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É pRECTSO
QUE o ESCÂNDALO ACONTEÇA
Não matarás.
Não cometerás adultério.
Não roubarás.
Não levantarás falso testemunho contra o próximo.
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A autonomia que sempre acreditamos estar prestes a tado daqueles que tomamos como modelos, mas inúmeros
conquistar, imitando nossos modelos de poder e de prestí- comportamentos, atitudes, saberes, preconceitos, preferên-
gio, é apenas o reflexo das ilusões projetadas pela nossa ad- cias etc., ern meio aos quais o empréstimo com consequên-
miração por eles, tão menos consciente de seu mimetismo cias mais pesâdas, o desejo, passa muitas vezes despercebido.
quanto mais mimética for. Quanto mais formos "orgulho- A única cultura realmente nossa não é aquela em que
sos" e "egoístas", mais estaremos à mercê dos modelos que nascemos, mas a cultura cujos modelos imitamos na idade
nos e§magam. em que nosso poder de assimilação mimético é máximo. Se
seu desejo não fosse mimético, se as crianças não escolhes-
sem necessariamente como modelos os seres humanos ao
seu redor, a humanidade não teria nem linguagem nem cul-
Embora o mimetismo do desejo humano seja o grande res- tura. Se o deseJo não fosse mimético, não seríamos abertos
ponsável pelas violências que nos abatem, não se deve con- nem ao humano nem ao divino, É nesse último domínio,
cluir daí que o desejo mimético seja algo ruim. Se nossos necessariameíte, que nossa incerteza é maioq e nossa ne-
desejos não fossem miméticos, ficariam fuados para sem- cessidade de modelos mais intensa.
pre em objetos predeterminados, constituindo uma forma O desejo mimético nos faz escapar da animalidade. Ele
particular de instinto. Os homens não poderiam mudar de é responsável pelo melhor e o pior em nós, tanto por aquilo
desejo mais do que as vacas em um pasto. Sem desejo mi que nos coloca abaixo do animal quanto por aquilo que nos
mético, não haveria nem liberdade, nem humanidade. O eleva acima dele. Nossas intermináveis discórdias são o pre-
desejo mimético é intrínsecamente bom.
ço de resgate de nossa liberdade.
O homem é a criatura que perdeu parte de seu instinto
animalpara ter acesso ao que chamamos de desejo. lJmavez
§lue suas necessidades natuÍâis tenham sido satisfeitas, os ho-
mens desejam intensamente, mas não sabem exatamente o Vocês irão objetar: se arü,talidaÃ"emimética desempenha um
quê, pois nenhum instinto os guia. Eles não possuem desejo papel essencial nos Evangelhos, por queJesus não nos ad-
próprio. O próprio do desejo é não ser próprio. Para desejar verte contra ela? Na verdade, ele nos adverte, mas nós não
verdadeiramente, temos de recorrer aos homens que nos ro- sabemos disso. Quando aquilo que ele diz opõe-se a Írossas
deiam, temos de tomar emprestados seus desejos. ilusões, nós não o escutamos.
Com frequência, esse empréstimo é realizxd6 sem que As palawas que designam a rivalidade mimética e suas
aquele ç1ue emprestou ou aquele que tomou emprestado consequências são o substantivo skandalon e o verbo skanda-
percebam isso. Não é apenas o desejo que pegamos empres- Liznn. Nos Evangelhos sinóticos,Jesus consagra ao escânda-
4o I ll"r:r.rí: GrnaRn
conflituoso, na existência do apóstolo. Os Evangelhos des- Os filhos repetem os crimes de seus pais precisamente
crevem-no como a marionete de seu próprio mimetismo, porque acreditam ser moralmente superiores a eles. Essa
incapaz de resistir às pressões sucessivas que são exercidas fàlsa diferença jâ é a ilusão mimética do individualismo
sobre ele a cada instante. moderno, a resistência máxima à concepção mimética, re-
A meu ver, os que buscam as causas da tríplice negação petitiva, das relações entre os homens, e é essa resistência,
unicamente no "temperamento" de Pedro, ou em sua "psi- paradoxalmente, que realiza a repetição.
cologia", estão longe do bom caminho. Eles não conseguem
enxergar nada na cena que ultrapasse o indivíduo pedro.
Acreditando ser possível traçar um "retrato" do apóstolo,
atribuem-lhe um "temperamento influenciável" ou, devido Pilatos também é dominado pelo mimetismo. Ele teria pre-
a outras formulas do mesmo tipo, destroem a exemplarida- fêrido pouparJesus. Se os Evangelhos insistem nessa prefe-
de do acontecimento, minimizando seu alcance. rência, não é para sugerir que os romanos sejam superiores
Sucumbindo ao mimetismo que não poupa nenhuma aos judeus, não é para distribuir notas boas e ruins entre os
das testemunhas da Paixão, Pedro não se distingue de seus perseguidores de Jesus, mas para sublinhar o paradoxo do
semelhantes, no sentido em que toda explicação psicológica poder soberano que, de alguma forma, perde-se na multi-
distinguiria aquele que roma por objero. dão por medo de opor-se a ela, para toÍnar uma vez mais
A utilização desse tipo de explicação é menos inocenre rlanifesta a onipotência do mimetismo.
do que possa parecer. A recusa à interpretação mimética, a O que motiva Pilatos, quando ele entregaJesus, é o medo
busca de causas puramenre individuais para a queda de pe- de uma revolta. Diz-se que ele demonstra "habilidade políti-
dro, equivale à demonstÍação, certamente inconsciente de ca". Sem dúvida, mas por que a habilidade política consiste
que no lugar de Pedro reríamos reagido de modo diferente, quase sempre em abandonar-se ao mimetismo coletivo?
não teríamos renegado Cristo. Até mesmo os dois ladrões crucificados ao lado de Jesus
É uma versão mais antiga dessa mesma manobra queJesus não constituem uma exceção ao mimetismo universal: eles
censura aos fariseus, ao vê-los erguendo úmulos aos profetas também imitam a multidão, vociferando como ela. Os seres
que seus pais mataram. Com frequência, as demonstrações mais humilhados, mais massacrados, comportam-se da mes-
espetaculares de piedade pelas vítimas de nossos predecesso- ma maneira que os príncipes desse mundo. Eles uivam com
res dissimulam uma vontade de nos justificarmos à sua custa: os lobos. Quanto mais somos crucificados, mais desejamos
"Se tivéssemos vivido no tempo de nossos pais,
dizem os fari- participar da crucificação de alguém mais crucificado ainda.
seus, não nos teríamos juntado a eles para derramar o sangue Em suma, do ponto de vista antropológico, a Cruz é o
dos profetas." momento em que os mil conflitos miméticos, os mil escân-
a semelhança entre sua morte e as perseguições de inúme- nos dois casos, trata-se sempre ou de violências diretamente
ros profetas antes dele. coletivas, ou de inspiração coletiva' A semelhança assinalada
Até hoje, muitos pensam que, se os Evangelhos aproxi- por Jesus é perfeitamente real, e logo veremos que ela não
se limita às violências descritas na Bíblia. os mesmos
tipos
mam a morte deJesus da dos profetas, é com o objetivo de
estigmatizar unicamente o povo judeu. É exatamente o que de vítimas podem ser encontrados nos mitos'
imaginava o antissemitismo medieval, por repousar, como Portanto, é preciso interpretar de modo muito concreto
todo antissemitismo cristão, numa incapacidade de com- a frase de Jesus sobre a analogia entre sua morte e a dos
preender a verdadeira natrtreza e a infinita exemplaridade profetas. Para confirmar a interpretação realista que estou
da Paixão. Há mil anos, numa época em que a influência propondo, é necessário comparar a Paixão não somente
cristã ainda não havia penetrado tão profundamente em com as violências cometidas contra os profetas no Antigo
nosso mundo, esse erro era mais desculpável do que hoje. Testamento, mas também, nos próprios Evangelhos' à exe-
"último
A interpretação antissemita ignora a intenção real dos cução daquele que os Evangelhos consideram o
Evangelhos. Segundo todas as evidências, é o mimetismo dos profetas", João Batista.
que explica o ódio das multidões contra os seres excepcio-
nais, comoJesus e todos os profetas, e não o pertencimento
étnico ou religioso.
Se João Batista é um profeta, sua
morte violenta, para "veri-
Os Evangelhos sugerem que em todas as comunidades,
e não somente entre os judeus, existe um processo mimé- ficar" doutrina deJesus, deve se assemelhar à morte violenta
a
tico de rejeição do qual os profetas são as vítimas preferen- deste último. Assim, nela deveríamos encontrar o arrebata-
mento mimético e os outros traços essenciais da Paixão. E, As semelhançâs entre esse relato e a Paixão são notáveis'
efetivamente, eles aí se encontram. É fácil constatar que to- c não podemos simplesmente atribuí-las a um plágio' Os
dos esses traços estão presentes nos dois Evangelhos que con- cl0is texros não são "dublês" um dooutÍo. seus detalhes são
têm o relato da morte deJoão Batista, os dois mais antigos, o completamente diferentes. O que os torna semelhantes é
de Marcos e o de Mateus. seu mimetismo interno, representado de modo igualmente
Assim como a crucificação, o assassinato deJoão Batis- potente e original em ambos os casos'
ta não é diretamente coletivo, mas de inspiração coletiva. Portanto, no plano antropológico, a Paixão é mais típi.
Em ambos os casos, há um soberano, único capacitado a ca do que única: ela ilustra o tema maior da antropologia
declarar a morte e que finalmente a decreta, apesar de seu evangélica, o mecanismo vitimário que apazigua as comu-
desejo pessoal de poupar a vítima: Pilatos de um lado, He- rridades humanas e restabelece, ao menos provisoriamente'
rodes de outro. Nos dois casos, é por razões miméticas, sua tranquilidade.
para não se opor à multidão violenta, que o soberano re-
nuncia a seu próprio desejo e ordena a execução da vítima.
Assim como Pilatos não ousa se opor à multidão que exige
a crucificação, Herodes não ousa se opor a seus convida- O que descobrimos nos Evangelhos, tanto na morte deJoão
dos que exigem a cabeça deJoão Batista. grtirt, quanto na deJesus, é um processo cíclico de desordem
Nos dois casos, rudo resulta de uma crise mimética. Na c de reordenação que culmina e se perfaz em um mecanismo
"mecanismo"
história do profeta, é a crise do casamento de Herodes com de unanimidade vitimária. Emprego a palavra
para signific aÍ a íaturÍeza automática do processo e de
seus
Herodíades. João recrimina Herodes pela ilegalidade de seu
incons-
casamento com a mulher de seu irmão, Herodíades deseja resultados, assim como a incompreensão e mesmo a
se vingar, mas Herodes protegeJoão Batista. Para forçá-lo, a ciência dos ParticiPantes.
Esse mecanismo é também discernível em certos
textos
esposa arregimenta contra seu inimigo a multidão dos con-
vidados ao grande banquete de aniversário de seu esposo. bíblicos. Os mais interessantes, sob o asPecto do processo
Para atiçar o mimetismo desse bando e transformá-lo vitimário, são aqueles que os próprios Evangelhos aproxi-
mam da vida e da morte deJesus, aqueles que nos contam
a
em matilha sanguinária, Herodíades recorre à arte que os
gregos consideravam a mais mimética de todas, a mais ca- vida e a morte do personagem chamado o Servo de Iahweh
paz de mobilizar contra a vítima os participantes de um sa- ou Servo sofredor.
crifício: a dança. Herodíades faz sua filha dançar, e, a pedido O Servo é um grande profeta sobre o qual trata a parte
da dançarina, manipulada por sua mãe, todos os convidados do livro de Isaías que começa no capítulo 40, geralmente
exigem a cabeça deJoão. atribuído a um autor independente, o Segundo Isaías' ou
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SaraNÁs
tuoso. Ao invés de nos advertir contra as armadilhas que rnundana. Em suma, Pedro convida Jesus a tomar ele pró-
nos esperam, Satanás nos faz cair nelas. Ele aplaude a ideia prio como modelo de seu desejo. Se Jesus se desviasse de
de que as proibições "não servem para nada" e de que sua scu Pai para seguir Pedro, ele e Pedro logo recairiam na riva-
transgressão não comporta qualquer perigo. lidade mimética, e a aventura do Reino de Deus se perderia
A estrada em que Satanás nos lança é larga e fácil, é a cm ridículas querelas.
grande autoestrada da crise mimética, mas de Íepente, en- Aqui, Pedro coloca-se como semeador de escândalos,
tre nós e o objeto de nosso desejo, surge um obstáculo ines- «r Satanás que desvia os homens de Deus em proveito dos
perado, e, mistério dos mistérios, quando acreditávamos ter rnodelos rivalitários. satanás semeia os escândalos e colhe a
deixado Satanás bem para trás, eis que ele, ou algum de seus lcmpestade das crises miméticas. Para ele, essa é a ocasião
escudeiros, bloqueia nosso caminho. rlc mostrar aquilo de que ê capaz. As grandes crises desem-
É a primeira das várias metamorfoses de Satanás: o se- bocam no verdadeiro mistério de Satanás, em seu mais es-
dutor do início transforma-se rapidamente num adversaio pantoso poder, que é o de expulsar a si próprio e de trazer
rebarbativo, um obstáculo mais sério do que todas as proi- novamente ordem às comunidades humanas'
bições ainda não transgredidas. É fácll descobrir o segredo O texto essencial a respeito da expulsão diabolica de Sa-
dessa inoportuna metamorfose. O segundo Satanás é a con- tanás é a resposta deJesus àqueles que o acusam de expulsar
versão do modelo mimético em obstáculo e em rival, é a Strtanás por intermédio de Belzebu' o príncipe dos demônios:
além da transgressão, ergue-se um obstáculo mais intrans- se dividir contra si mesma, tal casa não poderá se manter' Ora, se
ponível que todas as interdições, dissimulado de início pela Satanás se atira contra si próprio e se divide, não poderá subsis-
própria proteção que estas últimas proporcionam, enquan- tir, mas acabará.
(Mc 3,23'24)
to forem respeitadas.
cos, mas sob uma forma tão elíptica e condensada que eles Aos que se afirmam como seus discípulos, Jesus sustenta
despertam uma incompreensão ainda maior do que as pro- que seu pai não é nem Abraão nem Deus, como eles afir-
posições dos Evangelhos sinóticos que acabei de analisar. r)ram, mas o diabo. Arazáo desse julgamento é clara' Essas
Apesar das diferenças de vocabulário que a fazem parecer l)cssoas têm o diabo por pai porque são os desejos do diabo
mais dura, a doutrina deJoão é a mesma que a dos sinóticos. tlue eles querem realizar, e não os desejos de Deus. Eles to-
O texto de João é muitas vezes condenado por nossos fnam o diabo como modelo de seus desejos.
contemporâneos como supersticioso e vindicativo. Ele defi- Portanto, o desejo de que falaJesus repousa sobre a imi-
ne novamente, de forma rude, mas sem hostilidade, as con- tação, seja do diabo, seja de Deus. Aqui, trata-se sem dúvida
sequências do mimetismo conflituoso sobre os homens. do desejo mimético no sentido definido anteriormente. A
Nesse discurso, Jesus dialoga com pessoas que ainda se noção de pai confunde-se uma vez mais com esse modelo de
consideram seus discípulos, mas que logo irão abandoná-lo que o desejo humano, por não possuir objeto que lhe seja
por não entenderem seu ensinamento. Em suma, os primei- próprio, não pode absolutamente prescindir.
ros ouvintes deJesus já se escandalizavarn, como alguns de Deus e Satanás são os dois "arquimodelos" cuja oposi-
nossos contemporâneos: ção corresponde àquela já descrita, entre os modelos que
nunca se tornam obstáculos e rivais para seus discípulos,
Se Deus fosse vosso pai, vós me amaríeis por não desejarem nada de modo ávido e concorrencial, e
porque saí de Deus e dele venho; os modelos cuja avidez repercute imediatamente sobre seus
não venho por mim mesmo, mas foi Ele que me enviou. imitadores, logo transformando-os em obstáculos diaboli
Por que não reconheceis minha linguagem? r:os. Assim, os primeiros versículos de nosso texto são uma
É porqrre não podeis escutar minha palavra. definição explicitamente mimética do desejo e das opções
Vós sois do diabo. vosso pai, que dele resultam paÍa a humanidade.
E quereis realizar Se os modelos que os homens escolhem não os orien-
os desejos de vosso pai. tam na boa direção, não conflituosa, por meio do Cristo, a
Ele foi homicida desde o princípio rnais ou menos longo prazo eles irão expôJos à indiferen-
e não permaneceu na verdade, ciação violenta e âo mecanismo da vítima única. Eis o que
porque nele não há verdade: é o diabo no texto de João. Os filhos do diabo são os seres
quando ele mente, que se deixam aprisionar no círculo do desejo rivalitário e
fala do que the é próprio, que, cegamente, tornam-se joguetes da violência mimética.
porque é mentiroso e pai da mentira. Como todas as vítimas desse processo, "eles não sabem o
(8,42-44) que fazem" (Lucas 23,34).
Se não imitamos Jesus, nossos modelos tornam-se para rrrrr n-rimético. No momento em que Jesus faz o discurso
nós obstáculos vivos, e também nos tornamos para eles. (luc comentamos, o mecanismo que outrora mobilizara os
Descemos então, juntos, a espiral infernal que conduz às t'rrinitas contra Abel e, em seguida, milhares de multidões
crises miméticas generalizadas e, passo a passo, ao todos ( ( )ntra milhares de vítimas está pÍestes a se reproduzir con-
Desde o início, [o diabo] foi um homicida. srrção, é a condenação injusta de uma vítima inocente. Ela
rri«r repousa sobre nada de real, nada de objetivo. mas apesar
Se o leitor não tiver percebido o ciclo mimético, mais tlisso consegue ser aceita de modo unânime, em virtude do
utl:,a vez aqui ele não irá compreender. Terá a impressão r'orrtágio violento. Lembremos que o sentido primeiro de
de uma ruptura arbitrária, inexplicável, entre essa frase e as S:rtanás, na Bíblia, é o de acusador público, o promotor em
precedentes. Na realidade, a sucessão dos temas é perfeita- rurr tribunal.
mente lógica: ela corresponde às etapas do ciclo mimético. O diabo é necessariamente mentiroso, pois se os perse-
João atribui o todos contrd um rnirnético ao diabo porque t1rridores apreendessem a verdade, ou seja, a inocência da
ele já lhe atribui o desejo responsável pelos escândalos. Ele sLra vítima, eles não poderiam mais aliviar-se de sua violên-
poderia da mesma forma atribuir tudo isso aos homens, e t'ia à custa dela. O mecanismo vitimário só funciona em
por vezes ele o faz. Irrr-rção da ignorância daqueles que o fazem funcionar. Eles
O texto de João é uma nova definição ultrarrápida, ,rt'reditam estar na verdade quando, na realidade, encon-
mas completa
-
do ciclo mimético. Em nós e à nossa vol- lt'am-se na mentira.
-
ta, os escândalos proliferam e, cedo ou tarde, arrastam-nos O "fundo próprio" do diabo, aquele de onde tira suas men-
às escaladas miméticas e ao mecanismo vitimário. Eles nos tiras, é o mimetismo violento que não é nada de substancial.
transformam à revelia em cúmplices de assassinatos unâ- ( ) diabo não tem fundamento estável, não tem nenhum ser
nimes, tão mais enganados pelo diabo quanto mais igno- l)ara dar-se uma aparência de ser ele precisa parasitar as cria-
ramos nossa cumplicidade. Ela não tem consciência de si turas de Deus. Ele é inteiramente mimético, o que equivale a
própria. Imaginamo-nos virtuosamente alheios a qualquer .lizcr, inexistente.
violência. O diabo é o pai da mentira ou, em certos manuscritos,
De vez em quando, os homens vão até o extremo na tlos "mentirosos", porque suas violências enganosas reper-
realização dos desejos de seu pai e recaem no todos contra ('utcm de geração em geração nas culturas humanas, que
zo i Itlxi ( lrrr rrLl []rr vr.r Srr',rN.is c,\1n (t()Mo ttitt trtti.-Àlutu,rt;o i 7r
permanecem todas tributárias de algum assassinato funda-
dor e dos ritos que o reproduzem.
O texto deJoão escandaliza aqueles que não percebem a ( )) satanás dos Evangelhos sinóticos e o diabo do Evangelho
alternativa que ele pressupõe, como tampouco a percebe- It l«rão significam o mimetismo conflitLtoso, incluindo o me-
ram os primeiros interlocutores de Jesus. Muitos acreditam (,lnisrno vitimário. Pode-se tratar tanto do processo quanto
ser fiéis a Jesus, mas lançam contra os Evangelhos objeções ..lt' urn único de seus momentos. Para os exegetas modernos,
superficiais, mostrando com isso que permanecem submis- ( ('.q()spara o ciclo mimético, a palavra pode dar a impressão
sos às rivalidades miméticas e às suas escaladas violentas. ,lt. sigxrificar tantas coisas diferentes que acaba não significan-
Quando não enxergamos que é inevitável escolher entre rrrais nada. Mas essa impressão é enganosa. Se retomarmos
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esses dois arquimodelos, Deus e o diabo, já escolhemos o ur)ur a uma as proposições que analisei, e se compararmos o
diabo, o mimetismo conflituoso. sirtrlnás sinótico com o diabo deJoão, veremos facilmente que
As virtuosas indignações modernas contra o Evangelho .r cl«rutrina é coerente e que a passagem de um vocabulário
deJoão não têm fundamento.Jesus drzaverdade a seus inter-
l)iu'a outro não a afeta.
locutores: eles escolheram o desejo rivalitário e, a longo pra- Longe de ser absurdo demais para reter nossa atenção,
zo, as consequências serão desastrosas. O fato de queJesus se () tcma evangélico contém um saber incomparável sobre
dirija a judeus é muito menos importante do que imaginam ,rs rclações entre os homens e as sociedades que delas re-
aqueles que só têm uma preocupação: provar o antissemitis- strltam. Tudo que afirmei sobre Satanás está em perfeito
mo dos Evangelhos. A paternidade diabólica no sentido de rrc«lrdo com o que a análise dos escândalos' anteriormente,
Jesus não pode ser o monopólio de um povo específico. pcrmitira que formulássemos.
Após sua definição mimética do desejo, o texto de João Quando o disúrbio causado por Satanás
torna-se grande
fornece uma definição fulgurante das consequências desse tlt'r-nais, o próprio Satanás, assim como o escândalo, torna-
desejo, o assassinato satânico. A impressão de maldade pro- sc de alguma forma seu próprio antídoto, suscitando o
duzidapelo texto deve-se à incompreensão de seu conteúdo, :rr.rcbatamento mimético e o todos contra um feconciliador,
que nos faz irnaginar uma série de insultos gratuitos. Isso é pcrmitindo que a tranquilidade retorne à comunidade'
efeito de nossa ignorância, frequentemente mesclada com A grande parábola dos vinhateiros homicidas mostra
hostilidade preconcebida com relação à mensagem evangé- t'laramente o ciclo mimético ou satânico. Cada vez que o
lica. E nosso próprio ressentimento que projetamos sobre o proprietário da vinha envia um mensageiro aos vinhateiros,
cristianismo. Para além dos interlocutores imediatos de Je- t'sse envio desencadeia entre eles uma crise, que resolvem
sus, que são inevitavelmente os judeus, é a humanidade in- colocando-se contra o mensageiro, expulso por unanimida-
teira que é visada, como sempre acontece nos Evangelhos. r,lc. Esse acordo unânime é o arrebatamento mimético' Cada
expulsão violenta constirui o cumprimento de um ciclo mi- velação, pois esta não está assimilada, as comunidades huma-
rras têm uma dívida com Satanás pela ordem muito relativa
mético. O último mensageiro é o Filho, expulso e assassinado
do mesmo modo que todos os enviados precedentes. que desfrutam. Portanto, elas são sempre devedoras em rela-
Essa parábola confirma a definição da crucificação que já ção a ele, e não conseg.rem se libertar por seus próprios meios'
expus. O suplício deJesus é um exemplo, entre tantos outros, Satanás imita o modelo de Jesus, o próprio Deus, mas
do mecanismo vitimário. O que torna único o ciclo miméti- num espírito de arrogância e de rivalidade pelo poder. Ele
co deJesus não é a violência, mas a identidade da vítima, que conseguiu perpetuar seu reino, durante a maior parte da
éo Filho de Deus. Evidentemente, aí se encontra o essencial história humana, graças à transigência de Deus, para a qual
do ponto de vista de nossa redenção, mas de tanto negligen- o começo do fim é marcado pela missão de Jesus junto aos
ciarmos os alicerces antropológicos da Paixão, acabamos l'romens. O reino de Satanás corresponde à parte da história
por passar ao largo da verdadeira teologia da Encarnação, humana anterior a Cristo, a qual é inteiramente governadâ
que necessita da antropologia evangélica para se fundar. pelo mecanismo vitimário e as falsas divindades.
As noções de ciclo mimético e de mecanismo vitimário A concepção mimética de Satanás permite que o Novo
'I'estamento atribua ao mal um papel à medida de sua im-
fornecem conteúdo concreto a uma ideia de Simone Weil se-
gundo a qual, antes mesmo de ser uma "teoria de Deus", uma portância, sem conferir-lhe o peso ontológico que faria des-
sc personagem uma espécie de deus do mal-
teologla, os Evangelhos são uma "teoria do homem" ,üÍna dn-
tropologia. Longe de "criar" o que quer que seja por seus próprios
Como o desencadeamento do mecanismo vitimário é meios, Satanás só se perpetua parasitando o ser criado por
inseparável do auge da desordem, o Satanás que expulsa e Deus, imitando esse ser de modo invejoso, grotesco, perver-
restabelece a ordem é exatamente idêntico ao Satanás que so, tão contrário quanto possível à imitação direta e dócil de
"Satanás expulsa -fesus. Satanás é imitador,
repito, no sentido rivalitário do
fomenta a desordem: a fórmula deJesus
Satanás" é insubstituível.
- termo. Seu reino é uma caricatura do reino de Deus. Sata-
-
A receita suprema do príncipe deste mundo, seu artifício nás é o macaco de Deus.
número um, talvez seu único recurso, ê o todos contrd um Afirmar que Satanás não é, recusar-lhe o ser, como faz
a teologia cristã, equivale a dízet, entre outras coisas, que
mimético ou mecanismo vitimário, é a unanimidade mimé-
tica que, no paroxismo da desordem, restabelece a ordem o cristianismo não nos obriga a ver nele "um ser que exis-
nas comunidades humanas. te realmente". A interpretação que reconhece em Satanás
Graças a essa prestidigitação que até a revelação judaica e o mimetismo conflituoso permite, pela primeíravez, náo
cristã sempre permaneceu dissimulada e que, até certo ponto, minimizar o príncipe deste mundo sem dotá-lo de um ser
permanece dissimulada em nossos dias, no seio mesmo da re- pessoal que a teologia tradicional, com justiça, recusa-lhe.
Nos dois casos, temos uma violência coletiva que é obje- de todos é a Paixão de Cristo, o único relato a revelar até o fim
to de uma falsa interpretação, dominada pela ilusão unânime a causa da unanimidade violenta, o contágio mimético, o mi-
dos perseguidores. Diante dos mitos, somos ludibriados pelas metismo da violência.
transfigurações que não são mais capazes de nos enganar no Em suma, o que estou afirmando é que mesmo a mito-
caso da caça às bruxas. Diante das perseguições que aconte- logia aparentemente mais nobre, a dos deuses olímpicos,
cem em nosso universo histórico, por mais distantes que es- provém da mesma gênese textual que a demonização do
tejam no tempo, compreendemos facilmente que as vítimas mendigo de Éfeso ou das bruxas medievais.
são reais e necessariamente inocentes. Compreendemos que A aproximação da mitologia e da caça às bruxas pare-
seria não somente estúpido, mas culpável, negar essa realida- ce escandalosa em virtude da veneração estética e cultural
de. Não queremos nos tornar cúmplices da caça às bruxas. A que envolve a mitologia, mâs o escândalo não resiste a uma
mitologia é uma versão mais poderosa do processo transfigu- comparação séria entre as duas estruturas. Em ambos os
rador cujo funcionamento está claro no caso da caça às bru- casos, são os mesmos dados organizados do mesmo modo,
xas, já que em nosso mundo ele só funciona sob uma forma mas muito enfraquecidos, repito, nos fenômenos do univer-
bastante enfraquecida, tncapaz de produzir verdadeiros mitos. so cristão, aqueles que qualificamos de "históricos".
Se examinaÍmos os textos que refletem as grandes con- É verdade que quanto mais as divindades envelhecem,
vulsões medievais, não será difícil encontrar o ciclo miméti- mais sua dimensão maléfica vai se dissipando em proveito
co, a crise, as acusações estereotipadas, a violência coletiva da dimensão benéfica, mas sempre restam vestígios do de-
e, às vezes, ainda um embrião de epifania religiosa. São cla- mônio original, da vítima coletivamente massacrada.
ros os sinais preferenciais de seleção da vítima que carac- Caso nos limitemos a repetir os cosrumeiros clichês so-
terizam muitos heróis e divindades mitológicas. Têmos os bre os deuses olímpicos, iremos enxergar apenas sua majes-
mesmos critérios de seleção do phormokos grego: doenças tade e serenidade. Na arte clássica, os elementos positivos,
de todo tipo, taras físicas e sociais. Exatamente os critérios em geral, já se encontram em primeiro plano, mas por trás
que determinam Apolônio a escolher um miserável mendi- deles, mesmo no caso deZets, há sempre o que é chamado
go para sua lapidação "milagrosa". com uma complacência um tanto simplória de "extravagân-
Os mitos propriamente ditos fazern parte da mesma fa- cias" do deus. Todo mundo está de acordo para "desculpar"
mília textual que a lapidação de Apolônio, os fenômenos tais extravagâncias com um sorriso finamente cúmplice,
medievais de caça às bruxas ou ainda... a Paixão de Cristo. um pouco como se fosse o caso de um presidente america-
rrs I ttrNÉ Grnann Eu vra SarauÁs caIR coMo ura nrúneaco I rr9
sas, realizando, em suma, o tipo de milagre que Apolônio No dizer dos principais interessados, que talvez devam
realiza com seu mendigo. Em período de crise, todas as cul- ser escutados, os sacrifícios são destinados: 1) a agradar aos
turas sacrificiais recorriam a ritos não previstos pelo calen- deuses, que os ensinaram aos homens e 2) a consolidar ou
dário liúrgico normal. A lapidação do mendigo é um rito restalrrar, se for necessário, a ordem e apazna comunidade.
de ph ar makos improvis ado. Apesar da pnanimidade dessas afirmações, os etnólogos
Fazendo lapidar o mendigo, Apolônio reproduz sobre nunca as levaram a sério. E penso ser esta arazáo pela qual
uma vítima humana a violência unânime que a maioria dos não resolveram o enigma dos sacrifícios. Para resolvê-lo, é
sacrifícios só continuava reproduzindo, em sua época, com preciso admitir que os sacrificadores diziam a verdade tal
útimas animais. qual a compreendiam. Eles estavam muito mais próximos
Também as representações teatrais ênraízam-se na üo- da verdadeira explicação de seus próprios ritos do que todos
lência coletiva e são espécies de ritos, mas ainda mais pu- os especialistas contemporâneos.
rificados de sua violência que os sacrifícios animais, e mais Os sacrifícios sangrentos são tentativas de recalcar e mo-
ricos do ponto de vista cultural, pois são sempre, pelo menos derar os conflitos internos das comunidades arcaicas repro-
indiretamente, medirações sobre a origem do religioso e da duzindo com a maior precisão possível, à custa de vítimas
totalidade da cultura, fontes potenciais de saber, como de- que substituem a vítima original, üolências reais que, num
monstra Sandor Goodhart em seu Saoificingcommentary.. passado não determinável, mas de modo algum mítico, ha-
Mas o objetivo da tragédia é o mesmo que o dos,sacri- viam realmente reconciliado essas comunidades, devido à
fícios. Trata-se sempre de produzir, entre os membros da sua unanimidade.
comunidade, uma purificação ritual, a cdtharsis aristotélica, As divindades estão sempre misturadas aos sacrifícios,
que não passa de uma versão intelectualizada ou "sublima- pois as violências coletivas que serão reproduzidas não se
da", como diria Freud, do efeito sacrificial original. diferenciam daquelas que, precisamente por tê-los reconci-
iiado, persuadiram os beneficiários de que suas ütimas são
divinas.
Em suma, é sempre um "mecanismo vitimáno" efrcaz
Na época em que ainda existiam ritos sacrificiais mais ou que serve de modelo aos sacrifícios e que é considerado di
menos vivos, quando os etnólogos perguntavam às comuni- vino por ter realmente posto flm a uma crise miméttca, a
dades por que elas os observavam escrupulosamente, sem- uma epidemia devinganças em cadeia que não se conseguia
pre obtinham a mesma dupla resposta. controlar.
A prova de que os sacrifícios são modelados segundo
* Sandor Goodhart, Sacrifcíng Commentary. Baltimore: Johns Hopkins Univer_
violências reais é que, embora sejam certamente diferentes
siry,1996.
rzz I llr,xi- (,;n,rnn I'1, r,tl Sar,rrÁs cÁrR coÀ.ío uv nrlr-,ilrprco I rzj
É por isso que tantos ritos, muito úsivelmente destina- todo um esforço de reproduzir o modelo tão exata e meti-
dos a restabelecer a ordem, não deixam de começar, de ma- culosamente quanto Possível.
neira paradoxal a nossos olhos, logicamente na perspectiva É essa preocupação com a exatidáo que sugeriu aos psi-
mimética, por um agravamento da desordem, por uma es- cólogos e psicanalistas todas as suas explicações falaciosas
petacular desorganização de toda a comunidade. em termos de."neuroses", "fantasmas" e outros "comple-
No entanto, por mais racional que ele seja por trás de xos" de que tanto gostam. É evidente, aos olhos da maioria
seu aparente absurdo, esse procedimento não é universal. dos modernos, que a religião é um fenômeno psicopatoló-
Muitos sistemas rituais não reproduziam a crise inicial. É fá- gico. Para dissipar essas ilusões é preciso identificar a açáo
cil compreender a tazão. Essa crise é um desencadeamento real que os sacrificadores reprodtziam, a violência recon-
de violência mimética. Se ela for imitada de modo excessi- ciliadora, por ser espontaneamente unânime. Como esse
vamente realista, os riscos de uma perda total de controle modelo é realmente temível, os sacrificadores tinham razáo
são grandes, e muitas comunidades recusavam-se a assu- em temer sua reprodução.
mi-los. Sem dúüda, elas especulavam que haveria sempre Na temporalidade dos ritos, inevitavelmente chega o mo-
desordem suficiente para desencadear o mecanismo recon- mento em que as inúmeras repetições "desgastam" o efeito
ciliador, sem necessidade de se acrescentar um perigoso su- sacrificial. O terror que seus próprios sacrifícios inspiram a
plemento de violência. esses aprendizes de feiticeiros, que os sacrificadores nunca
Mesmo os ritos mais tumultuosos não reproduziarrt, errt deixam de ser, acaba Por se dissipar. Ele só sobrevive sob a
geral, a crise mimética em toda sua intensidade e duração. forma de comédias de terror destinadas a impressionar os
Quase sempre bastava uma versão resumida e acelerada da não iniciados, as mulheres e as crianças.
desordem. Em resumo, não era preciso lançar-se ao fogo Inúmeros indícios teóricos, textuais, arqueológicos suge-
para evitar se queimar. rem que nos primeiros temPos da humanidade as vítimas
Compreendemos por que, quase em toda paÍte, os sacri- eram principalmente humanas. Com o passar do tempo, os
ficadores consideravam seus sacrifícios ações temíveis. Eles animais foram substituindo cada vez mais os homens, mas
não ignoravam que a 'boa violência", aquela que ao invés de quase em toda Parte as vítimas animais eram consideradas
intensificar mais a violência coloca-lhe um fim, é a violência menos eficazes que as vítimas humanas.
unânime. Eles tampouco ignoravam que o motor da unani- Em caso de perigo extÍemo, na Grécia clássica, voltava-
midade é o mais exasperado mimetismo, necessariamente -se às vítimas humanas. Se acreditarmos em Plutarco, na
o mais perigoso enquanto não atingir a unanimidade. Daí véspera dabatalha de Salamina, Temístocles, sob pressão da
a ideia, universal em seu princípio, de que a atividade rirual multidão, mandou sacrificar prisioneiros peÍsas.
é extremamente perigosa. Para diminuir esse risco, havia Seria isso muito diferente do milagre de Apolônio?
rz4 | ReNÉ Grnano Eu vte SerarÁs caÍR coMo urvr x.rlÂrnlraco I rz5
VII
O essassrNlro FUNDADoR
cultura, são assassinatos sempre análogos à crucificação, as- se ela significasse simplesmente que, desde que os homens
sassinatos fundados sobre o mimetismo, consequentemen- apareceram sobre a terra, Satanás os incitou ao assassinato,
te, assassinatos fundadores, em tazáo do mal-entendido a João não mencionaria a palavra "origem" a respeito do pri-
respeito da útima, causado pelo mimetismo. meiro assassinato. Nem Mateus nem Lucas aproximariam a
As duas frases sugerem que a cadeia de assassinatos é ex- fundação do mundo e o assassinato de Abel.
tremamente longa, já que remonta à fundação da primeira Essas três frases, as de Mateus e Lucas de um lado, a de
cultura. Esse tipo de assassinato, comum ao assassinato de João de ouro, significam â mesma coisa: elas assinalam que
Âbel e à crucificação, desempenha um papel fundador em entre a origem e o primeiro assassinato coletivo existe uma
toda a história humana. Não é por acaso que os Evangelhos relação que não é fortuita. O assassinato e a origem são in-
relacionam esse assassinato com akatabolêskosmou, a funda- separáveis. Se o diabo é homicida desde a origem, isso sig-
nifica que ele também o é na sequência dos tempos. Cada
ção do mundo. Mateus e Lucas sugerem que o assassinato
tem um caráter fundador, que o primeiro assassinato e a vez que uma cultura aparece, é por esse mesmo tipo de as-
fundação da primeira cultura são inseparáveis. sassinato que ela começa. Temos então uma sequência de
Existe no Evangelho deJoão uma frase equivalente às de assassinatos completamente análogos à Paixão, e a todos
Mateus e Lucas, e ela confirma a interpretação que acabo os fundadores. Se o primeiro encontra-se na origem da pri
de dar. É a frase que se encontra no centro do grande dis- meira cultura, os seguintes devem ser a origem das culturas
curso de Jesus sobre o diabo, já comentada no capítulo III' subsequentes.
Também ela é uma definição do que Mircea Eliade chama Tudo isso está perfeitamente de acordo com aquilo que
de assassinato criador: aprendemos páginas atrás sobre Satanás, ou o diabo, ou seja,
que ele é uma espécie de personificação do "mau mimetis-
Desde a origem lo diabol foi homicida. mo", tanto em seus aspectos conflituosos e desagregadores
quanto em seus aspectos reconciliadores e unificadores. Sa-
A palavra para origem, início, começo, ê archà. Ele não tanás, ou o diabo, é alternadamente aquele que fomenta a
pode se relacionar à criação exniWilo, que, sendo completa- desordem, o semeador de escândalos e aqueie que, no pa-
rz8 I RlxÉ Crnaxn Ll.t; vre S.lt.ll.irs cAiF. cor,tíl uiu nr:t.Âupaco I r19
Essas crises são não somente as discordâncias miméticas, baixo, no caldo das rivalidades miméticas. A autoridade re-
mas a morte e o nascimento, as mudanças de estação, as ligiosa que lhe confere seu sacrifício futuro vai lhe permitir
carestias, os desastres de todo tipo, e ainda mil outras coisas não exatamente "tomar" um poder que ainda não existe,
que, justa ou injustamente, inquietam os povos arcaicos: e mas, literalmente, forjá-1o. A veneração inspirada por seu
é sempre recorrendo ao sacrifício que as comunidades ten- sacrifício vindouro se transforma pouco a pouco em poder
tam acalmar suas angústias. "político"..
Podemos comparar a dimensão propriamente religiosa
a uma substância materna, a uma placenta original da qual
os ritos se livram com o tempo para transformar-se em ins-
Por que certas culturas enterram suas vítimas em amontoados tituições desritualizadas. As repetições dos sacrifícios são as
de pedras às quais com frequência dão uma forma piramidal? numerosas lambidas da ursa em sua progenitura mal lam-
Para e4plicar tal costume, podemos considerálo um subpro- bida.
duto das lapidações rituais. Lapidar uma vítima é recobrir seu O verdadeiro guia da humanidade não é a razão desen-
corpo de pedras. Quando são lançadas muitas pedras sobre um carnada, mas o rito. Numerosas repetições modelam pouco
ser vivo, não somente ele morre, mas essas pedras assumem, a pouco as instituições que os homens acreditarão mais tar-
de modo completamente natural, a forma troncônica do tumu- de terem sido inventadas exnihilo. Na verdade, foi a religião
lru encontrada, mais ou menos geometrizada, nas pirâmides que as inventou para eles.
sacrificiais ou funerárias de inúmeros povos, começando pelos As sociedades humanas são obra dos processos miméti-
egípcios, entre os quais o úmulo tem a forma de uma pirâ- cos disciplinados pelo rito. Os homens sabem muito bem
mide truncada, e apenas mais tarde terminada em ponta. O que não dominam suas rivalidades miméticas por seus
úmulo é inventado a partir do momento em que o costume próprios meios. É por isso que eles atribuem tal domínio
de recobrir os cadáveres de pedras difunde-se na ausência de a suas vítimas, que consideram como divindades. Em uma
qualquer lapidação. perspectiva puramente positiva, estão errados; num sentido
Como conceber a origem ritual do poder político? Por r-nais profundo têm razão. A humanidade, acredito, é filha
meio daquilo que chamamos de realcza sagrada, que tam- cla religião.
bém deve ser pensada como uma modificação, ínfima em
princípio, do sacrifício ritual.
Para fabricar um rei sagrado, escolham uma vítima inte-
ligente e autoritária. Em vez de sacrificá-la imediatamente,
adiem sua imolação, coloquem-na para cozinhar em fogo t Sobre a questão das realczas sagradas em geral, e mais particularmente no
of Disaster. Leiden: EJ. BÍill, 1992.
Srrdão, r,er: Simor-r Simonse , Kings
rao j Rr:rír (lrnrnr-. llr-, vr.r S.rrix.is c.\rn (.r)\1o,-,lt nt,r Âiutp.rtto ! r4l
Nossas instituições devem sero desfeúo de umlongoproces- Para reabilitar a tese religiosa do assassinato fundamen-
so de seculaização inseparável de uma espécie de "raciona- tal e torná-la cientificamente plausível, basta acrescentar a
lização" e de "funcionalizaç[s". Há muito tempo a pesqúsa esse assassinato os efeitos cumulativos dos ritos, levando
moderna teria sido capaz de identificar sua verdadeira gêne- em conta sua plasticidade, num período de tempo extrema-
se, se não estivesse desfavorecida por sua hostilidade, no fun- mente longo:
do irracional, em relação ao religioso. A ritualização do assassinato é a primeira instituição e
É preciso considerar a possibilidade de que todas as insti- a mais fundamental, arrráe de todas as outras, o momento
tuições, e consequentemente a própria humanidade, sejam decisivo na invenção da cultura humana.
modeladas pela religião. De fato, para escapar do instinto A força da hominização é a repetição dos sacrifícios num
animal e aceder ao desejo com todos seus riscos de confli- espírito de colaboração e de harmonia ao qual eles devem
tos miméticos, o homem precisa disciplinar seu desejo, e a sua fecundidade. Essa tese atribui à antropologia a dimen-
única forma de fazê-lo é por meio de sacrifícios. A humani- são temporal que the falta, e está de acordo com todas as
dade sai da religião arcaica por intermédio dos "assassinatos religiões no que diz respeito às origens das sociedades.
fundadores" e dos ritos deles decorrentes. A partir do momento em que a criatura pré-humana ul-
A vontade moderna de minimizar a religião poderia ser, trapassou um certo umbral de mimetismo e que os mecanis-
paradoxalmente, o vestígio supremo da própria religião sob mos animais de proteção contra a violência desmoronaram
sua forma arcaica, que consiste, em primeiro lugar, em se (dominance Í,dtterns, padrões de dominância), os conflitos
manter a uma distância respeitosa do sagrado, um último miméticos devem ter se alastrado fulminantemente entre
esforço para dissimular o que está em jogo em todas as ins- os homens, mas esses mecanismos logo produziram seu
tituições humanas, isto é, eütar a violência entre os mem- antídoto, suscitando mecanismos vitimários, divindades e
bros de uma mesma comunidade. ritos sacrificiais que não somente moderaram a üolência
A ideia do assassinato fundador é üsta como uma in- no interior dos grupos humanos, mas também canalizaram
venção bizarca, uma aberração recente, um capricho de suas energias em direções positivas, humanizadoras.
intelectuais modernos, alheios tanto à razío quânto às rea- Como nossos desejos são miméticos, eles se asseme-
lidades culturais. E, no entanto, essa ideia é comum a todos tham, e se reúnem em sistemas de oposição obstinados,
os grandes relatos de origem, à Bíblia hebraica e, finalmen- estéreis e contagiosos. São os escândalos. Multiplicando-se
te, aos Evangelhos . Ela ê mais verossímil que todas as teses e concentrando-se, os escândalos mergulham as comunida-
modernas sobre a origem das sociedades, que se remetem des em crises que se exasperam cadavez mais, até o instan-
todas a uma forma ou outra do mesmo absurdo inextirpá- te paroxístico em que a polanzação unânime contra uma
vel, o "contrato social". vítima única produz o escândalo universal, o "abscesso de
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E,u vra SaraNÁs cÁiR coMo uu ruirÁunaco I zzj
Os membros do grupo referido acusam seu "bode expia- judaico-cristã. Em vez de criticar a nós mesmos, fazemos
tório" com muito ardor e sinceridade. Quase sempre, um um mau uso de nosso saber, dirigimo-lo contra o próxi-
incidente qualquer, fantâsioso ou pouco significativo, desen- mo, e praticamos uma caça ao bode expiatório em segun-
cadeia contra essa vítima um movimento de opinião, uma do grau, uma caça aos caçadores de bodes expiatórios. A
versão atenuada do arrebatamento mimético e do mecanis- compaixão obrigatória de nossa sociedade autoríza novas
mo vitimário. formas de crueldade.
O recurso metafiórico à expressão ritual é frequente- Tudo isso é resumido de modo fulgurante por são Paulo
mente arbitrário em suas modalidades, mas ele é justifi- em sua Epístola aos Romanos: "Tu não julgarás, ó, homem,
cado em seu princípio. Entre os fenômenos de expulsão pois tu que julgas, tu fazes a mesma coisa." Se condenar o
atenuada que observamos todos os dias em nosso mundo pecador ê fazer a mesma coisa que repreendemos nele, nos
e o antigo rito do bode expiatório, assim como outros ritos dois casos, o pecado de que se trata consiste necessariamen-
de mesmo tipo, as analogias são perfeitas demais para não te em condenar o próximo.
serem reais. As substituições clandestinas, os deslizamentos de uma
Quando suspeitamos que nossos vizinhos estão ceden- vítima a outra, num universo desritualizado, permitem-nos
do à tentação do bode expiatório, nós os denunciamos com observar em estado puro, se assim podemos dizer, o fun-
indignação. Estigmatizamos ferozmenre os fenômenos de cionamento dos mecanismos relacionais ("interdividuais"),
bode expiatório de que nossos vizinhos se rornam culpados, que subentendem a organização ritual dos universos arcai-
sem que nós mesmos consigamos passar sem vítimas subs- cos. Esses mecanismos se peÍpetuam entre nós em geral
titutivas. Têntamos todos acreditar que só sentimos ranco- sob forma residual, mas por vezes eles também podem res-
res legítimos e ódios justificados, mas nossas certezâs nesse surgir sob formas mais virulentas que nunca, e numa escala
campo são mais frágeis que as de nossos ancestrais. gigantesca, como na destruição sistemática por Hitler dos
Poderíamos utilizar com delicadeza a perspicácia de judeus europeus, e em todos os outros genocídios e qua-
que damos prova quando se trata de nossos vizinhos, se genocídios que acoÍrteceram no século XX. Falarei disso
sem humilhar demais aqueles que surpreendemos em fla- mais adiante.
grante delito de caça ao bode expiatório, mas, em geral, A perspicácia a respeito dos bodes expiatórios é uma
fazemos de nosso saber uma arma, um meio não só de verdadeira superioridade de nossa sociedade sobre todas as
perpetuil os velhos conflitos, mas de elevá-los ao nível sociedades anteriores, mas, como todo progresso do saber,
superior de sutileza exigida pela própria exisrência desse é também uma ocasião de agravamento do mal. Eu, que
saber, e por suâ difusão em toda a sociedade. Em suma, denuncio os bodes expiatórios de meus vizinhos com uma
integramos a nossos sistemas de defesa a problemática satisfação malévola, continuo a considerar os meus objetiva-
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Rr.r'rÉ GiRnnD Eu vra SarartÁs caIR coMo uu nurÂrar.r.co I zz5
mente culpados. Meus vizinhos, é claro, não deixam de de- Portanto, a expressão bode expiatóno designa: 1) a vítima do
nunciar em mim a perspicácia seletiva que denuncio neles, rito descrito no Levítico; 2) todas as vítimas de ritos análo-
Os fenômenos de bode expiatório muitas vezes só po- gos que existem nas sociedades arcaicas e que são também
dem sobreviver caso se tornem mais sutis, despistando em chamados de ritos de expulsão; e finalmente, 3) todos os
meandros sempre mais complexos a reflexão mortal que os fenômenos de transferências coletivas não ritualizadas que
segue como sua sombra. Como não podemos mais recorrer observamos ou pensamos observar a nosso redor.
a um infelizbode expiatório para nos livrar de nossos Íes- Esta última significação transpõe tranquilamente a bar-
sentimentos, precisamos de procedimentos menos comica- reira que os etnólogos se esforçam em manter entre os ritos
mente evidentes. arcaicos e seus sucedâneos modernos, os fenômenos cuja
Penso que é à privação dos mecanismos vitimários e a persistência à nossa volta mostra que mudamos um pouco
suas terríveis consequências queJesus faz alusão ao apresen- desde os ritos arcaicos, mas menos do que gostaríamos de
tar o fururo do mundo cristianizado em termos de conflito acreditar.
entre os seres mais próximos. Diferentemente dos etnólogos que querem manter a au-
tonomia ilusória de sua disciplina, e que evitam usar a ex-
Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, pressão 'bode expiatório" para não ter que mergulhar nas
mas espada. Com efeito, vim contrapor o homem ao seu pai, análises complexas que se tornam inevitáveis quando se
a filha à sua mãe, a nora à sua sogra. Em suma: os inimigos do abole a separação absoluta entre o arcaico e o moderno,
homem serão os seus próprios familiares. acredito que os usos modernos de 'bode expiatório" são es-
(Mt 10, 34-36) sencialmente legítimos. Vejo aí um sinal, entre outros, de
que, em vez depermanecer letra morta em nossa sociedade,
Num universo desprovido de proteções sacrificiais, as riva- a revelação judaico-cristã torna-se sempre mais efetiva.
lidades miméticas muitas vezes são menos violentas, mas se A desritualizaçã,o moderna revela o substrato psicos-
insinuam até nas relações mais íntimas. É isso que explica em social dos fenômenos rifuais. Gritamos "bode expiatório"
detalhe o texto que acabei de citar: o filho em guerra contra o para estigmatizar todos os fenômenos de "discriminação"
pai, a filha contra a mãe etc. As relações mais íntimas se trans- política, ética, religiosa, social, racial etc. que observamos
formam em oposições simétricas, em relações de duplos, de à nossa volta.
gêmeos inimigos. Esse texto permite a identificação da verda- Temos razáo. De agora em diante, vemos facilmente
deira gênese do que chamamos de psicologia moderna. que os bodes expiatórios pululam sempre que os grupos hu-
manos buscam fechar-se em uma identidade comum, local,
*** nacional, ideológica, racial, religiosa etc.