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Análise do conto ''Felicidade Clandestina'' de Clarice Lispector

Ao fazer a análise de um dos contos de Clarice Lispector, “Felicidade Clandestina”, é possível


perceber várias cadeias de significantes relacionadas ao sujeito desejante, assim como os
mecanismos de defesa presentes no conto.
        Logo no 1° parágrafo, na frase “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente
crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas.”, Há
um mecanismo de defesa, ou seja, uma forma de defesa que o sujeito encontra para amenizar a
ansiedade deformando ou negando a própria situação. No trecho em questão há um mecanismo de
projeção por parte da narradora do texto, onde a autora da projeção é a narradora e a receptora é a
filha do dono da livraria. Desse modo, o conteúdo da projeção é a condição da autora não ser filha
do homem que tem um mundo de livros ao seu redor. A narradora tem uma percepção da menina,
mas isso não significa que seja o real. Nesta frase: “Como senão bastasse, enchia os dois bolsos da
blusa, por cima do busto, com balas.”, Fica claro uma teoria de Freud (1856-1939) em relação às
fases do desenvolvimento, no qual ele utiliza o termo fixação para descrever o que ocorre quando
uma pessoa não progride normalmente de uma fase para a outra, mas permanece envolvida numa
fase particular, preferindo satisfazer suas necessidades de forma simples e infantil. É mais ou menos
o que ocorre com a filha do dono da livraria, enquanto as meninas da sua idade procuram livros
para ler, ela se satisfaz com suas balas. Na última frase: “mas possuía o que qualquer criança
devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.” A narradora mostra-se como
um sujeito desejante, pois deixa claro que ela quer ter um pai dono de livraria para conseguir o seu
objeto de desejo. Nesse aspecto, percebeu-se o sujeito da psicanálise, pautado na teoria Psicanalítica
de Freud, no qual o sujeito é marcado por uma “falta” estrutural e estruturante, no qual deseja o
objeto que não possui.

        No 2° parágrafo ao dizer “em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em
mãos um cartão-postal da loja do pai.” Aparecem as elucidações do sujeito desejante, ou seja, a
garota deseja o que não possui.

         No 3° parágrafo em “Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança,
chupando balas com barulho” A autora faz mais uma vez uma projeção a respeito da filha do dono
da livraria, dessa vez projeta a personalidade da menina como se fosse cruel e vingativa. Assim, fica
claro a o mecanismo de defesa projetado pelo ID, o qual, segundo Freud, é o reservatório de energia
de toda a personalidade e contém tudo o que é herdado. Nesse trecho: “Como essa menina devia nos
odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.” A
narradora projeta que a garota deveria odiá-la por sua aparência, que nesse momento seria o objeto
de desejo de qualquer garota naquela idade. A narradora utiliza o mecanismo de racionalização na
frase: “Comigo exerceu com calma e ferocidade o seu sadismo.”, ou seja, ela arranja motivos
aceitáveis para pensamentos e ações inaceitáveis. A autora apresenta a justificativa de a garota ser
vingativa para tornar aceitável a sua ideia de ser merecedora de ter um pai dono de livraria. Na frase
“Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que não lia.” Fica evidente o sujeito da psicanálise, que é
o sujeito da “espera” ela fantasia ter finalmente o seu objeto desejado.

         No 5° parágrafo no trecho “Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo
com ele, comendo-o, dormindo-o.” Percebemos que na relação sujeito x objeto, o sujeito deve
idealizar o objeto para formar um só. Porém o objeto sempre lhe escapará. Neste mesmo parágrafo,
em: “E completamente acima de minhas posses.” Há um mecanismo de negação na frase “Disse-me
que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela emprestaria” a autora sabe que não tem
condições de comprar o livro, mas o quer emprestado. È uma tentativa de não aceitar na realidade
um fato que perturba o seu ego.

          No 6° parágrafo no trecho: “Ate o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da


alegria: eu não vivia...”, o ato de sonhar e fantasiar que vai conseguir ter o livro fica comprovado
mais uma vez que o sujeito é um ser desejante. O sonho é uma forma de satisfazer desejos que não
foram ou não podem ser realizados durante o dia.

          No 7º parágrafo quando a narradora diz  “Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança
de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando...” Podemos observar o
mecanismos da Repressão, pois a menina afasta o pensamento e a angustia de que não vai conseguir
o livro evitando  a realidade.

No mesmo parágrafo, há um mecanismo de formação reativa em: “Os dias seguintes seriam mais
tarde da minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava...” aí fica evidente que este
mecanismo, segundo Freud, substitui comportamentos e sentimentos que são diametralmente
opostos ao desejo real; é uma inversão clara e, em geral, o inconsciente do desejo. Não a ideia
original é reprimida, mas qualquer vergonha ou auto-reprovação que poderiam surgir ao admitir tais
pensamentos também são excluídas da consciência.

         No 8° parágrafo em “Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de
livraria era tranquilo e diabólico.” Também é uma projeção da autora. É importante ressaltar que
sempre que caracterizamos algo “fora” como mau, perigoso, pervertido e assim por diante, sem
reconhecermos que essas características podem também ser verdadeiras para nós, é provável que
estejamos projetando. Neste parágrafo, é possível perceber que os personagens vivem o processo
chamado de “epifania”, ou seja, revelação. Em outras palavras, de repente, diante de ocorrências
mínimas, o personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda. Muitas vezes, ele
mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa, porém sua vida ou sua visão
mudam.

        No 9° parágrafo no trecho “Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido,
enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso.” Percebemos que o sujeito é castrado, ou
seja, não tem possibilidades dele ter acesso ao real, com isso a narradora não sabe se vai ter ou não
acesso ao livro. No ID, não existe nada que corresponda á ideia de tempo; não há reconhecimento
da passagem do tempo (1993, livro 28,p.95 na ed. Bras.). Em “Mas, adivinhando mesmo, às vezes
aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.” Mais uma
vez percebemos aí o sujeito da espera que sofre pela perda do objeto que sempre lhe escapará.
         No 10° parágrafo na frase “Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia
sequer.” Fica claro que o sujeito da é marcado por uma falta estrutural, por isso fantasia
incansavelmente com o objeto de desejo. O EGO é originalmente criado pelo ID na tentativa de
enfrentar a necessidade de reduzir a tensão e aumentar o prazer. Contudo, para fazer isto, o Ego, por
sua vez, tem de controlar ou regular os impulsos do ID, de modo que o indivíduo possa buscar
soluções menos imediatas e mais realistas.

          Ao ler o 11° parágrafo, observamos que a menina (narradora) sabia que a garota (filha do
dono da livraria) demoraria a lhe emprestar o livro, mas não imaginava que iria continuar com tal
crueldade até que sua mãe descobrisse. Mais uma vez o sujeito castrado se faz presente, sem ter o
acesso total ao real. O real é mortal para o sujeito, o desejo dele é não bater de frente com a
realidade.

          No 12° parágrafo, temos outra projeção, na qual a autora é a própria narradora, a receptora é
mãe da garota que iria emprestar o livro e o conteúdo é a descoberta que a mãe fez a respeito da
personalidade da filha.

          No 14° parágrafo percebemos quando ela diz “Fingia que não o tinha, só para depois ter o
susto de possuí-lo.” Mais uma vez o sujeito da espera se faz presente. A menina que fantasiar, quer
ser surpreendida, encantada, na condição de espera. O sujeito é um lugar; lugar do desejo, e o que
vai comandá-lo é a fantasia. No mesmo parágrafo, na frase: “Fingi que não sabia onde guardara o
livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Essa foi a felicidade clandestina da menina. Fazia
questão de “esquecer” que estava com o livro para depois ter a “surpresa” de achá-lo. Nesse
momento acontece um mecanismo chamado de Regressão que é um retorno a um nível de
desenvolvimento anterior ou a um modo de expressão mais simples ou mas infantil. É um modo de
aliviar a ansiedade escapando do pensamento realístico para comportamentos que, em anos
anteriores, reduziram a ansiedade. A regressão é um modo de defesa mais primitivo.
          No 15° parágrafo em “Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no
colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.” Observamos mais uma vez que o sujeito da psicanálise é
objeto da “espera”, pois ela continua a esperar para ler o livro, mesmo com o livro na mão, ela quer
fantasiar e ser surpreendida pelo livro.

          Na última frase em: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu
amante.” A autora faz mais uma projeção, pois atribui ao livro sentimentos e intenções positivas que
se originam em si própria. Também é um exemplo de situação epifânica: a menina que se torna
“amante” do livro.

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