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Gol: A empresa do ano

Com uma operação enxuta, preços agressivos e resultados exuberantes, a Gol abre o capital e
sobe ao topo

Existem hoje dois mundos na aviação brasileira. Um gera lucros impulsionados por eficiência operacional,
estruturas enxutas, rapidez, simplicidade e baixos custos. É o mundo da Gol. O outro carrega prejuízos, dívidas
que precisam ser renegociadas, excessivos gastos corporativos e frotas com capacidade acima da demanda de
passageiros. É o mundo da concorrência da Gol. Comparem-se oito quesitos usados para avaliar o desempenho
de uma companhia aérea. Dá 7 a 1 a favor da Gol. A companhia só utiliza duas versões de avião em sua frota, o
que barateia a manutenção e facilita o treinamento dos tripulantes. É a que mais passageiros transporta por vôo
e a que menos dinheiro gasta com isso. Pode e oferece tarifas mais baratas do que qualquer outra empresa.
Seus aviões fazem a parada mais curta nas escalas e a cada dia são os que permanecem mais tempo no ar -- um
atestado de produtividade. A Gol só perde em participação de mercado. Não por acaso esse é o quesito mais
influenciado pela idade da empresa. A Gol, voa há pouco mais de três anos. Ainda assim, vem crescendo rápido.
No ano passado transportou cerca de 7 milhões de passageiros, 51% mais que em 2002.

A Gol foi escolhida a Empresa do Ano de 2004 de MELHORES E MAIORES. É a primeira vez que uma companhia
surgida do zero recebe, em pouco mais de três anos, o título de melhor entre as me lhores, desde que a
premiação foi lançada, em 1977. Crescimento de vendas, rentabilidade, liquidez -- em todos os parâmetros nos
quais se apóia EXAME para eleger as melhores em 20 setores, a Gol se destacou. Sua rentabilidade alcançou
47%, cinco vezes superior à média do setor de serviços de transporte, no qual se insere. É também a segunda
companhia aérea mais rentável do mundo. Só perde nesse quesito para a irlandesa Ryanair. Suas vendas
cresceram 67% e atingiram 529 milhões de dólares no ano passado.

A Gol está produzindo no mercado da aviação impacto semelhante ao que a TAM, sua concorrente, provocou no
início da década passada. "A diferença é que uma inovou em serviços, com seus programas de milhagem e o
tapete vermelho", afirma André Castellini, vice-presidente da consultoria Bain. "A outra conseguiu implementar
bem o modelo baseado em tarifas baixas." A Gol é a representante no Brasil de um modelo de negócio que está
aterrorizando as concorrentes convencionais. Concebido pela americana Southwest, nos anos 70, o low fare, low
cost ("baixa tarifa, baixo custo") conquistou o mundo e deverá ser visto como um daqueles momentos decisivos.
O processador de texto destronou a máquina de escrever. O CD fez do disco de vinil uma relíquia. O DVD já
tornou o videocassete uma peça do passado. A história está repleta de exemplos de como uma nova tecnologia
ou um novo modelo de negócio são capazes de, num curtíssimo espaço de tempo, pôr em xeque reputações,
destronar empresas estabelecidas e impor um novo padrão ao mercado. São momentos de ruptura. Pode ser o
que está acontecendo na aviação.
"É agora ou nunca", disse o empresário Constantino de Oliveira, em 2000, quando finalmente decidiu fundar a
nova empresa. Na época, a Vasp havia paralisado suas operações internacionais e demitido uma tripulação
experiente. A Transbrasil, em fase terminal, logo deixaria de voar. A crise na Varig se aprofundara de maneira
irreversível. Com isso, a Gol poderia contratar o essencial para uma companhia aérea: gente especializada --
pilotos, engenheiros, comissários e mecânicos. A empresa foi montada em apenas sete meses com aviões novos
e pilotos experientes, uma boa combinação. "Só precisei telefonar para os melhores", afirma David Barioni, vice-
presidente de operações e ainda hoje comandante de aviões. Como havia excesso de capacidade e baixa
demanda, a Gol encontrou facilidade para receber aviões da Boeing. Com jatos novos em folha, firmou
vantajosos contratos de seguro.

Nenê Constantino, como se tornou conhecido, é o patriarca de um clã que fez fortuna no mercado de transporte
urbano e chegou a deter uma das maiores frotas mundiais de ônibus (leia quadro na pág. 25). Escolheu
Constantino Júnior, o sexto dos sete filhos, para presidir a nova empresa por causa de sua desenvoltura no
inglês. É um idioma essencial na atividade. Tempos atrás, Júnior morou em Londres. É também um piloto de
automobilismo, tendo competido na Fórmula 3. Os hábitos austeros e conservadores da família Oliveira se
refletem nos negócios. "Eles nunca somam custos desnecessários que trazem prejuízo aos acionistas", afirma o
consultor Cláudio Galleazi, representante da americana AIG, sócia minoritária, no conselho da Gol. "Seguem o
plano de negócios e, o que é importante, conseguem implementá-lo à risca, coisa difícil de ver na maioria das
empresas." Com os bons resultados alcançados, mais de 80% dos 2 444 funcionários levaram para casa, no ano
passado, quase quatro salários extras. Segundo Galleazi, a cultura da empresa é permeada de valores como
objetividade, simplicidade e humildade. "Trouxemos a cultura de economia de centavos de nossas companhias
de ônibus para dentro da Gol", diz Constantino Júnior.

Cada um dos 22 aviões da frota é visto como uma unidade fabril, que deve ser gerenciada com lupa. São Boeing
737-700 e 737-800, de última geração, que, além de consumir 12% menos combustível, são mais velozes que os
aparelhos de sua categoria. Mas não se esgota nas características da aeronave a possibilidade de colher
centavos, como diz o presidente. "Fomos treinados como gerentes de célula, uma prática que deveria ser norma
nas empresas aéreas", diz o comandante Telmo Nunes, de 55 anos. A exemplo dos outros 320 pilotos, Nunes
acessa informações em seu laptop e recebe rotas de vôo, fotos de satélite, manuais e treinamento pela internet
e CD-ROM. Numa atividade engessada por normas, isso garante agilidade à comunicação. Se as condições
meteorológicas permitem, os pilotos sobem a 12 000 metros. Nessa altitude, o avião voa mais velozmente e,
importante, gasta menos combustível. A Gol também tira partido das diferenças de alíquotas de combustível e,
se as condições favorecem, abastece seus aviões em aeroportos de cidades com preços menos salgados. Isso
explica por que as despesas com a rubrica combustível consumiram 6% menos da receita na Gol do que na
média das empresas aéreas brasileiras em 2002, por exemplo. Seus custos operacionais são cerca de 30%
inferiores. Nos aviões da Gol, que ficou conhecida por servir barras de cereais em vez de refeições quentes, os
fornos cederam lugar a 12 assentos de passageiros.
A empresa calcula que só com seu espartano serviço de bordo obtém uma economia de custos de quase 1
milhão de dólares anuais por aparelho. O cardápio frio também possibilita abastecer as aeronaves uma vez ao
dia. A limpeza pode ser feita por dois funcionários, em vez de seis. Um dos orgulhos da Gol é dividir com a
JetBlue o recorde de menor tempo em solo, ao redor de 25 minutos. Do telemarketing aos arquivos da
administração, tudo o que foge do coração do negócio é terceirizado. A manutenção pesada é feita nos hangares
da VEM, um braço da Varig em Porto Alegre. A Gol planeja ter um hangar em Viracopos apenas em 2007,
quando começarem a chegar os primeiros aparelhos próprios, dos 15 encomendados à Boeing. Outro ponto que
contribui para manter o caixa da empresa enxuto é a adoção do tíquete eletrônico, que vai muito além do custo
de 1,50 dólar do bilhete convencional. "Com isso, evitamos contratar centenas de funcionários que, nas outras
companhias, encarregam-se de contabilizar bilhetes", afirma o vice-presidente Wilson Maciel Ramos,
encarregado da área de administração. Além de despesas de administração reduzidas pela metade, outra
vantagem foi obter, na ponta do mouse, o movimento diário de passageiros, uma vez que todo o sistema está
integrado. "A grande sacada do ticketless foi ter viabilizado as vendas pela internet."

Como afirma o consultor Castellini, da Bain, a Gol tropicalizou com engenhosidade o modelo low fare, low cost.
Congêneres como as americanas Southwest e a irlandesa Ryanair voam ponto a ponto, em rotas de curta
distância. Como a demanda por essas rotas é mais baixa no Brasil, seria necessário utilizar aeronaves de menor
porte -- mas seus custos elevados inviabilizariam a proposta. Outra diferença crucial diz respeito à geoeconomia.
Nos mercados americano e europeu, as economias regionais -- e, portanto, a distribuição do tráfego aéreo -- são
equilibradas. No Brasil, a situação é diferente. "Cerca de 50% do PIB nacional concentra-se no eixo São PauloRio
de Janeiro e a 150 quilômetros da costa", diz Mauricio Emboaba Moreira, diretor de planejamento da Gol. Daí a
opção pelo pinga-pinga, que representa metade de seu tráfego. De manhã, um terço da frota é concentrado no
aeroporto de Congonhas. De lá os aviões partem rumo a 28 destinos, regressando no fim da tarde. Cada
aparelho percorre, em média, dez escalas por dia.

O agressivo marketing da Gol fica mais visível quando vai além das tabelas de preços. Nelas, as diferenças de
tarifas vêm se estreitando, em parte devido ao chamado "efeito Gol". Um levantamento mostra que já no
primeiro ano de operação, al guns de seus principais concorrentes, como a Varig e a TAM, diminuíram suas
tarifas de 19 destinos de 22% a 30%. Outro fator foi a conquista do público corporativo, menos dependente de
preços baixos. Em 2002, apenas 39 entre 100 passageiros viajavam a negócios. São agora 63. Moreira compara
as atividades de sua área a um exercício de estratégia militar. Assim como fazem os hotéis, as companhias
aéreas cobram diferentes tarifas num mesmo vôo. Com o perfil de cada avião na tela do computador, é possível
ajustar oferta e demanda alterando os preços para determinado número de assentos. É nesse ponto que a
agilidade se torna decisiva. "Você tem de movimentar rápido suas tropas para que a concorrência não perceba",
diz Moreira. Segundo ele, pelo critério de preço médio -- os assentos com promoção -- as diferenças saltam de
15% para até 30%. Ele só não informa quantos assentos são vendidos mais barato por vôo.

Essas tarifas promocionais são comercializadas somente pela internet, numa operação que custa à Gol 10 reais,
o equivalente a um terço da feita pelo call center ou por sistemas de reservas conhecidos como GDS. A idéia dos
vôos noturnos com passagens que por vezes custam menos que as de ônibus surgiu para neutralizar uma
ameaça: o aumento relativo dos preços abriu o flanco para empresas de charter. Nesse movimento, atraiu o
público da classe BC, que já representa 13% dos vôos corujões. Segundo afirma Jim Corridore, analista de
investimentos de companhias aéreas da agência Standard & Poors, o bom desempenho da Gol, que por
enquanto reina sozinha no segmento de baixas tarifas e baixos custos, deverá gerar, num futuro próximo, novos
competidores: "Uma das coisas mais interessantes das empresas low fare é que elas ajudam o mercado a
crescer, incorporando passageiros que antes costumavam usar apenas o transporte terrestre".

A Gol faz parte de um clube de companhias que recentemente abriram ou se preparam para abrir o capital.
Natura, ALL e Magazine Luiza estão entre elas. Empresas como essas optam por uma governança transparente
por diferentes razões -- necessidade de recursos, estrutura que facilite a entrada de sócios, sucessão
profissional, desejo de perpetuar seus valores. No caso da Gol, o que motivou a decisão foi criar um colchão para
o pagamento das primeiras aeronaves próprias de sua frota. Sua estréia na Bolsa de Valores de Nova York foi um
sucesso. Na ensolarada manhã de quinta-feira 24, a Gol debutou em Wall Street superando as expectativas do
mercado. Não apenas conseguiu levantar 284 milhões de dólares como viu seus papéis ganhar uma valorização
de 7% naquele dia. Na bolsa paulista, o desempenho foi igualmente bem-sucedido, projetando o valor da com
panhia em 5,25 bilhões de reais. A compra recordista de ações por pessoa física, cerca de 12 000, superando a
Natura, fabricante de cosméticos, e a ALL, foi entendida pela direção da Gol também como um sinal de
confiança de seus clientes. E o futuro? "Agora não podemos deixar que o ego inflado supere nossa capacidade
de manter a empresa no curso correto", diz Constantino Júnior. "O crescimento será um pouco menos acelerado
daqui para a frente." A postura sóbria tem razão de ser ante as peculiaridades do setor em que a Gol opera.
Metade dos custos diretos envolvidos na atividade é dolarizada. Uma das providências da Gol foi assegurar o
hedge de suas operações financeiras.

Outro risco que pode constituir-se em ameaça ao crescimento é o fato de estar num setor sujeito a
interferências do Estado. As mudanças em curso na estrutura da regulamentação da aviação civil, que ainda não
permitem avaliar os resultados, são mencionadas na própria proposta aos investidores. "Desde que o governo
Lula assumiu, o setor teve uma interferência brutal do Estado", afirma o analista Mauricio Levi, sócio da Fama
Investimentos. "É um triste retrocesso." Um exemplo recente foi a suspensão, pelo Departamento de Aviação
Civil (DAC), de uma campanha da Gol que oferecia bilhetes a 50 reais. "O DAC tem sido linha-dura desde a
mudança do governo, mas no sentido de evitar a super oferta, não a concorrência", afirma, diplomático,
Constantino Júnior. "Tenho dito aos investidores que um ambiente com oferta monitorada é mais racional que o
de liberdade total."

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