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Nossas1 primeiras impressões de Tchekhov não são de simplicidade, mas de estupefação.

‘Qual o sentido disto e


por que ele faz disto uma história?’, nós nos perguntamos, enquanto lemos um conto após outro. Um homem se
apaixona por uma mulher casada, eles se separam, eles se encontram e no fim são deixados conversando sobre sua
posição e sobre por que meios eles podem se livrar ”desta intolerável prisão”.“‘Como? Como?’ perguntou ele,
apertando a cabeça. … E parecia que dali a pouco a solução seria encontrada e então começaria uma vida nova e
esplêndida.” O final é este. Um empregado do correio conduz um estudante à estação e durante todo o caminho o
estudante tenta fazer o empregado conversar, mas ele permanece em silêncio. De repente o empregado diz,
inesperadamente, “É contra o regulamento levar quem quer que seja com o correio.” E ele caminha para cima e para
baixo na plataforma, com uma aparência de raiva no rosto. “Com quem ele estava zangado? Era com as pessoas,
com a pobreza, com as noites de outono?” Novamente, termina o conto. ‘Mas é este o final?’, perguntamos. Temos antes a
impressão de que negligenciamos os sinais; ou é como se uma melodia tivesse se acabado antes que os acordes esperados a
encerrassem. Estes contos são inconclusivos, dizemos, e daí passamos a estruturar uma crítica baseada no pressuposto de que
os contos deveriam se concluir de um modo que reconheçamos. Ao fazê-lo, levantamos a questão sobre nossa própria aptidão
como leitores. Onde a melodia é familiar e o final empático — amantes unidos, vilões desbaratados, intrigas reveladas — como
na mais vitoriana ficção, mal podemos nos enganar, mas onde a melodia não é familiar e o final é uma nota de interrogação ou
meramente a informação de que eles continuaram conversando, como é com Tchekhov, precisamos de um senso de literatura
muito ousado e atento para nos fazer ouvir a melodia e em particular aquelas últimas notas que completam a harmonia.
Provavelmente temos que ler muitos e muitos contos até sentirmos (e a sensação é essencial para nossa satisfação) que
conseguimos juntar as partes e que Tchekhov não estava simplesmente divagando de forma desconexa, mas tocou ora esta
nota, ora aquela, com certa intenção, a fim de completar seu sentido. Temos que buscar em torno a fim de descobrirmos onde
exatamente entra a ênfase nestes estranhos contos. As próprias palavras de Tchekhov nos dão uma pista na direção correta. “…
uma conversa tal como esta entre nós,” diz ele, “teria sido impensável para nossos pais. À noite eles não conversavam, mas
dormiam profundamente; nós, nossa geração, dormimos mal, estamos agitados, mas falamos muito e estamos sempre tentando
decidir se estamos certos ou não.” Nossa literatura de sátira social e de fineza psicológica brotam ambas deste sono
agitado, desta conversa incessante; mas, afinal de contas, há uma enorme diferença entre Tchekhov e Henry James,
entre Tchekhov e Bernard Shaw. Obviamente – mas de onde vem ela? Também Tchekhov está consciente dos males
e injustiças do estado social; a condição dos camponeses o estarrece, mas o zelo do reformador não é o seu — não é
este o sinal para pararmos. A mente lhe interessa enormemente; ele é um sutil e delicadíssimo analista das relações
humanas. Mas, de novo, não; o final não está lá. Será porque ele está interessado primeiramente não na relação da
alma com outras almas, mas na relação da alma com a saúde — na relação da alma com a bondade? Estes contos
estão sempre nos mostrando alguma afetação, pose e insinceridade. Alguma mulher entrou em uma relação falsa;
algum homem foi pervertido pela desumanidade de suas circunstâncias. A alma está doente; a alma está curada; a alma
não está curada. Estes são os pontos de empatia de seus contos. Depois que o olho se acostuma a essas nuances, metade das
“conclusões” da ficção desaparecem no puro ar; elas mostram como que transparências com uma luz por trás de si —
espalhafatosa, berrante, superficial. A arrumação geral do último capítulo, o casamento, a morte, a afirmação de valores tão
sonoramente trombeteada, tão pesadamente sublinhada, tornam-se do tipo mais rudimentar. Nada é resolvido, sentimos; nada
é reunido da forma correta. Por outro lado, o método que primeiro parece tão casual, inconclusivo e ocupado com
ninharias, agora parece ser o resultado de um gosto requintadamente original e caprichoso, escolhendo de forma
ousada, dispondo de forma infalível e controlado por uma honestidade para a qual só podemos encontrar páreo
entre os próprios russos. Pode não haver resposta para estas perguntas, mas, ao mesmo tempo, não manipulemos
nunca a evidência de modo a produzirmos algo de conveniente, decoroso, agradável à nossa vaidade. Este pode não
ser o modo de se conquistar a atenção do público; afinal de contas, eles estão acostumados a uma música mais alta,
a medidas mais agressivas; mas como a melodia soou, assim ele a escreveu. Consequentemente, ao lermos estes
pequenos contos sobre nada, o horizonte se amplia; a alma ganha um senso assombroso de liberdade.

1
“O ponto de vista russo” de Virginia Woolf Tradução de Larry Martins Fernandes (março de 2014) do ensaio “The Russian Point of View” publicado na
coletânea de crítica literária de Virginia Wolff, “The Common Reader” (1925). Disponível em http://revistaterminal.com.br/?p=2730. Acesso em 12 05 2014.

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