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É pRECTSO
QUE o ESCÂNDALO ACONTEÇA

Ut'r sxal4s ÂTENTo mostra que na Bíb1ia e nos Evangelhos


existe uma concepção original e ignorada do desejo e seus
conflitos. Para apreender sua antiguidade podemos remon-
tar ao relato da Queda no Gênesis,. ou à segunda metade do
Decálogo, inteiramente consagÍada à proibição da violên-
cia contra o próximo.
O sexto, sétimo, oitavo e nono mandamentos são tão
simples quanto breves. Eles proíbem as violências mais gra-
ves por ordem de gravidade:

Não matarás.
Não cometerás adultério.
Não roubarás.
Não levantarás falso testemunho contra o próximo.

O décimo e ultimo mandamento diferencia-se nitida-


mente dos que o precedem, seja por seu tamanho, seja por
seu objeto: em yez de proibir tma dção, ele proíbe um de-
sejo:

* R. Schwaggel Brauchrn wir einen Siindenbock. Munique: Kôsel, 1978, p. 89;


Jean Michel Oughourlian, Un mime nommé désir. Pans: Grasset, 1982, p. 38-44.
Não cobiçarás a casa do reu próximo, não desejarás a sua mu- desejo dos bens do próximo. Se esse desejo é o mais comum
lher, nem o seu escravo, nem a sua escraya, nem o seu boi, de todos, o que aconteceria se, ao invés de serproibido, fos-
nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu se tolerado e mesmo encorajado?
próximo. A guerra seria perpéfua no seio de todos os grupos hu-
(ExZO,t7) manos, de todos os subgrupos, de todas as famílias. A por-
ta estaria escancaradapara o famoso pesadelo de Thomas
Apesar de não serem realmente enganosas, as traduções Hobbes, aluta de todos contra todos.
modernas lançam os leitores numa falsa pista. O verbo "co- Para pensar que as proibições culturais são inúteis, como
biçar" sugere tratar-se aqui de um desejo fora do comum, repetem sem muita reflexão os demagogos da "moderni-
um desejo perverso reservado aos pecadores empederni- dade", é preciso aderir ao individualismo mais extremo,
dos. Mas o termo hebreu traduzido por "cobiçar" significa aquele que pressupõe a autonomia totai dos indiüduos, ou
simplesmente "desejar". É ele que designa o desejo de Eva seja, a outonomid de seus desejos. Em outros teÍmos, é preciso
pelo fruto proibido, o desejo do pecado original. A ideia de pensar que os homens tendem naturalmente a não desejar
que o Decálogo consagraria seu mandamento supremo, o os bens do próximo.
mais longo de todos, à proibição de um desejo marginal, re- Basta observar duas crianças ou dois adultos disputando
servado a uma minoria, não é muito verossímil. O décimo algo de pouco valor para compreender que esse postulado é
mandamento deve tratar do desejo de todos os homens, do falso. É o postulado oposto, o único realista, que se encon-
próprio desejo. tra subentendido pelo décimo mandamento do Decálogo.
Se o Decálogo proíbe o desejo mais frequenre, será que Se os indivíduos tendem naturalmente a desejar o que
não mereceria a censura que é dirigida de forma quase unâ- seus próximos possuem, ou mesmo aquilo que eles simples-
nime pelo mundo moderno às proibições religiosas? O dé- mente desejam, então existe no interior dos grupos huma-
cimo mandamento não sucumbiria à tentação gratuita de nos uma tendência muito forte para os conflitos originários
proibir, a esse o ódio irracional pela tiberdade que os pensa- de rivalidades. Sem uma força de contrapeso, tal tendência
dores modernos condenam na religião em geral e na tradi- ameaçaria permanentemente a harmonia e até a sobrevi-
ção judaico-cristã em parricular? vência de todas as comunidades.
Antes de condenarmos as proibições como "inutilmente Os desejos rivalitários são ainda mais temíveis por ten-
repressivas", antes de repetirmos, extasiados, a fiSrmula que derem a se reforçar reciprocamente. É o princípio da escala-
se torÍrou famosa pelos "acontecimentos de maio de 6g" da, daprogressão ascendente que dirige tal tipo de conflito.
("é proibido proibir"), convém nos inrerrogarmos sobre as Esse é um fenômeno tão banal, tão conhecido nosso, tão
implicações do desejo definido no décimo mandamenro, o contrário à ideia que fazemos de nós próprios, e por con-

zo Eu vra SaramÁs carR coMo urr,r n-rr-Ârrai,aco I z7


I RsmÉ Gixaau
seguinte tão humilhante, que preferimos afastá lo de nossa do desejo. Acreditamos que o desejo seja objetivo ou subje-
consciência e fingir que ele não existe, mesmo sabendo que tivo, mas na realidade ele repousa sobre um outro que va-
isso não é verdade. Essa indiferença com relação ao real é lorizaos objetos, o terceiro mais próximo, o próximo' Para
um luxo que as pequenas sociedades arcaicas não podiam manter a paz eÍfiÍe os homens, é preciso definir a proibição
mode-
se oferecer. em função dessa temível constatação: o próximo é o
O legislador que proíbe o desejo dos bens do próximo lo de nossos desejos. É isso que chamo de desejo mimético'
está tentando resolver o problema número um de qualquer
comunidade humana: a violência interna.

Nem sempre o desejo mimético é conflituoso' mas com


frequência é, e isso por razões que o décimo mandamento
pró-
Ao lermos o décimo mandamento, temos a impressão de torna evidentes. O objeto que desejo a exemplo de meu
assistir ao processo intelectual de sua elaboração. Para im- ximo será exatamente aquele que o próximo' por sua vez'
desejará conservar, reservar Para uso próprio' não
permi-
pedir que os homens lutem entre si, o legislador busca, em
primeiro lugar, proibir-lhes todos os objetos que eles inces- tindo que ninguém o prive dele sem luta' Meu desejo será
para
santemente disputam, e decide elaborar sua lista. No en- contrariado, mas em vez de resignar-se e deslocar-se
tanto, logo percebe que esses objetos são excessivamente outro objeto, erngoo/o das vezes irá emperrar' fortalecer-se'
numerosos e que sua enumeração é impossível. Assim, in- imitando mais do que nunca o desejo de seu modelo'
terrompe o procedimento, renuncia a colocar a ênfase nos A oposição exaspera o desejo, principalmente quando
de
objetos, sempre mutantes, e volta-se para aquilo, ou me- provém daquele ou daquela que inspira esse desejo' Se
thor, para aquele que está sempre presente: o próximo, o início ela não provêm dele, logo irá provir, pois se a imita-
a rivalidade, a rivalidade' em
vizinho, aquele cujos bens é claro que todos nós desejamos. ção do desejo próximo gera
Se os objetos que desejamos sempre pertencem ao pró- contrapartida, gera a imitação.
ximo, é o próximo, evidentemente, que os torna desejáveis. O surgimento de um rival parece confirmar o fato de
que o desejo é bem-fundado, o valor imenso do objeto
de-
Em consequência, na formulação da proibição, o próximo
da hostili
deve suplantar os objetos, e efetivamente ele os suplanta, na sejado. A imitação é reforçada no interior mesmo
dade, mas os rivais fazemde tudo para esconder do
outÍo e
última parte da frase, que proíbe não mais objetos enume-
rados um a um, mas tudo que pertence ao próximo. esconder de si próprios a causa desse reforço'
O que o décimo mandamento esboça, sem definir expli- A recíproca é verdadeira' Imitando seu desejo' dou a

meu rival a impressão de que ele possui boas razões de


de-
citamente, é uma "revolução copernicana" na compreensão

J}r rrl,r Sr',rsÁs cÀl11 co\lo tru tcl,iltr"tco I z9


z8 | Rrxí: GrrurRrr
mais "indi-
sejar o que deseja, de possuir o que possui, redobrando a damente adorar a nós mesmos, que nos cremos
que o Levítico
intensidade de seu desejo. vidualistas" .'É,patacortar tudo isso pelaruiz
'Amarás teu próximo como
Em geral, a posse tranquila enfraquece o desejo. Dando contém o famoso mandamento:
a meu modelo um rival, de algum modo eu lhe restituo o a d mesmo", ou seja, tu não o amarás
nem mais nem menos
desejo que ele me empresta. Forneço um modelo a meu que a ti próprio.
a se exaspe-
próprio modelo, e o espetáculo de meu desejo reforça o seu A rivalidade dos desejos tende não somente
no momento preciso em que, opondo-se a mim, ele reforça rar, mas fazê-lo se difunde nos arredores'
transmitindo-se a
de falsa infininrde'
o meu. Por exemplo, esse homem cuja mulher eu desejo, terceiros tão ávidos quanto nós próprios
é a rivali
talvez tivesse deixado, com o tempo, de desejá-la. Seu de- A principal fonte da violência entre os homens
sejo estava morto, e em contato com o meu, que está vivo, dade mimética. Ela não é acidental, mas
tampouco é fruto
"instinto de agressão" ou de uma "pulsão agressiva"'
ele retorna à vida... de um
A natureza mimética do desejo revela o mau funcio- As rivalidades miméticas podem se tornar
tão intensas
roubam
namento habitual das relações humanas. Nossas ciências que os rivais chegam a se injuriar reciprocamente'
esposas e'
sociais deveriam levar em conta esse fenômeno, que sem poraa, um do outro, corromPem as respectivas
"a do assassinato'
dúvida merece ser qualificado de normal; mas elas se obsti- finalmente, não recuam nem mesmo diante
no-
nam em ver na discórdia algo de acidental, e em consequên- Como o leitor deve ter notado' acabei de mencionar
as quatro
cia tão imprevisível que se torna impossível levá-la em conta vamente, dessa vez na ordem inversa do Decálogo'
mandamentos que
no estudo da cultura. üolências maiores proibidas pelos quatro
Não apenas estamos cegos para as rivalidades miméticas precedem o décimo, aqueles já citados no
início deste capínrlo'
à
em nosso mundo, mas cada vez que celebramos o poder de Se o Decálogo consagrâ seu último mandamento
por reconhe-
nossos desejos, nós os glorificamos. Felicitamos a nós mes- proibição do desejo dos bens do próximo' é
mos por carregarmos um desejo que tem "a expansão das pelas violências
cer lucidamente nesse desejo o responsável
coisas infinitas", mas não vemos o que esse infinito dissimu- proibidas nos quatro mandamentos que o precedem'
la: a idolatria do próximo, que é necessariamente associada Se deixássemos de desejar os bens
do próximo' Ítunca se-
de adultério' nem
à idolatria de nós mesmos, mas que se conjuga mal com ríamos culpados nem de assassinato' nem
décimo manda-
esta última. de roubo, nem de falso testemunho' Se o
os quatro man-
Os conflitos inextricáveis que resultam de nossa dupla mento fosse respeitado, tornaria supérfluos
idolatria são a principal fonte da violência humana. Estamos damentos que o Precedem'
com as
tão mais destinados a dirigir a nosso próximo uma adoração Ao invés de começar pela causa e de prosseguir
filosófrca' o Decá-
que se transforma em ódio que buscamos mais desespera- consequências, como faria uma exposição

Curato Eu vre SaraNÁs cAiR coMo urt'l nrrÂrnlurco | 3r


3o I ReNÉ
Iogo segue a ordem inversa. Ele se ocupa primeiramente Em suma, à medida que seu antagonismo inflama-se, os
do
mais urgente: para afastar a violência, proíbe antagonistas passam, paradoxalmente, a se assemelhar cada
as ações üolen_
tas. Em seguida ele se volta paraacausa e vez mais. Eles se opõem tão mais implacavelmente quanto
descobre o desejo
inspirado pelo próximo. portanto, é isso que mais sua oposição esmaece as diferenças reais que antes os se-
ele proíbe, mas
ele só pode proibilo na medida em que os paravam. Os sentimentos de inveja, de ciúmes e de ódio uni-
obietos desejados
sejam legalmente possuídos por um dos dois formizarn aqueles que colocam em oposição, mas em nosso
rivais. Elà não
pode desestimular todas asrivalidades de desejo. mundo há uma recusa de se pensar nessas paixões em função
das semelhanças e das identidades incessantemente geradas
por elas. Só se dá ouúdos à celebração enganosa das diferen-
ças, cada vez mais florescente em nossas sociedades, não por-
Se examinarmos as proibições das sociedades arcaicas que as diferenças reais estejam crescendo, mas por estaÍem
à luz
do décimo mandamento, iremos constatar que, embora desaparecendo.
não sejam tão lúcidas quanto este último, também
elas ten_
tam proibir o desejo mimético e suas rivalidades.
- As proibições aparentemente mais arbitrárias não são fruto
nem de uma 'heurose" qualquer nem do ressentimento A revolução anunciada e preparada pelo décimo manda-
de
velhos ranzinzas cuja única preocupação seria mento expande-se nos Evangelhos. SeJesus nunca fala em
impedir o diver_
timento dos jovens. Em seu princípio, as proibições termos de proibições e sempre em termos de modelos
nada têm
de caprichoso ou mesquinho, repousando numa e de imitação, é por levar ao extremo a lição do décimo
intuição se_
melhanre à do Decálogo, mas sujeita a todo tipo mandamento. Não é por narcisismo que ele recomenda
de confusões.
Muitas leis arcaicas, especialmente na África que o imitemos, mas para nos afastar das rivalidades mi-
,fazemmatar
todos os gêmeos que nascem na comunidade, méticas.
ou apenas um
só gêmeo de cada par. Sem dúvida, essa Exatamente a que a imitação de Jesus Cristo deve se re-
regra é absurda, mas
não prova de modo algum "a verdade do rerativismo ferir? Não aos seus modos de ser ou seus hábitos pessoais:
cur-
tural". As culruras que não toleram os gêmeos confundem nunca se trata disso nos Evangelhos. Jesus tampouco pro-
sua semelhança natural, de ordem biológica, põe uma regra de vida ascética no sentido de Thomas de
com os efeitos
"indiferenciadores" das rivalidades
miméticas. euanto mais Kempis e de sua célebre lmitação de Cnsto, por mais admi
essas rivalidades exasperam_se, mais rável que essa obra seja. O queJesus nos convida a imitar é
os papéis de modelo, de
obstáculo e de imitador tornam_se intercambiáveis seu próprio desejo, é o impulso que o condtzàrneta que ele
no inte_
rior da oposição mimédca. mesmo se fixou: assemelhar-se ao máximo a Deus Pai.

3z I RnNÉ Grnarn Eu vra SxuNÁs cÂrR coMo uu nrúlrr,.r.ccl | 33


O convite para imitar o desejo de Jesus pode parecer ele sabe muito bem que, para impedir os conflitos, é preciso
paradoxal, pois Jesus não pretende possuir desejo próprio, começar com as proibições.
um desejo "propriamente seu". Contrariamente ao que nós No entanto, o inconveniente das proibições é que elas
mesmos pretendemos, ele não pretende "ser ele mesmo", não cumprem seu papel de forma satisfatória. Como são
ele não se vangloria de "só obedecer a seu próprio desejo". Paulo viu claramente, seu caráter predominantemente ne-
Seu objetivo é tornar-se a imagem perfeita de Deus. Assim, gativo estimula necessariamente em nós a tendência mimé-
ele consagra todas suas forças para imitar esse Pai. Convi- tica à transgressão. A melhor maneira de prevenir a violência
dando-nos a imitá-lo, ele convida-nos a imitar sua própria consiste não em proibir objetos, ou mesmo o desejo rivali-
imitação. tário, como faz o décirno mandamento, mas em fornecer
Longe de ser paradoxal, esse convite é mais razoável que aos homens o modelo que, ao invés de arrastá-los parâ as
o de nossos modernos gurus. Estes nos convidam a fazer o rivalidades miméticas, irá protegê-los delas.
contrário do que eles próprios fazem, ou pelo menos afir- Pensamos muitas vezes imitar o verdadeiro Deus e na
manl fazer. Cada um deles pede a seus discípulos que imi- verdade estamos imitando falsos modelos de autonomia
tem nele o grande homem que não imita ninguém. Jesus, e de invulnerabilidade. Ern vez de nos tornarmos autôno-
ao contrário, convida-nos a fazer aquilo que ele proprio faz,
mos e invulneráveis, estaremos, desse modo, lançando-nos
tornando-nos, como ele, um imitador de Deus Pai. a inexpiáveis rivalidades. O que a nossos olhos diviniza tais
Por queJesus considera o Pai e a si próprio como os me-
modelos é seu triunfo em rivalidades miméticas cuja insig-
lhores modelos para todos os homens? Porque nem o Pai nificância é dissimulada por sua violência.
nem o Filho desejam avidamente, egoisticamente. Deus O mandamento que prega que imitemosJesus não surge
"faz o sol levantar-se sobre os bons e sobre os maus". Dá aos
num universo isento de imitação, mas dirige-se a seres ei-
homens sem contar, sem marcar entre eles a menor diferen- vados de mimetismo. Os não cristãos imaginam que, Para
ça. Deixa as más ervas crescerem junto com as boas até o se converter, deverão renunciar a uma autonomia que to-
tempo da colheita. Se imitarmos o desapego divino, nunca a dos os homens possuem naturalmente, uma autonomia da
armadilha das rivalidades miméticas irá se fechar sobre nós. qual Jesus desejaria privá-los. Na realidade, quando imita-
É por isso queJesus diz: "Peçarne lhes será concedido..."
mosJesus, descobrimos que desde sempre somos imitado-
Quando Jesus declara que, longe de abolir a Lei, ele a res. Nossa aspiração à autonomiafaz corn que ajoelhemos
cumpre, está formulando uma consequência lógica de seu diante de seres que, mesmo não sendo piores que nós, não
ensinamento. O objetivo da Lei é apaz entre os homens.Je-
deixam de ser maus modelos, pelo fato de que é impossível
sus nunca despreza a Lei, mesmo quando ela assume a for-
imitá-los sem cair com eles na armadilha das rivalidades
ma das proibições. Diferentemente dos autores modernos, inextricáveis.

aa I Rr"-É Grx..qt,
l.lt, r-r.r 5al,tr",lts ct\1ii {ta}.Àr() r lr't iri,r,j-ltl'rri;tt I 35
A autonomia que sempre acreditamos estar prestes a tado daqueles que tomamos como modelos, mas inúmeros
conquistar, imitando nossos modelos de poder e de prestí- comportamentos, atitudes, saberes, preconceitos, preferên-
gio, é apenas o reflexo das ilusões projetadas pela nossa ad- cias etc., ern meio aos quais o empréstimo com consequên-
miração por eles, tão menos consciente de seu mimetismo cias mais pesâdas, o desejo, passa muitas vezes despercebido.
quanto mais mimética for. Quanto mais formos "orgulho- A única cultura realmente nossa não é aquela em que
sos" e "egoístas", mais estaremos à mercê dos modelos que nascemos, mas a cultura cujos modelos imitamos na idade
nos e§magam. em que nosso poder de assimilação mimético é máximo. Se
seu desejo não fosse mimético, se as crianças não escolhes-
sem necessariamente como modelos os seres humanos ao
seu redor, a humanidade não teria nem linguagem nem cul-
Embora o mimetismo do desejo humano seja o grande res- tura. Se o deseJo não fosse mimético, não seríamos abertos
ponsável pelas violências que nos abatem, não se deve con- nem ao humano nem ao divino, É nesse último domínio,
cluir daí que o desejo mimético seja algo ruim. Se nossos necessariameíte, que nossa incerteza é maioq e nossa ne-
desejos não fossem miméticos, ficariam fuados para sem- cessidade de modelos mais intensa.
pre em objetos predeterminados, constituindo uma forma O desejo mimético nos faz escapar da animalidade. Ele
particular de instinto. Os homens não poderiam mudar de é responsável pelo melhor e o pior em nós, tanto por aquilo
desejo mais do que as vacas em um pasto. Sem desejo mi que nos coloca abaixo do animal quanto por aquilo que nos
mético, não haveria nem liberdade, nem humanidade. O eleva acima dele. Nossas intermináveis discórdias são o pre-
desejo mimético é intrínsecamente bom.
ço de resgate de nossa liberdade.
O homem é a criatura que perdeu parte de seu instinto
animalpara ter acesso ao que chamamos de desejo. lJmavez
§lue suas necessidades natuÍâis tenham sido satisfeitas, os ho-
mens desejam intensamente, mas não sabem exatamente o Vocês irão objetar: se arü,talidaÃ"emimética desempenha um
quê, pois nenhum instinto os guia. Eles não possuem desejo papel essencial nos Evangelhos, por queJesus não nos ad-
próprio. O próprio do desejo é não ser próprio. Para desejar verte contra ela? Na verdade, ele nos adverte, mas nós não
verdadeiramente, temos de recorrer aos homens que nos ro- sabemos disso. Quando aquilo que ele diz opõe-se a Írossas
deiam, temos de tomar emprestados seus desejos. ilusões, nós não o escutamos.
Com frequência, esse empréstimo é realizxd6 sem que As palawas que designam a rivalidade mimética e suas
aquele ç1ue emprestou ou aquele que tomou emprestado consequências são o substantivo skandalon e o verbo skanda-
percebam isso. Não é apenas o desejo que pegamos empres- Liznn. Nos Evangelhos sinóticos,Jesus consagra ao escânda-

3e I nrNÉ Grnano Eu vra SnrnNÁs cArR coMo ulr nrúneeco | 37


lo um ensinamento notável, tanto por sua extensão quanto duo que seguiria, como sua própria sombra, um obstáculo
por sua intensidade. invisívelno qual incessantemente ele vem tropeçaÍ.
"Infelíz daquele por quem o escândalo chega!" Jesus re-
Como o termo hebreu que ele tradtz, "escândalo" sig-
serva sua advertência mais solene aos adultos que arrastam
nifica não um desses obstáculos ordinários que podem ser
as crianças à. infernal prisão do escândalo. Quanto mais a
facilmente evitáveis depois de nos termos chocado contra
imitação for inocente e confiante, com mais facilidade ela se
ele uma primeira vez, mas um obstáculo paradoxal quase
escandaliza, e maior é a culpa em se abusar disso.
impossível de se evitar: de fato, quanto mais nos repele,
mais o escândalo nos atrai. Quanto mais tenha se ferido no
Os escândalos são tão temíveis que, para nos advertir
passado, mais vigorosamente o escandalizado irá se lançar
contra eles, Jesus recorre a um estilo hiperbólico que não
the ê habitual: "Se tua mão ou teu pé te escandalizam, corta-
outÍavez contra ele.
-os...; se teu olho te escandaliza, arranca-o." (Mateus 18, 8-9).
Para compreender este estranho fenômeno, basta reco-
Os freudianos dão uma interpretação puramente sinto-
nhecer nele o que acabei de descrever, o comportamento
mática da palavra escândalo. Seu preconceito hostil impede-
dos rivais miméticos que, proibindo um ao outro o obje-
-os de reconhecer nessa ideia a definição autêntica daquilo
to que cobiçam, reforçam cada vez mais seu duplo desejo.
que eles chamam de "compulsão de rePetição".
Colocando-se sistematicamente no contrapé um do outro
Para tornar a Bíblia psicanaliticamente correta, os trâ-
para escapar à sua inexorável rivalidade, eles sempre voltam
a chocar-se contra o obstáculo fascinante que, de agora em
dutores recentes, aparentemente mais intimidados por
Freud do que pelo Espírito Santo, buscam eliminar todos
diante, um representa para o outro.
os termos censurados pelo dogmatismo contemporâneo.
Os escândalos não se diferenciam do falso infinito da ri-
validade mimética. Eles secretam em quantidades crescentes
Por exemplo, substituem Por eufemismos enfadonhos o
admirável "pedra de tropeço" de nossas Bíblias antigas, a
a inveja, o ciúme, o ressentimento, o ódio, todas as toxinas
única tradução que caPta a dimensão rePetitiva e "aditiva"
mais nocivas, não apenas para os protagonistas, mas para to-
dos escândalos.
dos que se deixam fascinar pela intensidade dos desejos de
rivalidade. Jesus não se surpreenderia ao ver seu ensinamento ig-
norado, pois não tem qualquer ilusão sobre a recepção de
Na onda crescente dos escândalos, cada represália evo-
sua mensagem. À glória que vem de Deus, invisível neste
ca uma nova, mais violenta que a precedente. Se nada vier
baixo mundo, a maioria prefere a g]ôia que vem dos ho-
estancá-la, a espiral irá necessariamente desembocar nas vin-
mens, aquela que multiplica os escândalos à sua passagem.
ganças em série, fusão perfeita de violência e de mimetismo.
Ela consiste no triunfo em rivalidades miméticas frequente-
A palavra grega skadahzein vem de um verbo que signifi-
"mancar". mente organizadas pelos poderes deste mundo: militares,
ca Ao que se assemelha um manco? A um indivi

Eu vrn SnraNÁs cnrR coMo uu ner-Àvreco | 39


3S | furvÉ GrRano
políticos, econômicos, esportivos, sexuais, artísticos, inte-
lectuais... e mesmo religiosos. II
A frase "É necessário que o escândalo aconteça" nada tem
a ver nem com a fatalidade antiga nem com o "determinis-
O crcr-o DE vIoLsNCIA MIMÉTICA
mo científico". Tomados individualmente, os homens não
são por obrigação dedicados às rivalidades miméticas, mas
emrazáo do grande número de indivíduos que as compõem,
as comunidades não conseguem escapar delas. Assim que o
primeiro escândalo acontece, ele gera outros, e o resultado
ArNoe revonÁvEl- e Jesus no momento de sua entrada em
são ctisesmíméticas qte não param de se espalhar e se agravar.
Jerusalém, a multidão volta-se subitamente contra ele e sua
hostilidade torna-se tão contagiosa que acaba se propagan-
do aos mais diversos indivíduos. O que domina os relatos
da Paixão, principalmente nos três primeiros Evangelhos,
é a uniformidade das reações entre as testemunhas, é a oni-
potência do coletivo, ou, em outros termos, do mimético.
Nos Evangelhos, todos os temas conduzem à Paixão. Os
escândalos desempenham um papel demasiadamente im-
portante para escapar dessa lei de convergência para a cruci-
ficação. Deve existir uma relação entre essas duas formas de
mimetismo violento, por mais estranhas uma à outra que
pareçam ser à primeira vista.
Pedro é o exemplo mais espetacular de contágio miméti
co. Seu amor porJesus não está em causa: ele é tão sincero
quanto profundo. No entanto, assim que o apóstolo mer-
gulha num ambiente hostil aJesus, não consegue impedir-
-se de imitar sua hostilidade. Se o primeiro dos discípulos, a
rocha sobre a qual a Igreja será fundada, sucumbe à pressão
coletiva, como pensar que ao redor de Pedro a humanidade
média irá resistir?
Para anunciar que Pedro irá negá-lo, Jesus refere-se ex-
pressamente ao papel do escândalo, ou seja, do mimetismo

4o I ll"r:r.rí: GrnaRn
conflituoso, na existência do apóstolo. Os Evangelhos des- Os filhos repetem os crimes de seus pais precisamente
crevem-no como a marionete de seu próprio mimetismo, porque acreditam ser moralmente superiores a eles. Essa
incapaz de resistir às pressões sucessivas que são exercidas fàlsa diferença jâ é a ilusão mimética do individualismo
sobre ele a cada instante. moderno, a resistência máxima à concepção mimética, re-
A meu ver, os que buscam as causas da tríplice negação petitiva, das relações entre os homens, e é essa resistência,
unicamente no "temperamento" de Pedro, ou em sua "psi- paradoxalmente, que realiza a repetição.
cologia", estão longe do bom caminho. Eles não conseguem
enxergar nada na cena que ultrapasse o indivíduo pedro.
Acreditando ser possível traçar um "retrato" do apóstolo,
atribuem-lhe um "temperamento influenciável" ou, devido Pilatos também é dominado pelo mimetismo. Ele teria pre-
a outras formulas do mesmo tipo, destroem a exemplarida- fêrido pouparJesus. Se os Evangelhos insistem nessa prefe-
de do acontecimento, minimizando seu alcance. rência, não é para sugerir que os romanos sejam superiores
Sucumbindo ao mimetismo que não poupa nenhuma aos judeus, não é para distribuir notas boas e ruins entre os
das testemunhas da Paixão, Pedro não se distingue de seus perseguidores de Jesus, mas para sublinhar o paradoxo do
semelhantes, no sentido em que toda explicação psicológica poder soberano que, de alguma forma, perde-se na multi-
distinguiria aquele que roma por objero. dão por medo de opor-se a ela, para toÍnar uma vez mais
A utilização desse tipo de explicação é menos inocenre rlanifesta a onipotência do mimetismo.
do que possa parecer. A recusa à interpretação mimética, a O que motiva Pilatos, quando ele entregaJesus, é o medo
busca de causas puramenre individuais para a queda de pe- de uma revolta. Diz-se que ele demonstra "habilidade políti-

dro, equivale à demonstÍação, certamente inconsciente de ca". Sem dúvida, mas por que a habilidade política consiste
que no lugar de Pedro reríamos reagido de modo diferente, quase sempre em abandonar-se ao mimetismo coletivo?
não teríamos renegado Cristo. Até mesmo os dois ladrões crucificados ao lado de Jesus
É uma versão mais antiga dessa mesma manobra queJesus não constituem uma exceção ao mimetismo universal: eles
censura aos fariseus, ao vê-los erguendo úmulos aos profetas também imitam a multidão, vociferando como ela. Os seres
que seus pais mataram. Com frequência, as demonstrações mais humilhados, mais massacrados, comportam-se da mes-
espetaculares de piedade pelas vítimas de nossos predecesso- ma maneira que os príncipes desse mundo. Eles uivam com
res dissimulam uma vontade de nos justificarmos à sua custa: os lobos. Quanto mais somos crucificados, mais desejamos
"Se tivéssemos vivido no tempo de nossos pais,
dizem os fari- participar da crucificação de alguém mais crucificado ainda.
seus, não nos teríamos juntado a eles para derramar o sangue Em suma, do ponto de vista antropológico, a Cruz é o
dos profetas." momento em que os mil conflitos miméticos, os mil escân-

Eu vla S,u:,rrqÁs cAnl {toNÍo uNr RBr.ÂN,tp.\co |


4z I R.r.xÉ Çrnarn 43
dalos que se entrechocam violentamente durante a crise, quando eles passam ao alcance desse embalo. Não é preciso
entram de acordo contra o solitárioJesus. O mimetismo que invocar o sobrenatural para explícar isso. A transformação
divide, fragmenta e decompõe as comunidades é substirui do todos contrd todos que despedaça as comunidades em um
do por um mimetismo que reúne todos os escandalizados todos contra um q:ue as reúne e reunifica não se limita uni-
contra uma vítima única promovida ao papel de escândalo camente ao caso deJesus. Logo veremos outros exemplos.
universal.
Os Evangelhos esforçam-se em vão por chamar a aten-
ção para a prodigiosa força desse mimerismo, seja junto
aos cristãos, seja junto a seus adversários. É sobre esse Para entendeÍ como e por que o mimetismo que divide e
ponto, percebo agoÍa, que a resistência às análises propos- fragmenta as comunidades transforma-se em um mimetis-
tas por Raymond Schwager- e por mim mesmo é a mais mo que as mobiliza e reunifica contra uma vítima única, é
forte. Em TheJoy of BeingWrong,.. James Alison qualifica preciso examinar o modo pelo qual os conflitos miméticos
de "transcendental" a antropologia mimética, e o que essa evoluem. Para aiém de certo limiar de frustração, os anta-
denominação sugere é a dificuldade em que todos nos en- gonistas não se contentam mais com os objetos que eles
contramos de perceber algo que, no entanto, já é revelado disputam. Mutuamente exaspeÍados pelo obstáculo vivo, o
pelos Evangelhos. escândalo, que agoÍa cada qual constitui para o outro, os
Deveríamos recusar essa antropologia mimética em duplos miméticos esquecem o objeto de sua querela e vol-
nome de certa teologia? A mobilização da multidão conrra tam-se, furiosos, uns contra os outros. É contra o rival mi-
Jesus deveria ser vista como obra de Deus Pai, que, como as mético que cada um deles irá agora se encarniçar.
divindades da llíada, teria colocado os homens conrra seu Longe de destruir a reciprocidade das relações humanas,
Filho para cobrar antecipadamente por meio dele o Íesgate esse tipo de rivalidade torna-a mais perfeita que nunca, evi-
que eles não poderiam fornecer? Essa interpretação é con- dentemente no sentido das represálias, e não no das trocas
trária ao espírito e à letra dos Evangelhos. pacíficas. Quanto mais os antagonistas desejam diferençar-
Não há nada nos Evangelhos que sugira que Deus seja a -se, mais se tornam idênticos. A identidade cumpre-se no
causa da mobilização contraJesus. Basta o mimetismo. Os ódio pelo idêntico. É esse momento paroxístico que é en-
responsáveis pela Paixão são os próprios homens, incapazes carnado pelos gêmeos ou os irmãos inimigos da mitologia,
de resistir ao contágio violento que afeta a todos quando como Rômulo e Remo. É isso que chamo de enfrentamento
um arrebatamento mimético passa ao alcance, ou melhor, dos duplos.
Enquanto os antagonistas, no começo, ocupam posições
* Raymond Schwager. Braucherwir einen Si)ndenbock. Munique: Kosel, 1978. fixas no inteÍior de conflitos cuja estabilidade é garantida
** James Alison. TheJoy Of Being Wrozg. Nova York Crossroad, 1998.

aa I nr:r+* Gixano llu vra SataxÁs cAlR coMo um nsr.Ârlpeco i 45


pelo próprio encarniçamento, quanto mais eles se obsti- quem não sou causa de escândalo!" No decorrer de toda a
nam, mais o jogo dos escândalos transforma-os em uma história cristã, os próprios cristãos mostrarão tendência a es-
multidão de seres intercambiáveis. Nessa massa homogênea, colher Jesus como escândalo substirutivo, uma tendência a
os impulsos miméticos não encontram mais nenhum obstá- se perder e a se fundir na multidão dos perseguidores. Em
culo e alastram-se a toda velocidade. Essa evolução favorece consequência, para são Paulo, a Cruz é o escândalo por exce-
as mais estranhas reviravoltas, os mais inesperados reagru- lência. Observemos que o simbolismo da cnsz tradicional, o
pamentos. cruzamento de seus dois braços, torna visível a contradição
De início os escândalos parecem rígidos, imutavelmen- interna do escândalo.
te fixados ao mesmo antagonista, como se os antagonistas Os próprios discípulos não constituem exceção à lei
estivessem para sempre separados uns dos outros pelo ódio comum. Quando Jesus torna-se escândalo universal, to-
recíproco, mas nos estágios avançados dessa evolução ocor- dos eles são influenciados, em diversos graus, pela hos-
rem substituições, trocas de antagonistas. Os escândalos tilidade universal. Por essa razão, pouco antes da Paixão,
tornam-se "oportunistas". Eles se deixam fascinar facilmen-
Jesus dirige-lhes, no vocabulário do escândalo, uma espe-
te por outro escândalo cujo poder de atração mimética seja cial advertência para preveni-los sobre as faltas que os es-
superior ao deles. Em suma, os escândalos desviam-se de peram, talvez para amenizar seus remorsos, no momento
seu adversário inicial, dos quais pareciam inseparáveis, para em que compreenderem a covardia de seu mimetismo
adotar o escândalo de seus vizinhos. individual e coletivo: "Todos vós sereis escandalizados por
O que determina o poder de atração dos escândalos é o minho cdusd."
número e o prestígio daqueles que eles conseguem escanda- Essa frase não significa simplesmente que os discípulos
lizar. Os pequenos escândalos tendem a se fundir nos maio- serão perturbados e afligidos pela Paixão. QuandoJesus diz
res, e estes, por sua vez, itáo contaminar-se mutuamente, alguma coisa que parece banal, é preciso desconfiar. Aqui,
até que os mais fortes absorvam os mais fracos. Existe uma como em outros lugares, devemos atribuir à palavra "escân-
concorrência mimética dos escândalos, que continua até o dalo" sua significação forte, que é mimética. Jesus avisa a
momento em que o escândalo mais polarizador permanece seus discípulos que eles sucumbirão mais ou menos ao con-
como único em cena. Nesse momento, toda a comunidade tágio que se apodera da multidão, que todos participarão
é mobilizada contra um único e mesmo indivíduo. um tanto da Paixão, dolado dosperseguidores.
Na Paixão, esse indivíduo éJesus. Isso explica por queJe- Os escândalos entre indivíduos são os pequenos riachos
sus utiliza o vocabulário do escândalo para designar a si pró- que se fundem nos grandes rios da violência coletiva. Pode-
prio enquanto vítima de todos e para designar todos os que -se então falar de um arrebatamento mimético, que reúne
se polarizam contra ele. Ele exclama: "Felizes aqueles para num feixe único, contra a mesma vítima, todos os escân-

4o I Rr:rí: Crn.rno El vr.r S.rrc\:.is c,\nr í (,\1o rv Hr.r..irl'er;,1 | 47


dalos anteriormente independentes uns dos outros. Como acontecido de forma diferente. As substituições realizam-
um enxame de abelhas em torno de sua rainha, todos os es- -se espontaneamente, invisivelmente, por meio do som e
cândalos aglutinam-se contra a vítima única, e a seu redor. da fúria espalhados por toda paÍte. (No caso deJesus, como
A força que solda os escândalos uns aos outros é uma du- veremos adiante, houve a interferência de outros fatores,
plicação do mimetismo. A palavra escândalo dá impressão de que proíbern que vejamos nele uma vítima do acaso no
ser aplicável a coisas muito diferentes, mas na realidade tra- sentido em que o são a maioria das vítimas do mesmo tipo.)
ta-se sempre dos diversos momentos de um único e mesmo Pilatos é um administrador suficientemente experiente
processo mimético, ou desse pÍocesso em sua totalidade. pâra compreender o papel das substituições na questão que
Quanto mais sufocantes se tornam os escândalos pes- é solicitado a resolver. Os Evangelhos, por sua vez, contêm
soais, mais vontade de submergi-los num grande escândalo
a essa compreensão e compartilham-na conosco no famoso
apodera-se dos escandalizados. Isso é facilmente observável episódio de Barrabás.
nas paixões ditas políticas, ou no frenesi de escândalo que A preocupação romana com a legalidade sugeÍe a Pila-
tomou conta do mundo hoje globalizado. Quando um es- tos que não entregueJesus, ou, em outros tefmos, que não
cândalo muito sedutor passa por perto, os escandalizados ceda à multidão. Mas Pilatos também compreende que essa
são irresistivelmente tentados a se "aproveitar" dele e a gÍa- multidão não se acalmarâ sem umâ vítima. É por isso que
vitar a seu redor. lhe oferece uma compensação, propondoJhe a morte de
A condensação de todos os escândalos separados em um Barrabás em tÍoca deJesus.
escândalo único é o paroxismo de um processo que começa Do ponto de vista de Pilatos, Barrabás apresenta a van-
com o desejo mimético e suas rivalidades. Multiplicando- tagem de já estar legalmente condenado. Sua execução não
-se, estas suscitam uma crise mimética, a violência de todos irá constituir um desrespeito à legalidade. A principal preo-
contrd todos, q.ue acabaria por aniquilar a comunidade, caso, cupação de Pilatos não é impedir a morte de um inocente,
no final das contas, não se transformasse espontaneamente, mas limitar tanto quanto possível as desordens que amea-
automaticamente, em um todos contra um, graças ao qual é çariam prejudicar sua reputação de administrador nas altas
refeita a unidade da comunidade. esferas imperiais.
O fato de a multidão recusar Barrabás não significa de ma-
neira alguma que o Evangelho acuse o povo judeu de sentir
um ódio inexpiável por Jesus. Por muito temPo favorável a

Jesus, depois hesitante, a multidão só demonstra uma


A vítima de um arrebatamento mimético é escolhida pelo hosti-
próprio mimetismo, e ela substitui todas as outras vítimas lidade marcante no paroísmo da Paixão, e essa diversidade
que a multidão teria podido escolher se as coisas tivessem de atitudes é bastante característica das multidões miméti-

48 | ItaNÉ Graaan Eu vrx SarawÁs cÁI*. collrlo il,la nnlÂrtraco | 49


cas. Uma vez que a unanimidade seja atingida, a multidão ciais, um Pouco como todos os seres de exceção, indivíduos
irá se encarniçar contra a vítima que emerge do processo e diferentes dos outros, pelas mais diversas razóes' As vítimas
recusa-se a mudá-la. A hora das substituições passou, soou podem ser aleij ados, enfermos, miseráveis, desfavorecidos'
o momento da violência unânime. Foi isso que Pilatos com- indivíduos mentalmente retardados, mas também grandes
preendeu. Ao ver que a multidão recusa Barrabás, imediata- inspirados religiosos, comoJesus ou os profetas judeus' ou
mente lhe entrega Jesus. ainda, atualmente, grandes artistas ou pensadores' Todos
os povos têm tendência a rejeitar, sob um Pretexto ou ou-
tro, os indivíduos que escaPam de sua concepção do nor-
mal e do aceitável.
com os relatos dasviolên-
Reconhecer que há algo de típico, e mesmo de banal, na Quando comparamos a Paixão
crucificação, permite compreender um dos temas de Jesus: cias sofridas pelos profetas, constatamos que, efetivamente'

a semelhança entre sua morte e as perseguições de inúme- nos dois casos, trata-se sempre ou de violências diretamente
ros profetas antes dele. coletivas, ou de inspiração coletiva' A semelhança assinalada
Até hoje, muitos pensam que, se os Evangelhos aproxi- por Jesus é perfeitamente real, e logo veremos que ela não
se limita às violências descritas na Bíblia. os mesmos
tipos
mam a morte deJesus da dos profetas, é com o objetivo de
estigmatizar unicamente o povo judeu. É exatamente o que de vítimas podem ser encontrados nos mitos'
imaginava o antissemitismo medieval, por repousar, como Portanto, é preciso interpretar de modo muito concreto
todo antissemitismo cristão, numa incapacidade de com- a frase de Jesus sobre a analogia entre sua morte e a dos
preender a verdadeira natrtreza e a infinita exemplaridade profetas. Para confirmar a interpretação realista que estou
da Paixão. Há mil anos, numa época em que a influência propondo, é necessário comparar a Paixão não somente
cristã ainda não havia penetrado tão profundamente em com as violências cometidas contra os profetas no Antigo
nosso mundo, esse erro era mais desculpável do que hoje. Testamento, mas também, nos próprios Evangelhos' à exe-
"último
A interpretação antissemita ignora a intenção real dos cução daquele que os Evangelhos consideram o
Evangelhos. Segundo todas as evidências, é o mimetismo dos profetas", João Batista.
que explica o ódio das multidões contra os seres excepcio-
nais, comoJesus e todos os profetas, e não o pertencimento
étnico ou religioso.
Se João Batista é um profeta, sua
morte violenta, para "veri-
Os Evangelhos sugerem que em todas as comunidades,
e não somente entre os judeus, existe um processo mimé- ficar" doutrina deJesus, deve se assemelhar à morte violenta
a

tico de rejeição do qual os profetas são as vítimas preferen- deste último. Assim, nela deveríamos encontrar o arrebata-

Eu vre SarrrNÁs cAIR coMo urra nuÂuraco | 5r


5o I RrNÉ Grneno
illll .i

mento mimético e os outros traços essenciais da Paixão. E, As semelhançâs entre esse relato e a Paixão são notáveis'
efetivamente, eles aí se encontram. É fácil constatar que to- c não podemos simplesmente atribuí-las a um plágio' Os
dos esses traços estão presentes nos dois Evangelhos que con- cl0is texros não são "dublês" um dooutÍo. seus detalhes são
têm o relato da morte deJoão Batista, os dois mais antigos, o completamente diferentes. O que os torna semelhantes é
de Marcos e o de Mateus. seu mimetismo interno, representado de modo igualmente
Assim como a crucificação, o assassinato deJoão Batis- potente e original em ambos os casos'
ta não é diretamente coletivo, mas de inspiração coletiva. Portanto, no plano antropológico, a Paixão é mais típi.
Em ambos os casos, há um soberano, único capacitado a ca do que única: ela ilustra o tema maior da antropologia
declarar a morte e que finalmente a decreta, apesar de seu evangélica, o mecanismo vitimário que apazigua as comu-
desejo pessoal de poupar a vítima: Pilatos de um lado, He- rridades humanas e restabelece, ao menos provisoriamente'
rodes de outro. Nos dois casos, é por razões miméticas, sua tranquilidade.
para não se opor à multidão violenta, que o soberano re-
nuncia a seu próprio desejo e ordena a execução da vítima.
Assim como Pilatos não ousa se opor à multidão que exige
a crucificação, Herodes não ousa se opor a seus convida- O que descobrimos nos Evangelhos, tanto na morte deJoão
dos que exigem a cabeça deJoão Batista. grtirt, quanto na deJesus, é um processo cíclico de desordem
Nos dois casos, rudo resulta de uma crise mimética. Na c de reordenação que culmina e se perfaz em um mecanismo
"mecanismo"
história do profeta, é a crise do casamento de Herodes com de unanimidade vitimária. Emprego a palavra
para signific aÍ a íaturÍeza automática do processo e de
seus
Herodíades. João recrimina Herodes pela ilegalidade de seu
incons-
casamento com a mulher de seu irmão, Herodíades deseja resultados, assim como a incompreensão e mesmo a
se vingar, mas Herodes protegeJoão Batista. Para forçá-lo, a ciência dos ParticiPantes.
Esse mecanismo é também discernível em certos
textos
esposa arregimenta contra seu inimigo a multidão dos con-
vidados ao grande banquete de aniversário de seu esposo. bíblicos. Os mais interessantes, sob o asPecto do processo
Para atiçar o mimetismo desse bando e transformá-lo vitimário, são aqueles que os próprios Evangelhos aproxi-
mam da vida e da morte deJesus, aqueles que nos contam
a
em matilha sanguinária, Herodíades recorre à arte que os
gregos consideravam a mais mimética de todas, a mais ca- vida e a morte do personagem chamado o Servo de Iahweh
paz de mobilizar contra a vítima os participantes de um sa- ou Servo sofredor.
crifício: a dança. Herodíades faz sua filha dançar, e, a pedido O Servo é um grande profeta sobre o qual trata a parte
da dançarina, manipulada por sua mãe, todos os convidados do livro de Isaías que começa no capítulo 40, geralmente
exigem a cabeça deJoão. atribuído a um autor independente, o Segundo Isaías' ou

tr-| r,r.r S,r'r,ru.is (l'lll{ (-uM{} r nt iri:i-Àtltt'Lco | 53


sz I I{i:r'Í, (lrarno
grande, para o maior dos monarcas, parece-me um
Dêutero-Isaías. As passagens que evocam a vida e a morte pouco
desse profeta são suficientemente distintas daquelas proxi-
rrrt'squinho, um Pouco restrito'
mas para que seja possível reagrupá-las em quatro trechos babi-
Um dos temas do Segundo Isaías é o fim do exílio
de Ciro'
separados que fazem pensar em quatro grandes poemas, os
lirnico, terminado de modo feliz pelo famoso edito
cânticos do Servo de Iahweh. em particu-
Mas outros temas entrelaçam-se com o retorno'
O início do capítulo 40, o primeiro capítulo do Segundo lâr os temas do Servo de Iahweh que acabei de mencionar'
Isaías, não faz parte desses cânticos, mas, em certos aspec- deter-
Mais do que a obras construídas com um objetivo
tos, parece-me que deva ser anexado a eles: geológica,
ntinado, o texto citado faz pensar numa erosão
(' penso que devemos reconhecer aí uma representação
por
Uma voz clama: "No deserto, abri
irragens de uma dessas crises miméticas cujo traço
essen-
um caminho para lahweh; a transforma-
cial, como sabemos, é a perda das diferenças'
na estepe, aplainai cujo perpétuo enfrentamento
ção dos indivíduos ern duplos,
uma vereda para o nosso Deus. processo ao
clcstrói a cultura. Nosso texto assimila esse
dos
Seja entulhado todo vale,
clesmoronamento das montanhas e ao preenchimento
vales numa região montanhosa' Assim como
todo monte e toda colina sejam nivelados; as rochas
Transformem-se os lugares escarpados em planície, em massa
transformam-se em areia, o povo transforma-se
E as elevações, em largos vales.
rrmorfa, \tcapaz de escutar
"avoz que clama no deserto"'
as altu-
Então a glória de Iahweh há de revelar-se cstando sempre Pronto, em contrapartida' a corroer
na super-
l'as e a assorear as profundezas,paÍa permanecer
E toda carne, de uma s6 vez, o verá,
verdade'
Pois a boca de Iahweh o afirmou.
ficie de todas as coisas, para rejeitar a grandeza e a
das di-
(Is a0, 3-5)
Por mais inquietante que seja esse aplainamento
e da unifor-
fêrenças, essa imensa vitória da superficialidade
Nesse nivelamento, nesse achatamento universal, os midade, o profeta anseia por ele, err,tazáo da
contrapartida
exegetas modernos veem uma alusão à construção de uma epifania de-
firrmidavelmente positiva que ele prepara' uma
estrada para Ciro, rei da Pérsia, aquele que permitiu aos ju-
cisiva de lahweh:
deus voltar a Jerusalém.
Certamente a explicação ê razoâvel, mas um tanto sim- ...Então a glória de Iahweh há de revelar-se
plista. O texto fala de nivelamento, mas não fala de maneira E toda carne, de uma so vez, o verá'
banal. Ele se refere ao fato de modo tão grandioso que limi- Pois a boca de Iahweh o afirmou'
tar seu alcance apenas à construção de uma estrada, mesmo

s+ I Rgr.iú Grn:rno F}t vra S,qt,qNÁs caIR coNío l:rta nr'lÀitllaco | 55


tico é representado no Segundo Isaías com todo o esplendor
Essa epifania é profetizada aqui. Ela se realiza, segundo
cirracterístico dos grandes textos profeticos' Como todos os
todas as evidências, doze capitulos depois, no assassinato ciclos miméticos, este se assemelha aos precedentes e aos se-
coletivo que dá fim à crise, o assassinato do Servo sofredor. gurintes por seu dinamismo e sua estrutura fundamental' Ao
Apesar de sua bondade e de seu amor pelos homens, o Ser- nresmo tempo, é claro, ele comporta todo tipo de traços que
vo não é amado por seus irmãos e, no quarto e último can- pcrtencem apenas a ele e que não é necessário enumerar'
to, ele sucumbe nas mãos de uma multidão histérica que se A prova de que se trata exatamente da mesma sequên-
reuniu contra ele, vítima de um verdadeiro linchamento. cia ocorrida na vida e na morte do Cristo, aos olhos dos
Penso que para compreender bem o Segundo Isaías seja
r'lLlatro evangelistas, é que nos quatro Evangelhos encontra-
necessário traçar um grande arco que emerge do aplaina- ,-l-,o, , descrição da crise mimética, a descrição do Segundo
mento inicial, da indiferenciação violenta, e que se encerra lsaías que eu proprio acabei de citar, descrição que constitui
nos capítulos 52 e 53, no relato da morte violenta do Servo. o essencial da profecia de João Batista a respeito de Jesus'
E,m suma, esse arco liga a descrição da crise mimética à con-
l,embrar aos homens esse capítulo de Isaías, fazê-los pensar
sequência maior dessa crise, o linchamento do Servo sofre-
rressa descrição de crise e nesse anúncio de epifania divina
é
dor. Essa morte é o equivalente da Paixão nos Evangelhos, ir mesma coisa que profetizarJesus, é anunciar que
a vida e a
o assassinato coletivo do grande profeta rejeitado por seu nlorte deJesus setáo semelhantes àvida e à morte do profeta
povo. Como nos Evangelhos, a morte coletiva do profeta e a de um novo ci-
c1e outrora. Efarer alusão àquilo que chamo
revelação de Iahweh são um único e mesmo acontecimento.
clo mimético, uma nova erupção de desordem coroada pela
Umavez que seja apreendida a estrurura de crise e de lin- violência unânime do todos contra um mimêtico'
chamento coletivo que é a do Segundo Isaías, também pas- "a voz que clama no
João Batista é identificado como
samos a compreender que o conjunto constitui, assim como
cleserto" e seu anúncio profetico resume-se inteiramente na
a vida e a morte de Jesus nos Evangelhos, o que pode ser citação do capítulo 40 de Isaías. O que o profeta deseja pro-
chamado, a meu ver, de ciclo mimetico. A proliferação inicial |cttzar pode ser resumido da seguinte forma:
dos escândalos conduz, cedo ou tarde, a uma crise aguda, l).rrtavezmais encontramo-nos numa grande crise' e ela
em cujo paroxismo a violência unânime é liberada contra a terminará pela execução coletiva de um novo enviado de
vítima única, a vítima finalmente selecionada por toda a co- [)eus, Jesus. Essa morte violenta será, para Iahweh' a oca-
munidade. Esse acontecimento restabelece a antiga ordem sião de uma nova e suprema revelação'
ou estabelece uma nova, destinada, algum dia, a também
entrar em crise, e assim por diante.
Como em todos os ciclos miméticos, o conjunto é uma
epifania divina, uma manifestação de lahweh. O ciclo mimé-

'
I t r ri S\r.\\.i\ I 1ll{ ( {,:\ii} I \: lll Lirrl ',r"1 5,

5o I }}rníl (lrnai<n
ru
SaraNÁs

Pane cor.rrrRMÂR a presença nos Evangelhos daquilo que


chamo de "ciclo mimético", é preciso que nos voltemos para
uma noção, ou melhor, um personagem, muito desprezado
atualmente, mesmo pelos cristãos. Os Evangelhos sinóticos
chamam-no por seu nome hebreu, Satanás. O Evangelho de
João chama-o por um nome grego, diabo.
Na época em que, guiados pelo teólogo alemão Rudolf
Bultmann, todos os teólogos da moda "desmitologizavam"
as Escrituras sem qualquer cerimônia, eles não concediam
ao príncipe deste mundo sequer a honra de inscrevê-lo em
seu programa. Apesar do papel considerável que ele desem-
penha nos Evangelhos, o cristianismo moderno não o leva
múto em consideração.
Se examinarmos as proposições evangélicas sobre Sata-
nás à luz de nossas análises, perceberemos que elas não me-
recem o esquecimento em que recaíram.
Assim como Jesus, Satanás busca ser imitado, mas não
da mesma forma, não pelas mesmas razóes. De início, ele
quer seduzir. O Satanás sedutor é o único do qual o mun-
do moderno se digna de lembrar um pouco, claro que para
zombar dele.
Satanás também se propõe como modelo para nossos
desejos, e, evidentemente, é mais facil imitá-lo do que a
Cristo, pois seu conselho é que nos entreguemos a todos os Eu não sou o único a assimilar Satanás aos escândalos' é
nossos impulsos, em detrimento da moral e de suas proi- o próprioJesus que o faz, numa apóstrofe veemente a Pedro:
'Afàsta-te de mim, Satanás! Tu me serves de escândalo'"
bições.
Se escutarmos esse professor, muito amável e moderno, Pedro atrai para si tal explosão ao reagir negativamen-
inicialmente iremos nos sentir "liberados", mas essa impres- tc ao primeiro anúncio da Paixão. Decepcionado pelo que
são não dura, pois se escutarmos Satanás, logo estaremos considera uma excessiva resignação de Jesus, ele se esfor-
privados de qualquer proteção contra o mimetismo confli- ça por insuflar-lhe seu próprio desejo,
sua própria ambição

tuoso. Ao invés de nos advertir contra as armadilhas que rnundana. Em suma, Pedro convida Jesus a tomar ele pró-
nos esperam, Satanás nos faz cair nelas. Ele aplaude a ideia prio como modelo de seu desejo. Se Jesus se desviasse de
de que as proibições "não servem para nada" e de que sua scu Pai para seguir Pedro, ele e Pedro logo recairiam na riva-
transgressão não comporta qualquer perigo. lidade mimética, e a aventura do Reino de Deus se perderia
A estrada em que Satanás nos lança é larga e fácil, é a cm ridículas querelas.
grande autoestrada da crise mimética, mas de Íepente, en- Aqui, Pedro coloca-se como semeador de escândalos,
tre nós e o objeto de nosso desejo, surge um obstáculo ines- «r Satanás que desvia os homens de Deus em proveito dos

perado, e, mistério dos mistérios, quando acreditávamos ter rnodelos rivalitários. satanás semeia os escândalos e colhe a
deixado Satanás bem para trás, eis que ele, ou algum de seus lcmpestade das crises miméticas. Para ele, essa é a ocasião
escudeiros, bloqueia nosso caminho. rlc mostrar aquilo de que ê capaz. As grandes crises desem-
É a primeira das várias metamorfoses de Satanás: o se- bocam no verdadeiro mistério de Satanás, em seu mais es-
dutor do início transforma-se rapidamente num adversaio pantoso poder, que é o de expulsar a si próprio e de trazer
rebarbativo, um obstáculo mais sério do que todas as proi- novamente ordem às comunidades humanas'
bições ainda não transgredidas. É fácll descobrir o segredo O texto essencial a respeito da expulsão diabolica de Sa-
dessa inoportuna metamorfose. O segundo Satanás é a con- tanás é a resposta deJesus àqueles que o acusam de expulsar
versão do modelo mimético em obstáculo e em rival, é a Strtanás por intermédio de Belzebu' o príncipe dos demônios:

gênese dos escândalos.


Como ele próprio deseja aquilo que nos impulsiona a de- Como pode Satanás expulsar Satanás? Se um reino se dividir
sejaq nosso modelo opõe-se a nosso desejo. Portanto, para contra si mesmo, tal reino não poderá subsistir' E se uma casa

além da transgressão, ergue-se um obstáculo mais intrans- se dividir contra si mesma, tal casa não poderá se manter' Ora, se

ponível que todas as interdições, dissimulado de início pela Satanás se atira contra si próprio e se divide, não poderá subsis-

própria proteção que estas últimas proporcionam, enquan- tir, mas acabará.
(Mc 3,23'24)
to forem respeitadas.

(}rr,rto lll vta §nr',ANÂs ttÀrt{ (l(}\.1L} 1.rM {{lil,rii!{pA(io I 6r


6o I li.uruir
É esse poder extraordinário que torna Satanás o prínci-
Acusar um exorcista rival de expulsar os demônios por
pc deste mundo. Se ele não pudesse proteger seu domínio
meio de Satanás devia ser uma acusação banal na época.
tlas investidas que ameaçam aniquilá-lo, e que são essencial-
Muitas pessoas deviam repeti-la automaticamente. Jesus
rrrcnte as suas, ele não mereceria o título de príncipe que
quer que haja uma reflexão sobre suas implicações. Caso
os Evangelhos não the atribuem levianamente' Se fosse pu-
seja verdade que Satanás expulsa Satanás, como é que isso
lxlnente destruidor, há muito tempo Satanás teria perdido
acontece, como tal façanha é possível?
st'u domínio. Para compreender o que faz dele o mestre de
Longe de negar a realidade da autoexpulsão satânica,
todos os reinos deste mundo, é preciso tomar literalmen-
esse texto a afirma. A prova de que Satanás possui tal poder
é a afirmação frequentemente repetida de que ele está che-
tc tudo o que Jesus diz, ou seja, que a desordem expulsa
.r clesordem, ou, em outros termos, que Satanás realmente
gando a seu fim. A queda próxima de Satanás profetizada
cxpulsa Satanás. E realizando essa proeza Pouco banal que
por Cristo não se distingue de seu poder de autoexpulsão.
t'le se tornou indispensável e que garante a gtandeza de seu
Em Mateus, como em Marcos, eÍn yez de substituir o
poder.
segundo Satanás por um pronome e dizer "como Satanás
Como compreender essa ideia? Voltemos ao momento
pode expulsar a si mesmo?", Jesus repete o nome: "Como
('m que a comunidade dividida, no paroxismo do processo
Satanas pode expulsar Satanas?" A proposição interrogati
nrimético, refaz sua unidade contra uma vítima única' que
va de Marcos transforma-se numa proposição condicional,
sc torna o escândalo supremo porque todo mundo, mimeti-
mas a formula não muda: "Se Satanás expulsa Satanás..."
('Llmente, considera-a culPada.
A repetição da palavra Satanás é mais eloquente do que
Satanás é o mimetismo que convence a comunidade in-
seria sua substituição por um pronome, mas o que a inspira
tcira, unânime, de que essa culpa é real' É a essa arte de per-
não é o gosto pelo belo linguajar, mas o desejo de ressaltar o
surasão que ele deve um de seus nomes mais antigos'
mais
paradoxo fundamental de Satanás: ele é tanto um princípio junto
trardicionais. Ele é o acusador do herói no livro deJó,
de ordem quanto de desordem.
rr Deus e, mais ainda, junto ao povo' Transformando
uma
O Satanás expulso é quem fomenta e exaspera as riva-
t.Omunidade diferenciada em multidão histérica, satanás
lidades miméticas a ponto de transformar a comunidade que
numa fornalha de escândalos. O Satanás que expulsa é essa scra os mitos. Ele é o princípio de acusação sistemática
Umavez
mesma fornalha quando ela atinge um ponto de incandes- irrrra do mimetismo exasperado pelos escândalos'
rlLre a infeliz vitrma esteja completamente isolada' privada
cência suficiente para desencadear o mecanismo vitimário.
clc defensores, nada mais pode protegêJa da multidão de-
Para impedir a destruição de seu reino, Satanás faz de sua
scnfreada. Todos podem se lançar ao massacre contra ela
própria desordem, em seu paroxismo, um meio de expulsar
scffr temer a menor rePresália.
a si mesmo.

ill fiÀ SÂl-ANi\s (lÁtil (loMo t''l't Npt'Âl,lpat;rl i 63


Pode parecer que a vítima única seja muito pouco para quando drz: "8 melhor que um único homem morra e que
todos os apetites de violência que convergem pâra ela, mas o povo inteiro não pereça."
nesse instante a comunidade não aspira a nada além de sua Assim, os quatro relatos da crucificação fazern-nos as-
destruição. Assim, essa vítima substitui efetivamente todos sistir ao desenrolar de um mecanismo vitimário. Como já
aqueles que um pouco antes se opunham uns aos outros clisse, a sequência assemelha-se aos inúmeros fenômenos
em mil escândalos pulverizados aqui e ali, e que agora se análogos que Satanás coloca em cena.
encontram todos reunidos contra um alvo único. A prova de que a Crrz e o mecanismo de Satanás são a
Como ninguém, na comunidade, possui outro inimigo mesma coisa é dada pelo próprioJesus, ao dizer pouco antes
além dela, uma vez que essa vítima tinha sido perseguida, cle sua prisão: "Chegou ahora de Satanas." Não devemos ver
expulsa, aniquilada, a multidão irá se encontrar livre de nessa frase uma fiôrmula retórica, um modo pitoresco de
qualquer hostilidade, privada de inimigo. Só restava um, sugerir o caráter repreensível do que os homens vão fazer a
e ele foi descartado. Pelo menos provisoriamente, essa co- .fesus. Como todas as outras frases evangélicas a respeito de
munidade não sente mais nem ódio nem ressentimento Satanás, esta possui um sentido preciso e até mesmo quase
por ninguém: ela se sente purificada de todas suas frag- "técnico". É uma das frases que designam na crucificação
mentações. um mecanismo vitimário.
Os perseguidores não sabem que sua concórdia repenti- A crucificação é uma dessas horas em que Satanás res-
na, como precedentemente sua discórdia, é obra do mime- taura e consolida seu poder sobre os homens. A passagem
tismo. Eles acreditam estar lidando com um ser perigoso, do todos contÍd todos para o todos contrd um min:,ético per-
maléfico, do qual é extremamente importante que a comu- rnite ao príncipe deste mundo evitar a destruição total de
nidade se livre. Nada mais sincero que seu ódio. seu reino, acalmando a cólera da multidão e devolvendolhe
Portanto, o todos contrd um mirnético ou mecanismo yiti- a tranquilidade indispensável para a sobrevivência de qual-
mario possui a capacidade espantosa, espetacular, mas logi- clLler comunidade humana.
camente explicável, de trazer de volta a calma ao interior Então, Satanás sempre consegue restaurar ordem su-
de uma comunidade tão perturbada um instanre antes que ficiente no mundo para impedir a destruição total de seu
nada parecia capaz de apaziguâ-la. bem, sem se privar muito tempo de seu passatempo prefe-
Apreender esse mecanismo como coisa de Satanás é r'ido, que é semear a desordem, a violência e a infelicidade
compreender que a fórmula de Jesus "Satanás expulsa cntre seus súditos.
Satanás"
-
tem um sentido preciso, racionalmente explicá- A morte de Jesus frustra o cálculo satânico, e logo ve-
-
vel. O que ela define é a eficácia do mecanismo vitimário. É remos o porquê. Mas, de imediato, ela tem claramente os
a esse mecanismo que o grande sacerdote Caifás faz alusão cfêitos esperados por aquele que a desencadeou. Podemos

o4 I ldrixl GrnanLr [:irr vt,t §ivr,rnÂs {]:rR (;oMo r;lir r,-ni,Ânri",l.l.lo | 65


constatar nos Evangelhos que ela exerce sobre a multidão o Certas lendas medievais e contos tradicionais contêm
efeito tranquilizador que Pilatos, assim como Satanás, espe- ecos da concepção evangélica de Satanás. Têmos um ho-
ra dela. Isto é apreciável do ponto de vista dapax romana, da mem do mundo amável, generoso, sempre pronto a cumu-
qual Pilatos é o guardião. O procurador temia uma revolta, lar os homens de benefícios em moca, parece, de bem pouca
e graças à crucificação ela não se produz. coisa. Sua única exigência é que uma alma, e apenas uma,
O suplício transforma a multidão ameaçadora emumpú- lhe seja reservada. Por vezes ê a filha do rei que ele reclama,
blico de teatro antigo ou de cinema moderno, tão cativado mas frequentemente pouco lhe importa. O primeiro foras-
pelo espetáculo sangrento quanto nossos contemporâneos teiro serve tão bem quanto a mais bela das princesas.
pelos horrores hollywoodianos. Umavez saciados dessa vio- A exigência parece modesta, quase ínfrma ao lado dos
lência que Aristóteles qualifica de catartica, pouco importa benefícios prometidos, mas o misterioso cavaleiro não
se real ou imaginária, todos os espectadores voltam pacifi- pode renunciar a isso. Se ela não for satisfeita, todos os
camente para suas casas a flm de dormir o sono dos justos. dons do generoso benfeitor desaparecem instantanea-
A palavra catharsk designa, em primeiro lugar, a "pu- mente, e este desaparece com eles. É claro que ele não
rificação" proporcionada pelo sangue derramado nos sa- é senão Satanás, e para afugentá-lo basta não ceder à sua
crifícios rituais. Como logo veremos, estes são a reprise chantagem.Hâ ai uma alusão bastante clara à onipotência
deliberada do processo descrito na Paixão, ou, em outras do mecanismo vitimário nas sociedades pagãs, e sua per-
paláwas, do mecanismo satânico. É e*atamente de exorcis- petuação sob formas veladas, muitas vezes atenuadas, nas
mo que se trata no debate que dá aJesus a oportunidade de sociedades cristãs.
interrogar-se sobre a expulsão satânica de Satanás.
Os Evangelhos fazem-nos ver que as comunidades hu-
manas são sujeitas a desordens que retornam periodica-
mente, e que podem ser resolvidas por meio de fenômenos Podemos ver em tudo isso uma antropologia do desejo mi-
de multidão unânime, quando certas condições são preen- mético, das crises resultantes e dos fenômenos de multidão
chidas. Essa resolução etraiza-se no desejo mimético e nos que dão fim a essas crises, relançando um novo ciclo mimé-
escândalos que sempre desarranjam as comunidades. tico. Essa antropologia pode ser encontrada no Evangelho
O ciclo mimético começa com o desejo e as rivalidades, de João, onde, como disse anteriormente, Satanás é substi-
prossegue com a multiplicação dos escândalos e a crise mi- tuído pelo diabo.
mética, para finalmente se resolver em um mecanismo viti- Em um dos discursos que fazJesus proferir,João interca-
mário, que é a resposta à questão de Jesus: "Como Satanás la uma pequena dissertação de cerca de quinze versos, onde
expulsa Satanás?" encontramos tudo que foi analisado nos Evangelhos sinóti-

oo I RrNt Grnano Eu vra SararvÁs carR coMo urr,r nrr,Âunec<l | 67


constatar nos Evangelhos que ela exerce sobre a multidão o Certas lendas medievais e contos tradicionais contêm
efeito tranquilizador que Pilatos, assim como Satanás, espe- ccos da concepção evangélica de Satanás. Temos um ho-
ra dela. Isto é apreciável do ponto de vista dapaxromand, da mem do mundo amável, generoso, sempre pronto a cumu-
qual Pilatos é o guardião. O procurador temia uma revolta, lar os homens de benefícios em troca, parece, de bem pouca
e graças à crucificação ela não se produz. eoisa. Sua única exigência é que uma alma, e apenas uma,
O suplício transforma a multidão ameaçadora em um pú- lhe seja reservada. Por vezes é a filha do rei que ele reclama,
blico de teatro antigo ou de cinema moderno, tão cativado mas frequentemente pouco lhe importa. O primeiro foras-
pelo espetáculo sangrento quanto nossos contemporâneos tciro serve tão bem quanto a mais bela das princesas.
pelos horrores hollywoodianos. Umavez saciados dessa vio- A exigência parece modesta, quase ínfima ao lado dos
lência que Aristóteles qualifica de catarticd, porlco importa benefícios prometidos, mas o misterioso cavaleiro não
se real ou imaginária, todos os espectadores voltam pacifi- pode renunciar a isso. Se ela não for satisfeita, todos os
camente para suas casas a frm de dormir o sono dos justos. dons do generoso benfeitor desaparecem instantanea-
A palavra cathdrsis designa, em primeiro lugar, a "pu- rnente, e este desaparece com eles. É claro que ele não
rificação" proporcionada pelo sangue derramado nos sa- é senão Satanás, e para afugentáJo basta não ceder à sua
crifícios rituais. Como logo veremos, estes são a reprise chantagem . Hâ aí uma alusão bastante clara à onipotência
deliberada do processo descrito na Paixão, ou, em outras do mecanismo vitimário nas sociedades pagãs, e sua per-
palavras, do mecanismo satânico. É exatamente de exorcis- petuação sob formas veladas, muitas vezes atenuadas, nas
mo que se trata no debate que dá aJesus a oportunidade de sociedades cristãs.
interrogar-se sobre a expulsão satânica de Satanás.
Os Evangelhos fazem-nos ver que as comunidades hu-
manas são sujeitas a desordens que retornam periodica-
mente, e que podem ser resolvidas por meio de fenômenos Podemos ver em tudo isso uma antropologia do desejo mi
'tt de multidão unânime, quando certas condições são preen- mético, das crises resultantes e dos fenômenos de multidão
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chidas. Essa resolução enraíza-se no desejo mimético e nos que dão fim a essas crises, relançando um novo ciclo mimé-
escândalos que sempre desarranjam as comunidades. tico. Essa antropologia pode ser encontrada no Evangelho
O ciclo mimético começa com o desejo e as rivalidades, de João, onde, como disse anteriormente, Satanás é substi-
prossegue com a multiplicação dos escândalos e a crise mi- tuído pelo diabo.
mética, para finalmente se resolver em um mecanismo viti- Em um dos discursos que fazJesus proferir, João interca-
mário, que é a resposta à questão deJesus: "Como Satanás la uma pequena dissertação de cerca de quinze versos, onde
expulsa Satanás?" encontramos tudo que foi analisado nos Evangelhos sinóti

oo I RrrÉ Ginexo Eu vre SaraNÁs carR coMo uv nai-Âunaco | 67


il

cos, mas sob uma forma tão elíptica e condensada que eles Aos que se afirmam como seus discípulos, Jesus sustenta
despertam uma incompreensão ainda maior do que as pro- que seu pai não é nem Abraão nem Deus, como eles afir-
posições dos Evangelhos sinóticos que acabei de analisar. r)ram, mas o diabo. Arazáo desse julgamento é clara' Essas
Apesar das diferenças de vocabulário que a fazem parecer l)cssoas têm o diabo por pai porque são os desejos do diabo
mais dura, a doutrina deJoão é a mesma que a dos sinóticos. tlue eles querem realizar, e não os desejos de Deus. Eles to-
O texto de João é muitas vezes condenado por nossos fnam o diabo como modelo de seus desejos.
contemporâneos como supersticioso e vindicativo. Ele defi- Portanto, o desejo de que falaJesus repousa sobre a imi-
ne novamente, de forma rude, mas sem hostilidade, as con- tação, seja do diabo, seja de Deus. Aqui, trata-se sem dúvida
sequências do mimetismo conflituoso sobre os homens. do desejo mimético no sentido definido anteriormente. A
Nesse discurso, Jesus dialoga com pessoas que ainda se noção de pai confunde-se uma vez mais com esse modelo de
consideram seus discípulos, mas que logo irão abandoná-lo que o desejo humano, por não possuir objeto que lhe seja
por não entenderem seu ensinamento. Em suma, os primei- próprio, não pode absolutamente prescindir.
ros ouvintes deJesus já se escandalizavarn, como alguns de Deus e Satanás são os dois "arquimodelos" cuja oposi-
nossos contemporâneos: ção corresponde àquela já descrita, entre os modelos que
nunca se tornam obstáculos e rivais para seus discípulos,
Se Deus fosse vosso pai, vós me amaríeis por não desejarem nada de modo ávido e concorrencial, e
porque saí de Deus e dele venho; os modelos cuja avidez repercute imediatamente sobre seus
não venho por mim mesmo, mas foi Ele que me enviou. imitadores, logo transformando-os em obstáculos diaboli
Por que não reconheceis minha linguagem? r:os. Assim, os primeiros versículos de nosso texto são uma
É porqrre não podeis escutar minha palavra. definição explicitamente mimética do desejo e das opções
Vós sois do diabo. vosso pai, que dele resultam paÍa a humanidade.
E quereis realizar Se os modelos que os homens escolhem não os orien-
os desejos de vosso pai. tam na boa direção, não conflituosa, por meio do Cristo, a
Ele foi homicida desde o princípio rnais ou menos longo prazo eles irão expôJos à indiferen-
e não permaneceu na verdade, ciação violenta e âo mecanismo da vítima única. Eis o que
porque nele não há verdade: é o diabo no texto de João. Os filhos do diabo são os seres
quando ele mente, que se deixam aprisionar no círculo do desejo rivalitário e
fala do que the é próprio, que, cegamente, tornam-se joguetes da violência mimética.
porque é mentiroso e pai da mentira. Como todas as vítimas desse processo, "eles não sabem o
(8,42-44) que fazem" (Lucas 23,34).

68 ] Rrnú Cru,qt» Ílrr r,rn Sp^rrtnÂs cltR cor4o r.ru tt,tt,.tuunr;o | 69


-\

Se não imitamos Jesus, nossos modelos tornam-se para rrrrr n-rimético. No momento em que Jesus faz o discurso

nós obstáculos vivos, e também nos tornamos para eles. (luc comentamos, o mecanismo que outrora mobilizara os
Descemos então, juntos, a espiral infernal que conduz às t'rrinitas contra Abel e, em seguida, milhares de multidões
crises miméticas generalizadas e, passo a passo, ao todos ( ( )ntra milhares de vítimas está pÍestes a se reproduzir con-

contrd um mimético. Essa consequência inexorável explica a tra cle.


sequência imediata do texto, a súbita alusão ao assassinato lrrrediatamente após essas afirmações fundamentais, nos-
coletivo: s() tcxto afirma que o diabo "não permaneceu na verdade".
( ) que faz dele nosso príncipe, ou nosso "pai", é a falsa acu-

Desde o início, [o diabo] foi um homicida. srrção, é a condenação injusta de uma vítima inocente. Ela
rri«r repousa sobre nada de real, nada de objetivo. mas apesar
Se o leitor não tiver percebido o ciclo mimético, mais tlisso consegue ser aceita de modo unânime, em virtude do
utl:,a vez aqui ele não irá compreender. Terá a impressão r'orrtágio violento. Lembremos que o sentido primeiro de
de uma ruptura arbitrária, inexplicável, entre essa frase e as S:rtanás, na Bíblia, é o de acusador público, o promotor em
precedentes. Na realidade, a sucessão dos temas é perfeita- rurr tribunal.
mente lógica: ela corresponde às etapas do ciclo mimético. O diabo é necessariamente mentiroso, pois se os perse-
João atribui o todos contrd um rnirnético ao diabo porque t1rridores apreendessem a verdade, ou seja, a inocência da
ele já lhe atribui o desejo responsável pelos escândalos. Ele sLra vítima, eles não poderiam mais aliviar-se de sua violên-

poderia da mesma forma atribuir tudo isso aos homens, e t'ia à custa dela. O mecanismo vitimário só funciona em
por vezes ele o faz. Irrr-rção da ignorância daqueles que o fazem funcionar. Eles

O texto de João é uma nova definição ultrarrápida, ,rt'reditam estar na verdade quando, na realidade, encon-
mas completa
-
do ciclo mimético. Em nós e à nossa vol- lt'am-se na mentira.
-
ta, os escândalos proliferam e, cedo ou tarde, arrastam-nos O "fundo próprio" do diabo, aquele de onde tira suas men-
às escaladas miméticas e ao mecanismo vitimário. Eles nos tiras, é o mimetismo violento que não é nada de substancial.
transformam à revelia em cúmplices de assassinatos unâ- ( ) diabo não tem fundamento estável, não tem nenhum ser

nimes, tão mais enganados pelo diabo quanto mais igno- l)ara dar-se uma aparência de ser ele precisa parasitar as cria-
ramos nossa cumplicidade. Ela não tem consciência de si turas de Deus. Ele é inteiramente mimético, o que equivale a
própria. Imaginamo-nos virtuosamente alheios a qualquer .lizcr, inexistente.
violência. O diabo é o pai da mentira ou, em certos manuscritos,
De vez em quando, os homens vão até o extremo na tlos "mentirosos", porque suas violências enganosas reper-
realização dos desejos de seu pai e recaem no todos contra ('utcm de geração em geração nas culturas humanas, que

zo i Itlxi ( lrrr rrLl []rr vr.r Srr',rN.is c,\1n (t()Mo ttitt trtti.-Àlutu,rt;o i 7r
permanecem todas tributárias de algum assassinato funda-
dor e dos ritos que o reproduzem.
O texto deJoão escandaliza aqueles que não percebem a ( )) satanás dos Evangelhos sinóticos e o diabo do Evangelho
alternativa que ele pressupõe, como tampouco a percebe- It l«rão significam o mimetismo conflitLtoso, incluindo o me-
ram os primeiros interlocutores de Jesus. Muitos acreditam (,lnisrno vitimário. Pode-se tratar tanto do processo quanto
ser fiéis a Jesus, mas lançam contra os Evangelhos objeções ..lt' urn único de seus momentos. Para os exegetas modernos,
superficiais, mostrando com isso que permanecem submis- ( ('.q()spara o ciclo mimético, a palavra pode dar a impressão
sos às rivalidades miméticas e às suas escaladas violentas. ,lt. sigxrificar tantas coisas diferentes que acaba não significan-
Quando não enxergamos que é inevitável escolher entre rrrais nada. Mas essa impressão é enganosa. Se retomarmos
..k r
esses dois arquimodelos, Deus e o diabo, já escolhemos o ur)ur a uma as proposições que analisei, e se compararmos o
diabo, o mimetismo conflituoso. sirtrlnás sinótico com o diabo deJoão, veremos facilmente que
As virtuosas indignações modernas contra o Evangelho .r cl«rutrina é coerente e que a passagem de um vocabulário
deJoão não têm fundamento.Jesus drzaverdade a seus inter-
l)iu'a outro não a afeta.
locutores: eles escolheram o desejo rivalitário e, a longo pra- Longe de ser absurdo demais para reter nossa atenção,
zo, as consequências serão desastrosas. O fato de queJesus se () tcma evangélico contém um saber incomparável sobre
dirija a judeus é muito menos importante do que imaginam ,rs rclações entre os homens e as sociedades que delas re-
aqueles que só têm uma preocupação: provar o antissemitis- strltam. Tudo que afirmei sobre Satanás está em perfeito
mo dos Evangelhos. A paternidade diabólica no sentido de rrc«lrdo com o que a análise dos escândalos' anteriormente,
Jesus não pode ser o monopólio de um povo específico. pcrmitira que formulássemos.
Após sua definição mimética do desejo, o texto de João Quando o disúrbio causado por Satanás
torna-se grande
fornece uma definição fulgurante das consequências desse tlt'r-nais, o próprio Satanás, assim como o escândalo, torna-
desejo, o assassinato satânico. A impressão de maldade pro- sc de alguma forma seu próprio antídoto, suscitando o
duzidapelo texto deve-se à incompreensão de seu conteúdo, :rr.rcbatamento mimético e o todos contra um feconciliador,
que nos faz irnaginar uma série de insultos gratuitos. Isso é pcrmitindo que a tranquilidade retorne à comunidade'
efeito de nossa ignorância, frequentemente mesclada com A grande parábola dos vinhateiros homicidas mostra
hostilidade preconcebida com relação à mensagem evangé- t'laramente o ciclo mimético ou satânico. Cada vez que o
lica. E nosso próprio ressentimento que projetamos sobre o proprietário da vinha envia um mensageiro aos vinhateiros,
cristianismo. Para além dos interlocutores imediatos de Je- t'sse envio desencadeia entre eles uma crise, que resolvem
sus, que são inevitavelmente os judeus, é a humanidade in- colocando-se contra o mensageiro, expulso por unanimida-
teira que é visada, como sempre acontece nos Evangelhos. r,lc. Esse acordo unânime é o arrebatamento mimético' Cada

7z ] li.rn ír (l r rr.rqir [iU vt.r SrrtarvÂs cÀrR cofilo t'tut nllt.Âllpnr;<l I 73


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expulsão violenta constirui o cumprimento de um ciclo mi- velação, pois esta não está assimilada, as comunidades huma-
rras têm uma dívida com Satanás pela ordem muito relativa
mético. O último mensageiro é o Filho, expulso e assassinado
do mesmo modo que todos os enviados precedentes. que desfrutam. Portanto, elas são sempre devedoras em rela-
Essa parábola confirma a definição da crucificação que já ção a ele, e não conseg.rem se libertar por seus próprios meios'
expus. O suplício deJesus é um exemplo, entre tantos outros, Satanás imita o modelo de Jesus, o próprio Deus, mas
do mecanismo vitimário. O que torna único o ciclo miméti- num espírito de arrogância e de rivalidade pelo poder. Ele
co deJesus não é a violência, mas a identidade da vítima, que conseguiu perpetuar seu reino, durante a maior parte da
éo Filho de Deus. Evidentemente, aí se encontra o essencial história humana, graças à transigência de Deus, para a qual
do ponto de vista de nossa redenção, mas de tanto negligen- o começo do fim é marcado pela missão de Jesus junto aos
ciarmos os alicerces antropológicos da Paixão, acabamos l'romens. O reino de Satanás corresponde à parte da história

por passar ao largo da verdadeira teologia da Encarnação, humana anterior a Cristo, a qual é inteiramente governadâ
que necessita da antropologia evangélica para se fundar. pelo mecanismo vitimário e as falsas divindades.
As noções de ciclo mimético e de mecanismo vitimário A concepção mimética de Satanás permite que o Novo
'I'estamento atribua ao mal um papel à medida de sua im-
fornecem conteúdo concreto a uma ideia de Simone Weil se-
gundo a qual, antes mesmo de ser uma "teoria de Deus", uma portância, sem conferir-lhe o peso ontológico que faria des-
sc personagem uma espécie de deus do mal-
teologla, os Evangelhos são uma "teoria do homem" ,üÍna dn-
tropologia. Longe de "criar" o que quer que seja por seus próprios
Como o desencadeamento do mecanismo vitimário é meios, Satanás só se perpetua parasitando o ser criado por
inseparável do auge da desordem, o Satanás que expulsa e Deus, imitando esse ser de modo invejoso, grotesco, perver-

restabelece a ordem é exatamente idêntico ao Satanás que so, tão contrário quanto possível à imitação direta e dócil de
"Satanás expulsa -fesus. Satanás é imitador,
repito, no sentido rivalitário do
fomenta a desordem: a fórmula deJesus
Satanás" é insubstituível.
- termo. Seu reino é uma caricatura do reino de Deus. Sata-
-
A receita suprema do príncipe deste mundo, seu artifício nás é o macaco de Deus.

número um, talvez seu único recurso, ê o todos contrd um Afirmar que Satanás não é, recusar-lhe o ser, como faz
a teologia cristã, equivale a dízet, entre outras coisas, que
mimético ou mecanismo vitimário, é a unanimidade mimé-
tica que, no paroxismo da desordem, restabelece a ordem o cristianismo não nos obriga a ver nele "um ser que exis-
nas comunidades humanas. te realmente". A interpretação que reconhece em Satanás
Graças a essa prestidigitação que até a revelação judaica e o mimetismo conflituoso permite, pela primeíravez, náo
cristã sempre permaneceu dissimulada e que, até certo ponto, minimizar o príncipe deste mundo sem dotá-lo de um ser
permanece dissimulada em nossos dias, no seio mesmo da re- pessoal que a teologia tradicional, com justiça, recusa-lhe.

I r rr.tStt,ir,i\{.\ll{(..)\4,,111 ,11 1\v1'1,',r | 75


z+ | RrnÉ ClrH,lrrn
Nos Evangelhos, os fenômenos miméticos e vitimários Mas por que Satanás não se apresenta como um princi-
podem ser organizados a partir de duas noções diferentes: pio impessoal, como os escândalos? Porque ele designa a
a primeira dessas noções é um princípio impessoal, o es- consequência principal dos rnecanismos vitimários, a emer-
cândalo. A segunda é esse personagem misterioso queJoão gência de uma falsa transcendência e as numerosas divinda-
chama de diabo e os Evangelhos sinóticos, Satanás. des que a representam: Satanás é sempre al.guém. É isso que
Como vimos, os Evangelhos sinóticos contêm um dis- os capítulos seguintes vão nos permitir compreender.
curso de Jesus sobre o escândalo, mas nenhum discurso
sobre Satanás. Em contrapartida, a literatura de João não
contém nenhum discurso sobre o escândalo, mas possui um
sobre o diabo, que acabei de examinar.
O escândalo e Satanás são fundamentalmente a mesma
coisa e, no entanto, podem-se observar entre eles duas dife-
renças importantes. O peso principal das duas noções distri-
bui-se diferentemente. No escândalo, o acento encontra-se
sobre o processo conÍlituoso em seus inícios, consequente-
mente mais sobre as relações entre os indiüduos do que so-
bre os fenômenos coletivos, embora, como vimos, estes não
estejam ausentes. O ciclo mimético é esboçado, mas não é
tão nitidamente desenhado quanto no caso do Satanás sinó-
tico e do diabo deJoão. O mecanismo vitimário é sugerido,
mas não verdadeiramente definido.
Partindo-se apenas do escândalo, penso que seria difícil
chegar a uma explicação completa do mecanismo vitimário
e da significação antropológica da Cnv. No entanto, é isso
qtsefaz Paulo, ao definir aCrrtz como o escândalo por exce-
lência. Se não usarmos o ciclo mimético para interpretâ-la,
essa palavra permanece parcialmente ininteligível.
Com a expulsão satânica de Satanás, ao contrário, o ciclo
mimético é verdadeiramente fechado, encerra-se o círculo,
pois o mecanismo vitimário está definido explicitamente.

7o I RumÉ Grxano Eu via SeraNÁs cAiR coMo una nrr-Ârrlraco |7


Falar do ciclo mimético em termos de Satanás permi-
te aos Evangelhos dizer ou sugerir sobre as religiões con- VI
sideradas pelo cristianismo falsas, mentirosas, ilusórias, SecrurÍcro
mútas coisas que não podem ser ditas na linguagem dos
escândalos.
Os povos não inventam seus deuses, eles divinizam suas
útimas. O que impede os pesquisadores de descobrir essa
verdade é sua recusa de apreender a violência real por trás
dos textos que a representam. A recusa do real é o dogma Gneçes ao raLENro de Filóstrato, a violência dos efrsios,
número um de nosso tempo. Ela é o prolongamento e a inicialmente tomados de compaixão por sua útima, é exi-
perpetuação da ilusão mítica original.. bida com um realismo tão moderno que não conseguimos
escamoteá-la. Por mais que sejamos apaixonados pelos mi
tos, é impossível não compreender o papel da unanimidade
üolenta na ilusão mitológica.
O engendramento do sagrado arcaico, antigo, é clara-
mente fruto de um arrebatamento mimético e de um me-
canismo vitimário no sentido que os Evangelhos permitem
definir. As comunidades apazígaadas e reconciliadas por
suas útimas encontram-se demasiadamente conscientes
de sua impotência paÍa se reconciliar sozinhas; em sluna,
sentem-se modestas demais para atribúr a si próprias o mé-
rito de sua reconciliação. Eles procuram o deus que as re-
conciliou, e ele só pode ser exatamente essa ütima que lhes
causou mal e que agora lhes traz o bem.
No milagre de Apolônio, a experiência não é suficiente-
mente intensa para suscitar a segunda transfiguração. Por
isso é necessário recorrer, para sustentar o milagre, a um
deus do panteão tradicional. Se a experiência mimética fos-
* se mais forte, os perseguidores atribuiriam sua libertação
Para todas as questões levantadas neste capítulo, e para exemplos de mitos
interpretados "mimeticamente", ver RichardJ. Golsan, Rrni Giraril and Myth. diretamente à sua útima, que acumularia os papéis de de-
.
Nova York e Londres: Garland Pubüshing, 1993. mônio maléfico e da divindade benéfica.

rro I RrNÉ Grneno


Quando o poder de transfiguração enfraquece, a segun- de Média, por ocasião dos grandes pânicos ocasionados por
da transferência faz a primeira desaparecer. Ela é a mais calamidades como a Peste Negra. À época, as vítimas eram
precârta, a mais frágil das duas. Ela recobre o demoníaco e os judeus, os leprosos, os estrangeiros, os doentes, os mar-
dissimula aos olhos dos homens aquilo que Filóstrato nos ginais de todo tipo, ou, como diríamos hoje, os excluídos.
obriga a contemplar: a projeção de todos os escândalos so- Nos fenômenos medievais, a transfiguração mítica é ain-
bre o infeliz mendigo, a violência mimética, o rebaixamento da mais fraca que no texto de Filóstrato, e a desmistificação
do religioso arcaico em seu conjunto. que estou propondo, longe de escandali"ar quem quer que
Filóstrato não é sensível à violência no sentido em que seja, é percebida como tão evidente que não só é recomen-
nossa época histórica obriga-nos a ser. Essa insensibüdade, dada, mas obrigatória.
por mais chocante que se mostre a nossos olhos, é um dos
problemas que nossas análises ajudam a entender melhor.

A partir das análises precedentes, podemos comparar a gê-


nese dos mitos e de seus sucedâneos tardios com as ativida-
Penso que a dupla transferência do arcaico explica a rupru- des de um vulcão hoje extinto.
ra lógiça que caracteriza inúmeros mitos. No início destes, Quando estava em atividade, esse vulcão gerava "verda-
o herói é visto como um perigoso malfeitor, e nada mais. deiros" mitos, mas ele expelia tânta lava e fumaça que era
Após a violência destinada a destituí-lo de sua nocividade, impossível nos inclinarmos sobre a crateÍa para ver o que
esse mesmo malfeitor aparece, na conclusão, como salva- acontecia no interior.
dor divino, sem que nunca essa mudança de identidade seja A lapidação de Éfeso é obra desse mesmo vulcão numa
justificada ou mesmo indicada. No final desses mitos, o êpoca mais tardia. Ele ainda é avermelhado, mas está su-
malfeitor inicial, devidamente divinizado, preside à recons- ficientemente resfriado para que possamos nos aproximar.
trução do sistema cultural que ele teria destruído na fase Ele não é completamente estéril, mas produz âpenâs mitos
inicial, quando era alvo de uma projeção hostil, quando era truncados, amputados do melhor deles mesmos, limitados
o bode expiatório. às transferências hostis. O mendigo de Éfeso nunca chega a
Ontem, o religioso era chamado de "onírico", de "fan- se tornar objeto de adoração. A lapidação milagrosa produz
tasmático". Hoje, é celebrado como uma "criação lúdica". apenas um demoniozinho medíocre.
Na realidade, a mitologia mundial é muito próxima do tipo portanto, o relato de Filóstrato parece-me um precioso
de fabulação que tomava como objeto üolências coletivas "elo perdido" entre, de um lado, as ransfigurações mito-
em todas as sociedades arcaicas, e ainda um pouco na Ida- lógicas plenas, indecifráveis diretamente, e, de outro, as

rrz I R-unÉ Grxann Eu vla SaraxÁs cÀrR coMo uu nrúvrruco I rr3


transfigurações f,áceis de serem decifradas: a caça às bruxas Os relatos de violência coletiva tornam-se inteLigíveis em
medieval, cujo parentesco com a mitologia propriamente proporção inversa ao grau de transfiguração de que são objeto.
dita torna-se evidente àLuz de Filóstrato e dos Evangelhos. Os mais transfigurados são os mitos, e o menos transfigurado

Nos dois casos, temos uma violência coletiva que é obje- de todos é a Paixão de Cristo, o único relato a revelar até o fim

to de uma falsa interpretação, dominada pela ilusão unânime a causa da unanimidade violenta, o contágio mimético, o mi-

dos perseguidores. Diante dos mitos, somos ludibriados pelas metismo da violência.
transfigurações que não são mais capazes de nos enganar no Em suma, o que estou afirmando é que mesmo a mito-
caso da caça às bruxas. Diante das perseguições que aconte- logia aparentemente mais nobre, a dos deuses olímpicos,
cem em nosso universo histórico, por mais distantes que es- provém da mesma gênese textual que a demonização do
tejam no tempo, compreendemos facilmente que as vítimas mendigo de Éfeso ou das bruxas medievais.
são reais e necessariamente inocentes. Compreendemos que A aproximação da mitologia e da caça às bruxas pare-
seria não somente estúpido, mas culpável, negar essa realida- ce escandalosa em virtude da veneração estética e cultural
de. Não queremos nos tornar cúmplices da caça às bruxas. A que envolve a mitologia, mâs o escândalo não resiste a uma
mitologia é uma versão mais poderosa do processo transfigu- comparação séria entre as duas estruturas. Em ambos os
rador cujo funcionamento está claro no caso da caça às bru- casos, são os mesmos dados organizados do mesmo modo,

xas, já que em nosso mundo ele só funciona sob uma forma mas muito enfraquecidos, repito, nos fenômenos do univer-
bastante enfraquecida, tncapaz de produzir verdadeiros mitos. so cristão, aqueles que qualificamos de "históricos".
Se examinaÍmos os textos que refletem as grandes con- É verdade que quanto mais as divindades envelhecem,
vulsões medievais, não será difícil encontrar o ciclo miméti- mais sua dimensão maléfica vai se dissipando em proveito
co, a crise, as acusações estereotipadas, a violência coletiva da dimensão benéfica, mas sempre restam vestígios do de-
e, às vezes, ainda um embrião de epifania religiosa. São cla- mônio original, da vítima coletivamente massacrada.
ros os sinais preferenciais de seleção da vítima que carac- Caso nos limitemos a repetir os cosrumeiros clichês so-
terizam muitos heróis e divindades mitológicas. Têmos os bre os deuses olímpicos, iremos enxergar apenas sua majes-
mesmos critérios de seleção do phormokos grego: doenças tade e serenidade. Na arte clássica, os elementos positivos,
de todo tipo, taras físicas e sociais. Exatamente os critérios em geral, já se encontram em primeiro plano, mas por trás
que determinam Apolônio a escolher um miserável mendi- deles, mesmo no caso deZets, há sempre o que é chamado
go para sua lapidação "milagrosa". com uma complacência um tanto simplória de "extravagân-
Os mitos propriamente ditos fazern parte da mesma fa- cias" do deus. Todo mundo está de acordo para "desculpar"
mília textual que a lapidação de Apolônio, os fenômenos tais extravagâncias com um sorriso finamente cúmplice,
medievais de caça às bruxas ou ainda... a Paixão de Cristo. um pouco como se fosse o caso de um presidente america-

Uu vr,r S,r't'itli,is CÀltl rit()Mo tru irllinrp*r;o I rr5


rr4 | ltuNíi (lrii.rmr
no pego em flagranre delito de adultério. As exrravagâncias mistificação das formas míticas cuja decifraçáo ê a partir de
deZeus e seus colegas seriam apenas, nos asseguram, "leves agora possível.
sombras de sua divina grandeza".
Espero impacientemente o dia em que os pesquisadores
Na realidade, as "extravagâncias" são os vestígios de cri- perceberão que, nos mitos, estão tratando dos mesmos te-
mes análogos aos de Edipo e ourros bodes expiatórios divini-
mas que na caça às bruxas, estruturados da mesma maneira
zados: são parricídios, incestos, fornicações bestiais e outros
e falsamente percebidos como indecifráveis. Na realidade,
crimes horripilantes, ou seja, acusações típicas da caça às eles são decifráveis há dois mil anos. Os relatos da Paixão
bruxas que obcecam sempre as multidões arcaicas e até mes-
constituem essa decifração.
mo as multidões modernas em busca de vítimas. As "extra-
Longe de ser aberrante, fantástica, a interpretação que
vagâncias" são o essencial do divino arcaico. proponho torna-se evidente a partir do momento em que é
Graças a Deus os historiadores da Idade Média recusam-
abordada pelo viés dos "elos perdidos", como a lapidação de
-se a negar a realidade da caça às bruxas. Os fenômenos que
Apolônio, intermediário entre os relatos de violência coleti-
eles decodificam são excessivamente numerosos, excessi-
va, ainda capazes de nos enganar, míticos no sentido forte, e
vamente inteligíveis, excessivamente bem-documentados aqueles em que reconhecemos instantaneamente as ilusões
para alimentar, pelo menos até aqui, a fúria de desrealiza-
dos perseguidores mistificados por suas próprias persegui
ção que se apoderou de nossos fllósofos e mitólogos. Os ções, a Paixão de Cristo, as perseguições contemporâneas.
historiadores continuam a afirmar a existência real das ví-
timas massacradas pelas multidões medievais: leprosos, ju-
deus, estrangeiros, mulheres, enfermos, marginais de todo
tipo. Seríamos não somente ingênuos, mas culpados, se nos O grande interesse de nossa lapidação é que ela destrói as
considerássemos incapazes de afirmar a realidade dessas ví-
distinções excessivamente rígidas daqueles que gostariam
timas, sob pretexto de que todos esses "relatos" são necessa-
de aprisionar o real em categorias bem-delimitadas. O es-
riamente "imaginários", que a verdade não existe etc.
truturalismo linguístico evita claramente utilizar textos
Se as vítimas da caça às bruxas medieval são reais, por
como o de Filóstrato. E com razão. Filóstrato ultrapassa
que as dos mitos não seriam?
muitas barreiras consideradas intransponíveis. Por trás da
O que impede os mitólogos de descobrir a verdade não é
descontinuidade da linguagem, nosso "elo perdido" eviden-
a dificuldade inrínseca da tarefa, mas seu excessivo respei-
cia uma continuidade real, sustentando uma inteligibilidade
to pela Antiguidade clássica, que já dura séculos e, agora, verdadeira, que não se deixa encerrar nos compartimentos
estende-se ao universo arcaico em seu conjunto. É a ideo-
estanques dos classificadores antigos e modernos. Os famo-
logia antiocidental e sobrerudo anricrisrã que impede a des-
sos métodos linguísticos são muito apreciados porque eles

rro I t{rNÉ Grneno


Eu vra SATaNÁs cÂrR coMo ur,a nelÂlapaco I rr7
substituem a busca da verdade pelos passatempos estrutu- -famflias, aleijados, doentes, velhos abandonados, em suma,
ralistas. sempre seres dotados do que chamei, em O bode expiatório,
Embora não seja exatamente um mito, a lapidação de de "traços preferenciais de seleção vitimária". Esses traços
Éfeso, com a ajuda dos Evangelhos, sugere, sobre a nature- não variam muito de cultura a cultura. Sua fixidez contra-
za e a gênese dos mitos e das divindades, uma hipótese que diz o relativismo antropológico. Ainda hoje eles determi-
se situa no prolongamento direto do texto, uma hipótese nam os fenômenos ditos de "exclusão". Atualmente quem
difícil de ser rejeitada caso busquemos verdadeiramente a os possui não é mais massacrado, o que não deixa de consti-
verdade. O mesmo ocorre em relação aos sacrificios rituais. tuir um progresso, embora precário e limitado.
Embora não seja exâtamente um sacrifício, a lapidação É co-u* sugerir que os gregos da época clássica eram
de Éfeso mantém visivelmente relações estreitas com certo "cMlizados demais" para se entregar ainda a ritos tão bár-
tipo de sacrifício bastante generulizado no mundo grego. baros quanto o do pharmakos. Esses ritos, repete-se sem
O rito ao qual elaíaz referência imediata é de fato tão pró- qualquer prova de apoio, "devem ter caído rapidamente em
ximo do que Filóstrato nos conta que somos tentados a desuso". Nossa lapidação milagrosa, meia dízia de séculos
recorrer a ele para definir o "milagre" de Apolônio: é o rito após Sócrates e Platão, não confirma tão belo otimismo.
do pharmakos. O culto dionisíaco é cheio de ritos ainda mais cruéis que
O mendigo de Apolônio lembra a espécie de homens o "milagre" de Apolônio, mas literalmente nós não os ye-
que Atenas e as grandes cidades gregas alimentavam à pró- mos... no sentido quase cinematográfico com que o relato
pria custa para transformá-los, no momento adequado, em de Filósrato nos força aver alapidação de Éfeso. O piscar de
pharmtkoi, ou seja, para assassináJos coletivamente por olhos do mendigo, a crosta de pão na sua sacola, a compai-
que recuar diante desse termo?
-
por ocasião das Targélias xão inicial dos efesios, todos os detalhes concretos aumen-
-
e outras festas dionisíacas. Antes de lapidar esses pobres-dia- tam o poder evocador do texto de Filóstrato.
bos, às vezes seu sexo era chicoteado, e eles eram submeti- Seria tentador concluir que o acontecimento relatado,
dos a verdadeiras sessões de tortura ritual. mesmo sendo real, seria excessivamente excepcional para
Ao escolher uma vítima que não seria chorada por nin- figurar de maneira legítima em um debate sobre a violência
guém, Apolônio não corre o risco de agravar as desordens nas religiões pagãs. Ao contrário, o relato de Filóstrato só
que busca apazigtal o que é uma grande vantagem. O é excepcional por seu realismo, seu relativo modernismo.
mendigo lapidado apresenta todos os traços clássicos do Os ritos depharmakos supostamente purificavam as cida-
pharmakos, que na verdade coincidem com os de todas as des gregas de seus miasmas, tornando-as mais harmonio-
vítimas humanas nos ritos sacrificiais. Para não suscitar re-
presálias, escolhiam-se nulidades sociais: sem-tetos, sem-

rrs I ttrNÉ Grnann Eu vra SarauÁs caIR coMo ura nrúneaco I rr9
sas, realizando, em suma, o tipo de milagre que Apolônio No dizer dos principais interessados, que talvez devam
realiza com seu mendigo. Em período de crise, todas as cul- ser escutados, os sacrifícios são destinados: 1) a agradar aos
turas sacrificiais recorriam a ritos não previstos pelo calen- deuses, que os ensinaram aos homens e 2) a consolidar ou
dário liúrgico normal. A lapidação do mendigo é um rito restalrrar, se for necessário, a ordem e apazna comunidade.
de ph ar makos improvis ado. Apesar da pnanimidade dessas afirmações, os etnólogos
Fazendo lapidar o mendigo, Apolônio reproduz sobre nunca as levaram a sério. E penso ser esta arazáo pela qual
uma vítima humana a violência unânime que a maioria dos não resolveram o enigma dos sacrifícios. Para resolvê-lo, é
sacrifícios só continuava reproduzindo, em sua época, com preciso admitir que os sacrificadores diziam a verdade tal
útimas animais. qual a compreendiam. Eles estavam muito mais próximos
Também as representações teatrais ênraízam-se na üo- da verdadeira explicação de seus próprios ritos do que todos
lência coletiva e são espécies de ritos, mas ainda mais pu- os especialistas contemporâneos.
rificados de sua violência que os sacrifícios animais, e mais Os sacrifícios sangrentos são tentativas de recalcar e mo-
ricos do ponto de vista cultural, pois são sempre, pelo menos derar os conflitos internos das comunidades arcaicas repro-
indiretamente, medirações sobre a origem do religioso e da duzindo com a maior precisão possível, à custa de vítimas
totalidade da cultura, fontes potenciais de saber, como de- que substituem a vítima original, üolências reais que, num
monstra Sandor Goodhart em seu Saoificingcommentary.. passado não determinável, mas de modo algum mítico, ha-
Mas o objetivo da tragédia é o mesmo que o dos,sacri- viam realmente reconciliado essas comunidades, devido à
fícios. Trata-se sempre de produzir, entre os membros da sua unanimidade.
comunidade, uma purificação ritual, a cdtharsis aristotélica, As divindades estão sempre misturadas aos sacrifícios,
que não passa de uma versão intelectualizada ou "sublima- pois as violências coletivas que serão reproduzidas não se
da", como diria Freud, do efeito sacrificial original. diferenciam daquelas que, precisamente por tê-los reconci-
iiado, persuadiram os beneficiários de que suas ütimas são
divinas.
Em suma, é sempre um "mecanismo vitimáno" efrcaz
Na época em que ainda existiam ritos sacrificiais mais ou que serve de modelo aos sacrifícios e que é considerado di
menos vivos, quando os etnólogos perguntavam às comuni- vino por ter realmente posto flm a uma crise miméttca, a
dades por que elas os observavam escrupulosamente, sem- uma epidemia devinganças em cadeia que não se conseguia
pre obtinham a mesma dupla resposta. controlar.
A prova de que os sacrifícios são modelados segundo
* Sandor Goodhart, Sacrifcíng Commentary. Baltimore: Johns Hopkins Univer_
violências reais é que, embora sejam certamente diferentes
siry,1996.

rzo I RewÉ Grnano Eu wa SaranÁs cArR coMo uu nrúueeco I rzr


em seus detalhes, eles possuem sempre os mesmos traços tação com o objetivo de incitar seus novos fiéis a reprodu-
estruturais, e é o modelo da violência coletiva espontânea zirern-na e assim renovarem seus efeitos , paÍa proteger-se
que visivelmente os inspira. As semelhanças entre os siste- no futuro contra um recrudescimento sempre possível de
mas sacrificiais, de um lado a outro do planeta, são constan- desordens miméticas. A ideia de que foram os deuses que
tes demais e explicáveis demais para tornar verossímeis as ensinaram aos homens seus sacrifícios é universal e vemos
concepções imaginárias ou psicopatológicas do sacrifício. facilmente o que a justifica.
Talvez a divindade deseje que esses sacrifícios sejam perpe-
tuamente repetidos, para o bem de seus fiéis, talvez também
para o seu próprio bem, porque ela se sente honrada com os
Para compreender como nascem os ritos, é preciso ima- ritos, ou talvez ainda porque ela se alimente de suas vítimas.
ginar o estado de espíriro de uma comunidade que, após Não sabendo exatamente sobre o que repousa a virtude
longas desordens sangrentas, é libertada de seu mal graças das violências coletivas, mas suspeitando talvez de que sua
a um imprevisto efeito de multidão. podemos supor que eficácia não seja apenas sobrenatural, as comunidades irão
reinava uma grande euforia nos primeiros dias ou meses copiar sua experiência de unanimidade violenta de modo
que se seguiam a essa liberação. Infelizmente, esse período tão exato e completo quanto possível. Em caso de incerteza,
abençoado não durava para sempre. Os homens são feitos melhor pecar por excesso do que por falta. Esse princípio
de tal maneira que sempre recaem em suas rivalidades mi- explica por que numerosas comunidades incorporam a seus
méticas. "E, preciso que o escândalo aconteça", e ele aconte- ritos a própria crise mimética, a crise que desencadeou o
ce sempre, de início esporadicamente, e não se presta muita processo mimético de seleção da vítima original.
atenção a isso, mas ele logo prolifera. Não se pode mais ne- Em muitos ritos sacrificiais, tudo começa com um simu-
gar a evidência: uma nova crise ameaça a comunidade. lacro de crise mimética, realista e semelhante demais para
Como evirar tal desastre? A comunidade não esqueceu ser inventado. Todos os subgrupos se provocam e se enfren-
o drama esrranho e incompreensível que a tirou um dia do tam simetricamente, mimeticamente. O modelo só pode
abismo no qual teme recair. Ela está plenamente grata à ví- ser a crise real, que desencadeou exatamente aquilo que se
tima misteriosa que no começo a mergulhou nesse desas- tenta reprodrzir, a violência unânime contra a vítima.
tre, mas que em seguida a salvou. Em resumo, para gerar seu próprio antídoto, a violência
Refletindo sobre esses estranhos acontecimentos, chega- deve inicialmente se exasperar. É isso que compreendem, se-
-se à conclusão de que se eles se desenrolaram dessa forma, gundo todas as evidências, muitos sistemas sacrificiais. Por-
foi, sem dúvida, porque a vítima misteriosa assim o quis. tanto, elesjulgam necessário reproduzir a crise sem a qual o
Talvez essa divindade tenha organizado toda essa represen- mecanismo vitimário, talvez, não se desencadearia.

rzz I llr,xi- (,;n,rnn I'1, r,tl Sar,rrÁs cÁrR coÀ.ío uv nrlr-,ilrprco I rzj
É por isso que tantos ritos, muito úsivelmente destina- todo um esforço de reproduzir o modelo tão exata e meti-
dos a restabelecer a ordem, não deixam de começar, de ma- culosamente quanto Possível.
neira paradoxal a nossos olhos, logicamente na perspectiva É essa preocupação com a exatidáo que sugeriu aos psi-
mimética, por um agravamento da desordem, por uma es- cólogos e psicanalistas todas as suas explicações falaciosas
petacular desorganização de toda a comunidade. em termos de."neuroses", "fantasmas" e outros "comple-
No entanto, por mais racional que ele seja por trás de xos" de que tanto gostam. É evidente, aos olhos da maioria
seu aparente absurdo, esse procedimento não é universal. dos modernos, que a religião é um fenômeno psicopatoló-
Muitos sistemas rituais não reproduziam a crise inicial. É fá- gico. Para dissipar essas ilusões é preciso identificar a açáo
cil compreender a tazão. Essa crise é um desencadeamento real que os sacrificadores reprodtziam, a violência recon-
de violência mimética. Se ela for imitada de modo excessi- ciliadora, por ser espontaneamente unânime. Como esse
vamente realista, os riscos de uma perda total de controle modelo é realmente temível, os sacrificadores tinham razáo
são grandes, e muitas comunidades recusavam-se a assu- em temer sua reprodução.
mi-los. Sem dúüda, elas especulavam que haveria sempre Na temporalidade dos ritos, inevitavelmente chega o mo-
desordem suficiente para desencadear o mecanismo recon- mento em que as inúmeras repetições "desgastam" o efeito
ciliador, sem necessidade de se acrescentar um perigoso su- sacrificial. O terror que seus próprios sacrifícios inspiram a
plemento de violência. esses aprendizes de feiticeiros, que os sacrificadores nunca
Mesmo os ritos mais tumultuosos não reproduziarrt, errt deixam de ser, acaba Por se dissipar. Ele só sobrevive sob a
geral, a crise mimética em toda sua intensidade e duração. forma de comédias de terror destinadas a impressionar os
Quase sempre bastava uma versão resumida e acelerada da não iniciados, as mulheres e as crianças.
desordem. Em resumo, não era preciso lançar-se ao fogo Inúmeros indícios teóricos, textuais, arqueológicos suge-
para evitar se queimar. rem que nos primeiros temPos da humanidade as vítimas
Compreendemos por que, quase em toda paÍte, os sacri- eram principalmente humanas. Com o passar do tempo, os
ficadores consideravam seus sacrifícios ações temíveis. Eles animais foram substituindo cada vez mais os homens, mas
não ignoravam que a 'boa violência", aquela que ao invés de quase em toda Parte as vítimas animais eram consideradas
intensificar mais a violência coloca-lhe um fim, é a violência menos eficazes que as vítimas humanas.
unânime. Eles tampouco ignoravam que o motor da unani- Em caso de perigo extÍemo, na Grécia clássica, voltava-
midade é o mais exasperado mimetismo, necessariamente -se às vítimas humanas. Se acreditarmos em Plutarco, na
o mais perigoso enquanto não atingir a unanimidade. Daí véspera dabatalha de Salamina, Temístocles, sob pressão da
a ideia, universal em seu princípio, de que a atividade rirual multidão, mandou sacrificar prisioneiros peÍsas.
é extremamente perigosa. Para diminuir esse risco, havia Seria isso muito diferente do milagre de Apolônio?

rz4 | ReNÉ Grnano Eu vte SerarÁs caÍR coMo urvr x.rlÂrnlraco I rz5
VII
O essassrNlro FUNDADoR

Pon rnÁs oe Paixão de Cristo, por trás de alguns dramas


bíblicos, por trás de inúmeros dramas míticos identificamos
o mesmo processo de crise e de resolução fundado sobre o
mal-entendido da vítima única, o mesmo "ciclo mimético".
Quando examinamos os grandes relatos de origem e os
mitos fundadores, percebemos que eles próprios procla-
mam o papel fundamental e fundador da vítima única e
de seu assassinato unânime. A ideia está presente por toda
parte.
Na mitologia suméria, é do corpo de uma vítima úni-
ca,Ea, Tiamat, Kingu, que surgem as instituições culturais.
Mesma coisa na Índia: é o dilaceramento da ütima primor-
dial, Purusha, por uma multidão de sacrificadores que gera
o sistema das castas. Encontramos mitos análogos no Egito,
na China e, principalmente, entre os povos germânicos.
O poder criador do assassinato concretiza-se muitas ve-
zesnaimportância dada aos fragmentos da vítima. Conside-
ra-se que cada um deles produz LLmià instituição particular,
um clã totêmico, uma subdiüsão territorial, ou ainda o ve-
getal ou o animal que fornece à comunidade seu alimento
principal.
O corpo da vítima é às vezes comparado a uma semente
que deve se decompor para germinar, e essa germinação é
inseparável da restauração do sistema cultural prejudicado Como Caim procede para fundar a primeira cultura? O
pela crise precedente ou da criação de um sistema inteira- texto não coloca tal questão, mas responde implicitamente
mente novo, que aparece com frequência como o primeiro a ela pelo simples fato de limitar-se a dois temas: o primeiro
a ter sido engendrado, como uma espécie de invenção da é o assassinato de Abel, o segundo é a atribuição a Caim da
humanidade. "Se o grão não morrer antes de ser semeado, primeira cultura que se sirua claramente no prolongamento
ele permanecerá só, mas se ele morrer dará muitos frutos." direto do assassinato, e que, na verdade, não se diferencia
Os mitos que afirmam o papel fundador do assassina- das consequências não vingativas, mas rituais, desse assas-
to são tão numerosos que mesmo um mitólogo tão pouco sinato.
afeito a generalizações quanto Mircea Eliade julgava ne- Sua violência inspira aos assassinos um temor saudável.
cessário levá-lo em conta. Em seu História das crenças e das Ela os faz compteender arratuteza contagiosa dos compor-
ideias religiosas,' ele fala de um assassin dto criador comum a tamentos miméticos e também vislumbrar possibilidades
numerosos relatos de origem e mitos fundadores em todo desastrosas para o futuro: agora que matei meu irmão, diz
o planeta. Temos aí um tema cuja frequência visivelmen- Caim, "o primeiro que me encontrar me matará" (Gênesis
te surpreende o mitólogo, de algum modo um fenômeno 4, t4).
"transrnitológico", mas, fiel à sua prática puramente descri- Essa expressão "o primeiro que me encontrar me ma-
tiva, que eu saiba Mircea Ehade nunca sugeriu a explicação tará"
-
mostra claramente que a raça humana, nesse mo-
universal gue me parece possível dar-lhe.
-
mento, não se limita a Caim e a seus genitores, Adão e Eva.
A palavra Caim designa a primeira comunidade reunida
pelo primeiro assassinato fundador. Pois há muitos assassi-
nos potenciais e é preciso impedilos de matar.
A doutrina do assassinato fundador não é apenas mítica, O assassinato ensina ao(s) assassino(s) uma espécie de sa-
mas bíblica. No Gênesis, ela se encontra no assassinato de bedoria, uma prudência que modera sua violência. Aprovei-
Abel por seu irmão, Caim. O relato desse assassinato não tando-se da calmaria, Deus promulga a primeira lei contra
é um mito fundador, mas a interpretação bíblica de todos o assassinato: "Quem matar Caim será vingado sete vezes"
os mitos fundadores. Ela nos conta a fundação sangren- (Gênesis 4,15).
ta da primeira cultura e as consequências dessa fundação, A fundação da cultura cainita é essa primeira lei contra
que constituem o primeiro ciclo mimético representado o assassinato: cada vez que um novo assassinato ocorrer,
na Bíblia. serão imoladas sete vítimas em honra da vítima original:
Abel. Mais que o caráter esmagador da retribuição, é a natu-
* Mircea Eliade, Hrstoire áes *oyances et des id.ées rcligieusa Paris: Payot, 1978, rezaritual da séprupla imolação que restabelece a paz, é seu
P. 84.

rz8 | RrNÉ Ginann Ei. i rn S,r'rnruÀs cÀrR ( oM() uv urÀuenr;o I tz9


errraizamerrto na calmaria suscitada pelo assassinato origi-
nal, é a comunhão unânime da comunidade na lembrança
desse assassinato. A ideia do assassinato fundador encontra-se uma vez mais
A lei contra o assassinato não é nada além da repetição nos Evangelhos. Ela é pressuposta por duas passagens pa_
do assassinato. O que a distingue da üngança selvagem é ralelas em Mateus e Lucas que descrevem uma série de as_
mais seu espírito que sua nafiJÍeza intrínseca. Em vez de sassinatos análogos à paixão, remonrando à ..fundação do
uma repetição vingadora, que suscitaria novos vingadores, mundo".
é uma repetição rifual, sacrificial, uma repetição da unidade Mateus menciona "assassinatos de todos os profetas des_
forjada na unanimidade, uma cerimônia da qual participa de a fundação do mundo". Lucas trazumaprecisão suple_
toda a comunidade. Por mais tênue e precária que pareça mentar: "desde Abel, oJusto." O último elo dessa cadeia é a
ser a diferença entre repetição ritual e repetição vingadora, Paixão, que se assemelha a todos os assassinatos anteriores.
ela não deixa de ter uma enorme importância, sendo pre- É a mesma estrutura de arrebatamento mimético e de me-
nhe de todas as posteriores diferenciações. Ela é a invenção canismo vitimário.
da cultura humana. A alusão de Lucas ao assassinato de Abel é importante
É preciso eütar ler na história de Caim uma "confusão" por duas razões pelo menos. A primeira é que ela deveria
entre o sacrifício e a pena de morte, como se as duas ins- desacreditar de uma vez pot todas a tese excessivamente
tiquições existissem previamente à sua invenção. A lei que restrita que transforma as observações evangélicas sobre os
surge da pacificação suscitada pelo assassinato de Abel é a assassinatos dos profetas, sobre âtaques contra o povo ju_
m;atrJz comum de todas as instituições. Ela é fruto do as- deu, em manifestações de "antissemitismo',.
sassinato de Abel apreendido em seu papel fundador. O Como o povo judeu não existia na época de Caim e Abel,
assassinato coletivo torna-se fundador por meio de suas re- e como Abel é considerado o primeiro dos profetas coleti_
petições rituais. vamente assassinados, esses assassinatos de profetas eüden_
Não é a pena capital somente, a lei contra o assassinato, temente não podem ter sido ações apenas do povo judeu, e
que deve ser concebida como uma domesticação e limita- não é para atacar seus compatriotas queJesus insiste nessas
ção da violência selvagem pela üolência ritual, mas todas as violências. Sua intenção, como sempre, tem uma signífica_
grandes instituições humanas.
ção humana de âmbito universal.
Como observaJames Williams, o "sinal de Caim é o sinal A segunda razão quLe torna a alusão a Abel muito impor_
da c:viizaçáo. É o sinal do assassino protegido por Deus".. tante, no contexto da "fundação do mundo,,, é que ela cons_
titui uma retomada do que o Gênesis diz na história de Caim,
uma adoção deliberada da tese que acabo de e4por, ou seja,
* TheBibb,ViolenceanltheSaned.Sío Francisco: Harper, 1991, p. 185.

r3o I Rrr.rÉ Grnenn


Eu vm SarexÁs cÁrR coMo uu nrr,Ârr,reco r3r
I
qúe a primeira cultura humana enraíza-se num primeiro as- mente divina, não pode ser acompanhada de violência. Ela
sassinato coletivo, um assassinato análogo à crucificação' se relaciona necessariamente à primeira cultura humana.
O que mostra que as coisas se Passaram exatamente Portanto, a palawa archà tem o mesmo sentido qtekatabo-
assim é a expressão comum a Mateus e a Lucas, "desde a lêskosmounos Evangelhos sinóticos: trata-se da fundação da
fundação do mundo". O que se produz desde a fundação primeira cultura.
do mundo, ou seja, desde a fundação violenta da primeira Se a relação do assassinato com o começo fosse fortuita,

cultura, são assassinatos sempre análogos à crucificação, as- se ela significasse simplesmente que, desde que os homens

sassinatos fundados sobre o mimetismo, consequentemen- apareceram sobre a terra, Satanás os incitou ao assassinato,
te, assassinatos fundadores, em tazáo do mal-entendido a João não mencionaria a palavra "origem" a respeito do pri-
respeito da útima, causado pelo mimetismo. meiro assassinato. Nem Mateus nem Lucas aproximariam a
As duas frases sugerem que a cadeia de assassinatos é ex- fundação do mundo e o assassinato de Abel.
tremamente longa, já que remonta à fundação da primeira Essas três frases, as de Mateus e Lucas de um lado, a de

cultura. Esse tipo de assassinato, comum ao assassinato de João de ouro, significam â mesma coisa: elas assinalam que
Âbel e à crucificação, desempenha um papel fundador em entre a origem e o primeiro assassinato coletivo existe uma
toda a história humana. Não é por acaso que os Evangelhos relação que não é fortuita. O assassinato e a origem são in-
relacionam esse assassinato com akatabolêskosmou, a funda- separáveis. Se o diabo é homicida desde a origem, isso sig-
nifica que ele também o é na sequência dos tempos. Cada
ção do mundo. Mateus e Lucas sugerem que o assassinato
tem um caráter fundador, que o primeiro assassinato e a vez que uma cultura aparece, é por esse mesmo tipo de as-
fundação da primeira cultura são inseparáveis. sassinato que ela começa. Temos então uma sequência de
Existe no Evangelho deJoão uma frase equivalente às de assassinatos completamente análogos à Paixão, e a todos

Mateus e Lucas, e ela confirma a interpretação que acabo os fundadores. Se o primeiro encontra-se na origem da pri

de dar. É a frase que se encontra no centro do grande dis- meira cultura, os seguintes devem ser a origem das culturas
curso de Jesus sobre o diabo, já comentada no capítulo III' subsequentes.
Também ela é uma definição do que Mircea Eliade chama Tudo isso está perfeitamente de acordo com aquilo que
de assassinato criador: aprendemos páginas atrás sobre Satanás, ou o diabo, ou seja,
que ele é uma espécie de personificação do "mau mimetis-
Desde a origem lo diabol foi homicida. mo", tanto em seus aspectos conflituosos e desagregadores
quanto em seus aspectos reconciliadores e unificadores. Sa-
A palavra para origem, início, começo, ê archà. Ele não tanás, ou o diabo, é alternadamente aquele que fomenta a
pode se relacionar à criação exniWilo, que, sendo completa- desordem, o semeador de escândalos e aqueie que, no pa-

Eu vra Sa'raNe.s cArR coMo urra nrlÂveeco I r33


r3z I RrNÉ Gtnano
roxismo das crises que ele mesmo provocou, coloca brus- ciliador desse assassinato, por mais saneador que seja, não
camente um fim a elas, expulsando a desordem. Satanás conseguiria se prolongar por gerações. por si só, o assassina_
orpulsa Satanás por meio das vítimas inocentes que ele sem- to não consegue gerar e perpetuar as instituições culturais.
pre consegue condenar. Como é o mestre do mecanismo vi- Existe uma resposta satisfatória à questão que acabei de
timário, Satanás é também o mestre da cultura humana que colocar. Para descobri-la, parece evidente recorrer à primei
não tem outra origem além do assassinato. Em ultima anáü- ra de todas as instituições humanas após o assassinato cole-
se, é o diabo, ou, em outras palavras, o mau mimetismo, que tivo, ou seja, à repetição ritual desse assassinato. Vamos nos
se encontra na origem não somente da cultura cainita, mas interrogar rapidamente sobre o modo pelo qual se coloca,
de todas as culturas humanas. parece-me, a questão da origem das instituições culturais e
das sociedades humanas.
Desde a época do Iluminismo, essa quesrão é definida
em termos ditados pelo racionalismo mais abstrato. Os pri_
Como a ideia do assassinato fundador deve ser interpreta- meiros homens são concebidos como pequenos Descartes
da? Como tal ideia poderia se concretizar, como ela poderia no isolamento de seus quartos aconchegantes, afirmando-
deixar de parecer fantasiosa e mesmo absurda? -se que eles conceberam de modo abstrato, puramente
Sabemos que o assassinato age como uma espécie de teórico para começar, as instituições que desejavam se pro-
calmante, de tranquilizante, pois os assassinos, ao saciarem porcionar. Passando em seguida da teoria à prática, esses
seu apetite de violência sobre uma ütima na realidade não primeiros homens teriam realizado seu projeto institucio-
pertinente, estão muito sinceramente persuadidos de terem nal. Portanto, nenhuma instituição pode existir sem uma
livrado sua comunidade do responsável por seus males. Mas ideiapréviaque guie sua elaboração prática. É essa ideia que
essa ilusão, por si só, não é suficiente para justificar a crença determinaria as culruras reais.
na ürtude fundadora desse assassinato, crença que, como Se as coisas tivessem realmente acontecido dessa forma,
acabamos de constatar, é comum não somente a todos os a religião não teria desempenhado qualquer papel na gêne-
grandes mitos fundadores, mas também ao Gênesis e, final- se das instituições. E, efetivamente, no contexto racionalista
mente, aos Evangelhos. que ainda é o da eúrologia clássica, a religião não desem-
A interrupção temporária da crise não é suficiente para penha qualquer papel, não serve absolutamente para nada.
explicar a crença de tantas religiões no poder fundador do Só pode ser supérflua, superficial, acrescentada; em outrâs
assassinato coletivo, no seu poder não somente de fundar palavras, uma superstição.
comunidades, mas também de garantir-lhes uma organi- Como explicar então a presença universal dessa religião
zação duradoura e relativamente estável. O efeito recoÍl- perfeitamente inútil no coração de todas as instituições?

r3a I RrNÉ Grnann Eu vn SeuNÁs cArR coMo urr,r aur,Âx.maco I r35


Quando essa questão é colocada num contexto racionalista, mos melhor as sociedades arcaicas e, em mútas delas, é im-
só existe uma resposta verdadeiramente lógica, que é aque-
possível não constatar que as instituições que o Iluminismo
la de Voltaire: a religião deve teÍ parasitadn do exterior as considerava indispensáveis à humanidade não existem
instituições realmente úteis. Foram os sacerdotes "espertos em seu lugar, só existem ritos sacrificiais.
-
e ávidos" que as inventaram, para explorar em seu proveito
Em relação aos ritos, podemos distinguir, gro s s o mo do, três
a credulidade do bom povo. tipos de sociedades. Existe, em primeiro lugar: 1) uma socie-
Em nossa época, tentamos nuançar um pouco o simplis-
dade em que o rito não é mais nada ou quase mais nada, e
mo dessa expulsão racionalista da religião, mas, no que diz essa é a sociedade contemporânea, a nossa sociedade.
respeito ao essencial, ela continua necessariamente a domi- Há em seguida, ou melhor, havia em outros tempos 2)
nar a antropologia contemporânea. Não é possível repudiá- sociedades em que o rito acompanha de alguma maneira
-la abertamente sem transformar a onipresença dos ritos
e reitera todas as instituições. É aqui que o rito parece ter
nas instiruições humanas em um temível ponto de interro-
sido anexado a instituições que não precisam dele. As so-
gação.
ciedades antigas e, em outro sentido, a sociedade medieval,
As ciências sociais modernas são essencialmente antir- pertencem a esse tipo. É esse tipo, falsamente considerado
religiosas. Se a religião não é uma espécie de erva daninha, universal pelo racionalismo, que sugeriu a tese da religião
de capim irritante, mas insignificante, para que nos serüria? parasitária.
Como ela permanece sendo, durante toda a história, o ele- Existem, enfim, 3) as sociedades "muito arcaicas" e que
mento imutável nas instituições diversas e cambiantes, não não possuem instituições no sentido em que as conhece-
se pode renunciar à pseudossolução que faz dela um puro
mos, mas que sempre têm ritos. Elas não possuem outras
nada, um parasita insignificante, a roda sobressalente de to- instituições além dos ritos.
das as carroças, sem nos confrontarmos com a possibilidade
Os velhos etnólogos viam as sociedades arcaicas como as
inversa, extremamente desagradável para a antirreligiosida- menos evoluídas, as mais próximas das origens e, apesar de
de moderna, a que faria dela o núcleo de qualquer sistema rudo que se disse para desacreditar essa tese, ela não peca
social, a verdadeira origem e a forma primitiva de todas as por falta de bom senso. Entretanto, é impossível adotá-la
instituições, o fundamento universal da cultura humana.- sem sermos irresistivelmente levados a pensar que não so-
Essa solução é ainda mais difícil de ser recusada pelo fato
mente o sacrifício desempenha um papel essencial nas pri-
de que, desde a época de ouro do racionalismo, conhece- meiras épocas da humanidade, mas que ele até poderia ser
* o motor de tudo o que nos parece especificamente humano
Sobre a estranha "alergia" dapesquisa moderna a todas as formas de sagra-
do, ver: a admirável reflexão de Bandera no início da seguinte obra: Cesareo no homem, de tudo que o distingue dos animais, de tudo
Bandera, The Sacred Game, The Role of The Sacred in the G*tes;"s of Modern Líterary que nos permite substituir o instinto animal pelo desejo
Fictíoz. Pensilvânia: UniversiryPark, The PennsylvaniaUnivers§Press, 1994.

r3f I RrNÉ Grneno


Eu vre SereNÁs cArR coMo ur'l nrúr.,rreco I r37
propriamente humâno, o desejo mimético. Se o devir hu- comunidades, de yez eÍr, quando um dos postulantes não
mano é, entre outras coisas, a aquisição do desejo miméti ressuscitava e não saía vivo da prova ritual, o que era consi-
co, fica evidente que os homens não podem dispensar, para derado um bom augúrio para todos os outros postulantes.
começar, instituições sacrificiais que recalcam e moderam o Via-se nessa morte um reforço providencial da dimensão
tipo de conflito inseparável da hominização. sacrificial do processo iniciático.
Como muitos observadores já constataram, nas socie- Dízer que esses ritos "substituem" nossos sistemas de
dades exclusivamente rituais as sequências sacrificiais já de- educação e outras instituições seria colocar a carroça nâ
sempenham, até certo ponto, o papel que mais tarde será frente dos bois. São as instituições modernas que, segundo
atribuído a todas as instituições que costumamos definir a toda a evidência, substituem os ritos, depois de terem lon-
partfu de sua função racionalmente concebida. gamente coexistido com eles.
Apenas um exemplo, os sistemas de educação: no mun- Tudo sugere que os ritos sacrificiais são os primeiros em
do arcaico eles não existem, mas os ritos ditos de passagem todos os domínios, em toda a história real da humanidade.
ou de iniciação desempenham um papel que prefigura o Existem ritos de execução câpital, a lapidação do Levítico,
deles. Os jovens não são introduzidos sorrateiramente em por exemplo, ritos de morte e de nascimento, ritos matri-
suas próprias culturas, mas entram nelas por meio de pro- moniais, ritos de caça e de pesca nas sociedades que se de-
cedimentos sempre solenes, envolvendo toda a comunida- dicam a essas atividades, ritos agrícolas nas sociedades que
de. Esses ritos, frequentemente chamados "de passagem", praticam a agricultura etc.
incluem "provas muitas vezes penosas, que evocam irre- Tudo que chamamos de "nossas instituições culturais"
sistivelmente nossos exames ditos "de passagem", nossas deve se referir, originalmente, a comportamentos rituais
"provas" de fim de curso etc. A observação dessas analogias tão bem-polidos pelos ânos que perdem todas as conota-
é a mais banal possível. ções religiosas, definindo-se então pela relação ao tipo de
Os ritos ditos de passagem ou de iniciação são fundados, "crise" que eles são destinados a resolver.
como todos os ritos, sobre o sacrifício, sobre a ideia de que De tanto serem repetidos, os ritos se modificam e se trans-
qualquer mudança radical é uma espécie de ressurreição en- formam em práticas que parecem elaboradas apenas pela ra-
raizada na morte que a precede e é a única a poder mobili- zão humana, quando na realidade derivam da religiosa. Os
zaf novamente a potência vital. ritos encontram-se sempre oportunamente, onde há uma
Numa primeira fase, que é a da "crise", os postulantes crise a ser resolvida, e com razão. Para começar, os sacrifí-
morriam, de algum modo, para sua infância, e na segunda cios não passam de uma resolução espontânea, pela violência
fase eles ressuscitavam, capazes, a partir de então, de ocu- unânime, de todas as coisas que se apresentam inopinada-
par o lugar que lhes cabia no mundo dos adultos. Em certas mente na existência coletiva.

rz8 I RlxÉ Crnaxn Ll.t; vre S.lt.ll.irs cAiF. cor,tíl uiu nr:t.Âupaco I r19
Essas crises são não somente as discordâncias miméticas, baixo, no caldo das rivalidades miméticas. A autoridade re-
mas a morte e o nascimento, as mudanças de estação, as ligiosa que lhe confere seu sacrifício futuro vai lhe permitir
carestias, os desastres de todo tipo, e ainda mil outras coisas não exatamente "tomar" um poder que ainda não existe,
que, justa ou injustamente, inquietam os povos arcaicos: e mas, literalmente, forjá-1o. A veneração inspirada por seu
é sempre recorrendo ao sacrifício que as comunidades ten- sacrifício vindouro se transforma pouco a pouco em poder
tam acalmar suas angústias. "político"..
Podemos comparar a dimensão propriamente religiosa
a uma substância materna, a uma placenta original da qual
os ritos se livram com o tempo para transformar-se em ins-
Por que certas culturas enterram suas vítimas em amontoados tituições desritualizadas. As repetições dos sacrifícios são as
de pedras às quais com frequência dão uma forma piramidal? numerosas lambidas da ursa em sua progenitura mal lam-
Para e4plicar tal costume, podemos considerálo um subpro- bida.
duto das lapidações rituais. Lapidar uma vítima é recobrir seu O verdadeiro guia da humanidade não é a razão desen-
corpo de pedras. Quando são lançadas muitas pedras sobre um carnada, mas o rito. Numerosas repetições modelam pouco
ser vivo, não somente ele morre, mas essas pedras assumem, a pouco as instituições que os homens acreditarão mais tar-
de modo completamente natural, a forma troncônica do tumu- de terem sido inventadas exnihilo. Na verdade, foi a religião
lru encontrada, mais ou menos geometrizada, nas pirâmides que as inventou para eles.
sacrificiais ou funerárias de inúmeros povos, começando pelos As sociedades humanas são obra dos processos miméti-
egípcios, entre os quais o úmulo tem a forma de uma pirâ- cos disciplinados pelo rito. Os homens sabem muito bem
mide truncada, e apenas mais tarde terminada em ponta. O que não dominam suas rivalidades miméticas por seus
úmulo é inventado a partir do momento em que o costume próprios meios. É por isso que eles atribuem tal domínio
de recobrir os cadáveres de pedras difunde-se na ausência de a suas vítimas, que consideram como divindades. Em uma
qualquer lapidação. perspectiva puramente positiva, estão errados; num sentido
Como conceber a origem ritual do poder político? Por r-nais profundo têm razão. A humanidade, acredito, é filha
meio daquilo que chamamos de realcza sagrada, que tam- cla religião.
bém deve ser pensada como uma modificação, ínfima em
princípio, do sacrifício ritual.
Para fabricar um rei sagrado, escolham uma vítima inte-
ligente e autoritária. Em vez de sacrificá-la imediatamente,
adiem sua imolação, coloquem-na para cozinhar em fogo t Sobre a questão das realczas sagradas em geral, e mais particularmente no
of Disaster. Leiden: EJ. BÍill, 1992.
Srrdão, r,er: Simor-r Simonse , Kings

rao j Rr:rír (lrnrnr-. llr-, vr.r S.rrix.is c.\rn (.r)\1o,-,lt nt,r Âiutp.rtto ! r4l
Nossas instituições devem sero desfeúo de umlongoproces- Para reabilitar a tese religiosa do assassinato fundamen-
so de seculaização inseparável de uma espécie de "raciona- tal e torná-la cientificamente plausível, basta acrescentar a
lização" e de "funcionalizaç[s". Há muito tempo a pesqúsa esse assassinato os efeitos cumulativos dos ritos, levando
moderna teria sido capaz de identificar sua verdadeira gêne- em conta sua plasticidade, num período de tempo extrema-
se, se não estivesse desfavorecida por sua hostilidade, no fun- mente longo:
do irracional, em relação ao religioso. A ritualização do assassinato é a primeira instituição e
É preciso considerar a possibilidade de que todas as insti- a mais fundamental, arrráe de todas as outras, o momento
tuições, e consequentemente a própria humanidade, sejam decisivo na invenção da cultura humana.
modeladas pela religião. De fato, para escapar do instinto A força da hominização é a repetição dos sacrifícios num
animal e aceder ao desejo com todos seus riscos de confli- espírito de colaboração e de harmonia ao qual eles devem
tos miméticos, o homem precisa disciplinar seu desejo, e a sua fecundidade. Essa tese atribui à antropologia a dimen-
única forma de fazê-lo é por meio de sacrifícios. A humani- são temporal que the falta, e está de acordo com todas as
dade sai da religião arcaica por intermédio dos "assassinatos religiões no que diz respeito às origens das sociedades.
fundadores" e dos ritos deles decorrentes. A partir do momento em que a criatura pré-humana ul-
A vontade moderna de minimizar a religião poderia ser, trapassou um certo umbral de mimetismo e que os mecanis-
paradoxalmente, o vestígio supremo da própria religião sob mos animais de proteção contra a violência desmoronaram
sua forma arcaica, que consiste, em primeiro lugar, em se (dominance Í,dtterns, padrões de dominância), os conflitos
manter a uma distância respeitosa do sagrado, um último miméticos devem ter se alastrado fulminantemente entre
esforço para dissimular o que está em jogo em todas as ins- os homens, mas esses mecanismos logo produziram seu
tituições humanas, isto é, eütar a violência entre os mem- antídoto, suscitando mecanismos vitimários, divindades e
bros de uma mesma comunidade. ritos sacrificiais que não somente moderaram a üolência
A ideia do assassinato fundador é üsta como uma in- no interior dos grupos humanos, mas também canalizaram
venção bizarca, uma aberração recente, um capricho de suas energias em direções positivas, humanizadoras.
intelectuais modernos, alheios tanto à razío quânto às rea- Como nossos desejos são miméticos, eles se asseme-
lidades culturais. E, no entanto, essa ideia é comum a todos tham, e se reúnem em sistemas de oposição obstinados,
os grandes relatos de origem, à Bíblia hebraica e, finalmen- estéreis e contagiosos. São os escândalos. Multiplicando-se
te, aos Evangelhos . Ela ê mais verossímil que todas as teses e concentrando-se, os escândalos mergulham as comunida-
modernas sobre a origem das sociedades, que se remetem des em crises que se exasperam cadavez mais, até o instan-
todas a uma forma ou outra do mesmo absurdo inextirpá- te paroxístico em que a polanzação unânime contra uma
vel, o "contrato social". vítima única produz o escândalo universal, o "abscesso de

az I RrNÉ Grneno Eu vre SeraNÁs cÂrR coMo urra nsr-Ârr,rnaco I r43


fixação", que aplaca
comPosto.
a violência e recompõe o conjunto des-
VIII
*
A exasperação das rivalidades miméticas teria impedido As porssrADEs E os PRINCIPADOS
as sociedades humanas de se constituírem, em seu paroxis-
mo, ela não tivesse produzido o próprio remédio; em outras
palavras, se o mecanismo vitimário ou mecanismo do bode
expiatório não tivesse feito sua intervenção. Portanto, é ne-
cessário que esse mecanismo do qual hoje, a nosso redor,
vemos apenas vestígios atenuados
- tenha reconciliado O capirulo eRECEDENTE mostrou que a Bíblia e os Evange-
-
verdadeiramente as comunidades, dotando-as de uma or- lhos estão essencialmente de acordo com os mitos para atri-
dem ritual e a seguir institucional, que lhe garanta a perma- buir a fundação e o desenvolvimento das sociedades huma-
nência no tempo, além de uma relativa estabilidade. Sim, as nas aos efeitos cumulativos dos "mecanismos vitimários" e
sociedades humanas devem ser fi.lhas da religião. O próprio dos ritos sacrificiais.
Homo sa?terls deve ser o filho de formas ainda rudimentares Devido a sua origem violenta, satânica ot diabólica, os
do processo que acabo de descrever. Estados soberanos no interior dos quais o cristianismo sur-
giu são alvo, da parte dos cristãos, de uma desconfiança
muito grande, e para nomeá-los, enrvez de recorrer a seus
nomes habituais, emvez de falar do Império Romano, por
exemplo, ou da tetrarquia herodiana, o Novo Testamento
apela, o mais das vezes, a um vocabulário específico, o das
"potestades e dos principados".
Se examinarmos os textos evangélicos e neotestamen-
tários em que se trata das potestades, constataremos que,
implícita ou explicitamente, estas são associadas ao tipo de
violência coletiva às quais me refiro todo o tempo, e é mui
to compreensível se minha tese for exata: essa violência é o
mecanismo fundador dos Estados soberanos.

* Mantivemos a fórmula consagrada "potestades e principados", ainda que a


versão brasileira da Bíblia de Jerusalêm fale em "magistrados e autoridades"
(Epístola a Tito 3, 1-2). (Nora do Revisor Técnico)

raa I RrnÉ Grnaao


Os próprios Evangelhos chamam nossa atençáo para a
perda da unanimidade mítica em roda parte onde
Jesus in_
xII
tervém. João, em particular, assinala muitas vezes a divisão Bons Expr,aróRro
entre as testemunhas após as palavras e os atos deJesus.
Depois de cada intervenção de Jesus, as testemunhas en_
tram em disputa e, longe de unificar os homens, sua mensagem
suscita o desacordo e a divisão. É sobrerudo na crucificação
que essa diüsão desempenha um papel capitai. Sem ela não
haveria revelação evangélica; o mecanismo vitimário não se_ Os npraros oe Paixão projetam sobre o arrebatamento mi-
ria representado. Como nos mitos, ele seria transfigurado em mético uma luz que priva o mecanismo vitimário da incons-
ação justa e legítima. ciência que ele necessita para ser verdadeiramente unânime
e para suscitar sistemas mítico-rituais. A difusão dos Evange-
thos e da Bíblia deveria então, de início, pÍovocar o desapa-
recimento das religiões arcaicas. Efetivamente, foi isso que
aconteceu. Onde o cristianismo penetra, os sistemas mítico-
-rituais acabam por perecer ou desaparecer.
Para além desse desaparecimento, qual é a ação do cris-
tianismo em nosso mundo? Eis a questão que deve agora ser
proposta.
A complexa influência do cristianismo expande-se sob a
forma de um saber desconhecido das sociedades pré-cristãs, e
que não para de se aprofundar.E o saber que, segundo Paulo,
vem da Cruz e não tem nada de esotérico. Para apreendê-lo,
basta constatar que todos nós observamos e compreende-
mos situações de opressão e de perseguição que as socieda-
des anteriores à nossa não identificavam ou consideravam
inevitáveis.
O poder bíblico e cristão de compreender os fenômenos
vitimários transparece na significação moderna de certas
expressões, como'"bode expiatório".

zra I RrNÉ Cixan»


espontânea das relações entre o rito judaico e as
transferên-
Um 'bode expiatório" é em, primeiro lugar, a vítima
são mais ri-
do rito judaico que era celebrado por ocasião das grandes cias de hostilidade em nosso mundo' Essas não
trnlizadas, mas continuam existindo, na maioria
das vezes
cerimônias de expiação (Levítico 16, 2l). Esse rito deve ser
muito antigo, pois é visivelmente estrangeiro à inspiração sob uma forma atenuada.
especificamente bíblica no sentido definido acima. Os povos rituais não compreendiam esses fenômenos
efeitos
Ele consistia em expulsar para o deserto um bode car- como nós os compreendemos, mas observavam seus
reconciliadores e, como vimos, apreciavam-nos tanto
que
regado de todos os pecados de Israel. O sumo sacerdote
vergonha' pois
colocava mãos sobre a cabeça do bode e esse gesto supos-
as se esforçavam por reproduzi-los sem muita
parecia que a operação transferencial se produzia fora deles'
tamente transferia para o animal tudo que fosse suscetível
de envenenar as relações entre os membros da comunidade. ,.* q.r. eles realmente tomassem parte nela'
A eficácia do rito consistia em pensar que os pecados eram A compreensão moderna dos 'bodes expiatórios" é in-
que
expulsos com o bode e que a comunidade ficava livre deles. separável do saber sempre disseminado do mimetismo
Trata-se de um rito de expulsão análogo ao do pharmakos rege os fenômenos vitimários' E porque nossos ancestrals
dos Evan-
grego, mas muito menos sinistro, pois a vítima nunca é hu- ahme.ttaram-se durante muito tempo da Bíblia e
conde-
mana. No caso de uma vítima animal, a injustiça nos parece gelhos que comPreendemos esses fenômenos e os
menor ou mesmo nula. É exatamente por isso que o rito do namos.
Nunca, vocês irão me dize\ o Novo Testamento
Íecorre
bode expiatório não nos inspira a mesma repugnância que a
à expressão 'bode expiatório" para designar Jesus
como a
lapidação "milagrosa" de Apolônio de Tiana.
Mas o princípio de transferência não deixa de ser o mes- vítiÃa inocenre de um arrebatamento ryimético. Não há
dúvida, mas ele dispõe de uma expressão igual e superior
a
mo. Na época muito longínqua em que o rito era eficaz
.bodeexpiatório,,..cordeirodeDeus.Elae]iminaosatributos
enquanto rito, a transferência coletiva real contra o bode
corres-
deveria ser favorecida pela má reputação desse animal, por negativos e antipáticos do bode' Devido a isso' ela
ponde melhor à ideia de vítima inocente injusamente
sa-
seu odor nauseabundo, por sua incômoda sexualidade.
No universo arcaico, os ritos de expulsão existem por crificada.
toda parte, e nos dão hoje a impressão de um cinismo enor- Outra expressão fortemente reveladora' que Jesus apli-
'A pedra rejeitada pe-
me combinado com uma ingenuidade infantil. No caso do ca a si próprio, ê tiradado salmo 80:
nos
bode expiatório, o processo de substituição é tão transpa- los construtores tornou-se a pedra angular"' Essa frase
re-
mostra não somente a expulsão da vítima única' mas
a
rente que nós o compreendemos à primeira vista. É essa
versão posterior, que transforma o expulso na pedra
angu-
compreensão que se exprime no uso moderno da expressão
"bode expiatório", em que se encontra uma interpretação lar de toda a comunidade'

Eu vra SereNÁs cÂ1R coMo ulr norÂureco I zzl


zzo I ReNÉ Crnano
Em um universo em que a violência não é
mais iltaaliza_ para essâ âtitude é o medo de encontrar a religião, a qual é
da, e onde ela é alvo de um poderoso interdito,
a cólera e o efetivamente impossível de evitar desde que se aprofunde
ressentimento não podem ou não ousam, em
geral, saciar_ um Pouco a questão.
-se sobre o objeto que as excita
diretamente. O pontapé que Devido a essa influência judaica e cristã, o fenômeno só
o empregado não tem coragem de dar no patrão
será dado se produz em nossa época de modo envergonhado, furtivo,
em seu cachorro ao voltar à noite para casa,
outalvezele irá clandestino. Nós não renunciamos aos bodes expiatórios,
maltratar sua mulher ou filhos, sem de modo algum
perce- mas nossa crença neles está três quartos arruinada, e o fe-
ber que estâfazendo deles seus .bodes expiatórios,,.
nômeno nos parece moralmente tão frouxo, tão repreensí-
As vítimas substirutas do alvo realmente visado
são o vel, que, ao começar a nos "desrecalcar" em um inocente,
equivalente moderno das vítimas sacrificiais
de outrora. temos vergonha de nós mesmos.
Para designar esse tipo de fenômeno, utilizamos
esponta_ A observação das transferências coletivas é mais fácil que
neamente a expressão "bode expiatório,,.
antes, pois esses fenômenos não são mais sancionados e en-
A verdadeira fonte das substituições vitimárias
é o apeti_ cobertos pelos religiosos. É mais difícil porque os indivíduos
te de violências que desperta nos homens quando
são toma_ que se entregam a elas fazem de tudo para dissimulá-las de
dos pela cólera, e quando, por uma razãoou
outra, o objeto si próprios, e geralmente conseguem. Tanto hoje quanto no
real dessa cólera é intocável. O campo dos objetos
,up^ru passado, ter um bode expiatório significa não saber que o
de satisfazer o aperite de violência amplia p.opo..trd_
temos.
mente a intensidade da cólera. Da mesm" formr,
quando O fenômeno não mais conduz a violências físicas, mas a
nossa fome torna-se extrema, aceitamos alimentos
que, em violências "psicológicas", fáceis de camuflar. Todos os acusa-
circunstâncias normais, recusaríamos.
dos de participar de fenômenos de transferência violenta nun-
A eficácia das substituições sacrificiais aumenta quando
ca deixam de clamar por inocência, com toda a sinceridade.
muitos escândalos indiüduais aglutinam-se contra
uma e Quando os grupos humanos se dividem e se fragmen-
única vítima. Assim, os fenômenos de bode
expiatório con_ tam, acontece frequentemente, após um período de mal-
tinuam a desempenhar um papel certo em nosso
mundo, -estar e conflitos, que eles se reconciliem à custa de uma
no nível dos indivíduos e das comunidades,
mas nunca são vítima, sobre a qual os observadores constatam sem dificul-
esrudados enquanto tais.
dade, caso eles não pertençam ao grupo perseguidor, que
Se interrogarmos nossos sociólogos e antropólogos,
a ela realmente não é responsável por aquilo de que é acu-
maior parte reconhecerá a existência e a importância
desses sada. No entanto, o grupo acusador considera essa vítima
fenômenos, mas eles dirão que não se interessam
o suficien_ culpada, devido a um contágio análogo ao dos fenômenos
te para fazer deles objeto de sua pesquisa.
Arazãoprofunda ritualizados.

zzz I
RsuÉ Grn-qnr>
E,u vra SaraNÁs cÁiR coMo uu ruirÁunaco I zzj
Os membros do grupo referido acusam seu "bode expia- judaico-cristã. Em vez de criticar a nós mesmos, fazemos
tório" com muito ardor e sinceridade. Quase sempre, um um mau uso de nosso saber, dirigimo-lo contra o próxi-
incidente qualquer, fantâsioso ou pouco significativo, desen- mo, e praticamos uma caça ao bode expiatório em segun-
cadeia contra essa vítima um movimento de opinião, uma do grau, uma caça aos caçadores de bodes expiatórios. A
versão atenuada do arrebatamento mimético e do mecanis- compaixão obrigatória de nossa sociedade autoríza novas
mo vitimário. formas de crueldade.
O recurso metafiórico à expressão ritual é frequente- Tudo isso é resumido de modo fulgurante por são Paulo
mente arbitrário em suas modalidades, mas ele é justifi- em sua Epístola aos Romanos: "Tu não julgarás, ó, homem,
cado em seu princípio. Entre os fenômenos de expulsão pois tu que julgas, tu fazes a mesma coisa." Se condenar o
atenuada que observamos todos os dias em nosso mundo pecador ê fazer a mesma coisa que repreendemos nele, nos
e o antigo rito do bode expiatório, assim como outros ritos dois casos, o pecado de que se trata consiste necessariamen-
de mesmo tipo, as analogias são perfeitas demais para não te em condenar o próximo.
serem reais. As substituições clandestinas, os deslizamentos de uma
Quando suspeitamos que nossos vizinhos estão ceden- vítima a outra, num universo desritualizado, permitem-nos
do à tentação do bode expiatório, nós os denunciamos com observar em estado puro, se assim podemos dizer, o fun-
indignação. Estigmatizamos ferozmenre os fenômenos de cionamento dos mecanismos relacionais ("interdividuais"),
bode expiatório de que nossos vizinhos se rornam culpados, que subentendem a organização ritual dos universos arcai-
sem que nós mesmos consigamos passar sem vítimas subs- cos. Esses mecanismos se peÍpetuam entre nós em geral
titutivas. Têntamos todos acreditar que só sentimos ranco- sob forma residual, mas por vezes eles também podem res-
res legítimos e ódios justificados, mas nossas certezâs nesse surgir sob formas mais virulentas que nunca, e numa escala
campo são mais frágeis que as de nossos ancestrais. gigantesca, como na destruição sistemática por Hitler dos
Poderíamos utilizar com delicadeza a perspicácia de judeus europeus, e em todos os outros genocídios e qua-
que damos prova quando se trata de nossos vizinhos, se genocídios que acoÍrteceram no século XX. Falarei disso
sem humilhar demais aqueles que surpreendemos em fla- mais adiante.
grante delito de caça ao bode expiatório, mas, em geral, A perspicácia a respeito dos bodes expiatórios é uma
fazemos de nosso saber uma arma, um meio não só de verdadeira superioridade de nossa sociedade sobre todas as
perpetuil os velhos conflitos, mas de elevá-los ao nível sociedades anteriores, mas, como todo progresso do saber,
superior de sutileza exigida pela própria exisrência desse é também uma ocasião de agravamento do mal. Eu, que
saber, e por suâ difusão em toda a sociedade. Em suma, denuncio os bodes expiatórios de meus vizinhos com uma
integramos a nossos sistemas de defesa a problemática satisfação malévola, continuo a considerar os meus objetiva-

zzt I
Rr.r'rÉ GiRnnD Eu vra SarartÁs caIR coMo uu nurÂrar.r.co I zz5
mente culpados. Meus vizinhos, é claro, não deixam de de- Portanto, a expressão bode expiatóno designa: 1) a vítima do
nunciar em mim a perspicácia seletiva que denuncio neles, rito descrito no Levítico; 2) todas as vítimas de ritos análo-
Os fenômenos de bode expiatório muitas vezes só po- gos que existem nas sociedades arcaicas e que são também
dem sobreviver caso se tornem mais sutis, despistando em chamados de ritos de expulsão; e finalmente, 3) todos os
meandros sempre mais complexos a reflexão mortal que os fenômenos de transferências coletivas não ritualizadas que
segue como sua sombra. Como não podemos mais recorrer observamos ou pensamos observar a nosso redor.
a um infelizbode expiatório para nos livrar de nossos Íes- Esta última significação transpõe tranquilamente a bar-
sentimentos, precisamos de procedimentos menos comica- reira que os etnólogos se esforçam em manter entre os ritos
mente evidentes. arcaicos e seus sucedâneos modernos, os fenômenos cuja
Penso que é à privação dos mecanismos vitimários e a persistência à nossa volta mostra que mudamos um pouco
suas terríveis consequências queJesus faz alusão ao apresen- desde os ritos arcaicos, mas menos do que gostaríamos de
tar o fururo do mundo cristianizado em termos de conflito acreditar.
entre os seres mais próximos. Diferentemente dos etnólogos que querem manter a au-
tonomia ilusória de sua disciplina, e que evitam usar a ex-
Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, pressão 'bode expiatório" para não ter que mergulhar nas
mas espada. Com efeito, vim contrapor o homem ao seu pai, análises complexas que se tornam inevitáveis quando se
a filha à sua mãe, a nora à sua sogra. Em suma: os inimigos do abole a separação absoluta entre o arcaico e o moderno,
homem serão os seus próprios familiares. acredito que os usos modernos de 'bode expiatório" são es-
(Mt 10, 34-36) sencialmente legítimos. Vejo aí um sinal, entre outros, de
que, em vez depermanecer letra morta em nossa sociedade,
Num universo desprovido de proteções sacrificiais, as riva- a revelação judaico-cristã torna-se sempre mais efetiva.
lidades miméticas muitas vezes são menos violentas, mas se A desritualizaçã,o moderna revela o substrato psicos-
insinuam até nas relações mais íntimas. É isso que explica em social dos fenômenos rifuais. Gritamos "bode expiatório"
detalhe o texto que acabei de citar: o filho em guerra contra o para estigmatizar todos os fenômenos de "discriminação"
pai, a filha contra a mãe etc. As relações mais íntimas se trans- política, ética, religiosa, social, racial etc. que observamos
formam em oposições simétricas, em relações de duplos, de à nossa volta.
gêmeos inimigos. Esse texto permite a identificação da verda- Temos razáo. De agora em diante, vemos facilmente
deira gênese do que chamamos de psicologia moderna. que os bodes expiatórios pululam sempre que os grupos hu-
manos buscam fechar-se em uma identidade comum, local,
*** nacional, ideológica, racial, religiosa etc.

zz6 | R-ur.ir GraaRo Eu vra SeraNÁs cAlR coMo uu xrrÂnara.co I zz7


As teses que defendo fundam-se na inruição popular que
aflora no sentido moderno de 'bode expiatório". Esforço-me
xIII
por desenvolver as implicações dessa intuição. Ela é mais rica O cumaDo MoDERNo coM As vÍTIMAS
de saber verdadeiro que todos os conceitos inventados pelos
etnólogos, sociólogos e psicólogos. Todos os discursos sobre
a exclusão, a discriminação, o racismo etc. permanecerão su-
perficiais enquanto não atacarem os fundamentos religiosos
dos problemas que assolam nossa sociedade.
No rÍrr,lpaNo DE certas catedrais, figura um enorme anjo mu-
nido de uma balança. Ele pesa as almas para a eternidade,
Se a arte não tivesse renunciado, em nossos dias, a expressar
as ideias que conduzem o mundo, ela rejuvenesceria essa
antiga Í)esagem das almas e seria umd ?esdgem dds vítimas q]u:e
esculpiríamos no frontão de nossos parlamentos, de nossas
universidades, de nossos palácios da justiça, de nossas edito-
ras, de nossas estações de televisão.
Nossa sociedade é mais preocupada com as vítimas do
que nunca. Mesmo que rudo isso não passe de uma vas-
ta encenação, o fenômeno não tem precedente. Nenhum
1

período histórico, nenhuma sociedade conhecida por nós,


nunca falou das vítimas como nós falamos. Percebem-se no
passado recente os prenúncios da atitude contemporânea,
mas novos recordes são batidos todos os dias. Somos todos
atores e testemunhas de uma grande estreia antropológica.
Examinem os testemunhos antigos, pesquisem por toda
parte, vasculhem os recantos do planeta e vocês não encon-
trarão nada, em lugar algum, que se assemelhe, mesmo de
longe, à preocupação moderna com as vítimas. Nem a Chi
na dos mandarins, nem oJapão dos samurais, nem a Índia,
nem as sociedades pré-colombianas, nem a Grécia, nem a
Roma da república ou do império se preocupavam com as

zzs I RnNÉ Grx.q.no


o lugar, o ponto de vista, a Partir do qual nós
nos condena-
incontáveis vítimas que sacrificavam a seus deuses, à hon-
ra da pâtria, à ambição dos conquistadores, pequenos ou mos. Penso que temos excelentes tazóes de nos sentirmos
grandes. culpados, porém não são nunca aquelas que mencionamos'
não basta
Um extraterrestre que escutasse nossas palavras sem Para justificar as maldições que nos dirigimos'
do
nada conhecer da história humana imaginaria, sem dúvi- constatar que somos mais ricos e mais bem-equipados
da, que teria existido, em algum lugar dos séculos passados, que todo o universo antes de nós' Mesmo nas sociedades
e eles de-
pelo menos uma sociedade muito superior à nossa no que mais miseráveis, não faltavam ricos e poderosos'
se refere à compaixão, tão atenta aos sofrimentos dos in- monstrâvam em relação às vítimas que os rodeavam a mais
felizes que teria deixado uma lembrança imperecível entre completa indiferença.
os homens, e que nós a tomamos como a estrela fixa em Nossomundodeveestarsoboimpactodeumainjunção
pre-
torno da qual giram nossas obsessões a respeito das víti- que se dirige apenas a ele. As gerações imediatamente
mas. Apenas a nostalgia de uma sociedade assim permitiria àd.r,", à nossa já ouviam o mesmo apelo' porém de modo
compreender nossa severidade em relação a nós mesmos, as menos ensurdecedor. Quanto mais recuamos no temPo'
mais se enfraquece o apelo' Tudo sugere que' no futuro'
ela
amargas censuras que nos dirigimos.
É claro que essa sociedade ideal nunca existiu.Já no sécu- irá se reforçar ainda mais. Como não podemos mais fingir
nossas
lo XVIII, quando Voltaire compôs seuCândido, ele procurou que não estamos escutando nada, então condenamos
insuficiências, mas não sabemos em nome do quê.
Fingimos
uma e nada encontrou que fosse superior ao mundo em que
que todo mundo sempre escutou aquilo que nos
vivia. Assim, precisou inventar sua sociedade ideal do nada. acreditar
Para condenarmos a nós mesmos, o mundo, do modo interpela, mas na realidade somos os únicos a escutá-lo'
que ele está, não fornece nada de satisfatório. Isso não nos Comparadas com os meios de que dispomos' é verda-
terríveis'
impede de repetir a grandes brados, contra o universo con- de que nossas obras são ridículas e nossas falhas'
vêm?
Temos boas razões Para nos culpar, mas de onde
elas
temporâneo, acusações que sabemos ser pertinentemente
Os universos que nos precedem compartilhavam
tão pouco
falsas. Escutamos com frequência dizer que nunca houve
nossa preocupação que não se censuravam nem
mesmo poÍ
sociedade mais indiferente aos pobres do que a nossa. Mas
como isso seria verdade se a ideia de justiça social, aliás tão sua própria indiferença.
imperfeitamente realizada, não se encontra em nenhum Seinterrogarmos nossos historiadores' eles invocarão o
permi-
outro lugar? Ela é uma invenção muito recente. humanismo e outrâs ideias semelhantes, o que thes
o
Se falo assim, não é para eximir nosso mundo de qual- tirá jamais mencionar a religião e nunca drzet nada sobre
quer culpa. Compartilho a convicção de meus contempo- papel que o cristianismo considerado nulo e inexistente
-
râneos a respeito de sua culpabilidade, mas tento descobrir não pode deixar de desempenhar nessa história'
-

Eu vra Sa'raNÁs cÂtR coMo ulr nrúumco I z3r


z3o I RrNÉ Grnaao
É verdade que na França o humanismo desenvolveu-se oidealdeumasociedadealheiaàviolênciaremontacla-
Deus'
contra o cristianismo do Antigo Regime, acusado de cum- ramente à pregação deJesus, ao anúncio do reino de
se afasta'
plicidade com os poderosos, aliás com toda a razão. De um Longe de áiminuir à medida que o cristianismo
O
país a outro, as peripécias locais mudam, mas não podem sua intensidade aumenta' E fácil explicar tal paradoxo'
das ri-
dissimular a origem de nossa preocupação moderna com as cuidado com as vítimas tornou-se a meta paradoxal
vítimas, muito claramente cristã. O humanismo e o huma- validades miméticas, das escaladas concorrenciais'
nitarismo desenvolveram-se em terra cristã. Há vítimas em geral, mas as mais interessantes são sem-
Essa é uma das coisas que Nietzsche contra a hipocri- pre aquelas que nos permitem condenar nossos vizinhos'
-
sia de seu tempo, que já é a mesma que a nossa, mas não E estes fazemo mesmo conosco' Pensam' principalmente'
tão monumental proclamou clamorosamente. O mais nas vítimas pelas quais nos consideram responsáveis'
anticristão dos
-
filósofos do século XIX identificou a origem Não são todos, entre nós, que vivem a experiência de
são Pedro e de são Paulo, descobrindo-se eles
mesmos cul-
de nossa culpa numa época em que ela era menos evidente
pados de perseguição e assumindo a própria culpa
em vez
que hoje, menos caricaruralmente cristã em seu anticristia-
que nos
nismo. de combater a dos vizinhos' São nossos próximos
lembram de nosso dever e nós thes prestamos o
mesmo
Se há uma ética do cristianismo, ela se identifica com o
joga as
amor pelo próximo, a caridade, e não é difícil encontrar sua favor. Em suma, em nosso universo todo mundo
origem: vítimas para cima dos outros, e o resultado final é aquele
pela
que Cristo anunciou em frases que serão esclarecidas
Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino pre- primeira vez com o cuidado moderno com as vítimas:
parado para vós desde a fundação do mundo. Pois eu tive fome
de to-
e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era fo- ...a de que se peçam contas a esta geração do sangue
fim
do mundo'
rasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, preso e vies- dos os profetas que foi derramado desde a criação
tes ver-me. Então os justos lhe responderão: "Senhor, quando do sangue de Abel até...
(Lc i1, 50-51)
foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te
demos de beber? Quando foi que te vimos forasteiro e te reco-
lhemos ou nu e te vestimos? Quando foi que te vimos doente Essa fala se concretiza com um apreciável atraso em rela-
cristãos, mas o importante é
ou preso e fomos te ver?" Ao que lhes responderá o rei: "Em ção ao previsto pelos primeiros
verdade, em verdade vos digo, cadavez que o fizestes a um que ela se verificou, e não a data da verificação'
Temos agora nossos ritos vitimários, antissacrificiais'
e
desses irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes."
eles se desenrolam numa ordem tão imutável
quanto os ri-
(Mt 25, 34-40)

E,u vta SeraNÁs cÁIR coMo utn. nelÂrtaraco | 233


z3z I RrNÉ GrRano
tos propriamente religiosos. Em primeiro lugar, lamenta_
O aspecto peculiar do cuidado com as vítimas é que ele
mos pelas vítimas que nos acusamos muruamente defazer
não se satisfaz com os sucessos passados. Se for muito elo-
ou de deixar fazet Em seguida, lamentamos pela hipocri
giado, ele se retira com modéstia, buscando desviar de si
sia de toda lamentação; finalmente, nos lamentamos pelo
próprio uma atenção que deveria se dirigir somente às víti
cristianismo, indispensável bode expiatório, pois não existe
mas. Ele se fustiga perpetuamente, denunciando sua própria
rito sem vítima, e em nossos dias a vítima é sempre ele: ele rnoleza, seu farisaísmo. Ele é a máscara laica da caridade.
é o scapegoat of last resort- e, num tom nobremente aflito,
O que nos impede de examinar o cuidado com as vítimas
constatamos que ele nada fez para "resolver o problema da
de mais perto é esse próprio cuidado. Não importa se essa
violência".
humildade é fingida ou sincera: ela é a norma em nosso
Em nossas perpétuas comparações entre o nosso mundo
mundo e, indiscutivelmente, é ao cristianismo que ela re-
e os outros, temos sempre dois pesos e duas medidas. Fa_
monta. A preocupação com as vítimas não pensa em termos
zemos tudo para dissimular as massacrantes superioridades
de estatísticas. Ela opera segundo o princípio evangélico da
do primeiro, que, de qualquer forma, só está em concorrên_
ovelha perdida. Por ela, se for preciso, o pastor abandonará
cia consigo próprio, pois hoje ele engloba todo o planeta.
todo seu rebanho.
Um exame minimamente atento mostra que fudo que Para provar a nós mesmos que não somos nem etnocên-
se pode dizer contra nosso mundo é verdadeiro: ele é de
tricos nem triunfalistas, bradamos contra a autossatisfação
longe o pior de todos. Nenhum mundo, reperimos inces_
burguesa do sêculo passado, ridicularizamos a imbecilidade
santemente, e isso não é falso, nunca fez rnais vítimas que
do "progresso", e caímos na imbecilidade inversa, acusando
ele. Mas quando se trata dele, as proposições mais opostas
a nós mesmos de sermos a mais desumana de todas as so-
são todas igualmente verdadeiras: nosso mundo é também
ciedades.
o melhor dos mundos, o que salva o maior número de víti_
As sociedades modernas podem apresentar à guisa de de-
mas. Ele nos obriga a multiplicar todo tipo de proposições
fesaum conjunto de realizações tão únicas na história huma-
mutuamente incompatíveis.
na que causam inveja em todo o planeta.
O cuidado com as vítimas nosfazavaliar, com razão, que
Aaberturagradual dos claustros culfurais começa emplena
nossos progressos no "humanitarismo" são muito lentos e
Idade Média, e conduz em nossos dias àquilo que chamamos
sobretudo que não devemos glorificáJos, para evitar que se
de globalização, e que apenas secundariamente parece-me ser
tornem ainda mais lentos. A preocupação moderna com as
um fenômeno econômico. A verdadeira força Ínotriz é o fim
vítimas obriga-nos a uma incessante autocensura.
das clausuras vitimárias, é a força que, depois de ter destrúdo
as sociedades arcaicas desmantela agora suas substitutas, as
* "Bode expiatório de ultima instância", assim
"emprestador de úldma instân cia" (lmd.er
como um banco cenral é . nações ditas modernas.
of last resort). (N.R.T.)

234 | ReNÉ Grn rno


Eu vra SaraNÁs cAIR coMo urta nslÂN{paco I 235
por vezes de forma tão caricatural que chega a provocar ri-
sos, mas devemos evitar enxergar nisso apenas uma simples
Como está na moda a pesagem das vítimas, vamos jogar
moda, uma tagarelice sempre inefrcaz. Em primeiro lugar,
o jogo sem trapacear. Examinemos, em primeiro lugar, o
não se trata de uma simples encenação. Ao longo do tempo,
prato da balança que contém nossos sucessos: desde a alta
ele criou uma sociedade incomparável a todas as outras. Ele
Idade Média, todas as grandes instituições humanas evo_
unificou o mundo.
luem no mesmo sentido, o direito público e o privado, a
Concretamente, como as coisas se passaram? A cada ge-
legislação penal, a prática judiciária, o estaruto das pessoas.
ração, os legisladores desciam mais profundamente a uma
De início, tudo se modifica muito lentamente, mas o ritmo
herança ancestral, que eles consideravam seu dever trans-
acelera-se cada vez mais e, vista de muito alto, a evolução
formar. Onde seus ancestrais não viam nada a ser reforma-
vai sempre no mesmo sentido, em direção à atenuação das
do, eles descobriam a opressão e a injustiça'. o statu quo qle
penas, da maior proteção das vítimas potenciais.
durante tanto tempo parecera intocável, determinado pela
Nossa sociedade aboliu a escravidão e depois a servidão.
rrat:uÍeza ou desejado pelos deuses, e muitas vezes mesmo
Vieram mais tarde a proteção à inÍância, às mulheres, aos I
pelo Deus cristão.
velhos, aos estrangeiros de fora e de dentro, a luta contra a
Há séculos, as ondas sucessivas do cuidado com as ví-
miséria e o "subdesenvolvimento". Mais recentemente ain_
timas revelaram e reabilitaram novas categorias de bodes
da, foram universalizados os cuidados médicos, a proteção
expiatórios nos porões da sociedade, seres cujas injustiças
dos deficientes etc.
sofridas somente alguns gênios espirituais, no passado, ima-
Todos os dias, novos umbrais são ultrapassados.
euan_ ginavam poder ser eliminadas.
do em qualquer ponto do globo ocorre uma catástrofe, as
Penso que a preocupação moderna com as vítimas afir-
nações não atingidas sentem-se agora obrigadas a enviar
ma-se pela primeira-vez nas instiruições religiosas que cha-
socorros, participando das operações de salvamento. Vocês
mo caritativas. Parece que tudo começa com o hôtel-Dieu,
dirão que esses gestos são mais simbólicos que reais. E eles
essa dependência da Igreja que logo se torna o hospital. O
respondem a uma preocupação com o prestígio. Sem dú_
hospital acolhe todos os aleijados, todos os doentes, sem
vida, mas em que época antes da nossa, e sob quais céus, a
distinguir sua origem social, territorial ou mesmo religio-
ajuda mútua internacional constituiu para as nações uma
sa. Inventar o hospital significa dissociar pela primeiÍavez a
fonte de prestígio?
noção de vítima de todo pertencimento concreto, significa
A única rubrica sob a qual pode se reunir tudo o que re_
inventar a noção moderna de vítima.
sumi, confusamente, sem me preocupar em ser completo,
As culturas ainda autônomas cultivavam todo tipo de
é o cuidado com as vítimas. Em nossos dias ele se exaspera
solidariedades familiares, tribais, nacionais, mas não co-

z3o I Rnr,rÉ Grnano


Eu vra S,qraNÁs c^rR coM() urra nrlÀn,tr,,rco | 237
nheciam a vítima em si, a vítima anônima e desconhecida, ritual da expressão "bode expiatório" de seu
a significação
no sentido em que se diz "o soldado desconhecido". Antes significado moderno. Ele se enriquece cotidianamente e,
dessa descoberta, não havia humanidade no sentido pleno, sem dúvida, amanhã será explicitamente baseado na leitura
senão no interior de um território determinado. Hoje todas mimética das relações de perseguição.
as origens locais, regionais, nacionais, fenecem: Eccehomo. A evolução que resumo de modo caótico confunde-se
Naquilo que hoje é chamado de "direitos do homem", o com o esforço de nossas sociedades para eliminar as estru-
essencial é uma compreensão do fato de que todo indivíduo turas permanentes de bode expiatório sobre as quais foram
ou todo grupo de indivíduos pode se tornar o "bode expia- fundadas, à medida que tomamos consciência de sua exis-
tório" da própria comunidade. Colocar a ênfase nos direitos tência. Essa transformação aparece como um imperativo
do homem é esforçar-se para evitar e controlar os arrebata- moral. Sociedades que não viam a necessidade de se trans-
mentos miméticos incontroláveis. formar são pouco a pouco modiflcadas sempre no mesmo
O que pressentimos. âo menos vagamente, é a possibili- sentido, em resposta ao desejo de reparar as injustiças passa-
dade de qualquer comunidade poder perseguir os seus, seja das e de suscitar relações mais "humanas" entre os homens'
mobilizando-se de modo súbito contra qualquer um, em Cada vez que uma nova etapa é ultrapassada, manifesta-
qualquer lugar, a qualquer hora, de qualquer modo, a qual- -se uma oposição inicialmente muito intensa entre os privi-
quer pretexto, ou, ainda mais frequentemente organizando- legiados lesados em seus interesses. lJma vez que a situação
-se de modo permanente sobre bases que favorecem uns à é modificada, os resultados não são mais postos em questão
custa de outros, e peÍpetuando durante séculos, ou até mi- de maneira séria.
lênios, formas injustas da vida social. É contra as incontáveis Nos séculos XVIII e XIX percebeu-se que essa evolução
modalidades do mecanismo vitimário que o cuidado com estava criando um conjunto de nações único na história da
as vítimas tenta nos proteger. humanidade, pelo fato de sua transformação social e mo-
O poder de transformação mais eficaz não é a violência ral ser acompanhada de progressos técnicos e econômicos
revolucionária, mas a preocupação moderna com as víti- também sem precedentes.
mas. O que dá forma a esse cuidado, o que o torna efi.caz, É claro que foram apenas as classes privilegiadas que fize-
é um conhecimento verdadeiro sobre a opressão e a per- ram essa constatação, e elas disso tiraram um orgulho e uma
seguição. Tudo ocorre como se esse conhecimento tivesse insolência extraordinários, para os quais as grandes catástro-
surgido a princípio modestamente, e pouco a pouco tives- fes do século XX podem ser consideradas até cefto ponto o
se tomado coragem em razã,o de seus primeiros sucessos. castigo inevitável.
Para resumir esse conhecimento é preciso recordar as aná- Os mundos antigos eram comparáveis entre si, o nosso
lises do capítulo precedente: é o conhecimento que separa é realmente único. Sua superioridade em todos os campos

(lrR.,\no iirr r.t.r S'rtex,!s c.\tn col\,lo lrr nt,t.-iit'tp,'icrl I 239


238 | Rrsí;
é tão massacrante, tão evidente que, paradoxalmente, é
proibido falar disso.
XIV
É o medo da voita a um orgulho tirânico que dita essa A nupla HERANÇA DE NrETzscHE
proibição, assim como o temor de humilhar as sociedades
que não fazem parte do grupo privilegiado. Em outras pa-
lavras, é mais \Írra yez a preocupação com as vítimas que
silencia a respeito de si própria.
Nossa sociedade acusa-se perpetuamente de crimes e er-
ros pelos quais ela é, sem dúvida, culpada em termos absolu- Ervr Nosse IESAGEM das almas, examinemos agora o prato
tos, mas é inocente relativamente a todos os outros tipos de da balança que contém nossos fracassos, nossos erros, nos-
sociedades. Evidentemente, não deixamos de ser "etnocên- sas falhas.Embora o fato de estarmos libertos dos bodes
tricos". Mas não deixamos de ser, também evidentemente, a expiatórios e dos ritos sacrificiais nos proporcione grandes
menos etnocêntrica de todas as sociedades. Fomos nós que vantagens, ele é também causa de inúmeras opressões e de
inventamos a noção já há cinco ou seis séculos o capítu- perseguições, fonte de perigos, ameaça de destruição.
lo de Montaigne sobre os "canibais" demonstra- isso. para Há séculos, o acréscimo de justiça que devemos ao cui-
sermos capazes de tal invenção, seria preciso já sermos me- dado com as vítimas libera nossas energias e aumenta nos-
nos etnocêntricos que outras sociedades, tão exclusivamente so poder, mas nos submete igualmente a tentações às quais
preocupadas com elas mesmas que a noção de etnocentris- volta e meia sucumbimos: conquistas coloniais, abusos de
mo não lhes ocorria ao espírito. poder, guerras monstruosas do século XX, predação do pla-
É verdade que nosso mundo não inventou a compaixão, neta etc.
mas a universalizou. Nas culturas arcaicas, ela se exercia ex- A nosso ver, de todos os desastres dos dois últimos sécu-
clusivamente no interior de grupos extremamente restritos. los o mais significativo foi a destruição sistemática do povo
A fronteira era sempre marcada pelas vítimas. Os mamífe- judeu pelo nacional-socialismo alemão. Embora não haja
ros marcam suas fronteiras territoriais com seus excremen_ nada mais comum na história humana que os massacres,
tos. Durante muito tempo os homens fizerarn a mesma em geral eles são concebidos no calor da ação, eles repre-
coisa com essa forma pârticular de excremento que são para sentam uma vingança imediata, uma ferocidade espontâ-
eles seus bodes expiatórios. nea. Caso sejam premeditados, correspondem a objetivos
claramente identificáveis.
O genocídio hitleriano é outra coisa. Ele está, sem dú-
vida, ligado à longa história de perseguições antissemitas
no Ocidente cristão, mas essa tradição nefasta não expli-

z4o I RrxÉ Crnano

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