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https://www.select.art.br/uma-noite-sem-lua-de-castiel-vitorino/
Uma jovem mulher negra está contra a janela, girando sua cabeça em movimentos
convulsivos, enquanto a trilha sonora sugere suspense e lembra as narrativas
intergaláticas dos primeiros filmes de ficção científica. Uma voz narra, em tom íntimo
e associação livre, uma série de sensações e divagações, como as experiências
transitórias que compõem o fluxo da vida. Em Uma Noite Sem Lua (veja na íntegra
aqui), da artista Castiel Vitorino, imagens, sons e palavras não coincidem e é do
lapso entre uma coisa e outra que conseguimos compreender, aos poucos e de
modo incompleto, como se constrói o universo abordado no vídeo.
Em algum momento, uma bunda com grafismos brancos rebola em ritmo de funk,
enquanto o som que acompanha o movimento é de uma música africana
contemporânea. Para além dos grafismos sobre o corpo, há um tecido com padrões
geométricos no fundo da cena, lembrando as fotografias de Seydou Keita. A
próxima imagem que veremos, no entanto, é a de um modelo planetário, apropriada
de um banco de imagens e seguida de um bezerro sendo parido. Quando essas
relações parecem coincidir, o tempo se dilata novamente, gerando um lapso entre o
som das guirlandas que se agitam sobre o corpo e a imagem da dança ao ritmo do
instrumento.
Ficção e memória
Filmado completamente em preto e branco, Uma Noite Sem Lua produz uma
sensação de sobriedade à narrativa, além de contribuir para o embaralhamento
temporal. Ao ficcionalizar uma narrativa sobre o passado, inscrevendo a presença
de uma travesti negra nessa história, Vitorino produz memória sobre aquilo que foi
apagado, questionando como o passado atua no presente ativamente. “Na
umbanda cultuamos almas, que são vidas, memórias. Fazer arte pra mim é cultuar
almas e memórias que não quero esquecer.”
Com textos que transitam entre português, espanhol, bakongo e pajubá, o vídeo
aponta para as coisas que não têm nome e, como a linguagem pode ser violenta ao
interromper e fixar fluxos e processos. “Não encontro registros antigos de travestis
na arte, na umbanda e no candomblé e de algum modo essas imagens recriam esse
passado também”, continua. “Eu reivindico a palavra travesti, porque é importante
reconhecer essa experiência no Brasil, mas me interessa o tornar-se insondável e
indescritível, para além das identidades. Quando digo que sou uma travesti negra,
perco a possibilidade de ser invisível e insondável, passo a ser explicada, passo a
ser linear.”
Curas efêmeras
“O bairro de Fonte Grande, em Vitória, Espírito Santo, onde nasci, nunca contou
com uma assistência psicológica para a população negra, então a produção de
saúde ali estava ligada às práticas de benzedeiras e macumbeiras e elas usam a
palavra cura, que é uma ideia que não existe na psicologia”, continua. “Para mim, a
mandinga, o encantamento, são modos perecíveis de se curar. Nomeio minha
prática de clínica da efemeridade, pela possibilidade de se modificar e assumir
formas transitórias que nos possibilitem viver o prazer.”
Uma Noite Sem Lua propõe uma série de discussões cruzadas, que se conectam de
forma indeterminada, em um tempo e em uma forma de vida que fogem de lugares
esquadrinhados. “E se eu abandonasse a linearidade e assumisse a encruzilhada?”
pergunta a artista em um dos momentos do vídeo.