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Definir performance é um falso problema

(entrevista com Eleonora Fabião)


Atriz, performer, a carioca Eleonora Fabião está em Fortaleza ministrando o módulo Dança
e Performance, do curso Dança e Pensamento, promovido pela Vila das Artes, que
prossegue até sexta (10). Doutora em Estudos da Performance pela New York University,
Fabião fala na entrevista a seguir sobre alguns aspectos que permeiam sua pesquisa: a
relação da performance com as artes e como o conceito desestabiliza uma idéia
preconcebida entre o performer-ativo e espectador-passivo

O conceito de performance ligado à arte é bem escorregadio e, por outro lado, existe
uma visão mais senso comum do termo bem limitadora. O que realmente é
performance? Existe um conceito mais fechado do termo?

A performance é uma prática artística que se desenvolve como gênero ao longo da


segunda metade do século XX, ou seja, depois da Segunda Guerra Mundial e suas
catástrofes correlatas. Digo “se desenvolve como gênero” pois muitos historiadores
defendem a idéia de que as origens das práticas performativas são mais remotas. Alguns
propõe que a performance tem suas raízes fincadas nos movimentos de vanguarda do
início do século (dadaísmo, surrealismo etc.). Outros sugerem que a performance é tão
antiga quanto o ritual. É importante enfatizar que a noção de performance como a
conhecemos hoje aparece por volta dos anos 1960, quando inúmeras manifestações
artísticas - que não podiam ser classificadas como teatro, dança, pintura, escultura ou
qualquer outro gênero previamente conhecido - começam a acontecer simultaneamente
pelo mundo afora. A performance surge no cenário pós-guerra como uma denúncia, uma
resposta e uma proposta. Gosto de colocar a performance em perspectiva histórica e
relativizar sua origem ao invés de buscar defini-la ou enquadrá-la teoricamente. A
estratégia da performance é resistir a definições. Ela trata justamente de desnortear
classificações, de desconstruir modos tradicionais de produção e recepção artística. É um
expoente da arte contemporânea porque suspende certezas sobre o que seja “obra de
arte”, “espectador” e “artista” ao lançar perguntas desconcertantemente fundamentais
como: o que é arte? o que move a arte? o quê a arte move? quê arte move? Enquanto
gênero, a performance não fixa formas espaciais ou temporais, não utiliza mídias ou
materiais específicos, nem estabelece modos de recepção ou critérios de documentação.
Alguns performers trabalham em espaços públicos, outros em galerias ou demais espaços
destinados à fruição artística, outros em seus próprios estúdios ou casas, enquanto outros
preferem espaços rurais. O mesmo sobre a temporalidade da performance: há peças com
duração de um ano enquanto outras duram horas, minutos ou mesmo segundos. Quanto
às mídias e materiais utilizados pelos artistas, a diversidade também é grande. Quanto à
recepção da performance, também impera a indeterminação: alguns artistas performam
para espectadores (que tornam-se cúmplices ou testemunhas de seus feitos), outros com
os espectadores (que tornam-se assistentes e até mesmo co-realizadores do evento), e
outros sem espectadores (e optam por documentar ou não as ações realizadas). Há
também aqueles artistas que criam proposições para serem realizadas não por eles, mas
pelos próprios “espectadores”. Ou ainda, numa versão radicalmente diferente, aqueles que
contratam e pagam pessoas para performar suas propostas. Trocando em miúdos: tentar
definir a performance não é apenas contraditório ou redutor, é mesmo impossível. Definir
performance é um falso problema. Porém, claro, há fatores comuns entre peças de
performance. Sobretudo a ênfase no corpo como tema e matéria. Me restrinjo a destacar
algumas tendências gerais: o desmonte de mecânicas clássicas do espetáculo, a
desconstrução da representação, o desinteresse pela ficção, a investigação dos limites
entre arte e não-arte, a investigação das capacidades psicofísicas do performer, a criação
de dramaturgias pessoais e/ou auto-biográficas, a ênfase nas políticas de identidade e em
discussões políticas em geral através do corpo e as experimentações em torno das
qualidades de presença do espectador.

Qual a relação entre performance e arte, já que performance, de certa forma, está
ligada a manifestações distintas de arte? Até que ponto a arte é devedora de uma
concepção de performance, e vice-versa?

A hibridação de gêneros é uma das principais características da performance. Aliás, esta


possibilidade de fusão ampla, geral e irrestrita de materiais e procedimentos é uma das
principais características não apenas da performance mas da produção artística
contemporânea. No estudo da teórica de teatro alemã Erika-Fischer-Lichte, intitulado “O
Poder Transformador da Performance” (The Transformative Power of Performance), ela
propõe que desde o início dos anos 1960, a arte ocidental experimenta o que chama de
“performative turn”. Segundo Fischer-Lichte, esta virada performativa inclui todos os
gêneros artísticos -cujas fronteiras tornam-se mais fluidas - além de dar origem a
performance art propriamente dita. Nas artes visuais, a action painting, a body art, as
instalações e as obras de site specific são exemplos deste caráter performativo. Na
música, experimentações em torno de temas como “música cênica”, “música visual”,
“teatro instrumental” também são exemplos. No teatro, o interesse crescente pela
desconstrução da narrativa e da ficção em favor da inclusão do espectador numa cena
cada vez mais porosa é outro traço performativo marcante. De modo geral o “performative
turn” aponta para a seguinte tendência: o crescente desinteresse pela noção de obra de
arte enquanto resultado final do trabalho do artista a ser absorvido e interpretado pelo
espectador e, em contrapartida, a crescente valorização do evento que inclui o espectador
como elemento constitutivo.

Sua pesquisa parte do princípio de uma desestabilização na relação performer-


espectador, principalmente de uma dicotomia bastante difundida da idéia de um
performer ativo e um espectador passivo. De que modo seus trabalhos e pesquisas
se propõem a buscar uma colaboração entre esses dois agentes?

Para te responder vou comentar resumidamente uma performance - “Ações Cariocas” -


que realizei faz pouco tempo no Largo da Carioca [uma das praças mais movimentadas do
Centro do Rio de Janeiro]. Para realizar a primeira “Ação Carioca”, levo para o Largo duas
cadeiras da cozinha da minha casa, um bloco formato A2 e uma caneta pilot. Quando
chego no local escolhido do Largo, tiro o sapato, coloco uma cadeira diante da outra,
escrevo no bloco “converso sobre qualquer assunto”, levanto o cartaz e espero. No
primeiro dia não fazia idéia do que iria acontecer. Minha motivação era muito clara:
dialogar com meus concidadãos, tentar recuperar meu interesse e amor pela cidade onde
cresci e que, por conta da corrupção política e da truculência criminosa, tornou-se uma
violenta cultura do medo. Para reagir contra minha prostração e frustração resolvi ir para a
rua, conversar com quem quisesse conversar comigo, criar uma performance em que a
receptividade fosse a chave dramatúrgica. Fato é que, logo depois de erguer o cartaz,
quase imediatamente depois, uma pessoa sentou-se comigo. E assim sucessivamente.
Várias pessoas, todo tipo de gente, tantas conversas e assuntos que precisaria de páginas
e páginas para descrever. No final de cada dia - permanecia cerca de quatro horas na rua
e por vezes mais de uma hora com cada pessoa - estava eufórica, totalmente eletrizada,
não exatamente pela ocupação de um espaço, mas pela abertura de uma dimensão, uma
dimensão performativa; energizada pelo reencontro com a cidade e com a minha própria
cidadania; energizada por podermos criar juntos, através do diálogo, e na medida de
nossas micro-percepções e micro-políticas, novas possibilidades para nós, a arte e a
cidade.

Falando sobre o conteúdo do módulo ´Dança e Performance´, existe uma


aproximação maior entre performance e dança do que em relação a outras
manifestações artísticas? Como o conceito de performance se insere no panorama
da dança contemporânea?

Existe uma aproximação maior apenas na medida em que a dança sempre valorizou o
corpo. O que não quer dizer que a dança tenha sempre valorizado um corpo que pensa ou
um pensamento sobre criação de corpo e de mundo. Aqui lembro do teórico da dança
André Lepecki, de seu trabalho voltado para o desenvolvimento de uma “dança-que-se-
pensa”, uma dança capaz de reconhecer e rearticular as forças sociais, políticas e
ideológicas que a condicionam. Desde os anos 1960, dançarinos e coreógrafos
interessados em repensar as possibilidades da dança vêm se perguntando o quê os move,
e não simplesmente como mover-se. Foi numa entrevista com Pina Bausch [bailarina e
coreógrafa recém falecida] que li esta articulação esclarecedora. Muitos dos ensaios desde
a criação da companhia em Wuppertal nos anos 1970, desenvolviam-se em torno de
perguntas que ela fazia aos dançarinos que, para respondê-las, lançavam mãos de todos
os seus recursos expressivos (se necessário inclusive a voz e a palavra). Bausch opta por
trabalhar com dançarinos mais velhos, opinativos, corpos marcados, etnias diversas,
agentes muito diferentes da etérea bailarina clássica. Corpos que, sob a direção de
Bausch, absorveram e transformaram as lições de ballet para criar o híbrido “dança-
teatro”, movimento que abriu caminho para as atuais pesquisas da dança contemporânea.
Seja de maneira consciente ou não, a dança contemporânea é fortemente inspirada pela
performance. A dança contemporânea propõe uma revisão radical da definição tradicional
de dança - “mover-se ritmicamente acompanhando uma música e, em geral, seguindo uma
seqüência de passos”. Em muita dança contemporânea não se encontrará passos, nem
música e, talvez, sequer movimento (se compreendido exclusivamente como
deslocamento no espaço). Em contrapartida, a materialidade dos corpos, o
desvendamento das convenções cênicas, as éticas relacionais e as políticas de identidade
serão temas possivelmente evocados através de pesquisas que podem envolver desde
lingüística, novas tecnologias e arquitetura até física, biologia e filosofia. Como a
performance sugere, não interessa neste momento definir o que é a dança
contemporânea, mas perguntar em cada aqui e a cada agora, o que queremos que dança
seja. Cada espetáculo será pois uma resposta momentânea para esta questão recorrente.

FÁBIO FREIRE
Repórter

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