternativa, conjeturou Wittmann, seria obrigado a criar uma
justificativa plausível para oferecer a alguém, caso isso fosse necessário. E obviamente
seria necessário.
Mas não seria nada difícil fazer a coisa, seria? Afinal de contas, algo grande estava
acontecendo naquele canto do mundo e nenhuma vigilância seria demais.
Somente ele sabia que os caminhões estavam levando carga para fora de Osirak. Não
seria difícil convencer burocratas de que estava acontecendo o contrário.

Do lado de fora do bar, a coisa era tão feia quanto lá dentro. Normalmente Luís Carlos
teria receio de entrar num local parecido se estivesse no Brasil. Mas ali não. Não que
fosse mais seguro onde se encontrava. Muito pelo contrário. Naquele canto da Turquia
a vida parecia valer muito pouco, principalmente devido aos constantes conflitos entre
os curdos e as forças policiais turcas e iraquianas. Como Luís não tinha cara de curdo,
nenhum policial ou soldado parecia disposto a incomodá-lo. E se outra pessoa
quisesse causar algum problema, para isso tinha guardada dentro da jaqueta uma
pistola automática.
Não havia sido difícil conseguir a arma. Custara bem mais barato que custaria no
Brasil, e o processo para adquiri-la não fora diferente de quando tivera que recuperar
alguns fuzis belgas roubados de um quartel no Rio de Janeiro. A diferença era apenas
da língua utilizada. A proximidade com bases militares norte-americanas e a própria
história do país contribuíam para que boa parte das pessoas com quem tivera que
travar contato dominasse o inglês.
Após pedir uma cerveja local e pagar com um punhado de moedas, tratou de sondar o
ambiente, da mesma forma que o ambiente o sondava. Viu um grupo de homens
conversando em uma mesa e decidiu que seria bom começar por ali, já que eram
praticamente os únicos que não deram muita atenção à sua presença.
Com movimentos lentos, tirou de seu bolso um pacotinho de feltro, como uma
sacolinha para guardar jóias, e apresentou-se ao grupo, falando em inglês.
- Saudações.... Vocês sabem onde posso encontrar alguém que trabalhe com esse tipo
de coisa?
À noite, no pulgueiro que chamavam de hotel, pensava sobre a abordagem correta
para obter a informação. Seria o ideal mostrar os dados assim, de cara, ou tentar
convencer alguém de que estaria procurando relíquias para comprar. Os homens da
mesa olharam para os dados por um instante, entreolharam-se e, num rompante de
bom humor, afastaram ruidosamente as cadeiras, abrindo um espaço à mesa.
- Vamos jogar? - perguntou um dos homens, com um inglês inteligível.

Luciano abriu o pacote sobre a cama e deitou as duas garrafas no colchão. Olhou para
as duas durante um tempo, depois olhou para o relógio e, em seguida, com uma
caneta, riscou o calendário. Menos um dia.
Não muito longe dali, Hermes caminhava até um dos telefones públicos que haviam
escolhido para o revezamento de comunicação. Naquela noite seria o de uma esquina
relativamente próxima ao hotel. Em princípio, aquela não parecera ser uma idéia ruim.
Não queriam destacar o hotel deixando-o numa zona de exclusão.
- Pai? - perguntou Hermes assim que a ligação internacional foi completada. Do outro
lado veio a voz de Luís Carlos.
- Filho? Como vai o joelho?
- Vai bem, pai.
- Continua jogando bola?
- Sim, senhor. O jogo continua. E aí com o senhor?
- Ainda não achei quem venda uma boa bola oficial aqui por estas bandas, mas já
consegui umas indicações...
- Aqui estamos vendendo bem seu invento, mas ainda não conseguimos aprovar um
big teste.
Não haviam notícias muito boas nem disposição para que continuassem uma
conversação. Depois de mais uma ou duas papagaiadas, desligaram os telefones.
Ninguém da Amn-al-Amm captara a ligação telefônica, mas o mesmo não poderia ser
dito da Agência de Segurança Nacional (ASN) norte-americana. Eles estavam
rastreando o Iraque sem poupar esforços, e toda ligação estranha era catalogada,
ganhava uma etiqueta com um código gerado por computador e ia direto para a mesa
de um analista.
A fita com a conversa de Hermes e Luís Carlos daquela noite foi encaminhada para a
mesa de um burocrata franzino que já estava quase se familiarizando com os
brasileiros. Já havia pelo menos meia dúzia de fitas com aquelas mesmas vozes.
Aquela sétima gravação apenas confirmaria um método de comunicação que poderia
ser considerado subversivo ou clandestino. O pacote seria fechado, amarrado e
encaminhado para o pessoal de Incirlink, que estava mais perto do teatro de
operações. Wittmann não sabia de nada, mas o universo conspirava a seu favor.
Fahed olhou para a mulher com um jeito incrédulo.
- Você tem certeza de que este homem ligou para mim?
- Sim, homem...
- E dizendo que está aqui, em Bagdá?!
Mais uma vez a resposta fora positiva. Fahed sacudiu a papeleta onde a mulher
anotara o recado, com um nome de um velho amigo, um número telefônico e o nome
de um hotel barato localizado nas cercanias da parte antiga da cidade. Por um
momento, Fahed lembrou que em outras épocas, o visitante estaria no Hilton, mas a
especulação mostrou-se mais fraca que a alegria por ter tão boas notícias - artigo raro
nos tão atarefados últimos dias. Claro que seria bom rever o amigo, mas isso
significava que teria que apressar um compromisso. E fazer as coisas com presa
sempre dá margem a erros.
Mas e daí?
- Prepare muita comida, mulher. Teremos visita!

A Amn-al-Amm podia não ter captado e gravado a ligação de Hermes para uma
cidadezinha no Sul da Turquia, mas tinha, com certeza gravado uma outra ligação
naquela noite. Enquanto para gravar a primeira ligação eles teriam que dispor de uma
tecnologia avançada, baseada na utilização de satélites, para a segunda foi necessário
contar apenas com o bom e velho grampo telefônico. E o grampo não estava instalado
no quarto do hotel onde os brasileiros se encontravam.
- Onde foi feita essa gravação?
- Veio do grampo na residência do coronel Ibrahim Al Fahed.
- Coronel da Guarda Republicana Ibrahim Al Fahed?
- Sim senhor.
- Por Alá, por que temos um grampo na casa desse homem?
- É uma investigação que está sendo feita a pedido da própria guarda. Alto escalão...
- Acho que vou ter que falar com esse alto escalão... - murmurou o oficial, tragando o
seu cigarro diante da janela. - Eu quero informações sobre essa investigação, mas,
pensando melhor, sem que o pessoal da guarda fique sabendo. Certo? Veja se
consegue trazer para mim o relatório com o pedido de abertura de vigilância eletrônica.
- Sim, senhor. - e o major se retirou da sala.
O coronel da polícia secreta ficou brincando com o cigarro entre os dedos, pensativo,
até que o outro oficial retornasse com uma pasta.
- Está aqui... Quer fazer uma cópia? Terei que devolver rápido.
- Não. Vamos ver isso aqui, sem estardalhaços...
Os dois homens pararam lado a lado, diante da mesa e espalharam os documentos
com método para não se confundirem na ordem dos papéis.
- A investigação foi aberta a pedido do coronel Osman.
- Osman e Fahed lutaram juntos contra o Irã, certo?
- Como a chuva cai do céu.
- Amigo desconfia do amigo, mas por quê? O que será que está acontecendo?
- Será que tem algo a ver com a invasão?
- Kuwait? Por quê?
- Fahed estava treinando uma brigada mecanizada... Deve ser o cara que o chefe
deveria estar pensando em colocar no cargo de....
- Isso se for realmente acontecer o que você está sugerindo que vá acontecer...
- Tem alguma dúvida?
- Não sei. Isso tudo é política, não a boa e velha guerra de verdade. Pode acontecer,
como também não pode acontecer. Depende do que for resolvido no campo
econômico...
- Certo, mas estamos indo longe com essa divagação, companheiro. Vamos nos
concentrar no principal: Osman, amigo de guerra de Fahed, abre investigação sobre
Fahed. Uma gravação de grampo telefônico na casa de Fahed mostra conversa com
um brasileiro que estamos investigando... em outra investigação...
- Também são velhos amigos...
- O brasileiro e Fahed? Mas de onde? E por que veio para cá agora, tanto tempo
depois, para uma atividade tão deslocada do que veio fazer antes?...
- É isso que você tem que descobrir.
- De que forma? Vamos aumentar a vigilância, correr atrás de papelada... ou...
O coronel olhou para o cigarro, já no fim, e pensou seriamente em acender outro. A
nicotina parecia ajudá-lo a pensar melhor - a desculpa de todo viciado. Mas resolveu
não fazê-lo. Apagou a bituca no cinzeiro recheado de outras bitucas e sorriu para o
major.
- Ou!

A noite ainda não havia terminado naquela parte do mundo quando Wittmann recebeu
o telefonema. Minutos depois, a mesma linha segura trouxe para a Turquia as
gravações realizadas pela ASN. Pelo que podiam perceber, novos jogadores pareciam
ter entrado no jogo. Precisaria acompanhar aquilo tudo mais de perto, o que, antes do
amanhecer, o levaria a cruzamentos de dados parecidos com os obtidos pela
Amn-al-Amm.
Em menos de cinco minutos ele estava na sua sala de crise da base de Incirlink,
ligando a mesa de luz e espalhando uma série de fotografias. As ligações interceptadas
pela ASN geraram um mapa com a localização exata de onde haviam sido irradiadas.
A idéia era simples: comparar fotos e mapas para tentar avaliar o que estaria
acontecendo no Iraque.
- Bagdá... - murmurou Wittmann. A informação não acrescentava muito. A capital do
Iraque, obviamente, estaria explodindo em telefonemas e outros tipos de comunicação
naquela época. O país estava agitado subterraneamente. O que chamara a atenção da
ASN havia sido as vozes de brasileiros efetuando as ligações naquele lugar, naquela
época. Wittmann precisaria confirmar em suas anotações que os brasileiros haviam
tido uma participação na construção civil daquele país, além de serem exportadores de
armas e veículos, o que tornava as interceptações não tão estranhas assim. Não fosse
o fato de - ele observou melhor o relatório da ASN - uma das ligações ter sido originada
de um telefone público para algum ponto do Sul da Turquia...
Seria necessário, talvez, fazer um cruzamento de dados com, por exemplo, os
ingleses, que àquela hora deveriam ter gente lá dentro.
Mas, antes disso, ele observou o que imaginou ser uma coincidência:
Os caminhões daquele oficial iraquiano estavam indo para a Turquia....

- O que você fez?


Era Hermes, atônito, à porta do quarto do hotel. À sua frente, Luciano estava com o
telefone em uma das mãos e uma garrafa na outra.
- O que você fez? Você telefonou... daqui de dentro?
Luciano largou o fone no gancho do aparelho e tomou mais um gole da bebida. Hermes
fechou a porta.
- O que você fez?
- Eu fiz dois telefonemas. Dois.
- Você sabe que não dá para ligar daqui de dentro... Nós planejamos isso quanto
tempo? Escolhemos ma série de telefones públicos - foi um pau pra conseguir isso - de
onde ligar... Você acha que não estão nos vigiando?
- A Amm-al-Amn está nos vigiando. É óbvio que estão nos vigiando, mas nós não...
- Precisamos nos preocupar? É isso?
Luciano voltou a tomar da garrafa, desta vez erguendo os pés, girando 90 graus e
baixando a cabeça no travesseiro.
- Eu sei onde você quer chegar... - murmurou Hermes. - Mas eu vou te dizer uma coisa:
eu não estou aqui pensando no seguro de vida que minha família vai receber... Isso
não deixa de ser suicídio. Se fosse para pensar assim, eu simplesmente pisaria fundo
no acelerador, miraria num poste, soltaria o freio de mão e pronto. Não teria queimado
neurônios nessa operação...
Luciano continuava inerte, na cama. Hermes decidiu continuar:
- Você acha que se fizer isso Aurélio vai deixar sua família em paz? Se acontecer algo
com a gente e as nossas famílias receberem dinheiro você sabe muito bem o que...
- ...Aurélio está na Turquia, certo?
Hermes apenas calou-se.
- ...Podemos dar conta de tudo.

Nem mesmo a Guarda Republicana de Saddam Hussein se negaria a oferecer uma


licença de alguns dias para um de seus mais aplicados oficiais. Tudo estava
estabilizado no Kuwait, o que poderia conferir a soldados especiais uma regalia
tipicamente civil. Mas para o coronel Osman, aquela regalia era um benefício que
Fahed não havia feito por merecer.
- Não seria interessante aproveitar o tempo com mais treinamento? - perguntara
Osman, dias atrás, para um tenso Ibrahim Fahed.
- O colega deve levar em conta três itens: treinamento de cavalaria custa muito
dinheiro, e não creio que um novo exercício viesse a trazer algum benefício, tão em
cima um do outro; segundo, substituiria com prazer treinamentos práticos por
simulações, mas não temos a tecnologia à disposição na medida ideal; terceiro, meu
filho único precisa de tratamento de saúde e preciso dar-lhe assistência...
- Por que não disse isso antes, irmão?! Pouparia explicações desnecessárias... além
do mais, somos dois coronéis com a mesma quantidade de estrelas.
A desculpa não convencera Fahed, que lembrou dela mais uma vez atrás do volante do
caminhão. Uma placa acabara de indicar 80 quilômetros de distância paa chegar em
Mossul, uma cidade a poucos quilômetros da fronteira com a Turquia.
Estaria Osman desconfiando de alguma coisa? Tinha certeza de que não dera motivo
algum para quem quer que fosse questionar sua posição perante a pátria e a Guarda.
Mas o comportamento de Osman o incomodava.
Tinha uma viagem longa até seu destino, e precisaria dar uma breve parada em
Mossul. Por um motivo fútil, cometeria um deslize tolo. Tão tolo quanto qualquer ato
que pudesse ser chamado de deslize.

Identificar uma determinada voz no meio de milhares de vozes diferentes é um


processo caro. Mas, em 1990 havia tanto em jogo que chegou uma hora em que era
necessário apenas um memorando simples para que este procedimento pudesse ser
feito. Esta flexibilidade garantiu aos EUA uma agilidade muito grande na coleta de
informações.
Alguns minutos depois de Fahed ter falado a primeira palavra em um telefone público
em Mossul, a ASN já dispunha da identificação positiva para o pedido que fizera um tal
de Wittmann, na base de Incirlink, na Turquia.
- Temos o seu cara, ligou para Bagdá de Mossul, perguntando pela saúde do filho...-
disse a voz do outro lado do mundo. Wittmann não o reconheceu. Devia ser um
daqueles garotos que a agência vinha contratando a peso de ouro, como se fossem
gênios ou coisa do gênero. Seria difícil enrolá-lo?
- Ele disse filho?
- Sim, perguntou do filho...
- Assim como a ligação de Bagdá para a Turquia! Tenho alguma coisa aqui e
precisamos da ajuda de vocês!
- O que vocês acham que está....
- Generais em fuga, uma operação para nos sabotar aqui, na Turquia, não sei. Preciso
de uma análise de identificação de voz e de um satélite, e preciso agora!
- Preciso falar como general Morr...
- Rapaz, se é por causa de um general, eu tenho dois aqui em Incirlink cobrando
resultados práticos!

Nunca fora tão fácil obter fotos de satélite, pensou Wittmann, imaginando que a coisa
toda parecia estar saindo de controle... para alguém que não ele próprio. Para
Wittmann as coisas não poderiam tomar rumos melhores.
No tempo esperado as fotos começaram a chegar. Segundo o cruzamento de dados,
parecia que o homem dos telefonemas estaria dirigindo um caminhão que rumava para
o Norte, na direção da Turquia. Estava tudo coincidindo perfeitamente. Chegara a hora
de conjeturar sobre o que aquele iraquiano estava fazendo. Algo dizia a Wittmann que
as coincidências não seriam apenas coincidências.
Aurélio nunca saíra do país. Para ele, conhecer Lisboa, Roma e agora parte da Turquia
parecia muito com as férias de algum artista. Bem, pelo menos a parte de Lisboa e
Roma. O lugar onde estavam não chegava a assustar, mas provocava comichões nas
mãos.
- Imagine só, com os contatos certos aqui.... Dá para qualquer um ficar rico...
O que mais atraiu a atenção do policial foi o clima de desordem no local, com a
profusão de não-curdos desesperados buscando algo que os ajudassem a se livrar da
pressão curda naquela região - e os curdos tentando driblar a pressão do governo
turco. Isso sugeria um sem fim de possibilidades na área de corrupção de burocratas,
vendas de documentos e afins. Outra idéia era o contrabando. Ali circulava o ópio e a
heroína desde tempos imemoriais. Com toda aquela confusão, não parecia ser difícil
investir no ramo.
- Sem falar nas tais relíquias... - lembrou Aurélio a seus botões, ao ver Luís Carlos
deixando o grupo de homens com o qual conversava em uma praça pública. -
Conseguiu alguma coisa? - perguntou Aurélio, ao notar que o homem estava sorrindo,
uma atitude que não tomava desde antes de saírem do Brasil.
- Acho que sim. E acho que agora é quente. Todo mundo está comentando sobre uma
tal de Farina.
- Uma mulher?
- Sim. Parece ser uma unanimidade. Domina o negócio de contrabando por aqui.
- Mas uma mulher? Sempre ouvi falar que o pessoal por essas bandas tratava as
mulheres como lixo. Como uma mulher pode estar na cabeça de algo? Ainda mais de
contrabando?
- Me disseram que era mulher... - respondeu Luís Carlos, fechando a porta do Land
Rover alugado (idéia de Aurélio, pois o militar preferia não chamar a atenção) - Tenho o
endereço onde podemos achar essa tal de Farina.
- Endereço? Aqui contrabandista tem cartão de visita?
A travessia da fronteira dos dois países era algo complicado. A relação entre os dois
países não era muito boa fazia tempo. Mas a vigilância era maior da Turquia para o
Iraque do que o contrário. A idéia era manter os curdos fora do Iraque - que já tinha
seus próprios curdos com os quais se preocupar - enquanto o outro país parecia querer
se livrar daquele povo. No meio da confusão, o oficial da Guarda Republicana
Iraquiana parecia se locomover com tranqüilidade.
- Como vai? - perguntou Fahed para o soldado iraquiano na passagem da fronteira.
- Muito bem, senhor coronel, que Alá o acompanhe... - agradeceu o soldado.
Havia muitos pontos cegos na fronteira entre os dois países, que provavelmente
desapareceriam dentro de pouco tempo. Fahed poderia usá-los, mas assim deixaria de
usar os homens que mandara para lá em troca de favores, homens que preferiam
servir ao seu país perto de suas cidades-natais, de suas famílias. Fora fácil
providenciar aquelas transferências, assim como era fácil cruzar a fronteira agora.
Do outro lado o problema não era maior. A proximidade entre as cidades fazia com que
muitos soldados iraquianos fossem primos, cunhados ou algo parecido de colegas de
farda do lado turco - afinal de contas, eram todos curdos de Curdistões turcos ou
iraquianos. Fahed cumprimentara esses homens para quem já mandara cestas de
comida e garrafas de bebida relativamente cara - alcoólicas, é óbvio.
Assim, praticamente sem parar o caminhão, Fahed passou de um país para o outro.
Esperava ele que fosse sempre assim, com aquele caminhão, com aquela
tranqüilidade, sem que ninguém reparasse no que estivesse fazendo...

Mas não era exatamente isso que estava acontecendo. Alguns milhares de quilômetros
para o alto, uma câmera fotográfica dotada de um poderosíssimo conjunto de lentes
registrava em breves intervalos de tempo o seu deslocamento no solo. As imagens,
como sempre, eram enviadas direto do complexo de recepção da ASN para a base de
Ircinlink, na Turquia. Lá, Wittmann, quase afogado em doses cavalares de café,
contabilizava mais de 56 horas acordado.
- Esse cara está aprontando... - murmurava o agente da CIA, para si mesmo. - O cara
vai sozinho para a Turquia, com um caminhão...
Com o supercomputador, Wittmann ampliou as imagens até poder observar a trilha dos
pneus na pista de areia e terra. Comparou com outras fotos. Era o mesmo caminhão,
mas as trilhas eram diferentes. Eram... mais... fracas. O caminhão estava vazio!
O iraquiano estava indo para a Turquia com um caminhão vazio. Significava que
poderia estar indo buscar alguma coisa... Mas... não. Não era isso.
O ruído do telefone com a linha quente atraiu sua mão direita num reflexo digno de
Bruce Lee. Até doeu na orelha.
- Temos a identificação da voz. Coronel Ibrahim Al Fahed, cavalaria. Participou em três
momentos notáveis do Iraque: este treinamento que você está acompanhando -
captamos sua voz em comunicação de rádio -; a guerra Irã-Iraque; e a construção da
usina nuclear de Osirak...
Talvez fosse a falta de sono, talvez fosse cafeína demais, talvez realmente fizesse
sentido, mas a partir do momento em que o geniozinho da ASN mencionou Osirak,
tudo parecia se encaixar para Wittmann.

Os dois Fox estavam prontos. Nenhum era novo, tinham quilometragens em seis
dígitos aproximadas e ambos tiveram o tanque cheio até a boca com a boa gasolina
iraquiana. A diferença entre os dois é que um deles estava equipado com o MaxForce.
Este veículo, é claro, seria o pilotado por Muzsharad, para que pudesse comprovar os
benefícios do equipamento.
Não sabia o comerciante iraquiano que MaxForce não passava de um engodo.
Constituído por um cabo com dois terminais e um cilindro sólido no meio, a gambiarra
não escondia nenhum circuito misterioso que aumentasse o desempenho do carro ou o
tornasse mais econômico. Era apenas um cabo, um fio de cobre menos resistivo que
os cabos originais “de fábrica”. O que acontecia então com o veículo dotado de tal
equipamento? As velas simplesmente recebiam uma carga maior de eletricidade, o que
aumentava a queima do combustível, mas que, em compensação, reduzia a vida útil de
quase uma dúzia de peças do veículo.
Muzsharad deu a partida no Volkswagen e tomou o caminho que seguia para fora de
Bagdá. A cidade crescera pouco desde a última passagem de Luciano, mas mudara o
suficiente para quem na ocasião não era exigido pegar o volante de um carro. Por isso
Hermes desdobrara, sentado ao banco traseiro, um mapa da região. Grandalhão, o
ex-S2 não conseguiria manusear o mapa no banco da frente sem atrapalhar o
motorista.
No porta-malas, cantis, garrafas térmicas e uma pequena provisão de comida numa
caixa de isopor. Diferente de Muzsharad, os brasileiros se perderiam nas estradas
iraquianas, explicariam depois, por falta de mapas. A escassez de policiais rodoviários
teria uma dupla função: reforçaria o álibi da perda do caminho e permitiria que
cobrissem a distância até Osirak num espaço de tempo razoável. Não queriam
despertar a atenção de Muzsharad... e de ninguém mais.

Farina saiu do armazém e parou sob a marquise, aguardando o motor do caminhão ser
desligado. O homem é pontual, pensou, olhando-o descer do veículo, um velho Zil
russo.
- Saudações... - disse Farina estendendo a mão para um cumprimento ocidental.
Fahed respondeu ao aperto de mão com vigor, avaliando que o costume adquirido pela
mulher deveria ser resultado de freqüentes contatos com parceiros de negócio
ocidentais.
Por sua vez Farina identificou-o como realmente um homem de caserna. Sua postura,
educação, seriedade... poderia ser confundido, por alguém que conhecesse menos as
pessoas, com um policial. Mas não era, ela sabia.
- Vim conversar... conforme o combinado...
- Trouxe algo?
- Não. Não preciso trazer nada. Garanto que o que tenho é de primeiríssima qualidade.
Muito antigo.
- Não sei se posso avaliar assim....
- Vamos entrar?
Farina avaliou o comportamento do homem por um par de segundos. Só poderia
mesmo ser um militar: - Se você pensa que encontrará algo para usar como
comparação....
- Fique tranqüila... Eu quero apenas mostrar umas fotos...

As fotos não poderiam mentir. Mostravam o Zil (ele já havia identificado o caminhão)
estacionando e a porta abrindo. As coordenadas eram claras. O cérebro de Wittmann
fervia. Ele já ouvira falar de Incirlink, antes. Aquilo tudo fazia sentido.
O coronel Ibrahim Al Fahed era um soldado de primeira linha, Guarda Republicana,
cavalaria, lutara contra o Irã e sobrevivera para contar a história, fizera parte da equipe
que começara a construir Osirak.
Lá estava o homem numa cidadezinha fronteiriça da Turquia, numa região curda, no
meio daquele torvelinho que envolvia o Sul... Exatamente o Sul do qual se livrara com
uma série de manobras que parecera errar de propósito.
Tudo estava confirmado em uma investigação caríssima, resultado de fotos de satélite
e gravações de telefonemas e mensagens de rádio.
Fahed queria desertar.
Era isso.
Só poderia significar isso.
Não se tratava de um palpite alto. A idéia de Wittmann se baseava em sua experiência.
Não seria difícil traçar um paralelo com algum dissidente militar russo. Havia dossiês
sobre o assunto na CIA, com toda descrição do comportamento deste tipo de
“subversivo”. Fahed, até então, se encaixava muito bem naquela papelada que lera
anos antes. Isso era bom sinal.
Mas deveria existir uma grave diferença entre Fahed e um dissidente russo nos anos
70 que gerara um ou dois manuais da agência. O coronel iraquiano parecia estar
querendo levar para fora do país algo além de segredos militares. Wittmann podia
perceber pelo caminhão. Por que um caminhão? Era o mesmo veículo que vira nas
fotos em Osirak, tantas vezes carregado. Agora estava vazio. Obviamente porque
estava atravessando a fronteira sem que fosse a derradeira vez.
Fahed deveria ter uma família. Tinha uma família e informação - coisa normal para um
alto oficial da Guarda Republicana. Precisava calcular sua retirada, a retirada da família
e a retirada desse plus, desse algo mais, com muito cuidado. O que retiraria primeiro?
No momento, o Zil estava estacionado ao lado de um armazém em uma cidadezinha
perto da fronteira da Turquia com o Iraque.
Wittmann estava na base aérea de Incirlink, uma instalação militar norte-americana na
Turquia, a poucas centenas de quilômetros do local indicado em graus, minutos e
segundos pelo satélite.
Equipamentos de GPS eram como zippos naquela base.
Existiam helicópteros de sobra no local.
Wittmann considerava-se um agente de peso...
Problemas? Não temos problemas, pensou Wittmann, correndo para fora da sala de
crise de Incirlink, rumo a uma das pistas de decolagem. A base não estava
movimentada, mas ele sabia muito bem onde arranjar um piloto e um helicóptero.
Trazia junto consigo uma série de fotos com aqueles códigos indecifráveis da ASN.
Aquilo costumava impressionar os militares; pareciam alvos.
- Preciso chegar neste local! Preciso chegar agora!
Wittmann mal sabia o que estava fazendo. A espontaneidade do momento era muito
importante...
Assim como a emoção da caçada.

Luciano sentia-se à vontade conduzindo o Fox pela rodovia que levava para o Norte.
Hermes já havia retirado um cantil do porta-malas através do banco bipartido. A
impressão é de que tudo era muito mais difícil no plano do que realmente na prática.
Estavam em um país árabe, em guerra, altamente militarizado, indo em direção a um
sítio arqueológico que ele não sabia ser guardado ou não, para avaliar a possibilidade
- que deveria ser factível - de roubar relíquias para serem vendidas no país vizinho.
Parecia bobagem?
De certa forma, sim.
Nenhum dos homens envolvidos no projeto poderia se considerar inexperiente. De uma
forma ou de outra, já haviam visto ou participado de uma operação clandestina. Nem
sempre se orgulhavam disso, mas, no momento, encaravam como uma forma de
garantir a sobrevivência do grupo. Por isso, nenhum dos dois sentia necessidade de
repassar passos ou discutir o plano. Eles não estavam com medo.

- Isso vale muito dinheiro... É realmente muito antigo... - murmurou Farina, olhando as
fotografias uma a uma, cuidadosamente. Fahed sentia seu peito inflar, orgulhoso por
ter pensado em tudo.
- Você entende mesmo dessas relíquias?
- O suficiente para saber o quanto elas valem. Trabalho com analogias. Lembro o que
já vendi, o quanto pagaram, o quanto quiseram pagar, o que eles não podiam ver sem
os olhos brilharem e as mãos tremerem...
- Eles pagam bem, então?
- Muitas coisas aqui têm valor incalculável. Nós apenas arredondamos para baixo e
ficamos satisfeitos em voltar para buscar mais.... Mas, agora, com o que vocês fizeram,
talvez fique mais difícil.
- Não sei. Pode ser...
- Você não tem medo?
- Não tenho. Lutei quase toda a outra guerra.
- Não lutou contra os Estados Unidos. - disse Farina, deixando as fotos sobre a mesa.
- Não tenho medo, mas sei quando é a hora de parar... - retrucou Fahed, pegando as
fotos de volta. - Você pode dar conta de um carregamento completo?
- Posso.
- Quanto?
Farina tomou uma das fotos da mão de Fahed e apoiou-a sobre a mesa de madeira
tosca, riscada. Tirou uma esferográfica do bolso da calça e escreveu no verso. A letra
parecia de criança, a escrita, demorada. Terminou e entregou a fotografia de volta.
- É o que pode valer. Talvez um pouco mais.
Fahed olhou o número. Tentou não demonstrar emoção, pois não se faz negócios com
emoção. Guardou a foto junto com as outras e caminhou em direção à porta.
- Tentarei ser o mais rápido possível.
- É bom. O cerco está fechando. As coisas podem ficar difíceis...
- Ou mais fáceis...

Assim que saiu do armazém, Fahed sentiu-se aliviado. Estava lidando com
contrabandistas. Podiam ser liderados por uma mulher bonita, mas ainda eram
criminosos. Sabia que teria que ter bastante cuidado. A soma de dinheiro era grande, e
a mulher a anotara com dois Us e um cifrão antes dos números. Dólares americanos.
Americanos como pareciam ser os cinco homens que olhavam para ele, parados ao
redor do caminhão. Quatro deles pareciam estar armados, e sem muita preocupação
em esconder o fato.
Era estranho, admitiu Fahed a si mesmo. A melhor opção parecia ser evitar o confronto
direto. Discretamente desviou o o olhar, enfiou as mãos nos bolsos passou direto pelo
Zil, como se não fosse com ele.
- Pretende ir a pé para Bagdá? - ele ouviu a voz vindo por trás. Estava sendo seguido.
- Coronel Ibrahim Al Fahed, eu presumo... - insistiu a mesma voz, com um argumento
que laçara a curiosidade do iraquiano pelo pescoço.
Fahed sustou a marcha e, com a altivez de um coronel de uma linhagem de um dos
mais antigos exércitos do mundo, voltou-se para de onde viera a pergunta.
- Sim. Sou eu.

Aurélio buzinou para que um grupo de homens saísse do caminho e estacionou ao lado
de um caminhão.
- Que caras panacas! Compraram a rua?! - resmungou, descendo do Land Rover,
encarando os quatro homens altos, de pele rosada.
- Deixa pra lá. Não vamos arrumar confusão à toa com o pessoal daqui... - ponderou
Luís Carlos, fechando a porta do carro.
- Se esses caras são daqui eu sou francês. Olha só pra eles. Americanos. Estão por
toda parte mesmo, como a gente vê nos filmes...
- Deixa pra lá, cara! Vamos entrar. É aqui mesmo... - Luís Carlos puxou o ex-policial
pelo braço e foram em direção ao armazém.

- Meu nome é Wittmann. Sou americano. Preciso falar com você.


- O que quer falar comigo?
- Não vamos falar aqui no meio da rua...
- Como você sabe quem eu sou?
- É o meu trabalho.
Fahed estudou o homem. Não parecia disposto a causar mal. Parecia que realmente
queria conversar com ele. Mas o que seria aquilo? Tinha que descobrir.
- Só nós dois.
- Somente nós dois. Vamos comer alguma coisa. Eu ouvi falar bem da comida turca.
- Aqui não tem lugar que preste.
- Vamos para a praia? Meu helicóptero está logo ali....

- É um pouco mais adiante... - murmurou Luciano. O tempo não havia apagado de sua
memória imagens de mais de 10 anos atrás. Hermes dobrou os mapas sem tirar os
olhos da pista. Há meses ouvia histórias sobre aquele local, tantas histórias que já o
reproduzira em sua imaginação.
Passaram pelo que um dia fora uma grande cerca reforçada e começaram a divisar a
superestrutura semidestruída e abandonada da usina.
Neste momento, fachos de luz se acendem na direção do Fox. Luciano reduz a marcha
instintivamente. Ambos ficam apreensivos. Por algo assim não esperavam. Havia
alguém em Osirak.

A maioria das pessoas lembra da Turquia como o país onde um rapaz ficou preso no
filme O Expresso da Meia-Noite. Um país com prisões terríveis. A Turquia não era
somente isso. Tirando prisões horríveis que existem em qualquer parte do mundo -
privação da liberdade, em si, já é uma desgraça - o país tinha belíssimas praias. Fahed
nunca estivera em uma delas antes, e agora lá estava ele, sentado à mesa de um
restaurante olhando as luzes refletindo nas águas calmas do Mar Negro numa região
chamada Trabzon. Cerveja gelada era derramada dentro de um copo fino e alto por um
garçom mais bem vestido que ele próprio. À sua frente, o americano esperava o copo
encher para propor um brinde.
- À paz.
Boa escolha, pensou Fahed, erguendo o copo com um sorriso. Em outra mesa, a
alguns metros - o suficiente para que não ouvissem a conversa - os outros americanos
ergueram também seus copos de cerveja.
- Acho que nós dois nunca estivemos aqui... - disse Fahed.
- Por que acha isso?
- Já esteve?
Wittmann sorriu: - Não. Conhecia apenas de mapas. Trabalho com mapas, com
fotografias aéreas e de satélites... Conheci você assim...
- Interessante...
- É... que tal irmos direto ao assunto?
- Voamos bastante para isso, não, colega americano?
- Você está desertando?
- Digamos que sim.
- Como assim? Existe um meio termo na deserção?
- Estou desertando, abandonando o Iraque, sim. Mas se estou disposto a trair meu
país, vender algum segredo, alguma informação, não.
- Você ama seu país?
- Amo meu país com todas as forças.
- Então por que está desertando?
- Não concordo com o rumo dos acontecimentos...
- Acha que Saddam não deveria ter tomado o Kuwait?
- O Kuwait, em princípio, deveria ser nosso território. Discordo do momento. Não havia
necessidade disso. O país sofreu muito em oito anos de guerra.
- Você acha que o país sofreu...
- Sofreu demais... senhor Wittmann, é isso, não?
- Pode dispensar o senhor. Somos farinha do mesmo saco...
- O senhor também é desertor?
- Sem senhor... Não sou desertor... Acho que nós dois somos... habilidosos.
- Habilidosos?
- Fahed... posso chamá-lo assim?
- Sim.
- Você está desertando. Deixando seu país no meio de uma guerra... certo?
- Sim.
- Você não quer trair seu país, revelar segredos, informações, posições, certo?
- Sim, certo.
- Desertores podem ganhar dinheiro. Dissidentes russos sempre ganharam muito
dinheiro conosco.
- Como disse, amo meu país...
Wittmann alargou o sorriso, tomou um gole da cerveja - um gole grande - e sorriu de
novo: - Um desertor dispensando dinheiro? Isso é estranho, Fahed... Muito estranho...
O coronel Fahed permaneceu mudo, apenas bebericando a cerveja e olhando as luzes
do norte da Turquia refletindo no Mar Negro, entre uma embarcação de luxo e outra.
- Quer saber de uma coisa, Fahed... Não acredito nisso. Você tem uma carta
escondida na manga...
- Você veio falar comigo para me recrutar como traidor, como agente duplo, como o
que?
- Procurei você como sócio, Fahed. Como sócio.
Foi a vez do cenho do iraquiano se contrair. O movimento foi quase involuntário e
completamente indesejado. Não queria ter demonstrado a emoção, mas escapou.
- Eu tenho várias fotos suas e de seu Zil, Fahed... Fotos que considero reveladoras.
- O que você tem?
- Tenho você entrando e saindo de Osirak com o caminhão cheio... O que tem lá,
Fahed?
O iraquiano escondeu ao máximo o que estava sentindo. “Ele não sabe!!!”, urrava
dentro de si.
- Você avalia bem as fotos, não? Mas não parece ser o bastante...
- Nunca é o bastante, Fahed... É preciso sair em campo...
- Quanto custam as fotos, Wittmann?
- Quanto custam as relíquias que você vem retirando da velha Osirak?
Fahed se levantou, de ímpeto, furioso. Em outra mesa, homens levaram as mãos às
armas escondidas sob jaquetas de nylon. Wittmann controlou o medo e, com uma
máscara de cinismo, tomou toda a cerveja do copo.
- Se vai atirar em mim, pode ter certeza de uma coisa: eu ia pagar a conta...
- O que você quer?!
- Coronel Fahed, por favor, é melhor se sentar... Nossos países estão quase em
guerra. Toda essa região vai virar uma loucura. Ninguém vai ter sossego. Que tal nós
aproveitarmos o que resta de paz aqui? A ONU já está avisando seu país sobre o
Kuwait, mandando vocês saírem de lá, não? Vocês não dão atenção... Saddam não
liga a mínima, não quer conversar... Você concorda com Saddam? Não, certo? Mas vai
agir da mesma forma? Não vai querer conversar também?
- O que você quer, Wittmann?
- Sem rodeios?
- Sem rodeios... - disse Fahed, sentando-se novamente.
- Eu quero a minha parte do que você tirou de Osirak! Eu sei que não é pouca coisa. Já
foram pelo menos três caminhões. Eu não sou idiota. Estou na sua cola e posso foder
com você a hora que quiser. Agora não sei onde você vem guardando as coisas, mas
posso descobrir antes de que você possa comer um donekebab e, se você não quiser
me dar a minha parte, entrego você e seus planos para seu governo . Se não adiantar,
solto um Tomahawk em cima de você, de Osirak, dos seus bagulhos, da sua família, de
tudo o mais. Não é difícil fazer isso, porque eu estou no time que seleciona alvos,
coronel, e ninguém vai se preocupar se aparecerem algumas coordenadas a mais aqui
ou ali. Sabe quantos submarinos e cruzadores já estão por aqui por perto com dezenas
desses brinquedinhos? Eu estou com a faca e o queijo na mão, Fahed! Se você está
cansado de Saddam, eu vou dizer uma coisa que vai rimar: eu estou cansado do Tio
Sam! Eu lido com milhões de dólares todo santo dia, mas meu salário nunca me
permitiu vir a uma praia como essa. Eu nunca cruzei o lago para essas bandas sem ser
a trabalho, sem ver gente morrer ou ter que preencher milhares de lacunas
burocráticas! Por isso, Fahed - eu não consigo ser mais direto que isso - trate de saber
que você tem uma porra de um sócio desde agora. É isso ou você e tudo que é seu vai
para o inferno, assim que essa guerra começar ou antes.
E Wittmann mostrara suas garras.

- Sou brasileiro! Engenheiro do Brasil, trabalhei aqui, na construção... - dizia Luciano,


pausadamente, misturando e arranhando inglês com farsi, para os soldados iraquianos
por trás dos fuzis AK-47. Ele e Hermes já estavam fora do carro, com as mãos erguidas
e as pernas trêmulas.
- Entrada proibida aqui! Proibida!
- Sim, certo, proibida... - disse Luciano, concordando com subserviência na voz e no
gestual, conquistando a confiança dos militares de baixo escalão. - Mas eu vim de
longe para rever aqui, o lugar onde trabalhei...
- O que veio fazer aqui?!
- Mostrar para meu amigo onde trabalhei, mostrar a covardia dos judeus em destruir
uma obra tão grandiosa... - Luciano rasgava a seda. Aqueles soldados provavelmente
eram bastante jovens em 1981, quando um raide israelense detonou o lugar, mas
conheciam bem a história.
- Não pode. Tenho ordens para não deixar entrar...
- Eles são apenas dois? - perguntou Hermes, em português.
- Parece que sim...
- Dois para cuidar desse lugar? E para que? Isso aqui realmente parece abandonado...
A conversa em outra língua irritou os soldados, que ergueram novamente os AKs a
altura das cabeças dos dois brasileiros, que se desmancharam em mesuras e
desculpas.
- Entendo que tenha suas ordens, mas é que viemos de longe... Ele estuda Física
Nuclear e queria ver como era o modelo de reator que teria aqui... Interesse puramente
científico... - após dizer isso, Luciano, percebendo o olhar de um deles amolecer,
afrouxou a pulseira do relógio e o tirou. - Podemos trocar favores...
O relógio de pulso digital chamou a atenção do soldado. Com apenas uma das mãos
segurando o fuzil, estendeu a outra para conferir o presente. Parecia de boa
qualidade. E tinha que ser, afinal, os iraquianos não eram índios que se
impressionassem com contas e espelhos.
- Citzen! Pulseira de titânio. Custa caro... - disse o soldado para o colega, que esticou o
olho para averiguar, voltando-se em seguida para os brasileiros, como se pedisse seu
próprio presente.
- Podemos entrar? É por pouco tempo... - insistiu Luciano.
Que mal faria, pensaram os soldados, e verbalizaram um para o outro num farsi rápido.
Mas seria bom conferir uma coisa...
- Passaportes!
- Como? - perguntou Hermes - O que eles querem?
- Querem ver nossos passaportes?
- Quero conferir se são brasileiros!
- Mostra seu passaporte para ele... - explicou Luciano, fazendo o mesmo. Os soldados
olharam, folhearam, viraram... - Vê, já estive antes, em 1980, certo? Trabalhei aqui...
O soldado conferiu a informação impressa na caderneta. O brasileiro não estava
mentindo.
Os dois soldados se afastaram - um para cada lado e um deles colocando o relógio no
pulso - e acenaram aos estrangeiros, liberando a passagem. Luciano e Hermes
avançaram rumo à entrada principal do que restara da usina nuclear de Osirak.

Capítulo 5
Desesperança
Mara olhou a menina, que olhou para ela de volta. Como era duro aquele olhar, pensou
a mãe, segurando a mão da criança ao lado da maca em movimento.
- Mãe... - disse Cíntia, com a respiração cansada demais para uma menina de sua
idade. A mãe aproximou a cabeça da cabeça da filha. - Eu vou ficar boa, mãe?
Mara sorriu. Em nenhum lugar se ensina o que responder a uma criança numa situação
como aquela. Por mais que elas tivessem convivido tanto tempo com a leucemia,
aquilo tudo permanecia muito distante, difícil de entender. Por mais que Mara fosse
inteligente, negava-se a procurar entender o mecanismo daquele mal que tentava,
sistematicamente, mudar a ordem natural das coisas.
A ordem natural das coisas seria a criança viver mais que os pais. Não era? Mara não
tinha dúvidas quanto a isso. As dúvidas residiam sobre a crueldade daquela doença,
que parecia selecionar sem nenhum tipo de escrúpulo vítimas inocentes. Não havia
meios de prevenção, não havia uma lógica de punição... Era desconcertantemente
impiedoso o destino que empurrava a menina para mais um transplante de medula,
como se estivesse fazendo uma brincadeira de mau gosto com a capacidade que
aquela família tinha de ter esperança.
- Vai sim, minha filha.

Um transplante de medula não é exatamente como a maioria das pessoas pensa.


Apesar de a medula ser associada geralmente a uma constituição óssea, e a palavra
transplante ser quase sempre referente a uma cirurgia onde um órgão é inserido dentro
de um corpo que não seu originário, a coisa não funciona bem assim. A cirurgia pela
qual Cíntia precisara pela segunda vez assemelhava-se mais com uma aplicação de
injeção.
A medula se constitui de um líquido retirado de um determinado ponto da coluna
vertebral - bem perto da nuca. A seringa, levando-se em conta a quantidade de líquido
que deve trocar de lugar, não pode ser qualificada como pequena - é, no mínimo,
assustadora - assim como também a grossura da agulha propriamente dita.
Na cabeça de Mauricinho Vila Isabel não entrava a idéia de que um procedimento tão
simples pudesse ser chamado de cirurgia ou, então, que custasse tão caro. Ainda mais
levando-se em conta que era uma criança que estava passando por aquilo.
Por isso ele aprendera a observar com solidariedade a mulher que recebera a
incumbência de vigiar. Ela era uma lutadora, pensava Vila Isabel. Bem menos dondoca
do que um dia imaginara que fosse. Estava sozinha enfrentando dificuldades difíceis de
se detalhar - ela era mãe, e situações como aquelas são sempre mais difíceis para
uma mulher, certo?
Por isso, e mais um sem número de motivos, Vila Isabel abraçou Mara após ela ter
visto a menina sumir através da porta do setor cirúrgico. Não. Dinheiro não haveria de
ser problema.

Depois de descer dezenas de metros através de elevadores manuais e escadas já


desgastadas pelo tempo, a visão era desoladora. Além dos metros da descida, Luciano
e Hermes podiam contabilizar os milhares de quilômetros que tiveram que ser
transportados do Brasil até o solo iraquiano. Tudo aquilo por... nada?
Osirak havia sido atingida não apenas pelas bombas lançadas pelo raide de
caças-bombardeiros F-16 da Força Aérea de Israel em 1981.
- Luciano, já estamos vasculhando isso aqui há mais de uma hora e... - argumentava
Hermes.
- Meu Deus! Levaram tudo daqui, porra?
- Calma, cara... Coisas assim ficam enterradas...
- Isso aqui parecia uma loja de vasos, azulejos, o caramba! Tava tudo espalhado por
aí, só um pouco enterrado na argila... Alguém fez a limpa!
- Você quer dizer que estava assim, à flor da terra?
- Sim, eu já falei isso há dias...
- Eu não levei ao pé da letra! Ninguém levou, Luciano! Porra, se é como você diz...
porra cara, são quase 10 anos! É claro que alguém já veio aqui e...
- Não pode ser... não pode ser... - desesperado, Luciano procura algum objeto
contundente e começa a usá-lo como pá, cavocando cada pedaço de solo nu ao seu
redor. Hermes, aturdido, apenas observa o amigo, em histeria, e cai sentado no chão.
- Você quer saber o que vai acontecer? Eu vou lhe dizer o que vai acontecer, se você
parar, por favor, com essa histeria?
- Histeria? Histeria?!
Luciano empertigou-se e partiu para cima de Hermes, agarrando-o pelo colarinho e
puxando- para ficar de pé.
O susto inicial deu vez a uma reação rápida do homem maior, que tentou uma torção,
segurando o pulso direito de Luciano e girando-o para fora.
Mas Luciano não era nenhuma boneca. Percebendo a intenção do amigo, girou-se no
mesmo sentido, por debaixo do braço, como se fosse um passo de dança, que
terminou com um chute.
Atingido ao lado do abdome, logo abaixo das costelas, Hermes desconsiderou a
histeria de Luciano e decidiu revidar com a força e a intensidade que julgou
necessárias para acabar com a briga.
- Histeria, sim! - rosnou Hermes, enquanto Luciano cambaleava zonzo, para trás, com
um filete de sangue descendo do supercílio esquerdo. - Você tá maluco?!
E Luciano caiu sentado no chão, com pontos pretos dançando a sua frente.

O motor do velho Zil empurrava o caminhão a toda velocidade rumo ao sul, castigado
pelo pé direito de Fahed. O militar iraquiano precisava descarregar a raiva e a
frustração em algo, e a máquina parecia ser subserviente o bastante.
Seu cérebro funcionava mais rápido que o motor do Zil, tentando entender como e por
quê o norte-americano conseguira tanta informação sobre seus planos. Fora somente
sorte? Existiam agentes infiltrados no Iraque capazes de...
Não... Não era assim, não dessa maneira que deveria ser.
Quem passou tantos anos em guerra aguardando uma esperança de paz? Quem havia
encontrado corpos de meninos de 9 anos despedaçados ao lado fuzis e granadas que
mal souberam usar para garantir-lhes segurança?
Deveria existir alguma compensação, cogitava Fahed, lembrando-se do que
acontecera na fronteira leste.
Tudo, todo o esforço estava prestes a ter sido empregado completamente em vão -
caso não fizesse alguma coisa que... ele não sabia exatamente o quê. Estava diante de
um axioma militar, não um mero problema do cotidiano. O inimigo se revelara da forma
arrogante de sempre, com a qual estava acostumado a vê-lo, e foi obrigado a fazer
acordos com ele. Tinha trunfos consideráveis, um armamento mais evoluído e
disposição para usá-lo.
Fahed quase perdeu o controle do caminhão, numa derrapagem, o que o fez ver que
não seria nada bom concentrar-se tanto assim em seus devaneios. Colocou a direção
no prumo e sorriu para si mesmo e para o perigoso deserto iraquiano. O
norte-americano decidira atrelar a Fahed a guerra da qual o iraquiano tinha intenção de
deixar para trás, para roubar dele exatamente que ele próprio decidira roubar para
garantir uma vida de paz em outro canto do mundo.
A questão era que as relíquias de Osirak, Fahed considerava uma herança de seus
antepassados. Wittmann, com sua pele rosada e olhos azuis não era, nem de longe,
digno de tal espólio.

- O que aconteceu aqui? Sumiram com equipamentos, com tudo que fazia parte da
usina... - perguntou Luciano, esforçando-se para se fazer entender pelos soldados. Um
deles, com a cara de mais inteligente, contou que nos últimos meses um coronel vinha
retirando itens de dentro de Osirak. Era um coronel da Guarda Republicana - acima de
qualquer suspeita, imaginou Luciano, enquanto o soldado explicava - que mostrou
documentos que o autorizavam a fazer a depena.
- Esse local nunca funcionou... - disse o soldado. - Nem nunca vai funcionar...
Luciano sabia disso. Agradeceu a informação e, desolado, acenou para Hermes, como
quem diz que não há muito a fazer. A melhor decisão era pegar o VW e descer as
colinas em direção à estrada. O frio era intenso.

Luís Carlos estava ansioso. Não via a hora de receber o telefonema de Hermes e
Luciano. Talvez eles fiquem mais empolgados com o que conseguimos, pensava,
incomodado com o negativismo e a desconfiança de Aurélio. O contraventor, por sua
parte, considerava que toda precaução era pouca... muito pouca numa situação como
aquela. Estavam do outro lado do mundo. No Brasil, no Rio de Janeiro, Aurélio poderia
se sentir alguém capaz de contornar qualquer adversidade. Qualquer mesmo. Por isso
não se sentia à vontade para ter um comportamento otimista, por mais que Luís Carlos
considerasse que o dia havia sido um dia de conquistas.
- Qual língua ela fala?
- Como assim qual língua ela fala? Você viu que eu falei com ela em inglês...
- Isso eu vi, mas qual língua ela fala?
- Não sei, ela tem cara de turca, de sei lá o que! Deve falar turco!
- Eu quero saber se ela fala e entende inglês com perfeição. Quero saber se a
comunicação entre vocês foi precisa, foi perfeita. Eu conheço lugares dentro do Rio
que você precisa levar um intérprete pra não levar um tiro.
- Você tem medo da comunicação não rolar? É isso?
- É isso! É óbvio! Essa mulher fala outra língua, pelo amor de Deus! Você viu como
esse lugar parece um barril de pólvora!
Luís Carlos era obrigado a admitir que Aurélio não estava falando bobagens. Tinham
que pensar que aquelas pessoas sabiam que eles eram dois brasileiros praticamente
perdidos num nicho de negócios ao qual, definitivamente, não pertenciam.

Brasileiros em Bagdá não representavam uma raridade. Além do corpo diplomático


residente na capital, haviam dezenas de profissionais ligados às mais variadas
empresas brasileiras com interesses no solo iraquiano. Entre elas estava a Órbita, a
Engesa, Avibras (estas três envolvidas em fornecer armamento e manutenção às
Forças Armadas de Saddam Hussein), Petrobras (com interesses óbvios) e a Mendes
Júnior (no setor de estradas e engenharia civil), entre outras. Em suma, o
árabe-iraquiano (ou iraquiano, para os íntimos) estava acostumado a ouvir a língua
portuguesa pronunciada por uma considerável colônia brasileira ao redor das quadras
do Hotel Meliá - considerado um refúgio ocidental naquele país.
Por este motivo, Luciano e Hermes sentiram-se à vontade de escolher o local como
disfarce - ou álibi - provisório para poderem reavaliar todo o projeto. Sentaram-se a um
restaurante que servia fartos pratos há mais de 600 anos sob o comando de uma
mesma família. Pediram os pratos baseando-se pelo preço e comeram carne de
ovelha, arroz e legumes crus. Coisa comum para aquelas bandas. A refeição foi feita
em silêncio.
Do outro lado da rua existia (ainda existe) uma agência telefônica. Luciano contou as
moedas que foram trazidas de troco pelo garçom.
- Vai lá... - disse Hermes, largando sobre a mesa mais moedas que retirara do bolso. O
engenheiro tinha mais necessidade de ligar para a família do que ele próprio.

Wittmann estava profundamente safisteito, pois colocara o iraquiano exatamente na


palma de suas mãos. Deixou o corpo cair sobre a cama depois de ligar o aquecedor.
Passaram-se meses desde que chegara em Ircinlink. Desde então não via sua família.
O Tio Sam parecia não entender muito bem seu próprio conceito de liberdade, sabia?
imaginou. Foi aí que percebeu o quanto estava cansado, as costas doloridas.
Há quanto tempo não dormia uma noite inteira? Perseguir Fahed e suas viagens de
caminhão tinha sido cansativo, mas quando ele olhava as fotos, tão preciosas fotos,
sentia-se muito inteligente e dizia para si mesmo: “Vou ficar rico!” E ficar rico, para
Wittmann, significava largar a CIA, deixar tudo para trás. Mas, para isso, teria que ficar
em cima de Fahed, para que aquele coronel não se sentisse livre o suficiente para fugir
do Iraque com a mercadoria. E ele já sabia exatamente como faria isso: através da
família do árabe-iraquiano, provavelmente seu maior ponto fraco.
Mas Wittmann não se sentia um mau-caráter. Não poderia simplesmente achacar
Fahed. Ele se sentia como o menino quando vê o colega fazer uma arte e diz: “Eu vi
você roubar os biscoitos, quero a minha parte também”. Isso seria um crime? No meio
de toda aquela confusão que estava acontecendo naquele canto do mundo, Wittmann
imaginou que poderia até ajudar Fahed - pelo menos queria, em parte, se convencer
disso.
“Sem mim ele pode se ferrar tentando tirar a família e a mercadoria através da
Turquia... Eu posso ajudar ele...”, enganou-se. O plano de Fahed era antigo e bem
costurado. Não precisaria do americano. E... Wittmann sentia o torpor do sono e a
cabeça embaralhada. Decidiu deixar para pensar sobre aquilo tudo nas próximas
horas, depois de um pouco de sono, mas não deu certo. Batidas na porta fizeram-no
levantar bruscamente da cama de armação de metal.
- O que foi?
- Isso chegou hoje do Pentágono, senhor.
Era um envelope com a inscrição CONFIDENCIAL.
- Obrigado, cabo... - o militar deu meia volta e sumiu no corredor. Wittmann fechou a
porta novamente e caiu na cama... novamente... O envelope poderia esperar um
pouco...

- O quê?! Como ela teve que... Como ela está?


No outro lado do mundo, Mara, com a voz cansada, narrou os acontecimentos dos
últimos dias, como os médicos foram obrigados a adiantar o novo transplante de
medula de Cíntia. Na voz dela, o ressentimento de quem ainda não conseguia entender
porque ele não estava lá por perto, naquela hora tão importante. Ele também não
conseguia entender. Talvez nem quisesse entender, talvez não fizesse mais sentido.
Afinal de contas, não havia nada mais em Osirak para ser roubado, havia?
- Se era para nós virarmos um bando de ladrões, por que não ficamos lá e roubamos
um banco?
- Nós concordamos que isso não seria roubo, seria como uma operação militar! Só
isso! - argumentou Hermes, preocupado em não levantar a voz e chamar a atenção de
alguém. As ruas estavam movimentadas - Bagdá era uma das maiores metrópoles do
mundo muçulmano, com gente de todo canto circulando. Algumas pessoas vinham de
culturas que valorizavam a discrição, outras, nem tanto.
Luciano bateu o telefone no gancho - Mara não estava mais na linha. Ele sentia-se
sozinho mais uma vez, inútil. As pernas fraquejaram e ele deixou-se cair sentado no
meio-fio. Hermes tentou manter-se onde estava, pelo menos durante pouco mais de
um minuto, mas não conseguiu. Aproximou-se do amigo e ofereceu a ajuda para se
levantar.
- Vamos lá, cara... Vamos dar um jeito... Vamos...
- Qual jeito? Você vai pensar em uma forma de arrumarmos todo o dinheiro que
precisamos? Pelo amor de Deus, você tá aqui, não tá? Caiu nessa história idiota,
nesse plano...
- Podia dar certo... Quem sabe ainda pode...
- Como você acha que pode dar certo?! Como?!
- Vamos voltar lá. Vamos ver se ainda tem alguma coisa lá embaixo. Vamos escavar,
porra! Não é assim que se faz? Você disse que o governo sabia o que havia sob a
usina, esse país é socialista. Os caras escavaram aquele lugar para retirar as coisas e
levá-las para algum museu... Você acha que fizeram isso bem feito? Porra, são
funcionários públicos, e funcionário público é tudo igual em qualquer canto do mundo!
Deve ter alguma coisa lá!
O bom e velho sino bateu de novo na cabeça de Luciano.
A última vez, lembrou, foi quando viu o noticiário na TV e lembrara-se do par de dados
assírios, seu souvenir iraquiano sobre a mobília da sala.
Desta vez, o sino bateu devido à uma associação.
Seria insólita?
“Como foi que o soldado disse?”
“...nos últimos meses um coronel vinha retirando itens de dentro de Osirak. Era um
coronel da Guarda Republicana...”, dissera o soldado, tilintando de frio no alto de uma
colina.
Um coronel da guarda republicana...
Os militares sabiam de Osirak e de suas relíquias.
Ele conhecera um desses homens. No caso, um major da Guarda Republicana... Um
homem que dera ordens de assassinato para evitar que aquelas relíquias fossem
roubadas. Mas isso havia sido há tempo...
Tempo suficiente para o major se tornar coronel...
E para onde o major havia ido após os trabalhos terem sido encerrados pela ação
israelense?
Luciano não precisava ser um gênio para responder isso. Assim como a grande maioria
de seus colegas de verde, Fahed fora lutar contra os iranianos durante quase 10 anos
de guerra.
“É idiotice elocubrar assim?”, pensou Luciano, olhando para Hermes, mas sem ouvir
suas palavras. Deviam existir dezenas de coronéis na Guarda Republicana. Dezenas,
mas não centenas.
Poucos majores teriam participado de um projeto tão secreto quanto Osirak.
As chances daquele tal coronel ser o seu colega major não pareciam ser tão poucas
assim.

- Boa noite? - disse a voz do outro lado da linha telefônica. Luciano era capaz de
entender alguma coisa em farsi, mas não muito. Por isso antecipou-se em se
apresentar com uma frase em inglês.
Assim como Luciano, a mulher conhecia muito pouco de inglês, mas nada tão ruim que
pudesse impedir a comunicação.
- Sou Luciano Maia, liguei dois dias atrás...
- Ah, o homem que trabalhou com o senhor Fahed!
- Sim, seu marido.
- Sim. Meu marido recebeu sua mensagem e ficou muito feliz.
- Que bom... - a voz de Luciano estaria soando falsa?
Aos treinados ouvidos de Sayid, o tom de voz de Luciano denotava mais que
ansiedade.
- Onde está Fahed? - perguntou Sayid para o coronel e o major que o estavam
auxiliando naquela investigação. Eles não tinham uma resposta precisa.
- Não está em casa, nem na caserna, nem voltou para a base na décima nona... -
explicou o major, referindo-se à província iraquiana de número 19, mais conhecida
como Kuwait.
Sayid já entendia o motivo da abertura da investigação sobre Fahed pelo coronel
Osman. Era um caso de deserção em um dos mais altos escalões da Guarda
Republicana - mas também não era somente isso. A presença dos brasileiros ligada a
Fahed punha a Amn-Al-Amm em dúvida. Quem seriam eles? Espiões? Estariam eles
recrutando Fahed para obter segredos sobre a disposição das forças no Kuwait?
Informações sobre a doutrina de combate? As duas investigações, antes insipientes,
ganhavam, com o decorrer dos fatos, um caráter urgente e de inquestionável
relevância.
Todos sabiam que a tal operação Tempestade no Deserto se desencadearia logo, e
boa parte da inteligência iraquiana estava ocupada com possíveis “infiltrações” e
“vazamentos”.
E, desde a temida Kriptéia, polícia secreta de opressão política da (quem diria?)
Grécia, só havia um jeito eficaz de lidar com problemas de subversão. Este sintonizava
perfeitamente bem com as ordens emitidas por Sayid com papel timbrado da
Amn-Al-Amm.

Por mais que Wittmann estivesse concentrado em largar o serviço da CIA, ainda havia
responsabilidade o suficiente entre aqueles ossos. Sem retirar as costas da cama, ele
tateou o colchão e achou o tal envelope.
- Deixe ver esta merda... Confidencial, hein? - e rasgou o lacre. O papel se desdobrou.
Era um código.
“X-10 para Tempestade no Deserto”
O sono desapareceu. Seus olhos se arregalaram e os cabelos em sua nuca ficaram
eriçados.
Um outro envelope, com a mesma inscrição, ainda em Langley, dizia qual dezena de
11 a 42 corresponderia a variável X. Este novo envelope dizia que a operação
Tempestade no Deserto, carinhosamente batizada por Schwartzkopf, começaria em
X-10 dias.
X era 20, lembrou-se Wittmann.
A coalizão começaria a despejar toneladas de bombas sobre o Iraque em 10 dias. A
Guerra do Golfo começaria em 10 dias.
Ninguém consegue fazer um plano para ficar rico em 10 dias!

Um telefonema apenas, e uma equipe de 12 policiais foi dividida em dois subgrupos


(grupos de combate, como diriam os colegas militares) que tomaram dois rumos
distintos. Um deles recebera as fotografias de três homens - dois estrangeiros e um
contrabandista iraquiano, velho conhecido da polícia de Bagdá. O outro grupo, formado
pelo mesmo número de policiais que o primeiro, era instruído a efetuar a prisão de
apenas um homem.
A maioria dos policiais era formada por agentes com vasta experiência de campo.
Nada estranho num país onde a maioridade era alcançada na casa dos 50 anos.
Por isso, não eram poucos os policiais que conheciam o coronel Ibrahim Al Fahed.
Receber a ordem para prendê-lo imediatamente era, no mínimo, inusitado. Qual deles
acreditaria em qualquer motivo que a Amn-Al-Amm desse para tal ordem? Por isso a
ordem era simples, seca, direta, sem justificativas.
Mas, apesar de toda a imparcialidade sugerida pela ordem, que as duas prisões
ocorreram de formas completamente diferentes.
Fahed havia acabado de estacionar o caminhão no quintal de um primo distante,
quando foi abordado pelos agentes. A conversa foi rápida, restringindo-se a um convite
polido. Fahed atendeu ao pedido, resignado, porém de certa forma satisfeito por não
ter sido preso ao chegar em casa. Além do mais, protestar ou oferecer qualquer tipo de
resistência deporia muito mais contra sua presumível inocência.

Procedimentos bem diferentes foram tomados no hotel onde Luciano e Hermes


estavam hospedados. Como os brasileiros não se encontravam no local, os agentes
conseguiram autorização imediata para vasculhar os quartos. A administração sequer
pediu a apresentação de algum documento - os métodos e os homens da Amn-Al-Amm
eram inconfundíveis.
Os objetos mais simples encontrados nos quartos passaram a depor contra os
brasileiros. Tudo foi recolhido e registrado como evidências, e todo o trabalho pôde ser
feito com muita calma.

Vila Isabel entrou no carro, sentou-se no banco da frente e girou para trás, deixando o
braço esquerdo sobre o encosto. Os dois homens atrás pareciam nervosos.
- E aí?
- Não sei, não... É muita grana, meu irmão...
- É, e não é. A coisa é simples: pra quem é macho a coisa rola. Pra quem vai ficar
vacilando...
- Porra... são 100 quilos, cara. É coisa pra caralho, não é um papelote.
- São 100 quilos esperando a gente... - Vila Isabel decidiu que precisava sacudir a
dupla e mudou o comportamento - Olha, quer saber de uma coisa, se vocês são uns
merdas e já estão se cagando agora...
Os dois homens no banco de trás já haviam passado dos 30. Talvez dos 35, Vila Isabel
não conseguia discernir. Isso era bom e mau ao mesmo tempo. Enquanto mais jovens
e impetuosos não teriam feito tanto drama para topar a jogada, aqueles dois eram mais
confiáveis. A gurizada estava toda envolvida com cocaína - a regra número 1 era não
consumir o produto que vendiam - e não tinha muito discernimento do que era hora de
trabalho e hora de diversão. Isso geralmente causava problemas de excesso de
violência e de indisciplina.
Para falar a verdade, Vila reclamava porque não sabia como a coisa ainda ficaria bem
pior com o tempo. Ele não poderia imaginar que poucos anos depois estaria se
preocupando com seus rapazes consumindo o crack, derretendo seus cérebros por
uma ninharia.
- Que tu acha? - o de bigode perguntou ao mais robusto.
- Sei lá... Tem que dizer agora?
- Vão à merda... - murmurou Vila Isabel, descendo do carro. Robusto e Bigode ficaram
desesperados. Vila estava mudado. Estava planejando dar um golpe em Aurélio,
roubar 100 quilos de coca, e eles haviam sido convidados.
Agora, Bigode e Robusto estavam dando para trás. Quantas horas de vida teria uma
pessoa assim para este novo Vila Isabel?
- Calma, Vila, calma! Estamos com você!
Vitorioso, Mauricinho Vila Isabel voltou-se para os dois e sorriu:
- Então vamos trabalhar... Vocês conhecem os irmãos?
Quem não conhecia os irmãos?
Seriam eles os responsáveis pela parte mais estúpida do plano de Vila Isabel. Para
isso precisariam de dois coletes da Polícia Federal. Coisa fácil de achar.
O trabalho mais difícil ficaria por conta de Robusto e Bigode. Eles teriam a desafiadora
missão de fazer sumir todos os 100 quilos de cocaína, transformando-os em todo
dinheiro que conseguissem cobrar.

Assim que Hermes entrou no hotel, percebeu que havia alguma coisa errada. Peças
estavam sobrando no tabuleiro. E para alguém experiente, não era difícil divisar o que
estava prestes a acontecer. Bastou um olhar diferente de um homem no outro lado do
curto lobby, que cruzou exatamente a direção dos olhos de Hermes.
- Caralho... - murmurou. Luciano voltou-se para ele e percebeu a tensão do colega.
Passos apressaram, olhos vigiaram de lado. Deveriam seguir o caminho original, em
direção ao elevador?
- Polícia? - rangeu Hermes.
- Temos que sair daqui...- decidiu Luciano.
- Tá louco?
Os dois pararam na frente do elevador e olharam o ponteiro começar a girar.
- Vamos atrás do coronel. Ele vai nos tirar dessa...
- Se a gente fugir... E se eles não gostarem disso?
O homem que estava do outro lado do lobby já estava mais perto. Luciano pôde
perceber um segundo elemento, aproximando-se do outro lado. Quantos seriam? Abriu
o zíper do casaco, já começava a suar.
- Corre!!! - gritou Luciano, fugindo para o lado esquerdo do lobby, exatamente na
direção de um policial atarracado, bem mais jovem que ele.
Sem reduzir a velocidade, esbarrou de ombro no homem e empurrou-o. O policial
iraquiano apenas cambaleou, mas os 120 quilos de Hermes, que vieram logo atrás,
serviram para derrubá-lo de vez.
Os outros policiais que acompanhavam na campana estavam mais distantes. Eles
demorariam a alcançar os dois brasileiros se quisessem ajudar o colega que fraturara o
nariz ao cair de rosto em uma mesa. Armas já em punho, gritavam, em vão, ordens em
farsi, uma língua que já era difícil de entender quando pronunciada com tranqüilidade.
Mas Luciano e Hermes julgavam que não precisavam ser poliglotas para entender o
que estava se passando. Pela experiência anterior no país, o engenheiro sabia muito
bem que já haviam cometido uma meia dúzia de infrações graves desde que entraram
no Iraque.
A consciência dos erros não melhorava nem um pouco a situação. Assim que
chegaram do lado de fora do hotel, perceberam mais dois homens correndo em sua
direção, exatamente no meio do caminho entre eles dois e o Voyage. Estavam
cercados e desarmados, mas não dispostos à rendição. Luciano acreditava realmente
ser capaz de chegar até a casa de Ibrahim Al Fahed e utilizá-lo como intermediador
perante a polícia. Mas o ex-colega de Osirak, há muito não visto, se prestaria a isso?

Os brasileiros pagariam para ver, e desviaram mais uma vez dos policiais, que não
estavam acostumados a terem suas ordens desrespeitadas com tanta desenvoltura.
Eles acompanhavam os homens em fuga - o mais baixo à frente, mais ágil que o
grandalhão - e se controlavam para não disparar suas pistolas russas CZ. O comando
havia sido bem claro: aquilo era para ser uma prisão, não uma chacina.
Esbaforido, o chefe da patrulha encarregada de aprisionar os brasileiros reduziu o
passo e puxou o walkie-talkie da cintura, deixando a missão de acompanhá-los para
um agente mais novo, que corria furiosamente.
- Reforço! - bradou o policial ao microfone de cristal piezolelétrico do comunicador. Em
algum lugar, não muito longe dali, alguém reclamava da dor no ouvido, ao mesmo
tempo em que acionava a patrulha mais próxima do local onde era realizada a
perseguição.

Hermes olhava para trás a cada instante, e se perguntava como seria possível escapar
de policiais numa perseguição a pé num país estranho. A única saída, imaginava, era
correr mais que eles, e por mais tempo. Mas isso não adiantaria também. Logo
apareceria um carro de apoio, e eles haviam deixado o bom e velho VW para trás.
Luciano já parecia perder o fôlego, e começava a deixar Hermes aproximar-se. Este
empurrava-o para frente, estimulando a corrida, que parecia ser completamente inútil.
Não adiantava entrar por becos ou vielas. Assim que olhavam para trás, ou para os
lados, lá estavam os policiais, em seu encalço ou adiantando seus movimentos através
de atalhos. Sempre com aquele agente com cara de raiva à frente, cada vez mais
irritante. Os dois se fitavam nos olhos a cada metro percorrido, a cada curva.
“Desgraçado”, pensou Hermes, sentindo o sangue esquentar mais devido à raiva do
que propriamente pelo esforço físico. “Desgraçado”!
O resto foi uma questão de costume. Ex-agente da segunda seção do Exército
Brasileiro, Hermes adquirira o hábito de, nos anos 70, perseguir gente. Ser perseguido
batia de frente com seus princípios. E era exatamente aquilo que estava acontecendo.
Era ainda mais desconfortável ser perseguido por um policial estrangeiro mais novo
que ele.
O que era para ser uma fuga, transformou-se num conflito de gerações.
De repente, Luciano sentiu que Hermes não estava mais seguindo logo atrás.
Instintivamente girou a cabeça e percebeu que o amigo parara. E não somente parara,
como partira em direção contrária.
Aquilo não era bom.

O jovem policial iraquiano também não esperava aquela atitude. Isso o fez perder
preciosos segundos. Com esse tempo, o rapaz teria se desviado do punho de Hermes,
que o atingiu no queixo. Devido à inércia, o corpo do policial tendeu a continuar para
frente, enquanto a cabeça era obrigada a ficar para trás. Isso intensificou o golpe, e fez
com que ele ainda caísse de costas no chão, batendo mais exatamente com o cóccix
no solo. Quem já caiu assim sabe como dói, e como as pernas parecem desobedecer
ao comando de levantar.
Insatisfeito com o resultado da investida, Hermes armou um chute endereçado às
costelas do oponente.
- Pára!
A ordem vinha de Luciano, que voltara para ajudar o amigo. Furioso, Hermes
contra-ordenou que o outro fugisse. O jovem policial aproveitou a distração e, tão puto
da vida quanto o brasileiro, agarrou-lhe o pé de apoio, puxou-o para o lado e ergueu a
perna esquerda para um chute, que Hermes conseguiu aparar, antes de,
desequilibrado, cair sobre o iraquiano.
Tombados ao solo, os dois se engalfinham em socos. Luciano tenta tirar Hermes da
briga, e só consegue facilitar as coisas para o policial, que saca a arma. O ex-oficial da
S2 do Exército empurra Luciano com uma das mãos e segura o pulso armado do
iraquiano. Luciano se redime da idiotice tentando controlar o outro braço do policial,
mas sente a força de alguém puxando-o pelo casaco. Com o canto do olho percebe
que é um outro policial. Outros dois estão se aproximando. Ele agarra o braço do
segundo policial e se ergue, agarrando-o pelos testículos - por essa, o segundo
iraquiano não esperava - e, aproveitando a surpresa, bate com a cabeça no nariz do
homem.
Ao mesmo tempo, Hermes consegue desferir outro soco no rosto do policial mais
jovem, atingindo-o mais uma vez no queixo, levando o homem ao desespero. Por
reflexo, o policial aperta o gatilho da arma. Um tiro é disparado. Os outros policiais, já
de armas em punho, disparam para o alto e apontam para os brasileiros. Luciano cai
de joelhos no chão, as mãos agarradas na cabeça. Armas encostam nele e em
Hermes, que é obrigado a desistir da resistência, soltando o seu oponente. São
cercados pelos cinco policiais, dois deles feridos, emputecidos, que cospem palavras
rápidas, ferozes.
- E agora, porra?? - rosna Luciano, antes de ver Hermes ser chutado no rosto e, logo
em seguida, ele mesmo apagar com um golpe que nunca saberia como realmente o
atingiu.

Os irmãos estavam realmente se sentindo muito bonitos dentro dos coletes da Polícia
Federal. Haviam até brincado de sacar suas pistolas 9mm, posando como policiais de
verdade. Era engraçado, mas a noite não estava para brincadeiras. Tinha trabalho de
verdade para fazer, e eles sabiam que era o tipo de trabalho para o qual sempre eram
chamados. Ou seja, sujos e difíceis.
Um par de adesivos muito mal-feitos foi colado nas portas de um Gol branco,
devidamente roubado à tarde. No escuro, ninguém ia saber se eram mesmo os
originais. Sozinhos no carro, seguiram para a Via Dutra, que une São Paulo e Rio de
Janeiro, até o início do município de Resende. Logo atrás, sabiam que estava
Mauricinho Vila Isabel em uma Blazer 4.3 V6, com três AR-15 como armamento de
apoio. Mas eles não achavam que iriam precisar de mais nada além das suas Colt.
Estavam acostumados com ela.
Silenciosos como sempre, deram a volta na pista e pararam o carro no sentido SP/RJ.
De dentro de uma sacola de papel, um deles pegou um pacotinho de balas de coco.
Era sempre bom comer açúcar antes de matar.

Uma prisão, em qualquer lugar do mundo, continua sendo uma prisão, por mais
convincente que sejam os atenuantes. O lugar sempre será opressor e causará medo
de que a sua liberdade venha a ser tolhida se não para sempre, por tempo o suficiente
para que você sinta falta da vida do lado de fora. Aquela prisão em Bagdá não era
diferente, apesar da falta de experiência dos dois brasileiros sobre o tema.
A primeira reação de Hermes e Luciano foi a de pedir a presença do cônsul brasileiro.
Isso não foi negado, mas os iraquianos não demonstraram pressa em atender o
pedido. Ficara óbvio que a prisão dos dois não ocorrera por um motivo simples. Logo,
as autoridades estariam interessadas em algo que pudessem falar, deduziu Luciano.
Cada um fora colocado em celas diferentes, isolados até visualmente. Era o que eles
faziam, pensou Hermes, lembrando-se do procedimento padrão no Brasil. Talvez
tenham tido os mesmos instrutores. Os iraquianos, antes daquela confusão com o
Kuwait e a formação da coalizão, eram bons parceiros dos EUA, e antes, da Inglaterra.
Por isso, ele poderia até tentar adivinhar o que viria em seguida. Só não acertaria
porque realmente estava sem todas as informações das quais realmente precisava.
O primeiro a ser levado para interrogatório foi Luciano Maia. Ele sentou-se diante de
um homem de estatura baixa, na casa dos 50 anos, calvo, com olhar inteligente.
Bastante árabe.
- O que o trouxe de volta ao nosso país, senhor Maia?
- Não vou falar nada antes da chegada do cônsul.
- Senhor Maia... O senhor é um amigo do Iraque. Já trabalhou aqui antes... Existem
centenas de brasileiros como o senhor trabalhando aqui, em prol da grandeza do nosso
país... Nossos países são amigos. Não temos o menor interesse em prejudicar nenhum
de vocês, quanto menos o senhor...
- Só vou falar depois de ver o cônsul de meu país.
O árabe-iraquiano cruzou os dedos sobre o tampo da mesa, olhou para o lado direito e
suspirou brevemente.
- Temos tempo.
Capítulo 6
Hora do perdão - 10 dias menos 1
O coronel Osman desceu do jipe para verificar uma fileira composta de tanques
Cascavel. Os veículos de combate importados do Brasil eram conhecidos pela
velocidade - em torno de 100km/h - mas não inspiravam muita confiança com relação à
sua blindagem. Por isso, durante a guerra com o Irã, era cometido um paradoxo: os
veículos eram utilizados entrincheirados. Daquela vez, a Guarda Republicana pretendia
fazer uso daquele lote de blindados leves para enganar os norte-americanos. Muitos
dos Cascavel e Urutu estavam sucateados. Estes seriam transformados em
“maskirovska”, ou seja, seriam posicionados como peças operacionais de cavalaria,
bem à vista dos aviões ianques, para atraí-los a gastar munição e dar a oportunidade
de luta às peças realmente úteis. Esta era uma estratégia antiga, mas que sempre
parecia seduzir os generais.
Mas a parte ainda não sucateada destes equipamentos (que orgulharam tanto a
indústria bélica brasileira) teria que funcionar dentro da real doutrina da cavalaria. Ou
seja, teria que se locomover, travar contato e disparar. De outra forma, como os
computadores e analistas de imagens ianques iriam confiar que suas silhuetas contra a
areia representavam verdadeiros alvos? A parte mais difícil, então, era manter elevado
o moral do pessoal dentro das cabines daqueles carros de combate. Essa era a missão
de Osman.
O coronel subiu na torre de um Cascavel e estendeu o braço para cumprimentar um
sargento empoeirado e com olhos experientes. Eram homens que conheciam a guerra
de perto. Isso incomodava muito Osman. Ele sabia que a hora de lutar contra os
americanos estava próxima, e ele tinha noção de que não seria uma luta justa. Os
americanos iriam se vangloriar, dentro de pouco tempo, de ter vencido baseando seu
ataque em uma doutrina aérea, como se ninguém, em nenhum momento da história,
soubesse que se tratava de algo óbvio. Mas isso pertencia ao futuro, e Osman poderia
apenas responder pelo passado e pelo presente. Ele apertou com força a mão do
homem e bradou um grito de encorajamento aos outros tripulantes. Ventava muito
forte, e talvez eles não o tivessem escutado. Ele próprio não ouvira o motorista do jipe
bradando em sua direção. Ele tinha na mão direita o telefone via-satélite.
Osman desceu do Cascavel com a desenvoltura de um cavalariano com mais de duas
décadas de experiência e não aguardou a chegada do outro militar.
- Junco na escuta! - gritou seu nome código, tapando o outro ouvido com a mão
enluvada. Ele escutou o que tinham a dizer do outro lado da linha, e não escondeu o
desgosto de ter ficado ciente da novidade.

O irmão ferido olhava incredulamente para o irmão morto. O que mais chamada a
atenção era o lado direito no rosto, que nunca mais poderia ser chamado assim devido
a um disparo de calibre 12 à queima-roupa. Havia outras perfurações à bala, mas
aquela era a pior. Até mesmo porque o irmão ferido tinha seus próprios buracos à bala
para cuidar. Mauricinho tentava ajudá-lo a estancar o sangue, mas ele não se
incomodava muito em manter o curativo no lugar. E Vila Isabel tinha mais com que se
preocupar. Esperaria mais algumas horas e deixaria aquela casa abandonada com os
100 quilos de cocaína, quando a polícia já tivesse enviado ao IML mais próximo os
cinco corpos dilacerados por tiros de dois calibres diferentes. Dois corpos a mais do
que estavam esperando para a noite anterior, quando da emboscada.
Vila Isabel olhou para o irmão - poderia ser chamado assim agora, já que era apenas
um? - e imaginou o quanto o rapaz vira o inferno de perto antes que ele chegasse com
os dois AR-15.

O piloto deixou o capacete sobre a mesa da cafeteria. O homem que estava sentado
ergueu a cabeça e o encarou, por detrás das olheiras profundas.
- O que raios você está aprontando, Wittmann?
- Bem-vindo a Incirlink, Jones...
- Era para eu estar no Índico. O que vim fazer aqui? - Rolland Emmeret Jones
sentou-se diante do agente da CIA, do outro lado da mesa, o olhar curioso.
- Lembra do Panamá?
- Ninguém conseguiu provar aquilo, companheiro...
- Ok. Aqui temos algo parecido, mas muito mais limpo...
- Você me traz para a Turquia e quer me dizer que o esquema é limpo?! - sussurra
Jones - Parece que você acha que não sei que este lugar...
- Não tem nada a ver com ópio, heroína ou qualquer coisa do gênero. Vai ser tudo
dentro de uma... digamos, normalidade.
- Normalidade? Que papo é esse, Wittmann? Para onde você quer que eu voe?
- Começamos hoje uma série de vôos para testar as defesas dos cabeças-de-pano...
- Provocação...
- Bombardeio eletrônico etc... Você entra, simula uma pane, avança alguns quilômetros
a mais no espaço aéreo deles, pega o pacote e pronto.
- E volto para cá?
- Vôo com escala. Uma parada já em solo amigo, para deixar o pacote. Depois,
Incirlink.
- Tenho uma série de perguntas, Wittmann.
- Respondo a primeira: não são drogas.
- A segunda é quando isso vai acontecer?
- Breve. Amanhã ou depois.
- Quantos estão dentro?
- Pouquíssimos. Basicamente, eu e você...
Jones ficou brincando com o capacete de piloto do helicóptero Apache.
- O que pode dar dinheiro e não ser drogas?
- Gente.

- O coronel aceita um cigarro?


A conversa começava sempre da mesma maneira. O oficial da Amn-Al- Amm parecia
nunca lembrar de que Fahed não fumava. E aquela conversa terminava e começava
várias vezes por dia, como se tentassem desnortear o coronel. Mas Fahed sabia muito
bem que o tratamento que vinha recebendo era VIP. Não chegava nem perto da fama
daquela instituição. Afinal de contas, o que tinham contra ele?
- O senhor já deveria ter se apresentado.
- Sim. Meu filho está muito doente.
- O que ele tem?
- Os médicos ainda não sabem...
- Médicos... O que eles sabem?
- Ia me apresentar hoje, se não tivesse sido inutilmente retido por vocês.
- Temos uma denúncia contra o coronel. - O agente estava indo mais longe desta vez.
- De quê?! - Fahed mostrou-se indignado.
- Não é uma denúncia formal, mas sim uma suspeita que se mostrou pertinente.
- Suspeita de quê?!
- Conspiração para deserção.
- De onde veio essa idéia absurda? Sou um coronel da Guarda Republicana, tenho
mais de 20 anos de serviços prestados ao meu líder Saddam Hussein e à minha pátria!
Já disse que estava indo me apresentar hoje. Vocês estão me afastando mais de
minhas funções do que essa tola e improvável deserção! - mentiu Fahed, tentando ser
o mais convincente possível.
O agente pareceu impassível. Diferente do militar, era treinado para não retaliar
quando provocado. Apenas folheou as anotações.
- O que o senhor faz na Turquia?
- Não fui à Turquia.
- Posso provar que o senhor tem ido com freqüência à Turquia. - era a vez do agente
blefar.
- Não pode, pois não é verdade. - E não era mesmo.
- Ontem você estava na Turquia.
- Ontem eu estava perto da fronteira com aquele país. Apenas perto.
- O que foi fazer lá?
- Vocês estão pensando que eu estou planejando uma fuga pela Turquia? Deserção e
fuga? Por favor.
- O que foi...
- Tenho parentes distantes lá. Meu primo pediu para levar mantimentos para eles. São
parentes distantes e vivem em uma situação difícil.
- Por que o senhor deveria levar os tais mantimentos lá?
- O senhor já dirigiu naquelas montanhas? Eu sou um homem de cavalaria, camarada.
Eu domino veículos blindados, tracionados nas quatro rodas. Meu primo tinha medo de
dirigir lá, de subir as montanhas, de se acidentar no gelo ou nas rochas.
O agente sorriu, um sorriso genuíno: - Esta é a sua especialidade.
- Mais ainda quando tem uma torre e um canhão em cima. - riu Fahed.
Os dois homens tiveram um momento descontraído. Fahed não estava com medo da
Amn-Al-Amm. Temia que não conseguisse cumprir com o cronograma de Wittmann.
Este sim poderia fornecer as informações necessárias para a polícia secreta.
- Estamos à beira de uma guerra, camarada policial. De que serve um militar com tanta
experiência em combate confinado, aqui dentro?
- De que vale um desertor livre para fugir e, talvez, vender segredos de nossa defesa
para os americanos?

Aurélio consultou o relógio pela enésima vez nos últimos minutos. Olhava hora, minuto
e data. Do outro lado do quarto do hotel (ou espelunca?), Luís Carlos dormitava. Isso
deixava o ex-policial furioso.
- Como você consegue dormir?
- Adianta alguma coisa? - respondeu Luís Carlos, sem abrir os olhos. A televisão
mostrava a CNN, com áudio em inglês e legendas incompreensíveis em turco. A
capacidade de Aurélio para entender inglês era sofrível, senão nula. Já Luís Carlos,
concentrava-se para não perder nenhuma palavra. O locutor falava rápido demais,
como se o mundo inteiro fosse native speaker. As notícias tratavam de algo que estava
ocorrendo bem perto dali.
- Você está incomodado com o fato de que eles estão atrasados em mais de 24 horas
para o telefonema, certo?
- Claro!
- E se a guerra estivesse para começar nos próximos dias? Você acharia o quê disso?
Hermes sentia que se não fosse a um dentista, poderia perder dois incisivos. Os chutes
tinham sido fortes, e ele não conseguira se defender efetivamente do primeiro golpe.
Mas os homens que os prenderam não pareciam muito preocupados com o sorriso
dele.
- O que foram fazer nos escombros de Osirak?
- Meu amigo trabalhou lá, vocês devem saber disso, e queria mostrar onde era...
- É um caminho perigoso até Osirak, ainda mais num veículo que não tenha tração nas
quatro rodas. Vocês correram riscos demais à toa, pelo jeito.
- Era só turismo...
- Gostaríamos de saber qual o envolvimento de vocês com o cidadão Muzsharad?
- Quem? - Hermes tentou disfarçar. O agente policial jogou uma fotografia sobre a
mesa. Mostrava o homem com quem eles simulavam manter negócios.
- Não conheço...
- Tem certeza? - desta vez, o policial jogou fotos onde apareciam os três instalando um
equipamento no motor de um Voyage. - Então como estão vocês três juntos nessa
foto?
Hermes olhava a fotografia, cabisbaixo, sem ter o que falar. O agente policial
prosseguiu, num tom de voz quase fraternal.
- Vocês sabem que um estrangeiro comete um crime ao efetuar negócios financeiros
com um cidadão árabe-iraquiano dentro do Iraque sem uma autorização específica
para isso...
Hermes permanecia calado, evitando encarar o agente.
- Por isso, já temos algo contra vocês. Mas sabemos que não vieram aqui somente
para vender aquilo que estavam colocando no motor do carro...
- Era somente isso.
- Então o que foram fazer em Osirak?
Tanto Hermes quanto Luciano haviam decorado muito bem a história que deveriam
contar num caso como aquele. Eles sabiam que não seriam torturados. O momento
não era bom para o Iraque perante a opinião pública mundial e o relacionamento com o
Brasil era bom. Por isso sabiam que o importante era apresentarem a mesma história,
com muita coerência e nenhum deslize. O crime de fazer negócios sem autorização era
muito mais leve que o de roubar relíquias.
Capítulo 7
Tentativas - 10 dias menos 2
O pessoal da Embaixada Brasileira tinha muito trabalho a fazer. Havia centenas, se
não milhares, de brasileiros trabalhando em território iraquiano. O presidente
norte-americano, George Bush, enviara uma mensagem para os países considerados
aliados informando a data do início da operação Tempestade no Deserto. Ciente da
data, o governo brasileiro informou à sua embaixada. A missão dos diplomatas agora
era parecida com a de um cão pastor - tanger todos os seus protegidos para longe do
perigo.
Como se isso não bastasse, documentos precisavam ser incinerados, materiais
precisavam ser destruídos e um telefonema informara que dois brasileiros haviam sido
presos pela Amn-Al-Amm. Quando a notícia chegou ao embaixador, deixou o diplomata
lívido.
- Quem são? São dos nossos?
- Nenhum dos nossos.
- Então, quem são e por que foram presos pela polícia política?
- Vou enviar alguém ainda hoje pela manhã para averigüar isso...
- Mandar alguém, não. Vá você, e vá agora. Essas coisas podem demorar muito e
temos pouco tempo. Vou dar o aviso de retirada amanhã, e tem que valer para todos!

Robusto e bigode nunca tiveram um abacaxi tão grande nas mãos. Eram 100 quilos de
cocaína e muito pouco tempo para vender. Foi bem certo que 25 quilos foram
despachados com rapidez, para apenas um comprador que estava partindo naquela
hora para Brasília, mas eles sabiam que os 75 restantes teriam que ser suados. Havia
fornecedor saindo pelo ladrão no Rio de Janeiro, com preços competitivos. Era preciso
pôr ordem no barraco, mas isso poderia ser feito apenas a médio ou longo prazo. Eles
tinham horas. Vila Isabel precisava repor o dinheiro de Aurélio antes que ele se desse
conta da ausência. Caso isso acontecesse, Mauricinho podia imaginar as
conseqüências. Aurélio já gastara sua cota de compreensão com os três ex-milicos, e
parecia estar se divertindo com a viagem, com o plano maluco de ganhar dinheiro fácil,
mas o bom humor não duraria tempo suficiente depois de ver o rombo nas finanças.
A idéia, então, era vender a droga em lotes grandes, não para a raia miúda, que
consumia um ou dois papelotes por vez. Pena que havia passado o Reveillon há pouco
tempo, época em que o mercado de entorpecentes pega fogo. Mas, apesar de tudo,
ainda era Verão no Sul do país. Dependendo dos contatos, seria possível despachar
aquilo tudo de uma paulada só para o mercado de turismo em Santa Catarina, por
exemplo.
Bigode fez uns três ou quatro telefonemas e, a cada contato, as esperanças
aumentavam.
- Não é a quantidade que me deixa nervoso. É o tempo e a procedência... - dizia
Robusto.
Quando Bigode conseguiu o quarto telefone, foi até o frigobar e pegou uma cerveja.
Precisava daquilo como um peixe precisa de água. Serviria para aliviar e comemorar,
de forma light, já que não chegava perto do material com o qual trabalhava.
- O cara parece sério, o preço é bom e ele cuida até do transporte.
Em outras circunstâncias, Bigode teria desconfiado.

Alguma coisa estava errada. O último contato com o marido ocorrera há dois dias,
quando este retornava de uma viagem breve ao norte. Essas viagens eram sempre
corriqueiras, tranqüilas. Desta vez ele ligara nervoso, falara coisas meio sem sentido
e... sumira.
Ajhina Fahed sabia que era mulher numa cultura não muito boa para as mulheres, e
começava a temer por seu futuro. Para onde andava - nas poucas vezes que saía de
casa - via muitos soldados nas ruas, canhões antiaéreos nos prédios, barricadas. Seu
marido era um soldado, também. Seria óbvio que tivesse ido se juntar aos seus
companheiros de armas. A guerra estava perto. Não precisava aparecer na TV para
que soubesse disso.
Resignada, Ajhina separou as roupas de Kathib em uma sacola. As dela, acondicionou
em outra sacola, onde também colocou comida e bebida. Observou os volumes. Eram
grandes, destoavam das considerações feitas pelo marido para aquele momento.
Deveriam ser discretas, menos carregadas. Ela esvaziou o máximo que pôde cada
uma das sacolas, até que parecessem duas compras costumeiras que uma mulher
faria acompanhada do filho, ou duas mudas de roupa para levar a uma curta visita a
um parente.
Estava pronta? Conferiu o dinheiro que estava há muito guardado em um envelope e
considerou o que viria pela frente. Não tinha muita informação disponível, mas,
decididamente sim. Estava pronta.

A missão era simples e clara como cristal e deveria ser repetida dezenas de vezes ao
longo dos próximos dias em todos os flancos possíveis menos, obviamente as
fronteiras norte e a leste. De três porta-aviões norte-americanos e ingleses começaram
a partir raides formados por caças F-15 e Sea Harrier, os mais indicados para o tipo de
serviço.
Os aviões voavam alto rumo ao Iraque e desciam em rasantes, acendendo todos os
sistemas de radar que tivessem, denunciando suas presenças. Depois, outros vôos
repetiam parte do procedimento, evitando, desta vez, os radares.
Desta forma, conheceriam todas as formas de defesa e tempo de reação dos
iraquianos diante de um ataque aéreo com caças e bombardeiros. Da Turquia e da
Cidade Militar Rei Khalid, partiam ondas de helicópteros Apache e Black Hawks, com o
mesmo objetivo, mas avaliando a reação perante a inevitável incursão de apoio à
cavalaria.
Apesar de toda a fama do aparato militar norte-americano, ninguém sabia bem ao certo
quantos vôos como aquele seriam realizados ao longo dos próximos dias, até a hora H,
dentro de oito dias.
Era exatamente esta desorganização que estaria do lado de Wittmann e Jones.
- Tanque está cheio! - gritou o sargento de apoio, para ser ouvido acima dos roncos de
dezenas de motores que giravam na base aérea de Incirlink.
Rolland Emmeret Jones fez o internacionalmente conhecido sinal do polegar levantado
e iniciou o procedimento de decolagem. Em poucos minutos, ele estava em velocidade
mais que razoável para começar a surfar sobre as colinas iraquianas.
- Noiva 13 para Papai, estou entrando no salão. Repito, entrando no salão.
O sistema de detecção de radares inimigos do Apache era uma obra de arte,
complementado pelo apoio de um Awacs Sentry que decolara meia hora antes. Com
tudo funcionando a “pleno vapor”, era quase impossível uma aeronave ou outro veículo
interpor-se sem ter seu movimento anunciado.
Ao todo, eram 15 Apache participando daquela incursão. No Centro de Informação de
Combate (CIC) de Incirlink, o general Cole Graham procurava observar atentamente
cada um deles. Não era tarefa das mais fáceis, mas ele tinha um grupo para ajudá-lo.
Entre eles, Wittmann, como assessor para análise das imagens aéreas e de satélite,
que não paravam de chegar.
O agente da CIA debruçou-se, de pé, sobre a mesa onde estavam dispostas as
representações das forças iraquianas e da coalizão. Sem dormir direito há dias, ele
estava com profundas olheiras e abatido, com mau hálito e os cabelos desgrenhados.
Não era um visual incomum numa operação como aquela. Diferente dos militares, os
homens da CIA não tinham uma preocupação efetiva com o moral da equipe, ou sobre
como seu aspecto físico pudesse vir a influenciá-lo.
Mas, naquele caso, o aspecto de Wittmann vinha bem a calhar.
- Estamos no Iraque, senhores. E, até agora, é como se eles não soubessem disso... -
disse o agente Ford, que meses atrás, ainda no Verão, recepcionara Wittmann na
base.
- É porque, realmente, eles não sabem disso. - retrucou Graham.
- Temos dois F-15 sobre 150 quilômetros dentro de espaço aéreo hostil...
- E nenhuma hostilidade.
- Acho que vamos ter que mudar de termo, senhores...

Mas, como sempre, arrogância rima muito mal com prudência. Antes mesmo que a
piada feita no CIC tivesse perdido o efeito, uma bateria de mísseis terra-ar guiados por
calor havia percebido a presença de Noiva 7.
A aeronave batizada com este codinome era um Apache tripulado por apenas um
piloto, um californiano chamado Clifford Reuben, de 25 anos. O sistema de mísseis
projetado e produzido pelos russos, funcionava bem, ainda mais quando se encontrava
bem camuflado e próximo de seu alvo.
O primeiro míssil atingiu o rotor principal e o segundo, o cockpit do piloto. Nada teria
sobrado de Reuben. O pontinho que seu Apache representava nas telas de radares de
Incirlink e no Awacs, simplesmente desvaneceu. O seu incidente, nunca chegaria aos
ouvidos de jornalistas da CNN.
A destruição de Noiva 7 não ocorreu em vão. Assim que o fato foi confirmado, o
exercício ganhou contornos de retirada. Aprendera-se muito em uma manhã sobre o
Iraque, e os norte-americanos gostavam de se orgulhar de não cometer os mesmos
erros duas vezes (mesmo quando isso acontecia).
- Avisem para que saiam de lá sem se engajar com fogo inimigo! Repito, sem
engajamento ao fogo inimigo! - ordenou Cole Graham, secamente. As instruções foram
repetidas para cada aeronave. O incidente em seu setor foi informado imediatamente
ao sul e sudoeste, para porta-aviões no golfo, no Mar Mediterrâneo e para a Cidade
Militar Rei Khalid, na Arábia Saudita. Toda a coalizão ficou atenta para o
não-engajamento. Eles não tinham autorização para o combate. Clifford Reuben teria
que esperar para ser vingado por seus colegas.
Mas, enquanto isso, aproveitando-se da confusão, Rolland Emmerett Jones mostrava
porque era considerado louco varrido por seus colegas.
Com todos os sensores ligados e o computador de bordo seguindo o mapa criado
segundo as informações analisadas por Wittmann e equipe, ele avançava sobre o
território iraquiano. Era bem certo que o país estava à beira de uma guerra, mas
também era certo que aquele canto não fora considerado o mais importante nem pela
coalizão e nem por Saddam Hussein. Não naquele primeiro momento. Isso
proporcionava uma incursão relativamente tranqüila - “No Panamá foi pior”, pensou.

O ônibus parou no meio do nada. O motorista até achou estranho, mas, ora bolas,
eram tempos estranhos aqueles, não? Perguntou se a mulher queria ajuda, mas ela
não tinha bagagem. Eram apenas duas sacolas. Uma delas poderia ser carregada pelo
menino, mas o menino parecia fraco demais, talvez doente.
Assim, Ajhina Fahed caminhou em direção a um posto de combustível, tomou água em
uma torneira, ofereceu ao filho e continuou a caminhada. Era aquele caminho,
conforme fora indicado pelo marido. Pouco adiante, encontraria uma cerca que
separava uma criação de ovelhas. Ali teria um grupo de árvores e uma colina. Deveria
subir a colina.
Para deixar as coisas mais fáceis, parou por um instante e amarrou uma das sacolas à
roupa. Bem melhor desse jeito, pois poderia ajudar o filho a se locomover com maior
rapidez. Estavam atrasados.

Se o mapa computadorizado não tivesse falhas, aquela era uma região limpa. Jones
sorriu dentro do capacete e imaginou que se recebesse a ordem, poderia chegar em
Bagdá para lançar uma nuke. Mas não era exatamente assim que as coisas
funcionavam, certo?
Segurando delicadamente o manche, fez uma manobra que acompanhou o relevo das
colinas, voando rente ao chão. Estava frio e ventava, não tanto quanto temeria. Nada
que prejudicasse suas evoluções. Por isso chegou à crista da colina com suavidade.
Tamanha suavidade que nem assustou a mulher e o menino que o aguardavam lá.

Quando o detetive Renato Pontes viu a quantidade de cocaína, pensou que na verdade
seriam peixes pequenos. Cinco minutos de conversa, no entanto, fizeram-no crer que
algo mais caíra em sua rede.
- Aurélio. Ele comanda a entrada de droga e armas em boa parte do Rio de Janeiro.
Era dos nossos.
- Essa coca, ela pode nos levar a ele?
- Pode nos levar aos tenentes dele, pelo menos ao principal tenente dele, Mauricinho
Vila Isabel.
- Quem é esse cara?
- Está na lista dos 10 mais? - perguntou o secretário de Segurança do Rio de Janeiro,
entrando na sala.
- Digamos que sim, secretário. Pontes acha que vamos pegar um peixe grande.
O secretário gostava de participar das ações de gabinete. Costumava dizer que era ali
que a Justiça começava a ser aplicada.
- Nós temos as condições legais para efetuar todas as prisões necessárias e o que
mais for preciso?
Foi a vez do promotor explicar em minúcias toda a operação. O secretário, também um
magistrado, ouviu tudo com atenção.
- Vamos em frente, então. - disse o secretário, satisfeito com os pontos positivos que
aquelas prisões poderiam angariar para o governo do qual fazia parte.

Bigode e Robusto receberam voz de prisão uma hora antes de Mauricinho Vila Isabel
ter sido identificado na casa de Mara Maia. Os dois foram levados presos, apesar do
homem ter afirmado que ela não tinha nada a ver com aquilo tudo. Mais tarde, o
promotor diria que o fato de uma mulher ter sido encontrada na cama com um
criminoso não fazia dela uma criminosa ou cúmplice em algum crime.
O irmão sobrevivente foi preso 20 minutos depois, no galpão onde Vila Isabel o havia
deixado. Apesar da Blazer da polícia ter cantado os pneus em todas as curvas que
encontrara pelo caminho, o hospital chegara tarde demais para o criminoso.

O oficial da embaixada olhou para Luciano e Hermes com atenção, apenas por um
instante. Depois, tratou de evitar encará-los perante o oficial da Amn-Al-Amm e o
diplomata responsável.
- Estamos cientes das acusações do governo iraquiano contra estes dois cidadãos
brasileiros, mas o senhor há de convir que existem mais acusações que provas, certo?
- Há provas claras e outras provas irrefutáveis sendo levantadas, colega diplomata.
Uma delas reside no fato dos dois senhores em questão não terem em mãos as
corretas autorizações de entrada em território iraquiano. Ou seja: o que eles vieram
fazer aqui? Estavam documentados para tal?
- O governo brasileiro não fará objeção alguma em enviar para o presidente Saddam
Hussein uma carta de pedido de desculpas por este incidente...
- A carta será bem-vinda. Acontece que o Iraque respeita muito a soberania brasileira e
fica muito feliz com o respeito recíproco de sua embaixada, em nome do governo
brasileiro.
“Isso vai ser complicado...”, pensou Luciano.

Vila Isabel tinha certeza de que se o seu olho direito estivesse funcionando, ele veria
as coisas de modo diferente. Ele se lembrava de quando era pequeno, quando olhava
para um determinado objeto e percebia como ele se movia sozinho sempre que ele
abria ou fechava os olhos, um de cada vez. Levara tempo para perceber que era uma
ilusão de ótica resultante da distância que existe entre um olho e o outro. Agora que
somente um deles estava aberto, ele tinha a certeza de que não via o mundo da forma
como ele realmente era. Faltava a outra visão para dar o verdadeiro aspecto de
tridimensionalidade.
Ele se pegou pensando nisso para tentar esquecer que as costelas do lado direito
doíam a cada vez que respirava.
- Você está melhor? - perguntou um dos policiais. Mauricinho preferiu não responder
nada. Um outro homem entrou na sala. Vestia terno e gravata. Fez uma cara de
reprovação.
- Meu nome é Pontes. Eu sei quem você é e para quem trabalha. A mulher que foi
presa com você já foi liberada - o que era aquilo no rosto deformado de Vila Isabel?
Alívio? - mas antes ela contou uma história que queremos que você confirme.
- Eu não sei de nada...
- O que Aurélio foi fazer na Turquia? O que eles vão trazer de lá? Heroína?
- Eu não sei...
- Nós encontramos um rastro bem feio atrás de você, cara. Temos corpos
carbonizados, destroçados à bala, tráfico de drogas e sei lá mais o que. Todo mundo
está abrindo o bico. Sei que você tentou um golpe para tapar um buraco... Aurélio está
fora, e quando o gato sai... Ninguém aqui é burro. Você já era um homem morto a partir
do momento em que seus vendedores passaram a droga para meus homens. Quer
uma chance de sair vivo daqui? Abre o bico. De outra forma, vamos jogar você num
buraco cheio de ácido e cal e o que mais tiver. Ninguém vai dar por sua falta, e essas
ordens, pode ter certeza que vêm lá de cima. Vou te dar algumas horas para pensar.
Capítulo 8
Perguntas - 10 dias menos 3
O Audi estacionou na beira da estrada que saía de Stambul em direção ao sudeste do
país. Conforme combinado pelo telefone há 3 dias, um Land Rover estava parado no
acostamento, exatamente no local onde haviam dito que estaria estacionado. Para
Raymond Van der Bilt, aquilo era um sinal de que estava tudo bem.
- Vamos descer, senhor? - perguntou o mercenário, que estava ganhando uma
pequena fortuna para garantir a sua segurança.
- Sim. Eu a conheço.
Van der Bilt esperou um dos mercenários abrir a porta do A8 e desceu, levantando a
gola do casaco. Estava frio. Do Land, desceu Farina, com sua beleza selvagem que
Der Bilt apreciaria muito não fosse sua tendência de preferir corpos mais másculos.
- Senhor Van der Bilt... - disse Farina, aproximando-se para apertar a mão do homem.
- Você só me chama quando a carga é realmente valiosa ou grande...
- Esta carga é valiosa, grande e estamos num momento bem peculiar. É bom ter um
americano rico e poderoso por perto, caso alguma porta seja fechada por seus
rapazes.
- Eles estão por todo canto, não?
- Tem uma guerra quase estourando. Para onde olho, vejo seus militares. Não quero
confusão com vocês.
- A carga já chegou?
- Está chegando. Vamos?

Saddam tinha mais com o que se preocupar, pensava Fahed. Era isso que a lógica o
dizia, pois os interrogatórios não pareciam querer chegar a lugar algum.
- Eu já disse tudo que tinha a dizer. Por que vocês me mantêm preso aqui? Os
americanos...
- Os americanos já definiram quando vão nos atacar. Deram o ultimato. Saddam não
vai voltar atrás...
- Nós não vamos voltar atrás.
- Nós não, coronel. Meu trabalho não é invadir países. Isso é seu trabalho... Você
esteve lá?
- Estive. Somente nos primeiros dias. Voltei para treinar mais pessoal.
- Seu trabalho é importante, coronel. É decisivo. Treina nossos homens para enfrentar
o inimigo. Mas como pode fazer isso se você próprio não tem mais a convicção de que
o que está fazendo é certo?
- Sou coronel da Guarda Republicana. Lutei a última guerra enquanto você estava
fazendo que mesmo? Tentando capturar desertores? Não deve ter faltado missão para
vocês. Foi uma guerra horrível. Um front horrível. Você deve ter visto em algum
documentário ocidental. A nossa imprensa não pôde mostrar como foi de verdade.
- Não. Não vi isso que você disse...
- Deve ter conhecido alguém que esteve lá... Deve ter algum parente que lutou lá....
Nós, soldados, somos quase 90% nesse país...
- Eu prendi gente que esteve lá e tentou fugir...
- Mas você não acreditou neles, acreditou? Acreditou o quanto foi horrível? Acreditou
que os dois lados usaram armas químicas, armas biológicas? Você já viu um amigo
seu de infância morrer sob os efeitos de gás neural? Esqueça o amigo de infância. Já
viu uma criança desconhecida morrer assim?
- Não...
- Eu explico melhor. Gás neural é a mesma coisa que inseticida para matar baratas. Só
que mais forte. Você já viu uma barata morrer depois de um jato de inseticida, não viu?
O agente da Amn-Al-Amm ficou em silêncio.
- Só mais uma pergunta... - falou Fahed - Quem está interrogando quem aqui?

O secretário de Segurança do Rio de Janeiro, no final das contas, preferiu ficar de fora.
A seu ver, o chumbo estava ficando grosso demais. Encontraram mortos em profusão,
envolvimento com militares e tráfico internacional de heroína. Isso na superfície.
Quando tudo fosse esclarecido, o que mais haveria no caldo? Para o secretário, era
interessante ficar à margem, enquanto não estivesse claro quem realmente estava
envolvido com o quê ali.
Por isso, não custou nada jogar sobre as costas de um órgão moribundo como o SNI a
responsabilidade de requerer a colaboração da Interpol e da polícia turca naquela
investigação. Até mesmo por que o tempo era exíguo. Quem tinha TV em casa sabia
que aquele canto do mundo pegaria fogo dentro em breve.
A vantagem era que as coisas dentro do SNI corriam bem rápidas. As pessoas que
trabalhavam lá, por mais equivocado que fosse o seu direcionamento, agiam por uma
espécie de vocação. E ninguém ali parecia disposto a esconder algum podre que
pudesse depor contra a polícia do Rio de Janeiro - Aurélio era ex-policial - ou até
mesmo contra o Exército. Se existiam militares envolvidos em algum esquema ilícito,
eles precisavam ser punidos. E nem sempre uma punição engendrada dentro dos
escritórios do SNI representavam punições públicas. Daí a tranqüilidade do secretário
do RJ. A coisa toda estava em discretas mãos.

Capítulo 9
Conexões - 10 dias menos 4
A polícia turca não estava acostumada a colaborar com a polícia brasileira. Ainda mais
quando o pedido vinha da polícia política turca, encaminhando uma reivindicação do
que parecia ser o serviço secreto brasileiro. Poucos entenderam o que realmente
estava acontecendo, mas algumas coisas batiam. Ainda mais depois que fotos
começaram a chegar por canais eletrônicos que, dentro de alguns anos, seriam
conhecidos como internet.
A Polícia Nacional da Turquia estava levantando uma investigação a pedido da
Unesco. Mais especificamente baseada na Convenção de Significados e Proibições e
Prevenção de Importações Ilícitas, Exportação ou Transferência de Propriedade
Cultural, órgão que controla o fluxo ilícito de artigos de valor cultural em todo o mundo.
Do meio dessa investigação surgiram fotos de Farina, Aurélio, Wittmann e Van der
Bilt. Todas recentes, ligadas com datas, horários e mapas. Não foi difícil para os turcos
identificarem Aurélio e Van der Bilt, cada um a pedido do Brasil e da Unesco,
respectivamente. Os turcos não se impressionaram. Seu território sempre fora utilizado
por mercadores e ladrões para tráfico de produtos roubados ou cultivados ilicitamente
no outro lado do planeta. Um escrivão começou a digitar um relatório para cada
requisitante internacional e pretendia enviá-los por alguma mídia eletrônica antes do
final do dia.

As portas estavam trancadas por fora. Por mais que Ajina tenha gritado, ninguém
aparecera para ajudar. Há dois dias que um piloto norte-americano os deixara ali, após
um breve vôo em um helicóptero de combate. O menino até ficara excitado dentro da
aeronave, que voava baixo, contornando o relevo acidentado. Um momento de
felicidade antes daquela desolação. Ajhina não esperava que aquele momento fosse
passar com tranqüilidade. Seria perigoso, ela sabia, mas entre saber, aceitar e
vivenciar aquilo, existia muita diferença. E ela estava sozinha agora, procurando um
meio de sair daquele casebre.
Havia comida em uma despensa, algumas latas de ração que ela imaginou ser comida
de campanha norte-americana. Era boa. Junto, encontrava-se um fogareiro. Além do
mais, o frio que fazia lá fora não penetrava tão facilmente pelas paredes.
Mas isso nã era tão alentador assim. Ela precisava saber de Fahed. Onde estava seu
marido?

Capítulo 10
Nervosismo - 10 dias menos 5
As vizinhanças do Hotel Meliá, como era conhecido o setor de estrangeiros em Bagdá,
estavam em polvorosas. As embaixadas acionavam seus cidadãos para a retirada
imediata do país. O clima já era de guerra. As baterias antiaéreas instaladas sobre os
edifícios estavam o tempo todo apontando seus canhões para vários pontos do céu,
enquanto no solo, soldados chegavam a cada momento com novos lotes de munição.
No setor brasileiro, funcionários da Petrobras, Mendes Júnior, Volkswagen e empresas
ligadas à indústria bélica, eram levados em correria para o aeroporto. Vôos fretados
eram lotados um a um, com pessoas quase na totalidade portando apenas bagagens
de mão. Não havia tempo nem oportunidade para que bens pessoais pudessem ser
embalados e transportados. O país estava cercado por uma máquina de guerra
espetacular, e dedos estavam coçando o gatilho.
No prédio do Ministério do Exército, o emissário da Embaixada Brasileira fazia o que
ele considerava ser inútil, mas que precisaria ser tentado até o último instante.
- Preciso que vocês escrevam os telefones ou outro qualquer meio de contato com
seus familiares no Brasil. Vamos tentar amolecê-los com um apelo sentimental. Eles
respeitam muito a estrutura familiar.
- Você tem que conseguir tirar a gente daqui... - pediu Hermes, já com o rosto menos
inchado.
- Estamos fazendo tudo que é possível...
- Quanto tempo temos aqui? Quando eles vão bombardear? - perguntou Luciano.
- Bush avisou que será dentro de cinco dias.
- Vocês estão tirando todos os brasileiros daqui?
- Todos. Temos muitos dos nossos aqui. Não está sendo fácil...
- Este prédio é do Exército, não é? Isso aqui é um alvo!
O diplomata não tinha muito a fazer que não balançar a cabeça afirmativamente.
- Se não conseguirmos a liberação imediata, vamos tentar a transferência de vocês
para alguma cadeia mais segura.
- Para o norte? - perguntou Luciano.
- Não sei. Sinto muito... terminaram? - perguntou o diplomata, apontando para o papel.

Mara havia acabado de retornar do hospital, quando ouviu o telefone tocar. Voltara a
tocar graças ao dinheiro de Vila Isabel. Ela correu até o aparelho e ergueu o fone.
- Mara Maia? Esposa de Luciano Maia? - disse a voz do outro lado da linha. Ela
aquiesceu e a voz prosseguiu - O que vou explicar para a senhora é extremamente
sigiloso.
Mara nunca tinha falado com um funcionário do Itamaraty.

Fernando leu o documento e o balançou na direção do burocrata que entregou as


folhas de papel timbrado.
- O que é isso?
- Presidente, isso é um problema que o senhor vai ter que decidir a forma como vamos
encará-lo.
- Quais são opções?
- Duas: vamos entrar em contato direto, presidente a presidente, o senhor com Saddam
Hussein...
- De forma alguma! Em outro momento até seria possível. Se eu pedir um favor a ele
agora, como eu ia ficar se ele pedisse algo em troca?
O burocrata do SNI teve que concordar com o jovem presidente da república.
- A segunda forma de encarar o problema é deixar as coisas como estão, sob a batuta
do pessoal da embaixada. A questão é que todos estão vindo embora.
- Quanto tempo temos?
- Não mais que cinco dias.
Fernando deu um soco no tampo da mesa, usando o punho que o elegera.
- O que esses caras foram fazer lá?
- Não sabemos ao certo, senhor, mas andei cruzando umas informações com uma
outra investigação e acredito que o melhor a fazer seria...
- Que outra investigação?
- Uma investigação criminal que o senhor não precisaria ter conhecimento.
O presidente fitou os olhos do burocrata. Aquele pessoal do SNI sabia guardar
segredos e fazer deles mais do que realmente poderiam ser, não sabiam? Fernando
Collor de Mello pensou que tinha ali um problema sério. Brasileiros presos no exterior,
mais precisamente num país prestes a ser detonado por uma coalizão de escala
mundial. Os homens poderiam ser inocentes? Segundo o SNI, parecia haver um bom
motivo para eles estarem trancafiados lá. Como ser presidenciável num momento como
aqueles? Como cogitar fazer acordo com um pária - de acordo com os EUA - para
liberar dois homens que ele não sabia se mereciam ou não ter a liberdade?
Collor poderia perguntar ao homem do SNI sobre o que era a outra investigação e,
assim, sentir-se encalacrar ainda mais naquilo que parecia ser um imbróglio. Ou
simplesmente perguntar o que ele ia dizendo antes, quando falara “acho que o melhor
a fazer seria...”
- ...esquecer esse assunto.
O documento foi pego sobre a mesa. Collor empunhou-o com as duas mãos uma ao
lado da outra, no meio das folhas.
- Posso?
- Tenho um triturador de papel muito eficiente em minha sala, presidente.
- Eu sigo você até lá...

Apesar do SNI ter cruzado os dados da prisão de Luciano e Hermes em Bagdá com a
investigação sobre Aurélio na Turquia, essa informação não chegou até o Itamaraty,
que continuou com um pessoal destacado para a missão de trazer os dois brasileiros
de volta para casa. Para eles, era uma questão humanitária, e os iraquianos tinham
apresentado acusações vagas demais para convencer um diplomata.
O departamento tinha um orçamento para operações como aquelas, e era um dinheiro
muito pouco utilizado. Geralmente envolvia gente que era presa na Europa com
envolvimento em drogas. Desta vez não era o caso, e isso empolgava o pessoal do
Itamaraty.
- Façam, mas sem estardalhaço. - dizia a ordem superior, oriunda do Palácio do
Planalto. Seria assim, então, mas os esforços não foram poupados.
Uma produtora de vídeo no Rio de Janeiro teve seu equipamento alugado por um
burocrata que tinha acabado de chegar de Brasília num avião da Força Aérea
Brasileira. O pessoal da produtora não sabia desses detalhes, mas sabiam que
estavam sendo pagos pelo governo. O próprio burocrata pegou o equipamento, foi
levado num carro militar para longe dali e voltou duas horas depois, com uma fita de
vídeo gravada.
- Preciso que vocês façam duas cópias dessa fita em sistema de vídeo Pal-Secam.
A fita precisaria ser vista em qualquer aparelho de vídeo no Oriente Médio, que
costumava utilizar o mesmo sistema europeu. O técnico da ilha de edição da produtora
inseriu a fita no deck e apertou o PLAY, automaticamente. O burocrata inclinou-se
rapidamente sobre a aparelhagem e apertou o STOP.
- Mas eu preciso ver se a gravação está boa...
- Está boa. Preciso apenas das cópias. E você não precisa olhar nada para fazer isso,
certo?

Assim que as fitas ficaram prontas, o burocrata entrou novamente na viatura militar e
partiu para o Aeroporto Santos Dumont, na mesma cidade. Um avião da FAB acabara
de pousar, vindo do Oriente Médio. Enquanto os passageiros desciam aliviados em
solo brasileiro, o burocrata embarcava com uma pequena bagagem de mão. Ele
entrou, sem cerimônia na cabine e apresentou suas credenciais.
- Este avião precisa ser reabastecido agora e voltar para o Iraque.
- Não é bem assim que fuciona... - dizia o piloto, quando o burocrata mostrou de novo
as credenciais.
- Isso aqui significa que os procedimentos de vôo acabam de mudar. Vamos abastecer
e alternar o comando do avião até chegar lá.
- Senhor, estamos há mais de 10 horas pilotando...
- Ok! Vocês vão dormir as próximas cinco horas. Eu piloto primeiro.
Capítulo 11
Mãos atadas - 10 dias menos 6
Luciano acordou suando. A cela onde se encontrava há seis dias não era aquecida e o
Inverno do Hemisfério Norte estava em seu auge. Ele olhou para a porta metálica e
calculou que ela não era tão forte como imaginou que seria uma porta de cadeia de um
local de princípios rígidos como o Iraque. “E se fosse possível fugir daqui?”, deixou-se
imaginar, sem censuras. Eles já haviam tentado escapar antes, e descobriram como
era complicado. A cidade - e o país inteiro - deveria estar repleta de soldados.
Soldados estão sempre armados, e a proximidade do bombardeio da coalizão não
melhorava em nada o panorama.
- Eu preciso fazer um telefonema! - gritou, em inglês. Todo dia era a mesma coisa. Ele
acordava, pensava muito na situação e lembrava que precisava dizer à Mara onde
estava. Precisava saber como estava Cíntia, o real motivo dele estar ali.
Mas ninguém respondia, apesar dele pronunciar em inglês e arranhar um farsi que
alguém deveria entender.
- Desista... - respondia Hermes do outro lado da parede, lembrando-lhe que ele próprio
havia aceitado essa alternativa de seu próprio plano: a morte.
Os três possuíam seguros de vida e suas famílias seriam beneficiadas com suas
mortes. Mas ele não esperava que isso acontecesse ali. Se várias bombas soterrassem
o local, talvez ele nunca viesse a ser considerado morto, mas apenas desaparecido.
Um desaparecimento não pagaria o seguro para Mara. Não poderia ser assim. Ele
precisava morrer em outro lugar, onde seu corpo fosse encontrado junto com seu
passaporte. Ele precisava morrer na Turquia depois de tentar matar Aurélio, para que
ele tivesse certeza de que o traficante não seria capaz de prejudicar sua família.
- Temos que sair daqui, Hermes! Temos que sair daqui!
- Esquece. Isso aqui vai ser bombardeado... O país inteiro. Você acha que vamos
conseguir sair a tempo?!
- “Alá é grande e misericordioso”... - disse em farsi uma terceira voz, que até então não
fora ouvida ou pronunciada.

Tão desesperado quanto os homens presos em Bagdá estava Wittmann. Ele se sentia
de mãos atadas, já encalacrado numa trama pérfida. E o que tinha nas mãos? Uma
mulher e um menino iraquianos escondidos (trancafiados) numa casa turca. Nada de
dinheiro, porque o dinheiro, este dependia dele encontrar um coronel iraquiano e sua
remessa de relíquias. Mas o homem não dava sinal de vida. Isso significaria que o
homem teria preferido abandonar mulher e filho para ficar com as relíquias? Wittmann
negava-se a considerar duas coisas: um, que o iraquiano pudesse ser tão vil; dois, que
poderia chamar de “tesouro” o tal carregamento de relíquias.
Desta forma, o agente da CIA infiltrou-se novamente na Central de Informações de
Combate de Incirlink para coletar os dados que considerasse necessários para terminar
aquilo que começara.
Longe de ser considerado burro, Wittmann justificou sua presença no CIC baseado na
preocupação com as equipes de terra já infiltradas no Iraque. Eram grupos de Delta
Force e SAS (britânicos) equipados com sinalizadores laser, disfarçados como locais,
escondidos em Bagdá, por exemplo. Não eram poucos, e a situação de cada um deles
era tão frágil quanto poderia ser a situação de um espião dentro de um país hostil à
beira da guerra.
Com esse argumento, Wittmann obteve uma autorização e um tapinha nas costas de
Cole Graham - “Bom rapaz, Wittmann” - para utilizar um satélite da ASN construído
para captar ligações telefônicas. Ele já o havia utilizado uma vez para achar Fahed, e a
função seria a mesma agora. A voz do membro da Guarda Republicana de Saddam
Hussein já estava catalogada nos computadores da agência, mas ele não tinha certeza
de que desta vez isso adiantaria alguma coisa.

Orar havia sido muito bom. Sempre era muito bom, mas a vida ligada às armas às
vezes o afastava dessa irrefutável verdade. Ele recolheu seus apetrechos, enrolou-os e
deixou tudo sob o catre onde mal conseguia dormir à noite e deixou a barraca. O
deserto soprava um vento fustigante, mas ele decidira há tempos não dar muita
atenção às intempéries. A vida de um soldado já era difícil demais para ter ainda que
se incomodar com areia entrando nos olhos e no nariz. Caminhando com desenvoltura,
levou cinco minutos para atravessar ao longo de uma coluna de blindados até chegar
ao posto de comunicação mais próximo. Ali encontrou um tenente sonolento, que
despertou assim que o viu.
- Coronel! - e prestou uma continência rígida. Osman respondeu o cumprimento,
dispensável para uma situação como aquela, mas não repreendeu o jovem oficial. O
brasão da Guarda Republicana sempre impressionava.
- Preciso fazer um contato muito particular, tenente. Deixe-me sozinho.
O pedido era estranho. Por mais que o homem fosse um coronel tão importante, a
responsabilidade pelo rádio era do tenente, e ele sabia que se fosse cobrado por um
oficial superior, poderia ser punido por ter deixado o equipamento sozinho, mesmo que
para um coronel da Guarda. Seria, não seria? E ele ainda corria o risco de que a ordem
do próprio coronel fosse uma espécie de teste de sua responsabilidade. Mas quem
seria tão idiota de se preocupar com testes tão pueris naquela hora. Osman percebeu a
dúvida do jovem oficial.
- Por favor, tenente, saia daqui! Não tem nenhum problema. Fique ali fora.
O tenente decidiu não resistir a tanta insistência, deixando a barraca, mas postando-se
logo do lado de fora, bem próximo. Osman deu uma olhada para fora e calculou que,
com o assobio do vento, teria sua privacidade garantida.

A CIA e a ASN tinham pouco pessoal especializado na língua árabe, e o árabe do


Iraque era um dos mais antiquados do mundo muçulmano. Isso era um problema que
os Estados Unidos tentavam contornar durante os preparativos daquela guerra. Todos
os poliglotas que puderam ser convocados - recebendo gordas quantias em dinheiro -
estavam fazendo seu trabalho a pleno vapor, produzindo comunicação a torto e a
direito. Na maioria das vezes não tinham a menor noção do que traduziam, pois não
tinham tempo para tentar destrinchar ou unir os pedaços de informação. Isso ficava por
conta dos analistas das agências que recebiam as traduções.
O material que ia para Incirlink não era tratado de forma diferente. Wittmann recebia as
traduções e tentava fazer o melhor com aquilo que tinha. E tinha muito pouco. As
ligações que entravam e saíam dos departamentos de polícia e do Exército Iraquiano
em Bagdá não ofereciam nenhuma informação sobre o seu “amigo”. Pelo menos não
as que possuía até então.
Wittmann pegou a maior xícara que havia na cozinha e a encheu de café. Ninguém ia
pregar os olhos nos próximos ciclos de 24 horas. Muito menos ele. Ao sorver o primeiro
gole, viu uma palavra conhecida na tela do computador. Era um nome.
Ele procurou as informações sobre aquela ligação. Era de rádio e vinha do Kuwait para
Bagdá. Excitado, ele conferiu mapas, fotos, coordenadas. Era uma ligação sobre
Fahed. Um homem pedia sua liberação. Parecia que estava retirando uma acusação.
Pelo menos era isso que os tradutores estavam dizendo.

“- Repito. Minhas suspeitas foram infundadas. Não há nada que desabone o coronel
Ibrahim Al Fahed. - explicava o coronel Osman para um agente da Amn-Al-Amm que
parecia não entender bem o que estava acontecendo.
- Eu vou repassar essa informação para meu superior...
- Faça isso, soldado! Faça isso e diga para seu superior entrar em contato comigo o
mais rápido que puder! Temos uma guerra para lutar e esse homem que vocês
mantêm preso fará muita diferença se estiver conosco, aqui no front.”

Assim que o avião tocou na pista do aeroporto em Bagdá, o burocrata do SNI já estava
de pé, ele mesmo com a mão na alavanca que abria a porta. Lá fora, o diplomata que
vinha cuidando das tratativas de liberação de Luciano e Hermes segurava um cartazete
com seu nome. Ele não sabia como era o homem que traria as fitas. Mas o artifício
seria completamente desnecessário.
A escada tocou na fuselagem do avião, a porta se abriu e um homem de terno desceu
correndo com duas fitas de vídeo nas mãos. O diplomata foi em seu encontro.
- Eu sou... - ia se apresentando o diplomata.
- Aqui estão as fitas - disse o homem do SNI, bruscamente dispensando o protocolo.
Eles sabiam muito bem quem eram cada um deles - Elas foram gravadas ontem
mesmo, de manhã. Compense o fuso horário. É tudo real, principalmente o aspecto
emocional. Faça com que as autoridades iraquianas assistam às fitas com você junto, e
não as mostre a ninguém, e não aproxime esse material de nenhum campo magnético.
Cada uma tem as mesmas gravações, só que em sistemas diferentes. Entendeu?
Sistemas de gravações de vídeo diferentes.
- Sim, entendo, aqui funciona o...
- Ótimo! Onde está a próxima leva dos nossos?
- É aquela turma...
- Ok. Vá em frente com as fitas que eu cuido desse pessoal. Só mais uma coisa...
- O que?
- Esta é a sua, a nossa última cartada para liberar esses dois. Se não der certo, pegue
o avião de volta e esqueça isso tudo.
O diplomata não conseguiu responder imediatamente. Quando tentou balbuciar algo, o
homem do SNI foi brusco mais uma vez.
- Esquecer tudo. Isso é ordem de cima. Muito de cima, certo? Não negocie. Apenas
mostre a fita e apele pelo lado emocional, em nome das famílias. Se não der certo, não
negocie, esqueça e entre no avião.
Não poderia ser mais claro.

Capítulo 12
Confissão - 10 dias menos 7
Van der Bilt tomou mais uma xícara de café e lamentou a perda de tempo. Por mais
que Farina tivesse construído uma casa confortável com dinheiro que ele pagava pelas
relíquias, aquelas acomodações não chegavam aos pés do que ele considerava
insatisfatório. Era bem certo que ele não estava perdendo tanto assim durante a
espera, mas aquilo não poderia ser comparado a turismo.
- Nenhum contato ainda hoje?
- Ainda nada... As coisas não estão nada boas por lá. Temos que esperar...
- Você não acha que exatamente pelo fato de que as coisas não estão nada boas por
lá que deveríamos abortar essa remessa?
- Não. O carregamento já foi feito há tempos. Talvez já esteja na Turquia. Estamos
esperando apenas o homem ou um contato.
- Quem é o homem? O que ele é? Acho que está na hora de eu saber...
- Ele é um militar. Ele disse que agiria na hora certa. Deve ser no momento de maior
confusão...
- Após o ataque? Temos mais três dias.
- Será que vai...
- Você não sabe como são esses caubóis?
Farina sorriu. Ela via os americanos com uma certa reserva. Eles nunca haviam
atrapalhado seus negócios, mas não deixavam seu país.
- Temos, então, mais três dias... - lamentou Van der Bilt.

- Eu exijo a presença de um diplomata.


- Sinto muito, senhor, mas nosso corpo diplomático está completamente envolvido com
questões muito sérias...
- Dois brasileiros presos aqui com uma guerra prestes a explodir não é assunto sério o
suficiente para o senhor?
- Uma guerra injusta como essa que se avizinha ao nosso país é o suficiente sério para
cada um dos cidadãos deste país.
O diplomata brasileiro sabia que de pouco adiantaria um agente da Amn-Al-Amm ver
as fitas. Eles acreditavam naquela prisão, tinham motivos - dos quais ele não tinha
ciência - para isso.
- Por favor... deixe as tais fitas conosco que elas terão sua função realizada...
Faltava muito pouco tempo para o início das hostilidades aprovadas pelo Conselho de
Segurança da ONU e propalada pelos EUA. Ele não poderia ficar mais no país. O
último avião brasileiro partiria naquela tarde, e ele sabia que se não estivesse a bordo,
estaria cometendo uma grande idiotice.
O que aqueles dois homens haviam feito contra o governo iraquiano para que sua
polícia secreta fosse tão irredutível?
Totalmente contrariado, o diplomata entregou as duas fitas ao policial e se levantou.
Não tinha vontade de sair dali de mãos abanando, mas não houvera progresso algum
desde o início das negociações - se é que ocorrera algo parecido ali.
- Pode me fazer um favor?
- Dentro do possível... - respondeu o policial. O favor era bastante possível.
- Diga que eu desejei boa sorte a eles... Por favor...
- Direi a eles.

Antes que o diplomata pusesse os pés fora do prédio do Ministério do Exército rumo ao
aeroporto de Bagdá, Luciano foi retirado de sua cela.
- Onde vocês...
- Já vai saber.
No corredor, Luciano encontrou-se com Hermes, sendo escoltado por mais três
policiais. Juntos, foram levados para uma sala grande, a maior que haviam visto ali até
então. Lá estava Fahed.
- Eu quero entender o que está acontecendo aqui... - disse Haaji Sayid, muito calmo. -
Acho que todos vocês se conhecem aqui...
Hermes levantou a mão: - Eu não sei quem é ele... - e apontou para Fahed.
- Mas já o ouviu da sua cela... Senhor Maia já conhece o coronel Ibrahim Al Fahed,
certo?
- Sim...
- Ele é Fahed... - compreendeu Hermes.
- Sim. O coronel Fahed foi acusado de deserção, mas ainda não cometeu este crime.
Vocês foram acusados de realizar negócios não autorizados em solo iraquiano, mas
não chegaram a efetuar esses negócios. O denunciante de Fahed retirou a denúncia,
enaltecendo a importância do coronel para o bom funcionamento das nossas Forças
Armadas na décima nona província... Eu não sei bem o que fazer. Isso porque eu
tenho provas de que Fahed foi visto várias vezes em Osirak, sempre utilizando um
caminhão... Vocês foram vistos em Osirak... Vocês dois trabalharam lá... Fahed foi
visto cruzando a fronteira com a Turquia utilizando o mesmo caminhão visto em
Osirak... Há algo de estranho, não há?
Ninguém estava disposto a responder. Isso deixava Haaji Sayid à vontade para
continuar.
- Eu poderia montar uma teoria, mas prefiro lidar com fatos...
E Sayid acena para um policial, que sai da sala e retorna alguns minutos - silenciosos
minutos - depois. Ele fala algo ao pé do ouvido de Sayid.
- Como esperado, confirmamos que não há ninguém na casa de Ibrahim Al Fahed há
dois dias... Sabe onde estão sua mulher e seu filho doente, coronel? O senhor foi
abandonado?
O silêncio perdurava, e isso começava a incomodar Sayid. Nunca fora uma boa idéia
colocar prisioneiros numa mesma sala para um interrogatório coletivo, mas nem ele
mesmo já estava dando muito importância para aquilo tudo, principalmente depois que
Osman retirara a denúncia. Todo o governo estava preocupado demais com a guerra,
não com aqueles três homens. Eles não eram espiões, não estavam ali para enviar
informações para fora do país. Toda a investigação sugeria apenas que estariam
envolvidos com um golpe, um roubo, e o fato de um dos brasileiros ter trabalhado no
mesmo local que o coronel Fahed não parecia ser muito mais que uma grande
coincidência.
- Eu sei que vocês têm culpa. - disse Sayid, inclinando-se para a frente. - Mas a
Amn-Al-Amm não é formada por animais. Eu vou dizer o que vou fazer... Você, coronel,
será enviado ainda hoje para o Kuwait para se juntar aos seus homens e...
“Isso não pode acontecer!”, pensou Fahed, cerrando os punhos. Ele não poderia ser
levado por soldados armados para o lado oposto onde deveria estar já naquela hora.
Ajhina e o Kathib já haviam ido embora, deveriam estar desesperados com medo. Não.
Ele não poderia ser levado para lutar mais uma guerra.
- ...Quanto a vocês... - dizia Sayid, quando Fahed levantou-se.
- Nós não somos covardes! Nós somos culpados!
- O quê?! - gritou Luciano, sem entender direito o que Fahed dissera, em farsi.
- O que ele disse? - perguntou Hermes, movendo-se bruscamente. Os policiais tiveram
que conter os três homens.
- Culpados de quê? - perguntou Sayid, desafiador.
- Conspiração, roubo, contrabando e deserção. - disse Fahed - Nós retiramos mais de
duas toneladas em relíquias assírias das escavações da antiga usina de Osirak. Eu e
esse homem, este engenheiro brasileiro, nos conhecemos lá durante a construção. Nós
dois sabíamos da existência das relíquias. Há aproximadamente um ano, entramos em
contato novamente e começamos a retirar o material de lá e a contrabandear para a
Turquia. A guerra apenas estimulou a idéia da deserção. Eu não vou lutar mais uma
guerra inútil em nome de Saddam Hussein!
- Ele está dizendo que somos culpados, que contrabandeamos relíquias... - Luciano
tentava explicar a Hermes, mas estava atônito demais. - O que você está fazendo?!
gritou, em inglês.
Um gesto de Sayid, e Luciano foi punido por ter gritado. O oficial da Amn-Al-Amm
estava satisfeito, mas não conseguia sorrir.
- Esse cara vai nos jogar numa pena de morte... - balbuciou Hermes. Ele sabia que era
isso o que acontecia com ladrões de relíquias no Iraque. Agora tanto fazia se o prédio
fosse bombardeado ou não.
Capítulo 13
Ultimato - 10 dias menos 8
Era o dia 14 de janeiro de 1991. Saddam Hussein recebera um ultimato da coalizão
para retirar suas forças do território kuwaitiano até o dia 15. Isso não estava
acontecendo. O que acontecia era exatamente o contrário. As posições vinham sendo
fortalecidas a cada dia. Do outro lado, não havia muito mais o que fazer a não ser
contar as horas e os minutos para começar o combate.
Àquela hora, praticamente todos os brasileiros tinham sido retirados do Iraque através
do aeroporto, inclusive o corpo diplomático. Por isso, um diplomata iraquiano teve que
fazer uma ligação telefônica direto para o Itamaraty, em Brasília. O bom
relacionamento entre os dois países exigia que a medida fosse tomada.
A recepção da notícia no Itamaraty não foi nada boa. Ninguém sabia o que fazer com
aquela informação. Chegaram a cogitar uma ligação para o Palácio do Planalto, mas,
segundo o SNI, o chefe do Executivo não deveria ser incomodado com aquele assunto.
Acontece que até a noite anterior aquele assunto ainda era uma pendência, uma
questão em aberto. De lá para cá as coisas teriam mudado substancialmente, o que
colocava em xeque a ingerência do Serviço Nacional de Informações.

Todos os alvos já estavam estabelecidos. Programas de computador levaram pouco


tempo para estabelecer mapas digitais para mais de 50 mísseis General Dynamics
AGM/BGM-109 Tomahawk que partiriam para o território iraquiano a partir de navios
estacionados no golfo. Na Arábia Saudita, uma esquadrilha de oito helicópteros Apache
da 101ª Divisão Aerotransportada do Exército estava sendo revisada a cada instante
para a grande incursão. Seriam eles as aeronaves a entrar primeiro no espaço aéreo
iraquiano para destruir os dois grandes postos de radar ao sul e a oeste de Bagdá. A
decisão fora tomada dias antes após a incursão bem-sucedida de um apache pilotado
por um tal de Rolland Emmerett Jones, que muitos nunca saberiam ter sido um
traficante de cocaína no Panamá, utilizando aquele mesmo tipo de helicóptero.
A coisa toda estava nas mãos dos militares. Era oportuno para Wittmann, que sentia-se
à vontade para sair de Incirlink. Graças a sua credencial - que não era de se jogar fora
- conseguiu liberar um HMMVI sem dificuldades. Como justificativa, ofereceu uma
evasiva qualquer. Ele estava enfurnado naquela base há meses, logo, seria de
estranhar se não tivesse vontade de dar uma escapada. Qualquer um pensaria que se
dirigia a um bom bordel de mulheres ocidentais que teve as portas abertas em função
da guerra.
As estradas estavam vazias, o que facilitou sua chegada no vilarejo onde Jones
deixara Ajhina e o Kathib. Era impossível passar incógnito com a cor de sua pele e
aquele veículo enorme, mas ele já estava tão acostumado com os olhares curiosos das
pessoas que já não dava mais atenção.
Quando abriu a porta - estava trancada com cadeados por fora, e as chaves foram
entregues por Jones - encontrou a mulher recuada no canto oposto do casebre, com o
menino entre os braços. Os olhares eram de medo. Ele ergueu as mãos, mostrando
que estava desarmado e pediu calma.
- Está tudo bem... Eu não vou machucar vocês... - e puxou uma cadeira para sentar-se,
e assim ficar com uma altura parecida com a da mulher. Ee não conhecia a língua
deles, por isso procurou falar pausadamente, apostando que talvez a mulher
conhecesse algumas palavras básicas do inglês.
- Onde está seu marido? Onde está Fahed?
Assim como a mulher não o havia entendido, ele não entendia o antigo árabe proferido
por ela. Foi o menino que teve a primeira reação.
- Ela não sabe inglês. Eu estudo inglês na escola.
Wittmann sorriu.
- Ora, vejam só... Você está em qual série?
- Não entendi...
Cada país tinha um meio diferente de graduar seus estudos, não tinha?, pensou
Wittmann. Seria melhor pular aquele comentário.
- Onde está seu pai? Seu pai...
- Não sei... - e o menino voltou-se para a mãe, que o apertava com força, e falou na
língua deles. - Ela não sabe. Você sabe?
- Eu também não sei... Seu pai foi preso?
O menino ficou com os olhos cheios de lágrimas, mas voltou-se para a mãe e repetiu a
pergunta. A mulher disparou a falar. O menino ouvia, mas não tinha vocabulário em
inglês para fazer a tradução - tão pouco velocidade.
- Não sabemos. Minha mãe disse que você deveria saber. Ela disse que nós fizemos o
que papai disse, que encontramos com seu helicóptero. E se isso aconteceu, é porque
você falou com meu pai e disse para a gente fazer isso... - e voltou a olhar para a mãe
por mais algumas palavras - Você sabe onde está meu pai?
Wittmann olhava para o menino, atônito. Mais uma vez eles esmagariam um povo
baseado num estereótipo falso. Eles não eram bárbaros. Quantos meninos ele vira, em
solo americano, conversar com um árabe em sua língua nativa?
- Nós vamos achar seu pai... - disse Wittmann, fingindo estar consternado com a
situação da família. Cada um deles queria encontrar Fahed por um motivo diferente.

Não havia muito o que fazer com o caso dos brasileiros em Bagdá. Por isso o
Itamaraty, depois de algumas horas de deliberação, decidiu chutar a bola de novo para
os pés do SNI. Este órgão decidiu que o assunto deveria ser esquecido - sequer
arquivado - e Mara Maia não tinha a menor idéia para onde telefonar.
No hospital, ela olhava a filha através de uma divisória de vidro. Ela estava dormindo
bem, não parecia tão abatida pelo tratamento, como se mostrara dias atrás. “Esta
batalha está vencida, não?” murmurou baixinho a si mesma, como se falasse com o
marido. Era ali de seu lado que ele deveria estar. Mas não estava. Também não estaria
em casa. Por isso Mara não queria voltar para lá. Uma enfermeira trouxera um prato de
sopa, pois percebera que a mulher estava ali naquele corredor há mais de um dia.
- Por que a senhor não volta para casa? A menina está bem... E se quiser, pode
mandar outra pessoa para cá...
Mara não tinha mais lágrimas. Foram tantas derramadas por causa de Cíntia, por
causa do medo do que poderia acontecer com sua família, por causa dos erros que ela
e Luciano haviam cometido, por causa das concessões que fizera para conseguir o
dinheiro necessário para prosseguir o tratamento. Tantas lágrimas perdidas e tantas
ainda que deveria reservar para o futuro, que simplesmente seus olhos estavam secos
quando, na verdade, gostaria de chorar apenas mais um pouquinho para não senti-los
arranhando tanto. E ainda tinha que responder à enfermeira? Talvez não.
Apenas sorriu. A mulher estava fazendo apenas o seu trabalho.

Os três homens foram transferidos das celas separadas onde estavam para ocupar
apenas uma, comum, do tamanho das outras. Apenas uma cama integrava a mobília.
- Eles estão prendendo mais gente hoje. Suspeitos. Qualquer estrangeiro que tenha
ficado para trás é um suspeito. Alguém que se pareça com um estrangeiro, também é.
Ingleses e americanos estão aqui para marcar os alvos... - disse Fahed, sentado no
chão.
- Por que você fez aquilo? - perguntou Luciano.
- Não podia se levado para mais longe da minha família.
- Onde está sua família. Ele disse que não está lá...
- Já está fora do país. Está na Turquia, me esperando.
- E as relíquias de Osirak? Também já estão lá?
Fahed sorriu.
- Você lembra, hein? Você ainda tem os dados?
- Tenho...
- Um souvenir de sua primeira viagem para cá... Naquela vez, um bombardeio fez você
voltar para casa... Quem sabe desta vez...
- Esse lugar vai ser arrasado.
- É um prédio grande e forte. Mas vai ser alvo de muitas bombas, já na primeira salva.
Vai ser a partir da meia-noite de amanhã. Saddam não vai se retirar do Kuwait.
- Disso a gente já sabe. Já deu para notar. O que você quer fazer? - perguntou
Hermes, também em inglês.
- Temos um dia inteiro para descobrir como vamos sair daqui. Um dia inteiro. Por
enquanto, acho que devemos dormir.
Capítulo 14
Ninguém morre de véspera
Dia 15 de janeiro de 1991
O sol parecia um pouquinho mais forte que fora no dia anterior, mas o inverno só
terminaria em março. O movimento em Bagdá lembrava um feriadão no Brasil. Parte do
comércio estava aberto. Policiais e militares rondavam as ruas, pois sabiam que o
inimigo já poderia estar ali. Gente se retirava para o campo.
Nas televisões de todo o mundo, aquela cidade era o assunto central. Saddam Hussein
deslocava seu governo para casamatas. Os 30 países que formavam a coalizão
aqueciam seus motores, soldados conferiam bombas presas sob asas de aviões,
alguns cometiam a idiotice de pintar mensagens agressivas na carcaça desses
explosivos. Algumas emissoras de televisão mostravam tudo isso com ufanismo.
Em locais mais secretos, caças “stealth” eram preparados para decolar naquela noite.
Outros aviões, que não carregavam bombas, mas sim combustíveis e equipamentos de
radar, comunicações e contramedidas eletrônicas entravam em procedimento de
decolagem. E se Saddam quisesse tomar a dianteira?
Tudo estava sendo previsto, todas as possibilidades, avaliadas. O pessoal da 101ª fez
refeições frugais e conferiu, mais uma vez, seus Apache. Se fosse para cair, que isso
acontecesse devido ao fogo inimigo, e não a uma falha técnica.

Dentro da cela, os três homens quebravam a cabeça tentando descobrir um meio de


fugir. O local era reforçado e eles não possuíam ferramenta alguma.
- Um de nós pode fingir estar passando mal, vomitando. Daí nós chamamos um
guarda. Quando ele entrar...
- Isso é idiotice! Pelo amor de Deus, Hermes! Esses caras também têm televisão aqui!
- Exatamente por parecer idiotice é que pode dar certo! Ninguém vai imaginar que seja
realmente um golpe para tentar sair.

A Polícia Nacional da Turquia já tinha fotos novas de Farina junto com um estrangeiro
identificado por emissários da Unesco. Eles estavam juntos há dias, provavelmente
esperando algo.
- Quem são esses quatro homens que estão junto com Van der Bilt? - perguntou um
policial.
- Não temos nenhum cadastro.
- Estão portando armas... têm jeito de soldados. Podem ser mercenários? Esse Bilt
contrataria mercenários? É do tipo?
- Se ele está lidando com uma carga muito valiosa... - o homem da Unesco não queria
dizer que seria óbvio que o homem levaria mercenários para aquele lugar para manter
a sua segurança. Se não o fizesse, estaria louco.
- Não gosto de mercenários. Eles não têm o costume de se entregar. Sabem que
quando se entregam não ganham o salário. Prefiro bandidos comuns. - explicou o
policial, que estava cansado de lidar com “soldados da fortuna” que escoltavam
carregamentos de heroína através de seu país. - Vou pedir reforços...

- O bombardeio pode ser útil para a gente... - especulava Fahed.


- Por quê?
- Conheço essas construções de prédios públicos. As bombas podem servir para
fragilizar toda a estrutura do prédio, abalar tudo. Assim, seria fácil derrubar a porta, pois
as dobradiças vão arrebentar com a torção das paredes!
- Fahed...
- Sim?
- Em primeiro lugar, foi você que disse que esse edifício era muito forte... Em segundo
lugar, vamos pensar noutra coisa.

Luís Carlos e Aurélio decidiram quebrar o acordo que tinham feito com Luciano e
Hermes e telefonaram para o hotel. Lá, ninguém sabia informar ao certo onde estavam
os dois brasileiros.
- Mas por que não posso deixar nenhuma mensagem?
- Porque eles não estão aqui.
- Não estão mais hospedados aí?
- Não. Por isso não posso dizer nada sobre eles.
- Mas por que eles saíram daí? Saíram e não deixaram nenhuma mensagem?
- Acho que não tiveram tempo.
- Por que não tiveram tempo?
- Porque foram presos. Mas não posso dizer mais nada sobre eles.

A noite chegou rápido. Haaji Sayid desceu do prédio até o estacionamento e entrou em
seu Mercedes. Ligou o carro e tomou o caminho da rua. Não conseguiu evitar olhar
para o prédio, pensando que no dia seguinte talvez não tivesse mais um local para
trabalhar. Aquela seria a derradeira noite. Por isso, lembrou também dos homens que
estavam presos nas celas especiais da edificação. Poderiam ter sido transferidos para
locais mais seguros, mas ele não recebera ordens ou autorizações para proceder
assim. Aquilo tudo era muito injusto, não era? Mas o que era justo? Decidido a não
levar aquela culpa para casa, acelerou o carro, somente para ter que parar logo em
seguida. Quase atropelara um mendigo, um andarilho.
- Saia daí! Vamos logo com isso! - gritou, descendo o vidro elétrico. O mendigo fez uma
reverência e recuou. Quando Sayid passou ao seu lado, olhou-o bem, dos pés à
cabeça - Você, procure um lugar seguro para dormir. Sabe o que está para acontecer
esta noite?
- Não, senhor...
- Que Alá cuide de você... - e Sayid foi embora, pensando que deveria ter pedido a
Deus que encomendasse a alma do pobre homem.

- O que está acontecendo? O que vamos fazer agora? - perguntou Aurélio,


genuinamente preocupado. Luís Carlos parecia mais calmo, mas não demonstrava ter
as respostas para aquela pergunta. Como acontece com a maioria das pessoas que
não sabem o que fazer, Luís Carlos sugeriu que optassem, temporariamente, pela
inação.

Antes que a noite caísse por completo, Wittmann já havia retornado a Incirlink. Era uma
noite importante, e mesmo que a prostituta que ele tivesse como companhia fosse igual
a Julia Roberts, ele não teria argumentos para explicar sua ausência do CIC. Eles
estariam online, em tempo real, com o pessoal da Cidade Militar Rei Khalid, na Arábia
Saudita. Isso significava que o próprio Normie estaria no comando de tudo, para que
todos vissem. Era, decididamente, uma guerra-espetáculo, e todos os astros já
estavam posicionados. Mas sempre há tempo para um ator fazer um improviso, não
há?
- Senhores, meia-noite. - disse Norman Schwarzkopf, o general comandante da
operação Tempestade no Deserto. - Precisamos conferir se Saddam fez algum
movimento... Para o bem ou para o mal.
A ordem autorizou a alteração previamente estabelecida da rota de três satélites da
classe KH, especializados em vigilância eletrônica e imagens. Era preciso saber se
Saddam Hussein tentaria aplicar o golpe de se tranformar em vítima perante a opinião
pública, colocando suas forças em retirada em meio ao bombardeio inicial. Mais de
uma hora de interceptações de sinais de rádio e de telefonia e fotografias revelaram
que nada daquilo estava acontecendo.
A essa altura, já eram quase duas horas da madrugada do dia 16 de janeiro de 1991.
Mãos coçavam.

Hermes estava com o ouvido esquerdo colado na porta. Eram duas horas da manhã.
Obviamente, ninguém pensava em dormir dentro daquela cela.
- O que você está ouvindo aí? - perguntou Luciano.
- Nada...
- Então o que faz...?
- Nada mesmo. Nenhum passo, nenhum rádio, nenhum aparelho de tevê. Nenhum
preso reclamando. Ninguém gemendo de dor. Até ontem dava para ouvir um aparelho
de rádio, mas agora, nem isso... e logo agora...
Fahed levantou-se do chão. Hermes tinha razão. Não ouviam ruído algum há um bom
tempo Onde há gente, há ruídos.
- Será que nós...
- Somos os únicos aqui dentro? Talvez. Mas isso não facilita as coisas para a gente.
Como vamos abrir isso?
- Já passou da meia-noite. Já expirou o ultimato ao seu chefe... - disse Hermes, em
inglês, para Fahed, que tateava a porta, pensando em encontrar um ponto fraco.

Os oito Apache não eram tão rápidos quanto um caça F-15 Tomcat, mas eram muito
mais traiçoeiros. Voando rente às ondulações do relevo, eram tão difíceis de serem
captados pelo radar quanto serpentes. Talvez se os iraquianos tivessem aviões radar
como os Awacs americanos, muito bem posicionados e aguardando sua chegada,
talvez assim tivessem captado alguma coisa.
Mas os fatos não ocorreram dessa maneira. Os Apache chegaram perto de Bagdá,
localizaram as duas poderosas centrais de controle de tráfego aéreo e radar e soltaram
fogo. Sabe-se lá por qual motivo, os ianques estavam muito empolgados com aquela
guerra. Talvez porque estivessem muito bem equipados, talvez porque soubessem que
as baixas entre eles seriam ínfimas, acontece que os 16 homens a bordo dos oito
helicópteros Longbow Apache fizeram aquilo que a partir daquela noite até o dia 24 de
fevereiro se repetiria dia e noite: jogaram videogame.

O resultado da partida inicial de videogame foi percebido por Luciano, Hermes e


Fahed. Com as antenas de radar destruídas, começara o ataque da coalizão. Centenas
de aviões de combate decolaram da Arábia Saudita, da Turquia e de porta-aviões no
golfo com toneladas em bombas. De três destróieres foram disparados 53 mísseis
Tomahawk - isso tudo, somente naquela noite. A maioria foi para a milenar cidade de
Bagdá, cenário das Mil e Uma Noites.
Foram essas explosões que fizeram a cela estremecer. Os três homens
entreolharam-se, gritaram, controlaram seus esfíncteres e choraram. As explosões
aconteciam cada vez mais perto. Não conseguiam ouvir o que eles próprios gritavam.
- Nós vamos... - gritava Luciano, quando uma explosão, muito próxima, fez com que
estilhaços de concreto atingissem seu rosto. Ele só poderia concluir que a explosão
ocorrera ali, ao seu lado. Foi assim que percebeu que...
A porta não estava mais lá. Os três olharam aquilo atônitos. A poeira pairava no ar,
outras explosões ribombavam lá fora, quando um homem surgiu do lado de fora.
Parecia um mendigo.
Mas tinha uma submetralhadora nas mãos e falava inglês com sotaque britânico:
- Vamos! Esse prédio vai ser o próximo!

Não havia muito sobre o que pensar. A porta não estava mais lá. Não era isso que
tentaram fazer nos últimos dias? Fazer sumir aquela porta? Então correram para fora,
sentindo o chão vibrar a cada bomba. E eram muitas bombas. E eram tiros de canhões
da artilharia antiaérea, era barulho de todo tipo. Era algo que nenhum deles nunca vira
ou ouvira.
O melhor a fazer era seguir o mendigo. Ele parecia ser o único que tinha alguma idéia
do que estava acontecendo ali. Fahed foi o primeiro a entender quem era aquele
homem., e ficou impressionado como o destino poderia ser tão brincalhão.
Assim que chegaram ao andar térreo, o mendigo fez um sinal para que parassem.
- Eu não sei quem são vocês, mas recebi ordens para livrar a passagem até aqui.
- Quem é você? Quem pediu... - gritava Luciano, inutilmente perante o ruído das
bombas. O homem correu para a escuridão, simplesmente sumindo. Fahed o puxou
pelo braço.
- Vamos! Temos que ir para a Turquia!

O segundo passo, depois de sair do prédio do Ministério do Exército foi procurar um


carro. Tinha que ser um bom carro, rápido, forte. Enquanto procuravam, ouviram os
silvos e as bombas caindo sobre o prédio onde estavam minutos antes. A estrutura não
fora derrubada, tão pouco os soldados que controlavam o fogo antiaéreo no terraço
desistiram da refrega. Fahed olhou para cima e viu seus colegas lutando. O quanto
valia a pena defender sua casa? Mas onde ficava sua casa? Onde fica a casa de um
desertor?
- Um Pathfinder! Aqui! - gritou Hermes, acenando com os braços. Não havia mais luz
em Bagdá, a não ser do fogo, da armas, iluminando a bravura dos soldados iraquianos
como estroboscópicas. Fahed olhou na direção do Sport Utility Vehicle (SUV) e
desejou, pela última vez, o desejo de todo soldado em combate: “Quisera eu não ter
família, não ter nada que me fizesse ter medo de lutar essa luta... Mas se nada tivesse
para me fazer querer a paz, por que lutar?”

Os resultados eram bons. George Bush e Norman Schwarzkopf comemoravam como


crianças que ganham um cartucho novo.

Fahed conhecia o caminho como ninguém. Por isso, pilotava o Nissan. Pilotar era o
verbo certo para descrever a forma como ele dirigia através do país (que ganhara
alguns acidentes geográficos a mais a partir daquela madrugada), rumo à fronteira
noroeste.
- Preciso fazer um telefonema! - gritou Luciano.
- Ainda não. Temos que achar um lugar que não tenha sido bombardeado... Temos que
ganhar tempo, também... - ponderou Fahed, tenso.
- Conseguimos sair de lá! - disse Hermes - Passamos pelo pior, agora vamos abrir o
jogo, certo? O que está acontecendo, fora uma guerra?

O telefone tocou apenas uma vez e quatro mãos agarraram o aparelho. Foi Luís Carlos
quem conseguiu puxar o fone para perto do ouvido.
- Eles estão vindo para cá!
Wittmann olhou para os homens ao seu redor. Eles estavam exultantes. Por quê? O
que comemoravam? Com toda a tecnologia que tinham à disposição, o que temiam?
“Será que eles esqueceram que nós construímos isso tudo para enfrentar um inimigo
bem mais poderoso, praticamente em pé de igualdade? O que estão comemorando?
Vocês acham que realmente havia algum risco nisso? Vocês acham que a sorte pode
virar? Que merda de trabalho!”
O que o agente da CIA fez foi deixar o recinto discretamente, sem permitir que ninguém
percebesse o quanto estava incomodado. Ele foi até seu aposento e pegou a valise
com a qual chegará lá, meses antes. Aquilo era um adeus? “Quem sabe?”, deixou-se
pensar assim. Há hora para tudo. Se seu país esqueceu da verdadeira vocação, isso
não tinha que significar que ele deveria se manter num caminho que não considerava
mais certo. “Liberdade...”, pensou. Era o grande slogan da América. Liberdade para
quem?, pensou, enquanto colocava uma pistola 9mm dentro da valise. Faltava uma
única arbitrariedade a fazer antes de tentar ficar em paz com o mundo.

A fronteira com a Turquia não estava diferente do resto do país. Mas lá, Fahed
construíra gradativamente seu pequeno império, dando presentes, dinheiro, favores.
Foi só acender a luz de serviço da Pathfinder para que um soldado o reconhecesse.
Rapidamente, o militar abriu caminho para o SUV, correndo na frente com o AK-47 em
posição de “em guarda”. Fahed seguia atrás, em velocidade bem baixa. Nenhum dos
três homens se atrevia a mencionar palavra. Era desnecessário. Os fatos estavam se
desenrolando independente da ação de qualquer um deles. Tudo fora semeado há
tempos.
Mas isso não impedia o alongamento do tempo - os poucos minutos levados
normalmente para a travessia da fronteira pareciam não acabar.
- Vamos ficar seguros na Turquia?
- Não sei...
- A Turquia não está em guerra. - retrucou Hermes.
O comissário conseguiu reforço de 15 homens. No total, então, tinha 28 homens muito
bem armados para efetuar a prisão de uma contrabandista curda, um traficante
brasileiro e um receptador norte-americano - este último acompanhado de mercenários.
Ele acreditava que não tinha pessoal suficiente para a operação. O motivo era simples:
seu trabalho era efetuar prisões, e não cometer um extermínio. Seria muito fácil chegar
atirando, mas não era esse seu trabalho, era? A lógica de uma ação de prisão é afligir
o “alvo” de tal forma que ele não tenha outra opção senão render-se.
Não seria tão perfeito naquele caso.

- Essa não entendi... - disse Aurélio. O local indicado por Luciano para o encontro era
exatamente o local em que eles haviam encontrado a contrabandista. Seria
coincidência? Eles não mencionaram Farina ou seu armazém antes. Isso fez com que
Aurélio despertasse um senso de auto-preservação. Podia não ser nada...
Eles pagaram a conta do hotel e jogaram as poucas bagagens que tinham no
porta-malas do Land Rover. Se tivessem que permanecer mais tempo na Turquia, não
seria naquela cidadezinha fronteiriça.
Os dois ficaram calados durante todo o percurso. Quando chegaram ao armazém de
Farina, perceberam um movimento.

- Quem são aqueles?


- Brasileiros. Dizem que são vendedores. Procuraram-me afirmando que terão uma
remessa de relíquias... - explicava Farina, percebendo que Van der Bilt não gostava
muito do que estava ouvindo.
- O que esses brasileiros estão fazendo aqui? O que eles entendem disso? Como eles
podem ter uma remessa?
- Eu mandei vigiar esses dois. São apenas eles, estão num hotel a alguns quilômetros
daqui. Me encontraram por acaso. Resolvi apostar para ver o que eles têm. Se tiverem
algo, você pode comprar por um preço bem baixo...
- Você pode estar tranqüila, mas eu, não.
Wittmann estava acabando de estacionar o HMMVI bem perto do local onde havia
encontrado Fahed pela primeira vez - aquele que aparecera numa foto de satélite. Em
seguida ele viu o Land Rover estacionar e ninguém descer. “Ainda bem que estou bem
equipado”, pensou. Com um binóculo de visão noturna, conferiu os ocupantes do carro.
Não era Fahed. Também não eram iraquianos ou curdos ou turcos. Eram homens
diferentes. Tanto quanto ele, estrangeiros naquela parte do mundo.
Estranho? Era um verdadeiro incômodo chegar a um momento tão crucial e sentir-se
carente de informações. Por isso conferiu no banco do carona a pistola 9mm e um
aparelho de rádio. Estavam lá. Olhou para a parte de trás do veículo e estavam lá,
também, Ajhina e o menino, ambos amarrados e amordaçados.
- Jones? Está na escuta?

Em Incirlink, o sargento Jerome Seagull, que cuidava de uma das 12 telas de radar
disponíveis no CIC, achou que era a hora de confirmar uma suspeita que levantara há
uns bons cinco minutos.
- Acho que perdemos um pássaro.
- O quê?! - esse era Cole Graham. O general teve um sobressalto. A primeira baixa
seria sua? Logo no noroeste, localizado tão longe do front mais quente daquela guerra
que estava apenas começando? “Que merda!”, pensou. - Confirme isso, sargento!
Seagull já havia confirmado. Passara cinco minutos procurando o Apache.

Jones sentiu-se mais uma vez habilidoso. Pousado em uma ravina, tinha a certeza de
que estava desaparecido para os radares. Estava próximo da fronteira, e não seria
difícil entrar e sair do Iraque para disfarçar que esteve lá o tempo todo. Seu devaneio
foi interrompido pelo estalido inicial do rádio. Em seguida veio a voz de Wittmann. Eles
escolheram aparelhos portáteis. Não seria prudente utilizar o rádio da aeronave.
- Estou na escuta e pronto. Quando precisar de mim, é só chamar. Chego aí em menos
de três minutos.
Wittmann respondeu com um comentário protocolar e Jones decidiu conferir de novo
seu equipamento. Tinha ali tudo que poderia precisar para acalmar os ânimos de quem
pensasse em atrapalhar seus planos de ficar rico... de uma vez por todas.

Luciano e Hermes desceram do Zil. Fizeram isso sorrateiramente, com o veículo ainda
em movimento, em torno de 20 km/h. Já haviam feito isso durante suas carreiras
militares, mas estavam enferrujados. Cada um tinha nas mãos um Chicom AK, uma
versão reduzida de fuzil que está para o AK-47 assim como o AR-15 está para o M-16.
Eram armas fabricadas na República Popular da China e tinham dois carregadores de
40 balas cada um. Fahed não contrabandeara apenas relíquias para fora do Iraque.
O equipamento não garantia nada. Os três homens não tinham plano algum. Apenas
queriam ajudar um ao outro. Acreditavam que estavam juntos naquele barco desde a
prisão em Bagdá, e poderiam, juntos, se safar dos problemas que os aguardavam.
A idéia de Fahed era fazer as coisas conforme o combinado. Ele tinha que entregar as
relíquias para poder receber o dinheiro. E era o dinheiro - dólares americanos - que
utilizaria para resgatar a esposa e o filho.
Assim conduziu o caminhão pela rua na direção do armazém de Farina. Ao
aproximar-se, viu um Land Rover parado perto do local, e um HMMVI mais adiante. Era
ali que Wittmann estaria.

Os óculos (parece mais com uma luneta) de visão noturna eram realmente bons.
Wittmann aproximou a imagem girando o conjunto de lentes e confirmou a presença de
Fahed dirigindo o caminhão. Vasculhou as proximidades. O iraquiano não chegaria
sozinho, ou seria tão certinho assim? Ele já ouvira falar do código de honra dos árabes,
e achava aquilo tudo uma tamanha idiotice, assim como acontecia com os japoneses e
seu sepuku - que os ocidentais cismam em chamar de harakiri. Por isso eles venceriam
os árabes assim como venceram os japoneses. O agente da CIA não conseguiu evitar
o sorriso.
- Seu pai está chegando, menino, conforme o combinado.
- A remessa está chegando! - disse um dos homens de Farina. Ela foi conferir através
de uma janela e acenou para seus homens (ou o que restou deles). Estava indo tudo
conforme o combinado. Dois “soldados” saíram do armazém portando fuzis, enquanto
outros dois abriam a porta. Eles conferiram o caminhão. Estava limpo. O veículo
entrou. Farina conferiu a sua PPK de estimação presa atrás da cintura. Van der Bilt,
discretamente, acionou seus mercenários.
- Coronel! - saudou Farina, movendo-se na direção do caminhão assim que seus
homens fecharam a porta novamente.

- Chegou um caminhão. Entrou no armazém. - disse um policial turco através do rádio.


O pessoal da Unesco - um bando de burocratas - acompanhava a ação
empolgadamente .

Farina estava ocupada cumprimentando Fahed. Ela não percebeu os mercenários de


Van der Bilt movendo-se lentamente como se fossem peças em um jogo de xadrez.
- Está tudo aqui?... - e Farina, por mais que não tivesse lembranças boas do Iraque,
teve que se compadecer - Sinto muito pelo seu país...
- Tudo bem. Alá é grande. - respondeu Fahed, visivelmente abatido. Ele não perderia
tempo explicando que passara os últimos dias na cadeia.
- Certo, certo... Esse é Van der Bilt, o comprador. Ele veio dos Estados Unidos para
comprar seu material...
- Nem todos os americanos vieram aqui para prejudicar vocês... - disse Van der Bilt,
sorrindo.

- A remessa chegou... - disse Wittmann para Jones, dispensando os protocolos de


comunicação via rádio. - Esteja preparado.
- Desperto o pássaro?
- Ainda não... Ainda não. - respondeu Wittmann, vasculhando o local com a luneta.
Estava indo tudo muito bem...

Luciano ergueu a mão e Hermes parou ao seu lado. Estavam no escuro, encostados
em uma casa. Dali podiam ver o HMMVI. Era bem óbvio que o tal americano estivesse
ali dentro.
- E agora? - perguntou Luciano.
- Vamos nos dividir. Um de cada lado. Esperamos Fahed e o cara vai estar cercado.
- Será que ele vê a gente?

- Onde vocês estavam nos últimos 10 anos? Já ouviram falar de “visão noturna”? -
murmurou Wittmann, para si mesmo, olhando os dois homens armados que
acreditavam estar ocultos na escuridão.

Van der Bilt estava agora de óculos e comparava as peças que eram retiradas do
caminhão de Fahed com uma série de fotografias de um catálogo. Assim ele conseguia
averiguar se aquelas relíquias eram genuínas. Pareciam ser. Cada uma que emergia
das caixas de madeira representava um pedaço de um tesouro de valor inestimável.
Ele tentava não demonstrar como pagaria pouco por aquela... aquela... coleção. Era
assim que chamaria o conjunto de relíquias. Todas foram retiradas do mesmo local, e
pareciam ser restos de um castelo de Verão de um grande imperador. Havia potes,
azulejos, peças metálicas, porcelanas... Tudo com uma unidade cromática que garantia
não ser um amontoado de despojos. Se fosse para ser honesto, Van der Bilt sabia que
teria que vender até seu Rolex para pagar Farina e o iraquiano.
E não poderia ocorrer-lhe comportamento mais justo que gratificar muito bem Farina.
Ela negociara com o iraquiano, ela praticamente entregara todo aquele tesouro para
ele, e ela garantia que o fornecedor não pudesse se colocar numa posição de extorsão.
Farina deveria ser realmente bem paga pelo seu trabalho.
- Divino... Isso tudo é divino... Você disse que isso veio de onde mesmo?
- Osirak. Norte do país... - respondeu o coronel iraquiano.
- Sumérios... - comentou Van der Bilt, tomando nas mãos outra peça, desta vez um
azulejo com inscrições. Precisaria contratar mais arqueólogos quando chegasse em
Los Angeles para catalogar tudo aquilo. Provavelmente estagiários. - Você já viu algo
assim? - o norte-americano chamou a atenção de Farina, mostrando-lhe a relíquia. Ela
estava olhando ao redor, talvez sentindo alguma coisa.
Não. Farina não receberia seu pagamento justo.

- Precisamos de alguém lá dentro! - disse o funcionário da Unesco responsável pela


operação. - E se estiverem negociando, sei lá, heroína?
- Serão presos da mesma forma.
- Não quero estar envolvido em algo assim. Quero a confirmação de que estão
negociando peças arqueológicas.
- Podemos confirmar isso depois...
- Não! Se não pudermos ver o que está acontecendo lá, só vamos agir quando o
caminhão estiver fora! Não antes.
O oficial da Polícia Nacional da Turquia ficou puto da vida. A investigação começara
em nome da Unesco, recebera uma requisição do serviço de inteligência brasileiro e
ele, em seu próprio país, não podia fazer o que considerava certo?

Luciano chegou perto o suficiente do HMMVI para divisar seu interior. Não viu ninguém
dentro. “Como?”, perguntou-se Luciano, tentando lembrar se em algum momento nos
últimos minutos deixara de olhar para o robusto jipão. Apertou os olhos. Não havia
ninguém dentro do veículo!
Isso só poderia significar que eles tinham sido vistos. Ele começou a olhar ao redor,
procurando algum movimento, e acabou enxergando Hermes no meio da escuridão.
Fez um sinal para ele, mas o amigo - como sempre acontece com garçons em bares
movimentados - não estava olhando em sua direção. “Que merda!”, pensou, quando
ouviu um estampido e viu Hermes cambalear para o lado e tombar no chão.
- Tiro! - gritou um dos homens de Farina, que sacou a pistola e apontou para Fahed.
Parecia ser o mais lógico a fazer. Ele, a mulher não conhecia direito. Falara apenas
algumas vezes com o iraquiano. Com Van der Bilt, fizera dezenas de negócios nos
últimos anos.
- O que é isso?!

- Venha! - disse a voz, imperativa, através do rádio.


A ordem de Wittmann não terminara e Jones já decolava o Apache que Incirlink julgava
ter caído em solo iraquiano.

- O que fazemos? - balbuciou Luís Carlos, engatilhando a arma. Aurélio fazia o mesmo,
procurando enxergar alguma coisa. Ele fez a tolice de ligar os faróis.

Foi como se o sol surgisse a sua frente. Wittmann arrancou os óculos de visão noturna
e descarregou a pistola na direção da luminosidade.

Luciano ouviu os outros tiros, quase 10. Balas zuniam, ele não sabia para onde. Vira
um farol acender à esquerda, mas este sumira logo em seguida. Sentiu as pernas
paralisadas. Não era nada físico - puro medo.

Luís Carlos abriu a porta do Land e caiu para fora. Sentia alguma coisa quente na
perna direita. Quente e doída. Tentou correr e não conseguiu. Não era medo - era
físico!
Encostou-se no carro e disparou a pistola várias vezes contra a direção de onde vieram
os tiros. Olhou para dentro do Land e viu Aurélio. Ele não precisaria de ajuda.

- Temos tiros, muitos tiros. O que fazemos?


- Vamos ficar prontos para intervir, mas não agora. - ordenou o oficial turco. Por que
deveriam eles entrar no meio da linha de fogo? Decidiram agir apenas quando o fogo
cruzado cessasse ou em caso de tentativa de fuga.

O que estava fazendo ali? As coisas aconteciam rápidas e exigiam reações à altura.
Mas Luciano não estava preparado. Fora tudo uma péssima idéia, não fora? Imagine,
atravessar meio mundo para tentar nada mais que um roubo no lugar mais “quente” do
planeta no momento em que o fogo era ateado. Não poderia resultar em algo melhor
que aquilo.
Luciano sentiu a arma pesar em suas mãos. Sabia como usá-la, mas estava
desprovido de motivação. Motivação que infla o peito do soldado, que põe agilidade
nas pernas do ladrão, que embala os quadris da prostituta... qualquer motivação. Ele
não passava de um fracassado em praticamente tudo que tentara na vida. E ali, para
onde olhasse, poderia ver um péssimo quadro. Hermes tombado, talvez morto. À
esquerda, tinha impressão de ter visto Luís Carlos cambaleando. E o que ele faria
diante daquilo? Onde estava o maravilhoso plano com o qual dizia que todos eles
pagariam suas dívidas, salvariam suas famílias... Onde? Parecia um roteiro mal-feito
de um filme de categoria B, daqueles que se tem a impressão de que o roteirista
simplesmente tinha cansado de escrever a história. Mas Luciano sabia que não era
bem assim. O grande problema residia no fato de que seus atos realmente não
poderiam levá-los a muito longe.

Fahed percebia quase a mesma coisa. Para onde iria agora que tinha uma arma
apontada para seu peito, sua família estava lá fora no meio de um tiroteio? Quais eram
as chances de tudo terminar bem?
São em momentos assim que as pessoas fazem grandes idiotices ou grandes atos,
movidas por aquilo que os behavioristas chamam de intuição. Foi algo assim que fez
com que o cavalariano da Guarda Republicana iniciasse um blefe:
- Esse caminhão vai explodir!
- O quê? - gritou Van der Bilt, olhando incredulamente para o homem que acabara de
colocar mais uma variável em jogo.
Jones, lá de cima, via o que estava ocorrendo lá embaixo com o óculos de visão
noturna. Além do mais, não estava tão alto assim.
- Está vendo o Land? Acaba com ele! - a voz de Wittmann soava em seu fone de
ouvido. O piloto acionou o gatilho do canhão-metralhador Gatling, uma máquina de
guerra apelidada de O Dragão.
Se Luís Carlos ainda estivesse ao lado do veículo, teria sido retalhado em fatias. Mas
ele conseguiu correr dali em direção ao armazém.

- Ele está mentindo! - disse Farina, encostando a PPK na cabeça de Fahed.


- Tem uma bomba de tempo no caminhão! - insistiu Fahed, procurando parecer
convincente. No entanto, não precisaria se preocupar muito em manter sua atuação...
O dragão começou a cuspir fogo do lado de fora. O estrondo das explosões da
munição era o que faltava para deixar todos à beira da histeria.
- Abaixa essa arma! Não quero arriscar! - ordenou Van der Bilt a Farina. Ela não
obedeceu. Sorrindo, sarcástica, ela se voltou para o americano.
- Você não percebe quando alguém está mentindo?! Tem algo pior acontecendo lá
fora!
- O caminhão é que me importa! - e Van der Bilt, rápido e preciso, apertou o gatilho de
uma arma que Farina não havia percebido existir em sua mão. A mulher tombou na
direção de Fahed.
Foi tudo muito rápido.
Os mercenários já esperavam aquele ato. Os homens de Farina... de forma alguma.
Por isso a reação mais lenta. Preocupados com os tiros lá fora, não haviam percebido
que estavam na linha de fogo dos mercenários, que só precisaram apertar os gatilhos.

Wittmann viu que armas estavam sendo disparadas dentro do armazém. Parecia que
tudo estava dando errado. E eram muitas armas, o que fazia do prédio um segundo
alvo para o Dragão do Apache.
A idéia veio simples e rápida: Jones fuzilaria a entrada do armazém, para que
Wittmann pudesse se aproximar e calcular um segundo passo. Foi o que disse pelo
rádio, telegraficamente

Jones teve que apenas mexer suavemente o pulso, e virou o focinho do Dragão.

Luciano viu o Land Rover sendo retalhado por um helicóptero que ele não conseguia
divisar na escuridão. O HMMVI poderia ser o próximo? Ali deveriam estar a mulher e o
filho de Fahed.
Suas pernas tinham que funcionar, de um jeito ou de outro.

Luís Carlos parou quando viu um homem tombar para fora do armazém, crivado de
balas. O que estava acontecendo?, pensou. Tem algum lugar para onde ir? Às suas
costas, o Apache voltava a cuspir fogo.

- Desliga a bomba! – urrou Van der Bilt, furioso por sua impotência diante do fato de
que uma bomba poderia transformar em caquinhos um grande carregamento de
relíquias. O que diria a seus compradores?
- Me deixa sair! Minha família está lá fora! - gritava Fahed, quando o armazém
começou a ser transpassado por projéteis de altíssima velocidade expelidos pelo
Gatling. Quem teve reação rápida tentou se esconder atrás de qualquer coisa. Mas
qualquer coisa não era resistente o bastante para interromper a trajetória da munição
de alta potência do Dragão. Assim, homens eram pegos de surpresa por balas que
varavam caixas pesadas, estraçalhando tecidos e ossos. Fahed correu para a frente do
caminhão, para trás do bloco do motor.
Entre gritos, zumbidos e estampidos de tiros que alguns desesperados disparavam
contra a porta, o número de corpos vivos era drasticamente reduzido dentro do prédio.

Luciano, com o coração quase explodindo dentro do peito, tirou Ajhina e Kathib de
dentro do carro e puxou-os para perto de onde estava Hermes. Rezava para que o
helicóptero não virasse de novo, para que aquele piloto não os visse. Dali de fora não
podia ouvir os gritos lá de dentro do armazém.
- Me ajuda! Me ajuda! - Dizia em farsi para Ajhina, mostrando que Hermes estava
ferido.

Wittmann passou ao lado do que restara do corpo de Luís Carlos e não deu atenção.
Aquele ali já era. Aprumou o equipamento de visão noturna, pois o fogo do Apache
destruíra as poucas lâmpadas que haviam na frente do armazém. Havia buracos por
todos os lados, rasgados pela munição da Gatling. Ele correu até um orifício de onde
podia ver o que se passava lá dentro, sempre com a pistola nas mãos.
Uma breve olhada deu para montar todo o quadro. O local estava devastado. Havia
corpos por todos os lados, junto com armas e cartuchos deflagrados. No centro do
armazém, estava o caminhão, também atingido. Isso irritou Wittmann. Era lá dentro que
estava sua aposentadoria. Lá também estava o provável comprador para as relíquias
que ele roubaria de Fahed, mas, qual plano, em um cenário instável como aquele,
corre sempre com perfeição? Isso significava que teria que correr atrás de outro
comprador, de outro atravessador daquele tipo de contrabando. E teria que fazer isso
rápido, pois aquele tiroteio provavelmente teria chamado a atenção de alguém. Ele
voltou-se para trás e acenou para Jones descer.

- O helicóptero está pousando... - disse o policial, atônito com tudo que estava
acontecendo ali. - O que vamos fazer?
Seu superior, num bloco de edificações abandonado não muito longe dali,
compartilhava da mesma perplexidade. O pessoal da Unesco também. O que
acontecera ali parecia mais com uma guerra que estava se desenrolando no país
vizinho.
- Estamos entrando em contato agora com os americanos na Base Aérea. Não sei se
isso é alguma operação contra o Iraque, contra iraquianos ou seja lá o que for.
Ninguém faz nada até termos uma resposta!

Cole Graham não acreditava no que estava ouvindo.


- O quê? Um helicóptero dos nossos bombardeando um armazém do lado de cá da
fronteira?
O general tapou o bocal do telefone e olhou ao redor do CIC, incrédulo. “Que merda
está acontecendo?”, pensou. Voltou-se para o sargento que indicara a falta de um
Apache.
- Aquele helicóptero, temos algum sinal dele?
- Nada, senhor. Estou buscando a cada segundo. Não temos nada de novo.
- Tenente - este era Graham, voltando a falar ao telefone - Diga à polícia turca que não
temos nenhuma informação a respeito e...
Como assim? Um militar norte-americano estaria admitindo o descontrole de uma de
suas máquinas de guerra no primeiro dia da Operação Tempestade no Deserto? Como
isso repercutiria no comando? Não bastava que ele tivesse sido designado para cuidar
da frente mais fraca da guerra, tinha que cometer uma bobagem política como aquela?
Não.
Era preciso avaliar os prós e contras de falar a verdade ou criar uma verdade. Mas ele
não tinha tempo para isso, tinha? Não tinha tempo nem pessoal com quem
compartilhar aquilo. Seria bom ouvir alguém da CIA. “Onde está aquele cara da CIA?
Ele tem jeito de ser inteligente”.

- Há uma operação em andamento. Os norte-americanos têm uma missão aqui! - disse


o oficial da Polícia Nacional Turca em canal aberto de rádio para seus homens. -
Vamos abortar a nossa operação.
A ordem não agradou o pessoal da Unesco, que tinha certeza de que estava lidando
com contrabando de peças arqueológicas. O policial contemporizou, alegando que não
se envolveria em uma operação militar norte-americana autorizada por dois governos
aliados. Aquilo tudo já o tinha cansado demais. Repetiu as ordens para que a ação
policial fosse cancelada. Apenas observariam o desenrolar dos fatos. Tinha uma
carreira a preservar.

Wittmann encontrou o que restara do trinco do portão do armazém e começou a


puxá-lo. Jones pousava o Apache, e o ruído das pás do helicóptero cortando o ar
impediu que ele escutasse o motor do Zil sendo ligado lá dentro. Muito menos ouviu o
engate de uma marcha-a-ré arranhada pelo tempo de uso.
Com a arma apontada para dentro, Wittmann deu um passo através da porta, e, só
neste momento, percebeu o que estava acontecendo. E acontecendo rápido.
Ele até teria tempo para se esquivar, mas, como estava com uma arma na mão, o
primeiro reflexo foi atirar. Grandes coisas atirar com uma pistola de 9mm contra um
caminhão de 20 toneladas em movimento!
O impacto do veículo jogou-o para trás e para o lado. Alguma coisa se rompera com o
golpe, mas ele não conseguia ver enquanto rolava no chão. O caminhão continuou indo
para trás, justamente na direção do helicóptero.
Jones teve o mesmo reflexo de Wittmann (o reflexo dos homens armados), mas o
piloto possuía nas mãos algo bem mais poderoso que uma pistola automática. Ao
premer um botão na manche, dois mísseis AR-TERRA foram disparados contra o
caminhão.
A explosão transformou o veículo em uma bola de fogo, e todo o carregamento em sua
caçamba virou poeira.
Do pó ao pó.

Tudo estava acabado. Luciano, abraçado à Ajhina e ao menino, viu a madrugada


clarear subitamente pelo fogo. Era ali onde estavam as relíquias, certo? Não houvera
tempo hábil para que a carga fosse descarregada. Os sonhos, os planos insanos, tudo
transformado em poeira. Amigos estavam feridos, ou mortos. Ele estava perdido num
país estranho e provavelmente não conseguiria explicar a ninguém o que acontecera
ali.
Ele viu um homem se levantar, perto do caminhão em chamas. O homem cambaleava,
com parte da perna direita pendurada por um feixe de músculos.

Era tudo muito engraçado, pensou Wittmann, sentindo uma dor inacreditável tentando
se manter em pé. Olhou para a perna direita e encontrou outro fato inacreditável. Olhou
para o Apache. Jones decolara de novo. Jones fizera uma tolice, não? Destruir o
caminhão, destruir toda aquela fortuna... Parecia ter sido uma grande e impensada
tolice.
Olhou também para a sua mão direita. A pistola ainda estava lá. O rádio, não tinha a
menor idéia onde estava. Sua perna direita balançava. Ele tinha certeza apenas de
duas coisas: da dor e de que perdera tempo. Muito tempo.
- Desça, seu desgraçado!

Neste momento, a Polícia Nacional Turca deixou seus esconderijos. Homens e


veículos, estes com giroflex ligados, aproximaram-se. Uma voz irrompeu através de um
megafone.
- Fiquem parados! É a polícia.

- Fiquem parados? - Wittmann riu. Por que a voz falou no plural? Ela queria que o
helicóptero descesse? “Eu também quero!” Queria meter uma bala na cabeça de
Jones.

O piloto viu as coisas mudarem completamente de figura lá embaixo. O local estava


cercado por policiais. Ele contou rapidamente e avaliou que havia mais de 20 homens.
Rendição à força policial turca não estava em seus planos. O que estava em seus
planos era dar cobertura para a fuga de Wittmann com uma fortuna em dólares. Mas
não aconteceria exatamente assim.
Wittmann seria preso e falaria. Os dois terminariam na cadeia.
Ou não.
Ele simplesmente poderia dar meia-volta, entrar no Iraque e voltar, como herói,
explicando como se esquivara do fogo antiaéreo iraquiano. Mas, para isso, ninguém
deveria cair nas mãos da polícia turca. Isso parecia tão fácil de se providenciar.

A madrugada estava chegando ao fim, e a alvorada começava a emprestar uma


vermelhidão cálida ao horizonte. Isso permitiu que Wittmann visse o canhão Gatling
girando no focinho do Apache. Isso não era bom.
- Desgraçado...

Os policiais e Luciano e Ajihna e o menino presenciaram uma coluna de fogo descer do


helicóptero em direção ao homem da perna pendurada. Ninguém sabia quem ele era.
Ninguém nunca mais iria saber. Rolland Emmeret Jones era muito preciso com o
Apache e seus equipamentos, e o Gatling não era apenas uma metralhadora muito
pesada. Era um dragão.
O piloto deu meia volta e simplesmente desprezou os poucos tiros que vinham das
armas dos policiais turcos. Baixou o focinho do Apache e tomou o caminho que já
conhecia bem. Conferiu os aparelhos e viu que estava tudo bem. Óleo, pressão
hidráulica, combustível, eletrônicos. Tinha munição suficiente e não acreditava que
teria muitos problemas no espaço aéreo iraquiano.
Com habilidade, avançou alguns quilômetros sobre a Mesopotâmia, inclinou-se para a
direita e retornou, escalando alguns andares de ar. Isso faria com que seu sinal
aparecesse claro para as antenas dos Awacs que continuavam patrulhando os céus
naquela manhã. Em Incirlink, houve comemoração. Nenhum helicóptero caíra naquele
primeiro dia da Operação Tempestade do Deserto, numa guerra que seria apelidada de
Guerra do Golfo. Apenas o general Cole Graham ficaria desconfiado daquilo tudo, mas
Jones tinha tempo para bolar alguma desculpa.

As luzes dos carros de polícia começaram a diminuir de intensidade. O sol era mais
forte, e estava surgindo mais uma vez. Luciano ergueu os braços após jogar a Chicom
AK para longe. Policiais vieram em sua direção. Tentavam parecer frios e impassíveis,
como a profissão exige, mas não era difícil perceber em suas expressões a sensação
de estranheza por ter encontrado aquele estranho grupo composto por dois homens
(um ferido), uma mulher iraquiana e um menino. Tentaram se comunicar na língua
nativa, mas Luciano se adiantou no inglês.
- Não temos nada a ver com aquilo. Estávamos passando quando começou o tiroteio.
- E essas armas?
- Pegamos para nos defender, mas você vai ver que não atiramos.
- É melhor ficar calado... Ele está bem?
- Precisamos de médico. Tenho outro amigo, lá na frente...
E Luciano levantou-se correndo, ignorando a ordem do policial, e foi na direção de
onde teria visto Luís Carlos pela última vez. Policiais o seguraram quando estava
chegando perto. Não havia muito para ver.

O sol começava a se refletir no Rio Tigre, e jornais matutinos já eram comprados em


bancas iraquianas. O bombardeio da madrugada não pôde ser reportado pela
imprensa.
Sayid olhou o jornal The Bagdad Observer e caminhou até o prédio do Ministério do
Exército... Duramente atingido. Isso o deixou preocupado. Não apenas isso. Sabia que
teria problemas demais ao longo dos próximos dias, mas gostaria de poder evitar mais
um.
Antes do final do dia, devido aos esforços de Saddam para contabilizar vítimas do
bombardeio, descobriria que os dois brasileiros e o coronel Fahed não estavam entre
os escombros. Isso era bom, pensou Sayid.
Como teriam escapado?
“Alá é grande!”, pensou. Eles não mereciam morrer pelas mãos dos infiéis
norte-americanos.
Decidiu contar o que havia acontecido para o coronel Osman. Seria uma forma de dar
uma boa notícia ao velho amigo de Fahed, e, ao mesmo tempo, mostrar-lhe como
estava errado. Não conseguiu contato naquela sexta-feira, 16 de janeiro. Tentou dias
seguidos, até descobrir que Osman havia morrido sob intenso fogo da coalizão, em um
combate tecnologicamente desigual... como todo o resto do que a TV chamava de
guerra. Fez uma oração.

A Polícia Nacional Turca não acreditou muito na história de Luciano. No local,


encontraram dezenas de corpos e alguns feridos, entre eles um ex-oficial iraquiano de
nome Ibrahim Al Fahed. Ele era o mais evasivo de todos.
Os homens receberam tratamento médico e a Embaixada do Brasil foi contatada. O
embaixador na Turquia entrou em contato com o Itamaraty, em Brasília, que cruzou os
dados. Era inacreditável, pensou um diplomata, mas aqueles brasileiros eram os
mesmos que estavam presos em Bagdá. O corpo diplomático que se retirara do Iraque
foi comunicado do fato. Um certo diplomata ficou muito feliz com as notícias, e se
dispôs a ajudar na missão de retirar as acusações que recaíam sobre os homens na
Turquia. Pegou o primeiro avião para lá, onde foi recebido pelo pessoal da embaixada
local.
Depois de uma breve conversa com Luciano e Hermes, voltou à embaixada e entrou
em contato com o Itamaraty. Precisava de opiniões superiores, de respaldo para levar
adiante o plano que tinha em mente. Não deixaria mais uma vez para trás nenhum
brasileiro. Não era para isso que era bem pago.

Todo mundo olhava para Jones com olhos desconfiados. Cole Graham não ficaria
satisfeito enquanto o homem não fosse transferido de volta para os EUA, ou pelo
menos para o porta-aviões de onde viera sabe se lá por qual motivo. Mas não
conseguia fazer isso. O homem era um piloto impecável, talvez o melhor do grupo.
Acumulava missões bem sucedidas em cima de missões bem sucedidas. A guerra
acabaria, Graham voltaria para os EUA e Jones permaneceria no local. Diziam ser um
homem com uma missão, um soldado que se acostumara com quartéis distantes.
Desta vez, seria mais fácil, pensou o diplomata brasileiro. Não teria que negociar com
um chefe de polícia com fama de carrasco. Seria uma conversa de diplomata para
diplomata, repleta de protocolos, muito civilizada.
- Estamos requerendo a custódia sobre estes dois brasileiros, o coronel Ibrahim Al
Fahed e sua família.
- Por quê?
- Esses dois homens estavam em solo iraquiano executando uma missão um tanto
quanto delicada.
- Qual?
- A retirada de Fahed e seus familiares. Eles eram colaboradores de empresas
brasileiras. Através de Fahed, algumas empresas brasileiras obtiveram informações
que garantiram vantagens em licitações de mais de meia dúzia de obras públicas junto
ao governo iraquiano. O senhor pode imaginar o que poderia acontecer caso ele e a
família tivessem que voltar ao Iraque...

A Polícia Nacional Turca e a Unesco demoraram a aceitar que o governo turco


permitisse que os brasileiros e o iraquiano deixassem o país. Era óbvio que estavam
envolvidos em contrabando. Mas não havia mais caminhão algum ou carga para
confirmar a história. Para compensar a derrota, ficaram em cima de Incirlink. Eles
sabiam que, mais cedo ou mais tarde, algo de sujo sairia de lá.
A espera demoraria seis anos. Em 1997, as duas instituições conseguiriam prender
militares norte-americanos baseados em Incirlink e um grupo ligado a um museu na
Califórnia por roubar e contrabandear artefatos gregos, romanos, hititas, bizantinos,
fenícios e assírios. Rolland Emmeret Jones concorria a receber a pena de sete anos de
cadeia, uma recompensa bem diferente da riqueza que tanto almejara.
Capítulo 15
O telefonema
Três meses passaram-se depois daquela madrugada de 16 de janeiro de 1991. Não
somente o tempo mudara, mas o cenário, também. Não eram mais antigas cidades
povoadas por pessoas com hábitos e línguas insondáveis. Também não existiam mais
as baterias antiaéreas sobre os prédios. Para falar a verdade, também não existiam
tantos prédios assim.
A cidade era pequena e agradável, situada no interior de Santa Catarina. A opção, eles
não podiam negar, remontava àquela viagem idiota, quando decidiram que fariam um
trabalho para um policial corrupto chamado Aurélio. Na ocasião, acharam a cidade
bonita, “mas quem gostaria de deixar o Rio de Janeiro?”
O tempo passou, quase um ano, e a vida mudara completamente. Eles queriam
sossego, distância de tudo que pudesse lembrar os últimos meses. Fugir de possíveis
represálias não era má idéia, e Cíntia não precisava mais de atenções médicas
especializadas com freqüência. A doença tinha sido, finalmente, vencida.
O casal Maia procurava não lembrar da leucemia, dos tratamentos e de como fora
pago o último transplante. Era um tabu, e provavelmente o seria por muito tempo.
Nenhum deles seria capaz de afirmar que o assunto não seria um fantasma em suas
vidas, mas eles tentariam fazer com que outras preocupações ocupassem o espaço
que seria destinado aos questionamentos provocados pelo evento. Nenhum dos dois
tinha idéia de que nunca mais veriam Mauricinho Vila Isabel.

Mas, mesmo sem a ameça do cobrador, cada um procurava cuidar do outro. Por isso
decidiram viver todos juntos, em residências vizinhas. Às vezes acordavam na
madrugada e se reuniam numa das casas, esperando que o sobressalto passasse. O
que temiam? Não sabiam bem ao certo. Talvez fosse apenas uma forma de ocultar o
fato de que viviam numa bruta pindaíba. Talvez fossem os pesadelos que Luciano,
Hermes e Fahed ainda tinham, quando lembravam daquela noite. A verdade é que
juntos, conseguiam dividir despesas, se reunir para almoços onde uma galinha assada
era considerada um luxo. Haviam perdido tudo, ainda pagavam pesadas dívidas e as
expectativas não eram nada boas.
Fahed demoraria a aprender o português, assim como sua família, e era auxiliado por
Mara e Cíntia na tentativa de abrir uma vendinha. Afinal de contas, era ou não era
quase turco? Luciano conseguira um emprego de frentista em um posto de gasolina e
Hermes virou motorista de uma transportadora - ainda mancava devido ao tiro.
A vida parecia seguir tranqüila. Nenhum deles gostava de se lembrar do que havia
acontecido, e procuravam suprir Helena e o filho de Luís Carlos de suas necessidades
financeiras. Não sobrava muito, mas os sonhos, desta vez, eram extremamente
básicos.
- Ei, Maia! Telefone.
Luciano estava abastecendo uma F-1000 e passou a mangueira de combustível para
um colega. Caminhou sem muita vontade até o escritório do posto e pegou o telefone
da mão do chefe.
- Alô?

Muzsharad gastou muito tempo procurando Luciano Maia por todo canto do mundo.
Inteligente, fugira durante a Guerra do Golfo e passou a viver na Índia. Um país com
um bilhão de habitantes e uma classe média do tamanho da população inteira do
Brasil. Milhões de pessoas com seus carros simples, muito antigos, que desejavam
trocar por modelos mais novos. Pessoas que adorariam ter um equipamento de custo
acessível que desse aos seus veículos um gostinho de carro mais potente.
Para eles, esse equipamento provavelmente seria considerado de complexo conceito,
de construção difícil, mas provavelmente não custaria caro o suficiente para que não se
dispusessem a pagar por seus benefícios. Muzsharad tinha o mercado nas palmas de
suas habilidosas mãos - mãos que um dia seriam cortadas, caso voltasse a viver em
sua terra natal.

Para Luciano Maia, que sorria como não sorria há muito tempo, o MaxForce
representava lucro exagerado, líquido e garantido. Afinal de contas, não era nada mais
que um pedaço de fio, certo?
Fim

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