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Uma noite sem lua, de Castiel Vitorino

Limites da identidade e da linguagem são tensionados


em vídeo que embaralha temporalidade linear
Leandro Muniz

https://www.select.art.br/uma-noite-sem-lua-de-castiel-vitorino/

Uma jovem mulher negra está contra a janela, girando sua cabeça em movimentos
convulsivos, enquanto a trilha sonora sugere suspense e lembra as narrativas
intergaláticas dos primeiros filmes de ficção científica. Uma voz narra, em tom íntimo
e associação livre, uma série de sensações e divagações, como as experiências
transitórias que compõem o fluxo da vida. Em ​Uma Noite Sem Lua (veja na íntegra
aqui)​, da artista Castiel Vitorino, imagens, sons e palavras não coincidem e é do
lapso entre uma coisa e outra que conseguimos compreender, aos poucos e de
modo incompleto, como se constrói o universo abordado no vídeo.

Com imagens produzidas e apropriadas, o trabalho aproxima criaturas marinhas,


escolas de samba, sexualidade, religião e cosmologias. A narrativa não linear
proporciona uma experiência em espiral e gera comentários inconclusos – ainda
que eloquentes – sobre travestilidade, umbanda, tarô e raça, etc.

Em algum momento, uma bunda com grafismos brancos rebola em ritmo de funk,
enquanto o som que acompanha o movimento é de uma música africana
contemporânea. Para além dos grafismos sobre o corpo, há um tecido com padrões
geométricos no fundo da cena, lembrando as fotografias de Seydou Keita. A
próxima imagem que veremos, no entanto, é a de um modelo planetário, apropriada
de um banco de imagens e seguida de um bezerro sendo parido. Quando essas
relações parecem coincidir, o tempo se dilata novamente, gerando um lapso entre o
som das guirlandas que se agitam sobre o corpo e a imagem da dança ao ritmo do
instrumento.

A bunda, inclusive, é um assunto importante ao longo do vídeo, como uma


exacerbação crítica das experiências de fetichização de corpos dissidentes no
contexto artístico. Ao longo de toda a modernidade, a relação com corpos não
brancos, não cis, não heterossexuais, não ocidentais, foi tomada como objeto, com
seus efeitos na produção contemporânea, que por vezes compreende essa prática
criticamente ou apenas reproduz os mesmos modos de operar. Em ​Uma Noite Sem
Lua​, ela aparece, ao mesmo tempo, como afirmação do próprio prazer e ironia com
essas diversas formas de fetichização, que são tensionadas na superfície da
imagem.
Entre o fluxo e a violência

Castiel Vitorino se define como psicóloga, artista e macumbeira, tendo participado


de uma série de cursos livres que expõem a multiplicidade de sua prática, que vai
de aquarelas de pequenas dimensões a instalações imersivas e vídeos. O interesse
por participar do circuito de galerias e museus acontece durante sua formação em
psicologia, na UFES, em 2016. “Mas minha experiência com o fazer artístico
antecede isso, minha família participava de rodas de samba e de congo e ali
começa minha experiência estética” diz a artista à ​seLecT​. “Sou de origem bantu e,
para nós, a vida não é identitária, é energia. Ser é ter energia e movimentar-se e
isso é experimentado de modos diferentes de acordo com as possibilidades e
momento de cada um e cada ser, não só os humanos.”

Essa tensão entre reconhecer as imposições dos marcadores sociais de gênero,


raça e classe e manter o desejo ligado ao funcionamento mais orgânico do corpo
aparece na narrativa sincopada de Uma Noite Sem Lua. O vídeo, comissionado pelo
projeto KUIR, com financiamento da Subprefeitura de Friedrichshain-Kreuzberg em
Berlim, constrói a narrativa de uma forma que não centraliza o papel do sujeito. “Eu
prefiro ser peixe”, diz Vitorino em algum momento do trabalho.

Essa descentralização e sua consequente abertura para uma certa indeterminação


das relações – entregues ao fluxo – também opera como uma crítica de
pressupostos psicanalíticos, expondo os limites e possibilidades de expansão na
construção do conhecimento. “A psicanálise fundamenta a ideia de sujeito, com sua
faculdade de pensar e sentir a partir de uma cognição. Essa é uma experiência com
processo de subjetivação que implica uma compreensão ocidental de vida,
excluindo uma série de seres. Na própria forma de pensar existe uma experiência
colonial, racista etc.”, diz Vitorino. “A linguagem é uma grande questão para a arte e
para psicologia, porque nos tornamos sujeitos a partir da língua que nos coloniza. O
tempo e a gramática dessa língua criminalizam aquilo que é contraditório e não
linear.”

Ficção e memória

Filmado completamente em preto e branco, Uma Noite Sem Lua produz uma
sensação de sobriedade à narrativa, além de contribuir para o embaralhamento
temporal. Ao ficcionalizar uma narrativa sobre o passado, inscrevendo a presença
de uma travesti negra nessa história, Vitorino produz memória sobre aquilo que foi
apagado, questionando como o passado atua no presente ativamente. “Na
umbanda cultuamos almas, que são vidas, memórias. Fazer arte pra mim é cultuar
almas e memórias que não quero esquecer.”

Com textos que transitam entre português, espanhol, bakongo e pajubá, o vídeo
aponta para as coisas que não têm nome e, como a linguagem pode ser violenta ao
interromper e fixar fluxos e processos. “Não encontro registros antigos de travestis
na arte, na umbanda e no candomblé e de algum modo essas imagens recriam esse
passado também”, continua. “Eu reivindico a palavra travesti, porque é importante
reconhecer essa experiência no Brasil, mas me interessa o tornar-se insondável e
indescritível, para além das identidades. Quando digo que sou uma travesti negra,
perco a possibilidade de ser invisível e insondável, passo a ser explicada, passo a
ser linear.”

Falar e nomear, paradoxalmente, são ao mesmo tempo ações que implicam


violência, mas também o meio para a formulação e dissolução do problema – ainda
que essas experiências sejam transitórias e indiretas.

Curas efêmeras

“O bairro de Fonte Grande, em Vitória, Espírito Santo, onde nasci, nunca contou
com uma assistência psicológica para a população negra, então a produção de
saúde ali estava ligada às práticas de benzedeiras e macumbeiras e elas usam a
palavra cura, que é uma ideia que não existe na psicologia”, continua. “Para mim, a
mandinga, o encantamento, são modos perecíveis de se curar. Nomeio minha
prática de clínica da efemeridade, pela possibilidade de se modificar e assumir
formas transitórias que nos possibilitem viver o prazer.”

Se a violência é apontada no vídeo, é com o objetivo de dissolvê-la para alcançar o


prazer, reiteradamente interceptado pelo olhar, ação e compreensão dos sujeitos
hegemônicos. “Muitos artistas negros no Brasil falam de violência e claro que isso
tem que acontecer, porque é uma realidade, mas nunca me identifiquei com essas
práticas que reencenam a dor e queria falar do que me faz feliz”, complementa.

Uma Noite Sem Lua propõe uma série de discussões cruzadas, que se conectam de
forma indeterminada, em um tempo e em uma forma de vida que fogem de lugares
esquadrinhados. “E se eu abandonasse a linearidade e assumisse a encruzilhada?”
pergunta a artista em um dos momentos do vídeo.

Se a dissociação entre as partes do trabalho opera como uma crítica das


expectativas sobre corpos dissidentes, também opera como uma forma de
construção do conhecimento que reconhece sua não linearidade. A compreensão
da experiência se dá aos poucos, de forma incompleta e nem sempre pelas vias
mais previsíveis. Visto completamente, ou apenas em fragmentos, Uma Noite Sem
Lua fala de um conhecimento incompleto sobre o sujeito, sobre o mundo e suas
relações.

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