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Figura 3: anúncio na revista Figura 2: anúncio na revista Figura 1: anúncio na revista

Realidade, Especial Amazônia (1971). Realidade, Especial Amazônia (1971). Realidade, Especial Amazônia (1971).
Fonte: Blog do fotógrafo Pedro Fonte: Blog do fotógrafo Pedro Fonte: Blog do fotógrafo Pedro
Martinelli, disponível em: Martinelli, disponível em: Martinelli, disponível em:
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8 nov 2013. 8 nov 2013. 8 nov 2013.

Visões da floresta
As mudanças de sentido do discurso sobre desenvolvimento a partir de um olhar sobre a Amazônia

“Dizia-se que a Amazônia era um inferno. Um inferno verde. Mata fechada, solidão e silêncio. Um
inferno onde todos estavam longe de tudo. Longe até do progresso.”

“Árvores seculares tombam e acompanham a sua terra, naquele movimento de sair da frente para o
progresso passar”.

“Chega de lendas. Vamos faturar!”.

O que há em comum com as frases dos três anúncios impressos que abrem este artigo, além do fato de
terem sido publicados em um especial da revista Realidade, em 1972? Eles trazem uma visão da
Amazônia como um lugar de mata (com árvores seculares), de difícil acesso, e com adjetivos utilizados
de maneira negativa que destacam isso (mata fechada, solidão, silêncio, inferno verde, longe de tudo).

Ao longo dessa análise, vamos refletir como cada um desses anúncios traz uma noção de progresso para
transformar a Amazônia em um lugar se aproveitam suas riquezas, graças ao esforço do poder
econômico na forma de construções, estradas, exploração de minérios e de madeira. O que esse discurso
traz sobre a floresta, como um lugar misterioso, e até mesmo perigoso e distante.
Proponho também um olhar sobre o discurso de desenvolvimento, que se deslocou do econômico, na
década de 1970 para, mais de 40 anos depois, o da sustentabilidade, que traz texto e imagens da
Amazônia parecidos (a mata, o verde, o quase instransponível), mas sob um outro contexto.

O recorte, nessa análise, então, será o do discurso publicitário sobre o desenvolvimento da Amazônia,
fazendo um paralelo entre o que se discursava sobre desenvolvimento há 40 anos, com o discurso atual
sobre desenvolvimento sustentável, onde ainda se utiliza de imagens e texto associados à mata, ao verde
– nesse discurso atual, porém, é preciso preservar essa mata, ou repô-la.

É importante destacar que estes anúncios foram publicados em um número especial da revista
Realidade, em 1972, que retratava a Amazônia em 328 páginas de um especial com 137 páginas
somente de anúncios. O jornalista Lúcio Flávio Pinto, editor de um jornal na região amazônica 1, lembra
que o esforço de se fazer um número especial sobre a região, na então principal revista em circulação no
país, teve a participação de 40 profissionais, 13 em campo, e pode ter alcançado a façanha de ter
vendido 250 mil exemplares.

Lembra ainda o jornalista que o editorial da revista tratou a Amazônia como “a última grande fronteira
terrestre a ser civilizada”. Visão real da época ou senso comum, certo é que a Amazônia com um rincão
isolado a ser explorado, que aparece tanto nesse editorial quanto nos anúncios aqui selecionados, foi
uma faceta do discurso político do governo militar na década de 1970.

A SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), um dos órgãos públicos que


anunciaram no especial da Realidade, foi o principal responsável pelo planejamento regional da região
amazônica, que teve duas grandes áreas de intervenção, como explica Kohlhepp (2002): as ações
estatais para desenvolver infraestrutura à região, abrindo estradas (caso da Transamazônica, alvo de um
dos anúncios que apresentamos nesta análise) e selecionando projetos de colonização rural; e ações
privadas, atraindo investimentos econômicos para a região (principalmente a criação de gado, a
mineração e a indústria, em polos como Manaus) por meio de incentivos fiscais e redução de taxas
tributárias.

Importante situar a história da época, pois a significação do mundo como prática do discurso, se dá pela
língua, mas o sentido, a interpretação, só ocorre na relação da história com o sujeito, como traz Orlandi
(1996).

Para a autora, “não há conteúdos ideológicos, há funcionamento, modo de produção de sentidos


ideologicamente determinados” (ORLANDI, 1996, p. 30). O discurso se faz quando há um conjunto de

1
PINTO, Lúcio Flávio. A realidade da Amazônia. Reproduzido do Jornal Pessoal, 501, 2ª quinzena/novembro 2011.
Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_a_realidade_da_amazonia>. Acesso em 11 nov
2013.
sentidos para os sujeitos a partir de um texto, uma imagem. O analista de discurso, então, organiza seu
trabalho a partir da relação da história com a língua, para entender a ordem do discurso em questão.

Progresso x floresta: o discurso do Estado à época da ditadura

A proposta de um futuro da Amazônia, construído pela mão do governo dominando a floresta em nome
do poder econômico, seria parte daquilo que Orlandi chama de discursos fundadores, que “vão
inventando um passado inequívoco e empurrando um futuro pela frente, e que nos dão a sensação de
estarmos dentro uma história de um mundo conhecido” (ORLANDI, 1993, p. 12).

Esse discurso fundador re-significa sentidos, ainda que se aproveitam os sentidos anteriores. Um
exemplo de discurso fundador transparece no anúncio número 2, da Superintendência de
Desenvolvimento do Amazonas (SUDAM) e Banco da Amazônia. Seu texto faz referência ao
imaginário comum sobre a Amazônia, que existe nas lendas locais e nos relatos de exploradores que
passaram pela região há alguns séculos; um imaginário que fala em riquezas, em tesouros escondidos.
Em coisas que se desconhece na vastidão amazônica, e que formaram o discurso fundador, criado pelo
europeus desde séculos passados quando do início da exploração do “Novo Mundo”. Orlandi (1993)
lembra que o discurso fundador dá “uma cara” a um país em formação; essa cara, formada também pelo
imaginário.

O texto se apropria das riquezas locais para instaurar um discurso de que a SUDAM e o Banco da
Amazônia, duas instituições públicas, à época (década de 1970), responsáveis por incentivo e
acompanhamento de projetos de desenvolvimento econômicos da região. Se diz que é preciso deixar as
lendas de lado para “faturar”, mas se legitima as riquezas escondidas, fazendo-se referência, entre
outros, à uma estrada que cortaria a Amazônia como “a pista para a mina de ouro”.

Orlandi lembra que o discurso fundador “sustenta o sentido que surge e se sustenta nele” (ORLANDI,
1993, p. 13). Ainda no anúncio de número 2, isso é percebido no texto que aborda as riquezas
escondidas na floresta, trazendo um novo sentido a essas riquezas que devem ser exploradas para o
progresso econômico. A Amazônia como um lugar misterioso, de difícil acesso e pouco explorado,
ainda permanece; o estímulo ao progresso é a história, digamos, inevitável, da nação que precisa
dominar as riquezas naturais desse “reino misterioso” a seu favor. O discurso políticos dos militares se
apropria do discurso fundador da Amazônia inexplorada, o reinterpreta.

Todo discurso nasce a partir de um discurso. No caso dos anúncios, cria-se uma ruptura com um
discurso fundador anterior, de que a Amazônia é parte do patrimônio cultural e natural do Brasil,
deslocando-se esse discurso para o de que o país precisa ter acesso a suas riquezas por meio do
progresso, representado pelo capital, pela chegada das estradas, das máquinas. No anúncio 1, do Banco
do Brasil e sua posição estratégica em Manaus, capital do Amazonas, fala-se na Transamazônica
“quebrando aquela solidão, e aquele silêncio”. A estrada que rasgaria a floresta também aparece no
anúncio 3, da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), que avisa, ao final, que “riqueza
mineral já não é mais mistério para o Brasil”. O tom é o de fazer valer que os minérios estão espalhados
ao longo da Transamazônica, numa região “tão rica que o progresso chegou lá até mesmo antes da
estrada: no traçado da Transamazônica há também jazidas de cassiterita”.

Falava-se muito na Transamazônica como parte de um discurso político do governo militar (cujo tema
fundador era o de “integrar para não entregar”, isto é, a noção de nação protegida pelo Estado Maior, o
exército), onde essa rodovia foi escolhida como prioridade dentro de uma estratégia denominada Plano
Nacional de Integração (PIN), instituído pelo presidente Médici em 1970. Atravessava a Amazônia
desde a fronteira do Amazonas com o Peru e a Colômbia, seguindo até o litoral da Paraíba. Na floresta;
pouquíssimos trechos foram asfaltados; a região sofre com chuvas durante seis meses do ano, criando
imagens reais (e fatos) que contrastam com a possibilidade de gerar riquezas tendo a estrada como
acesso: lama, caos, desmatamento e pobreza, já que o desenvolvimento não chegou a vários trechos.

Podemos refletir que, a partir do que os três anúncios trouxeram, o discurso do Governo Militar, focado
na integração da nação por meio do desenvolvimento econômico, traz condições para a fundação de
outros discursos interligados, criando um complexo de formações discursivas e de sentidos que
configurariam um “processo de identificação para uma cultura, uma raça, uma nacionalidade”
(ORLANDI, 1993, p; 24). Tal como também se dizia durante a ditadura, “o petróleo é nosso”, o
domínio sobre a natureza da Amazônia também indicaria essa supremacia, um certo orgulho de que o
progresso venceria essa natureza e dela extrairia aquilo de que os brasileiros necessitariam, o tal
desenvolvimento.

O “discurso fundador” do desenvolvimento sustentável: o deslocamento da imagem da floresta

Observe a imagem utilizada no anúncio 1, do Banco do Brasil. Uma estrada corta a floresta, com
maquinário de sua construção, ao fundo. Em primeiro plano, nota-se várias árvores caídas. A frase do
anúncio, “O Brasil nunca acreditou em inferno”, nessa composição, parece lembrar que, se o inferno
existe, dá para derrubá-lo, passar por cima dele. Já no anúncio 3, tem-se a impressão de que uma estrada
começa a se materializar nas águas do rio. A natureza aos poucos parece render-se aos apelos do
progresso.

Como vimos anteriormente, essas imagens, quando em conjunto com os textos dos anúncios, fazem
referência à Rodovia Transamazônica, escolhida como símbolo do plano de integração e
desenvolvimento econômico na Amazônia, pelo Governo Militar. São imagens fortes, especialmente a
do anúncio 1, que se contrapõem com os anúncios do mundo atual, 40 anos depois, quando um novo
discurso fundador foi instaurado, o do desenvolvimento sustentável, carregando consigo imagens com
outro contexto para a possibilidade de progresso econômico.

Um contraponto para esta análise, como exemplo, é o anúncio do Banco da Amazônia, parte de uma
campanha sobre melhorias na infraestrutura da Amazônia, publicado em jornais do Pará em 2012:

Figura 4: anúncio do Banco da Amazônia, publicado em 2012 em jornais do Pará. É campanha de divulgação de
melhorias na região. Fonte: DC3 Comunicação, http://www.dc3com.com.br/site/?p=1139

Há poucas palavras escritas neste anúncio. Mãos formam os linhões de energia elétrica, e outras
centenas de mãos menores fazem folhas. Azul e verde predominam na imagem. A frase “FNO –
Movimentando os grandes projetos na Amazônia” faz referência ao Fundo Constitucional de
Financiamento do Norte (FNO), que é gerido pelo Banco da Amazônia. Perceba que a imagem trata de
algo ligado ao desenvolvimento da Amazônia, mas não se utilizou a imagem de uma fábrica ou de de
exploração de riquezas, como o anúncio do banco há 40 anos atrás.

Observe que, sem saber o contexto histórico presente no anúncio, é difícil dotá-lo de significados.
Vargas (2009) explica que as imagens fazem um trajeto ideológico de leitura que não necessariamente
são acontecimentos discursivos, pois não deslocam ou transformam o discurso, apenas modificam a
maneira de se ver algo. Se muitas imagens não falam por si só, entretanto, no encontro com o texto e seu
contexto histórico, passam a fazer sentido. Lembra a autora que não basta a imagem em si mesma, mas
que é preciso, numa análise do discurso, observar sua “materialidade discursiva, social, ideológica que é
ditada pelas determinações sociais, as quais tecem laços e os desfazem” (VARGAS, 2009).

Vamos analisar então, a ideia de um discurso fundador (o do desenvolvimento sustentável), que ainda
persiste e traz as imagens da floresta, sua mata, seus rios, seu verde. Mas a leitura da floresta agora é
outra. Dificilmente você vai ver um anúncio sobre desenvolvimento utilizando uma motosserra
derrubando árvores. Ou uma estrada de terra rasgando a floresta. Essas imagens podem ser até
utilizadas, mas quando se trata de denunciar situações, por exemplo, relacionadas ao desmatamento; de
anúncios de campanhas de organizações não-governamentais a reportagens, floresta derrubada hoje é
sinal de perigo.

O que mudou em 40 anos? Vargas (2008) lembra que na análise do discurso, não se olha apenas para a
imagem em si, mas “para o processo ideológico material que a constitui e lhe imprime direção de
sentidos, que tem uma materialidade discursiva, social, ideológica que é ditada pelas determinações
sociais” (VARGAS, 2009, p. 27). SILVA (1995), ao analisar o discurso de meio ambiente e
desenvolvimento, lembra que a questão ecológica, ao ser institucionalizada principalmente a partir de
acordos e tratados mundiais mais especificamente desde a ECO-92, representa um consenso político que
ajuda a fixar sentidos.

E como se avançou para o conceito comumente disseminado como desenvolvimento sustentável, que
seria o desenvolvimento “capaz de suprir as necessidades da geração atual, sem comprometer a
capacidade de atender as necessidades das futuras gerações”2? Entre outros, amparado pela emergência
de problemas ambientais, que foram se explicitando e apresentando a necessidade de se pensar
propostas concretas para solucionar os impactos de ações como o desmatamento, que levam a
consequências que inclusive sociais e econômicas negativas. Porém, vamos pensar do ponto de vista da
análise do discurso, qual o problema dessa associação entre conceitos distintos (preservação do meio

2
Definição de desenvolvimento sustentável difundida pela ONU, disponível em: < http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-
onu-e-o-meio-ambiente/>. Acesso em 13 nov 2013.
ambiente e dos recursos naturais, desenvolvimento econômico e, mais atualmente, igualdade social, que
também foi incorporada à bandeira do desenvolvimento sustentável).

Silva (1995) lembra que as questões ambientais saíram de uma posição marginal a qual se situavam na
década de 1970, quando a formação ideológica dominante era a do desenvolvimento econômico, e
deslocou-se o sentido do discurso ecológico (como crítica a forma de desenvolvimento na época),
associando os conceitos de preservar e de explorar, desde que dentro dos limites possíveis, amparados
pelo conhecimento científico.

Na prática discursiva de anúncios, reportagens e diversos materiais cujo tema é desenvolvimento


sustentável, Silva (1995) lembram que os sentidos de exploração e desenvolvimento se relativizam, ao
se utilizar adjetivações como sustentável (junto a desenvolvimento) e racional (junto a exploração. A
autora conclui que “mantendo sentidos positivos para o desenvolvimento e a exploração, estes termos
possibilitam, por um lado (o ecológico), que a exploração seja legitimada e, por outro lado (o
desenvolvimentista), que a preservação se legitime em função de um determinado uso” (SILVA, 1995,
p. 32).

Essa autora lembra ainda que o consenso em torno do desenvolvimento sustentável, sustentado pela
ONU, pela mídia, pela ciência de certa forma, trouxe uma espécie de universalização ecológica ao
discurso dominante. As folhas verdes no anúncio do banco da Amazônia, assim como a árvore sendo
símbolo comum a diversas propagandas.

Incrível é pensar que a memória de uma árvore, direta ou indiretamente nos remete à floresta amazônica,
a sua imensidão, a sua consequente necessidade de preservação, ainda que utilizadas em anúncios e
reportagens diversas, que nada tenham a ver com a Amazônia. Talvez nessas imagens esteje a noção de
interdiscurso, onde “o que é dito em outro lugar também significa nas nossas palavras” (ORLANDI,
2007, p. 32). O que é dito, e o que é visto em imagens, também – silenciando motosserras e tratores que
ainda ecoam na Amazônia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KOHLHEPP, Gerd. Conflitos de interesse no ordenamento territorial da Amazônia brasileira. Estud.


Av., 16, (45), São Paulo, IEA-USP, 2002. P. 37-61.

VARGAS, Rejane Arce. Tecnologias de linguagem e produção do conhecimento. Coleção Hiper


Saberes, Santa Maria, Vol. II, dezembro 2009. P. 18-29.

ORLANDI, Eni P. Vão surgindo sentidos. In: ORLANDI, Eni. P. (org.). Discurso fundador: a
formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas: Pontes Editores, 1993. P. 11-25.
___________. Exterioridade e ideologia. Cad. Est. Ling., Campinas (30), p. 27-33. Jan/jun 1996.

___________. Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 7ª ed. Campinas, SP: Pontes, 2007.

SILVA, Telma Domingues. A biodiversidade e a floresta tropical no discurso de meio ambiente e


desenvolvimento. Dissertação de Mestrado em Linguística, IEL-UNICAMP, Campinas/SP, 1995.

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