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ISMoO idente O Um dos objetivos dos sufis é submeter 0 homem a condigdes em que nao exista uma doutrina de sus- Au ler cme MoD Mette] que isso o despoje daquelas partes da sua personatlidade Ct) CRE rr emcee ait Fy espécie de ex- er Bee rele CRI Seta eta STM Ween cater a] observacao do individual. O estudante pode ver suas caracteristi- cas reais e perguntar a si mesmo se suas formas de acao, que se manifestam através desta personalida- eS ee ice Retiree Pee Roe mo, pare seus amigos e associados, ou para algum regulamento moral ou ético que the seja familiar, etc. CCR UER A wae eRe Ria etre RP tote BCR o Sufismo NOG ci lente O desenvolvimento do homem em diregdo a um nivel superior de consciéncia nao é tarefa sim- ples. Requer um esforgo siste- matico e persistente, métodos e materiais apropriados e antes de mais nada, uma orientacao se- gura, onde o lugar, o tempo e as pessoas s&o consideragées de fundamental importancia. O Buscador da Verdade somente conseguir trilhar este caminho quando exposto 4 combinagao correta destes fatores, sob for- ma de um ensinamento e da di- regdo de um mestre. O Sufismo é uma tradicao se- cular de conhecimento. Através dos grandes mestres, formulou um ensinamento adequado ao tempo, o lugar e as pessoas a quem se destina, e 0 faz por in- termédio de materiais e méto- dos especificos. Entre os mate- riais mais importantes desta tra- dicdo esto as chamadas “hist6- rias de ensinamento” que dao forma e transmitem um conhe- cimento que de outra maneira n&o poderiam ser expressos. Oestudo e a utilizagao destas historias de ensinamento, no en- tanto, ndo pode ser feito ao aca- so, nem através dos mecanismos intelectuais que estamos acostu- mados a usar. Confundimos in- formagdo com conhecimento, in- teligéncia com sabedoria. A con- fusdo entre estes e outros fato- res intelectuais e emocionais fa- zem da mente comum algo ine- ficiente e confuso. Superar esta situagdo implica em trabalhar a mente de’modo a torna-la capaz de fazer uso das histérias e co- locd-la em condigdes adequadas de absorvé-las. O propésito des- te livro é o de familiarizar o Bus- cador com a operacdo de um sis- tema de estudo e acao que pos- sa conduzi-lo a uma consciéncia maior, 0 que certamente € 0 des- tino possivel e preferivel do Ho- mem. Colegéo Dervish * Qs Mestres de Gurdjieff + Sutismo no Ocidente + © Homem, Meméi ° ear ria do Universo + Q Jardim Amuralhado da Verdade * Contos d Rosas e Ensinamento do Mestre * O Cavalo Magico + 0 Quarto Remo Capa Marcus Dohmann INSTITUTO TARIKA, CAIKA POSTAL 3668 20001 RIO DE JANEIRO,RJ BRASIL =e a O SUFISMO No OCIDENTE PREPARAGAO DO BUSCADOR . = EvicoEes DERVISH ‘Traduzido do original espanol andnimo Preparacién del buscador Buenos Aires, Ediciones Dervish Internacional Tradugéo Julieta Leite Revisio Vitoria Peres de Oliveira Monica Cavalcanti ‘0 Sulismo no Ocidente : preparaglo do buscador / (treduglo de Julie $946 ta Lette). — 2.ed. — Rio de Janeiro: Ed. Dervish, 1988. >. ‘Tradusido do orginal espanhol andnimo: Sufsmo en Ocidente: pre pparacion del buscador. 1. Sufism, 1. Leite, Julleta — 18, CDD 297.4 Planejamento Editorial Glauco de Oliveira Artes Visuals Produgoes Ltda. Rua Santo Cristo, 217 — Tel, (021]263-3366 CEP 20220 — Rio de Janeiro — RJ SUMARIO Capitulo I Introdugdo @ hist6ria de Mushkil Gusha A histéria de Mushkil Gusha Capitulo I Histérias de ensinamento A histéria do ché Capitulo Ill O maripa Os sete irm&os Introdugo & histéria dos cofres de ouro Os coftes de ouro Capitulo IV O jardim Dez pontos para reflexdo Requisitos para o estudo Opinido e fato Cinco pontos nao conhecidos Fungéo de exercicios e técnicas 19 26 31 £8 BEEEES Capftulo V Nove pontos importantes A pardbola do anfitrido e dos convidados A transformagao do Homem Capitulo VI Os diferentes nfveis em contos e hist6rias Os dois irmaos Os problemas da generosidade O cao e os dervixes A videira Capitulo VII Leituras, exercicios e outros estudos O anjo e o homem caridoso A jovem que voltou da morte Encontro com o diabo Capitulo VIIl O rei e 0 lobo O cavalo magico Tendencias e técnicas no ensinamento superior Nao € por acaso que estamos aqui hoje Capitulo IX Antes que vocé aprenda Origens e destino O homem, a serpente e a pedra O espertalhao, as ovelhas e os aldedes Capitulo X A doutrina das pessoas da comunidade A Cidade Meléo Capitulo XI Recompensa e castigo Um grupo de suis O bergo O cavaletro apressado B82 63 68 69 71 72 73 75 110 117 118 118 Capitulo XII ‘As diferencas entre aprender e tentar aprender Efeitos do meio ambiente sobre os estudos Instituigdes e cerimonial Espécies de atencdo Capitulo XIII A situago e suas necessidades Como realizar atividades “no mundo” O homem do chapéu branco Qual é a direcdo certa? Fatima e os animais Capitulo XIV Os sufis Guru, 0 rato perspicaz O visitante de longe 121 126 128 129 133 136 137 141 142 147 150 158 CAPITULO I INTRODUCAO A HISTORIA DE MUSHKIL GUSHA © POSSIVEL desenvolver o estudo dos contos de en- sinamento se existirem bases suficientes e auténticas. E impossfvel aprender algo sem conhecer suas origens, da mes- ma forma que ndo se pode aprender corretamente trabalhan- do sobre bases falsas. Assim também acontece em nosso es- tudo. Precisamos desenvolver o conhecimento humano cons- truindo sobre idéias corretas que estejam presentes. Quan- do hé uma deficiéncia nas idéias, ou quando estas sao inter- pretadas de forma incorreta, devemos restaurar a idéia que, em suas origens, era correta. Deve-se recordar que as idéias humanas, seja qual for a cultura envolvida, estao sujeitas a sofrer, principalmente, quatro processos degenerativos no meio terrestre. Esses processos sao: 1. Uma idéia boa ou apropriada, sobre a qual se pode tra- balhar, talvez esteja associada, na mente, a fatores que na- da tém a ver com essa idéia. (Com o passar do tempo, desenvolvem-se associagdes em toro de todas as idéias humanas.) 2. Uma tradigo pode deteriorar-se através da compreen- sio deficiente da funcdo das idéias, Nesse caso, s6 uma parte 9 da tradicao é transmitida, e esta é uma base insuficiente pa- ra o ensinamento. 3. Circulos tradicionalistas se ocupam de maneira obsessiva com uma pequena parte de idéias que, originalmente, fo- ram muito amplas. A conseqiiéncia disso é a institucionali- zac&o e o uso das idéias como um meio de condicionamento. Por exemplo, quando princfpios e préticas sao prescri- tos a uma comunidade como orientaco, as idéias que pa- recem mais promissoras sao aceitas e usadas para se traba- thar; as outras s4o rechacadas. O resultado disso € 0 auto- matismo, criado pelo exercicio das idéias orgénicas. 4. Idéias originalmente prescritas para uso de uma determi- nada comunidade, 4rea cultural ou escola sdo adotadas por ‘outras e, por isso, sdo estéreis nesse meio. Com o correr do tempo, essas idéias vao sendo empregadas por comunida- des que deveriam estar recebendo uma amplitude de idéias adequadas a elas e que, na verdade, s6 esto ruminando 0 alimento que foi programado para seus antepassados. Os contos e fabulas sao as férmulas terrestres mais im- Portantes para a preservacao e transmissao das idéias. Mas, ao mesmo tempo em que so os vefculos ideais para o ensi- namento césmico, tendem a sofrer todas as enfermidades h& pouco mencionadas. Em nossa escola adotamos dois pro- cedimentos com relacao a este problema: a. Apontamos, nos materiais de ensino, as enfermidades an- tes mencionadas. b. Restabelecemos a forma original da idéia, ou oferecemos outra, planejada para ser eficiente na comunidade atual. _ Com estes pensamentos em mente, apresentamos A his- t6ria de Mushkil Gusha — uma importante histéria de ensi- namento. 10 7 A HistOrIA DE MUSHKIL GUSHA Era uma vez, a menos de mil milhas daqui, um pobre le- nhador vivo, que vivia com sua pequena filha. Todos os dias costumava ir 4s montanhas cortar lenha, que levava para casa e atava em feixes. Depois da primeira refeigao, caminhava até ‘© povoado mais préximo, onde vendia a lenha e descansava um pouco antes de voltar para casa. Um dia, ao chegar em ca- sa, j4 muito tarde, a menina lhe disse: — Pai, de vez em quando gostaria de ter uma comida me- Ihor, em maior quantidade e mais variada. — Est4 bem, minha filha — disse o velho —, amanha le- vantarei mais cedo do que de costume, irei mais alto nas mon- tanhas, onde hé mais lenha, e trarei uma quantidade maior do que a habitual. Voltarei mais cedo para casa, atarei os feixes mais depressa ¢ irei logo ao povoado vende-los para conseguir- mos mais dinheiro. E Ihe trarei uma porgao de coisas deliciosas. Na manha seguinte, o lenhador levantou-se antes da au- rora e partiu para as montanhas. Trabalhou arduamente cor- tando lenha e fez um feixe enorme, que carregou nos ombros até sua casa. Ao chegar era ainda muito cedo. Ent&o, colocou a carga no chao e bateu a porta, dizendo: —Filha, filha, abra a porta. Estou com sede e fome; preci- so comer alguma coisa antes de ir para o mercado. ‘Mas a porta continuou fechada. O lenhador estava tao can- sado que se deitou no cho, ao lado do feixe de lenha, e logo adormeceu. A menina, esquecida da conversa da noite ante- rior, dormia profundamente. Quando o lenhador acordou, algumas horas depois, o sol j6 estava alto. Bateu novamente a porta e disse: — Filha, filha, abra logo. Preciso comer alguma coisa an- tes de ir ao mercado vender a lenha, pois j4 € muito mais tarde do que de costume. 11 Mas a menina que tinha esquecido completamente a conversa da noite anterior, tinha se levantado, arrumado a casa e safra para dar um passeio. Em seu esquecimento, e supondo que o pai jé tivesse ido para o povoado, deixou a porta da casa fechada. Assim, o lenhador disse a si mesmo: — Ja é muito tarde para ir & cidade. Voltarei para as montanhas e cortarei outro feixe de lenha, que trarei para casa, e amanhi terei carga em dobro para levar ao mercado. O lenhador trabalhou duro aquele dia, cortando e en- feixando lenha nas montanhas. Jé era noite quando chegou em casa com a lenha nos ombros. Pés o feixe atrés da casa, bateu a porta e disse: — Filha, filha, abra a porta. Estou cansado e nao comi nada 0 dia todo. Trago uma dupla carga de lenha, que es- pero levar ao mercado amanhi. Preciso dormir bem esta noite para recuperar minhas forcas. Mas nao houve resposta, pois a menina, sentindo mui- to sono ao voltar do passeio, preparou sua comida e foi pa- ta a cama. A principio, ficara preocupada com a auséncia do pai, mas tranqtiilizou-se logo, pensando que ele passaria a noite no povoado. Cansado, faminto e com sede, vendo que nao podia entrar em casa, o lenhador deitou-se novamente ao lado da lenha. Apesar de preocupado com o que poderia estar acon- tecendo com a filha, nao conseguiu ficar acordado: adorme- ceu logo. Mas, como estava com muito frio, muita fome e muito cansado, acordou bem cedo na manha seguinte, an- tes mesmo de o dia clarear. Sentou-se, olhou ao redor, mas nao conseguiu ver na- da. Mas, nesse momento, aconteceu uma coisa estranha. Pareceu-lhe ouvir uma voz que dizia: — Depressa! depressa! Deixa tua lenha e vem por aqui. Se necessitas muito e desejas pouco, ters uma refeicao de- liciosa. 12 O lenhador levantou-se e caminhou na diregao de on- de vinha a voz. Andou, andou e andou, mas nao encon- trou nada. Ento sentiu mais cansaco, frio e fome do que antes e, além do mais, estava perdido. Tivera muitas esperancas, mas isso nao parecia té-lo ajudado. Ficou triste, com vontade de chorar, mas percebeu que chorar também no o ajudaria. Assim, deitou-se e adormeceu. Logo depois acordou nova- mente. Sentia frio e fome demais para poder dormir. Foi en- t&o que lhe ocorreu narrar a si mesmo, como se fosse um conto, tudo o que tinha acontecido desde que a filha lhe pe- dira um tipo de comida diferente. Mal terminou sua hist6ria, pareceu-lhe ouvir outra voz, vinda de algum lugar no alto, como se safsse do amanhe- cer, que dizia: — Velho homem, velho homem, que fazes sentado aqui? — Estou me contando minha prépria histéria — respon- deu o lenhador. — E qual é? lenhador repetiu sua narragao. — Muito bem — disse a voz, e a seguir Ihe pediu que fechasse os olhos e subisse um degrau. — Mas nao vejo degrau algum — disse o velho. — Nao importa, faz 0 que te digo — ordenou a voz. O homem fez 0 que lhe fora ordenado. Mal fechou os colhos, descobriu que estava de pé e, levantando o pé direi- to, sentiu que debaixo dele havia algo semelhante a um degrau. ‘Comecou a subir o que parecia ser uma escada. De re- pente-os degraus comegaram a mover-se — moviam-se muito rapidamente — e a voz lhe disse: — Nao abra os olhos até que eu ordene. Nao se passara muito tempo, quando a voz mandou que © velho abrisse os olhos. Ao fazé-lo, o lenhador achou-se num lugar que parecja um deserto, com um sol escaldante 13 acima dele. Estava rodeado de montes e montes de pedri- nhas de todas as cores: vermelhas, verdes, azuis, brancas. Mas parecia estar s6; olhou em volta e nao conseguiu ver ninguém. Entao, a voz comegou a falar de novo: — Apanha todas as pedras que puderes, fecha os olhos e desce os degraus. O lenhador fez o que Ihe mandavam e, quando a voz ordenou que abrisse os olhos novamente, encontrou-se diante da porta de sua prépria casa. Bateu a porta, e a sua filha veio atender. Ela lhe perguntou por onde ele tinha andado, e 0 pai lhe contou 0 ocorrido, embora a menina mal enten- desse o que ele dizia, porque tudo lhe parecia muito confuso. Entraram em casa e a menina e o seu pai repartiram a diltima coisa que lhes restava para comer: um punhado de tamaras secas. Quando terminaram a comida, o velho achou que estava novamente ouvindo uma voz, uma voz igual aque- la que o mandara subir os degraus. — Embora ainda nao o saibas — disse a voz — foste salvo por Mushkil Gusha. Lembra-te: Mushkil Gusha est4 sempre aqui. Promete a ti mesmo que todas as quintas-feiras, A noite, comerés umas tamaras, e dards outras a alguma pes- soa necessitada, a quem contards a hist6ria de Mushkil Gus- ha. Ou darés um presente, em seu nome, a alguém que ajude os necessitados. Promete que a histéria de Mushkil Gusha nunca, nunca seré esquecida. Se fizeres isso, e o mesmo fi- zerem as pessoas a quem contares a historia, os que tiverem verdadeira necessidade sempre encontraréo seu caminho. O lenhador entao colocou todas as pedras que havia trazido do deserto num canto do casebre. Pareciam simples pedras, e ele n&o soube o que fazer com elas. No dia se- guinte, levou seus dois enormes feixes de lenha ao mercado € 0s vendeu facilmente, por 6timo prego. Ao voltar para ca- sa, levava para sua filha uma porgao de iguarias deliciosas que ela jamais havia provado antes. Quando terminaram de comer, o velho lenhador disse: 4 — Agora vou lhe contar a histéria de Mushkil Gusha. Mushkil Gusha significa “O dissipador de todas as dificulda- des”. Nossas dificuldades desapareceram por intermédio de Mushkil Gusha, e devemos lembré-lo sempre. Durante uma semana o homem seguiu sua rotina. la as montanhas, trazia lenha, comia alguma coisa, levava a lenha ao mercado e a vendia. Sempre encontrava compra- dor, sem dificuldade. Mas chegoit a quinta-feira seguinte e, como é comum entre os homens, o lenhador se esqueceu de contar a hist6- ria de Mushkil Gusha. Nessa noite, j& tarde, apagou-se 0 fo- go na casa dos vizinhos. E, como nao tinham com que vol- tar a acendé-lo, foram & casa do lenhador e disseram: — Vizinho, vizinho, por favor, dé-nos um pouco de fo- go dessas suas lampadas maravilhosas que vemos brilhar atra- vés da janela. — Que lampadas? — perguntou o lenhador. — Venha cé e veja — responderam. O lenhador saiu e viu claramente a variedade de luzes que, vindas de dentro, brilhavam através de sua janela. En- trou e viu que a luz safa do monte de pedras que havia pos- to num canto. Mas os raios de luz eram frios e era impossf- vel usé-los para acender fogo. Entao, tornou a sair e disse: — Sinto muito, vizinhos, nao tenho fogo — e bateu- lhes a porta no nariz. Os vizinhos ficaram aborrecidos e surpresos e voltaram para casa resmungando. E aqui eles abandonam nossa hist6ria. Rapidamente, o lenhador e sua filha, com medo que alguém visse 0 tesouro que possuiam, cobriram as brilhan- tes luzes com todos os trapos que encontraram. Na manha seguinte, ao destampar as pedras, descobriram que eram ge- mas luminosas e preciosas. B Uma a uma, levaram-nas as cidades dos arredores, on- de as venderam por um preco enorme. Entdo, o lenhador decidiu construir um espléndido palacio para ele e sua filha. Escolheram um lugar que ficava exatamente na frente do castelo do rei de seu pais. Pouco tempo depois, um edi- ficio maravilhoso estava construfdo. O rei tinha uma filha muito bonita que uma manha, ao acordar, viu o castelo, que parecia de contos de fadas, bem em frente ao de seu pai. Muito surpresa, perguntou a seus criados: — Quem contruiu esse castelo? Com que direito fazem uma coisa dessas tao perto do nosso lar? Os criados safram e investigaram. Ao regressar, conta- ram 8 princesa tudo o que conseguiram saber. A princesa, muito zangada, mandou chamar a filha do lenhador. Porém, quando as duas meninas se conheceram e se falaram, logo tornaram-se boas amigas. Encontravam- se todos os dias e iam nadar e brincar juntas num regato que © rei mandara fazer para a princesa Alguns dias depois do primeiro encontro, a princesa ti- rou um colar lindo e valioso e pendurou-o numa 4rvore & beira do regato. Na volta, esqueceu-se de apanhé-lo e, ao chegar em casa, pensou que o tinha perdido. Refletindo me- lhor, porém. concluiu que tinha sido roubado pela filha do lenhador. Contou tudo ao pai, que mandou prender o le- nhador e confiscou-lhe todos os bens. O homem foi posto na prisao, e sua filha levada para um orfanato. Como era costume no pats, depois de algum tempo o lenhador foi retirado de sua cela e levado para praga pibli- ca, onde o acorrentaram a um poste, tendo pendurado ao pescogo um cartaz onde se lia: “E isto que acontece a quem rouba dos reis”. A principio, as pessoas juntavam-se & sua volta zom- bando dele e atirando-lhe coisas. O lenhador estava muito infeliz. Porém, como é comum entre os homens, logo se acos- 16 tumaram com o velho sentado junto ao poste e Ihe presta- vam cada vez menos atencao. As vezes lhe atiravam restos de comida, as vezes nem mesmo isso. Uma tarde, ouviu alguém dizer que era quinta-feira. De imediato veio-lhe 4 mente o pensamento de que logo seria anoite de Mushkil Gusha, “O dissipador de todas as dificul- dades”, a quem hé tanto tempo se esquecera de comemo- rar. No mesmo instante em que esse pensamento Ihe chegou mente, um homem caridoso que passava jogou-Ihe uma moeda. — Generoso amigo — chamou-o o lenhador —, vocé me deu dinheiro que para mim nao tem utilidade alguma. Mas se, em sua generosidade, puder comprar uma ou duas tAmaras e vir sentar-se comigo para comé-las, eu lhe ficaria eternamente grato. O homem saiu e comprou algumas tamaras, sentou-se a seu lado e comeram juntos. Ao terminar, o lenhador contou-lhe a histéria de Mushkil Gusha. — Acho que vocé deve estar louco — disse-Ihe o ho- mem generoso. Mas era uma pessoa compreensiva e também enfrenta- va muitas dificuldades. Ao chegar em casa, depois desse in- cidente, percebeu que todos os seus problemas estavam re- solvidos. Isto o fez pensar mais seriamente a respeito de Mush- kil Gusha. Mas aqui ele deixa nossa histéria. No dia seguinte, pela manha, a princesa voltou ao lu- gar onde se banhara e, quando ia entrar na 4gua, viu, no fundo do regato, uma coisa que parecia ser seu colar. Po- rém, no momento em que ia pegé-lo, espirrou, jogou a ca- beca para tr4s, e viu que o que tomara por seu colar era ape- nas 0 reflexo dele na Agua. O colar estava pendurado no galho de uma arvore, no mesmo lugar onde o tinha deixa- do ha muito tempo. Emocionada, apanhou-o e foi corren- do contar ao rei o acontecido. Este ordenou que o lenhador fosse posto em liberdade e que lhe pedissem desculpas em 7 piblico. Tiraram a menina do orfanato e todos viveram feli- zes para sempre. Estes sao alguns dos epis6dios da hist6ria de Mushkil Gusha. E uma histéria muito longa, que nunca termina. Tem. muitas formas. Algumas nem sequer se intitulam A hist6ria de Mushkil Gusha. Por isso as pessoas nao as reconhecem como tal. Mas é por causa de Mushkil Gusha que esta histéria, ‘em qualquer de suas formas, é lembrada por alguém, em algum lugar do mundo, dia e noite, onde quer que exista gente. Tal como sempre tem sido contada, assim continua- r4 a ser contada eternamente. Vocé quer repetir a hist6ria de Mushkil Gusha nas noi- tes de quinta-feita e ajudar, assim, o trabalho de Mushkil Gusha? CAPITULO II HISTORIAS DE ENSINAMENTO AO HA PAIS, ou comunidade que nao tenha suas his- térias. Nossas criangas crescem escutando contos de fa- das. Os cultos e as religides ensinam suas ligdes de moral através de hist6rias, que so utilizadas também para distra- 4o e treinamento. Geralmente sao classificadas como: contos mitolégicos, contos humoristicos, relatos semi-hist6ricos, etc., conforme a interpretagdo que as pessoas tém de suas ori- gens e funcées. Freqiientemente, porém, dentro dos possf- veis usos de uma hist6ria, pode estar incluido aquele para © qual ela foi originalmente programada. As fabulas de to- dos os paises proporcionam um exemplo realmente notével disso porque, se pudermos compreendé-las em certo nivel técnico, oferecem a mais notéria evidéncia da continuidade de um ensinamento permanente, conservado, as vezes, por pura repeticao, transmitido e valorizado simplesmente por- que proporciona estimulo a imaginacao ou diversdo as pes- soas em geral. Em nossos dias nao sao muitos os individuos capazes de utilizar corretamente as histérias. Aqueles que sabem al- go a respeito do nivel superior de ser, representado pelas hist6rias, podem aprender alguma coisa com elas, mas mui- to pouco. Aqueles que podem experimentar esse nivel, po- 19 ba dem ensinar o seu uso. Antes de mais nada, porém, aoe que aceitar, como hipétese de trabalho, que esse nivel real- mente pode operar nas hist6rias. Devemos aproximar-nos delas a partir do ponto de vista de que, nesse nivel, podem ser documentos de valor técnico. E um método muito anti- go, ainda insubstitufvel, para formular e transmitir um conhe~ cimento que nao pode ser expresso de nenhuma outra ma- neira. Neste sentido, tais hist6rias — pois nem todas as his- t6rias constituem textos de natureza técnica — devem ser consideradas como parte de nosso programa de estudos e como uma representacao tao vélida dos fatos como, por exemplo, qualquer férmula matematica ou livro-texto cien- tifico. Como qualquer texto cientifico ou férmula mateméti- ca, as hist6rias, no que diz respeito ao seu poder superior, dependem de: alguém que possa compreendé-las em um nivel superior; alguém que possa estabelecer sua validade para um curso de estudos; pessoas que estejam preparadas para estudé-las e us4-las; e um contexto no qual utilizé-las. Assim podemos ver facilmente como nosso condicio- namento — que nos habitua a usar as hist6rias para entrete- nimento e outros propésitos ébvios — é geralmente um obs- téculo forte o bastante para impedir que fagamos um estudo sério das hist6rias como um veiculo para o ensinamento superior. Essa tendéncia humana de utilizar qualquer coisa num nivel inferior aquele em que, de fato, ela poderia atuar, apa- Tece muito em nossos estudos e precisa ser bem assinalada. As tradig6es a respeito das historias, contudo, sobrevi- vem aqui e ali. As pessoas dizem que contar certas hist6rias traz boa sorte, ou que as histérias tém significados que fo- ram esquecidos, e outras coisas do género. Mas o que seria chamado de “aspecto de seguranca” na linguagem contem- Porénea é algo quase inviolével nas hist6rias de ensinamen- to, devido a outro fator. Este fator 6 0 resultado da lei que 20 faz com que uma histéria, do mesmo modo que uma fér- mula cientifica industrial, por exemplo, nao possa produzir seu efeito de desenvolvimento ou ensinamento a nao ser nu- ma pessoa que tenha sido convenientemente preparada pa- ra compreendé-la. Esta é a razo pela qual é necessério uti- lizarmos as hist6rias de tal forma que nos permitam obter seus beneficios em uma determinada direcao. HA outro problema a ser considerado quando se trata de hist6rias. Ao contrério das f6rmulas cientfficas, os contos produzem toda uma gama de efeitos evolutivos. Segundo © grau de preparacdo de um indivfuo ou de um grupo, as camadas sucessivas de uma hist6ria tomam-se aparentes.Fora de uma escola apropriada, que permita compreender o mé- todo e o contetido dos contos, nao ha, por assim dizer, qual- quer possibilidade de que um estudo arbitrario desses con- tos produza algum resultado. E necessdrio, pois, voltarmos a uma etapa anterior, que nos possibilite preparar-nos soli- damente para ver 0 valor do conto. E a etapa na qual pode- mos nos familiarizar com ele, considerando-o como um pa- ralelo consistente e produtivo de certos estados da mente, ou como uma alegoria deles. Os simbolos do conto sao seus personagens; a conduta dos personagens sugere 4 mente a maneira como a cons- ciéncia humana se comporta as vezes. Isto estabelecido, em termos de homens, mulheres, animais, lugares e movimen- tos manipulados num conto, podemos pér-nos em contato com faculdades superiores da mente, apesar de trabalhar- mos em um n{vel mais baixo: o nivel da imaginacao. A partir do ponto de vista que acima mencionamos, exa- minemos um ou dois contos. Comecemos com O elefante no escuro. Encontra-se entre as obras de Rumi e Sanai, foi publicado como hist6ria infantil e serviu, também, de argu- mento para um filme: O teste pelo tato. No nivel mais baixo possivel, este conto ridiculariza os cientistas e os académi- cos que procuram explicar as coisas apenas com o auxilio 21 de evidéncias que so capazes de avaliar — e de nenhuma outra forma mais. Em outro sentido, e no mesmo nivel, essa hist6ria é hu- moristica, pois nos faz rir da estupidez das pessoas que se apéiam em muito poucas evidencias. Como ensinamento fi- los6fico, diz que o homem é cego e que se esforca por de- terminar algo que, na verdade, é demasiado grande para ser medido com os instrumentos inadequados de que dispée. Sob o aspecto religioso, pode significar que Deus esté em todos os lugares e em todas as coisas, e que o homem d& nomes diferentes ao que lhe parecem ser coisas separa- das mas que, na verdade, sao partes de um todo mais am- plo, que ele ndo pode perceber porque é cego, ou porque no hé luz. Essas interpretagdes vao até onde normalmente se pode chegar. Por isso, as pessoas se aproximam desse conto baseadas em uma ou mais interpretagdes, que depois aceitam, ou questionam. Entéo podem sentir-se satisfeitas; j4 tem uma opiniao sobre o assunto: produziram sua resposta de acordo com seu condicionamento. Agora examinemos atentamente o mesmo conto e al- gumas de suas interpretagées. Alguns diréo que é uma ale- goria fascinante e comovente da presenga de Deus. Outros dirao que mostra como a humanidade pode ser estdpida. Alguns dizem que é antipedagégico; outros que é apenas um conto que Rumi copiou do Sanai; e assim por diante. J& que essas pessoas nao podem saborear um conto profundo, no podem sequer imaginar que ele exista Enquanto escrevemos estas palavras, a mente comum poder facilmente subestimé-las pensando que s&o apenas uma explicaco sofisticada para algo que nao pode ser com- provado. Mas nao estamos aqui para nos justificar. Estamos aqui para abrir a porta da mente a possibilidade de que as historias sejam documentos técnicos. Estamos aqui para di- zer que hé uma forma de utilizar estes documentos. Esta- mos aqui para dizer, principalmente, que o conhecimento 22 mais antigo e mais importante para a humanidade esté, em parte, contido nestes documentos e no que eles puderem fazer; e esta forma, por mais primitiva e fora de moda que possa parecer é, na verdade, a Gnica pela qual certos ensi- namentos podem ser armazenados, preservados e transmi- tidos. E estamos aqui para dizer, além disso, que essas hist6- tias s4o obras de arte conscientes, construfdas por gente que sabia exatamente o que estava fazendo, com a intencao de que fossem usadas por pessoas que soubessem exatamente ‘© que se podia fazer com elas. Um pensador convencional pode levar algum tempo pa- ra compreender que, se esté procurando a verdade e um ensinamento oculto, estes podem estar escondidos dentro de uma forma que, em sua busca, talvez seja a que ele con- sidere menos aplicével. Para poder captar esse conhecimento, porém, deve absorvé-lo onde realmente est4 e nao onde imagina que possa estar. Hé muitas provas do funcionamento deste método — 0 da histéria elaborada e transmitida deliberadamente — em todas as culturas. Nao precisamos restringir-nos as histérias orientais. Mas é nas hist6rias de origem oriental onde se en- contram as formas mais completas e menos deterioradas da tradig&0. Por isso mesmo,comecamos com elas. Elas nos le- vam, naturalmente, aos documentos significativos no mun- do ocidental e em outros ramos da tradicao ‘Ao nos aproximarmos do estudo das histérias, precisa- mos estar seguro da nossa capacidade de captar a informa- 0 ou a mensagem que algumas delas contém. Nese sentido, somos como pessoas cuja tecnologia caiu em desuso, redescobrindo as invengdes usadas por nossos antepassados, conforme v4 se desenvolvendo nossa capa- cidade para receber seus beneficios. Devemos observar que é necessério familiarizar-nos com certas hist6rias e reté-las 23 ‘em nossa mente como se estivéssemos memorizando uma férmula. Para este uso, a histéria de ensinamento se asse- melha a um recurso de memorizago que repetimos como uma ajuda para calcular algo como, por exemplo, “um qui- Jo é igual a 2,2 libras” ou “trinta dias tem setembro”. Uma vez que estamos diante de uma forma de conhe- cimento especifica, que jé est planejada para operar de de- terminada maneira e em certas condig6es, devemos com- preender que, se pretendemos usar as hist6iras coerentemen- te, essas condig6es devem estar presentes. Por coerentemente queremos dizer que a historia deverd ser 0 guia que nos pos- sibilitaré trabalhar através dos varios nfveis de consciéncia abertos para nés. Isso significa que no apenas devemos che- gar a conhecer certas histérias; devemos estud4-las ou familiarizar-nos com elas em uma certa ordem. As pessoas letradas, acostumadas que esto a fazer suas proprias leitu- ras acreditando que quanto mais lerem provavelmente mais saberao, tendem a opor-se a essa idéia. Mas esta aproxima- ¢4o quantitativa é absurda quando vocé esté diante de um material especifico, planejado para atuar de outra forma. Se vocé fosse Biblioteca do Museu Britanico e decidesse ler tudo 0 que lé existe para educar-se, no iria muito longe $6 um ignorante, ainda que no sentido formal, nao conse- gue compreender a necessidade da especializacao. Um bom exemplo disso é o do porteiro de um clube que, certa vez nos disse com muita seriedade: “Explique-me as leis da ro- leta, o senhor que é universitério”. para podermos conseguir alguma possibilidade de es- tudo correto que dizemos freqiientemente coisas assim: “Des- amos das 4rvores e comecemos a construir”, Até agora dissemos que: 1. Um ensinamento especial, efetivo e sumamente impor- tante est4 contido em certos materiais. Os materiais, neste caso, sdo as histérias. 24 ee 2. Devemos aceitar esta possibilidade para podermos comegar a aproximar-nos do estudo desse conhecimento. 3. Tendo aceito, mesmo que seja apenas como hipétese de trabalho, as afirmagées anteriores, devemos comegar o es- tudo de uma forma eficiente. No caso das hist6rias, a ma- neira eficiente 6 aproximar-se do material adequado, de forma correta e sob condigées corretas. A nao aceitacao desses princfpios tornaria impossivel fun- cionarmos no alto nfvel exigido. Se, por exemplo, nos limi tamos meramente a conhecer uma grande quantidade de his- t6rias, nos converteremos em contadores de histérias. Se nos limitamos ao ensinamento social ou moral da hist6ria, sim- plesmente repetimos atividades de pessoas que trabalham nesse dominio. Se comparamos as hist6rias, procurando ver ‘onde se encontra o nivel superior, nao o encontraremos por- que, a menos que sejamos guiados, ndo o percebemos. Pa- ra isso, precisamos saber que histérias comparar, sob que condigdes, o que buscar, se é que temos condigées de per- ceber 0 contetido oculto e em que ordem aproximar-nos do assunto. Assim’a histéria, mais do que outra coisa, continua sendo uma ferramenta; s6 0 especialista pode usé-la e com ela produzir algo de valor. Tendo ouvido e aceito as afirmagées anteriores, as pes- soas sempre se impacientam, querem pér maos a obra. Ao nao compreenderem, porém, que tudo exige um minimo de tempo, ou ao ndo aplicarem este ensinamento, anulam a pos- sibilidade de progresso num sentido real. Depois de ter esta- belecido em determinada ordem os fatos que antecedem, de- vemos prosseguir com um programa de estudo que nos per- mitir4 tirar proveito da existéncia desse maravilhoso acervo. Esta é, no momento, a etapa do empreendimento em que estamos empenhados. Advertimos, porém, que se comegarem a estudar in- discriminadamente o que tomam como histérias de ensina- 25 mento, o mais provavel é que obtenham apenas um peque- no resultado, embora conhecam os fatos j& mencionados. Por que é assim? Nao s6 porque vocés nao conhecem as condigées sob as quais o estudo deve realizar-se, mas por- que, além disso, estas condigdes exigem um recolhimento interior, que nao tem relagéo com o que é comumente ne- cessério para familiarizar-se com uma forma literdria. Por is- s0, devemos trabalhar com a mente para torné-la apta a fa- zer uso da hist6ria, assim como para apresentar-lhe a hist6- tia. Este trabalho da mente s6 é perfeitamente possivel na situagdo vivenciada, quando determinadas pessoas estéo agrupadas, de determinada maneira, desenvolvendo deter- minada forma de contato. Este, e nenhum outro, € o objeti- vo de se promoverem reunides em que pessoas estejam fisi- camente presentes. A Hist6ria DO CHA No tempo antigo, o ché nao era conhecido fora da Chi- na. Noticias de sua existéncia tinham chegado aos sabios e ignorantes de outros pafses, e cada qual tratava de investi- gar 0 que era, de acordo com o que queriam ou com o que pensavam que fosse. O rei de um pafs enviou um embaixador com sua co- mitiva 4 China, e o imperador chinés Ihes ofereceu ch4. Po- rém ao verem que os camponeses também o bebiam, che- garam a éonclusao de que nao era digno de seu real amo ®. aie disso, acharam que o imperador chinés estava ten- lando engané-los, fazendo outra substancia Passar pela be- bida celestial de que tanto tinham ouvido falar. macs eee de um outro pats reuniu toda a infor- Begg Bue Pode encontrar sobre o ché e chegou a conclu- que devia ser uma substancia que raramente se en- 26 contrava e que era diferente das que até entao eram conhe- cidas. Pois nao se referiam a ela como uma erva? Um liqui- do verde, negro, as vezes amargo e as vezes doce? Em alguns pajses, durante séculos, as pessoas prova- ram todas as ervas que conseguiam encontrar. Muitos fica- ram envenenados e todos estavam desiludidos, pois ninguém tinha levado a planta de cha as suas terras e, por isso, nao podiam encontré-la. Também beberam, inutilmente, todos os liquidos que conseguiram encontrar. Em determinado territério, um saquinho de ché era le- vado em procissao diante do piiblico enquanto as pessoas caminhavam rumo a suas obrigacées religiosas. Ninguém pen- sava em prové-lo. Na verdade, ninguém sabia como preparé- lo, ou que se podia preparé-lo; todos estavam convencidos de que o ché, por si s6, tinha uma qualidade magica — Derramem gua fervente sobre ele, homens ignoran- tes — disse-Ihes um homem sébio. Rapidamente o penduraram e pregaram no alto por- que,de acordo com suas crencas, fazer aquilo levaria & des- truicdio do seu cha. E isso mostrava, pelos menos para sua prépria satisfagao, que o homem era um inimigo de sua fé. No entanto, alguns deles, que haviam escutado o que o homem dissera antes de morrer, conseguiram um pouco de ché e o bebiam em segredo. Quando alguém lhes per- guntava: “— Que estéo bebendo?” — respondiam: “ — E apenas um remédio que tomamos para certa doenga”. ‘Assim acontecia no mundo todo. Algumas pessoas ti- nham visto o ché crescer e nao o reconheciam. Tinha sido dado a outras para beber, mas elas acharam que era bebida de gente comum. Tinha estado em poder de outras, que ve- neravam o ché e também seu recipiente. Fora da China, ape- nas umas poucas pessoas o bebiam, e s6 as escondidas. Foi ent&o que chegou um homem de conhecimento pro- fundo e disse aos vendedores de chd, aos que bebiam ch& e as demais pessoas: 27 — Aquele que prova, sabe. Aquele que néo prova, no sabe. Em vez de falar sobre a bebida celestial, néo digam na- da. Simplesmente oferegam-na a seus convidados.Os que gostarem, pedirdo mais; os que ndo gostarem, mostraro que néo esto inclinados a ser bebedores de ché. Fechem a ten- da da discussao e do mistério. Abram a casa de ché da ex- periéncia. Depois disso, 0 ché foi levado de um ponto a outro da rota da seda, e sempre que um mercador de jade, ou de pe- dras preciosas, ou seda, parava para descansar, fazia ché e 0 oferecia a quem estivesse por perto, quer conhecesse ou nao o cha. Este foi o comego das Chaikhanas, casas de ché que surgiram por todo o caminho, desde Pequim até Boca- ra e Samarcanda. Todos que provavam, sabiam. Observe bem que, no inicio, eram s6 os poderosos e os que pretendiam ser homens de conhecimento que bus- cavam a bebida celestial, e que também diziam: “Mas isto nao passa de folhas secas”, ou: “Por que fervem Agua, quan- do tudo que quero é a bebida celestial?”, “Como posso sa- ber 0 que é isto? Provem-me”, “Além do mais, o Iiquido nao tem cor de ouro, é ocre”. __ Quando, por fim, se soube a verdade,e quando se trouxe ch para que todos os que quisessem o provassem, os pa- péis mudaram, e os Ginicos que diziam as coisas que haviam sido ditas pelos poderosos e os inteligentes eram os idiotas consumados. E assim acontece até hoje. 28 CAPITULO Itt O MarzipA MDIA O CALIFA Haroun-el-Rachid, conversando com um mestre, disse: — Mestre, sabes que sou um buscador. Possuo tudo que quero, todas as coisas que a maioria dos homens trabalham para possuir. Por isso, deveria ter condigées de aprender mui- to, uma vez que estou livre das preocupacdes que absorvem a maioria das pessoas. — Tudo deve ter uma base — disse o mestre. — Tens a base para o poder, para governar os homens, para a auto- satisfacdo. Quando, porém, existe uma falta de bases essen- ciais, o homem néo apenas néo pode construir mas também, como tu, freqiientemente pensa que j4 possui essa base. — Entao ensina-me — disse o califa. — Primeiro te ensinarei a compreender corretamente a necessidade dessa base — disse 0 s4bio —, de outro mo- do nao aceitarés a prépria base daqueles que sabem. Recusou-se a falar mais, porque as coisas que estava prometendo s6 sdo ensinadas quando surge a oportunida- de de ilustré-las. Passaram-se varios anos antes que a oca- sido se apresentasse. Um dia o califa e o sdbio estavam jantando quando Ha- roun disse: 29 — Um marzipa como este me parece um excelente exemplo de como as descobertas humanas, se so boas, se difundem por todo o mundo, beneficiando a todos. — O califa — disse o sdbio —, desde a invengao do mar- zipa j6 se passaram milhares de anos e, universalmente fa- lando, as pessoas ainda nao estéo convencidas da excelén- cia dele, além do mais, h& muitos que nem sequer ouviram falar do marzipa. Aborrecido com provocacao tao evidente, o califa dis- se ao mestre: — Dou-te um dia para justificar essa afirmago tao ir- responsével. Encontra até amanha a noite uma pessoa que no saiba o que é marzipa e traze-a aqui, ou te afastarei da minha companhia — Assim 0 farei — disse o sbio — e nao por tua amea- ca, mas porque esta é uma oportunidade para ilustragao. Na manha seguinte, saiu as ruas de Bagdé e caminhou até se encontrar com um camponés vestido com muita sim- plicidade que, vagueando como se estivesse num sonho, le- vava um pedaco de pao na mo. — Para onde vais e de onde vens? — perguntou-lhe © sébio. — Nao se aproxime! — exclamou o homem. — Ouvi falar de pessoas como tu que querem roubar meu pao. — Ao contrério — disse 0 sébio —, quero te mostrar uma coisa deliciosa, muito melhor do que o pao. — Por que quereria fazer isso? — perguntou 0 cam- ponés — Para te ajudar a sab Sj posts | er mais e para ajudar outra pes- 5 os cea cece eect convencé-lo, levou » quando viu os guardas com seus aderecos resplandecentes, os vizires e as fontes de mar- More, prostrou-se e gritou 30 — Isto s6 pode ser um tempo e um lugar! Este é 0 dia da ressurreicao e este € 0 salao do jutzo de Deus Todo-po- deroso! — Estés julgando tudo da melhor maneira que podes — disse o sébio — mas 4 incorreta. E disse muitas outras coisas ao homem, que nao fazia mais do que olhar para ele sem nada entender. Quando se sentaram ao lado do califa, o sébio explicou que tinha trazido um homem que nao conhecia o marzipa. — Comprovaremos isso — disse o califa. Dirigindo-se ao camponés, falou: — Que tens na mao? — Comida — respondeu o homem. O califa fez um gesto e marzipa foi trazido. — Isto é uma coisa nutritiva? — perguntou o califa. — 0 sfbio de nossa povoacao — disse o camponés — sempre fala do que € nutritivo como sendo tamaras, gua e experiéncia. Conhego témaras e 4gua, de modo que isso deve ser experiéncia. sébio levantou-se. — O califal Este homem usa as bases de conhecimento de sua aldeia para explicar coisas que ndo pode entender sem explicacdes mais completas e experiéncias maiores. Nao tem necessidade de marzipa. Se a tivesse, teriamos de dar- lhe mais informagdo, mais bases para compreendé-la. De maneira semelhante, o homem sofisticado gosta de coisas, ¢ até mesmo da promessa de coisas, que se desen- volvem sobre bases que ele no possui, ou que passam des- percebidas em seu meio ambiente Os SETE IRMAOS Era uma vez um homem sdbio que tinha sete filhos. En- quanto cresciam ensinou-lhes tudo o que pode, mas, antes de poder completar sua educago, percebeu algo que fazia 31 com que a seguranca deles fosse mais importante. Perce- beu que uma catéstrofe estava prestes a desabar sobre seu pais. Os jovens eram ousados, e no se podia confiar total- mente neles. Sabia que se dissesse: “Uma catéstrofe nos ameaca’, eles responderiam: “Ficaremos aqui contigo para enfrenté-la”. ‘Assim, disse que cada um deles deveria realizar uma mis- so, e que partiriam imediatamente. Mandou 0 primeiro para © norte; o segundo, para o sul; o terceiro, para o oeste; e o quarto, para o leste. Os outros filhos, mandou-os em dire- des desconhecidas. Tao logo partiram, o pai, usando seu conhecimento es- pecial, conseguiu chegar a um pafs longinquo para concluir certo trabalho que havia interrompido devido a necessidade de educar seus filhos. Quando conclufram suas missdes, os quatro primeiros filhos voltaram a seu pais. O pai tinha planejado de tal ma- neira a duracdo de suas tarefas, que estariam ocupados com elas, em seguranga e muito longe, até que lhes fosse possf- vel voltar para casa. De acordo com suas instrucées, os filhos voltaram para © lugar onde tinham passado a juventude. Mas agora nao se reconheceram um ao outro. Cada um afirmava ser filho de seu pai, e cada um se recusava a crer nos outros. O tem- Po 0 clima, os sofrimentos e os excessos haviam feito seu trabalho, e a aparéncia dos homens tinha mudado. dda ota 4 a pondo tao fortemente, cada um deci- ae eee sua estatura, sua barba, a cor da nao detrou na de falar, que haviam mudado, um irmao risse a carta de seu pai, que conti- nha a solugao para seu roblema ieee Pr € para o restante de sua Tamanha era a sabedor to isso. Sabia que en Preender que tinham ria do pai, que ele havia previs- quanto nao fossem capazes de com- mudado muito, nao poderiam apren- 32 der mais nada. A situagéo, no momento, é que dois dos fi- Ihos se reconheceram, embora apenas superficialmente, ¢ abriram a carta. Estdo procurando adaptar-se ao fato de que 0 que acreditavam ser fundamental, na verdade, na forma como eles o usam, so superficialidades sem valor; o que durante muitos anos valorizaram como as préprias raizes de sua importéncia, podem ser, na realidade, sonhos vaos e es- tdpidos. Ao observé-los, os outros dois irmaos nao estao con- vencidos de que estejam melhorando gracas a sua experién- cia, e nao querem ler a carta. Os trés irmaos que partiram em outras diregées ainda n&o chegaram ao local do encontro. Quanto aos quatro primeiros, passaré algum tempo até que compreendam, verdadeiramente, que os meios de so- breviverem em seus exflios, as superficialidades que consi- deram importantes, sao exatamente os obstdculos para atin- girem a compreensao. Todos ainda estao longe do conheci- mento. INTRODUGAO A HISTORIA DOS COFRES DE OURO H& uma enorme quantidade de conhecimento valioso oculto na literatura e em narrativas tradicionais de uma ou outra espécie. Hoje em dia, estas sao conhecidas como fa- bulas, contos populares, lendas, etc. Materiais filos6ficos desse género, ao encarnarem as tendéncias do ser humano soba forma de personagens dos contos, dao consisténcia ao ensi- namento. Ao se familiarizarem com essas combinagdes de relagdes mentais ilustrativas, as pessoas podem aprender coi sas que, de outro modo, teriam que aprender através de anos de observagao ou de estudo interior. 33 Esses ensinamentos tém sido corrompidos por autores que lhes dao um estilo literario ou narrativo que consideram melhor. Seu valor também se perde quando s§q interpreta- dos a um nivel mais baixo. Exemplo disso é © conto que pos- sui to somente uma moral. Em nossos estudos, restauramos a estrutura que foi obs- curecida e enfatizamos a necessidade de se conhecer a his- t6ria, nado apenas para inteiray-se dos significadgs faceis e, na verdade, superficiais. Tome esta hist6ria, da mesma forma que outras deste livro, como se fosse sua propriedade, de modo que tenha um valor imediato, e pouco a pouco, quando seu efeito co- mecar a atuar sobre sua compreensao, seja de maior utilida- de para vocé. Os COFRES DE OURO Era uma vez um rico mercador que partiy para uma Jon- ga viagem deixando seu criado encarregado de seu dinhei- ro. Antes de pér-se a caminho, um homem astuto ouviu-o dizer ao criado: — Deixo tudo em suas maos. No quarto onde guardo minha fortuna, tenho cem cofres. Em cada cofre h4 cem pecas de ouro. Cuide bem delas até que eu volte. O homem astuto tratou de tornar-se amigo do criado. Com freqiiéncia ambos se reuniam para tomar café. — Sou meio alquimista — disse um dia o homem astu- to. — Se conseguir uma pega de ouro, posso transformé-la em duas. A principio, 0 criado nao acreditou nele. Passado algum tempo, porém sentiu-se tentado e achou que poderia fazer uma experiéncia usando 0 dinheiro de seu amo. 34 — Afinal — disse-Ihe o homem astuto — voc 36 0 to- ma emprestado, e o mantém em suas maos enquanto durar nosso encontro no café. Se ndo se multiplicar, o que € que vocé perder? Por fim 0 criado concordou. Pegou uma pega de ouro do tesouro de seu amo e pés numa caixa, engenhosamente construida, que o alquimista tinha levado. Poucos segundos depois, quando abriram a caixa, havia duas moedas de ouro. Estimulado por isto, e depois que a outra moeda de ouro lhe foi presenteada, o criado perguntou ao alquimista se po- dia repetir 0 processo. — Claro — disse o homem astuto — mas existem cer- tas regras: primeiro vocé deve tirar uma moeda de cada um dos cofres, nao importa quantos sejam, e trazé-las aqui. © criado fez o que lhe tinha sido dito e, uma a uma, as cem moedas se transformaram em duzentas. — Agora — disse o sem-vergonha — vocé deveré obe- decer & seguinte regra: a moeda transformada nao devera voltar ao mesmo cofre. Consiga outra caixa e coloque nela as duzentas moedas. A seguir, use o contetido da nova cai- xa até que acabem as cem moedas que sao suas. Obviamen- te, isso faré com que a fortuna de seu amo permanega inta- ta, e vocé teré ganho cem moedas de ouro. O criado fez o que Ihe tinha sido dito. Comegou a gas- tar sua parte e descobriu que as novas moedas eram real- mente de ouro e eram aceitas em todas as lojas. Nunca em sua vida tivera tanto dinheiro, e gastou muito em bebida e em prazeres pessoais, animado pelo alquimista, que lhe dis- sera: — Logo que as cem moedas de ouro acabem, podere- mos repetir 0 processo. antes, nao Quando seu amo regressou, 0 criado j& era dependen- te do dlcool. Ao vé-lo, o mercador perguntou: 35 — Que espécie de criado é vocé? Imagino que gastou todo meu dinheiro com vocé mesmo. — Ao contrério — murmurou o criado — eu o multi- pliquei (O mercador correu a inspecionar o tesouro e, aparen- temente, pelo que péde ver, parecia nao faltar nada. Nesse momento, o homem astuto apareceu e lhe disse: — Dé-me o dinheiro que guardou para mim. — Que dinheito? — perguntou o mercador. — Nunca vi vocé em toda a minha vida. E comegou tamanha discussao que a policia chegou e 0 levou para depor perante o juiz. — Quanto vocé diz que é?— perguntou o juiz — Dez mile cingiienta pecas de ouro. Noventa e nove em cada cofre. E outra caixa com cento e cingiienta moe- das — respondeu o homem astuto, que estivera controlan- do © que 0 criado gastava — Isso é mentira e posso provar — disse o mercador. — Tinha cem cofres, com cem moedas em cada um, que deixei aos cuidados de meu criado. De modo que estaéa quantidade, sao dez mil moedas no total, ou pouce menos do que isso se o criado me roubou. Nao pode haver mais, como este homem afirma. se ow ae oe © ouro fosse contado. Verificou- cae exatamente a0 que o ladrao dizia. O riado, Privado da razio por causa da bebida, nao foi aceito como testemunha. O juiz ordenou que todo o tesouro passasse para as m4os do homem astuto. , que se transformot i o late maeinee uw num cidadéo popu 36 CAPITULO IV O JARDIM MA VEZ, QUANDO a arte e a ciéncia da jardinagem ainda nao estavam bem estabelecidas entre os homens, havia um mestre jardineiro. Além de conhecer as propriedades das plantas, seu va- lor nutritivo, medicinal e estético, fora-Ihe concedido 0 co- nhecimento da erva da longevidade, e ele viveu muitas cen- tenas de anos. Durante geracées, visitou jardins e cultivou terras em todo o mundo. Num lugar, plantou um jardim maravilhoso. Ensinou as pessoas a cuidarem dele e ensinou-lhes também a ciéncia da jardinagem. Porém, ao se acostumarem a ver que algumas plantas cresciam e floresciam todos os anos, logo se esqueceram de que as sementes de algumas preci- savam ser recolhidas, que outras se multiplicavam por ga- Ihos, que outras precisavam de mais dgua, etc. O resultado foi que, com o tempo, aquele jardim se tor- nou selvagem e as pessoas comecaram a achar que era o melhor jardim que podia existir. Depois de dar-lhzs muitas oportunidades para aprenderem jardinagem, o jardineiro ex- pulsou essas pessoas e recrutou outro grupo completo. ‘Advertiu-os de que, se no mantivessem o jardim em ordem e nao estudassem seus métodos, sofreriam por isso. 37 Estes, por sua vez, também esqueceram a adverténcia e, como eram preguicosos, cuidaram s6 das plantas que da- vam frutos e flores com facilidade e deixaram as outras mor- rer. De tempos em tempos, alguns dos primeiros que tinham aprendido voltavam, dizendo: “Devem fazer isto e aquilo”, mas eles os afastavam gritando: “Vocés é que estdo longe da verdade neste assunto”. O mestre jardineiro persistiu. Onde péde, construiu ou- tros jardins, mas nenhum era perfeito, exceto o de que ele mesmo cuidava com seus principais assistentes. Quando se soube que havia muitos jardins e também muitos métodos de jardinagem, as pessoas de um jardim iam visitar as de outro para aprovar, criticar ou discutir. Escreveram-se livros, realizaram-se assembléias de jardineiros, e estes organizaram- se em categorias, de acordo com o que pensavam ser a or- dem correta de prioridade. Como é comum entre os homens, a dificuldade dos jar- dineiros reside no fato de serem atrafdos com demasiada fa- cilidade pela superficialidade. Dizem: “Gosto desta flor”, e querem que todos gostem dela também, e, apesar de seu encanto ou abundancia, pode ser uma erva que esteja asfi- xiando outras plantas que poderdo fornecer remédios ou ali- mento de que as pessoas e o jardim necessitam para seu Sus- tento e sobrevivéncia. Existem, entre esses jardineiros, os que preferem plan- tas de uma dnica cor. Estas, eles as qualificam como “boas”. Hé outros que s6 cuidam das plantas e se recusam a ocupar-se dos caminhos ou das entradas, ou até mesmo das cercas. Quando, finalmente, o velho jardineiro morreu, deixou como heranca o conhecimento completo da jardinagem, distribuindo-o entre as pessoas que compreendiam, de acordo com suas capacidades. Assim, tanto a ciéncia como a arte ae Jardinagem ficaram como uma heranca dispersa em mul- ‘os jardins, e também em alguns relat6rios que se fizeram sobre eles 38 As pessoas que foram iniciadas em um ou outro jardim haviam sido profundamente instrufdas a respeito dos méri- tos ou defeitos do mesmo, de acordo com 0 modo de ser dos que habitam ali, embora esses habitantes, apesar de fa- zerem um débil esforco, sejam incapazes de perceber que devem voltar ao conceito de “jardim”. Na melhor das hipéteses, geralmente apenas aceitam, rejeitam, ou evitam julgar, ou buscam o que eles imaginam que sao os fatores comuns. De tempos em tempos, aparecem verdadeiros jardinei- ros. £ tal a abundancia de semi-jardineiros que, quando as ‘as ouvem falar de um jardim verdadeiro, dizem: “Oh, ‘sim! Voce fala de um jardim igual ao que nés temos ou ima- ginamos”. Tanto o que tem como o que imaginam é imperfeito. Os verdadeiros conhecedores, que nao conseguem ar- gumentar com os pseudojardineiros, em sua maioria asso- ciam-se a eles, pondo neste ou naquele jardim uma parte da totalidade, o que permitiré manter sua vitalidade até cer- to ponto. Freqiientemente, veem-se forcados a disfarcar-se, j6 que as pessoas que querem aprender com eles raramente saben algo a respeito do fato de que a jardinagem, como arte como ciéncia, forma a base fundamental de tudo o que ouviram antes. Por isso formulam perguntas como esta: “Que posso fazer para obter flores mais bonitas destes bulbos?” Os verdadeiros jardineiros podem trabalhar com essas pessoas porque as vezes é possivel fazer com que verdadel- ros jardins surjam para beneficio de toda a humanidade. Nao duram muito, mas é s6 através deles que o conhecimento pode ser realmente adquirido ¢ as pessoas podem chegar a ver o que um “jardim” realmente 6. 39 Dez Pontos PARA REFLEXAO 1. Coisas que so opostas exteriormente podem estar ope- rando juntas interiormente. 2. Uma pessoa pode avaliar ou julgar certas coisas somente se tiver a experiencia necesséria para fazé-lo. 3. Dimensées diferentes das que nos sao familiares estao su- jeitas a um ritmo que nos parece excéntrico. 4. Se uma coisa superior é colocada em linguagem inferior, pode perder seu valor efetivo 5. Todos os sistemas sao temporérios; sao vefculos. Somente a ignorncia relativa procura tornar permanente um sistema, ou converté-lo num fim em si mesmo. 6. As pessoas ignoram amplamente os erros que cometem em pensamento e aco, mesmo quando se véem diante de um material correto e muito preciso de ensinamento. 7. O primeiro objetivo dos grupos e estudantes é preparar 9 terreno no qual podem ocorrer certas experiéncias supe- riores. Se o terreno for defeituoso, a eficécia e a agéo tam- bém o sero. 8. e eee correto em companbhia incorreta; aga incor- aos ae correta; companhia incorreta no tempo caracteriza muitas das oportuni eee portunidades perdidas 9.C 3 = ‘omparar formulagées atuais com formulagées do pas- ‘© nao tem utilidade alguma, 40 10. A literatura, da mesma forma que os conceitos, exer- cicios e impactos sensoriais, tem fungées especiais. Deve ser estudada t&o cuidadosamente como qualquer outra coisa que tenha um contetido de efeitos méltiplos. REQuisiTos PARA O EsTUDO 1. O estudo de idéias e as conversas e pensamentos relati vos ao referido estudo deve equilibrar-se com a pratica no tempo correto. O intercambio do grupo deve incluir exerci- cios, assim como leituras, perguntas e outras coisas que se- jam prescritas. 2. Um grupo é selecionado e seus membros s4o harmoniza- dos de acordo com um esquema que é superior & mera reu- niZo de um ntmero de pessoas interessadas. 3. Estudos prescritos para certos individuos e grupos sao para esses grupos e individuos. Nenhum padrao fixo de idéias ou prética pode ser aplicado a todos os grupos e individuos sem que produza um adestramento e nao um desenvolvimento 4. Ea escola que estabelece o que deve ser estudado, seu contetido, e a forma e o método pelo qual o referido estudo deve ser dado e feito. Estudantes individuais e grupos nado participam de tais decisdes. 5. Uma parte integrante do estudo é compreender quais os elementos nele usados (idéias, postulados, objetos, exerci- clos) que podem ser familiares para um individuo ou grupo, embora 0 uso que Ihes damos nao thes seja familiar. Estes tém de perceber, portanto, que, por exemplo, um simbolo de nosso sistema nao é um meio de condicionamento e que 41 a literatura é suscetfvel de muitos usos, dos quais somente um 6 a transmissao de um dogma ou de uma informagao. 6. Preparar-se para o estudo € tao importante como o pré- prio estudo . Falando de um modo geral, ndo encontramos pessoas num estado em que possam beneficiar-se, de ime- diato, com o estudo do terceiro domfnio. Primeiro tem que esquecer determinados hdbitos; estes hébitos pertencem ao segundo dominio. 7. Muitos principios e praticas podem ser aplicados na vida diéria, porém isto deve ser feito cuidadosamente, e sempre mediante prescrico, néo ao acaso. E tampouco por indivf- duos que resolvem decidir onde, quando e como tém de apli- car os principios em sua vida diéria. Se tentarem fazé-lo, seus esforcos os farao regredir ao segundo dominio. 8. A finalidade do ensinamento em sua fase atual é introdu- zir, concentrar e manter, tanto quanto possfvel, a operagéo de um sistema de estudo que, no presente, nao est4 repre- sentado nesta érea cultural. Isto est4 sendo realizado em forma prépria, na sua prOpria graduagao de tempo, e por meio de seus préprios impactos 9.0 objetivo do ensinamento é tornar acessivel ao homem os meios pelos quais conhega mais sobre si mesmo, para que Possa ser capaz de compreender o que pode ser e fazer, Porqué. Este ensinamento destina-se a possibilitar o desen- volvimento do homem em um nfvel superior, o que ele s6 experimenta esporadicamente e de um modo fugaz. 20. Mee posse estudar este ensinamento por partes ou ae pists Preconcebidas. Os estudantes tem que se- pete Cuja totalidade produz o resultado de que se omar partes isoladas deste ensinamento, tentar 42 ee sistematiz4-lo ou, com as ferramentas intelectuais disponiveis, estudar fragmentos do ensinamento que fazem parte de um programa total, fardo o aluno regredir inevitavelmente ao se- gundo dominio. Também as opinides sobre “nés”, basea- das em mexericos ou suposicées, fazem o aluno regredir a0 segundo dominio. 11. Os alunos, independentemente do tempo que dedica- ram ao estudo, carecem de muitos elementos que os capa- citariam a valorizar o ensinamento. Tém, por isso, que se familiarizar com partes do ensinamento que ignoram e que poderiam nao reconhecer a principio. Essa é a razdo pela qual este ensinamento nao pode ser apresentado em forma reconhecidamente sistematizada: o aluno carece de um 6r- go capaz de perceber seu sistema. 12. E dever do mestre provocar os fatores precisos e de ex- periéncia que capacitardo o aluno a fazer uso do ensinamento e entendé-lo. 13. O trabalho que se esté realizando neste momento esté sendo efetuado com base nas regras anteriormente mencio- nadas. OpiniAO E FATO Um mestre que conhecia o caminho da sabedoria foi visitado por um grupo de buscadores. Encontraram-no em um pétio, cercado de discfpulos, em meio ao que parecia ser uma festa. Alguns dos buscadores disseram: — Que ofensivo. Seja qual for o pretexto, isto ndo é maneira de se comportar. 43 — Isto nos parece excelente — disseram outros. — Gos- tamos desse tipo de ensinamento e desejamos participar dele. \ E outros disseram: — Estamos meio perplexos e queremos saber mais so- bre este enigma. — Pode haver alguma sabedoria nisto, mas nao sabe- mos se devemos perguntar ou néo — comentaram entre si os demais. O mestre afastou-os a todos. Todas estas pessoas, em conversas e por escrito, espa- Iharam suas opinides sobre o ocorrido. Mesmo aqueles que nao falaram por experiéncia direta foram influenciados por isso, e suas palavras e obras refletiram sua opiniao a respeito. Algum tempo depois, alguns membros desse grupo pas- saram novamente por lé e foram ver o mestre. Parados a sua porta, observaram que, no patio, ele e seus discfpulos estavam agora sentados com decoro, em pro- funda contemplacao. — Assim esté melhor — disseram alguns dos visitan- tes. — E evidente que aprenderam alguma coisa com nos- 50s protestos. — Isto é excelente — falaram outros — porque, na til- tima vez, sem sobra de dtivida, ele s6 estava nos pondo & Prova. — Isto é demasiado sombrio — disseram outros. — Po- diamos ter encontrado rostos sérios em qualquer lugar. E houve outras opinises, faladas e pensadas. Quando terminou 0 tempo de reflexo, 0 sébio mandou todos os vi- sitantes embora. Muito tempo depois, um pequeno némero deles voltou para pedir sua interpretagao sobre o que haviam observado. Apresentaram-se diante da porta e olharam Para den- tro do patio. O mestre estava sentado, sozinho, nem divertindo-se, nem em meditacao. Em parte alguma se via seus discipulos anteriores. 44 — Agora podem escutar a hist6ria completa — disse lhes. — Pude despedir meus discfpulos, j4 que a tarefa foi realizada. Quando vieram pela primeira vez, o grupo tinha estado demasiadamente sério. Eu estava aplicando 0 corre- tivo, Na segunda vez em que vieram, tinham estado dema- siado alegres. Eu estava aplicando o corretivo. Quando um homem est& trabalhando, nem sempre se explica diante de visitantes ocasionais, por muito interessados que eles acre- ditem estar. Quando uma ago est4 em andamento, o que conta é a correta realizado dessa acao. Nestas circunstan- cias, a avaliagao externa se torna um assunto secundario. Cinco Pontos NAO CoNnHECIDOS Deve-se dispensar cuidadosa atencao a estes pontos, pa- ra que, em teoria, se tormem tao familiares quanto a maioria das outras idéias que conhecemos. 1. A semelhanca de um canal, todos os alunos tém uma fun- do a desempenhar, que é transmitir seus conhecimentos. Isto consta de duas partes: a transmissdo de dados precisos quando lhe sao solicitados, a transmissao por meio da “trans- misso direta”, por meio de uma boa disposicao; ou proje- tando aquelas coisas que estdo estudando, quer as compreen- dam ou nao. A interpretacao nao é fungao de um canal 2. Individuos e grupos realizam estudos para que algo possa crescer neles. Este é um esforco deliberado em direcao a evo- lugo. Estes individuos e grupos também podem esperar que, se uma pessoa ou grupo estao corretamente alinhados com © trabalho, certa forma de conhecimento pode ser-lhes trans- mitida diretamente a partir da fonte do conhecimento. 3. Devemos destacar que é de suma importancia levar em consideraco 0 lugar, o tempo e as pessoas. A paciéncia, cultivada como uma virtude na maioria das formulacées re- 45 ligiosas, 6, em realidade, praticada originalmente para po- der livrar-se da agao e do pensamento inttil que as pessoas produzem quando nao percebem que o que conta é a oca. si, n&o o esforco constante, nem a preocupacio, etc. Deixar de observar isto provoca a invasao da enfermi- dade que faz com que as pessoas imaginem que suas emo- Ses sao fé religiosa. 4. Se vocé esté estudando ou se familiarizando com mate- riais prescritos, chegou a um ponto mais avancado do que o estudo ao acaso. Nao pode misturar os dois estudos. Esco- her seus pr6prios materiais de estudo, quando jé se encon- tra na fase do terceiro dominio, pode ser realmente prejudicial: 5. Colocar-se em relago direta, por meio de um esforco in- terior de vontade, com o ensinamento e todos os mestres, pode ajudar a transmissao direta do conhecimento. Por esta razo, devemos sempre lembrar que a obsessao por um in- dividuo ou por uma fonte de informagao é errada. Existe uma diferenga entre a especializag&o em certos estudos e a obsessio por eles. A forma de vencer este obs- téculo esté em buscar instrucdo precisa por meio do esforco direto, nao em misturar estudos de livros ou exercicios sim- plesmente porque se encontram em nosso campo, sem an- tes conhecer suas aplicagdes especificas. Os mestres existem para ajudar os alunos a se mante- rem no caminho correto. FUNCAO DE ExERCIcIOS E TECNICAS As técnicas religiosas, psicolégicas e filos6ficas — tais como a oracao, exercicios, meditago, contemplacéo, mo- 46 vimentos fisicos, recitagdes e, inclusive, assuntos relativos 4 organizagao — tém uma origem. Essa origem é uma fonte de conhecimento que sabe o efeito que podem ter as técnicas e as atividades, por quem estas tém de ser aplicadas, e de que forma. Se isso é certo, e nés afirmamos que é, pode-se ver que, provavelmente, a adogao destas técnicas ao acaso nao iré causar 0 efeito desejado. Mas os resultados desta situacao sao ainda piores. Longe de causar 0 efeito desejado, o uso de técnicas numa ordem que nao seja a correta para uma determinada comunidade, fora do tempo apropriado ou por meio de repeticao, real- mente condicionaré ou adestrar4 as pessoas para se com- portarem de forma automética, nao importa o que pensem a respeito do que esto fazendo. Se a primeira afirmagao, relativa a origem do conheci- mento, nao pode ser verificada facilmente, a segunda, refe- rente ao automatismo, pode ser comprovada. Ao submeter um grupo de pessoas a exercicios que se acredita terem cer- tos efeitos inevitdveis, voc® suscitaré nelas, ou em grande parte delas, a crenca de que aquele efeito jé esté se produ- zindo, e vocé as est condicionando a esta crenca. A aplicacao automitica de cursos de estudo de suposta aplicagao universal 6, de fato, a degeneracdo de um sistema de ensino, ou de uma série de sistemas. As pessoas costu- mam copiar coisas que Ihes foram ensinadas parcialmente, ou que leram, sem se lembrar da necessidade imperiosa do direcionamento consciente desse trabalho. O resultado é a disseminacao de sistemas, todos origi- nalmente valiosos, mas nenhum de aplicacdo universal. Um individuo que sabe a respeito das bases originais dos exercicios, etc., poder4, ao observar a forma com que so aplicados, deduzir imediataménte 0 tipo de comunidade para © qual determinados exercicios foram originalmente indica- dos. Acontece, com muita freqiiéncia, que as pessoas este- 47 .cées que pertencem a outra cultura, que nao é a delas, e que foram transferidas, “importadas”, cultura, ou estejam empregando técnicas que se- riam aplic4veis a seus antepassados ou descendentes. Em cada época, a tarefa daqueles que conhecem a ori- gem e a fungao dos exercicios e de outros procedimentos é oferecer formulas adequadas aos que esto interessados e Aqueles que tém certa potencialidade. Essa tarefa é difi- cultada pelas formas antiquadas, que séo consideradas sa- gradas devido & sua antiguidade, e ao habito adquirido por parte dos praticantes. Um segundo mal-entendido que tra- dicionalmente reforca a ignorancia sobre a flexibilidade dos exercicios e das técnicas, é a adogao literal de uma verdade relativa. Por exemplo, quando se diz a uma classe ou a um individuo: “este exercicio € muito importante, essencial, o nico, etc.”, isto geralmente é feito desta forma para ajudar a fixar a atencao do aluno, nao para que ele acredite nisso literalmente, nem para que chegue a conclusdo de que en- controu uma chave magica. ‘A chave magica de um homem é a pedra no moinho do outro Por conseguinte, a tarefa do aluno é: jam apegadas a formulat para sua a. Lembrar-se da afirmacao de que os exercicios so funcio- nais e nao totalmente invioléveis; b. reconhecer que uma atividade pode ser absolutamente coreta no sentido de que deve ser realizada como se fosse @ coisa mais importante no momento; ¢. evitar misturar os estudos dirigidos com estudos feitos por si mesmo, ao acaso, a menos que seja autorizado a isso; d. lembrar-se de que o i que pode ajuda-lo atrapalhé.lo em patra pode ajudé-lo em uma etapa pode 48 e. lembrar-se de que o que pode ajudé-lo pode atrapalhar outras pessoas; £ lembrar-se de que 0 que pode ajudar ou atrapalhar outras pessoas pode, da mesma forma, em lugar diferente, em ou- tra hora, etc., ajudar ou atrapalhar ele mesmo Estas so algumas das razdes pelas quais seus estudos devem ser dirigidos. Finalmente, a diregdo de seus estudos nem sempre es- tar de acordo — as vezes sim, mas freqiientemente nao — com 0 que ele imagina que deveria ser ou como ele pensa que deveria ocorrer. 49 Ee CAPITULO V Nove PONTOS IMPORTANTES O SER HUMANO, como todas as coisas vivas, esté dentro de um processo continuo. Devido a sua forma de ver as coisas, s6 percebe uma parte desse processo. Devido a esta percep¢ao incompleta, a vida, com freqiiéncia, lhe parece sem sentido. Através dos tempos, alguns individuos e grupos chegaram, de um mo- do ou de outro, a ter consciéncia da coeréncia interna da existéncia. Sua tarefa foi, e continuaré sendo, mostrar a ou- tras pessoas de que maneira podem adquirir essa percep- 40. Para ajudar as pessoas a compreenderem, a “cresce- rem”, e a alcangarem certo desenvolvimento, estes indivi- duos melhor informados tém oferecido sempre os meios ne- cessérios. Estes meios, que inchuem técnicas de natureza psi- colégica, tém uma fungdo tanto interna como externa. A apa- réncia exterior, na forma de escolas de filosofia, religides e cultos de toda espécie, foi sempre adaptada as necessida- des e possibilidades da cultura, ao tempo e ao lugar em que © trabalho foi executado. Para transmit isto, foi dado a todo o mundo um ensi- namento projetado para capacitar individuos aptos a progre- direm. Logo que o processo se completou, a forma exterior — sob a aparéncia de um ritual, de uma religiao, como co- 51 mumente as pessoas & entendem, e de metodologias espe- ciais — persistiu de maneira repetitiva. Isto se pode compa- rar 3 cépsula vazia de uma crisélida ou ao revestimento de uma pflula. ‘Sem se aperceberem do fato de que o ensinamento ado- ta, em cada ocasido, uma forma especial, transit6ria e de li- mitada duracdo, as pessoas nao aperfeigoadas continuaram usando a carapaca exterior. Podem ter acreditado que, persistindo com o tradicio- nalismo externo, continuavam realmente mantendo a inte- gridade de sua religiao ou culto. Podem ter acreditado que, caso se esforcassem o suficiente, poderiam extrair, do pu- nhado de material que haviam herdado, algo de sua essén- cia. Pode ser que, em alguns casos, tenham sido desones- tos o bastante para usar o ritual, a forma e a tecnologia uni- camente para manter uma comunidade submissa e té-la a seu servico. Qualquer que seja a razo, os materiais com que estiveram trabalhando numa situagéo como a descrita tomaram-se inutiliz4veis. De fato, esses materiais nao podem ser usados porque, devido a necessidade interior, existe a constante exigéncia de uma formulag4o atualizada. E somente este ensinamento € 0 auténtico: o Trabalho. Como a capacidade de atengdo, no homem, é limita- da, faz-se necessério enfatizar os fatores anteriormente men- cionados, para que o individuo que quer aprender possa rom- Per sua relacéo com um ou mais envoltérios preliminares da Mensagem e empregar sua atengao com maior proveito, re- cebendo a forma viva do ensinamento. Bae citteee! uma diferenga clara e imediata entre eee forma viva e em desenvolvimento da mente culpa d na e sua mera imitago. Néo & necessaria~ tran, Culpa do individuo ter sido adestrado para se concen- Bose easbes e repeticées, no culto psicolégico ou reli- que esteve seguindo, mas, ao ter sido informado so- 52 if nhecida e essa diferenga deve ser co! 7 Nao é de nenhuma utilidade ter uma linguagem comu 2 a respeito de teorias, a no ser que a linguagem se re percepcoes. Daf a necessidade de alcan : os fendmenos da atencao superior, ou Real car e de se familiarizar com st capfruLo ill A SITUAGAO E SUAS NECESSIDADES ODA A RACA humana é um organismo. H& algo que impregna este organismo e que é respons4vel por seu desenvolvimento. Esse elemento dé lugar a certa espécie de capacidade para um desenvolvimento em um nivel superior. Camo este organismo, em sua totalidade, est& em um estar do de tremenda desuniao, nao é possfvel que o organismo inteiro se desenvolva de uma forma comum. E assim que a raga humana se assemelha, de muitas maneiras, a outras formas de vida organizada, como as plan- tas. Dos milhdes de sementes que uma série de plantas es- palham pelo chao, algumas germinam e outras nao. Aque- las que germinam crescerao e se desenvolverao de acordo com a sua natureza interna e também em harmonia com as condigées externas, tais como o clima. No caso da comuni- dade humana, hé duas formas de se realizar este desenvol- vimento. A primeira é casual, a segunda é deliberada. A es- ta ditima, em sua forma mais elevada, chamou-se “Evolu- ¢o Consciente” na a antes = de oe se resume assim: a raga huma- antes quo umn ser humane possa ciasr que é lnse, ou poses fnthulares sonbor dolseu’dastne, = 133 O conhecimento do lugar do homem no universo e da natureza desse universo é o tinico conhecimento que pode fazer com que o homem seja livre, e, também, capaz de rea- lizar um verdadeiro progresso rumo a uma forma superior de vida. Os dois dominios — aquele que veio antes e aquele que vem depois — tém de ser conhecidos antes que o ser hu- mano possa compreender a si mesmo, a sua vida, e a pré- pria vida, mas nao podem ser explicados por meios mecani- cos, tais como a légica. Nos ensinamentos tradicionais, parte dos quais sao fa- miliares a vocé, sempre houve uma proibicao no sentido de 0 homem comum tentar aprofundar-se nos chamados se- gredos do passado e do futuro. Tal proibicdo é absolutamente necesséria quando se trata do homem comum. A raz&o é simples: 6 porque uma vez que o homem comega a acredi- tar que pode resolver o mistério da existéncia humana e de suas relacdes com 0 universo, procuraré investigar esse mis- tério de tal forma que se prejudicaré. Quando é suficientemente maduro para perceber a na- tureza deste mistério, a proibi¢do nao se aplica a ele. Tudo € questo de capacidade. Profbe-se uma crianga de atraves- sar a rua sozinha, em qualquer circunstancia. No entanto, viré o dia em que a deixarao atravessar a rua por si prépria. Na primeira fase, a fase da proibicao, vocé est4 protegendo a crianga. Se nao a preparar para compreender os perigos do transito, ela nunca cresceré. 7 Peale vocé que o que se esta dizendo é que , como a crianga em nossa analogia, tém a capacidade e o direito de saber exatamente onde estao e Para onde vao. A “4 \gora repetiremos os requisitos que consideramos es- Senciais para se poder efetuar a tr a an: 7 gar a “atravessar a rua”. \si¢o, para se poder che: 134 Este desenvolvimento, para ser realizado eficientemen- te, deve ser dirigido. Ou seja, nao somente deve haver uma fonte dessa direc&o, como também um canal para ela. Esse canal é 0 que se conhece geralmente como um mestre, em- bora o termo tenha um sentido apenas aproximado. Outro requisito é que deve haver uma comunidade selecionada, que possa beneficiar-se com esse conhecimento. E, em ter- ceiro lugar, devem existir condigées ambientais corretas pa- ra tal desenvolvimento. Isto € 0 que denominamos a conducao correta, o lugar correto, 0 tempo correto, e as pessoas corretas. A tarefa do mestre é reunir todos estes elementos. To- das as religides genuinas, grupos psicolégicos e metafisicos que existiram no passado, originaram-se desta doutrina, deste ensinamento e de nenhum outro mais. Se vocé puder acei- tar sem reservas as afirmagées anteriores como possivelmente certas, podemos continuar harmonizando a comunidade e assim tornar possfvel o desenvolvimento coletivo e individual, por meio de métodos diretos e apropriados. Isto quer dizer que nao podemos fazer uso de idéias de segunda mao, ou de migalhas e pedagos de ensinamento que podem estar com- pletos em si mesmos, mas que nao tém valor algum em nossa presente situacao. E inevitavel que todos os ensinamentos se “deterio- As pessoas apreciam os instrumentos e nao os objeti- vos. Comegam nao compreendendo o significado dos ma- teriais de estudo. Confundem uma coisa com outra. E tarefa de todo esforco regenerativo voltar ao signifi- cado e a real importancia dos estudos tradicionais, de suas instituigdes e de seus exercicios. Nosso trabalho atual é exatamente este 135 Como REALIZAR ATIVIDADES “No Munpo” Como podemos realizar atividades que nos ajudem em nosso desenvolvimento “no mundo”, e fora dele, na vida comum? A resposta para objetivos praticos € muito mais sim- ples do que muita gente suspeita. A vida comum, seja social, profissional, ou outra qual- quer, contém dentro de si mesma uma quantidade de fios. Elementos que, se forem perseguidos corretamente, podem favorecer nosso futuro progresso. No entanto, para o homem ea mulher comuns, quase nao existe consciéncia deste fa- to. As pessoas procuram: — deixar o mundo, — ou submergir no mundo, — ou seguir um ideal a que se dedicar parcialmente no mundo. Ao observar as impressdes de suas vidas, ao comparé- las com as de outras pessoas, e buscando mais materiais em fontes de armazenamento, como os livros, tentam sistema- tizar 0 que “o mundo” pode significar. Chegam & conclusio de que: — hé um “plano divino” que elas nao podem perce- ber, ou que: — nao hé nenhum “plano”, ou que certos agrupamen- tos ou individuos, e certas instituigdes, séo significativos. Toda a questao de se trabalhar com éxito “no mundo” €um problema de percepcées. Alguém pode ver que série 136 de atividades e circunstancias so potencialmente significati- vas para uma atividade de desenvolvimento. E pode dizer isso a outras pessoas. Trabalhar dentro de um agrupamento de atividade tao especializada traz a consciéncia deste padrao, desta “estru- tura em potencial” para mais perto daqueles que se acham envolvidos. As pessoas aprendem pelo contato com uma “matéria substancial” quando esto perto dela, sempre que dela houver quantidade suficiente, ou sempre que se manifestar através de formas suficientes. Gradualmente comecam a sentir este “fio invisivel” O HomeM Do CHAPEU BRANCO Nim Hakim era um homem sem nenhuma distinco es- pecial.Um dia caminhava em frente de uma casa quando al- gumas pessoas sairam e o fizeram parar. — Por favor, entre e olhe a nossa patroa que esté doente — disseram-lhe. — Por que eu? — perguntou Nim Hakim. — Porque h4 muito tempo um homem sdbio predisse sua doenca e falou: “Quando estiver doente, somente sera curada pela cor branca, localizada cinco pés acima do chao” Enquanto procurévamos isso, vimos o senhor com o cha- péu branco e, como o senhor, na verdade, tem cerca de cinco pés de altura, nos demos conta de que seu chapéu é aquilo de que precisamos — Que estranho! — pensou Nim Hakim, mas entrou na casa e se postou ao pé da cama da mulher. E de fato, depois de olh4-lo por um instante, a mulher se levantou, e j4 estava melhor. — Sou um médico natural — disse Nim Hakim a si mes- mo. Esquecera-se de que fora um mero instrumento. 137 Isso desencadeou uma estranha série de acontecimentos Nim Hakim decidiu que a vida de estudante que atual.. mente levava era uma perda de tempo. Portanto, sairia mun- do a fora e se tornaria famoso. Como primeira medida, foi até 0 padeiro e pediu-Ihe que cozesse para ele uma fornada de pao para suas viagens. E saiu pelas estradas. Pouco depois chegou a um pafs onde ninguém tinha ouvido falar dele, e logo soube que tinham um problema Certo elefante invadia suas terras regularmente e matava as pessoas. — Eu tenho um remédio para todos os males — disse- lhes Nim Hakim, e se pés a espera do elefante. De repente o elefante entrou com grande estrondo nas. tuas da capital. Todos safram correndo, inclusive Nim Ha- kim, pois percebeu que aquilo era bem diferente de ficar em pé diante da cama de uma pessoa doente. Mas o elefente aleangou-o, derrubou-o e pés-se a comer seu pao. Enquanto Nim Hakim estava estendido no chao, ator- doado, 0 elefante comegou a cambalear e as pessoas saf- ram de suas casas para ver o que estava acontecendo com seu defensor. Chegaram bem a tempo de ver o elefante cair e mor- ter. Ent&o levaram Nim Hakim, em triunfo, diante do rei. O que eles nao sabiam era que o padeiro, que odiava © ar de superioridade de Nim Hakim que, ainda por cima, Ihe devia uma grande quantidade de dinheiro, pusera no pao veneno suficiente para matar um elefante. O rei, feliz por- que seu povo fora salvo, mudou o nome de Nim Hakim pa- ra Nim Mullé. Hakim significa doutor, mas Mullé significa mes- tre. Pois, certamente, o que Nim havia feito era uma proeza de mestre e nao de doutor. — Podem me chamar de mestre se quiserem — disse Nim Hakim com desdém — mas peco que me recompen- sem com 0 comando de todas as suas forcas armadas. Afi- 138 nal, no passado estavam sempre fugindo por causa desse mesmo elefante. Em parte por medo, em parte por admiragao e em par- te pela cobiga de ter um homem tao formidével a seu servi- 0, 0 rei nomeou-o “Marechal dos exércitos Nim Mulla”, e esse ficou sendo seu titulo completo. O tempo passou e Nim dedicou-se, durante anos, a apre- goar sua prépria importancia e a fazer com que fosse divul- gada por toda parte, através daqueles que conheciam suas proezas, Muita gente tentou imita-lo, mas sempre que tentavam curar as pessoas doentes ou matar elefantes fugitivos, nao tinham éxito. “Continuem tentado”, dizia Nim. Mas os cons- tantes fracassos das pessoas, em contraste com os seus pro- prios triunfos, serviam apenas para mostrar que ele era, de alguma forma, um homem superior. Pelo menos era assim que o viam todos os que tinham algum contato com ele. Co- mo ninguém tinha outra opinido sobre o assunto, Nim esta- va firmemente entronizado em seu papel. Mas um dia o pais foi assolado por um tigre feroz. O tigre entrava regularmen- te nas aldeias, sem ser visto, e levava consigo suas vitimas, até que as pessoas chamaram seu heréi, o grande marechal Nim, para que ele as salvasse A frente do maior exército que jé se vira naquele pais, o marechal Nim marchou contra o tigre. Finalmente, o tigre feroz foi localizado pelos batedores e, “como sempre”, as tro- pas correram em todas as direcdes, deixando seu lider sozi- nho para enfrentar a ameaga. Depois de tudo, pensavam que Nim era uma espécie de super-homem e que uma coisa da- quele tipo era tarefa para ele, nao para eles. Quando Nim viu o tigre com seus préprios olhos, aterrorizou-se e subiu na érvore mais préxima. O tigre se postou debaixo da arvo- re para esperé-lo. O cerco durou dias. Todas as noites o ti- gre rugia e Nim tremia, e ambos tinham cada vez mais fo- me. Depois de uma semana, 0 tigre rugia mais forte do que 139 nunca e Nim, debilitado pelo cansaco e pela fome, tremia mais do que nunca. Esse movimento fez com que a adaga de Nim cafsse de sua bainha. E isso aconteceu justamente quando o tigre estava abrindo a boca para tomar a rugir, A adaga atravessou-lhe a garganta, matando a fera ins- fantaneamente. Depois de um momento, Nim percebeu que tinha acontecido. — Eevidente que sou um instrumento especial do des- tino, e, como tal, o homem mais grandioso na vida — disse a si mesmo. Desceu da érvore e voltou diante do rei com as orelhas do tigre, sendo imediatamente proclamado 0 campeao e defensor-mor do reino. Pouco tempo depois, o grande campedo recebeu notf- cias de que 0 exército de um pais vizinho estava invadindo sua terra adotiva. Apesar dos milagres que o tinham prote- gido no passado, desta vez Nim ficou com medo. Nesse mes- ma noite, empacotou todo o ouro e toda a prata que péde encontrar, montou num cavalo veloz e saiu, procurando se afastar o maximo possivel do inimigo, antes do amanhecer No escuro, seu cavalo tropecou e caiu, estando ainda muito préximo do campo inimigo Os valiosos pratos que levava cairam com fragor sobre uns rochedos. Os soldados inimigos pensaram que estavam sendo atacados e, no escuro, comecaram a lutar entre si. Tao feroz foi a batalha que todos morreram. Nim estava acovardado atrés de umas pedras, entor- pecido demais para mover-se, quando os batedores do exér- cito do rei o encontraram e o levaram, novamente em triun- fo, a sala do trono. Durante o resto de sua vida nao houve novas crises e viveu até uma idade muito avangada. E por essa raz4o que vocé ouve falar tanto sobre o grande Nim, que realizou mi- lagres e nunca foi derrotado. Todas as nacées, embora néo 140 o saibam, tem o seu Nim — sob um nome ou outro — no distante e romantico passado Este conto se acha inclufdo nos ensinamentos de Bah- dauddin Shah-Madar, que morreu em 14885 e cujo témulo, na India, se acredita ter qualidades milagrosas. Ele fundou a ordem dos Madaris. Existem duas verses a respeito das origens de Shah-Madar e de seus estudos. Segundo a pri- meira versao, era drabe e herdou seus poderes espirituais de Taifu-Shamid, que foi discipulo de Jesus e viveu na terra até poder transmitir os verdadeiros ensinamentos de Jesus a Shah-Madar. Mas a outra versao diz que Shah-Madar era judeu, descendente direto de Moisés, e que lhe haviam sido transmitidos tanto os segredos esotéricos de Aaréo como o significado profundo do judafsmo. Quando Ihe perguntaram qual das duas versées era a verdadeira, Shah-Madar replicou: — Ambas, idiota. Qua t E A DiREGAO CoRRETA? Um homem sébio tinha, amplamente difundida, a re- Putagao de ter-se tornado irracional em sua apresentacao de fatos e argumentos. Decidiu-se testé-lo para que as autori- dades de seu pats decidissem se era uma ameaga para a or- dem piblica ou nao. No dia do teste, passou diante da corte em cima de um burro. Ia montado com o rosto voltado para a parte traseira do animal. Quando chegou o momento da defesa, perguntou: 141 ~ Para onde eu estava olhando quando me viram ha pouco? Os jufzes responderam — O senhor estava olhando para o lado errado. — 0s senhores exemplificam 0 que quero demonstrar — disse 0 sébio — pois, segundo um ponto de vista, eu es. tava olhando para o lado certo. O burro é que olhava na direg&o errada. As pessoas insistem em ver as coisas somente da forma como se acostumaram a olhé-las. Tomam-na como a ma- neira “correta”. Ao isolar esta tendéncia em uma demons- tracéo simples, este individuo ilustrou 0 fato de que todos Nés, todos os dias, vemos uma quantidade de coisas de uma forma habitual, o que acarreta uma grande limitagao a nos- sa possibilidade de pensar. Como se féssemos idiotas. FATIMA E OS ANIMAIS Era uma vez uma garotinha que cresceu com seus Pais, sozinha, no bosque. Um dia constatou que seus pais haviam morrido e que teria de cuidar de si mesma. Seus pais tinham deixado um Mihrab, um ornamento estranho, parecido com um umbral de janela, que estava pen- durado em uma parede de sua choupana. — J& que agora estou s6 — disse Fatima a si mesma — € terei que sobreviver no bosque onde s6 quem vive sio 0s animais, seria bom falar com eles, compreender a sua lingua. Assim, passava uma boa parte do dia dirigindo, para © umbral que estava na parede, este desejo: — Mihrab, d4-me o poder de compreender os animais e de poder falar com eles. Depois de longo tempo, de repente teve a impressdo de que podia comunicar-se com os pssaros, com outros ani- 142 mais e até com os peixes. E saiu pelo bosque para tirar a ova. Logo chegou a um tanque. Sobre a 4gua do tanque vee uma mosca patinadora, que Passeava pela superficie e munca entrava n’égua. Nadando dentro d’Sgua havia vé- vios peixes e, grudados no fundo do tanque, alguns caracés Para poder dar inicio a uma conversa, Fatima disse: — Mosca, por que vocé nao entra n’égua? — Por que haveria de faz@-lo, supondo que fosse pos- sfvel, mas nao 6? — perguntou a mosca. — Porque estaria a salvo dos péssaros que descem e voce. oe Ainda nao me comeram, nao é verdade? — retru- cou a mosca. E esse foi o final da conversa. Entao Fatima falou com um peixe — Peixe — disse-lhe através da gua — por que vocé no aprende a sair da 4gua pouco a pouco? Soube que cer- tos peixes podem fazer isso. — Absolutamente impossivel — respondeu o peixe. — Ninguém que fez isso sobreviveu. Ensinaram-nos a acredi- tar que nao s6 é um pecado, como um perigo mortal. Virou-se e mergulhou nas sombras, disposto a ndo ou- vir tais bobagens. 1 (to ela chamou um caracol: . 2 Caracol, vocé poderia se arrastar para fora d’4gua e encontrar boas ervas para comer? Ouvi dizer que os cara- i m fazer isso. aad poe melhor responder uma pergunta com cr per gunta, quando quem escuta é um caracol sébio — aah caracol. — Talvez voce fosse amavel o bastante para Pee zer exatamente por que tem tanto interesse em meu estar? As pessoas deveriam cuidar de simesmas. — Bem — disse Fatima — suponho que é eee do uma pessoa pode entender mais a respeito de outra, ajudé-la a alcangar niveis superiores. 143 — Essa idéia me parece estranha — disse o caracol, e. arrastou-se para baixo de uma pedra, de onde nao podia mais ouvi-la. Fatima deixou a mosca, o peixe e 0 caracol e vagou pelo bosque procurando alguma outra coisa para ver. Sentia que deveria poder ser titil a alguém. Afinal, tinha muito mais conhecimento do que aquelas criaturas do bosque. Pensou, por exemplo, que poderia pre- venir um péssaro para armazenar comida para o inverno, ou aconselhé-lo a fazer um ninho perto do calor de uma chou- pana, para que néo morresse desnecessariamente. Mas nado viu passaro algum. Ao invés disso, deparou-se com a choupana de um car- voeiro. Era um homem idoso, que estava sentado em fren- te a porta da casa queimando carvao para levé-lo ao mercado. Fétima, deleitada ao ver outro ser humano, 0 Gnico que tinha visto além de seus pais, correu até ele. Contou-lhe suas experiéncias daquele dia. — Nao se preocupe com isso, menina — disse-lhe 0 velho. — Ha coisas que um ser humano tem que aprender, € essas coisas sao de vital importancia para o seu futuro. — Coisas que aprender? — disse Fétima. — Mas, por favor, por que deveria procurar aprender outras coisas? Es- Sas coisas provavelmente s6 mudariam o meu modo de vi- ver e de pensar. E, como a mosca, o peixe e o caracol, afastou-se da companhia do carvoeiro, Fatima, filha de Waliyya, levou mais trinta anos, como a mosca, 0 peixe e o caracol, até poder aprender qualquer coisa. Fatima filha de foi a mestra de Ibn 144 Waliyya de Andaluzia, morreu em 1195, el-Arabi, doctor maximus para o Ociden- te, que, no século XII, despertou a aten¢do para o que atual- mente chamos de “condicionamento”. O escolastico turco Sigob Qalb observou que, em seus escritos, el-Arabi anteci- pou as idéias de Berkeley, Fenlly, Kent, Nietzsche, William dames e outros. Esta hist6ria é contada entre os “iluminati (rashania), dervixes do Pamir. Esta versdo é do Sufi Abdul- Samad Khan, falecido em 1943. 145 CAPETULO XIV Os SUFIS ARA ESTUDAR o método que usamos com a finalida- de de aprender a aprender, é necessério que dirijamos Nossa atengao para os métodos convencionais de estudo e que os comparemos com o nosso. Em todos os paises, e em todas as comunidades humanas, existe basicamente apenas um método de estudo aceito, e que deriva da forma como 0 ser humano aprende de seus pais e do meio ambiente quan- do crianga. Essencialmente nao existe erro neste método de estudo, que é de fato imprescindivel para nés, mas um fator que quase nunca percebemos é que este método, embora comum ou usual, s6 pode ser usado para se estudar algu- mas coisas e nao todas. Podemos ilustrar clara e facilmente este método de es- tudo estabelecido por meio de exemplos simples. O primeiro princfpio dg aprendizagem, que muito cedo se desenvolve na crianga, é que 0 individuo é premiado, ou castigado, de acordo com os progressos que fizer para apren- der aquilo que seus pais desejam que aprenda, seja pela ins- trugdo direta, ou por meio de uma situagao criada para a crianga pelos pais. Os seres humanos desenvolveram este método de ensinamento devido a certa caracteristica da crian- ga. Esta caracteristica consiste em que a crianga busca o prazer 147 e evita a dor. Uma vez reconhecido este principio, € compa- rativamente fécil adestrar uma crianga, ou um animal, oferecendo-lhe atrativos para aprender ou negando-lhe a coo- peracao se néo aprende No adestramento de uma crianga pequena, a busca do prazer e a rejeicao & dor fisica se acen- fuamn quando Ihes é acrescentado o sistema de aprovar ou desaprovar suas agdes. Se estamos aprendendo algo em uma escola do tipo comum, devemos aceitar os requisitos da es- cola e do meio ambiente com a intengao de que nos seja possfvel aprender. Esse meio ambiente e esses requisitos t¢m grande analogia com o que se encontra geralmente na rela- do estabelecida no lar, do pai com o filho. Temos a figura autoritéria do professor, que ocupa o lugar dos pais, enquanto os alunos representam o filho ou filhos da famflia. Ambas as partes conhecem as regras da escola, assim como as regras da famflia. Oensinamento é realizado numa sala ou numa casa es- pecffica; proporcionam-se aos estudantes motivagées para aprender: so premiados ou castigados, verbalmente ou por meio do prazer psicolégico, de acordo com o progresso que fizerem. O progresso que eles conseguem é medido pela dis- posico que possuem para se adaptar ao meio ambiente cria- do para eles. Esta espécie de situagao é ideal para aprender a maioria das coisas necessérias para a vida diéria. No en- tanto, nao se deve deduzir daf que todas as formas de ensi- namento devem seguir este esquema. Considerada de um ponto de vista psicolégico, a situacao especial que se criou tem efetividade para determinado tipo de alunos, principal- mente porque durante o periodo de instrugao se faz com que os estudantes regridam a um nivel infantil. Se a escola é boa € 0 ensinamento é desejavel, nao existe perigo nisso. Nosso ensinamento requer que o individuo a quem se esté instruindo seja um adulto. Em nossa terminologia, ser adulto significa estar num estado mental diferente do estado 148 daquele grupo de pessoas a quem fizeram regredir a um ni- vel infantil. Posto que a maioria das pessoas com quem chegamos ater contato nao tiveram, em matéria de aprendizagem, outro método que nao fosse o método da regressdo, torna-se ex- tremamente dificil transmitir aos alunos o modo pelo qual podem se comportar como pessoas adultas. No entanto, é possivel incorporar dentro de uma seqiién- cia de estudos um método de ensinamento que evite que os alunos regridam deliberadamente a um estado infantil. Se, por exemplo, o mestre se comporta de uma forma autorité- ia, o estudante tender4, automaticamente, a aceitar ou re- jeitar o que ele disser. Se aceita isso de modo convencional, da maneira como esté acostumado a aceitar as coisas em uma escola convencional, estaré se autocondicionando. Se o re- jeita, pensando que desse modo est afirmando sua indivi- dualidade ou maturidade, nao poderé obter os beneficios do contetido do ensinamento. A Gnica solugao para essas ten- déncias é o aluno tomar um tempo para se convencer da ineficdcia dessas duas reagées. Existe outra forma de apren- der que a maioria das pessoas nao percebem, simplesmente porque se acostumaram ao que acreditam ser as duas Gni- cas alternativas possfveis: aceitagao ou rejeicao. Nao pode- mos falar de avaliagdes maduras e exatas do material ofere- cido aos alunos, quando estamos lidando com pessoas que nao possuem um alto nivel de objetividade. Peco-lhes que se familiarizem com o material contido neste livro e que apren- dam, nesta etapa, como ocorre a regressdo ao infantilismo. Qualquer forma de atividade humana tende a centralizar- se em torno de certos fatores comuns, seja uma religiao, um_ sistema filos6fico, uma nacionalidade ou um clube. Haver um dirigente, um grupo de pessoas, provavelmente certa in- formagao ou seu equivalente, certos lemas, ¢ a idéia de per- tencerem todos ao mesmo grupo. Todos, ou quase todos, estes elementos s40 valiosos e legitimos nos campos em que 149

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