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A R T I G O S

O sistema único de saúde brasileiro


Desafios da gestão em rede
por Sonia Fleury e Assis Ouverney
RESUMO: Este artigo objetiva analisar o Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) como arcabouço institucional de
gestão de uma rede de política, apresentando seus principais mecanismos e instrumentos, bem como seus avanços e
desafios. Concluímos que o principal desafio consiste no fortalecimento dos atores subnacionais e na horizontaliza-
ção das relações de poder.
Palavras-chave: Sistema Único de Saúde, Gestão de Redes

TITLE: The Brazilian health system: Challenges of the network management


ABSTRACT: This article aims to analyze The Brazilian Health System (SUS) as an institutional framework for a net-
work management in public policy, presenting its main mechanisms and instruments, as well as its present
advances and impasses. We conclude that the main challenges are to strengthen the sub national actors and to
reduce the vertical nature of power relations.
Key words: Brazilian Health System, Network Management

O
processo de democratização da sociedade brasileira de saúde, contemplando novas formas de articulação entre
culminou com a promulgação da Constituição Federal as instâncias governamentais e novos instrumentos de par-
de 1988, que trouxe profundas mudanças na organi- ticipação social. Como conseqüência, ocorreu uma
zação estatal, como a descentralização de recursos, princi- redefinição significativa na composição e na dinâmica das
palmente para a administração municipal, que ganhou estruturas de organização e gestão das políticas públicas, na
autonomia e atribuições para gerir e executar as políticas medida em que se redefiniu não só a relação entre as
sociais desenhadas pelo governo central. Este rompimento esferas de governo, mas também a relação do Estado com
com um modelo altamente centralizado que caracterizou o a Sociedade e o Mercado.
período autoritário também significou uma ruptura com o Mediante a descentralização dos núcleos de elaboração e
padrão de política social até então vigente, cuja incorpo- implementação das políticas de saúde, o compartilhamento
ração das demandas sociais se fez sempre de forma estrati- das instâncias de poder decisório com a Sociedade Civil e a
ficada e excludente. necessidade de contratação pelo Estado de insumos e
Na política de saúde, esta transformação gerou o Sistema serviços de saúde junto ao mercado e sua articulação em
Único de Saúde (SUS), que orientou sua construção pelo busca de integralidade da assistência, gerou-se um novo
princípio do direito universal à saúde dos cidadãos e o dever arcabouço institucional caracterizado por uma dinâmica de
do Estado de provê-lo, e implicou uma nova organização gestão reticular. Este formato é composto por diversos
dos serviços, sob um comando único em cada esfera admi- núcleos decisórios independentes entre si, instâncias de
nistrativa. Conformaram-se sistemas municipais e estaduais pactuação e resolução de conflitos entre atores diversos,

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Mediante a descentralização dos núcleos Assim, somente quando há convergência interinstitucional


de elaboração e implementação das políticas de saúde, para um objetivo comum são desenvolvidos os laços
o compartilhamento das instâncias de poder decisório necessários para articular a interdependência entre os atores
com a Sociedade Civil e a necessidade de contratação de forma coordenada e se pode afirmar que se desenvolve
pelo Estado de insumos e serviços de saúde junto uma estrutura em rede.
ao mercado e sua articulação em busca À medida que se desenvolve a percepção de que o apro-
de integralidade da assistência, gerou-se um novo fundamento da interdependência consiste no fator decisivo
arcabouço institucional caracterizado para a obtenção dos objetivos desejados, inicia-se um
por uma dinâmica de gestão reticular. processo de coordenação deliberado e planejado no sentido
de dividir e organizar coletivamente o trabalho, originando
instrumentos de gestão compartilhada de recursos, mecanis- uma estrutura de governança em rede (Klijn e Koppenjan,
mos de formação de metas e objetivos coletivos, entre ou- 2000).
tros, capazes de promover interdependência e articulação de Os processos de definição e gestão de políticas públicas
competências. em contextos institucionais definidos por uma governança
Este artigo objetiva analisar o SUS como arcabouço insti- em rede apresentam desafios extremamente diferentes
tucional de gestão de uma rede de política, apresentando daqueles presentes em ambientes de coordenação unitária,
seus principais mecanismos e instrumentos, bem como seus tanto no que se refere à tomada de decisões e à definição
avanços e desafios atuais. de metas e diretrizes, quanto à organização das estruturas
de provisão de serviços e sua gestão contínua. Assim, tor-
A gestão em rede: suas características e desafios nam-se necessários, tanto o desenho de mecanismos institu-
Uma rede consiste num fenômeno organizacional que, cionais e instrumentos de gerenciamento de processos de
além dos aspectos fundamentais como composição por interdependência quanto o desenvolvimento de competên-
atores autônomos, interdependência e padrões estáveis de cias de gestão especificamente voltadas para a atuação em
relacionamento, desenvolve uma institucionalidade voltada ambientes interorganizacionais onde o poder, mais que
especificamente para o aprofundamento da interdependên- descentralizado, é diversificado (Agranoff e Mcguire, 1999).
cia existente (Borzel, 1998; O’Toole, 1997). Esta institu- A constituição das redes de política pode envolver a pre-
cionalidade se compõe em torno do planejamento delibera- sença de diversos atores públicos (locais, regionais e fe-
do da divisão do trabalho e da articulação estratégica volta- derais), privados, organizações não governamentais, cada
da para a manipulação do ambiente em que opera a rede, um deles sujeito a ambientes institucionais diferentes, o que
ou seja, a rede se desenvolve pelo trabalho coletivo especi- proporciona orientações diversas e objetivos distintos. A mul-
ficamente planejado (Klijn, 2002). tiplicidade de atores presentes no contexto organizacional

Sonia Fleury
sfleury@fgv.br
Doutora em Ciência Política. Professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getulio Vargas (Rio de Janeiro,
Brasil), onde coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública (PEEP).
PhD in Political Science. Professor at the Brazilian School of Public and Business Administration (EBAPE) of Fundação Getulio Vargas (Rio de Janeiro, Brazil),
where she is the Coordinator of the Program of Study on the Public Domain (PEEP).

Assis Mafort Ouverney


assismafort@gmail.com
Mestre em Administração Pública e Pesquisador pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getulio Vargas (Rio de
Janeiro, Brasil). Suas áreas de pesquisa incluem sistemas internacionais de saúde em perspectiva comparada e gestão de redes em Administração Pública.
Master in Public Administration and Researcher at the Brazilian School of Public and Business Administration (EBAPE) of Fundação Getulio Vargas (Rio de Janeiro,
Brazil). His research areas include comparative analysis of international health systems and network management in public administration.

Recebido em Março de 2006 e aceite em Março de 2006.


Received in March 2006 and accepted in March 2006.

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Somente quando há convergência interinstitucional atores envolvidos. Como parte essencial desse processo,
para um objetivo comum são desenvolvidos os laços apresentam-se estratégias de gestão por meio do monitora-
necessários para articular a interdependência mento das relações e da construção de incentivos à for-
entre os atores de forma coordenada e se pode afirmar mação de coalizões no interior dos clusters descentralizados
que se desenvolve uma estrutura em rede. de atores que possuem os recursos necessários à opera-
cionalização das políticas em questão (Mandell, 1999).
das redes ressalta a necessidade de se construir convergên-
cia a partir de pluralidade e autonomia. O formato institucional dos SUS e sua dinâmica de gestão
A presença de diversos contextos institucionais gera obje- A construção do SUS representa uma ruptura no formato
tivos particulares distintos e requer o desenvolvimento de de constituição do Estado, no modelo de proteção social e
estratégias que visem a construção de convergências em na forma de gestão das políticas sociais no país, tendo, por-
torno de objetivos comuns e a coordenação na construção tanto, redirecionado também o padrão de relacionamento
das metas fixadas coletivamente (Fleury, 2002). do Estado com a sociedade civil e o mercado. Este processo
Cada ator específico tem seus objetivos particulares, mas gerou arranjos multi-organizacionais, característicos de go-
seria limitado imaginar que sua participação em uma rede vernança em rede, onde a capacidade de desenvolver
seria conseqüência de suas carências e do mero comporta- estratégias e instrumentos de promoção e sustentação de
mento maximizador para atingir seu objetivo pessoal ou interdependências se tornou vital para o desempenho final
organizacional. A construção de uma rede envolve mais do do sistema de saúde. Isto é, envolve o planejamento e a
que isto, ou seja, requer a construção de um objetivo maior articulação estratégica no emprego dos recursos, a negocia-
que passa a ser um valor compartilhado, para além dos ção em torno de objetivos comuns, a pactuação de metas, a
objetivos particulares que permanecem. resolução mediada de conflitos, a integração por meio da
A habilidade para estabelecer este mega-objetivo, que articulação eficiente de bases de provisão de serviços, entre
implica uma linha básica de acordo, tem a ver com o grau outros.
de compatibilidade e congruência de valores entre os mem-
bros da rede (Mandell, 1999). Para chegar a este tipo de • Breve histórico
acordo é necessário desenvolver arenas de barganha, onde O sistema de proteção social brasileiro, a partir da cons-
as percepções, valores e interesses possam ser confrontados trução do Estado moderno em 1930, combinou um modelo
e negociados. de seguro social na área previdenciária, no qual os benefí-
A estruturação destes espaços e processos de negociação cios dependem da existência de contribuições pretéritas, com
faz parte da dimensão da estrutura da rede, que diz respeito um modelo assistencial para a população sem vínculos tra-
à institucionalização dos padrões de interação. O estabele- balhistas formais, no qual os benefícios não asseguram a
cimento de regras formais e informais é um importante existência de direitos sociais.
instrumento para a gestão das redes (Bruijn e Heuvelhof, No período da democracia populista (1946-1964), a
1997) porque especifica a posição dos atores na rede, a dis- expansão do sistema de seguro social fez parte do jogo
tribuição de poder, as barreiras para ingresso, etc. político de intercâmbio de benefícios por legitimação dos
O processo decisório em redes requer, além da percepção governantes, beneficiando de forma diferencial os grupos de
efetiva da interdependência pelos atores envolvidos, uma trabalhadores com maior poder de barganha, fenômeno
transformação relativa aos fundamentos culturais de rela- este que ficou conhecido como massificação de privilégios.
cionamento entre as partes envolvidas, o desenvolvimento O regime burocrático-autoritário, no pós-1964, não
de estratégias e mecanismos de construção de consenso e rompeu com as características anteriormente apontadas,
de compartilhamento de percepções e a instituição de ins- mantendo a convivência dos modelos de seguro e de as-
tâncias organizacionais de suporte e intermediação entre os sistência em sistemas centralizados, fragmentados, inefici-

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entes, superpostos e submetidos a uma lógica clientelista. A social que se iniciou ainda nos estertores do regime
inflexão que vão sofrer os sistemas e mecanismos de pro- autoritário e que teve como objetivo central a democratiza-
teção social a partir da instauração do regime burocrático-au- ção da saúde, entendida como a universalização do acesso
toritário obedeceu a quatro linhas mestras: a centralização e ao cuidado de saúde, mediante a criação de um Sistema
concentração do poder em mãos da tecnocracia, com a reti- Público Nacional de Saúde. Estas propostas foram incluídas
rada dos trabalhadores do jogo político e da administração na Constituição Federal de 1988, onde a saúde se inscreveu
das políticas sociais; o aumento de cobertura incorporando como um direito de cidadania e um dever do Estado,
grupos e benefícios anteriormente excluídos; a criação de requerendo que os serviços de saúde se organizassem em
fundos e contribuições sociais como mecanismo de autofi- um sistema único, público, universal, descentralizado e par-
nanciamento dos programas sociais; e a privatização dos ticipativo de atenção à saúde. O novo desenho do sistema
serviços sociais (em especial a educação universitária e representou uma mudança importante no poder político e
secundária e a atenção hospitalar). na distribuição de responsabilidades entre as distintas
esferas do Governo: nacional, estadual e municipal.
Com a Constituição Federal de 1988 inaugura-se Este processo de redefinição institucional do sistema de
um novo período, no qual o modelo da seguridade saúde originou um novo e diferente quadro de desafios de
social passa a estruturar a organização e formato gestão, uma vez que estabeleceu tanto estruturas decisórias
da proteção social brasileira, em busca quanto de organização e provisão de serviços compostas
da universalização da cidadania. por atores provenientes de diferentes jurisdições (Estado,
sociedade civil e mercado). Os principais desafios podem ser
Com a Constituição Federal de 1988 inaugura-se um divididos de acordo com cada um dos três principais eixos
novo período, no qual o modelo da seguridade social passa de relações institucionais que compõem o SUS, os quais
a estruturar a organização e formato da proteção social demandam diferentes esforços de gestão interorganiza-
brasileira, em busca da universalização da cidadania. No cional.
modelo de seguridade social busca-se romper com as Em breves linhas, vamos tratar este desenho a partir das
noções de cobertura restrita a setores inseridos no mercado novas configurações das relações intergovernamentais, das
formal e afrouxar os vínculos entre contribuições e benefí- relações do Estado com a sociedade e das relações do
cios. Os benefícios passam a serem concedidos a partir das Estado com o mercado.
necessidades, o que obriga a estender universalmente a
cobertura e integrar as estruturas governamentais. A inclu- 1. Relações Intergovernamentais – Consiste num con-
são da previdência, da saúde e da assistência como partes junto de relações geradas pelo processo de descentralização
da seguridade social introduziu na Constituição os direitos dos núcleos decisórios a partir da instituição de autoridades
sociais com parte da condição de cidadania. sanitárias em cada esfera de Governo, dotadas de autono-
O novo padrão constitucional da política social caracteri- mia política para a gestão dos serviços prestados aos
za-se pela universalidade na cobertura, o reconhecimento cidadãos, nos níveis de atenção correspondentes. Isto impli-
dos direitos sociais, a afirmação do dever do Estado, a su- ca a existência da divisão de funções entre a União, os
bordinação das práticas privadas à regulação em função da Estados e os Municípios, sendo estes últimos designados
relevância pública das ações e serviços nestas áreas, uma como a esfera principal na composição do novo sistema.
perspectiva publicista de co-gestão Governo/Sociedade, em Implica também a criação de mecanismos de articulação
um arranjo organizacional descentralizado. que garantam a coordenação das interdependências.
A autonomia das três esferas requer a presença de meca-
• Formação do SUS como um campo de gestão de redes nismos e estratégias para o desenvolvimento de esforços
A Reforma Sanitária foi fruto de um amplo movimento conjuntos e complementares, tanto no sentido de obter

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coerência na formulação de políticas quanto na provisão de A produção de resultados coletivos a partir de esferas
uma atenção integral aos cidadãos usuários do sistema, autônomas, em ambientes de interesses nem sempre
cabendo à esfera central a responsabilidade pela coorde- convergentes, em se tratando de um país federal
nação geral das políticas nacionais de saúde. Esta o faz de ampla diversidade socioeconômica, política
mediante o desenvolvimento das normas e parâmetros para cultural, exige a presença de mecanismos capazes
a estruturação, a organização, o planejamento, o controle e de promover processos de negociação
a avaliação, na forma de diretrizes básicas de orientação do voluntária e pactuação.
sistema, incentivos para a adoção de programas e políticas,
bem como por meio do fornecimento de condições neces- relações horizontais entre as esferas subnacionais, o inter-
sárias à promoção da descentralização do mesmo. Os gran- câmbio e a alocação de recursos assistenciais e financeiros
des desafios do processo de gestão intergovernamental insti- pode ser viabilizado por meio da Programação Integrada e
tuído pelo SUS relacionam-se tanto à determinação de dotar Pactuada (PPI), que consiste num instrumento de negociação
os municípios das competências suficientes para assumir de recursos, onde os gestores com excesso de oferta de
suas responsabilidades, quanto à necessidade de desen- serviço podem oferecê-la para outros gestores em troca do
volver estratégias eficientes de integração entre os municí- financiamento correspondente. O nível gerencial imediata-
pios, e destes com as demais esferas. mente acima (Estados ou União) consolida as programações
A produção de resultados coletivos a partir de esferas e redistribui recursos financeiros de acordo com os pactos
autônomas, em ambientes de interesses nem sempre con- efetuados.
vergentes, em se tratando de um país federal de ampla No que se refere às relações horizontais especificamente
diversidade socioeconômica, política e cultural, exige a pre- entre os gestores municipais, está prevista também na insti-
sença de mecanismos capazes de promover processos de tucionalidade do SUS a possibilidade de instauração de con-
negociação voluntária e pactuação. As principais ferramen- sórcios entre municípios para a gestão de problemas locais
tas institucionais desenhadas para este propósito consistem comuns e a construção de estratégias de regionalização. No
nas conferências de saúde em cada esfera de governo, reali- entanto, esse é um recurso institucional ainda de pouca uti-
zadas periodicamente, e nas comissões intergestoras e con- lização no sistema, talvez em virtude da quase ausência de
sórcios intermunicipais. As primeiras são mecanismos de for- incentivos ao seu desenvolvimento.
mação de políticas públicas compostas a partir da esfera O processo de descentralização foi realizado de maneira
municipal, cujas diretrizes e metas são tomados como fun- progressiva e regulado pelas instâncias centrais passando as
damento para a elaboração das agendas referentes à esfera instalações e os recursos humanos dos níveis mais altos às
estadual e finalmente à nacional. Com participação paritária municipalidades. A administração do sistema local de
do Governo e da sociedade civil, as conferências represen- saúde, incluindo os recursos financeiros transferidos às
tam um momento de diálogo e formação de consenso acer- municipalidades, está condicionada pelo cumprimento das
ca de normas e valores que orientarão as estratégias políti- normas e requisitos estabelecidos pelas instâncias centrais.
cas. As evidências demonstram que o processo de construção
As comissões intergestoras representam espaços perma- de competências gerenciais nas esferas subnacionais da fe-
nentes de composição decisória onde se apresentam as deração encontra-se em estágio bastante avançado,
autoridades gestoras na busca de resolução conjunta de estando a quase totalidade dos estados e municípios habili-
problemas, como a alocação de recursos financeiros. As tados a assumir pelo menos as funções mínimas a eles
comissões intergestoras bipartites relacionam a autoridade disponibilizadas, embora permaneça a questão das assime-
estadual com as municipalidades, enquanto a comissão tri- trias e desigualdades, tanto entre os municípios quanto entre
partite envolve ainda a presença da União no processo de os estados.
pactuação e formação de consenso. No que se refere às Da mesma forma, a construção de relações horizontais

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entre as autoridades sanitárias nas duas esferas permanece a alocação eficiente de investimentos (Mafort-Ouverney,
sendo uma questão em aberto, assim como se encontra 2005).
pouco definido o papel do Governo estadual no conjunto Entretanto, tal estratégia, após mais de três anos de imple-
das relações verticais entre as três esferas. mentação, ainda não apresentou resultados efetivos e en-
Desta forma, o SUS configura um formato institucional contra dificuldades no sentido de se tornar um marco regu-
onde nenhum dos atores do Estado detém os recursos sufi- latório institucionalizado e legitimado pelos atores que inte-
cientes, nem para prover atenção integral, nem para impor gram o SUS. Sendo assim, a indefinição no que se refere ao
os rumos da política de saúde, sendo indispensável o cons- papel do gestor estadual e a incapacidade de construção de
tante exercício e aperfeiçoamento dos instrumentos e estratégias de horizontalização favorecem a manutenção do
mecanismos de desenvolvimento das relações intergoverna- papel indutor e centralizador do governo federal.
mentais no sentido de ampliar o potencial de consenso, de
compartilhamento de percepções e de aprofundamento da 2. Relações Estado/Sociedade – Constitui-se em um
interdependência, sem os quais torna-se deficitária ou mes- conjunto de estruturas composto pelas relações de interme-
mo insustentável a produção de resultados eficazes em con- diação de interesses entre os atores sociais e a burocracia
textos de governança em rede. estatal no âmbito do processo de controle social desenvolvi-
do a partir da institucionalização das instâncias de democra-
O SUS configura um formato institucional tização do SUS. O processo de abertura das instâncias
onde nenhum dos atores do Estado detém os recursos decisórias do Estado brasileiro durante a década de 1980
suficientes, nem para prover atenção integral, permitiu a inserção de demandas diferenciadas por meio da
nem para impor os rumos da política de saúde, sendo maior participação política de grupos antes excluídos. Esta
indispensável o constante exercício e aperfeiçoamento opção estava fundada em uma concepção de que o Estado
dos instrumentos e mecanismos de desenvolvimento deveria conter mecanismos institucionais de controle e de
das relações intergovernamentais. incorporação de interesses plurais que pudessem confrontar
sua tomada por grupos particulares.
As pesquisas recentes sugerem que não há o desenvolvi- A existência de canais de inserção de demandas e interes-
mento de esforços significativos no que se refere à redução ses diversos transformou por completo todo o processo
das assimetrias de capacidade de gestão, o que torna difícil decisório, e, por conseguinte, a gestão das etapas de com-
ampliar o potencial dos municípios em assumir com sucesso posição das políticas de atenção à saúde. Uma vez que o
responsabilidades novas e mais complexas, assim como poder da burocracia gestora passou a ser compartilhado
também diminui suas possibilidades de formar relações efi- com a Sociedade Civil, sua autonomia na condução do sis-
cazes, verticais e horizontais, de intercâmbio de recursos e tema de saúde está restrita à ação da democracia delibera-
competências. tiva, o que corrobora a necessidade dos gestores de se ori-
Quanto ao papel desempenhado pelo gestor estadual e as entarem na busca do interesse público.
questões referentes ao desenvolvimento das relações de O principal aspecto gerencial relativo ao compartilhamen-
caráter horizontal, em 2001 foi instituída uma estratégia de to do poder decisório reside no entendimento, por parte dos
regionalização da gestão e da assistência à saúde, definin- gestores, de que a definição tanto dos macro-objetivos, das
do o gestor estadual como principal responsável por con- principais diretrizes e metas da agenda das políticas públicas
duzir a articulação de municípios adjacentes na composição de saúde em cada uma das três esferas, quanto os aspectos
de clusters de provisão de serviços. O objetivo é fortalecer a processuais relativos à sua implantação, estão sujeitos à
interdependência municipal, ampliar a capacidade regional ação política dos diversos grupos de interesse presentes nas
de prover atenção integral com maior equidade, além de arenas decisórias do SUS, que são os Conselhos de Saúde.
racionalizar o uso de recursos por ganho de escala mediante Em cada nível do SUS existe um Conselho de Saúde, cons-

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tituído 50% de representantes do Governo e 50% de repre- Diversas pesquisas apontam o predomínio do caráter
sentantes da Sociedade Civil (usuários, provedores, profis- apenas consultivo dos Conselhos de Saúde
sionais, etc.). Este mecanismo permite a participação e o em detrimento de seu papel decisório, enfatizando
controle social nos processos de elaboração de políticas, de que em algumas situações estes operam somente
ordenamento de prioridades e execução de políticas. na legitimação de decisões previamente definidas
Assim, a atitude e as competências de gestão necessárias pelo executivo.
para a produção de resultados coletivos no campo sanitário,
a partir de interesses possivelmente divergentes, envolvem a dessas estruturas ainda não permita avaliações concretas
construção de processos de articulação política e de media- mais positivas, deve-se considerar que existem grandes
ção de conflitos, o que exige que os gestores atuem perma- diferenças entre os conselhos, determinadas pelas prévias
nentemente na construção de agendas de compartilhamen- diferenças sociais e políticas existentes. Um maior estudo e
to de percepções e ajustes de interesses. Este processo en- acompanhamento deste instrumento possibilitariam mesmo
volve ainda o desenvolvimento de relações de complemen- o desenho de incentivos necessários à consolidação dessas
taridade entre burocracia e a Sociedade Civil organizada, instâncias, em resposta a verificação de reais deficiências
visando construir suporte político para a elaboração e a existentes em cada região da federação.
implementação de políticas e programas. Da mesma forma,
tais relações permitem e impulsionam a ação organizada no 3. Relações Estado/mercado - Apesar da proposta de
sentido de ampliar a capacidade de monitoramento e fiscali- reforma sanitária inscrita no texto constitucional e que com-
zação de metas e resultados, o que contribui significativa- põe as diretrizes de estruturação do SUS ter originado um
mente, tanto no sentido de intensificar o processo de accoun- sistema público, boa parte das bases econômicas de pro-
tability, quanto aumentar a eficiência da ação estatal. dução da oferta de insumos e serviços encontra-se alocada
Entretanto, embora seja evidente a institucionalização do em unidades de mercado. Este fato é conseqüência da políti-
processo de participação da sociedade organizada via con- ca de organização do modelo médico-sanitário anterior-
ferências e conselhos de saúde na definição de prioridades, mente existente, que privilegiou a compra de serviços aos
estratégias e metas da política de saúde nas três esferas da produtores privados e foi estruturado visando à reprodução
federação, permanece ainda por se consolidar a capacidade ampliada de setores industriais de elevada composição tec-
efetiva de exercício de controle social pelos conselhos. Neste nológica, como a indústria farmacêutica e de equipamentos
sentido, diversos fatores influem neste processo como a médicos.
disponibilidade de recursos para a operação dos conselhos, Durante as duas primeiras décadas, a Reforma Sanitária
a cultura política de cada município, o nível de instrução da não foi capaz de transformar a realidade prévia em termos
população, as relações do executivo com o legislativo, a da estrutura de insumos e oferta nem das características de
ação de lideranças, a origem social dos membros dos organização dos serviços. Uma vez que a produção de
próprios conselhos, entre outros. Diversas pesquisas apon- medicamentos, equipamentos hospitalares e outros insumos
tam o predomínio do caráter apenas consultivo dos conse- é fundamentalmente realizada por empresas multinacionais,
lhos em detrimento de seu papel decisório, enfatizando que o Governo tem sido incapaz de controlar tanto as condições
em algumas situações estes operam somente na legitimação de oferta quanto os preços destes produtos. Como os leitos
de decisões previamente definidas pelo executivo. hospitalares para o SUS são predominantemente ofertados
Entretanto, cabe reiterar que tais instâncias possuem um pelo setor privado contratado (aproximadamente 63%), a
amplo potencial de atuar não só na ampliação da eficiência distribuição de hospitais e recursos humanos é altamente
da ação das políticas públicas, mas também na promoção concentrada nas regiões urbanas mais ricas do país.
do caráter democrático da gestão do Estado. De qualquer Assim, a estruturação e a dinâmica de provisão de serviços
forma, mesmo que o caráter recente da real implementação de saúde no âmbito do SUS, necessariamente estão rela-

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Como os leitos hospitalares para o SUS tornam-se imprescindíveis para a efetividade das políticas de
são predominantemente ofertados pelo setor privado saúde, uma vez que somente uma adequada coordenação
contratado (aproximadamente 63%), a distribuição interorganizacional entre os provedores, por meio de
de hospitais e recursos humanos é altamente mecanismos de referenciamento e contra-referenciamento,
concentrada nas regiões urbanas mais ricas do país. gestão conjunta de casos e o desenvolvimento de programas
multidisciplinares, é capaz de garantir a provisão de quali-
cionadas à contratação de um conjunto de provedores dade.
inseridos num ambiente cujos princípios de condução são os As ações desenvolvidas e os instrumentos gerados pa-
do mercado, e não aqueles estabelecidos na Constituição de ra a implementação dos processos de regionalização e
1988, nos quais a saúde é considerada um bem público, hierarquização da rede de serviços no âmbito do SUS
independentemente do seu provedor ser público ou privado. constituem as estratégias voltadas para a garantia da
Sob a ótica da produção de serviços aos cidadãos pelo integralidade da assistência, diante da fragmentação
SUS, a necessidade de buscar no mercado unidades de gerada não só pela necessidade de contratação de pro-
provedores de serviços especializados e mesmo fatores de vedores privados, mas também pela busca do estabeleci-
produção para tal, implica em desafios de gestão relaciona- mento de uma coordenação adequada destes com os
dos à equidade e à integralidade da assistência, principal- serviços alocados no interior do aparelho público para
mente em políticas setoriais envolvendo níveis mais elevados poder hierarquizá-los através dos níveis de atenção e
de complexidade tecnológica. Os desafios intrínsecos à complexidade.
equidade referem-se às disparidades regionais ocasionadas
pela concentração de recursos e de infra-estrutura produtiva Cada base municipal é tomada como um módulo
nas áreas de maior grau de urbanização. assistencial composto por um «cluster» de serviços
Quanto à integralidade da assistência, os desafios refe- de determinada complexidade, onde os municípios
rem-se tanto à integração dos diversos serviços contratados que possuem núcleos capazes de realizar
pelo Estado no âmbito do SUS, quanto à hierarquização procedimentos de maior complexidade configuram
destes por níveis de complexidade, uma vez que a qualidade referências para os demais módulos assistenciais.
da provisão não depende única e exclusivamente do desem- Os módulos assim referenciados se agrupam
penho isolado de cada unidade. A existência de diversos em microregiões, que, por sua vez, formam as regiões
provedores contratados relacionados a uma política setorial a partir das quais se divide a assistência
específica, cada qual especializado em um aspecto da à saúde de cada Estado da Federação.
assistência, implica na insuficiência de garantia quanto à
relação causal entre o desempenho individual dos prove- O aprofundamento do processo de regionalização e hie-
dores contratados e o resultado geral em termos de bem-estar rarquização da atenção à saúde, iniciado durante a década
dos cidadãos. de 1990, recebeu importante impulso por meio da edição
A baixa capacidade do aparelho estatal para desenvolver da Norma Operacional de Assistência à Saúde (NOAS/01)
parâmetros e instrumentos regulatórios efetivos impede o que consolidou de forma detalhada o relacionamento entre
cumprimento da função reitora do Estado na condução do as bases especializadas de serviços dos municípios. Cada
SUS, que muitas vezes se submete aos interesses privados, base municipal é tomada como um módulo assistencial
mais poderosos e altamente organizados. composto por um cluster de serviços de determinada com-
A efetividade dos serviços está relacionada à capacidade plexidade, onde os municípios que possuem núcleos capazes
do Estado de organizar e estruturar de forma adequada uma de realizar procedimentos de maior complexidade configu-
rede integrada a partir dos fundamentos constitucionais do ram referências para os demais módulos assistenciais. Os
SUS. A integração e hierarquização dos serviços contratados módulos assim referenciados se agrupam em microregiões,

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Tabela
Avanços e desafios na construção do SUS como uma rede de gestão de políticas

Fonte: Elaboração dos autores

Sonia Fleury e Assis Ouverney 82 REVISTA PORTUGUESA E BRASILEIRA DE GESTÃO


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que, por sua vez, formam as regiões a partir das quais se Os desafios apontam cada vez mais para a necessidade
divide a assistência à saúde de cada Estado da Federação. de fortalecimento dos atores e para a horizontalização
Da mesma relevância que a capacidade de articulação das relações de poder. Isso demonstra que, para além
das bases privadas de provisão de serviços, a questão refe- dos aspectos estruturais, não se pode negligenciar
rente à gestão dos processos de contratação e o monitora- a dinâmica do exercício do poder.
mento dos resultados permanece sendo um aspecto inde-
finido na organização do SUS, o que afeta de maneira ex- A análise da gestão do SUS nos leva a questionar a ênfase
tremamente negativa a articulação estratégica no emprego dada na literatura contemporânea aos processos de institu-
dos recursos, reduzindo significativamente a racionalidade cionalização de interdependências.
sistêmica (econômica) e a eficiência do SUS. Ainda que o SUS tenha construído diversas instâncias de
construção de regras coletivas, os desafios apontam cada
Considerações finais vez mais para a necessidade de fortalecimento dos atores e
A Tabela que se publica sintetiza os principais avanços e para a horizontalização das relações de poder. Isso demons-
desafios à consolidação do SUS como campo de gestão de tra que, para além dos aspectos estruturais, não se pode
políticas em rede. negligenciar a dinâmica do exercício do poder. 
Embora se apresentem tensões presentes nos três eixos
de relações institucionais definidos para a análise do Referências bibliográficas
SUS, percebe-se claramente que os principais desafios AGRANOF, R. e MCGUIRE, M. (1999), «Managing in network set-
tings». Policy Studies Review, vol. 16(1), pp. 18-42.
estão relacionados ao eixo das relações intergoverna- BÖRZEL, T. A. (1998), «Organizing Babylon: On the different
mentais. conceptions of policy networks». Public Administration, vol. 76(2),
pp. 253-273.
A análise do SUS a partir dos critérios fixados como ca- BRUIJN, J. A. e HEUVELHOF, E. F. (1997), «Instruments for net-
racterísticos de uma gestão em rede aponta para uma forte work Management». In W. J. M. Kickert, E. H. Klijn e J. Koppenjan
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Public Sector. Sage Publications, London.
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Isto implica não só ampliar a autonomia dos municípios e cas». Revista Instituciones y Desarrollo, vol. 12-13, pp. 221-247.
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solidificar o papel do Estado como coordenador regional, Contracting out, process management or a combination of the
mas também consolidar a capacidade dos conselhos no two?». Public Management Review, vol. 4(2), pp. 149-166.
KLIJN, E. H. e KOPPENJAN, J. F. M. (2000), «Public Management
exercício do caráter deliberativo de suas atribuições. Desta and policy networks: Foundations of a network approach to gover-
forma seria possível assegurar a governança desejável em nance». Public Management (UK), vol. 2(2), pp. 135-158.
cada um dos níveis do sistema, bem como sua articulação MAFORT-OUVERNEY, A. (2005), «Uma análise da estratégia de
regionalização da saúde no Brasil à luz da literatura internacional
com os demais níveis. de Administração Pública sobre redes». Dissertação de Mestrado
Somente assim é possível reduzir o papel indutor das não publicada, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro.
MANDELL, M. (1999), «Community collaborations: Working
instâncias centrais do SUS, além de, ao ampliar a autonomia through network structures». Policy Studies Review, vol. 16(1), pp.
e a força dos sistemas locais e regionais, possibilitar o for- 42-65.
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