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Rio de Janeiro
2019
DINÂMICAS INTERNACIONAIS DA PRÁTICA CIENTÍFICA E A FORMAÇÃO
DE UM CAMPO SOCIOLÓGICO NACIONAL
Rio de Janeiro
Julho de 2019
BRAGA FILHO, Edmar.
Dimensões internacionais da prática científica e a formação de um
campo sociológico nacional/ Edmar Machado Braga Filho. Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS, 2009.
xviii, 213f.: il; 31cm.
Orientadora: Eloísa Martín
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-graduação
em Sociologia e Ciências Sociais, 2019.
Referências bibliográficas: f. 209 – 231.
1. Sociologia. 2. Sociologia do conhecimento. 3. Internacionalização.
4. Mobilidade internacional. 5. Dependência acadêmica. I. Braga Filho,
Edmar. II Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia. III. Título.
Aos meus pais,
Keila e Edmar,
cujo amor pelos filhos
transcendeu qualquer condição.
RECONHECIMENTO
Desde o meu ingresso no curso de Ciências Sociais da UFRJ, no já longínquo 2012, contei
com o incentivo e suporte financeiros de três órgãos de fomento para realizar minhas
pesquisas. Primeiramente, fui agraciado com a bolsa Jovens Talentos para Ciência,
concedida pela Capes. Foi através dela que obtive minha primeira inserção na Iniciação
Científica, constituindo o primeiro passo para minha socialização acadêmica. No decorrer
da graduação e primeiro ano do mestrado, fui bolsista do CNPq, o que me ajudou a arcar
com as despesas de moradia numa cidade como o Rio de Janeiro. Por fim, no segundo
ano do mestrado, fui contemplado com a bolsa Mestrado Nota 10, pela Faperj. Realizar
minha formação acadêmica, amparado e incentivado por essas instituições, foi
fundamental para mim, na condição de alguém que cursou seu ensino fundamental e
médio num colégio estadual de uma cidade do interior do estado do Rio de Janeiro.
Dito isso, ressalto aqui mais do que o meu agradecimento, mas o reconhecimento
dessas instituições, e a defesa da autonomia da atividade científica e da liberdade
acadêmica nas universidades públicas – verdadeiros pilares da democracia.
* * * * *
Pierre Bourdieu
Esboço de autoanálise (2004)
RESUMO
Figura III – Evolução dos programas de excelência segundo a avaliação trienal de 2010
– 2012 e a quadrienal de 2013 – 2016 ............................................................................ 34
Figura VII – Destinos das bolsas no exterior concedidas pela Capes e CNPq (2000 –
2016) na área de sociologia .......................................................................................... 129
Figura VIII – Origem dos bolsistas da Capes e do CNPq contemplados com o PEC-PG
entre 2006 e 2018. ........................................................................................................ 134
Figura XII – Países de destino como professores e pesquisadores visitantes .............. 163
Figura XIII – Circuitos de circulação e consagração dos periódicos a partir dos artigos
publicados ..................................................................................................................... 173
Gráfico IV – Principais destinos dos bolsistas no exterior por área e agência de fomento
...................................................................................................................................... 108
Gráfico VIII – Evolução dos investimentos discriminados da Capes (2004 – 2018)... 123
Gráfico XII – Diferenças entre o gênero dos bolsistas, discriminado por agência de
fomento (2000 – 2016). ................................................................................................ 136
Gráfico XIII – Número de docentes vinculados aos programas por gênero ................ 154
Gráfico XVIII – Número total de mobilidades por gênero e modalidade .................... 164
Gráfico XIX – Número de homens e mulheres por tipo de mobilidade ....................... 164
Gráfico XXI – Vínculo institucional dos periódicos por idioma do artigo .................. 169
Gráfico XXVI – Relação entre autores de artigos em periódicos no exterior por gênero
...................................................................................................................................... 183
Gráfico XXVII – Total de artigos publicados em periódicos no exterior, por gênero . 184
Gráfico XXX – Segmentação dos níveis de capital simbólico por tipo de mobilidade 192
Gráfico XXXIV – Relação entre publicação de livros no exterior e tipo de capital .... 197
Gráfico XXXIV – Relação entre distribuição de capitais e a atuação em atividades
editoriais em periódicos do circuito regional ............................................................... 200
Tabela V – Coordenação da área de sociologia da avaliação Capes (2004 – 2022) .... 140
Tabela VI – Critérios de avaliação das revistas com estratos mais altos do Qualis (A1 e
A2) ................................................................................................................................ 145
Tabela IX – Distribuição dos capitais simbólico e temporal entre os agentes ............. 188
Tabela X – Distribuição cruzada de capitais simbólico e temporal entre os agentes ... 188
Tabela XII – Cômputo das mobilidades segundo o tipo de capital .............................. 194
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 19
Contextualização e delimitação do tema .................................................................... 20
Justificativa ................................................................................................................. 28
Objetivos ..................................................................................................................... 29
Estrutura da dissertação .............................................................................................. 30
Procedimentos metodológicos .................................................................................... 31
Excurso metodológico: sobre a posição do pesquisador e os nomes próprios ...... 36
CAPÍTULO I .................................................................................................................. 38
Prelúdio ....................................................................................................................... 39
Ampliação e diversificação ........................................................................................ 39
Vertentes críticas .................................................................................................... 43
Vertentes sociológicas ............................................................................................ 49
A questão da dependência acadêmica ........................................................................ 51
Dependência acadêmica como herança colonial ................................................... 51
“Centro-periferia” como modelo analítico ............................................................ 54
A heterogeneidade estrutural dos campos periféricos ........................................... 57
Limites das abordagens .......................................................................................... 60
Campos nacionais, espaços internacionais ................................................................. 63
Epílogo........................................................................................................................ 71
CAPÍTULO II ................................................................................................................. 72
Prelúdio ....................................................................................................................... 73
Parâmetros de análise ................................................................................................. 73
Franceses e americanos: dois projetos distintos ......................................................... 77
Franceses e o cultivo intelectual nos trópicos........................................................ 77
Americanos, e o Brasil como objeto ....................................................................... 83
França e Estados Unidos: dois sentidos distintos .................................................. 87
Fundação Ford e a estruturação de um campo periférico ........................................... 88
Ciências sociais brasileiras: uma aposta bem-sucedida ........................................ 91
Recrutando no exterior: políticas de mobilidade internacional (1970-2000) ............. 98
A ciência, tecnologia e educação para o desenvolvimento .................................... 98
Expansão e políticas de mobilidade ..................................................................... 102
Epílogo...................................................................................................................... 110
INTRODUÇÃO
1
Segundo dados da Unesco, disponível em http://uis.unesco.org/uis-student-flow, acesso em 01/12/2018.
A categoria “tertiary education” é ampla, e envolve todos os estudos no âmbito universitário, de graduação,
mestrado e doutorado a especializações, MBAs etc.
21
Cooperação
acadêmica e
financiamento
Dimensões
internacionais Políticas de
internacionalização
da ciência
Práticas acadêmicas
(Elaboração própria)
2
Ver capítulo II
24
3
Nesta pesquisa, denomino de “sociologia brasileira” ou “sociólogos brasileiros” toda produção de
pesquisadores que trabalham em instituições nacionais, não necessariamente tendo nascido ou sido
naturalizado no Brasil.
25
4
Denomino de visões utilitaristas aquelas cujas preocupações giram em torno da importância da
internacionalização da ciência sobretudo para o desenvolvimento econômico de países e regiões. Nesse
movimento, procuro estabelecer uma ruptura epistemológica que torna complexos fenômenos tratados
muitas vezes pela ótica de sua utilidade econômica. Ao fazê-lo, não nego sua urgência, mas acredito que
há outros aspectos tão interessantes e importantes quanto.
26
Vários autores das ciências sociais no Brasil têm se debruçado nos últimos quinze
anos sobre a temática5. Depreende-se dessas análises que a circulação do conhecimento
internacional se dá de forma assimétrica, enfatizando a necessidade de um diálogo mais
global (RIBEIRO, 2014; ORTIZ, 2016; MARTÍN, 2018); que o Brasil tem se destacado
regionalmente em suas políticas de internacionalização (NEIBURG, 2002; FRY, 2004);
que a publicação de artigos ocorre em periódicos predominantemente nacionais
(DWYER, 2013; MARTÍN, 2015); que a centralização das mobilidades no âmbito da
formação da pós-graduação concentra-se em centros tradicionais de prestígio
internacional, ainda que esse quadro venha sofrendo variações nos últimos anos
(MADEIRA & MARENCO, 2016; BRAGA FILHO, 2017); que há um interesse
crescente pelo intercâmbio entre os chamados países emergentes e aqueles da América
Latina (BRACKMANN, 2010; SANTOS et. al, 2015); e que brasileiros participam
ativamente de eventos e associações internacionais e regionais (MARTÍN, 2015).
Paralelamente, estudos recentes analisam o campo da sociologia no Brasil,
destacando diversos aspectos. Através da análise de redes sociais e com referencial
teórico dos estudos organizacionais, Maia (2016) propõe estudar a possível ocorrência de
um isomorfismo institucional no campo, fazendo uso de análises bibliométricas das
publicações. Já Maranhão (2014) parte da hipótese da existência de uma autonomia
relativa no campo sociológico nacional, empreendendo, assim, uma análise comparativa
dos temas da produção sociológica com as políticas de fomento à pesquisa entre os anos
de 1999 e 2008. Ampliando o tema de análise, Hey (2008) analisa o espaço de produção
acadêmica em Educação Superior entre os anos de 1977 e 2002, de forma a compreender
as práticas e as tomadas de posição dos agentes. Inserido nesse esforço de compreensão
da sociologia no Brasil, proponho analisar as dimensões internacionais das práticas dos
agentes e de suas tomadas de posição no campo sociológico, à luz de mecanismos mais
5
Outro indicativo do crescente interesse pode ser verificado pelo menos desde a década de 1990, conforme
evidencia a programação dos Encontros Anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Ciências Sociais (Anpocs). Ainda que não faça menção ao termo “internacionalização” strictu sensu,
podemos constatar discussões a respeito de intercâmbios científicos entre países e reflexões acerca do papel
das ciências sociais latino-americanas no cenário mundial. Nos últimos anos, os Encontros têm dedicado
mesas e fóruns específicos para tratar do assunto. Além disso, a internacionalização também afigurou como
uma questão relevante nos últimos Congressos Brasileiros de Sociologia, enfatizando os diálogos
transnacionais e a interface entre contextos locais, nacionais e globais.
28
Justificativa
Objetivos
Estrutura da dissertação
Procedimentos metodológicos
Como salientei, no capítulo primeiro realizo uma revisão de literatura sobre os temas da
geopolítica do conhecimento, dependência acadêmica e a formação de um espaço global
das ciências sociais, procurando com isso inserir essa dissertação num campo discursivo
de estudos específico. Já nos capítulos segundo e terceiro, realizo um balanço histórico
da formação e desenvolvimento das ciências sociais no Brasil, amparado por literatura
pertinente. Aos analisar os condicionantes institucionais e internacionais das práticas
científicas, lanço mão de fontes secundárias de dados provenientes de pesquisas já
realizadas sobre o tema, além de dados concedidos por órgãos de fomento.
Com isso, é no capítulo quarto que gostaria de me deter aqui, dado que nele
procuro fornecer dados primários e utilizar procedimentos de estatística descritiva. Para
compor o campo sociológico nacional, considerarei os professores-pesquisadores filiados
aos programas de pós-graduação (PPG) alocados conforme a classificação “Sociologia”
da Capes, incluindo aqueles programas “mistos”, como “Sociologia e Antropologia”. No
caso destes, levantarei os dados daqueles professores vinculados ao departamento de
sociologia. O recorte empírico se justifica pois, como enfatizam Dwyer et al (2013), o
conhecimento em sociologia produzido no Brasil é realizado sobretudo por professores
vinculados às universidades, principal local de atuação profissional nos âmbitos da
pesquisa e ensino, e a carreira acadêmica configurando principal horizonte dos
sociólogos.
32
6
Sistema de avaliação dos PPG realizado pela Capes, inicialmente trienalmente e, a partir de 2013, a cada
quatro anos. Seus objetivos são garantir a qualidade dos cursos de mestrado e doutorado no Brasil,
analisando as propostas de novos programas e descredenciando aqueles que não cumpriram com os
requisitos mínimos de qualidade. Os fundamentos norteadores da avaliação envolvem o 1) reconhecimento
e confiabilidade assegurados pelos pares; 2) critérios atualizados e debatidos dentro de cada campo
disciplinar sob avaliação; e 3) transparência firmada na divulgação, ações e resultados. A Capes classifica
os programas segundo notas de 1 a 7, sendo 3 o requisito mínimo para ter um curso de mestrado. Mais
informações: hhtps://avaliacaoquadrienal.capes.gov.br
33
(Elaboração própria)
Programas de Programas de
Triênio 2010 -2012
Quadriênio 2013-2016
excelência excelência
PPGS-UFSCAR PPGS-UFPE
PPGS-Unicamp PPGS-UFSCAR
PPGS-UnB PPGS-Unicamp
PPGS-Usp PPGS-Usp
PPGS-UFRGS PPGS-UFRGS
PPGSA-UFRJ PPGS-UnB
PPGSA-UFRJ
(Elaboração própria)
Dessa forma, foi possível averiguar se, e como, os agentes se diferenciam na estrutura do
campo tendo em vista as dimensões internacionais analisadas, por meio de correlações de
variáveis.
CAPÍTULO I
Prelúdio
Em seu artigo “Globalização: Novo paradigma das ciências sociais”, Octávio Ianni
(1994) discute as transformações pelas quais passam as sociedades no fim do século XX
e o seu impacto epistemológico para a disciplina da sociologia. As relações e os processos
sociais se desenvolvem cada vez mais em escala mundial, exigindo a reformulação do
repertório analítico da disciplina. A globalização, argumenta, põe em evidência a
obsolescência de paradigmas clássicos, atualizando as noções de tempo e espaço, micro
e macro, universal e particular. Mas não são apenas as lentes de observação da realidade
social que são renovadas. Movimento constitutivo da globalização, as trocas globais
propiciam a contestação do conhecimento sociológico ocidental, já que cientistas sociais
de todo o mundo estão dialogando cada vez mais entre si.
Ampliação, diversificação, assimetrias e tensão na sociologia global – eis as pistas
deixadas por Ianni que desenvolverei neste capítulo. No que segue, discuto a referida
globalização, situando-a historicamente como parte de uma conjuntura de crise do
imperialismo e a emergência de novos estados nacionais. Procuro mostrar que a
ampliação do número de praticantes da ciência em associações regionais e internacionais
não significou apenas diversificação, mas também reforçou mecanismos geradores de
desigualdades na produção e circulação do conhecimento sociológico, consolidando uma
estrutura diferencial que engendra a formação de “centros” e “periferias”. Em seguida,
faço uma revisão crítica do conceito de dependência acadêmica conforme três autores que
se esforçam em pensá-lo sociologicamente. Argumento, por fim, que os conceitos de
campo e espaço social são pertinentes analiticamente para apreender relacionalmente, e
de forma dinâmica, a estruturação de campos nacionais tendo em vista as desigualdades
presentes no plano internacional.
Ampliação e diversificação
sociais. Ele se tornou popular ainda na década de 1980 nas áreas de jornalismo econômico
e entre teóricos da administração, expressando estratégias corporativas de expansão de
negócios para outros países. Seu uso pela sociologia só veio a florescer na década de
1990, e seus proponentes em grande medida trataram o fenômeno como um fato, sem
questionar a origem do conceito. Ao fazê-lo, expandiram em escala conceitos como
modernidade, risco e sociedade (CONNELL, 2007). Apesar disso, desenvolvimentos
posteriores tornaram o tema mais complexo e multifacetado, e vale a pena uma breve
incursão sobre seu significado. Uma definição sintética é fornecida por Heilbron et. al.
(2018), destacando-se sua referência à temporalidade e à questão do poder:
"Globalization, past and present, can be defined as those processes that are
fundamentally concerned with a widening scope of cross-border
communication, the intensification of transnational mobility, and the growing
dependency of local settings on global structures. All of these processes,
however, depend on resources that are unequally distributed and that are at the
root of asymmetrical power relations”. (Ibid. 2018, p. 02)
7
O World Social Science Report (Relatório Mundial de Ciências Sociais) é produzido trienalmente pelo
International Social Science Council (Conselho Internacional de Ciências Sociais), coeditado pela Unesco.
O relatório busca dar uma visão abrangente da produção das ciências sociais mundiais e conta com a
participação de pesquisadores de todo o mundo.
42
as regiões do mundo possuem tanto sistemas científicos nacionais, dos quais as ciências
sociais fazem parte, quanto associações regionais, como o Arab Council for the Social
Sciences (ACSS), para o mundo árabe, o Conselho Latino Americano de Ciências Sociais
(Clacso), para a América Latina, a Association of Asian Social Sciences Research
Councils (AASSREC), para a Ásia, e o Council for the Development of Social Science
Research in Africa (CODESRIA), para a África.
Essa ampliação global teve como uma de suas consequências não apenas a
diversificação dos seus praticantes, mas também – e necessariamente – marca uma
inflexão crítica a respeito do estatuto científico das ciências sociais “ocidentais”. Com
efeito, a segunda metade do século XX viu emergir uma variedade de correntes
intelectuais críticas ao cânone tradicional das humanidades em geral, e das ciências
sociais em particular. Essas correntes se caracterizam, inicialmente, pela não
identificação imediata a uma disciplina única dentro do regime discursivo8 próprio do
universo acadêmico. O chamado pós-colonialismo e a crítica decolonial, por exemplo,
têm entre seus precursores filósofos, escritores, críticos literários, antropólogos e
sociólogos. Essa inflexão é caracterizada pelo questionamento da suposta universalidade
da teoria social ocidental, que teria como pressuposto a particularização de saberes de
outras partes do mundo (VESSURI, 2014). Essa universalidade, ademais, seria calcada
sobre pressupostos evolucionistas, na medida em que a inteligibilidade da realidade social
e a formação dos cânones clássicos opera segundo uma divisão entre “modernos” e
“primitivos”, tendo como único referencial empírico as transformações ocorridas nas
sociedades europeias e americana (CONNELL, 2006). Além do questionamento de sua
universalidade, também são cada vez mais disputados os critérios de qualidade científica,
pertinência e visibilidade internacional.
Apenas para fins analíticos, diferenciarei essa inflexão entre “intervenções
epistemológicas” e “críticas sociológicas”, concentrando minha atenção e análise nesta
última. No plano do real, as duas frentes são relacionadas, uma vez que ambas operam
dentro do que o que podemos chamar de uma “geopolítica do conhecimento”, ou seja, a
constatação de que há “posições assimétricas atribuídas às diferentes regiões do mundo
no que concerne à produção do conhecimento” (COSTA, 2013, p. 264), em grande parte
vinculadas a processos históricos de dominação política mais amplos.
8
O uso do termo “discurso” aqui, como também seu uso posterior quando associado às disciplinas
acadêmicas, tem seu sentido conforme acepção foucaultiana (FOUCAULT, 2012).
43
Vertentes críticas
9
A lista é extensa, e não pretendo realizar uma descrição exaustiva da tradição. Outros autores incluem
Homi Bhabha, Dipesh Chakrabarty, Ranajit Guha e Stuart Hall.
44
também geográfica, seria constituído por uma imagem invertida daquilo que seria o
“Ocidente”, ponto de partida discursivo de tais caracterizações. Esse discurso acadêmico
organizara-se segundo uma disciplina acadêmica – o orientalismo – que procurou
compreender os povos das áreas colonizadas nessa chave etnocêntrica. Ao fazê-lo, esse
campo discursivo não só naturalizou a dominação colonial, como também a justificou.
Podemos mencionar também Gayatri Spivak (1942-) que, em seu seminal ensaio
Pode o Subalterno falar? (2012[1985]), elabora uma densa análise a respeito da relação
entre os discursos ocidentais e a possibilidade de fala (ou de agência) do sujeito subalterno
(especificamente feminino), enfatizando a violência epistêmica que é muitas vezes
constitutiva dos primeiros em relação aos segundos. Partindo de uma crítica aos autores
franceses pós-estruturalistas Deleuze e Foucault, Spivak chama a atenção para o lugar
geopolítico de enunciação do discurso acadêmico e a posição social do intelectual
(ocidental) dentro do modo de produção capitalista internacional, afirmando que ele não
pode ignorar o papel da ideologia na conformação da subjetividade do sujeito subalterno,
tampouco deve ignorar a sua cumplicidade (involuntária) na reprodução das estruturas de
dominação sempre que intenta “falar” pelos oprimidos.
O pós-colonialismo em sua vertente anglófona toma como referência geográfica
aqueles territórios subjugados pela colonização inglesa nos séculos XIX e XX, sobretudo
do Sul e Sudeste Asiático. Assim, a despeito da possível generalidade de suas reflexões,
sobretudo no que diz respeito aos grupos oprimidos nas sociedades, sua crítica foi
circunscrita a uma área geográfica e um marco temporal específicos. Ainda que
dialogando com as ciências humanas no geral, e seus precursores não sendo cientistas
sociais, as questões levantadas por esses autores tiveram repercussões grandes na
sociologia e antropologia. Por exemplo, Said lembra que a construção de “tipos” nas
ciências sociais geralmente se baseia numa repartição ontológica entre “ocidentais” e
“orientais” (como em Marx e Weber), ao passo que Spivak se refere ao modo como todo
o conhecimento ocidental está intricado com dinâmicas de poder da ordem geopolíticas.
Se o pós-colonialismo dá ênfase à violência epistêmica derivada dessa experiência
histórica e política, os chamados autores decoloniais, provenientes da América Latina,
alargam o horizonte temporal e atribuem à colonização ibérica a gênese de uma lógica
epistêmica específica (BALLESTRIN, 2013). Além disso, os autores dessa escola
também buscam romper com o regime disciplinar das ciências, advogando não apenas a
sua superação como também a valorização (e legitimidade) de outras tradições não
ocidentais de produção do conhecimento, como os saberes indígenas. Ratificando o
45
10
Na verdade, trata-se da versão escrita e revisada de sua conferência proferida no 38ª Encontro Anual da
Anpocs, em 2014, em Caxambu (MG).
48
sociais, cognitivas e epistemológicas para além daquelas que têm como referência o
Ocidente (entendido como os EUA e a Europa Ocidental). Alguns entendem que qualquer
teorização nas ciências sociais deve levar em conta o “encontro colonial”, ou seja, a forma
como a colonização impactou diferentes regiões do mundo gerou experiências sociais
diversas. Por essa característica generativa, a colonização teria um estatuto
“ontoformativo” (CONNELL, 2015). Há, também, outros propondo a existência de uma
“sociologia não exemplar”, cujo horizonte teórico não seria respaldado aprioristicamente
pela ideia de “modernidade” nos termos sociológicos clássicos (ROSA, 2013).
Na antropologia hegemônica11, o questionamento sobre a viabilidade de um
conhecimento antropológico acompanha a disciplina praticamente desde o seu
surgimento. Malinowski já demonstrava preocupação, no prefácio de Argonautas, com o
que seria o “objeto” antropológico: povos nativos que estariam desaparecendo frente ao
processo de colonização. Cerca de 40 anos depois, Lévi-Strauss (1962) retoma essa
preocupação, argumentando, porém, que a identidade da disciplina não repousaria sobre
a existência de um “objeto” específico, no caso os chamados “povos primitivos”, mas sim
sobre uma determinada relação entre o observador e o observado. Em outras palavras, a
antropologia não se definiria pelo objeto, mas por um tipo de abordagem por meio da
qual a diferença constitui o eixo epistemológico fundamental.
De fato, é por volta da década de 1980 que um grupo de acadêmicos, constituído
por antropólogos e historiadores da antropologia, passou a repensar a maneira como a
disciplina vinha sendo feita. Situado sobretudo nos EUA, compunha esse grupo nomes
como George Marcus, James Clifford, Michael Fischer e, ainda que como um interlocutor
frequente, Clifford Geertz. Com forte influência da filosofia francesa, sobretudo do
projeto de desconstrução derridariano e da teorização do saber/poder de Foucault, esse
grupo pôs em xeque a forma como eram representados os nativos, questionando a
“autoridade etnográfica”, e situando o sujeito do conhecimento antropológico dentro de
um projeto político mais amplo de colonização. Ao relacionar arte com cultura, por
exemplo, Clifford (1994) sublinhou que qualquer história da disciplina deve considerar o
ato de colecionar como um aspecto definidor da subjetividade ocidental. Dessa forma,
11
Seguindo Ribeiro (2014), considero como produção antropológica contemporânea aquela desenvolvida
nos e pelos EUA, Inglaterra e França. São hegemônicas pelo raio de influencia e difusão, levando em
consideração a constituição histórica da disciplina.
49
argumenta, uma história das coleções de artefatos é uma chave para compreender como
o Ocidente se apropriou dos fatos “exóticos” e seus significados.
Vertentes sociológicas
12
Os autores reconhecem a limitação desta base de dados, já que ela privilegia a produção de regiões já
centrais, como a América do Norte e Europa Ocidental. Contudo, eles argumentam que os indicadores
escolhidos na análise podem ilustrar dinâmicas internacionais que lançam luzes sobre a relação entre
pesquisadores de distintas regiões, e confirmar a hipótese de que há um padrão, em seus termos, de “centro
– periferia” na produção e circulação científica das ciências sociais.
51
conformidade dos povos subjugados; 3) tutela dos colonizados; 4) o papel secundário dos
povos dominados; 5) a existência de uma racionalização científica sobre o imperialismo;
e 6) o papel inferior dos profissionais provenientes das potências que trabalham e se
especializam nas colônias. (Ibid. p.23 – 24). Seu filho, Syed Farid Alatas, em conhecido
artigo de 200313, Academic Dependency and the Global Division of Labour in the Social
Sciences, retoma o debate, afirmando a ocorrência de um neocolonialismo no mundo
acadêmico, mas que não operaria de forma direta, como no passado. Sua manutenção se
daria indiretamente via dependência acadêmica, operando num plano estrutural.
As atuais “potências” das ciências sociais seriam os EUA, o Reino Unido e a
França, e essa caracterização é devida, no que diz respeito à atividade científica, a esses
países produzirem grande quantidade de artigos e resultados de pesquisa; à visibilidade
internacional de que goza sua produção; à capacidade de influenciar as ciências sociais
de outros países; e pelo reconhecimento e prestígio que possuem. Para dar sustentação a
essa argumentação, o autor elabora uma definição de dependência acadêmica inspirada
por uma certa leitura de uma parte da tradição da teoria da dependência latino-americana.
Para ele, o fenômeno em questão define-se pela “condição segundo a qual as ciências
sociais de certos países são condicionadas pelo desenvolvimento e crescimento das
ciências sociais de países dos quais os primeiros são subjugados” (ALATAS F., 2003, p.
603). Especificamente, essa relação de subordinação ocorre quando algumas
comunidades científicas podem se desenvolver segundo alguns critérios estabelecidos
autonomamente, ao passo que outras comunidades apenas o fazem como um reflexo
desses critérios. Essa relação opera, segundo o autor, dentro de um continuum de centro-
periferia14.
As dimensões da dependência seriam várias. Em seu artigo de 2003, elenca seis
delas: 1) dependência de ideias; 2) dos meios através dos quais essas ideias circulam; 3)
das tecnologias de educação; 4) da ajuda para pesquisa e ensino; 5) de investimento em
educação; e 6) dependência dos pesquisadores da periferia de se especializarem no centro.
13
De fato, as métricas apontadas pela SAGE, uma das maiores editoras de periódicos privadas do mundo e
onde fora publicado, indicam a abrangência de seu alcance. É o segundo artigo mais referenciado no âmbito
do periódico Current Sociology, onde foi publicado, além de ter recebido 114 citações em outros periódicos
anexados em bases da corrente principal.
14
Farid Alatas chega a criar uma terceira-categoria, a de “semi-periferia” para indicar aquelas comunidades
científicas de países como Holanda, Alemanha e Japão, que contam com grande produção científica e
recursos, mas são dependentes em alguns aspectos dos países centrais.
53
15
Na história da sociologia no Brasil, essa posição encontra grande ressonância com o pensamento de
Guerreiro Ramos. Para uma análise comparativa entre autor brasileiro e H. e F. Alatas, ver Caruso (2016).
54
16
Como a autora reconhece, a historiografia da ciência já abandonara tal modelo, salientando que a
chamada “ciência ocidental” contou com a interação de diversas sociedades além da Europa Ocidental, sem
negar, contudo, a presença de relações de poder – uma visão eminentemente pós-colonial.
17
Alguns estudos recentes sobre recepção de teorias sociológicas na América Latina são importantes de
serem mencionados, por argumentarem que a circulação do conhecimento não é um processo de simples
importação mecânica (cf. VILLAS BÔAS, 2006; BRASIL JR, 2013)
57
unidades de análise e o fato de que a própria circulação pode contribuir para a estruturação
de “campos dependentes”.
Creio que sua reformulação do modelo inicialmente proposto de centro e periferia
para a compreensão a circulação internacional das ideias constitui um importante avanço.
Concordo com a autora quando diz que a análise da circulação do conhecimento, seja ele
através de textos, ideias, ou incorporados em pesquisadores, deve necessariamente levar
em conta as hierarquias e desigualdades (matérias e simbólicas) que operam dentro da
comunidade internacional, afetando de forma diferencial a integração e a participação de
campos científicos. Mais significativo, aliás, é sua incorporação crítica da noção de
campo. Nesse movimento, a autora reconhece que a circulação envolve o interesse, logo
a agência de agentes posicionados nos campos do polo “periférico”, e que a circulação
pode alterar a estrutura desse campo.
18
Essa diferenciação entre os autores é significativa e instrutiva para o tema geral da pesquisa, qual seja, o
da internacionalização do conhecimento. Concepções generalizantes sempre entrarão em conflito com
situações concretas e particulares. Isso ocorre, entre outras coisas, pois as ideias e os textos não viajam com
o seu contexto de produção, frequentemente gerando desentendimentos (cf. BOURDIEU, 1999)
58
ênfase de Bourdieu na unidade nacional, bem como sugere os efeitos da circulação sobre
a estruturação de campos periféricos, para Beigel o que está em jogo é justamente a noção
de “autonomia”, com o “nacional” constituindo importante unidade de análise na
compreensão das dinâmicas científicas de regiões periféricas (Ibid. 2010, p. 17). Tomada
não como um fim em si mesmo ou como um reflexo do que deveria ser um campo
autônomo (sempre inspirado em modelos de “outras latitudes”), ela analisa o complexo
processo de autonomização do campo acadêmico em regiões como a América Latina. A
noção de “elasticidade” da autonomia é central em sua análise, dada sua ênfase sobre as
dinâmicas históricas que se relacionam com a estruturação dos campos periféricos. Dessa
forma, temos a expansão da autonomia universitária e a criação de um circuito regional
de consagração acadêmica, como foi o caso na América Latina, com importante papel
desempenhado pelo Chile em meados da década de 1960, com a criação de institutos de
pesquisa, como o Cepal, Flacso, Clacso e Ilpes, constituindo um polo de atração de
pesquisadores da região. Por outro lado, observamos a sua contração derivada da
repressão exercida pelos regimes ditatoriais em países da América Latina sobre a
produção universitária entre as décadas de 1960 e 1990.
Analiticamente, a autora (Ibid, 2010, p. 16 – 17) distingue três tipos de autonomia
em campos periféricos. Primeiramente, a autonomia universitária, ligada a processos de
institucionalização, especialização, financiamento e profissionalização da profissão
acadêmica, e ocorreu na região por volta de 1950. Em seguida, a autora faz menção à
autonomia relacionada à criação de uma illusio acadêmica, nos termos de Bourdieu, como
o “interesse desinteressado” próprio de um campo cultural, incorporado pelos agentes
como as “regras do jogo”. Na América Latina, Beigel afirma que a criação dessa illusio
ocorreu paralelamente à institucionalização do campo, fazendo com que o pertencimento
institucional constituísse ele próprio um capital simbólico em disputa pelos agentes. Em
suas palavras:
“En los campos académicos del Cono Sur, el capital propriamente académico
(distinciones y prêmios, traducción a otros idiomas, citación, participación em
comités y colóquios internacionales) se fue diferenciando conjuntamente con
el processo de creación de escuelas, institutos u asociaciones profesionales.
Esto promovió la extensión del reconocimiento institucional como forma de
cristalización del prestigio individual, y com ello la consolidación de um
“capital temporal” que fue indispensable para la consagración de los científicos
sociales”. (Ibid. 2010, p. 26)
59
Por fim, a terceira distinção analítica estabelecida pela autora acerca da noção de
autonomia, e a mais significativa para os fins desta pesquisa, é aquela vinculada aos
efeitos da “internacionalização” do campo científico e das distintas forças que operam na
circulação internacional das ideias. Nesse âmbito, a dependência acadêmica pode ser
definida operativamente, referindo-se à estrutura desigual de produção e circulação do
conhecimento, historicamente construída nos chamados “centros de excelência”, sem a
participação das comunidades científicas periféricas. Esse processo envolveria a
paulatina valorização da publicação de artigos em periódicos especializados, tomados
como critérios avaliativos não apenas da “excelência” científica por parte de organismos
públicos, como também por parte de institutos públicos e privados de financiamento para
pesquisa e estruturação das carreiras individuais.
Esses modelos de avaliação, reconhecimento e acreditação científica se
generalizaram para além dos “centros de excelência”, constituindo o que a autora chama
de “sistema acadêmico mundial” (SAM), conformando os circuitos de publicação,
prestígio e consagração denominados de “corrente principal” (mainstream). O SAM se
define pela 1) “universalização” da bibliometria como ferramenta de avaliação da ciência;
2) pela supremacia do inglês nas publicações internacionais; e 3) pela concentração de
capital acadêmico em determinados polos. Trata-se, portanto, de uma relação de
dominação simbólica, que hierarquiza distintos circuitos de prestígio acadêmico, tanto no
âmbito das publicações quanto no das mobilidades. Corolário dessa hierarquização é que
a posição de determinada comunidade científica ou de um determinado investigador se
relaciona com sua integração histórica aos circuitos da corrente principal. Com isso,
segmenta-se não apenas a profissionalização em campos periféricos entre aqueles com
maior inserção internacional, e os que possuem redes locais: hierarquiza-se também os
circuitos de publicação – transnacional, nacional, regional, local e internacional – com
distintos impactos sobre a estruturação as carreiras em termos de avaliação da produção
científica e de progressão de carreira (BEIGEL, 2014).
Em suma, o novo caráter da dependência acadêmica, para Beigel, manifesta-se na
crescente heterogeneidade estrutural do campo, na heteronomia dos critérios de
avaliação, e na externalização dos princípios de legitimação da produção científico social
(BEIGEL, op. cit. p.13). Ela é marcada por uma tensão entre duas culturas avaliativas,
qualificadas como opostas por Beigel, de práticas científicas em comunidades periféricas.
De um lado, uma menos ligada a um “capitalismo acadêmico”, seguindo critérios
endogâmicos regionais e locais de prestígio e consagração acadêmicos, ainda que pouco
60
Após a breve descrição das perspectivas aludidas anteriormente seria frutífero pontuar o
que considero problemático em suas formulações. Procedendo dessa forma, tenciono
elaborar uma chave de análise para compreender o relacionamento desigual entre
comunidades científicas internacionalmente, incorporando alguns de seus pressupostos e
agregando outros aspectos ainda não explorados até aqui.
19
A autora (BEIGEL, 2013, p 171 -172) destaca como, na América Latina, a politização do campo
acadêmico não significou heteronomia. Entre as décadas de 1960 e 1970 vimos crescer uma miríade de
estudos empíricos e conceitos inovadores, como aqueles provenientes das teorias da dependência, o
estruturalismo cepalino, o colonialismo interno e a marginalidade.
61
Essa problemática está na raiz de seu próprio gesto classificatório, já que nele está
embutido uma comparação e, como tal, sempre envolve a definição e parâmetros prévios
de contraste ou afinidade. A observação de Bourdieu é oportuna para o argumento que
proponho. Para ele, “as classificações práticas estão sempre subordinadas a funções
práticas e orientadas para a produção de efeitos sociais” (BOURDIEU, 2008, p. 107).
Quando o discurso científico utiliza termos como “desenvolvido” e “subdesenvolvido”,
“autônomo” e “dependente” e até mesmo “central” e “periférico” para classificar
diferentes “sociologias”, ou seja, quando erige categorias com funções práticas à
qualidade científica, contribui para a perpetuação de uma determinada visão de mundo.
Não à toa, o que fica implícito em seu modelo é que o princípio classificatório entre as
distintas “sociologias” internacionalmente posicionadas tem como inspiração o “modelo”
hegemônico das ciências sociais, que seriam, em seus termos, necessariamente
desenvolvidas, autônomas e centrais, pois só a partir do estabelecimento desse critério
seria possível nomear as outras como subdesenvolvidas, dependentes e marginais20. A
título de ilustração, é como se os termos “Primeiro Mundo” e “Terceiro Mundo”,
classificações práticas que desempenhavam função ideológica no período da Guerra Fria,
fossem alçadas à dignidade científica para explicar a produção e circulação do
conhecimento. Por isso, esta pesquisa, seguindo os passos de Bourdieu, dará ênfase às
relações, e não à substância do mundo social (BOURDIEU, 1989) enfatizando a forma
como agentes (individuais e institucionais), diferencialmente posicionados, relacionam-
se tendo em vista as desigualdades materiais e simbólicas presentes no plano
internacional.
Por fim, um elemento problemático na abordagem de Beigel é a sua tendência a
homogeneizar um espaço social que tem se caracterizado nos últimos anos pelo conflito
e pela disputa em torno de seu significado. Refiro-me à noção de “internacional”. Sua
ênfase nos distintos circuitos de consagração e nas hierarquias que eles estabelecem,
tendo em vista o SAM, associa necessariamente as publicações em inglês e em periódicos
ditos da corrente principal à dominação da produção periférica. De fato, a submissão de
artigos a esses periódicos envolve muitas vezes a subordinação a critérios nacionais (por
exemplo, um periódico da Associação Americana de Sociologia) que não levam em conta,
20
Em seu artigo de 2003, Farid Alatas incorre na mesma estratégia, ao classificar as ciências sociais como
centrais, periféricas e semi-periféricas. Ao fazê-lo, julga a produção das ciências sociais periféricas tendo
em vista o modelo daquelas centrais.
63
ou não se interessam, pelo diálogo mais global, ainda que sejam considerados por
agências de fomento de campos periféricos como “internacional” (MARTÍN, 2015;
MEDINA, 2014). A dominação simbólica também se expressa, evidentemente, no
aprendizado e proficiência do inglês, dominante no cenário internacional.
A despeito desses aspectos, cabe questionar em que medida as publicações nos
circuitos da corrente principal necessariamente implicam a alienação e o arrefecimento
de temas locais, tendo em vista o reconhecimento crescente de instituições, editores e
autores em relação às desigualdades presentes na circulação internacional do
conhecimento e nas especificidades de sua produção em contextos distintos (MARTÍN,
2018), sinalizando a reflexividade do mundo social nos termos de Guiddens (1996). Vale
lembrar que, para este, o conhecimento sociológico estaria submetido a uma
“hermenêutica dupla”, através da qual os atores sociais interpretam tal conhecimento,
tendo o potencial de reorientar suas condutas e ações, modificando, pois, o próprio mundo
social. Isso exigiria do sociólogo uma reinterpretação desse mundo, sempre em mutação.
O mundo social em questão seria o próprio mundo acadêmico. O crescente
questionamento do significado de “internacional”, as críticas em relação ao
eurocentrismo, ao “colonialismo acadêmico” e à própria dependência acadêmica, têm
implicações para o mundo editorial, institucional, para as instâncias de reprodução social
(ensino) e para as instâncias de produção (pesquisa). Dessa forma, trata-se de um
problema empírico saber em que condições se dá a circulação do conhecimento nessa
modalidade, como também nos planos regional e nacional.
Dos autores mencionados, Keim e Beigel utilizam o conceito de campo para compreender
a relação entre as práticas científicas nacionais e dinâmicas internacionais. Argumentei
que a primeira oferece ferramentas úteis para pensar a interlocução entre nacional e
internacional, ao reconhecer que a circulação do conhecimento é atravessada por
desigualdades materiais e simbólicas, afetando por isso a estrutura de determinados
campos. Contudo, sua preocupação classificatória deve ser vista com cautela, pelos
critérios que a embasam e por obscurecer a noção de autonomia científica. Já a segunda
autora evidencia a complexidade da autonomia dos campos periféricos, ao mesmo tempo
em que reconhece a existência de distintos circuitos de publicação e consagração para
além da corrente principal. Apesar disso, é problemático homogeneizar o espaço
64
Espaço social
(Nacional)
Campo do
poder
Campo cultural
Campo
científico
Campo
sociológico
(Elaboração própria)
21
No caso da América Latina, algumas pesquisas têm questionado essa diferenciação feita por Bourdieu
entre, de um lado, o capital científico e, de outro, capital temporal, alegando que o prestígio científico e o
reconhecimento de pares estão diretamente relacionados à ocupação de cargos de poder político e temporal
no campo (cf. BEIGEL, 2014; CORADINI, 2013; HEY, 2008)
22
Conceito crucial em sua teorização, o habitus é um esquema de percepção e apreciação, funcionando
como estruturas cognitivas duráveis que os agentes adquirem através da experiência social ao longo da
66
vida. Ele é ao mesmo tempo um “sistema de esquemas de produção de práticas e um sistema de esquemas
de percepção e apreciação das práticas” (BOURDIEU, 1989, p. 158).
67
23
Esse problema foi primeiramente abordado por Connell (2007), a partir da constatação de que muitos dos
teóricos da globalização reificam a noção de uma “sociedade global”, imputando características das
sociedades nacionais (do Norte) para uma dimensão global sem levar em conta de fato as experiências e os
contextos globais.
68
todo – o que qualificaria o adjetivo “global” do campo. De forma mais geral, Dezaley &
Madsen (2013, p. 47) argumentam que a relação entre campos nacionais e espaços
internacionais não implica de forma alguma postular a existência ou a gênese de um
espaço das relações internacionais estruturado segundo uma lógica específica de campo.
Dessa forma, o âmbito “internacional” da sociologia pode ser melhor visto como
um espaço social internacional. A noção de espaço social conserva as propriedades
agonísticas presentes no conceito de campo sem, contudo, preocupar-se com sua
autonomização, ou com o princípio segundo o qual possuiria uma lógica interna de
funcionamento e uma comunicação orgânica entre os agentes que o compõem. Com
efeito, essa diferenciação entre campos e espaços é mais analítica, uma vez que o próprio
Bourdieu não pressupõe que essas noções sejam facilmente aplicáveis ou delimitáveis
(HEY, 2008). Ele é composto não só por organizações que tencionam um diálogo global,
mas também por agentes primariamente posicionados em campos nacionais. É um espaço
hierarquizado conforme a conceituação do SAM de Beigel, em que pese o idioma
hegemônico (inglês), a universalização da bibliometria e do artigo como critérios
avaliativos e de produção científica, e a distribuição desigual de recursos materiais e
simbólicos em determinados polos. Essa hierarquização reforça a marginalização de
determinadas produções científicas (KEIM, 2008), dificultando o acesso e a análise de
experiências sociais no plano global.
Cabe, aqui, pensar nos mecanismos que atuam na consolidação desse espaço. Para
isso, recorro ao modelo elaborado por Bulchholz (2016) para descrever o processo de
formação de campos globais, pensando, todavia, a formação do espaço internacional da
sociologia. O primeiro aspecto envolve a criação de instituições voltadas para trocas e
intercâmbios internacionais. Aqui, podemos pensar as associações regionais e
internacionais de sociologia e os congressos e fóruns que elas realizam; os periódicos
voltados para discussões internacionais; instituições de pesquisa e fomento que atuam
globalmente – em suma, todas as instituições que podem ser o loci de disputas entre
agentes vinculados a campos nacionais. Eles criam uma infraestrutura institucional que
torna regular o intercâmbio e a competição numa escala global.
O segundo mecanismo apontado pela autora diz respeito à formação de um
discurso específico ao campo global, de um “olhar global” particular. Em nosso caso, isso
pode ser visto nos recentes debates em torno da “sociologia global” (BURAWOY, 2009;
BHAMBRA, 2014), que procuram não apenas estabelecer um diálogo mais equânime
entre as diferentes sociologias realizadas no mundo, como também repensar os cânones
69
disciplinares por essa perspectiva. É no bojo desse regime discursivo que situamos as
críticas pós e decoloniais, mas também da necessidade de se pensar em “antropologias
mundiais” (RIBEIRO, 2014). Criam-se, dessa forma, práticas acadêmicas que visam
instaurar critérios de apreciação que levem em conta a relevância internacional de uma
pesquisa, o escopo global de um determinado tema etc.
Por fim, o terceiro mecanismo trata da formação institucional de avaliação,
apreciação e de capitais propriamente globais. Num espaço como o espaço internacional
da sociologia, essas instituições podem ser aquelas que procuram ranquear as
universidades segundo critérios (arbitrários) que levem em conta a dimensão
internacional (também arbitrária) de produção e práticas científicas. Esses critérios, que
tendem a favorecer o modelo americano de se fazer ciência (MARGINSON, 2008) não
apenas hierarquizam instituições e produções internacionalmente, como também
estratificam campos nacionais através das políticas de financiamento. Se aplicarmos o
modelo de autonomização vertical proposto por Bulchhoz (2016) à noção de espaço,
teríamos a emergência de um espaço global da sociologia esquematicamente representado
conforme a figura abaixo:
Campo
sociológico
EUA
Campos Campo
sociológico sociológico
Alemanha
Espaço BR
social
global
Campo Campo
sociológico sociológico
França UK
(Elaboração própria)
Epílogo
Uma análise sociológica que enfatiza a relação entre o campo sociológico nacional e as
dinâmicas internacionais deve considerar, portanto, as dimensões em que se dão a
inserção das práticas e das tomadas de posição dos agentes nacionais em distintos
circuitos de circulação do conhecimento, sejam eles regionais ou internacionais.
Consideremos, para isso, as diferentes publicações (em periódicos especializados, livros
e capítulos de livros) e as distintas mobilidades (formação doutoral, pós-doutoramento,
como professores e pesquisadores visitantes) como práticas do cotidiano acadêmico, que
expressam, além do mais, distintas tomadas de posições, ou estratégias, a depender das
escolhas possíveis dos agentes. Além de reconhecer a hierarquização entre os distintos
circuitos, tendo em vista a distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos, é
importante ter em mente que eles não são homogêneos. O circuito internacional, que
denominei espaço internacional, é ele também o lócus de disputas em torno do seu
sentido, resultado da entrada de novos agentes provenientes de regiões outras que o
“Ocidente”.
Nesse processo, as próprias organizações internacionais operam um movimento
reflexivo, de forma a repensar o status global da disciplina, propondo posicionamentos
mais dialógicos. Por outro lado, essa análise deve estar atenta às dinâmicas internas ao
campo nacional, considerando que as disputas em torno da hegemonia no plano
internacional também ressoam em práticas e posicionamentos de agentes nesse plano,
conforme verificadas em ações de órgãos de financiamento de pesquisa, sistemas de
avaliação da produção científica, políticas de internacionalização e consagração de
pesquisadores por parte de instituições competentes.
72
CAPÍTULO II
“Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e
espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias
sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se
encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo
que comprime o cérebro dos vivos”.
“De fato, quando se quer conhecer a forma como uma sociedade se divide
politicamente, de como essas divisões são compostas, e de como a fusão
mais ou menos completa se dá entre elas, não é com o auxílio de uma
inspeção material e observações geográficas que se pode alcançar; pois
essas divisões são morais, ainda que tenham alguma base na natureza
física”.
Prelúdio
Não são novos os deslocamentos de intelectuais e eruditos que cruzam fronteiras políticas
visando à formação e ao diálogo entre pares. Se nos limitarmos ao período compreendido
na Europa Moderno, entre os séculos XVI e XVIII, eruditos e filósofos naturais já
cruzavam fronteiras, trocavam informações e formavam uma comunidade transnacional
denominada República das Letras. Cidades como Londres, Paris e Veneza constituíam
centros de atração, e o intercâmbio intelectual ocorria intensamente nas emergentes
bibliotecas públicas e nos cafés (BURKE, 2003). Isso para não mencionar as expedições
que perscrutaram oceanos para a saciar a curiosidade e a sede de domínio de aventureiros,
reis e autoridades. Mobilidade e espaço podem ser considerados, portanto, elementos
importantes para a compreensão sociológica e histórica da produção do conhecimento.
Talvez um bom exemplo dessa proposição seja a história dos próprios clássicos
da teoria social. É difícil imaginar a concepção de uma obra faraônica como O Capital se
Marx não tivesse escolhido a Inglaterra como lugar privilegiado de estudo. Ou o impacto
de uma viagem à Alemanha sobre Durkheim e sua concepção de sociologia. Contudo, é
Tocqueville, Martineau e Weber que fornecem a maior ilustração da importância da
mobilidade, pela influência que a suas jornadas aos EUA significaram para a suas obras
posteriores. Para não mencionar, claro, a importância do contato com as tradições
europeias para a teorização de Parsons, ou o refúgio de centenas de intelectuais europeus
no período da II Guerra para os EUA, contribuindo para o desenvolvimento desta que
viria a ser a maior potência científica do mundo. Mobilidade, fluxos internacionais,
espaços e conhecimento, eis os temas abordados neste capítulo.
Após o estabelecimento dos parâmetros que nortearão a análise, lanço mão de
bibliografia pertinente para averiguar de que forma a mobilidade atuou como uma
dimensão internacional prática na conformação do campo sociológico. Para isso, procuro
pelo significado que ela adquiriu em cada período histórico, em consonância com as
particularidades políticas e institucionais do campo e do espaço social mais amplo.
Parâmetros de análise
24
Gilberto Freyre, vale lembrar, foi aluno de Franz Boas, e aquele imprimiu os postulados aprendidos com
este em suas reflexões sobre o papel da cultura na conformação da sociabilidade brasileira.
76
25
Aludo o leitor aqui para duas referências recentes importantes no que tange à reinterpretação da história
das ciências sociais no Brasil para além da atuação dos franceses e americanos. O primeiro é o volume 62,
n. 1 da Revista de Antropologia, da Usp, que traz uma série de artigos sobre o intercâmbio entre brasileiros
e alemães no desenvolvimento da antropologia no país. Também aludo ao artigo de Maia (2017) sobre a
contribuição do pensamento social para uma compreensão da sociologia global.
77
A presença francesa em terras brasileiras não é fenômeno restrito ao século XX. Sabemos
pela história que o país europeu tentou inúmeras vezes colonizar o Novo Mundo, a
despeito do domínio português. Todas as tentativas não foram satisfatórias. No que diz
respeito ao domínio propriamente intelectual e científico, Petitjean (1996a) periodiza em
pelo menos cinco os momentos em que se deram as trocas entre os dois países, e vale a
pena apenas mencioná-los a título de contextualização histórica.
O primeiro momento data do fim do século XVII e metade do XIX, com o
intercâmbio entre naturalistas dos dois lados do Atlântico. É dessa época, ademais, que
figuras conhecidas ganham renome, como o pintor Jean-Baptiste Debret e o naturalista
Auguste de Saint-Hilaire. O segundo período corresponde à construção do Estado
brasileiro, através da adoção de uma política consciente de desenvolvimento científico no
último terço do século XIX. Essa modernização foi inspirada em grande medida pelo
modelo napoleônico de organização da indústria e da ciência. Em seguida, o terceiro
momento é marcado pela emergência de uma política francesa mais sistemática de trocas
científicas com a América latina, com a criação do Groupement des Universités et
78
Grandes Écoles de France pour les Relations avec l’Amérique Latine26., em 1907. Seu
apogeu ocorre nos anos de 1920, dissolvendo-se em 1940, e expressou mais um interesse
diplomático do que propriamente científico.
O quarto período é o que nos interessa, pois tem seu início na simbólica data de
1934, com a criação da Usp. O lugar da França, contudo, é mais restrito às ciências
humanas e sociais, diferentemente dos outros períodos nos quais as ciências naturais eram
mais relevantes para as trocas e intercâmbios. O quinto e último período, na verdade, diz
respeito ao enfraquecimento de um modelo francês a ser seguido, com a hegemonia
mundial do Big Science americano. Contudo, conforme veremos mais adiante, no âmbito
das ciências sociais, e da sociologia em particular, o intercâmbio com o país de Napoleão
ganha novos significados em fins do século XX e início do XXI.
Assim, o que veio a se denominar “Missões Francesas” é mais um capítulo das
trocas entre os dois países, de certa forma uma continuidade cultural de relações mais
antigas. Para Petitjean (1996c), a fundação da Usp expressava um projeto triplo: político
liberal (formar elites paulistas para modernizar a nação brasileira); educativo (uma
universidade moderna, à imagem dos países europeus); e científico27 (forte demanda de
formação de pesquisadores). Para Miceli (1989), a razão para tal projeto se dar em São
Paulo não é fortuita, e se relaciona com a progressiva transformação da capital no centro
mais dinâmico dos processos de industrialização e urbanização do Brasil. Esse cenário
teria contribuído para a consolidação de uma estrutura social marcada pela diferenciação
ocupacional e especialização funcional no interior das elites dirigentes. Setores dessas
elites, particularmente empresários ligados aos setores de informação e produção cultural,
como a família Mesquita, demandaram cada vez mais profissionais qualificados com
formação específica.
Ponto de convergência entre elite paulista e mundo científico francês, o filósofo e
psicólogo George Dumas (1886-1946) se encarrega de selecionar aqueles interessados
26
A atuação do Groupement no Brasil foi intensa, e representou um primeiro intercâmbio significativo
entre os dois países, através do qual cientistas franceses vinham ministrar aulas e palestras para a classe
letrada, ávida pela modernização. No entanto, sua natureza era mais filosófica e ideológica do que
propriamente científica, pois não havia recrutamento de brasileiros nem a execução de pesquisas. Apesar
disso, serviu para aproximar pesquisadores e abrir terreno para futuros intercâmbios. Para mais
informações, ver Petitjean (1996b).
27
Como aludido, os franceses foram predominantes nas ciências sociais. Nas disciplinas de exatas, verifica-
se a presença maior de italianos e alemães.
79
em embarcar para o Brasil – não mais para estadias curtas, mas sob um contrato que
estipulava a permanência por, no mínimo, três anos. Não à toa, o perfil demográfico dos
interessados atestava a natureza do empreendimento: jovens, com pouca ou nenhuma
experiência universitária e dispostos a viver tal aventura. Como salienta Massi (1989), a
média etária era de 35 anos, os mais jovens possuindo 27 anos, como era o caso de Claude
Lévi-Strauss, que chegou ao Brasil em 1935.
Vários fatores concorreram para a vinda dos jovens professores: a instabilidade
política e econômica na França; a ameaça fascista; a revolta, por parte deles, contra o
estado da arte intelectual da França e a possibilidade de abrir um campo novo de pesquisa
e criar novos paradigmas (MASSI, 1989; PETITJEAN, 1996c). É importante lembrar que
os professores franceses tiveram uma formação generalista, e a sociologia não
constituindo, à época, uma disciplina institucionalmente generalizada nas universidades
em geral. O modelo sociológico girava em torno de Durkheim e de sua “escola”, e não
estava formalizada plenamente como uma disciplina independente. O quadro abaixo foi
adaptado de acordo com as disciplinas das aulas ministradas por eles na FFCL da Usp,
no período entre 1934 e 1972.
Fréderic Mauro
(1953-55)
M. Bataillon
(1953-54)
Jacques Godechot
(1953-54)
1996c, p. 315). Não à toa, o público das primeiras turmas dos cursos de ciências humanas
da Usp era constituído em sua maioria por integrantes dessa elite, já acostumada com o
francês, idioma tido à época como símbolo da modernidade cultural e política. Ao analisar
os condicionantes do desenvolvimento das ciências sociais no Brasil, Miceli (1987)
também identificou esse afastamento dos interesses da elite em relação à realidade das
camadas populares, podendo ser expresso na escolha dos temas de pesquisa e ensino,
teorias e objetos de investigação.
O espaço de relações sociais entre elites locais e francesas é preenchido por
professores e alunos. Quanto àqueles, conforme aludido anteriormente, o cenário
intelectual francês no período entre guerras é caracterizado pela hegemonia da sociologia
durkheimniana, estabelecida como disciplina complementar em algumas universidades e
revistas, com diferentes vertentes históricas e etnológicas. Também é desse período o
surgimento de movimentos críticos a esse establishment intelectual (MASSI, 1989;
QUEIROZ, 1996). É no bojo dessas disputas que ocorre a contratação dos professores.
Massi (1989) sugere que ambos, Julio Mesquita Filho e George Dumas, tiveram interesse
em contratar sucessores da sociologia durkheiminiana. Por outro lado, também se
interessaram em embarcar para o Brasil intelectuais críticos, como Lévi-Strauss e Roger
Bastide – não sem conflitos futuros28. Esse cenário motivou jovens, rebeldes ou não, a
viajarem para terras distantes, uma nova via profissional que poderia abrir novos temas
de pesquisa e paradigmas. Além disso, as pesquisas apontam para o quadro de
instabilidade política e econômica prevalente na Europa dos anos 1930 e 40.
Por parte dos seus alunos, a questão da ocorrência ou não do colonialismo
intelectual esteve longe de ser unívoca. Para Petitjean (1996c), alunos e colegas
professores das ciências exatas rechaçaram a ideia de colonialismo cultural, partindo do
pressuposto da universalidade da ciência e da necessidade do seu desenvolvimento no
Brasil. A resposta negativa também foi compartilhada por ex-alunos dos professores
estrangeiros em cursos de ciências humanas, ainda que com razões distintas de seus
congêneres das exatas. Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido, que vieram a se casar,
não compartilhavam da existência dessa tutela intelectual. Para o último,
28
Por conta de sua orientação etnológica e crítica de Durkheim, Lévi-Strauss, por exemplo, entrou diversas
vezes em conflito com Paul S. Batisde.
82
“A presença estrangeira não foi alienante, mas fundadora no sentido de que ela
foi fonte de iniciativa para nós [...] a presença dos professores foi, senão um
magistério explícito, uma sugestão de radicalidade cultural, e, até certo ponto,
política [...] Que eles tenham sido conservadores ou radicais, eles nos iniciaram
na atitude fundamental de um intelectual, a saber o não-conformismo, que vai
do desafio diante dos saberes estabelecidos até às afirmações de rebelião
política; que vai desde o desprezo pelos argumentos de autoridade, pelo culto
das citações ornamentais, ou pelo uso exibicionista da inteligência até a crítica
da organização social [...] Nossos mestres franceses nos ajudaram a ver o Brasil
real, porque era a consequência do espírito crítico que eles nos ensinaram”.
CANDIDO, A. apud PETITJEAN, 1996c, p. 318. Grifo meu.
“Eles ensinavam como tinham feito em Paris [...] Eles representam o papel de
difusão cultural em um país atrasado [...] Era nós, os estudantes brasileiros, que
cabia romper esta situação, e virá-la no sentido inverso. [...] De fato, nossa
relação com os professores estrangeiros não era percebida como uma relação
colonial, mas era concebida como uma relação intelectual livre. [...] Cabia a nós
questionar a missão civilizadora de um professor estrangeiro em um país
atrasado”. FERNANDES, F. apud PETITJEAN, op. cit. p. 320
profícua com essa literatura em suas pesquisas pessoais. No caso do último, Queiroz faz
uma leitura de sua obra tendo em vista a interação estabelecida entre as influências de sua
formação, especificamente Freud, e a literatura que ele encontrou no Brasil. As relações
raciais constituíram um tema de forte interesse de Bastide, e o uso que fez dos ensaios de
interpretação do Brasil foi muito além do que mera obtenção de dados: “discerniu e
valorizou principalmente as contribuições teóricas que haviam trazido às ciências sociais”
(QUEIROZ, 1996, p. 244).
No plano institucional, as missões também deixaram a sua marca indelével no
desenvolvimento das ciências sociais brasileiras. É Miceli (1987) quem nos esclarece
sobre esse ponto. Na Usp, a hierarquia acadêmica que vai se constituindo nas suas duas
primeiras décadas fora conformada por esses professores estrangeiros, treinados nas
regras e costumes da vida acadêmica europeia, todos eles preocupados em instaurar
padrões de avaliação, titulação e consagração conforme o modelo com o qual foram
socializados. Posteriormente, o que veio a ser denominado de “Escola Paulista de
Sociologia” constituiu os primeiros frutos dos alunos dos mestres fundadores, marcando
uma reflexão autônoma em relação aos postulados aprendidos.
Com efeito, a constelação de relações sociais que coloca em interação indivíduos
tão distantes entre si – geográfica, mas também intelectualmente – não apenas limita ou
constrange os indivíduos: também possibilita a criação e a inovação. É a isso que se refere
Fernandes ao valorizar a capacidade crítica dos alunos. É isso, também, que explica a
forma como os pesquisadores franceses também foram influenciados, de maneira intensa
e significativa, pela experiência no Brasil. É difícil conceber – se não impossível – a obra
monumental de Lévi-Strauss e Braudel sem levar em conta a sua permanência no país,
como de tantos outros cuja estadia influenciou decisivamente suas trajetórias. É isso, por
fim, que contribuiu para a formação de toda uma tradição sociológica.
formar quadros técnicos da elite paulistana. Inspirado pelo modelo de sociologia feito em
Chicago, Pierson imprime as marcas de uma sociologia profissional, cuja formação
priorizava aspectos práticos de pesquisa empírica. Essa mudança nos aspectos formativos
implicou a adoção do modelo institucional de pesquisa americano: primazia dos estudos
de pós-graduação, criação de grupos de trabalho nos quais cada aluno era inserido numa
pesquisa mais ampla, realização de seminários de leitura e orientação (MASSI, 1989).
Vê-se, assim, o quanto difere da formação bacharelesca e filosófica empreendida pela
sociologia uspiana nos quadros da missão francesa.
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, intenso intercâmbio era estabelecido entre
universidades americanas e o Museu Nacional. Nos anos de 1930, um acordo foi
estabelecido com a Universidade de Columbia, onde se encontrava o núcleo dinâmico do
culturalismo americano, com Franz Boas e Ruth Benedict entre seus principais expoentes.
Ainda que o proposito incluísse incrementar a formação etnológica dos brasileiros, as
circunstâncias de tal acordo envolviam o co-financiamento de pesquisas sobre relações
raciais na Bahia (Ruth Landes), sobre populações indígenas, como os Carajás (William
Lipking) e os Trumaí (Buell Quain), entre outros pesquisadores. Merece destaque a figura
de Charles Wagley, pesquisador interessar nos Tapirapé entre os anos 1939 e 1940,
retomando periodicamente nos anos 1940, 1950 e em 1965. Apesar desse interesse
específico, Wagley também realizou estudos sobre comunidades camponesas, Amazônia,
relações raciais etc. (MASSI, 1989).
Nos anos 1950 e 1960 novos intercâmbios são realizados entre americanos e
instituições cariocas. Por intermédio de Anísio Teixeira, em parceria com a Unesco, é
criado o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (1955). Charles Wagley,
novamente, é um importante personagem desse acordo, na condição de técnico da
Unesco, ao lado de Oto Klinemberg e Betram Hutchinson. Outros projetos na área de
antropologia ocorreram na cidade, como aquele expresso entre o Museu Nacional, o
Summer Institute of Linguistics e o acordo que ficou conhecido como Harvard-Brasil
Central. Este último contou com pesquisas em parceria entre a universidade brasileira e
americana, e tinha como objetivo reavaliar o material disponível sobre os índios de língua
Jê no Brasil Central (MASSI, 1989).
Por fim, Massi (1989) destaca as pesquisas realizadas por americanos na Bahia,
estado que congregou grande número de pesquisas interessadas em realizar estudos sobre
relações raciais. Até os fins de 1940, a Bahia é polo de atração de iniciativas individuais
de pesquisadores já mencionados, como Roger Bastide, Donal Pierson e Ruth Landes, e
86
29
Apenas para mencionar alguns nomes do acordo Brasil-Columbia: Ruth Landes, Charles Wagley, marvin
Harris, Bem Zimmerman, Lincoln Pope, Harry Hutchinson, Anthony Leeds, Carlo Castaldi etc. Como
afirma Massi (1989, p. 452): “Podemos observar [...] que o projeto brasil Columbia permitiu um grande
fluxo de norte-americanos e uma profusão de trabalhos e teses foram realizadas sob seu patrocínio. Além
disso, representou um ‘estímulo’ a novos projetos que seriam realizados nos anos 60: é como se o velho
porto da Bahia fosse oficialmente aberto ao treinamento de pesquisadores norte-americanos”.
87
Após essa breve reconstrução histórica das relações acadêmicas entre Brasil de um lado,
e França e Estados Unidos, de outro, ficam claro os perigos de homogeneizar o
significado que as mobilidades adquiriam ao longo do tempo. A ênfase no período
denominado por Liedke Filho (2003, 2004) de “sociologia científica” revelou que há
diferenças marcantes entre os empreendimentos franceses e americanos, no que diz
respeito aos propósitos, aos vínculos institucionais e à amplitude numérica. Sem dúvida,
as missões francesas constituíram um importante passo para a institucionalização das
ciências sociais brasileiras, propiciando a formação de uma tradição disciplinar com
reverberações que se estenderam por décadas, através da formação de centenas de
sociólogos e antropólogos. Apesar disso, sua ação ficou circunscrita a apenas uma
instituição, dedicando-se exclusivamente para o ensino de setores da elite, num primeiro
momento, e das classes médias paulistas, com o passar dos anos.
A presença americana, por outro lado, revelou-se mais significativa em termos
numéricos, e o vínculo institucional esteve sempre ligado a universidades americanas.
Seu interesse no Brasil priorizou a realização de pesquisas, e cujo escopo temático
envolveu relações raciais, povos indígenas, populações rurais, contato étnico e processos
de aculturação. Salvo as vindas individuais das décadas de 1930 e 1940, as pesquisas
foram realizadas em parceria com os brasileiros. Fernanda Massi, em estudo já
mencionado, diferencia entre “presenças” e “influências”: ao passo que os franceses se
incubem de atualizar e civilizar o país, os americanos trazem um know-how de pesquisa
e estabelecem trânsito prolongado entre os dois países. Os primeiros, presença; os
segundos, influências (MASSI, 1989, p. 456). Ambos, para a autora, indicativos de uma
desigualdade básica entre centro e periferia. Abaixo, um esquema ilustrativo das
diferenças entre os dois empreendimentos.
88
Estrangeiros
Norte-
Franceses Americanos
Docência Pesquisa
Suporte Suporte
institucional: institucional:
Brasil EUA
Apenas Pesquisadores
docência independentes "Itinerantes" "Sedentários" "Sazonais"
Herskovits
Lévi-Strauss Donald Charles
Brasil- Pierson Wagley
Roger Bastide Columbia
papel para o desenvolvimento dessas ciências no Brasil, e em que medida contribuiu para
conformar historicamente o espaço de disputas no interior do campo da sociologia. Antes,
contudo, cabe uma breve descrição da Fundação e de alguns de seus princípios e valores
num contexto mundial marcado por disputas ideológicas e do acirramento militar entre
dois modelos de desenvolvimento econômico e políticos concorrentes.
Foi em 1936, por meio de uma doação de aproximadamente US$2,3 bilhões dos lucros e
dividendos da indústria que lhe dá o nome, que a Fundação Ford foi concebida para ser
uma instituição filantrópica sem fins lucrativos. Sob os auspícios de Edsel Ford e Eleanor
Clay Ford, a fundação teve uma atuação restrita ao estado de Michigan, até se expandir
nacional e internacionalmente na década de 1950. Com a morte de Edsel (1943) e Henry
Ford (1947), Henry Ford II (o neto do I) assume a direção tanto da Fundação quanto da
indústria. Como o herdeiro estava interessado em gerir apenas a indústria, é criado um
Comitê para definir a estrutura, os objetivos e as prioridades da Fundação, e por ela
passariam dirigentes como Robert Hutchins e Rowan Gaither (PARMAR, 2012; FARIA
& COSTA, 2006; MORALES, 2017).
Ao lado das fundações Rockfeller e Carnegie, a Fundação Ford compõe o grupo
das “Grandes 3”: instituições filantrópicas americanas que tiveram um enorme papel no
financiamento de diversos projetos educacionais e científicos nos EUA e ao redor do
mundo na segunda metade do século XX. Um dos interesses centrais dessas fundações
era subvencionar ações que visassem ao “desenvolvimento econômico e social”
sobretudo em regiões que compunham, à época, o chamado “Terceiro Mundo”.
Indissociável do contexto geopolítico da Guerra Fria, a atuação dessas fundações
contribuiu para a construção da hegemonia econômica, política e, para nossos fins,
intelectual dos EUA mundialmente. Ao fim e ao cabo, essas fundações tiveram êxito
menos em diminuir a pobreza e fomentar políticas de desenvolvimento locais do que criar
poderosas e duradouras redes de elites internacionais (PARMAR, 2012; CANEDO, 2018;
MICELI, 1990; DEZALAY & GARTH, 2000a).
Uma das características mais expressivas da Fundação é a sua conexão com
membros da elite política americana ao longo dos anos. Parmar (2012), por exemplo,
estima que entre 1951 e 1970 a Fundação Ford teve entre seus mantenedores (trustees)
104 conexões com o Estado Americano, incluindo membros do Conselho de Segurança
90
de Estado e Departamento de Defesa. Além destes, também contou com três presidentes
do Banco Mundial, editores de jornais, reitores universitários e presidentes de grandes
empresas. Ainda que essa insinuação prosopográfica seja reveladora de muitos aspectos
da orientação ideológica da Fundação, é importante ter em mente que ela era, como um
todo, não apenas independente, como também gozava de certa autonomia em suas
decisões (MICELI, 1990).
No que diz respeito à orientação ideológica, a Fundação Ford procurava
manifestamente se alinhar às diretrizes das políticas de relações exteriores do Estado
americano. Dentre elas, destaca-se o combate a um certo sentimento “antiamericano” e
ao crescimento do comunismo – razão pela qual, afirma Miceli (1990), motivou a
expansão das suas atividades para a América Latina e África. No âmbito mais
propriamente cultural, procurou promover valores do “modo de vida americano”,
notadamente os modelos democrático e econômico de desenvolvimento, em claro
alinhamento com a chamada “Aliança do Progresso” propagandeada pelo governo de
John Kennedy (1961-63)30. No plano intelectual, além de fomentar a produção de
conhecimento em torno da “modernização”, também apoiou a difusão de uma
determinada orientação metodológica eminentemente “empiricista” nas ciências sociais,
visando a sua aplicação para o estudo comparativo do comportamento político e de
formas de governo (PARMAR, 2012; CANEDO, 2018).
A afinidade com interesses do Estado americano não se deu de forma fortuita,
tampouco foi homogênea na história da fundação: na América Latina, o acirramento
ideológico ganhou corpo, em meio a Guerra Fria, com a Revolução Cubana. Nessas
circunstâncias, constituía importante estratégia de hegemonia a inserção de membros da
elite intelectual dos países do chamado Terceiro Mundo em redes de conhecimento
duradouras, expondo-os às instituições e aos valores americanos, e recrutando-os em
determinadas rotinas e práticas científicas. Os fluxos de conhecimento, afirma Parmar
(2012, p.27), não são apenas desiguais: eles também reorientam mentalidades,
30
Em artigo polêmico, Dezalay & Garth (2000b) afirmam que as fundações filantrópicas, notoriamente a
Ford, contribuíram para o fortalecimento da hegemonia política e econômica americana sobre a América
Latina por meio da internacionalização de disputas domésticas. O Chile constituiu, para os autores,
verdadeiro laboratório desse fenômeno: de um lado, uma política econômica extremamente regressiva
amparada por um governo autoritário e com apoio de setores do governo e da sociedade americana; de
outro, valores liberais de direitos humanos em torno de ongs e organizações financiadas por fundações
filantrópicas. A atuação destas, segundo eles, define-se como um “imperialismo da virtude”.
91
A história da Fundação Ford no Brasil começa no início da década de 1960, num cenário
de grande instabilidade política, com a criação do seu primeiro escritório no país em 1962.
A princípio, dedicou-se a financiar projetos e pesquisadores nas áreas de economia,
agronomia, engenharia e administração, só mais tarde priorizando as ciências sociais
(principalmente a antropologia e ciência política). Essas, nos dizeres de Miceli (1993),
foram se convertendo aos poucos numa espécie de “engenharia social” do
desenvolvimento, na medida em que eram vistas como instrumento de crescimento
econômico, fortalecimento das instituições democráticas e reforma social. Um marco de
sua história foi a vinda de Peter Bell, em 1964. Bell, então um jovem recém-formado na
Universidade de Yale, mas com prematura experiência internacional, assume o escritório
carioca, onde ficaria até 1969. Ele foi um importante mediador entre as demandas e
projetos dos cientistas sociais brasileiros e as condições de financiamento da Fundação.
Cabe reforçar que a Ford encontrou um ambiente intelectual relativamente
desenvolvido no país (mais especificamente, Sudeste), com uma estrutura institucional já
estabelecida em São Paulo (Usp e ELSP), no Rio de Janeiro (Iseb) e em Belo Horizonte
(UFMG). Esse espaço acadêmico já produzia importante conhecimento em ciências
sociais, contando com importantes lideranças que seriam posteriormente importantes
interlocutores da Fundação. Esse aspecto, como veremos, será crucial para a conformação
do campo das ciências sociais e o reforço das desigualdades em seu interior. Com efeito,
uma das particularidades da atuação da Fundação no Brasil é justamente a sua escolha
por trabalhar junto à comunidade de pesquisadores, instituições de pesquisa e
92
"o maior impacto dessa ajuda ter ocorrido antes mesmo de as agencias nacionais
estarem em pleno funcionamento, a obtenção de tal patrocínio foi se convertendo
num dos móveis centrais da concorrência entre os diversos grupos de interesse e
as principais lideranças intelectuais a braços com a pós-graduação e com a
drástica reforma da infraestrutura para a pesquisa” (MICELI, 1993, p. 20).
31
Segundo informa o seu site, https://cebrap.org.br
32
Com seu primeiro volume publicado em 1981, figura ao lado de outra importante revista, a Lua Nova,
vinculada também a outro beneficiário da Ford, o Cedec. A Lua Nova teve seu primeiro volume publicado
em 1984.
96
fora incorporado posteriormente à Uerj, mantendo grande parte de seu corpo docente e
mudando seu nome para Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp). Também
permanecem os dois programas de pós-graduação, em sociologia e em política, e
continuam editando a revista Dados, figurando entre as principais das ciências sociais
brasileiras. Por fim, a despeito de sua vinculação universitária com a Uerj, o Iesp também
conserva seu distanciamento em relação ao ensino nos cursos de graduação, preservando
o modelo institucional que o distinguiu quando foi concebido.
Finalmente, temos a Anpocs. Sua concepção deriva do interesse dos estratos
dominantes de cientistas sociais em amadurecer o aparato institucional das ciências
sociais no Brasil. Fundada em 1977, manteve em seus primeiros quadros dirigentes
antigos beneficiários da Fundação Ford. Sua criação cumpriu um duplo papel: de um lado,
constituiu uma resposta aos anseios da comunidade científica em pleno desenvolvimento;
de outro, e como consequência de sua composição social inicial, veio a cumprir as
expectativas de sua principal financiadora (MICELI, 1990). Este último aspecto é
elucidado na própria vertebração institucional33 da Associação, ao enfatizar a pós-
graduação e a pesquisa, em detrimento da graduação e do ensino. Não é exagero dizer,
seguindo Miceli, que a Anpocs é criadora e criatura da Fundação Ford: ao passo que a
concepção daquela só foi possível com o auxílio substancioso desta, também é verdade
que os primeiros quadros executivos da Associação tiveram peso na decisão da alocação
dos recursos financeiros da Fundação (MICELI, 1990; CANEDO, 2018).
Com o exposto, podemos sintetizar a argumentação ressaltando pelo menos três
aspectos que vinculam a atuação da Fundação Ford à estruturação do campo das ciências
sociais no Brasil, e mais especificamente o campo sociológico.
Primeiramente, a Fundação Ford contribuiu para a formação de um contraste entre
dois estilos de se fazer ciência social no Brasil. Quando começou a investir em
pesquisadores e instituições no país, já havia uma tradição razoavelmente estabelecida de
pesquisa e ensino, norteada pela herança formativa da missão francesa em São Paulo.
Essa herança era marcada por um determinado estilo de escrita e pesquisa, que
materializava uma concepção de ciência social como próxima da filosofia. A Fundação
Ford, por outro lado, fomentou a criação e a revitalização de instituições orientadas para
o modelo acadêmico americano de ciência social, com estilos distintos. Estes envolviam
33
Por outro lado, diferentemente da tendência das ciências sociais americanas de se especializarem com
vistas a perderem o contato, a Anpocs constituiu importante instância de diálogo interdisciplinar.
97
34
Ainda que, no caso do Iuperj, tenha ocorrido uma metamorfose institucional, os modelos, práticas e
rotinas acadêmicas permanecem.
98
crédito acumulado de determinados periódicos científicos. Por último, mas não menos
importante, as lutas travadas em torno do financiamento consagraram agentes individuais
no campo, dotando-os de reconhecimento nacional e internacional35.
35
Poderíamos sublinhar também que o prestígio de determinados agentes foi além do campo científico,
considerando suas reverberações para o campo de poder mais amplo. No caso, ex-bolsistas da Fundação
tiveram um papel importante na configuração política contemporânea. O exemplo mais emblemático é
Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil entre 1995 e 2003. Nos seus mandatos, empregou
diversos ex-bolsistas da Fundação para cargos estratégicos das áreas de educação e ciência.
36
O fato de o Estado brasileiro investir de forma mais sistemática no pós-II Guerra não quer dizer que antes
não houvesse outras iniciativas. Desde o começo da República já foram postas em prática algumas. Para
mais detalhes, cf. Schwartzman (2015).
99
do século XIX, no contexto de industrialização e colonização, após 1945 não havia mais
espaço para nenhuma hesitação.
O Brasil, com ação decisiva do Estado, também testemunhava uma sequência de
transformações econômicas e estruturais que alteraram profundamente a sua organização
social, como a industrialização e urbanização acelerada. A noção de auto aperfeiçoamento
social e progresso compunham o conjunto de valores que deveriam orientar a conduta de
indivíduos e instituições, o que levou a caracterização da sociedade desse período como
uma verdadeira sociedade em movimento (BOTELHO, 2008a). Premido entre seu
passado e as expectativas de pertencer, no futuro, ao panteão das nações “modernas, ricas
e civilizadas”, o Estado apostou todas as suas fichas no desenvolvimentismo, respaldado
internacionalmente pelos trabalhos da Comissão Econômica das Nações Unidas para a
América Latina – Cepal e pelo modelo bem-sucedido de ensino superior que alçou os
EUA à potência científica (SCHWARTZMAN, 2009; 2015).
O desenvolvimento é uma terminologia que exprime o processo de mudança
social racionalizada, abrangendo as dimensões econômica, política, científica e
tecnológica. Do ponto de vista dos agentes envolvidos no processo, papel de destaque é
conferido ao Estado, por meio de instituições por ele fundadas, financiadas e controladas.
Do ponto de vista ideológico, ele reúne o conjunto de crenças, valores e ideias que
sustenta o processo de mudança social.
Quanto ao papel do Estado, especificamente sua atribuição de institucionalizar a
comunidade científica, é Schwarztman (2015) quem oferece um rico panorama da época.
Entre 1945 e 1970, foram criadas diversas instituições profissionais e de pesquisa visando
à organização, ao planejamento e à mobilização da comunidade científica. Em 1948, foi
fundada a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), instância que
fomentava as atividades científicas e representava os interesses dos pesquisadores. Em
1949, o Rio de Janeiro erigiu o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), com ênfase
na pesquisa atômica. Já em 1951, dois órgãos de crucial importância foram fundados: o
Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) – atualmente Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – e a Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes). O primeiro supervisionado diretamente pelo
presidente até ser vinculado ao Ministério do Planejamento, em 1975; o segundo
subordinado ao Ministério da Educação.
É desse período a criação de instituições de propostas inovadoras, como o Instituto
de Tecnologia da Aeronáutica (ITA), cuja concepção foi fruto de cooperação estreita com
100
274 – 275).
Com isso em mente, afirma-se também o papel dos próprios cientistas como portadores
sociais dessa série de transformações, muitos dos quais participaram ativamente da
organização e mobilização da comunidade científica. Caso emblemático é aquele do
físico José Leite Lopes que, além de pesquisador, também intervinha constantemente na
arena pública defendendo o papel crucial da ciência para o desenvolvimento da América
Latina (LOPES, 1998; BOTELHO, 2008b). Outros cientistas atuaram ativamente para o
desenvolvimento científico da época, como o biólogo Zeferino Vaz, o antropólogo Darcy
Ribeiro, o físico César Lattes, o educador Anísio Teixeira, entre tantos outros. Não seria
exagero aproximá-los, apenas para efeito de comparação, do que Gramsci (1982) definiu
como “intelectual orgânico”, ou seja, aquele intelectual que não apenas representa os
interesses de um grupo social, como também lhe confere inteligibilidade, organicidade e
coerência.
Em linha gerais, esse é o panorama que marcou o desenvolvimento científico e
tecnológico no período compreendido entre o final da II Guerra e as duas décadas
posteriores. É nele que foram forjadas as instituições e o ambiente intelectual que deram
as condições e conferiram legitimidade para a expansão da ciência no Brasil após 1970.
Nesse ínterim, mais precisamente em 1964, a frágil democracia brasileira sofreu outro
duro golpe, agora de natureza civil e militar, e cujo regime implantado perduraria por
duas décadas. A experiência brasileira foi marcada pela ambivalência no que diz respeito
ao investimento científico e tecnológico, o que a distingue decisivamente das ditaduras
dos países vizinhos. Seu autoritarismo e desprezo pelos valores democráticos e direitos
humanos foram expressos no aparelhamento institucional das universidades, no ambiente
policialesco de censura que se alastrou pelos cursos, nas aposentadorias compulsórias de
professores, e na perseguição, tortura e morte de cientistas politicamente engajados37. Por
37
“Caro Leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”, adverte B. Kucinski no início do
surpreendente relato sobre um pai em busca de sua filha, professora de química da Usp, desaparecida em
1974 pela ditadura. Ver Kucinski (2014).
102
Expressando ainda mais a concepção de que a educação deveria servir de aporte para o
desenvolvimento, em 1968 vigorou uma nova legislação que alterou profundamente a
organização institucional do ensino superior brasileiro, ficando conhecida como Reforma
Universitária de 1968. A Reforma consubstanciou ideias desenvolvidas, nacionalmente,
na Universidade de Minas Gerais e na Universidade de Brasília, e internacionalmente,
especificamente pelas recomendações da Agência Norte-Americana de Desenvolvimento
Internacional (Usaid). Apesar de ter sido elaborada em um contexto autoritário, sem
diálogo direto com as partes interessadas, a Reforma “modernizou” o ensino superior ao
aproximá-la do modelo americano. Em parte, também institucionalizou antigas
reivindicações da comunidade científica nascente (MARTINS, 2018).
A Reforma pôs fim à influência organizacional francesa que regia muitas
universidades no país, centralizando nacionalmente o ensino superior nos quadros de um
sistema único, em vigor no país até hoje. Schwartzman (2015, p. 339) elenca algumas
inovações inspiradas pelas instituições congêneres americanas: a separação
organizacional em departamentos, pondo fim ao modelo de cátedras; o sistema de
créditos, modificando o padrão vigente baseado em programas de cursos seriados e
anuais; a criação de instituições devotadas à pesquisas; a criação e expansão de programas
de pós-graduação que conferem os títulos de mestre e doutor; e o estabelecimento de um
38
Em países como Chile e Argentina, por exemplo, as ditaduras militares adotaram políticas econômicas
neoliberais extremamente regressivas, contribuindo para o desmantelamento da comunidade científica
(BEIGEL, 2010).
103
39
Desconsidero, aqui, os programas unicamente de antropologia e ciência política. Considerei aqueles ou
voltados para sociologia, ou que abordavam as ciências sociais, indistintamente. Ficaram de fora os
mestrados profissionais.
104
29
28
23
22
21
20
19
18
16
15
13
12
11
9
8
7
5
1 2 3 4
41
45
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70
73
74
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77
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81
82
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94
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99
00
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
20
(Dados coligidos de Barreira et al (2018) e do site da Capes
(http://www.capes.gov.br/cursos-recomendados). Ele inclui os PPGs anteriores à
padronização requerida pela Reforma de 1968)
40
Os V e VI PNPG será abordado no capítulo terceiro, dado que ele privilegia o tema da internacionalização
da produção científica.
106
900
800
700
600
500
400
300
200
100
0
1965 1970 1975 1980 1985 1990
41
Mais especificamente, os dados da Capes correspondem ao período entre 1987 a 2000; CNPq de 1986 a
1999 e Fapesp de 1992 a 1999 (MAZZA, 2009).
107
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
Capes CNPq Fapesp
2743
1605
1146
1021
877
880
867
366
265
192
192
180
172
132
123
67
59
22
EUA FRANÇA GB EUA FRANÇA GB EUA FRANÇA GB
CAPES CNPQ FAPESP
42
Xavier de Brito (2000) relata como, em suas entrevistas, os interlocutores provenientes do Nordeste
encontraram bastante resistência ao tentarem uma vaga nos cursos de ciências humanas e sociais nas regiões
Sul e Sudeste. Muitos salientaram o desprezo de seus colegas de classe, e um forte sentimento
“colonialista”.
110
Epílogo
CAPÍTULO III
Peter Higgs
114
Prelúdio
As disputas que ocorrem no interior de qualquer campo científico num dado momento
são estruturadas por dinâmicas pretéritas, que condicionam os horizontes possíveis dos
agentes. Vimos como a segunda metade do século XX foi marcada por processos
determinantes para a conformação das clivagens tanto do campo sociológico nacional
quanto de um espaço global das ciências sociais. É com isso em mente que agora
analisarei as dimensões internacionais, especificamente as políticas de mobilidade e
práticas de publicação, no campo sociológico nacional na atualidade. Para isso, o presente
capítulo seguirá dois eixos interdependentes de argumentação: um relativo às condições
institucionais que propiciaram a autonomização do campo sociológico nacional; e outro
que delineia as condições institucionais que condicionam as práticas dos agentes na
atualidade, considerando sua interlocução com as dimensões internacionais.
Primeiramente, esboçarei os indicadores que expressam a autonomização do
campo sociológico nacional, como o crescimento do número de PPGs e a diferenciação
em relação às outras áreas das ciências sociais. Em seguida, delineio as condições
institucionais que condicionam as práticas dos agentes, especificamente as políticas de
mobilidade e de avaliação.
afirmativas de acesso ao ensino superior, por meio das cotas sociais e raciais (LIMA,
2014).
Ainda no que tange às políticas voltadas para o ensino superior, o período
compreendeu os esforços coordenados dos V e VI PNPGs. Como destacam Neves e
Cavalcanti (2018), o primeiro (2005 – 2010) enfatizou a necessidade de um crescimento
equânime do sistema de pós-graduação nacionalmente, da importância de rever a
avaliação e qualidade da produção científica e do financiamento. O segundo (2011 –
2020), por sua vez, imprimiu a necessidade de inovar a pós-graduação, em seu arranjo
institucional e nas agendas de pesquisa, para os desafios do século. De fato, ao darem
relevo para a avaliação de pesquisa, para a internacionalização da produção científica e
para a mobilidade internacional, podemos dizer que os PNPGs expressam o interesse
público pela inserção da universidade na chamada “economia global do conhecimento”,
marcada pela formação de um ensino superior transnacional (MARTINS, 2015).
Tanto as políticas de expansão de acesso ao ensino superior quanto as ações
coordenadas da Capes favoreceram a criação de novos programas de pós-graduação em
sociologia. De fato, de 2000 a 2015 foram criados 23 programas na área, totalizando 53
PPGs acadêmicos alocados conforme classificação da Capes como “sociologia”43. A
despeito dessa expansão, observa-se ainda uma concentração na região Sudeste, a qual
congrega quase 50% do total de programas (24 programas). O Nordeste se destaca em
seguida com 12 programas, seguido do Sul (10), Centro-Oeste (4) e Norte (2). A expansão
de PPGs após 2000 reforçou essa clivagem, pois dos 23 criados, 11 pertencem apenas ao
SE44.
Em seguida, complementando o Gráfico I, foram acrescentados o número de
programas criados a partir de 2001.
43
Neste período houve variação, pois alguns programas recém-criados foram descredenciados devido ao
fato de não obterem nota superior a “3” nas avaliações trienais e quadrienais. Minha contagem os leva em
consideração. Exceção é feita para aqueles que deixaram de existir, como o Iuperj em 2010.
44
A ênfase na pós-graduação se deve, em consonância com o recorte metodológico exposto na Introdução,
pela razão de ser neste âmbito em que, de fato, o conhecimento científico é produzido, além de constituir
importante etapa na socialização acadêmica e na identificação profissional do sociólogo (Dwyer et al, 2013)
116
50 51
47 48
45
41
37 38
34 35
31
28 29
21 22 23
18 19 20
15 16
13
11 12
9
7 8
1 2 3 4 5
1941
1945
1967
1969
1970
1973
1974
1976
1977
1979
1980
1981
1982
1985
1987
1988
1990
1994
1995
1999
2000
2003
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2015
(Expansão dos PPGs acadêmicos de sociologia. Dados coligidos a partir de Barreira et
al (2018) e do site da Capes ((http://www.capes.gov.br/cursos-recomendados). Ele
inclui os PPGs anteriores à padronização requerida pela Reforma de 1968)
45
As informações históricas foram obtidas em http://www.sbsociologia.com.br, Acesso em fevereiro de
2019.
117
46
Dados coligidos de http://www.lattes.cnpq.br/web/dgp
118
1800
1600
1400
1200
1000
800
600
400
200
0
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
Capes CNPq
47
Ver portal de investimentos do CNPq: http://fomentonacional.cnpq.br/dmfomento/home/fmthome.jsp
119
663
621
470
382
344
296
240
187
149
88 100
1993 1995 1997 2000 2002 2004 2006 2008 2010 2014 2016
48
Excetuam-se nessa descrição, por enquanto, aqueles valores referentes aos demais tipos de bolsa.
120
Os dados são sugestivos. Entre 1993 e 2016, houve um aumento de cerca de 753% no
número de grupos de pesquisa em sociologia. Comparando-se com o total de grupos
cadastrados no último ano (37640), o número parece, à primeira vista, irrisório,
representando apenas 1,8% do total. Quando relacionado com os números de outras
disciplinas, temos uma noção mais ampla. De 84 áreas cadastradas na Plataforma Lattes,
seleciono algumas: antropologia, 393 (1%), ciência política, 387 (1%), bioquímica, 466
(1,2%), ecologia, 596 (1,65), geociências, 685 (1,8%), física, 801 (2,1%), ciência da
computação, 1115 (3%), medicina, 1619 (4,3%), educação, 3595 (9,6%) etc.
Nesta seção, reuni indicativos que ilustram a consolidação institucional do campo
sociológico nacional na contemporaneidade, quais sejam: políticas públicas de expansão
do ingresso ao ensino superior, ampliação do número de PPGs de sociologia,
amadurecimento de associações profissionais, aumento do número de periódicos
nacionais, ocorrência regular de congressos acadêmicos, política de financiamento de
bolsas de mestrado e doutorado, e o crescimento de grupos de pesquisa de sociologia.
Agora, passemos para duas dimensões internacionais que atuam no campo sociológico
como um todo na atualidade: políticas de mobilidade internacional e o sistema de
avaliação de desempenho e pesquisa.
6.000.000.000
5.000.000.000
4.000.000.000
3.000.000.000
2.000.000.000
1.000.000.000
0
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
1600000
1400000
1200000
1000000
800000
600000
400000
200000
0
2000 2005 2010 2015 2020
49
Informação obtida no sítio eletrônico do Programa (http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/csf/o-
programa, acesso 01/05/2019).
125
produção de conhecimento e inovação. Uma visão mais crítica, contudo, exige que nos
debrucemos sobre o perfil dos contemplados com os recursos. Por isso, vejamos os dados
referentes ao perfil das bolsas de estudo e pesquisa no exterior por modalidade, por meio
do quantitativo do somatório de ambas as agências de fomento.
70000
60000
50000
40000
30000
20000
10000
0
2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014 2016 2018
mostrou nem um pouco estratégica, para não dizer desastrosa do ponto de vista
orçamentário. São inúmeras as pesquisas (VELHO, 2001; SCHWARTZMAN, 2009;
RAMOS, 2018, RAMOS & VELHO, 2011; LOMBAS, 2017) enfatizando que é no
âmbito do doutorado, especificamente em sua modalidade plena, que de fato há produção
de conhecimento de ponta, inovação tecnológica e uma maior integração institucional na
universidade receptora, propiciando a formação de redes de longa duração. A
consequência de tal escolha, aqui enunciada de forma presumível, é o mal uso de recursos
escassos e o pouco retorno do ponto de vista dos objetivos manifestos. Recursos que, se
bem aplicados também a pesquisadores de outras áreas no âmbito do doutorado,
certamente teria mais chances de propiciar um retorno desejável (e durável) do ponto de
vista do conhecimento necessário para o chamado desenvolvimento econômico,
científico e social do Brasil50.
Em segundo lugar, e relacionado à restrição temática do Programa, está o seu
impacto sobre o campo científico. Uma consequência não intencional de alocar
volumosos recursos para determinadas disciplinas em detrimento de outras é o
agravamento da heteronomia do campo científico. Para Azevedo & Catani (2013), a
centralização da política científica em tal magnitude, e a publicização da concorrência
por recursos públicos, expressam a regulamentação estatal sobre dinâmicas e decisões
próprias do campo. Ao fim e ao cabo, essa regulação estatal agrava os desníveis nas
posições entre disciplinas previamente estabelecidas no interior do campo, alterando o
cenário de disputas internas (por recursos e tomadas de posição) e externas (legitimidade
social das ciências consideradas inaptas para a contribuição do desenvolvimento).
Após essa incursão sobre o financiamento público de bolsas no exterior e o
Programa Ciências sem Fronteiras, cabe analisar o lugar da sociologia nas políticas de
mobilidade internacional e o vetor do fluxo de bolsistas. Como os gráficos XVIII e IX
assinalam, foram relativamente poucos os recursos destinados a bolsas no exterior para
pesquisadores e alunos fora do âmbito do CsF. A série história mostra que, uma vez
consolidado o sistema nacional de pós-graduação, os governos priorizaram o
financiamento de bolsistas no território nacional. O gráfico X evidencia que, dessas
50
Não é ocioso lembrar que as ciências sociais têm muito a oferecer para o fomento de uma reflexão pública
qualificada a respeito dos rumos do desenvolvimento econômico e social do país, além de contribuir com
conhecimento científico sobre as condições sociais, a dinâmica e as consequências de políticas e projetos
empreendidos pelo Estado, empresas, ongs, e demais agentes.
127
bolsas, a maior parte foi destinada à modalidade de doutorado sanduíche. É dentro desse
quadro, pois, que devemos posicionar os bolsistas na área de sociologia. Aqui, a despeito
de sua proximidade temática e institucional com as outras ciências sociais, analisarei
apenas o financiamento de bolsas alocadas na categoria “sociologia” pelos órgãos de
fomento, em consonância com o desenvolvimento e maturação do campo sociológico
nacional, conforme exposto no início deste capítulo.
51
A escolha das duas modalidades de doutorado se dá porque é nessa modalidade que de fato 1) há a
obtenção de um título acadêmico; 2) ser uma etapa em que há produção de conhecimento inovador; e 3) ao
excluir a graduação sanduíche, é possível melhor comparação com as disciplinas contempladas com o CsF.
129
Figura VII – Destinos das bolsas no exterior concedidas pela Capes e CNPq (2000
– 2016) na área de sociologia
A distribuição regional e temporal dos dados pode lançar luz sobre a tendência
histórica das mobilidades. Por isso, discriminei os dados conforme número anual das
bolsas, entre 2000 e 2016, como também por regiões. Exceção foi feita para a França,
dado o elevado número de pesquisadores que a escolhe como destino. Além disso,
considerando o baixíssimo número de pesquisadores que tiveram as regiões e continentes
da América Latina, Ásia, África e Oceania como destino, agrupei-os como “Sul Global”.
Tal categorização, além do mais, fundamenta-se não numa suposta homogeneidade ou
similaridade cultural ou histórica52. Seu uso, por outro lado, procura enfatizar como as
políticas científicas são orientadas conforme a produção de geografias morais da
desigualdade (PINHEIRO, 2018).
160
140
120
100
80
60
40
20
0
2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014 2016
(Elaboração própria. Dados da Capes obtidos via Lei de Acesso à Informação. Dados do
CNPq coligidos do Painel de Investimentos do CNPq)
52
A não ser, certamente, a convergência na experiência histórica de subjugação ao colonialismo europeu e
ao imperialismo americano (SH ALATAS, 2000; CONELL, 2012; RIBEIRO, 2014).
131
Figura VIII – Origem dos bolsistas da Capes e do CNPq contemplados com o PEC-
PG entre 2006 e 2018.
(Mapa gerado pelo software de geoprocessamento QGIS, versão 2.18. Dados da Capes
obtidos pela Lei de Acesso à Informação. Dados do CNPq extraídos do Painel de
Investimentos)
(Mapa criado no software de geoprocessamento QGIS, versão 2.18. Dados obtidos via
Lei de Acesso à Informação)
Gráfico XII – Diferenças entre o gênero dos bolsistas, discriminado por agência de
fomento (2000 – 2016).
100%
90%
80% 41 33 24 264
42 98
70% 9
60% 21
50%
40%
30% 59 40 37 400
35 97
20% 5
10% 7
0%
PhD
PhD
Est. Sênior
Est. Sênior
Pós-Doc
Pós-Doc
Sanduíche
Sanduíche
CNPq Capes
Mulher Homem
Sob o ponto de vista exploratório quantitativo, os dados sugerem uma presença maior de
mulheres nas modalidades doutorado pleno (no caso da Capes), sanduíche e pós-
doutorado, o último encontrando praticamente igualdade numérica nas bolsas financiadas
pela Capes. De fato, pesquisas sobre mobilidade acadêmica internacional e gênero
apontam para a sua “feminização” nos primeiros estágios da carreira científica,
característica que declina com o tempo de carreira (ACKERS, 2005; JÖNS, 2011). Essa
tendência internacional pode estar sendo representada no predomínio masculino na
modalidade de bolsa “Estágio Sênior”, direcionada a pesquisadores que obtiveram seu
doutoramento nos últimos 8 anos ou mais em relação à data do edital de concessão.
O contraste entre o percentual de homens e mulheres na modalidade doutorado
pleno entre CNPq e Capes também sugere dinâmicas distintas nos processos de seleção e
concessão de bolsas entre as agências. A primeira, vale lembrar, conta com recursos mais
escassos, frequentemente distribuídos conforme critérios “meritocráticos”53, o que
indicaria um mecanismo produtor e reprodutor de desigualdades de gênero no campo
científico. É sabido que critérios meritocráticos insensíveis às desigualdades de gênero,
provenientes dos papeis socialmente atribuídos às mulheres e homens nos ambientes
doméstico e familiar, impactam diferencialmente as carreiras de pesquisadores –
inclusive carreiras consideradas mais equânimes em termos de relações de gênero, como
as ciências sociais (CORDEIRO, 2013).
Nesta subseção, vimos como se deu a dimensão internacional da sociologia
brasileira no âmbito das políticas científicas de internacionalização via mobilidade. Esta,
conforme o exposto, afigurou como uma modalidade estratégica para a inserção
internacional da ciência nacional nos primeiros anos do século XXI, seguindo tendência
global de imposição de uma “economia do conhecimento”. Expressão maior dessa
política foi a implementação do programa Ciências Sem Fronteiras, cuja condução, a meu
ver, mostrou-se calamitosa do ponto de vista orçamentário e pouco estratégico. Em
seguida, analisei os fluxos internacionais de estudantes e pesquisadores sob a ótica
estrutural da geopolítica do conhecimento, especificamente a forma como as mobilidades
são ordenadas segundo uma “geografia moral das desigualdades”. Por fim, debrucei-me
sobre a variável de gênero entre os bolsistas, sugerindo algumas explicações para os
53
Como é o caso da distribuição de bolsas de alguns programas de pós-graduação, por meio da qual aquelas
provenientes do CNPq são concedidas aos estudantes que obtiveram as primeiras colocações nos processos
seletivos.
138
desníveis refletidos nos dados. Na próxima seção, voltaremos nossa atenção para outra
dimensão internacional da prática científica que afeta diretamente o cotidiano dos
pesquisadores: a avaliação de pesquisa.
54
Importante salientar que a avaliação da Capes recai sobre uma coletividade, no caso programas de pós-
graduação, qualificando-os quanto à formação de recursos humanos altamente qualificada. Esta avaliação
é diferente daquela empreendida, por exemplo, pelo CNPq, que visa aos indivíduos, concedendo bolsas
139
àqueles que atendem aos critérios de produtividade científica. Para um quadro comparativo, cf. Carvalho
et al., 2013.
140
Período Coordenadores
55
Exceção é o caso do prof. Jacob Lima que, no ano em que compôs a coordenação, pertencia a um
programa de nota 5. Contudo, ao deixar o cargo, o programa acendeu a nota 6, o que confirma a hipótese
aqui apenas sugerida.
141
Ao narrar sua experiência como coordenadores da área de sociologia entre 2004 e 2009,
Adorno e Ramalho (2018) chamam a atenção para a complexidade da avaliação,
enfatizando a interlocução constante com os agentes do campo sociológico para o
estabelecimento de critérios relevantes e reconhecidos pelos pares no processo avaliativo.
Tal interlocução, apontam, ocorreu com coordenadores de programas de pós-graduação
e em encontros de associações científicas, como a Anpocs e SBS. Essa característica da
avaliação é importante, pois ilustra a autonomia do campo em estabelecer os seus próprios
julgamentos, ao mesmo tempo em que se diferencia dos parâmetros estabelecidos por
outras disciplinas.
A despeito da autonomia relativa no estabelecimento de parâmetros socialmente
reconhecidos de qualidade da produção científica e da formação de recursos humanos, é-
lhes exigido seguir padrões de excelência internacional quanto à qualidade dos
programas. Por “excelência internacional”, entende-se aquelas instituições reconhecidas
como as mais prestigiosas, entendidas como modelos a serem seguidos e implementados.
O modelo, como é de se esperar, é procurado no Norte Global, índice histórico de
desenvolvimento e progresso:
2018, p. 42)
Não é apenas no modelo institucional que se inspira o modelo de prática científica a ser
seguido no Brasil (e, mais amplamente, no Sul Global). As publicações científicas
materializam de forma dramática as assimetrias globais na produção e circulação do
conhecimento, e elas constituem o segundo elemento da avaliação sobre o qual nos
debruçaremos. Os artigos científicos não são avaliados individualmente, e sim os
142
periódicos nos quais foram publicados. Os livros e capítulos, por sua vez, são avaliados
individualmente, e é levado em conta a sua contribuição para a discussão de determinado
tópico em sua área, entre outros aspectos. A decisão de incluir livros e capítulos na
avaliação constitui importante conquista das ciências humanas e sociais, considerando
suas especificidades temporais e epistemológicas.
Todavia, concentraremos nossa atenção às publicações em periódicos científicos,
dado que é nessa prática que são observados critérios mais heterônimos de avaliação
relacionados à internacionalização (GINGRAS, 2016; BEIGEL, 2013). E o motivo não é
ocioso: cada vez mais instâncias reguladoras e de fomento adotam métricas quantitativas,
como a bibliometria, para classificar periódicos. No Brasil, a Qualis é o instrumento
utilizado pela Capes na avaliação de periódicos, alocando-os entre 7 classificações.
Antes, porém, de analisar de que forma os periódicos em sociologia são classificados, é
preciso compreender como uma técnica destinada inicialmente para fins científicos
converteu-se em principal dispositivo de avaliação.
Artefatos, como é sabido, têm história. A bibliometria surgiu por volta de 1920,
como uma técnica auxiliar (manual e rudimentar) para compreender o desenvolvimento
das publicações de uma disciplina científica. Todavia, foi no contexto pós-II Guerra, nos
EUA, que ela de fato ganhou ímpeto e abrangência, com a criação do Institute for
Scientific Information (ISI), tendo como seu grande idealizador Eugene Garfield.
Inspirado em índices que congregavam documentos jurídicos, Garfield idealizou um
indexador de artigos científicos que reunisse em apenas um catálogo informações sobre
periódicos, contendo, além do título, os autores e seus vínculos institucionais, resumo e
referências bibliográficas.
Em sua empreitada, Garfield contou com volumosos recursos da National Science
Foundation (NSA) e da National Institutes of Health (NIH). O interesse pelas agências
americanas em alocar recursos para a sua criação não é supérfluo. Como pesquisas
históricas demonstram (WOUTERS, 1999; GINGRAS, 2016; BEIGEL, 2013) a ideia de
um indexador científico que congregasse informações atualizadas sobre de cientistas veio
a ter uma função relevante na disputa acirrada da Guerra Fria, contexto no qual a inovação
científica e tecnológica eram o mote para conquistar a hegemonia internacional. Além
disso, e talvez mais importante, também resolvia a “crise informacional” pela qual
passava o mundo da ciência, dado o crescimento exponencial de publicações e a
impossibilidade de se manter atualizado constantemente. Nascia, assim, o Science
143
Citation Index (SCI), em 1964, concebido originalmente como uma ferramenta de gestão
de literatura científica.
Mantendo o monopólio da indexação de literatura científica até início da década
de 2000, com a criação do Scopus (pela Elsevier) e Google Scholar, o ISI criou outros
índices, como o Social Science Citation Index (SSCI) e o Arts and Humanities Citation
Index (AHCI)56. Desde início, contou com o apoio de sociólogos da ciência, dentre os
quais Robert Merton e Derek de Solla Price. Com efeito, a reunião atualizada da literatura
científica trouxe grandes avanços para a bibliometria, na medida em que oferecia uma
perspectiva privilegiada para compreensão da dinâmica interna e desenvolvimento da
ciência (sobretudo americana). Sua utilidade, além do mais, não está restrita à sociologia
da ciência, sendo de interesse também de historiadores, economistas, gestores,
bibliotecários e formuladores de políticas públicas.
É a partir da década de 1980, e decorrer da 1990, que surgem os primeiros ensaios
para aplicar a bibliometria com fins de avaliação de pesquisa. A adoção de técnicas de
knowledge management e do benchmarking – espelhando lógicas empresarias e de
mercado – primeiramente por setores da administração pública e depois por universidades
americanas, consolidou essa modalidade de uso. Ao fim e ao cabo, a bibliometria serviu
de base para avaliar programas de pós-graduação, departamentos, laboratórios,
financiamento de pesquisas, universidades e indivíduos.
56
Atualmente, o SCI, SSCI e AHCI estão englobados pela Web of Science (WoS), indexador mantido pela
corporação Clarivate Analytics – Thomson Reuters.
144
Política
científica
Sociologia Bibliotecono
mia e
das ciência da
ciências informação
Cientometria e
bibliometria
História Economia
das das
ciêncais ciências
Avaliação
da
pesquisa
57
Medida que calcula a razão entre a quantidades de citações que uma revista recebeu, pelo número de
artigos nela publicados nos dois últimos anos. Serve, inicialmente, para indicar a probabilidade de um artigo
ser citado, e da possível influência e importância do periódico para determinada literatura específica.
145
Norte. Outro problema é que, além de invisibilizadas, também são pouco citadas, uma
vez que o reconhecimento da competência científica se encontra em outras latitudes.
Discutindo a possibilidade de existência dos entes do mundo sensível confiando
apenas na percepção, o filósofo irlandês George Berkeley se perguntava, no século XVIII,
se uma árvore ou um livro existiriam caso ninguém a visse ou o lesse. Transpondo para
nosso problema, cabe perguntar: um conhecimento que, embora publicado, não é lido
nem reconhecido, existe de fato? Fundamental para responder à questão é verificar como
os comitês de avaliação hierarquizam as publicações periódicas, sob quais critérios e se
há diferença entre diferentes campos disciplinares.
Fazendo uso dos relatórios da última avaliação quadrienal (2013 – 2016), escolhi
os seguintes critérios quanto às publicações de periódicos: porcentagem diante do total
dos quesitos avaliados; indexadores exigidos nos estratos mais altos (A1 e A2); e se o FI
é um critério diferenciador. Sua escolha se dá pois são neles que ficará mais evidente em
que medida as dimensões internacionais influem na prática de escrita e circulação do
conhecimento científico nacional. Para fins de comparação, e considerando que os
campos disciplinares se relacionam entre si, compondo o campo científico mais
amplamente, escolhi, seguindo classificação de áreas da Capes, uma disciplina das
Ciências Biológicas (Ciências Biológicas I, englobando biologia geral e genética); uma
das Ciências da Saúde (Medicina I); umas das Ciências Sociais Aplicadas (Administração
Pública e de Empresas, Ciências Contábeis e Turismo); uma das Ciências Exatas e da
Terra (Física e Astronomia); uma das Engenharias (Engenharia II, englobando
engenharias de minas, nuclear e química); uma das Linguísticas, Letras e Artes
(Linguística e Literatura); e outra, além de sociologia, nas Ciências Humanas (História).
Tabela VI – Critérios de avaliação das revistas com estratos mais altos do Qualis
(A1 e A2)
Produção FI ou
Área de Avaliação intelectual Indexadores equivalente
58
O quão alto deve ser o FI ou equivalentes é determinado por cada área. Em comum, todas estabelecem
valores mínimos desse índice bibliométrico para classificar as revistas mais prestigiadas.
148
temas de seu interesse. Por outro lado, Ortiz (2008) argumenta que, nessas ciências, o
inglês de fato funciona como uma língua franca, uma vez que a linguagem dos seus
artigos e livros conseguem transcender o contexto local. Nas ciências humanas e sociais
isso não ocorreria, para o autor, pois a linguagem é componente essencial do seu objeto,
por isso tal dissociação seria mais problemática.
A área de avaliação concernente ao campo sociológico distingue-se das demais
por não utilizar o FI como critério de corte, preferindo dessa forma concentrar-se nos
indexadores. Por isso, destoa das outras áreas de avaliação nesse âmbito – inclusive de
disciplinas também sociais, como História, Administração e Turismo. Por outro lado,
todas adotam o Scielo como indexador regional, contrapondo-se às outras áreas de
avaliação acima abordadas. Se num primeiro momento isso pode parecer um aspecto
positivo quanto ao fomento de circuitos regionais de consagração científica, quando
analisamos os seus critérios de indexação, constatamos uma emulação dos parâmetros
dos indexadores como o WoS e Scopus, como a exigência de uma cota mínima de títulos
em inglês e o uso de índices bibliométricos para calcular o “impacto”59. Essas
características distinguem-se de outras tentativas de fortalecimento de circuitos regionais
e transnacionais de consagração científica, dos quais a América Latina é pioneira, como
o RedALyc e o Latindex (DELGADO, 2010; VESSURI et al, 2013). Considerando toda
a discussão a respeito da geopolítica do conhecimento e da dependência acadêmica
abordada ao longo da dissertação, podemos dizer que o campo sociológico nacional está
mais atento às assimetrias que estruturam o espaço internacional das ciências, ao valorizar
a publicação em circuitos regionais e transnacionais de prestígio, além e não utilizar o FI
e equivalentes como determinante na estratificação de periódicos.
Cabe, por fim, uma última discussão. A avaliação da Capes e o Qualis não
pretendem avaliar a qualidade dos docentes, nem de suas publicações individualmente,
mas sim examinar a formação de recursos humanos qualificados pelos PPGs. Como
aponta Whitley (2007) as agências de avaliação se tornaram cada vez mais influentes num
contexto de expansão das comunidades científicas e da escassez de recursos. Contudo,
sua função vai além de avaliar, possuindo também poder classificatório no interior do
campo, contribuindo para a estruturação de práticas e estratégias de consagração, além de
59
Para mais informações sobre as condições de indexação da Scielo Brasil, ver
http://www.scielo.br/avaliacao/Criterios_SciELO_Brasil_versao_revisada_atualizada_outubro_20171206
.pdf. Acesso em 20 de maio de 2019.
149
Epílogo
60
No contexto atual de destruição de todas as conquistas sociais adquiridas desde a promulgação da
Constituição de 1988 – entre elas o acesso à educação superior pública e de qualidade – avaliação da Capes
também contribuiu para classificar aqueles programas indignos de funcionamento. Recentemente, foram
cortadas as bolsas destinadas ao financiamento de estudantes de programas de pós-graduação alocados na
nota 3: https://oglobo.globo.com/sociedade/veja-na-tabela-quais-universidades-tiveram-novos-cortes-nas-
bolsas-da-capes-23720064. Acesso 05/06/2019.
150
61
Não é meu interesse aqui analisar os efeitos do programa. Ainda é prematuro dizer, pois muitas pesquisas
ainda estão em andamento. Meu objetivo é salientar a discrepância entre a política adotada e o que diz a
literatura especializada.
151
CAPÍTULO IV
“[...] o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode
ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe
são sujeitos ou mesmo que o exercem”
Prelúdio
100%
90%
80% 9
9
18 14
70% 10 21
15
60%
50%
40%
30% 13
11
16 13
20% 6 13
7
10%
0%
PPGSA - PPGS - PPGS - UnB PPGS - UFPE PPGS - PPGS - PPGS - Usp
UFRJ UFRGS UFSCAR Unicamp
Mulher Homem
(Elaboração própria a partir dos dados fornecidos pelo portal dos programas)
Quanto à geração, a maior parte dos pesquisadores obteve o seu doutoramento entre 2001
e 2010. O segundo maior grupo, entre 1991 e 2000. Os dados indicam, assim, uma grande
quantidade de professores em estágio intermediário em suas carreiras. A maior fração dos
professores em estágio avançado, ou seja, que se doutoraram antes dos anos 1990, está
vinculada à Usp (11 docentes), ao passo que a UFRGS congrega aqueles o maior número
daqueles que se doutoraram entre 2001 e 2014 (22 docentes).
155
62
A unidade de análise, aqui, deixou de ser o programa de pós-graduação e passou a ser a universidade a
que ele está vinculado.
156
100%
90%
80%
70% 18
24 11
60% 19 16 23 16
50%
40%
30%
20% 16
10 5
10% 3 3 4 4
0%
PPGS - PPGS - PPGS - PPGS - PPGS - PPGS - PPGSA -
UFPE UFRGS UFSCAR UnB Unicamp Usp UFRJ
(Elaboração própria a partir de dados das informações contidas nos currículos Lattes)
Com exceção dos PPGSs da Usp e da UFRGS, as taxas de endogamia forte são
relativamente baixas, ficando entre 10 e 15% da quantidade total de docentes por
programa. No total, 45 agentes se encaixam nessa categoria. Temos um quadro totalmente
diferente quando considerados aquilo que poderíamos chamar de um baixo grau de
endogamia institucional, ou seja, quantos agentes obtiveram pelo menos um título na
mesma IES em que atualmente trabalham.
100%
90% 8 7
6 5
80% 9
13
70%
60% 14
50%
40% 26 27
16 11
30% 11
14
20%
10% 5
0%
PPGS - PPGS - PPGS - PPGS - PPGS - PPGS - PPGSA -
UFPE UFRGS UFSCAR UnB Unicamp Usp UFRJ
Os dados apontam que, com exceção do PPGS da UFSCAR, as outras instituições contêm
em seus quadros uma maior porcentagem de agentes que obtiveram pelo menos um título
acadêmico na mesma universidade em que trabalham, especialmente os PPGs da UFPE,
UFRGS e Usp. Concluímos que, ao fim e ao cabo, a maioria dos docentes (110 ao total)
atua como docentes e pesquisadores vinculados a universidades pelas quais já estudou
em algum nível de suas carreiras. Os dados sugerem, portanto, uma tendência do quadro
de recrutamento acadêmico da área de sociologia, a Usp se destacando como aquela mais
endogâmica. De fato, 27 docentes obtiveram seu doutoramento nessa mesma IES.
Quanto à nacionalidade dos professores, a grande maioria se trata de brasileiros –
170, ou 97%. Dos outros 5, 3 são argentinos, 1 francesa e 1 alemã. Tal dado é interessante
pois, como vimos, um número não desprezível de bolsistas veio do exterior para estudar
em programas de pós-graduação em sociologia no Brasil. Destes, nenhum ingressou no
corpo docente dos programas sob análise63.
Por fim, vejamos a área do doutorado dos docentes, de forma a examinar o grau
de homogeneização no que tange à especialização de sua formação. A maioria, com
efeito, se doutorou em programas de sociologia (121, ou 69%); ciências sociais aparece
em segundo, com 18 agentes doutorados (10%); antropologia com 10 (6%), ciência
política 7 (4%); e 19 doutoraram-se em outras áreas, incluindo filosofia, direito, literatura,
estatística, cursos muldisciplinares, estudos culturais, educação e economia. Assim, o
universo compreendido pelos professores dos PPGS notas 6 e 7 é composto em sua
maioria por especialistas da grande área das ciências sociais, especialmente sociólogos.
63
Referente a bolsistas estrangeiros de sociologia. Evidentemente, quando consideramos aqueles e aquelas
que vieram realizar seus estudos em outras áreas, como Antropologia, o quadro é distinto.
158
Alemanha 1 0 0 0 0 1
Canadá 0 1 0 0 0 1
Espanha 0 0 0 1 0 1
EUA 2 1 2 6 0 11
França 6 5 4 0 0 15
Israel 1 0 0 0 0 1
México 0 1 0 0 0 1
Reino 1 2 6 0 1 10
Unido
Total 11 10 12 7 1 41
2011-2014 10 10
2001-2010 21 8 10 7 0
1991-2000 4 12 11 9 3
1981-1990 2 1 8 3 3
1970-1980 0 3 2 5 4
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50
Entre os agentes cujas tomadas de posição no campo estão sob análise, 127 realizaram
estágio pós-doutoral. O seu sentido para a carreira do pesquisador, todavia, varia
conforme sua geração (Gráfico XVII). Para aqueles que se doutoraram entre as décadas
de 1970 e 1980, o primeiro pós-doutorado era realizado na maioria das vezes mais de 11
anos após a obtenção do título de doutor, sinalizando para uma possível função de
atualização da carreira. Quanto mais recente é o doutoramento, menor é o tempo de
realização do primeiro pós-doutorado, sugerindo que ele deixa de ser uma atualização de
conhecimentos e práticas de pesquisa e é tido como o primeiro emprego – uma forma de
se manter inserido no vida acadêmica até a efetivação em um cargo docente.
Essa mudança no intervalo temporal entre o doutorado e o pós-doutorado é
acompanhada de outra mudança, no âmbito institucional. Se as gerações mais antigas
tenderam a realizar o pós-doutorado como uma atualização científica, também preferiram
fazê-lo no exterior. As gerações mais novas, cujo sentido do pós-doutorado aponta para
um vínculo empregatício temporário, passaram a ver o Brasil como um horizonte possível
– um número razoável destes vinculando-se na mesma universidade de doutoramento,
reforçando a tendência de endogamia institucional.
161
(Mapa gerado no software de geoprocessamento QGIS, versão 1.8, a partir dos dados
disponíveis nos Currículos Lattes. O tamanho dos centroides e a espessura das linhas
representam a diferença nos valores dos atributo)
162
Por fim, os dados sugerem uma pequena diferença quantitativa quanto à variável gênero,
i.e qual gênero é considerado “mais ou menos” móvel. Olhando tanto o número total de
mobilidades por gênero, quanto o número de homens e mulheres por modalidade,
verificamos que, da mesma forma como ocorre com os bolsistas de sociologia no capítulo
anterior, a mobilidade associada ao início da carreira (no caso, doutorado pleno e
sanduíche) encontra maior equidade quantitativa.
164
100%
90%
80% 57 82
39
70%
60%
50%
40%
30% 93 114
38
20%
10%
0%
Doutorado (pleno no Pós-Doutorado Visitante
exterior + sanduíche)
Homem Mulher
100%
90%
80% 30
39 42
70%
60%
50%
40%
30% 43
38 50
20%
10%
0%
Doutorado (pleno no Pós-Doutorado Visitante
exterior + sanudíche)
Homem Mulher
Por outro lado, quando deixamos de relacionar os gêneros entre os pesquisadores que já
realizaram algum tipo de mobilidade internacional, e comparamos as relações de gênero
165
entre aqueles que nunca saíram do Brasil e os que já o fizeram, nos damos conta de que
há uma pequena vantagem das mulheres sobre homens – com exceção da categoria
“professor ou pesquisador visitante”. Assim, uma conclusão possível é que mais mulheres
do que homens realizam mobilidade internacional quando temos em mente o conjunto
total de agentes do campo. Contudo, dentre esses que realizam mobilidade internacional,
os homens são mais “móveis” que as mulheres.
100%
90%
80% 35
40 47 53
70% 58 49
60%
50%
40%
30% 44
39 49 43
20% 38 30
10%
0%
Mulher Homem Mulher Homem Mulher Homem
Doutorado Pós-doc Visitante
Sim Não
Tomando como referência as tendências apontadas pela literatura (ACKER, 2005; JÖNS,
2011), podemos dizer há mais mulheres realizando doutorado e pós-doutorado no exterior
pois se tratam de estágios iniciais da carreira. Como vimos, o pós-doutorado tem se
tornado efetivamente o primeiro emprego para pesquisadores nas últimas década e meia.
É nos estágios mais avançados que as mulheres ficam menos “móveis”, considerando as
barreiras da divisão social do trabalho doméstico e familiar. Com efeito, a pesquisa não
dá conta da dimensão qualitativa – a mais importante – das relações de gênero nas
mobilidades internacionais: as negociações, as vivências e representações
diferencialmente experimentadas pelos gêneros. Os dados apontam para a importância
dessas dimensões, ao mostrar que homens, quando realizam tal mobilidade, fazem-na em
maior número de vezes que mulheres.
166
nacionais não circulem para além das fronteiras nacionais. Como mostrei em outra
oportunidade (BRAGA FILHO, 2017), as publicações brasileiras possuem grande
circulação regional, em indexadores como o Latindex e RedALyc. Além do mais, a Scielo
Brasil cada vez mais está adotando critérios do circuito mainstream, como a publicação
em inglês, inclusive com indexação em bases como a Web of Sciences (VESSURI, et al,
2013). A ênfase em periódicos não editados no Brasil, todavia, põe em evidencia aqueles
agentes que deliberadamente optaram por outros canais de interlocução. É nesse sentido
que a publicação, além de uma prática, também constitui uma tomada de posição.
Apesar de possuírem maior circulação transnacional, a quantidade de artigos
publicados em periódicos não nacionais é bem inferior ao número total daqueles
publicados no Brasil no período analisado: 392 frente a 1609, distribuídos
assimetricamente entre 111 docentes (de 175). Considerando a centralidade das
publicações para a compreensão das estruturas que condicionam as práticas dos agentes
e a circulação do conhecimento (VANDERSTRAETEN, 2010), a seguir analisarei
algumas de suas características que refletem assimetrias em sua circulação, e alguns
mecanismos que a reforçam. São eles: idioma do artigo, vínculo institucional, editoração
e circuito de consagração.
Quanto ao primeiro, o inglês predomina nas publicações, correspondendo a 184
artigos (47%), seguido do espanhol, com 87 (22%), português, com 61 (16%), francês,
com 51 (13%), italiano e alemão com 6 e 3 respectivamente (somando 2%). O português
se destaca pois muitas publicações na América Latina são neste idioma, graças à
proximidade com o espanhol. É recorrente a afirmação de que o inglês desempenha para
a ciência internacional contemporânea o mesmo papel do latim na idade média e moderna,
como língua franca da comunicação erudita. Como nos informa Ortiz (2008), para que
uma língua se torne franca é necessário que o seu uso procure ao máximo tornar o discurso
impessoal e descontextualizado, de forma que o seu conteúdo se desvincule ao máximo
do objeto e do processo de construção do conhecimento64. Como para as ciências
humanas e sociais a linguagem é parte essencial da construção do objeto e da
hermenêutica conceitual, além de seu enraizamento a um contexto sociocultural, seria
impossível qualquer idioma desempenhar a função de língua franca.
64
Com efeito, essa descontextualização de todas as relações sociais na escrita das ciências é um
procedimento eminentemente retórico, não implicando de forma alguma que o produto do conhecimento
científico de fato se torne descontextualizado. Para essa argumentação, cf. Latour (2000).
168
100% 1
3 2 13 1
7 5 9 1
90%
1 0
80%
56
70%
0 2
60% 44
55 31
50%
40%
72
2
30%
3 0
3
20% 11
10% 15
10 34
11
0% 0 0
Alemão Espanhol Francês Inglês Italiano Português
(Elaboração própria a partir das informações dos currículos Lattes e das páginas
institucionais dos periódicos)
100%
90% 36
2
80%
8
70% 49 29 18
2 43
60% 1
50% 0
1 1
40%
122
30% 24 12 2
3
20%
1
16
10% 9
13
0% 0 0
Alemão Espanhol Francês Inglês Italiano Português
(Elaboração própria, a partir das informações obtidas dos currículos Lattes e das páginas
online dos periódicos)
65
Reflexo desse papel é a já mencionada iniciativa, pioneira da região, de publicações abertas (open access).
Cf. Vessuri et al (2013) e Delgado (2010).
66
Em artigo mais recente, Beigel (2017) classifica o Google Scholar como componente dos circuitos
transnacionais, diferentemente do que vinha fazendo em seus trabalhos anteriores. Contudo, não elucida as
razões para tal mudança. Mantive-o como pertencente ao circuito mainstream, pelo fato de utilizar em larga
escala medidas bibliométricas de impacto e por ser gerido por uma grande corporação privada (Google), a
172
Com efeito, os circuitos podem se entrecruzar, sugerindo a maneira como eles estão se
tornando cada vez mais complexos. Esse processo, todavia, não é destituído de relações
de poder, como veremos. Os diagramas de Venn podem ser utilizados para representar
graficamente o entrecruzamento de circuitos, na medida em que os indexadores também
podem ser considerados conjuntos de periódicos.
despeito de ser “gratuito”. Em minha pesquisa, correspondeu à menor parte dos indexadores do circuito
mainstream. Para uma crítica do Fator H utilizado pelo Google Scholar e pela organização de sua base de
dados, cf. Gingras (2016).
67
O CAIRN possui tanto artigos open aceess quanto pagos, pois congrega algumas editoras comerciais em
seu repositório.
173
Mainstream
126
12
15
37
Transnacional
49 44
46
Regional
Local ou nacional 63
(Elaboração própria a partir das informações contidas nos currículos Lattes e nos
endereços online dos periódicos)
as publicações em coautoria são, em sua maioria, escritas com apenas mais um colega:
131 publicações (33% do total); com mais 2 colegas, 51 (13%); e com 3 colegas ou mais,
30 (ou 8%).
A maioria das coautorias também é feita com colegas de instituições brasileiras:
dos 212, 161 (ou 76%) não escritas apenas com colegas que trabalham no país. Se
incluirmos os artigos que foram escritos por pesquisadores do Brasil e de instituições
vinculadas a outros países, a proporção chega a 81%. Em termos gerais, portanto, os
sociólogos brasileiros publicam em coautoria com seus compatriotas. Resta examinar as
publicações que circulam no circuito mainstream. Para isso, selecionei apenas os
periódicos contidos exclusivamente nesse circuito, para evitar os entrecruzamentos entre
publicações de alcance regional e transnacional – um total, assim, de 126 periódicos (ver
Figura XIII). Destes, 82 foram escritos em coautoria, consistindo na totalidade analisada.
(Elaboração própria a partir das informações contidas nos currículos Lattes e páginas
institucionais dos coautores)
No caso da publicação de artigos dos sociólogos brasileiros, os dados indicam que não há
uma forma de inserção internacional dependente, pelo menos no aspecto quantitativo. Os
pesquisadores que publicam em periódicos prestigiosos internacionalmente assinam os
artigos principalmente com colegas brasileiros. Por outro lado, os dados também sugerem
pouca colaboração internacional, refletindo o caráter propriamente nacionalizado da
176
68
Poder-se-ia, também, alegar razões como a valorização de um ethos científico, nos termos mertonianos,
como a promoção de valores como o comunitarismo (ou “comunalismo”), o desinteresse e o ceticismo
organizado (cf. MERTON, 2013). A resposta, contudo, exigiria uma investigação empírica de cunho
qualitativo própria.
177
132
Mainstream
12 3
Regional 27
20 20 Transnacional
36
23 Local ou nacional
(Elaboração própria a partir das informações contidas nos Currículos Lattes e nos endereços
online dos periódicos)
69
Ainda que trate em particular da tradução de livros, a autora fornece elementos para analisar a circulação
de livros no geral.
180
Chinês Coreano
Italiano
3% 2%
5%
Português
6%
Inglês
38%
Francês
19%
Espanhol
27%
70
Considerando o mercado global do mundo editorial, não faria sentido delimitar o circuito pelo país, pois
as grandes editoras mantêm escritórios em vários deles.
182
Francês
14%
Mandarim
Português 2% Italiano
12%
Espanhol 1%
26% Alemão
2%
Outra
2% Coreano
1%
Russo
0%
Inglês
42% Indonésio
0%
Como nos livros, a diferença entre os idiomas é menor do que aquela observada entre os
artigos, com o espanhol e francês se destacando. O mandarim aparece em apenas nove
capítulos (2%), e é o resultado, como no caso dos livros, de um dos poucos projetos Sul-
Sul de larga escala empreendido pelos sociólogos brasileiros. Trata-se do BRICS
University Network, que contempla diversos programas de pós-graduação de várias
disciplinas. Na sociologia, é coordenado por Thomas Dwyer, do PPGS da Unicamp. A
rede propõe-se a compreender a realidade social dos países do BRICS, por meio de
estudos comparativos e a criação de conceitos, metodologias e temas próprios (cf.
SCALON & MISKOLCI, 2018)71.
Naquilo que podemos considerar como o circuito mainstream dos livros, 108
(63%) dos capítulos foram publicados por livros editados por aquelas editoras com maior
capital simbólico internacional; das quais 71 incluem apenas a Routledge, SAGE,
71
O projeto é reflexo, além do mais, de dinâmicas que estão além do poder de decisão dos agentes, pois
envolve a sazonalidade dos interesses dominantes do campo de poder mais amplo. No período em que o
projeto ocorreu, o Brasil projetava-se internacionalmente nos âmbitos econômico e político com certa
relevância. É fruto, pois, da concepção política dos governos do período. No contexto atual as políticas
internacionais dos Ministérios da Educação e das Relações Exteriores são extremamente regressivas,
tornando difíceis, senão inviáveis, um projeto semelhante.
183
Springer e Palgrave Macmillan. Os outros são distribuídos entre outras grandes casas
editoriais (Wiley – Blackwell), Polity Press, Emerald) e editoras privadas de
universidades “world class” (Cambridge, Oxford, Harvard e Duke). Já em relação ao
espanhol, 47 (45%) dos capítulos foram publicados em livro que integrariam um provável
“circuito regional”. São editoras vinculadas às universidades públicas e centros de
pesquisa, associações científicas regionais (como Clacso e Flacso) e editoras de largo
alcance regional (Fondo de Cultura Economica). As demais consistem em editoras
pequenas de alcance local, de universidades espanholas ou de editoras fora da região.
Finalmente, vejamos as relações de gênero no que tange às publicações. Essa
variável se torna relevante na medida em que o regime de produtividade e a vivência
temporal que ele acarreta são experimentados diferentemente entre os gêneros
(CORDEIRO, 2013). Como no caso das mobilidades, quando colocamos em relação o
número de quem publicou em editoras não nacionais com aquele de quem não o fez,
constatamos pouca diferença. Esta se afigura com maior discrepância considerando o
gênero dos agentes que já publicaram para além de fronteiras nacionais.
100%
90%
24 28
80% 31 33
70%
60% 62 79
50%
40%
55 68
30% 48 63
20%
10% 17 17
0%
Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens
Artigos Livros Capítulos
Sim Não
100%
90%
80%
70% 36 222
239
60%
50%
40%
30%
20% 28 181
153
10%
0%
Artigos Livros Capítulos
Mulheres Homens
do universo, e 48% das mulheres. Em suma, mais homens realizam pareceres em relação
ao total de pesquisadores, mas as mulheres o fazem em maior quantidade.
A última seção deste capítulo trata de examinar uma das hipóteses que norteou o
desenvolvimento dessa dissertação: em que medida as assimetrias nas dimensões
internacionais também expressam clivagens no âmbito do campo sociológico nacional.
Ou seja, trata-se de analisar a relação entre as dimensões internacionais e a distribuição
de capitais específicos à dinâmica do campo. Para isso, considerei tanto o capital
simbólico (científico), quanto o temporal (BOURDIEU, 2003; 2004). Lembremos que o
primeiro diz respeito ao reconhecimento dos pares em relação à competência científica
de determinado agente, à sua contribuição para o conhecimento específico do campo. Já
o capital temporal se refere àqueles recursos que o agente acumula ao assumir posições
em instâncias de decisão e de chefia sobre os meios de produção científica: associações
científicas, órgãos de avaliação, conselhos científicos, laboratórios, universidades etc.
Visando à sua operacionalização, selecionei dois indicadores empíricos para
examinar a distribuição de capitais. Não se trata aqui de realizar uma topografia do campo
sociológico, do tipo daquelas realizadas por Bourdieu (2011) e Hey (2008) por meio de
análise de correspondência – técnica mais apropriada para tal. Usá-los-ei a seguir como
variáveis, de forma a traçar correlações e hierarquias quanto às dimensões internacionais.
No caso do simbólico, adotei o fato de o agente receber (ou ter recebido) a bolsa de
produtividade do CNPq. No caso do capital temporal, considerei as posições como
membro de diretorias, conselhos, presidência e coordenação de associações científicas
nacionais e internacionais (Anpocs, SBS, ISA, por exemplo), de agências de fomento
(Capes, CNPq, Faperj, Fapesp etc.) de sociedades científicas (SBPC, ABC, por exemplo)
e de instâncias governamentais que lidem com recursos caros ao campo científico
(Ministério da Educação, Ministério da Ciência e Tecnologia).
Os dados foram coligidos diretamente dos currículos Lattes. Para a bolsa de
produtividade, a página do currículo indica abaixo do nome se o pesquisador é
contemplado ou não, e em que nível. Não havendo (ou seja, se no momento da coleta ele
não era bolsista), procurei ao longo das informações se havia algum indício de que em
algum momento do passado o pesquisador tenha recebido. Dado que pode haver algum
lapso no preenchimento do currículo (esquecimento ou engano), recorri como última
186
social que estrutura a hierarquização da elite científica também é a que mais circula
internacionalmente.
Quando nos debruçamos sobre os critérios estabelecidos pelo CNPq para a
concessão de bolsa de produtividade, constatamos as dimensões sublinhadas pelo autor.
Nos editais das chamadas de 2017 e 2018, os agentes que tiveram seus projetos aprovados
pela seleção seriam avaliados conforme: a) mérito científico do projeto; b) relevância,
originalidade e repercussão da produção científica do candidato; c) formação de recursos
humanos em nível de Pós-Graduação; d) contribuição científica, tecnológica e de
inovação, incluindo patentes; e) coordenação ou participação em projetos e/ou redes de
pesquisa; f) inserção internacional do proponente; g) participação como editor científico;
h) participação em atividades de gestão científica e acadêmica72. Em itálico, destaquei
aqueles critérios que correspondem à hierarquização segundo a interlocução internacional
e o capital político, conforme apontado por Coradini como integrando o spoil system.
Outras pesquisas também constataram o entrelaçamento entre consagração
científica e o capital temporal sobre instituições políticas e científicas, questionando
portanto a separação primariamente proposta por Bourdieu. Vale lembrar que para o
sociólogo francês, ainda que passíveis de reconversão, os dois tipos de capitais operam
segundo lógicas distintas de acumulação. Assim, o fenômeno é observado por Hey (2008)
para a formação do polo dominante do campo dos estudos de ensino superior no Brasil.
Também é observado por Hey & Rodrigues (2017) a respeito dos cientistas sociais que
integram a Academia Brasileira de Ciências. Estes correspondem, para as autoras, a um
grupo cujos investimentos mais duradouros na esfera científica dirigiram-se para o polo
do poder temporal. Beigel (2010; 2014) também tem demonstrado em seus trabalhos que,
na América Latina, os sistemas de avaliação de instâncias científicas e a hierarquização
dos campos científicos periféricos não conhecem a separação plena entre os dois capitais.
Uma das razões, para essa autora, é a própria especificidade da institucionalização e
profissionalização das ciências sociais na região, cujas histórias são marcadas pela
aproximação entre instâncias de poder temporal e de consagração científica.
Com essas observações, procurarei analisar como as dimensões internacionais das
mobilidades, publicações e editoração se relacionam com a distribuição desigual de
capitais simbólicos e temporais – e em que medida ambos também estão entrelaçados.
72
Os editais podem ser acessados na aba “Chamadas” no site do CNPq (http://www.cnpq.br)
188
Em primeiro lugar, vejamos como se distribuem os capitais sobre os 175 agentes cujas
práticas estão sob escrutínio.
Capital Capital
simbólico Porcentagem temporal Porcentagem
Sim 92 53% 78 45%
Não 83 47% 97 55%
Total 175 100% 175 100%
Capital Temporal
Sim Não Total
Capital Sim 61 31 92
Simbólico Não 17 66 83
Total 78 97 175
Podemos ver que os capitais, da forma como foram operacionalizados, não constituem
trunfos deveras escassos entre os agentes. Ao mesmo tempo, também não são fartamente
distribuídos. Encontrando uma medida em comum entre ambos, podemos dizer que
praticamente metade dos agentes possuem capitais e a outra metade não (50% - 50%).
Acrescente-se o fato de que, dentre aqueles que foram contemplados com a bolsa
produtividade do CNPq, apenas 12 o foram apenas no passado, e não no momento da
obtenção dos dados. No Painel de Investimentos do CNPq não consta o nível em que estes
foram classificados à época em que receberam a bolsa. Deixando-os de lado
temporariamente, a distribuição dos atuais bolsistas de produtividade não é equânime: 19
são bolsistas 1A; 16 são 1B; 12 são 1C; 8 são 1D; 23 são 2; e apenas 1 é bolsista Sênior.
Cruzadas essas informações com a posse daquilo que denominei capital temporal
principal – a ocupação de posições de coordenação, presidência e titular de associações
189
como a Anpocs, Capes, SBS e ABC – verificamos o fenômeno insinuado por Coradini
(2013), de que as hierarquias mais altas das bolsas de produtividade correspondem
também às hierarquias mais alta do capital temporal. Isto é, aquelas posições de poder
temporal mais prestigiosas foram ocupadas por quem, hoje, está no topo da hierarquia de
capital simbólico, e não que a posição nesses cargos é requisito para compor os grupos
com maior consagração científica.
73
Não foi possível obter o nível específico, pois o Painel não discrimina e não consta a informação em seu
Lattes.
190
nacional”, até porque, como veremos, há carreiras fortemente internacionalizadas que não
refletem prestígio no âmbito nacional, mas sim internacional. Ou o contrário, em que
carreiras nacionalizadas, mas com forte integração institucional, garantem o prestígio
científico. Os dados refletem, assim, tendências de consagração nacional, por meio da
correlação entre variáveis teoricamente pertinentes.
Quando não discriminamos pelo tipo de capital, i.e agentes que possuem capital
simbólico ou temporal, vemos que a proporção daqueles que realizam mobilidades
internacionais é alta. Em outras palavras, entre os que realizaram pós-doutorado no
exterior, 82% possuem algum tipo de capital; para os que foram visitantes, a proporção é
de 86%!
100%
90% 16 10
80%
70% 50 56
60%
50%
40% 72 63
30%
20% 37 46
10%
0%
Sim Não Sim Não
Pós-doc no exterior Visitante no exterior
A proporção de posse de capital por agente que não tenha realizado nenhuma mobilidade
internacional descrita é menos discrepante. Indica, assim, que alguns pesquisadores com
prestígio no campo possuem uma carreira cuja trajetória é mais nacionalizada. Já quando
discriminamos as mobilidades conforme os dois tipos de capitais, a desigualdade se
mantém. No caso do capital simbólico, a proporção entre aqueles com sua aquisição e
que não tenham realizado mobilidade é menor.
191
100%
90%
24 18
80%
70% 65
59
60%
50%
40%
64 55
30%
20% 37
28
10%
0%
Realizou Não realizou Realizou Não realizou
Pós-doc no exterior Visitante no exterior
Os dados revelam que há uma forte correlação entre a posse de capital simbólico e a
mobilidade internacional, nas modalidades pós-doutorado no exterior e como pesquisador
ou professor visitante. Dentre aqueles que realizaram a primeira, 73% possuem o trunfo
do capital simbólico reconhecido pelos pares no âmbito nacional. Para os que foram
visitantes, a proporção chega a 75%. Vemos, ao mesmo tempo, que entre aqueles que não
realizaram tais mobilidades no exterior, a porcentagem dos que não possuem o indicador
de capital simbólico é superior aos que o possuem: 68% para o pós-doutorado e 64% para
os visitantes.
Como o capital simbólico é ele mesmo hierarquizado, vale a pena verificar a
segmentação desses valores tendo em vista o nível da bolsa de produtividade, sendo,
como dito anteriormente, 1A e 1B aqueles tidos como mais prestigiosos, a “elite da elite”.
Classifiquei como “Indefinido” aqueles que foram bolsistas no passado e, não mais o
sendo no momento da coleta, não informaram em seus currículos o nível quando foram
outorgados. Podemos constatar que, em todos os níveis das bolsas, há mais agentes que
realizaram mobilidade no exterior do que os que não o fizeram. A existência de agentes,
ainda que minoritários, com alta hierarquia no campo científico e pouca circulação
192
internacional reforça o enunciado mais acima de que é possível construir uma carreira
priorizando mais o circuito nacional.
Gráfico XXX – Segmentação dos níveis de capital simbólico por tipo de mobilidade
100%
90%
25 18
80%
70% 6
7 59 66
60% 12
14
50%
6
6
40%
11 10
30% 5
4
9 11
20% 10 10
2 2
2 3
10% 6 6
14 11
5 8
0%
Sim Não Sim Não
Pós-doc Visitante
1A 1B 1C 1D 2 Indefinido Não
100%
90%
80% 35 30
70%
67
62
60%
50%
40%
30% 53 43
20%
35
25
10%
0%
Realizou Não realizou Realizou Não realizou
Pós-doc no exterior Visitante no exterior
PÓS-DOUTORADO NO EXTERIOR
Capital simbólico Capital temporal
Quantidade Sim Não Sim Não
>3 10 0 8 2
1a2 54 24 45 33
0 28 58 25 62
VISITANTE NO EXTERIOR
Capital simbólico Capital temporal
Quantidade Sim Não Sim Não
>3 17 3 12 8
1a2 38 15 31 22
0 37 65 35 67
O número “3” foi escolhido como valor mínimo de indicativo daqueles mais móveis pois
ele representa um ponte de corte sobre a distribuição do cômputo das mobilidades. Acima
deles, há poucos agentes, destoando-se daqueles que tiveram até duas mobilidades
internacionais computadas. A partir dele, os valores também são erráticos, com alguns
casos raros (2 ou 3 agentes) passando de 10. Com isso, podemos ver pela tabela que
quanto maior o número de mobilidades, mais desigual é a distribuição de capitais,
sobretudo o simbólico. Podemos concluir, em suma, que aqueles agentes com maior
aquisição de alguma forma de capital possuem maior circulação internacional como pós-
doutores e visitantes.
Vejamos como essa distribuição ocorre, agora, quando examinamos as
publicações em periódicos, livros e capítulos de livros. Os artigos em revistas não
editadas no Brasil refletem, como dito anteriormente, a tomada de posição do agente em
dialogar com uma audiência que está além da fronteira nacional. Quanto à ocorrência de
clivagens no campo sociológico, observa-se uma maior desigualdade quando agregamos,
como feito com as mobilidades, os dois tipos de capitais. Dessa forma, 70% daqueles que
publicaram no exterior distinguem-se dos outros quanto à aquisição de capital simbólico
ou temporal. Paralelamente, para aqueles que não publicaram essa proporção é de 48%.
195
100%
90%
31 24
25
80% 39
40
70% 53
60%
50%
40%
78 68
53
30% 58
43
20% 33
10%
0%
Com capital Sem capital Com capital Sem capital Com capital Sem capital
simbólico simbólico temporal temporal
Não especificado Especificado
Note-se que, aqui, os eixos e coordenadas são o oposto dos gráficos anteriores, visando
ao maior número de informações. Nele também vemos que a discrepância entre quem
publica no exterior e quem não o faz é maior quando não especificamos os tipos de
capitais. O capital simbólico também parece ser, como nas mobilidades e quando
196
100%
90% 6 11
18
80% 48 60 55
70%
60%
50%
40% 20 35
43
30% 66 89 74
20%
10%
0%
Sim Não Sim Não Sim Não
Circuito mainstrean Circuito regional Circuito nacional/local
Capital temporal 21 14
Capital simbólico 29 6
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%
Sim Não
portador. Vemos que 31 agentes (ou 89%) são portadores de algum tipo de capital. Essa
proporção diminui quando consideramos apenas a aquisição de capital temporal, caindo
para 60%. O capital simbólico, novamente, aparece como principal trunfo de distinção
nas dimensões internacionais das práticas e tomadas de posição dos agentes, presente em
83% dos agentes que publicaram livros no exterior no período.
A relação entre aquisição de capitais e circulação internacional ganha, assim,
maior expressão a publicação de livros – gênero específico que, como vimos, demanda
outra temporalidade, domínio de idioma e capital social internacional. Os capítulos de
livros têm outra dinâmica. Os dados não refletem a mesma discrepância observada nos
livros, mas reforçam algumas tendências já observadas nas outras práticas.
Capital simbólico
Sim % Não % Total
Publicou 76 63% 45 37% 100%
Não publicou 16 30% 38 70% 100%
Capital temporal
Sim % Não % Total
Publicou 61 50% 60 50% 100%
Não publicou 17 31% 37 69% 100%
Capital simbólico ou temporal
Sim % Não % Total
Publicou 86 71% 35 29% 100%
Não publicou 23 43% 31 57% 100%
justifica-se, com efeito, pelo fato de que o mesmo agente não possui ambos os capitais,
mas apenas um.
Finalmente, vejamos como ocorre a relação entre a distribuição de capitais e a
participação em atividades editoriais. Estas, como vimos, integram atividades tão
importantes quanto as publicações, senão mais, para a inserção internacional dos
sociólogos brasileiros, pois dizem respeito às decisões de relevância e dos critérios de
circulação do conhecimento científico. Quando consideramos a editoração de periódicos
no exterior, sem especificar o circuito, constatamos que o capital temporal isoladamente
não constitui um recurso desigualmente distribuído entre os agentes, pelo contrário:
apenas 48% dos que editaram periódicos no exterior possuem alguma forma de poder
temporal. Quanto à consagração científica, o valor é superior: 60%. Quando
consideramos ambos, ou capital temporal ou simbólico, a porcentagem chega a 68%, não
muito discrepante. Essas informações provisórias confirmam a importância da
consagração científica sobre o poder temporal quanto à inserção internacional, além de
indicar, novamente, trajetórias distintas de carreira acadêmica.
Mais importante, contudo, é examinar, como no caso dos artigos, se há diferença
quanto aos circuitos nos quais os periódicos estão vinculados. Para isso, empreendi
seleção similar àquela feita com os artigos, selecionado um circuito prestigiado
internacionalmente e outro regionalmente. Não escolhi o circuito local/nacional pelo
pouco número de agentes que neles atua editorialmente.
200
100%
90%
4
80% 5 62
7 76
70% 92
60%
50%
40%
10
30% 9 99
7 85
20% 69
10%
0%
Atuou Não atuou Atuou Não atuou Atuou Não atuou
Capital simbólico Capital temporal Capital simbólico ou
temporal
Sim Não
100%
90%
17
80% 22 49
61 28
70% 69
60%
50%
40%
40
30% 35 69
57 29
20% 49
10%
0%
Atuou Não atuou Atuou Não atuou Atuou Não atuou
Capital simbólico Capital temporal Capital simbólico ou temporal
Sim Não
Epílogo
Este capítulo tratou de responder as hipóteses de pesquisa à luz das práticas atuais dos
agentes do campo sociológico. Vimos que, do ponto de vista dos fluxos internacionais,
há assimetria quanto ao destino dos pesquisadores como visitantes e pós-doutorandos. Os
dados apontam também como, no caso da última modalidade, ela também está
relacionada a dinâmicas geracionais do campo. Sobre a circulação de artigos, livros e
capítulos, essa também se dá assimetricamente, contudo não é desprezível a importância
dos circuitos regionais e transnacionais como canais de diálogo e de consagração dos
agentes. Por fim, quando consideramos as atividades editoriais, quando tomamos a
perspectiva das práticas dos agentes, vemos que eles atuam mais em periódicos do
chamado circuito mainstream, ainda que, de fato, a proporção de pesquisadores do Sul
nos corpos editoriais de tais periódicos possa ser pequena.
Do ponto de vista das assimetrias no próprio campo, os dados sugerem que a posse
de capitais simbólico e temporal estão associados à maior circulação internacional de seus
portadores. Ou seja, há uma tendência de reconversão, no âmbito nacional, de
experiências internacionais em capitais. Contudo, os dados também apontam que em
determinadas dimensões internacionais essa tendência não é tão forte, como na
segmentação por circuitos de consagração. Agentes consagrados nacionalmente publicam
regional e internacionalmente na mesma medida. Finalmente, o capital simbólico aparece
com maior peso distintivo que o capital temporal, principalmente quando consideramos
a participação de agentes como membros de corpos editoriais e como pareceristas de
periódicos do circuito mainstream.
203
CONCLUSÃO
O que chamamos de realidade social é, como ensinou o autor de “Ciência como vocação”,
um complexo de fenômenos que adquirem inteligibilidade e sentido aos olhos daquele
que procura interpretá-la. Não há ponto de vista absoluto, porque é da natureza do objeto
sociológico ser efêmero e multifacetado. É preciso, pois, tomar um ponto de partida; um
fio a partir do qual possamos desfazer o emaranhado de nós.
Nesta dissertação, interessei-me por compreender a formação do campo
sociológico no Brasil, tendo como ponto de vista analítico as dimensões internacionais
que lhe foram e são constitutivas. Tive como norte de pesquisa as hipóteses, amparadas
pela literatura, de que os fluxos internacionais operam assimetricamente, além de
refletirem e fomentarem clivagens no interior do próprio campo. A argumentação seguiu
um percurso dedutivo: comecei com uma discussão conceitual sobre dependência
acadêmica e geopolítica acadêmica, dialogando com a literatura que tem problematizado
a relação entre campos centrais e periféricos. Estabelecidos os termos, empreendi uma
análise da importância das dimensões internacionais para a formação histórica do campo
sociológico nacional, e como elas contribuíram para o fortalecimento das primeiras
clivagens estruturais entre as posições dos agentes. Isso porque todo campo, já o sabemos,
é também o espaço de disputas anteriores, que condicionam as tomadas de posição dos
agentes no presente. Já na contemporaneidade, esbocei as políticas de mobilidade e de
avaliação que condicionam as atuais tomadas de posição dos agentes no campo,
considerando os imperativos de “internacionalização” da ciência. Por fim, detive-me nas
práticas concretas dos agentes no campo na atualidade, especificamente as suas práticas
de publicação e mobilidades internacionais.
Gostaria, dessa forma, de enfatizar alguns pontos que, creio, minha dissertação
tenha contribuído para a literatura. A primeira é a noção de que os campos científicos, em
especial aqueles periféricos, conhecem dimensões internacionais desde sua gênese até o
seu desenvolvimento. Esse enunciado é reforçado por trabalhos que questionam a visão
primeiramente elaborada por Bourdieu (1999) de que a circulação internacional é
refratada pelos campos nacionais; estes sendo, pois, anteriores àquela (KEIM, 2014;
MEDINA, 2014).
Em primeiro lugar, argumentei, amparado por literatura, que a gênese institucional
– logo as condições de possibilidade de existência de um campo – das ciências sociais no
Brasil não pode ser entendida sem levar em conta a sua interlocução internacional,
primeiro com os franceses e depois, talvez de forma mais dramática, com os americanos,
via Fundação Ford. A bibliografia e os dados mostram que, sem o financiamento
205
* * * * * *
Uma das definições de campo científico é que ele é um espaço social relativamente
autônomo frente às outras dinâmicas da sociedade, como os imperativos econômicos e
políticos. Essa autonomia não se deve a um processo espontâneo ou fortuito do
desenvolvimento das sociedades modernas, mas às lutas dos próprios agentes em
estabelecer um espaço seguro e independente de atuação. É, assim, uma conquista
história, constantemente ameaçada por forças externas. Essa autonomia depende de uma
série de condicionantes políticos e sociais, como o financiamento público em sociedades
que reconhecem o conhecimento científico como um bem também público.
Vimos ao longo da dissertação como um dos momentos mais críticos da
autonomia de um campo sociológico ainda em vias de formação se deu no regime
ditatorial militar que assolou o Brasil entre 1964 e 1985, com a censura ao pensamento
livre, emparelhamento universitário, perseguição a professores e cientistas. Marca da
ambivalência do período foi a ideologia nacionalista, responsável também pelo
desenvolvimento e fortalecimento institucional do sistema de pós-graduação nacional.
207
Apesar disso, o financiamento público se dava, via agências de fomento, de forma errática
e com restrições quanto ao investimento. Nesse contexto de repressão e investimento
cambiante, foi significativa a dependência de recursos americanos para a vertebração
institucional de muitas organizações e associações fundamentais para o campo das
ciências sociais, cujas funções são indispensáveis até os dias de hoje.
Após aquilo que talvez tenha sido um dos momentos de exceção da história
brasileira, em que o investimento público e a valorização da ciência ocorreram num
contexto democrático, o campo científico, e o sociológico em particular, está novamente
em xeque. Mais uma vez, por ingerências políticas e econômicas, mas também por novas
dinâmicas societárias. Não bastasse o ressurgimento do autoritarismo, do
recrudescimento da violência de Estado, e do aprofundamento das políticas neoliberais
de sucateamento dos bens públicos, presenciamos o questionamento da verdade como um
valor socialmente legítimo, com consequências sobre várias instâncias institucionais,
como a ciência e universidade e o jornalismo.
A sociologia, como ciência que procura romper epistemologicamente com o senso
comum quanto à vida social, tem uma dupla missão, algo inglória: resistir aos ataques
que são desferidos contra o campo científico e lutar por condições de reproduzir-se
autonomamente como campo; ao mesmo tempo em que deve procurar compreender o
sentido das transformações e crises da atualidade, incumbência que lhe deu nascimento e
razão de ser na modernidade. Os desafios são grandes. A opinião dos especialistas nunca
esteve tão questionada, em especial a dos sociólogos – entre outras coisas, podemos
aventar, devido à nova arquitetura que estrutura o fluxo de informações nas sociedades,
e à crise da divisão desigual do trabalho entre produtores e consumidores do
conhecimento.
Se é possível aprender algo com a história, é que nos momentos de crise a
dependência externa quanto aos recursos financeiros, e o fenômeno conhecido como
brain drain, tendem a aumentar, fortalecendo a posição periférica de determinados
campos científicos frente ao espaço global de produção e produção do conhecimento.
Nesses momentos, aqueles grupos e agentes mais bem integrados aos circuitos
mainstream de consagração tendem a reforçar também a sua posição dominante nos
campos nacionais.
Em um texto provocador no qual reflete sobre o livro “Southern Theory”, de
Raewyn Connell, Michael Burawoy (2015) afirma que as desigualdades globais na
produção e circulação do conhecimento são muito mais estruturais do que imagina a
208
autora australiana. Estamos lidando, para o autor, com uma distribuição de recursos
materiais e simbólicos tão desigualmente distribuídos, que interferem nas capacidades
criativas e nas agendas intelectuais de forma dramática. Esse fato é agravado pelo
reconhecimento, por parte de muitas instâncias e pesquisadores de campos periféricos, da
validade e superioridade dos critérios de qualidade, avaliação e modos de produção do
Norte. Por isso, superar essas formas de desigualdade é, na feliz analogia do autor, um
esforço de Sísifo.
Não é possível dizer se algum dia as desigualdades na geopolítica do
conhecimento serão superadas (e desejadas...); há trabalho de mais a ser feito, pedras em
excesso para empurrar até o topo da montanha. Irremediavelmente reflexiva, à sociologia
compete exercer sua vigilância epistemológica, olhando-se no espelho e refletindo as suas
condições de possibilidade como ciência da sociedade. O conhecimento dos mecanismos
(re)produtores das desigualdades globais insere-se nesse esforço, sempre coletivo, e com
o qual espero ter contribuído. De posse dele, não há mais espaço para inocência.
209
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