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IRANDE ANTUNES —¢hem— Textualidade nocdes basicas e implicac6es pedagogicas — I L, rao Diregdo: owen Conroe Capa e diagramagio: Tru Custom Revisio: Preances Eevee Imagens da capa: wh owrosrmcrtos con/ @ IHCxsxs CIP-BRASIL. CATALOGACAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ edt tae Aea2t Antunes, lrandé, 1937- Textualidade : nocées basicas e implicacdes pedagégicas / Irandé Antunes. - 1. ed. - $80 Paulo : Parébola, 2017. 168 p. ; 23 cm. (Estratégias de ensino ; 60) Inctui bibliografia ISBN: 978-85-7934-137-3 1. Lingua portuguesa - Estudo e ensino. |. Titulo. Il. Série. 17-4958 COD: 469.8 CU: 811.134.3°27 —_ Direitos reservados & PARABOLA EDITORIAL Rua Dr. Mario Vicente, 394 - Ipiranga 04270-000 Sao Paulo, SP pabx: [11] 5061-9262 | 5061-8075 | fax: [11] 2589-9263 home page: www.parabolaeditorial.com.br e-mail: parabola@parabolaeditorial com br Todos os direitos reservados. 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Esse campo foi conside- eT COR TB racic oe Mr CRe(S ue CHUTE METAS e: (stay ton COM eR COMB CLAS abba (eH (2) uma nova perspectiva na observacao e descrigao do objeto lin- PAC OCB MORE R CMTC Cr lesa titel) Ot Duta todos da lingufstica geral, embora pretendesse deslocar mais PORT OR TES Mr Se CeO uC MCB MN CKErc eM tattered um programa de investigacdo capaz de reafirmar a impor- tancia da linguistica no centro de outras ciéncias sociais (se- gundo consta em Schmidt, 1978; 1-14); “uma das linhas de pesquisa mais promissoras da linguisti- ca” (Marcuschi, 2008; 1). We conversa se insere em um campo dos estudos da lin- (3) iC | Quais os pressupostos que fundamentaram as propostas ae uma linguistica do texto? 0 pressuposto basico foi a convicgao de que: guagem’, “6 a ela que compete a andlise da lingua tal qual ela acontecg numa sociedade efetiva”, Ocorre que, em qualquer sociedade, o que se pode ver como ocorréncia necessdria é “a lingua-em-funcdes; nunc 0 amontoado de signos abstratos da linguistica tradicional” (Schmidt, 1978: 7). | | ease | Uma vez que a linguistica pretende exercer a fungi de ‘ciéncia da tin. | | | | | | Outro pressuposto esta intimamente ligado a esse primeiro ¢ se assenta no principio de que: Nao existe um uso significativo da lingua fora das inter-relacées pes- soais e sociais situadas (Marcuschi, 2008: 23). Dessa forma, fica explicito que toda atuagao verbal acontece sempre em textos portadores de uma fungado comunicativo-intera- cional e esta, em cada ocorréncia, integrada num sistema mais amplo de atuacao, que é a atuagao social que as pessoas empreen- dem no dia a dia de suas relagées. Desses pressupostos, para todas as linguas, decorrem os fe- némenos: (1) da textualidade, o qual implica que toda e qualquer atividade de linguagem somente ocorre em forma de textos; assim, tudo © que as pessoas dizem, em qualquer circunstancia social, constitui um texto; a dimensdo desse texto nado importa; (2) da intencionalidade, 0 qual implica que toda atividade de lin- | guagem somente acontece com uma finalidade especifica, 0U | seja, com determinada intengao ou objetivo; (3) da semanticidade, 0 qual implica que a atividade da lingu i gem é uma atividade que lida com a produgdo e a expressao de sentidos; portanto, ela significa sempre; | (4) da comunicabilidade, 0 qual implica que as agées de lingua gem se destinam a estabelecer e a produzir eventos de comuni- cagao, de intercambio, de troca entre os sujeitos participantes: [22] rertuatcade -nogies bésios imlcasses pedagésics — (6) da referéncia a parceiros, 0 qual implica que as atividades de linguagem sup6em sempre a condicao da interagao entre dois ou mais sujeitos, ativos e mutuamente colaborativos. Esses fendmenos constituem caracteristicas irredutiveis da lingua concebida como meio discursivo e social de interagao verbal. E quais teriam sido entéo as motivagées para que a linguistica de texto se impusesse como opgiio de estudo do fendmeno da linguagem? Em resposta a essa questao, podemos destacar: (1) a orientacao da linguistica em diregao a linguagem como ati- vidade de interacdo e como forma de atuagdo humana (atua- mos, agimos também pela linguagem); (2) aconsciéncia de que a falta de um componente pragmatico dei- xa a investigagao linguistica numa condigao de séria incomple- tude (toda aciio de linguagem supée as condigdes concretas de sua realizacao); (3) a pretensao de abranger a linguagem como um todo, inte- gralmente, portanto, o que implica a integragao com outras ciéncias (como a sociologia, a psicologia), e outras teorias do discurso (como a retérica, a estilistica, a poética); (4) mais imediatamente, a compreensao de que muitas questdes linguisticas nao podem ser resolvidas apenas no ambito da frase. Pelo exposto, j4 se pode entender a relevancia desse ‘recente ramo da linguistica’ e j4 se pode antever também que suas bases teoricas terao muitas implicagées para as atividades de ensino e de aprendizagem da lingua, que acontecem sob a gestao escolar. ee Parece claro que os pressupostos € as motivagdes apresenta- dos para justificar a relevancia da linguistica de texto se ajustam exatamente aqueles objetivos pretendidos para a tarefa da educa- Gao, pois é no estudo e na analise das atuagdes comunicativas — quer dizer, das atividades de linguagem em textos — que se pode, com amplo sucesso, preparar as pessoas para 0 mercado de tra- balho e para sua participagao cidada na condugao de sua propria vida e da vida da sociedade em que esta inserido. Continuemos a desenvolver 0 assunto de nossa conversa! errands sented comers [23] Lee i a i ai | TEXTOS: UM NOVO MODISMO? BP arene) m consonancia com o desenvolvimento dos estudos da se- mantica e, sobretudo, da pragmatica, surgiu o interesse da linguistica em abranger a lingua como um todo e, assim, Fee Meee eR NC OC ECR EOLA MACOS CCL II adotada. Abranger a lingua como um todo supée percebé-la na sua complexidade, ja que toda lingua é um sistema plural de compo- Tee Pee Rey MORRO ie Contre c tute Cran ater ces ke cee at olen PMC Sum oe RCM Tracie MUR. mee le) aITTcy a ee V MCR a CRM et Ct Me RRR CMT RR ESO Sco eM NER fl (Rous (oaks Rome exem sted RoR CPT e SUES Ounce ecole Cran mL) situacao, isto é, os elementos exteriores aos fatos linguisticos que se quer entender. aN SS@ 'S da tin, T, ler) _ Naturalmente, entdo, a linguistica passou a ter intere, desenvolver uma teoria do texto, uma vez que os usos req; gua — isto 6, toda acao de linguagem (falar, escrever, ouvi, 6 acontecem sob a forma de textos. Quer dizer, apenas POF ine, de textos é que entramos em contato verbal com outros, Isso 6 a evidéncia irrefutavel, mas, parece, uma evidéncia que Rem sem, pre tem sido percebida por todos. z Nesse contexto, se chegou a compreensao de que as te sobre a frase ja nado eram suficientes para explicar Muitos dog fenémenos da comunicagao linguistica, sobretudo aqueles depen. dentes das diferentes situagdes de uso. Atualmente, dada a divul. gacdo de algumas questées textuais, ja ganhou certo Consenso — pelo menos teoricamente — o principio de que muitas ques- tées linguisticas sé podem ser apreendidas na dindmica textual ¢ fundamentadas nas teorias sobre o texto. Um exemplo disso é a operacio de valorizar ou de enfatizar um termo mais que outro, ou de optar, na sequéncia do texto, pelo uso do artigo indefinido ou do artigo definido; outro exemplo sio as retomadas lexicais ou gramaticais (as chamadas ‘anéforas’), as quais, em um texto mais longo, sdo muito comuns, garantindo a continuidade e, dai, a sua unidade semantica. A continuidade tematica de um texto — condigao da sua coe- réncia, e para a qual concorre a repeticao de palavras — também pode exemplificar a insuficiéncia da frase na explicacio de cer- tos fatos da atividade verbal. ‘Orias Estava clara a necessidade de um novo modelo tedrico, ‘de uma possivel nova linguistica’, que ultrapassasse o 4mbito da frase. P. Hartmann, um dos fundadores da linguistica de tex! em 1968, referindo-se a problemas da frase, afirmou: . jle- Se desejarmos praticar e desenvolver a ciéncia da linguagem ¢™ PP nitude e diferenciagio adequada a seus objetos, é preciso partir da" 4 : idt, Situagdo do objeto no dominio da realidade linguistica (apud Sch 1978: 5; destaque meu), O apelo maior Consistia, entao, linguagem em plenitude’ e a‘uma linguéstica adequada a set sancia 44 em chegar a ‘uma ciéncia © objeto’ O que seria esse objeto: a lingua em si mesma? Abstrata? Hi- potética? Ou a lingua tal como ela se nos apresenta nas situagdes do dia a dia? E como a lingua se nos apresenta? As evidéncias, em qual- quer situagado de linguagem, comprovam que ela acontece: (1) sempre em textos; (2) sempre dentro de um contexto sociocomunicativo; ou seja, den- tro de uma situagaéo em que pessoas interagem; (3) sempre articulando elementos lingutsticos (lexicais e gra- maticais) e elementos cognitivos resultantes da experiéncia vivida e preservada na memoria, 0 chamado ‘conhecimento enciclopédico’; (4) sempre vinculada a um propésito. Ou, noutras palavras, com uma fungdo comunicativa qualquer. Ninguém fala para nada, sem finalidade. Nem que seja simplesmente para nao ficar calado. Como definiu Schmidt (1978: 7), “a linguagem nao é usada em fungdo de si mesma, mas sempre com o fim de se obter algum resultado”. Se a linguistica corresponde a fungdo de ‘dar conta da lingua- gem’, é a ela que compete 0 estudo da lingua, tal como ela ocorre nas diversas situacdes sociais, 0 que a caracteriza como ‘lingua- -em-funcoes’, lingua concreta, dialégica, interacional e eminente- mente textual-discursiva. Estava proposto, entdo, 0 ponto de partida para uma compre- ensio mais global do fenémeno linguistico: ou seja, ‘o signo lin- guistico original’, aquele que revela a natureza mesma da lingua e que se faz presente, em sua dimensao global, na textualidade. “Desde que ela exista, a comunicagdo se dd de forma textual” (Sch- midt, 1978: 164). Esse princfpio constitui uma norma universal, valida e neces- sdria para a efetivagao de qualquer ago de linguagem. Ou seja, 0 novo objeto da linguistica é a textualidade da lin- gua. Concretamente, os textos realizados pelos (e entre os) parcei- ros de comunicagao. O conceito de texto tem experimentado, como outros conceitos, determinados alargamentos ou expansées, por restos: umnove meet? [27] conta mesmo de visdes mais amplas com que a linguagem verbal tem sido percebida. i Assim é que, no momento atual, predomina uma compreen- sao do texto mais cognitiva (atenta a mobilizagao a diferentes conhecimentos armazenados na memoria) e mais Pragmatica (atenta a consideragdo dos contextos de uso da lingua) evidente- mente. O ‘novo signo’ é, nas palavras de Schmidt (1978), 0 “texto- -em-funcao”, isto é, 0 texto em seu funcionamento concreto, 0 que abarca outros fatores além daqueles linguisticos e expande os proprios conceitos de coesdo e de coeréncia. Neste livro, a concepgao em que me baseio é exatamente essa visdo mais alargada, que envolve as proprias condig6es pragmati- cas (contextuais) em que as agées de linguagem se efetivam. 2. Em sala de aula Diante desse novo ‘signo’, é necessdrio que o professor, ja nos anos iniciais da escolarizagao, tome o texto como objeto de suas exposi¢Ges e andlises; fale sobre ele; fale nele e dele. Indo além do campo tedrico, convém que o professor procure incentivar a pratica da leitura e da andlise de textos de todos os modelos: pequenos, grandes, literdrios ou nao. Textos, nao frases soltas! Que os alunos tenham a oportunidade de conviver com os livros, manusea-los, ganhar intimidade com eles! Que o professor procure, pouco a pouco, que seus alunos com- preendam a natureza semdntica e as condicdes concretas de ocor- Téncia dos textos, a fim de que eles possam entendé-los segundo essas condicées: uma atividade que envolva sempre expressao de Sentidos e de intengdes; ou seja, que tenha como constituintes eS~ senciais a semdntica ea pragmatica. Assim deve, em linguagem acessivel, tornar os contetidos one e ae 0 interesse dos alunos em diresa0 alee los e 7 resultados esperados em textos orals qualquer tipo e género, uma vez que todo text 28 ] reuan [ 28] semtioe-rsss vaca «npcaie yeasoges sempre ‘significa’ e constitui uma ‘forma de atuagao’. Que exista o cuidado de ir além da simples pergunta: o que o autor disse? Convém chegar a outras questdes mais amplas, mais contextuais, como: por que ele disse? Com que inten¢do? Que recursos usou para se fazer entender em seus sentidos e intengdes? Ou seja, cumprindo o que seriam as tarefas de quem pre- tende compreender globalmente o fenémeno da linguagem e as- sim reconhecer a textualidade como sua forma ‘necessdria de ocorrer’, cabe ao professor de linguas investigar em sala de aula as propriedades, as estratégias, os meios, os recursos, os efeitos, em suma, as regularidades implicadas no funcionamento da lin- gua em processos comunicativos de sociedades concretas, 0 que envolve a produgao e a circulacao de todos os tipos e géneros de textos. Além disso, convém ir mostrando que qualquer texto é parte de uma situacéo, de um contexto social de interagdo. Mesmo sem falar em ‘pragmatica’ (mas sabendo claramente o que é6!), 0 pro- fessor, diante desse ‘novo objeto de ensino’ teré que incluir, em suas exposigdes e andlises, as condigées de realizagdo da produ- cdo e da recepcao de qualquer texto: (1) quem esta envolvido na interacao? (2) em que situagao social? (3) movido por quais propésitos? (4) esperando que resultados? (5) dentro de que assunto ou tema? (6) sob a forma de que género? etc. etc., (7) pressupondo que outros conhecimentos além do linguistico? Em sintese, a proposta de fazer do texto 0 eixo de ensino, ou, noutras palavras, O objeto de estudo da lingua nao é um modis- mo. Nao é uma ‘invengao’ a mais, trazida por aqueles que se me- tem a propor inovacdes pedagégicas e a romper com 0s modos tradicionais de ensinar a lingua na escola. £, ao contrario, resultado da compreensdo das reais condi¢des de ocorréncia de qualquer atividade de linguagem. Reiterando: to- dos nés, em qualquer situagdo, sé nos comunicamos verbalmente Textos: um novo moatsmar [ 29 ] por meio de um género de texto, oral ou escrito. Dai que qualquer abordagem que pretenda ocupar-se dos usos da linguagem terg que ser forgosamente em textos. A propésito, uma andlise dos avangos da ciéncia linguistica seria muito util a pais e professores que resistem a novas concep. ces, mesmo contrariando as evidéncias de um mundo e de uma ciéncia que néo param de mudar. Além desses, haveria lugar (e como!) para que jornalistas, psicdlogos, advogados, médicos, eco- nomistas, professores (de qualquer drea) ampliassem seus conhe- cimentos acerca do fenémeno da linguagem, podendo assim abrir mio de conceitos tao simplistas, reduzidos e preconceituosos que foram adquirindo ou na escola, ou por influéncia das investidas sociais e mediocres da midia oral e escrita. O TEXTO COMO OBJETO DE ESTUDO DA LINGUA 1. Fundamentos € nos convencéssemos de que usar uma lingua — falando, ouvindo, lendo, escrevendo — é alguma coisa que se faz apenas sob a forma de textos, nenhum outro item poderia ser objeto de estudos, de andlise, de avaliagao, de pratica senao 0 texto, sendo concretamente todo género de texto com que a gente se depara no dia a dia. Obviamente, o professor nao esta proi- bido de tratar de unidades menores (palavra, morfema, silaba CORO Cet RRO PEC Oe UCR CLR Re keg Oye te Ces em carbs ERR so NC ERO OR UCR OS ECRUCI consistente do fenémeno linguistico. Todas as possiveis variagées Cope nsse Omer SiC MC EO R UC man cae texto do que em frases soltas. Na verdade, é no Ambito das realizagées ld que se Pode ver todaa complexidade da conexdo entre 0 linguistico, 9 Cognitivo eo contextual. Ou, noutros termos, toda a vinculagéo entre o sin. tatico, o semantico e 0 pragmatico. Isto 6, a vinculagao entre as combinacoes de distintas unidades, os sentidos dai decorrentes, os saberes implicados e os efeitos derivados das diferentes conqj. des de uso. : Um texto 6, assim, uma unidade complexa; dizendo de outro jeito, uma unidade indissociavelmente constituida ce sintaxe, se- mantica e pragmatica e que mobiliza diferentes sistemas de co- nhecimento, como veremos mais adiante. Um estudo que se detenha apenas no linguistico, isto 6, ape- nas nas categorias morfossintaticas da lingua (como ainda se faz em algumas escolas, com produgdo e andalise de frases soltas ou retiradas de textos), é um estudo parcial, reduzido, artificial e pouco esclarecedor do que, de fato, acontece quando as pessoas estado em interagao verbal. Quem na vida real fala ou escreve a nado ser para o outro? Quem fala sem qualquer objetivo? Quem fala de qualquer jeito, usando nao importa que palavras? Quem, em suas acoes de lin- guagem escrita, escolhe as palavras que vai usar por critérios or- tograficos? (Infelizmente, tudo isso somente acontece nas escolas; somente acontece em grande parte das escolas espalhadas por esse Brasil afora! Por isso — me parece — nunca é demais insistir na relevancia do estudo da linguagem em uso). Evidentemente, esse estudo mais global — que insista em ir além da palavra, da frase e além do estritamente linguistico — é mais abrangente, é mais complexo e, com certeza, mais motivador, Pois exige o dominio de outros conjuntos de conhecimentos, muito ae psaip classes gramaticais e suas caracteristicas mor- Ou seja i . pa ie ot talvez tenha sofrido adiamentos... ae s abrangente, mais consistente da lin- gua exige, por exemplo, @ que conhecamos Particularidades semanticas das palavras — Como a possibilidade de uma mesma palavra poder expressar [32] rexuaicode- noses bisics * implicacbes pedagégicas __..__ _ (2) @) @) varios significados (ou a polissemia das palavras); ou de duas ou mais palavras terem significados equivalentes (sinénimos) ou contrarios (anténimos); de existirem palavras com ‘senti- dos gerais, amplos’ (hiperénimos), cabendo, assim, em muitos contextos diferentes (como as palavras ‘coisa’, ‘item’, ‘elemen- to’, ‘fator’, ‘procedimento’, ‘equipamento’ etc.); ou os efeitos de sentido decorrentes, por exemplo, das criagdes metaféricas ou metonimicas, das variagées de entonagdo, dos recursos que ex- primem énfase, contraste, cautela, das alteragées da ordem das palavras na sequéncia do enunciado, entre outros; que conhecamos as regularidades textuais — como os recur- sos (gramaticais e lexicais) que promovem a coesdo do tex- to e as condicdes de sua coeréncia (linguistica e contextual) e de sua relevancia informativa, com énfase nas retomadas referenciais e na associacaéo semantica entre as palavras do texto; bem como os meios de fazer o tipo e o género do tex- to conformarem-se, em sua composigao, as suas condigdes de uso sociointerativo e poderem, assim, funcionar como acdo de linguagem; que conhecamos as particularidades da situagao em que teve lugar 0 uso efetivo da lingua (particularidades pragmaticas) — como as estratégias disponiveis para deixar 0 texto ade- quado e relevante, em relacdo as condigées culturais de seus interlocutores, de seus propositos comunicativos e da situa- cao social em que ocorreu; que mobilizemos, para além do linguistico, os conhecimentos que ja dominamos e temos estocados na memoria, a partir de nossas rotinas com os diferentes usos da linguagem. As tarefas de um professor de lingua — materna ou estran- geira — nado se esgotam na descricdo das categorias lexicais ou gramaticais, tampouco na en' umeragiio dos erros a serem evita- dos pelos alunos. muito mais ampla a tarefa de um professor de lingua, pois lhe cabe: investigar as propriedades, as estratégias, os meios, os recursos, os efeitos de sentido, enfim, as regularidades implicadas owns cmo ioe ese ctiowe [33] ionamento da lingua, em processos comunicativos de socie- dades concretas, 0 que envolve a producao e a circulacao de todos ipos e géneros de textos-em-fun¢ao. extos, adotd-los como objeto de ensino e no func os tij a Explorar, analisar t aprendizagem em atividades de oralidade, leitura e escrita nao é tao simples assim. Nao pbastam uns exercicios de identificar pa- lavras, segundo essa ou aquela classe gramatical, ou reconhecer sujeitos e predicados de frases inventadas ou retiradas dos textos. Como nao basta memorizar definigdes ou aprender a distingaio entre unidades de classes diferentes. Essas nogdes (e outras) sdo importantes, tém seu lugar na aprendizagem da lingua, porém nao bastam (sao insuficientes), quando o que se pretende é levar os alunos a poderem falar, ler e escrever textos que digam com clareza e coeréncia o que é re- levante ser dito em cada situagdo em que ocorrem. E mais, sdo absolutamente insuficientes quando o que se pretende é tornar os alunos capazes de enfrentar o mercado de trabalho e, como ci- daddos, participarem criticamente do desenvolvimento e do bem comum social. 2. Em sala de aula A propésito de questées implicadas nas teorias textuais, dete- nho-me neste instante nos primeiros anos da educagao basica, quan- do ainda é muito comum a pratica de formar frases. (Essas quest6es textuais sdo, neste ponto do livro, apenas referidas, uma vez que, em capitulos subsequentes, serdo tratadas com mais detalhes.) nated ini . comum, a partir de umas figurinhas, pedir as jee eels eae os nomes que aquelas figuras represen- Sas Deieteiel Pesala atividade de formar frases com senha Haida a ver eae e se uma série de frases sem que uma continue a outra; sem que Hii 7 a sae soi nenhuma outra. Cada uma 6 cada sites 7 ‘gas a cae ; sem ligacaéo de qualquer [34] fextualldade - no, dade ~ nosbes bésicas e Implicagdes pedagdgicas tipo, a nao ser isso mesmo: sao frases soltas que remetem a uma série de objetos também soltos, sem qualquer dependéncia con- textual explicita. Fora de uma cena social concreta, sem sujeitos interlocutores e sem um propésito comunicativo Paine Nao importa 0 que se diz nem como é dito. Importa somente formar uma frase em que apareca determinada palavra. Nessas condigées, se pratica ‘a ndo linguagem’, pois ninguém se comunica segundo esse modelo. Nessas condigées, se exercita andao textualidade da lingua e se contraria o modo de ocorréncia de qualquer atuacdo que as pessoas executam por meio da fala ou da escrita. As frases so constituintes integrantes dos textos e, somente nessa condigao (quer dizer, dentro dos textos que comp6em), po- dem ser interpretadas. Isoladas, sao objetos tedricos, sao hip6te- ses de algo que poderia, um dia, vir a ser dito. Vejamos 0 que nos dizem as teorias do texto: ‘A frase deve ser analisada a partir do texto-em-funcao, e ndo o texto a partir da frase. E ao nivel do texto, ou melhor, como processo de textualizacdo, que a frase adquire sua fungao (Schmidt, 1978: 172). Que agdo ou atividade comunicativa — podemos nos pergun- tar — alguém esta fazendo quando “forma frases soltas”, naquele modelo costumeiro da escola? Por que, desde as primeiras experiéncias de escrita, ja nao le- var os alunos a escreverem textos, ou seja, palavra ou conjunto de palavras que funcionem comunicativamente? Poderiamos recor- rer aos pequenos textos, do tipo ‘textos minimos’, isto 6, ‘textos de frase unica’, formados apenas de uma ou poucas mensagens, mas com intengées comunicativas claras € facilmente identificadas. Convivemos com muitas centenas deles; em toda parte, sobretudo nos contextos urbanos. Em vez de formar frase ver esses pequenos textos, como: (1) listas; (2) lembretes; s, teria muito mais sentido ler e escre- uecocono tse ce ero catinan [35] (3) avisos; (4) informagées; (5) bilhetes; (6) propagandas; (7) pequenas mensagens (de amizade, de congratulagao, de soli- citagao); (8) pequenas sinteses ou comentarios a propésito de um tema etc. Todos eles, na verdade, cumprem, como lembramos, as mais diferentes funcdes comunicativas; nao estao circulando por acaso ou apenas hipoteticamente. Por exemplo, ‘avisos ou adverténcias’ como: DESVIO Me ab ris Pa ad ELEVADORES, MI MANIITENCAC i mi D io} Es S > aye ZOLA reco! relent oe e muitos, muitos outros avisos, lembretes, informagées precisam na sua funcionalidade; portanto, como textos. textos sejam compostos apenas de nao sao frases. Sao textos, pois: ser vistos, Mesmo que alguns desses uma ou de umas poucas palavras, (1) sao atos comunicativos; (2) existem porque alguém os crio envolvem, pois, determinados interlocutores; (3) expressam sentidos e revelam uma determinada orientagao tematica; s4o, assim, uu e os dirige a outro alguém; e interpretaveis; ‘texto come objeto de estudo da lingua [37] (4) cumprem uma fungao comunicativa claramente identificave] (hoje, e no mundo do trabalho, muito mais que em épocas passadas); : “ i (5) fazem parte de determinadas situacdes sociais; (6) sao de um género reconhecivel (incluindo Os novos géneros que apareceram com o uso dos meios virtuais eletrénicos); (7) ese inserem num determinado contexto social, em consonan- cia com o que prescreve cada espago cultural e, assim, fazem parte da memoria cultural de cada grupo. Evidentemente, a concepgao tedrica que aqui admitimos, sobre linguagem-lingua, é a concepgdo interacional, dialdgica, funcional, segundo a qual as pessoas envolvidas na atividade de linguagem colaboram ativa e reciprocamente na producao e no entendimento dos sentidos e das intengdes pretendidos para de- terminada situagao. Ainda a propésito de ‘texto’ e ‘frase’, vale comentar 0 seguinte: um texto nao é uma frase grande, nem a frase, se estendida, é um texto. Os dois objetos séio de natureza distinta. O texto tem autoria; prevé interlocutores; tem um propésito comunicativo definido; é parte de alguma situagcao social. £ um evento real, com data e es- paco proprio. A frase é uma hipdtese, é um modelo daquilo que poderia ser dito, daquilo que o sistema da lingua reconheceria como aceitavel. E mera possibilidade. Uma possibilidade muito li- mitada, se a gente a toma fora de qualquer contexto. Diante da frase “Jodo 6 um menino inteligente.”, sem expli- citagdo da fungéo com que isso é dito e em que situacao, respon- dendo a que propésito, o que se pode dizer? Milhares de coisas. Nem da para enumerar aqui... Ou seja, a frase solta é sé uma pos- sibilidade de um ‘dizer aceitavel’, em algum ‘contexto provavel’. cats oo een at a Pode recorrer aos mesmos con- auiatee matic Geet isa frases e quando analisa textos. ‘ vel, segundo ¢ pan rtugués reconheceria como nao aceita- tuguesa, confuntos 4 ie regras estabelecidas pela lingua por- (1) *Meu inscreveu fe 7 i ae verde nate ‘tino me concurso eu sem saber no. (EM eu filho me inscreveu no concurso sem eu nem saber). Pan T ternan (2) *Eu quando néo acreditei disseram tinha que eu ganhado concurso me 0. (Em vez de: Eu ndo acreditei quando me disse- ram que eu tinha ganhado o concurso). (3) *Ninguém meia-noite tem coragem dirigir de estrada nesta depois da. (Em vez de: Ninguém tem coragem de dirigir nesta estrada depois da meia-noite). (4) *Filhas minhas a Sao Paulo viajaram os pais com. (Em vez de: Minhas filhas viajaram a Sao Paulo com os pais). Todo falante de portugués reconhece que os itens ‘com’, ‘no’, ‘da’ nao ocorrem em final de enunciado. Assim, qualquer um re- conheceria esses conjuntos como nao sendo portugués; como nao estando conforme o sistema de combinagao das palavras préprio do portugués. Qualquer um estranharia esses conjuntos de pala- vras. Mais significativo ainda é poder constatar que nenhum fa- lante do portugués produziria tais conjuntos, nem mesmo aqueles analfabetos e com pouquissimo indice de letramento. O conheci- mento que qualquer um tem da gramdtica da lingua e a expectativa de ser entendido nao permitiriam combinagées como aquelas. Em sintese, qualquer falante reconheceria aqueles conjuntos como nao sendo modelos ou hipoteses de possiveis ‘coisas a serem. ditas em portugués’. Algo, pois, que ninguém diria. Os textos, ao contrario, sao eventos reais. Aconteceram. Tém autores e ouvintes ou leitores e desempenham uma fungao comu- nicativa precisa. Em suma: texto é 0 que, de fato, foi dito ou escrito numa dada situagao de interagao acerca de algum objeto, com al- guma finalidade particular (perguntar, informar, avisar, advertir, esclarecer, explicar, cumprimentar, aconselhar, definir, pedir, co- mentar, prometer, acusar, defender etc. etc.). Independentemente de sua dimensao, pois um texto é definido por sua orientagao te- mdtica e sua fungdo comunicativa, e ndo por seu tamanho. E qual seria a consequéncia mais provavel de recorrer, com tanta frequéncia, a essas atividades de formar frases soltas? Simplesmente, a seguinte: deixar os alunos habilitados a “for- mar frases”, 0 que eles aprendem magistralmente, contrariando até mesmo aquela nossa sensagao de que, por vezes, a gente ensi- na e eles nao aprendem. ovetocona ota eesute tno [39 ] Uma das dificuldades evidentes na elaboracao de um texto é a escolha e a ordenagao das sequéncias, on 0 tipo ou 0 géne- ro de texto em questo. Na simples composicao de frases, desapa- rece a exigéncia de ordenacao e, assim, qualquer eae pode ocorrer. A atividade de simplesmente er Sins dispensa o cuidado do interlocutor em eleger uma sequéncia a compa- tivel com seus propésitos comunicativos, ou Gri o género textual praticado, ou com as condigdes concretas dos interlocutores. Ena sala de aula, sobretudo, que os alunos devem tomar cons- ciéncia de que estao, ininterrupta e inevitavelmente, inseridos nas praticas ou nas rotinas das atividades comunicativas humanas. A titulo de ilustragao, recorro a uma situagao vivida em certa escola. A professora, diante de uma cena rural em que estavam varias galinhas, solicitou aos alunos que escrevessem uma men- sagem a uma das galinhas, em forma de carta de aconselhamento. Até ai, sem entrar na andlise da relevancia da situacao, tudo mais ou menos: estava indicado o destinatario (a galinha); o género dc texto (carta); o propésito comunicativo (fazer um aconselhamento) E o que produziu o aluno? Na verdade, 0 que ele reproduziu? E evidente que o aluno seguiu o modelo do que esta habitua do a fazer: juntar frases soltas que ndo se continuam; que n tém unidade. E acabou dando provas de que ‘aprendeu o que fo ensinado’ e produziu um “nao texto”, como se pode ver a seguir Me[ Mer TT men ee Maa) el Mel Tar) Ja fazenda de meu avé tem muitos pintinhos. Fico imaginando qual tera sido a reagdo da professora a ess¢ Tesultado. Teré mostrado que um texto nao se faz assim, apenas juntando umas frases que nao se continuam? Ou tera se limitado [40] _Textualidade - nogées bésicas e implicacées pedagégices se ede: abetea Mas... cadé a carta? Cadé a ned nium ai uma carta? Cadé a mensagem de senate a : ay lamento? Cadé a conti- nuidade das referéncias e das predicacgoes? KS Tamera! a cada frase, se fala de ‘galinha’, Mas, em cada uma, se trata de um i i ‘i conjunto, uma referéncia c cae iy he nag ea : REE leterminada, que, as- sim, seja objeto do dizer de quem fala. Também nao se vé con- tinuidade daquilo que é afirmado (na predicacao) acerca dessas ‘galinhas’. Qual o tema, qual o tépico tratado nesse pretenso tex- to? ‘Galinha’? Mas de que ‘galinha’ se fala? Nao da para identifi- car. Nem sequer se pode afirmar que o tema dessa série de frases seja o bichinho ‘galinha’, em geral. Muito menos se poderia reco- nhecer algum fio de unidade nas afirmacées feitas. Cada segmen- to se refere a um objeto diferente, e, sobre esse objeto, é feita uma afirmagao diferente. Nao posso me calar diante da hipdtese de que a professora nao mostrou em que e por que a solicitagao da tarefa nao foi cumprida. Em suma, nao se pode reconhecer ai a producao de um texto. Do que se pode concluir que as habituais atividades de formar frases soltas tiveram éxito, e a aprendizagem de como fazer um texto, respeitando as propriedades que o constituem e 0 definem como tal, ficou para depois — possivelmente para muito depois (ou para nunca). Em sintese, é preciso ter em conta dois pontos importantes nas consideracées sobre ‘frases’: um é aquele que considera a frase como constituinte do texto; outro é aquele que toma a frase como 0 proprio texto (que € 0 caso dos textos de frase tinica). No caso do texto do aluno analisado acima, nao houve texto do qual as frases seriam seus constituintes. Tampouco cada frase tinha uma fun- cao comunicativa particular. Trabalho indcuo. Perda de tempo e de recursos humanos! E quais as propriedades, as regularidades que um texto deve ter? Eo que pretendemos desenvolver em capitulos seguintes. ‘0 texto como objeto de estudo da lingua [a QUALQUER CONJUNTO DE PALAVRAS E UM TEXTO? 1. Fundamentos ualquer conjunto de palavras é um texto? E qualquer con- STM Ce bec e Rb cold STEP UCM MCU UO eS USOC UUM CU guinte peca ou passagem linguistica. ETTORE ETN | eT foyer irate tPCT a eMule emilee ela le iis (ure Pn nel eae t-PA [6 LO orgulho, missdo, jovem, dinheiro, sabor, sol, rede, CoV fer Tel MmurelefelL- Pe -t-toen orm gles Prelate ON Lem elec ue ak ko ee UC oe ap (COME (OS PPE emo Peles Perea koto publico, formagao, ponto, Ree Rau RRC eC me el Diriamos que se trata de um texto? E possivel identificar 0 tema de que se trata? E possivel fazer um resumo desse conjunto de palavras? E se encontrassemos outra composi¢a0, como a que podemos ver abaixo? ee raat) Nea ute emetic) das articulagdes. O que vale é que a cultura popular esté em alta. Por que tanta polémica? No trabalho eee setae sola ec O aquecimento global esta em recorde batido pelo Ronee Ul Rouse h mes elle (lol tails car abaixo da meta no ano passado, a inflacgao conti Me Mla leek Er Lee e)bs pecial para quem quer ampliar sel Sie) nie lolli TeL- lel 2 Diriamos que é um texto? Outra vez, é possivel identificar o tema de que se trat Sivel fazer um resumo desse conjunto de frases? Considerando o que ja adiantamos nos dois capitulos anterio Tes, podemos afirmar que ambas as pecas nao constituem textos. a? E pos [4s] ‘Textualidede ~ noses bésicas ¢ implicacbes pedagéyicas Poderiamos, entdo, responder, com toda a convicgao, que um con- junto aleatorio de palavras ou de frases nao constitui um texto. Para que um conjunto de palavras ou de frases seja um texto, é necessaria uma condiiio basica: que esse conjunto possa satisfa- zer as exigéncias de uma ‘agao de linguagem’, semdntica, cognitiva e socialmente relevante, 0 que, mesmo intuitivamente, se percebe com certa facilidade. Vejamos. ‘As teorias sobre o texto propéem o seguinte: para que um conjunto de palavras preencha as condicées de poder funcionar como texto e ser reconhecido como tal deve apresentar: (1) coesao, ou ter seus constituintes relacionados entre si; (2) coeréncia, ou ser interpretavel e adequado as condigdes de sua ocorréncia; (3) informatividade, ou trazer alguma ‘novidade’, ou prover al- guma imprevisibilidade; (4) intertextualidade, ou estabelecer relagao com outros textos prévios, ja em circulagao. Como especificar essas condic¢ées ‘propriedades’)? Vamos a uma primeira compreensdo, mas numa perspectiva bem geral e sucinta, uma vez que vamos desenvolver tais propriedades mais adiante em capitulos 4 parte. (1) A coesdo 6a propriedade segundo a qual cada elemento do texto deve estar ligado a pelo menos um outro. O sentido do termo ‘coesdo’ ja aponta para esta condicaio: algo coeso é algo que esta ligado, que estd relacionado a outro item qualquer. No texto, entao, tudo deve estar articulado; tudo deve estar rela- cionado, interligado: as palavras; 0s periodos; os pardgrafos. Nada solto; nada como aconteceu naquele pretenso texto da carta a ‘galinha’. Tudo deve concorrer para 0 texto ganhar continuidade, manté-la e, assim, chegar a uma unidade, a um sentido global que tudo integre. Os sentidos das palavras, as referéncias feitas, as informagées expressas 0U implicitas, tudo deve estar em algum tipo de relacao, de nexo; tudo deve caminhar para uma reconhecivel orientagao temdtica e de intengdo (dai a atencdo dos interlocutores envolvidos para (também conhecidas como uatger conned puioras eum exo? [45 ] (2) carem e perceberem 0 tema e a intengdo que, em cada indi estdéo em jogo). Existem diferentes recursos — como texto, ; oi vamos especificar mais a frente — que criam e sinalizam os nexos necessdrios @ unidade semantica e pragmatica do tex- to. Os sentidos e as intengoes, sobretudo em sua dimensago global, vao sendo identificados a partir de tais recursos, o5 quais, dessa forma, funcionam como pistas, como indicios, A superficie de qualquer texto mostra diferentes pistas e indi- cacées de por onde vao os sentidos e as inteng6es pretendidos pelos interlocutores. A coeréncia é a propriedade que deixa 0 texto na condigao de um todo interpretdvel. Ou seja, a atividade empreendida pe- los interlocutores gira em torno de fazer-se compreender (pelo lado de quem esta com a palavra) e gira em torno de recuperar (ou entender) os sentidos do que é dito (pelo lado de quem ouve ou lé a palavra). E um jogo. Um jogo interativo e de mtitua coo- peragao. Quem fala ou quem escreve procura expressar senti- dos e intengées ou, noutras palavras, fazer-se entender; quem ouve ou quem lé procura encontrar sentidos naquilo que é dito. As agées de linguagem sao, assim, uma atividade coleti- va e colaborativa de producdo e de compreensao de sentidos e de intengées. Essa atividade acontece de maneira tao natural, tao intuitiva que nem sequer nos damos conta das comple- Xas operacées que fazemos para, juntando tudo em um bloco coeso, encontrar integragaéo e unidade de sentido. Apesar de a coeréncia estar intimamente vinculada a coesdo — pois os sentidos estao, em grande parte, sinalizados linguisticamente — sua efetivagdo nao se apoia apenas no material linguisti- co presente no texto. Muitas vezes, a coeréncia de um texto € recuperada com base em nosso conhecimento de mundo, €m Nosso conhecimento prévio da situacdo (os chamados ‘sa- beres enciclopédicos’) e no repertério vocabular que conse- guimos desenvolver ao longo da vida (os chamados ‘saberes lexicais’), como vamos especificar com mais detalhes em ca pitulos subsequentes. Assim, 0 conhecimento da situagaéo em 46 ] texts [46] te. lidade - nocbes basicas e implicagées pedagdgicas (3) @ que acontece a atividade de linguagem constitui uma condi- cdo necessdria para a interpretagaéo adequada de cada texto. Itens que indicam elementos pertencentes a essa situacdo (como 0 autor, a época e o espaco cultural de origem do texto) e pertencentes ao texto (como titulo, forma de composigao e de vocabuldrio em uso etc.) sao algumas pistas segundo as quais 0 interlocutor vai avangando na interpretagao coerente do texto, ou seja, vai construindo expectativas ou hipoteses acerca de seu contetido e de sua fungiio e vai delimitando o alcance dessa mesma interpretacdo. Dai a grande importan- cia de identificar os elementos de contextualizagao da situa- cdo e do texto. A suposigao de que um texto é interpretavel e, portanto, coerente normalmente nos leva a pressupor que ele carrega alguns sentidos e, nessa pressuposicao, fazemos todo o esforco para identificar seus sentidos e ainda seu propésito comunicativo, ou a intengao de quem falou ou escreveu. A informatividade é a propriedade que tem a ver com a rele- vancia informativa do texto; isto 6, esta relacionada ao fato de os textos trazerem, em alguma medida, certa ‘novidade’, ou trazerem informagées que respondam a interesses dos inter- locutores envolvidos. Os textos devem fugir 4 obviedade, ao ‘ja sabido’. Normalmente ninguém fala para dizer 0 que todo mundo ja sabe. Entretanto, a relevancia informativa de um texto admite graus. Ha contextos em que o texto adequado deve apresentar uma escala zero de novidade, como certas placas de transito, cuja ‘informacao’, por conta mesmo de suas condigées de uso & fungées, repete-se indefinidamente, sem nenhuma novidade. Dai que essa ‘relevancia informati- va’ esta também vinculada 4 adequacao do texto a situagao, © que ja nos leva a admitir a necessidade de uma coeréncia pragmatica. Quer dizer, a coeréncia do texto também inclui o grau de imprevisibilidade em relagdo a situagdo em que acon- tece a atividade de linguagem. A intertextualidade é a propriedade que, em geral, resulta da vinculagaio de um texto a outros ja existentes, isto 6, a outros qualquer conjunto de patavras é um textor [47 ] ja previamente em circulagdo, presentes na ee: discursiva da comunidade. Em certa medida, todo texto é um ‘intertexto’, no sentido de que as coisas que nele so ditas retomam, de mui- tas maneiras, 0 ja dito em outros textos que ouvimos ou lemos ao longo da vida. De qualquer forma, nenhum texto, do ponto de vista informativo, comega do ‘zero’. O que nele é dito ja per- tence ao ‘repertério geral’ dos grupos a que pertencem os interlo- cutores. Por vezes, a vinculacao de um texto a outro responde a uma decisdo particular de quem fala ou escreve, no sentido de, intencionalmente, buscar apoio para o que é dito em outro texto prévio; seja para concordar, seja para refutar. 2. Em sala de aula O texto e suas propriedades deveriam ser 0 ‘eixo’ do ensino da lingua, como apontam os Parametros Curriculares Nacionais (1998). As razées para isso — voltamos a insistir — estado no en- tendimento de que a linguagem é sempre eminentemente discursi- va, isto é, s6 se concretiza sob a forma de textos; quer dizer, sob a forma de conjuntos que, em sequéncia de nexos ou de lacos, expressem sentidos e cumpram fungées comunicativas entre in- terlocutores em interacdo. Na perspectiva da fala, da escuta, da escrita ou da leitura, 0 ponto prioritario do desenvolvimento que a escola pretende pro- mover deveria ser a compreensdo dessas propriedades textuais, Nas suas complexas relagdes com as situagGes culturais em que a linguagem acontece, o que atinge outras questdes como, por exem- Plo, os tipos e géneros de texto. $6 Ppor esses meios se pode respon- der aquela finalidade da educacao referida antes, qual seja, a de Preparar os alunos para o mercado de trabalho e para participar, como cidadao, da vida sociocultural de suas comunidades. Atualmente, algumas das propriedades textuais ja entraram No discurso da escola. Sobretudo as propriedades da coesao e da coeréncia. Entretanto, por vezes, me da a impressdo de que al [48] rertusaade-noctestbscas © implicagbes pedagésicas aaa Sse 1 teed guns professores falam na ‘coesao do texto’, por exemplo, mas nado sabem exatamente em que consiste essa coesdo. Falam muito vagamente, mas nao saberiam dizer por que um texto estd coeso ou, ao contrario, por que um texto apresenta falhas de coesdo. O mesmo se poderia dizer em se tratando da coeréncia. Podemos, entao, levantar uma questdo: um texto coeso é um texto que apresenta o qué? Um texto falho em coesao é um texto ao qual falta 0 qué? O que um professor percebeu quando anota, ao lado do texto do aluno: “Falta coesdo”? Que clareza o professor tem acerca do que seja a coesdo de um texto? Que recursos exis- tem para criar e sinalizar essa coesdo? Os programas de estudo da lingua incluem a exploragao des- ses recursos coesivos, identificando-os como pistas ou indicios dos sentidos e das intengées pretendidos, sobretudo na dimensao global do texto? O leitor, principalmente o leitor iniciante, é orientado para observar as linhas do texto a procura dessas pistas ou desses in- dicios que levam a continuidade e a unidade dos sentidos? Ou ainda permanecemos presos 4 mera identificacdo da classe gra- matical a que pertence uma ou outra palavra? No discurso da escola, ainda se fala muito pouco, por exem- plo, em intertextualidade. Ainda néo € objeto de analise o fato de se recorrer a passagens de outros textos, para apoiar 0 que se diz ou para ser objeto de refutacao. Ainda falta mostrar em que medida a gente pode recorrer a palavra do outro, cita-la, por exemplo, sem que fique prejudicada a originalidade ou a autoria de nosso texto. Nesse sentido, pode-se chamar a atengao para a inconveniéncia de certas citagées inoportunas e irrelevantes, que acabam afetando a autoria do texto e sua relevancia informativa. Além disso, se fala muito pouco na propriedade da informati- vidade do texto. Ou seja, se omite qualquer referéncia ao fato de que, em situagoes normais, ninguém fala ou escreve para dizer o 6bvio, para dizer coisas que todo mundo ja sabe, para dizer coisas que nao tenham nenhuma importancia ou interesse para um ou outro interlocutor. qualquer conjunto de palavras gum texto? [ 49 ] GM PA, DE ACO! Nessa perspectiva, é muito relevante o conceito de que a ati- vidade da linguagem é responsiva, no sentido de que quem fala ou escreve esta, de certo modo, respondendo a algum interesse de al- gum de seus interlocutores. Em outras palavras, ninguém diz o obvio, ninguém diz o que ninguém quer saber, ninguém fala para dizer coisas que nao precisam ser ditas. Para a escola tudo, porém, isso é diferente. Em geral as coj- sas sao ditas para, simplesmente do ponto de vista linguistico, se mostrar como devem ser ditas, sem relagdo com as situagdes em que ocorrem. Dai a pressa (injustificada!) de a escola, logo no inicio da edu- cago basica, definir 0 que sao ditongos, tritongos, hiatos, digra- fos; como podem ser os substantivos, os pronomes etc. Nao se percebe que o aluno (mesmo crianga) ja sabe usar essas especificagées linguistico-gramaticais, com bastante pro- priedade, e, mais adiante, em um nivel em que caiba a ‘iniciacdo cientifica’, tera oportunidade de ampliar o conhecimento dessas e de outras particularidades de sua lingua, se estiver suficiente- mente motivado para isso. O que vale é observar, estar atento para descobrir 0 que 0 aluno, em cada etapa de sua escolaridade, ainda nao sabe e precisa aprender, tendo em vista suas atividades de intercambio, de in- teracdo, de trocas comunicativas, nas mais diversas situagdes de convivéncia e de trabalho. Vale um exemplo de uma atividade escolar, como testemunho de que a dimensdo da textualidade esta fora das andlises que acontecem nas aulas de portugués. com || PARECE QUE AS PESSOAS AS PEsauises, YOock NAO Vall| ENTREYISTADAS ACHAM QuE| SEEN EOSSE VOCE. Gonrisa io cite || "Nace e eo reoatrar | fas LCUNA COS POR NTC Xt ), | EXTREMAMET vi meer atroR || aun un pave oT. IRANENTE 400 DOW MINUTOS. [150 ] textuotaase -nogbes bsicas ¢implcacdes pedogéalcas O fato de o material proposto para andlise ser uma tira cria nos leitores a expectativa de que o foco da questao incidira sobre algum aspecto da textualidade. No entanto, um exame, mesmo sumario, das questdes levantadas pela professora revela que se passou longe, bem longe dimensao textual. Vejamos, Como se vé, trata-se de uma cena em que uma crianca se di- rige a seu pai, pretendendo revelar seu descontentamento com o tipo de pai que tem. Para esse contato, o filho usa o recurso da ‘entrevista de pesquisa’ e assume o papel de entrevistador, 0 que confere a situacao e ao ‘pesquisador’ mais importancia e, em consequéncia, mais credibilidade. 0 filho inicia seu dialogo com o trecho “De acordo com as pesquisas”, um trecho que, como sa- bemos, confere autoridade as afirmagdes que serdo feitas e, ao mesmo tempo, exime 0 entrevistador da responsabilidade sobre o que é dito. Ou seja, o filho é bastante sagaz quando entende que precisa amenizar o resultado final da pesquisa e, assim, trans- fere a autoria do que vai dizer para ‘o publico ausente’, sujeito da pesquisa. Outra vez, mostra-se sagaz quando finge que nado entendeu a tinica intervencdo do pai. Em sintese, trata-se de uma interagdo de enfrentamento, na qual convém ao protagonista as- sumir determinadas estratégias que possam suavizar a dureza da declaragao nada agradavel a ser feita no final, ‘como resultado das pesquisas’. A solugdo encontrada pelo filho, diante da ordem do pai, também é textualmente relevante, pois fazer de conta que nao entendemos o que nos foi dito 6 uma questao de desautorizar © que foi dito. Ou seja, esta em jogo um contato entre pai e filho, em que o teor das declaragées precisa ser amenizado. O filho per- cebe essa conveniéncia e opta, entao, por um jeito de dizer, jeito que, além de Ihe garantir mais credibilidade, o exime da auto- ria e, consequentemente, de qualquer responsabilidade sobre o que é dito. Para entender bem este texto, além do conhecimento linguistico, é necessdrio mobilizar uma série de ‘conhecimentos de mundo’, como o conhecimento de estratégias de como abordar alguém numa situacdo de constrangimento e de como eximir-se da responsabilidade sobre o que é, desagradavelmente, afirmado. cuss conto depos Sum enor [51 ] Em suma, 0 que a tira pée as claras daria 6timos comenta- Trios, tanto do ponto de vista cognitivo-pragmatico — em relacao a cena de interagao armada entre os interlocutores — quanto do ponto de vista propriamente linguistico. i Pois bem, qual foi a atividade que a professora propos aos alunos? | op TT COS OR hace PES ei @ uma locucao adjetiva __ Lida dea (b) Dé 0 adjetivo que corresponde a locuc&o do item (a). A palavra ADORAVEL é acentuada porque a Onde ficou a analise da tira? Que passagens do didlogo foram mais significativas e por qué? Nunca vamos saber como os alunos perceberam o didlogo pois as perguntas da avaliacao ja definiram os focos da “inter- pretacdo”, que recaem, todos, em aspectos metalinguisticos de al- gumas palavras. A verdade é que nem era necessario trazer um texto — no caso, uma tira — para explorar o que foi questionado A pratica de ‘retirar’ do texto uma palavra ou um fragmento — pratica bastante questionavel, mas em uso frequente até nos livros didaticos — s6 nao é totalmente indcua porque o que se Pergunta sdo coisas da metalinguagem. Mas a linguagem — em seu exercicio e em sua complexidade — ficou completamente de fora. Retirar uma palavra do texto éo0 mesmo que descontextualizé-la; é 0 mesmo que reduzir sua carg@ SemAntica ou esvaziar seus efeitos de sentido. Pelo contrario, & no interior de um texto que a palavra ganha seu sentido pleno & sua forca intencional. Com esse tipo de pratica, com esse tipo “ atividade, aonde podem chegar os alunos? [sz] ‘Textualidade ~ noses bésicas e implicaches pedagégicas Curioso é que a gente ainda se admire de que os alunos — mesmo no final da educagéo basica —, depois de passarem, no minimo, onze anos de estudo, continuem revelando grandes difi- culdades na escrita de textos. O mais grave é existirem pais que apoiam esse modelo de es- tudo, pois ele ‘parece’ responder a necessidade de aprendizagem da gramatica, um saber, creem eles, suficiente para quem aspira ser competente e enfrentar, vida afora, concursos, vestibulares e entrevistas para selecdo de candidatos ao mundo do trabalho. Haja milagres! Ese milagres nao houver?

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