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0 CRIME EM DURKHEIM

Introdução

A demonstração da permanência do crime em todas as sociedades (1) constituiu


o factor determinante da sua integração no pensamento sociológico sistemático,
cujo contributo mais significativo se deve a Durkheim em três das suas obras
fundamentais que são De la Division du Travail Social (1893), Les Règles de la
Méthode Sociologique (1895) e Le Suicide (1897). Todavia, será legítimo situar o
início da sociologia criminal a partir do segundo quartel do século XIX (2), altura
em que foram desenvolvidos inúmeros estudos, em diversos países (França,
Bélgica, Alemanha e Grã-Bretanha), com aplicação de métodos e instrumentos
sociológicos, nomeadamente a recolha e interpretação de dados estatísticos (3).
Mas é efectivamente com os trabalhos de Lacassagne (4), Gabriel Tarde (5), e
Émile Durkheim (6) que a sociologia criminal adquire o seu estatuto de ciência,
especialmente a partir do 3.º Congresso de Antropologia Criminal, realizado em
Bruxelas, em 1892, que marca a viragem das explicações da escola positiva em
favor das teorias sociológicas.

A sociologia criminal aparece-nos assim como uma ciência muito recente (7),
muito depois do direito penal, cuja origem remonta à antiguidade, e depois ainda
da criminologia, cuja origem se poderá situar na escola clássica (8), muito
embora apenas tenha atingido a sua forma sistemática com a escola positiva
italiana (9). Mas, se ao direito criminal importa a definição do tipo de crime e a
sua consequência sancionatória, à criminologia importa a compreensão da
realidade criminal em todos os seus aspectos. Numa primeira fase, a criminologia
debruçou-se sobre a pessoa do delinquente, servindo-se de métodos próprios da
biologia e da psiquiatria - aquilo que alguns autores designaram por criminologia
"clínica". Numa fase mais avançada da reflexão criminal, o criminólogo deslocou o
seu estudo para o meio social onde se gerou a prática delitiva - a acentuação
deste aspecto da criminologia deu lugar à sociologia criminal que apareceu
também como um novo ramo da sociologia. A partir do momento em que se
compreende que não existe sociedade sem crime, não só não é concebível uma
sociologia que ignore este fenómeno, como não é possível estudar o crime,
considerado em abstracto, sem evocar o meio social onde se desenvolve.
A obra de Durkheim deve uma grande parte da sua importância ao facto de ter
compreendido esta relação entre o crime e a sociedade numa altura em que as
escolas positivas se refugiavam por detrás das concepções individualistas. Este
autor compreendeu que a sociedade não era simplesmente o produto da acção e
da consciência individual, pelo contrário, "as maneiras colectivas de agir e de
pensar têm uma realidade exterior aos indivíduos que, em cada momento do
tempo, a elas se conformam (10) e, mais que isso, "são não só exteriores ao
indivíduo, como dotados dum poder imperativo e coercivo em virtude do qual se
lhe impõem (11). O tratamento do crime como um facto social, de carácter
normal e até necessário, permitir-lhe-à reabilitar cientificamente o fenómeno
criminal e demonstrar que a prática de um crime poderá depender não tanto do
indivíduo que, de acordo com esta concepção, age e pensa sob a pressão dos
múltiplos constrangimentos que se desenvolvem na sociedade mas,
diversamente, poderá apresentar em abstracto uma ampla raiz de imputação
social.

A Teoria da Anomia

A consideração sociológica da anomia, que etimologicamente não significa senão


"ausência de normas", apesar dos vários desenvolvimentos que conheceu, em
Merton, Cloward, Ohlin, Parsons, Dubin e Opp, remonta aos estudos
desenvolvidos por Durkheim, particularmente em A Divisão do Trabalho Social e
em O Suicídio. O facto de o homem não viver num ambiente de eleição, mas
sujeito a uma ordem "imposta", permite a Durkheim formular a sua concepção da
anomia e estabelecer as condições da produção do crime.

A Divisão do Trabalho Social, cujo tema central incide sobre a relação do


indivíduo e a colectividade, está dominada pela ideia de que a divisão do trabalho
é portadora de uma nova forma de coesão social, a solidariedade orgânica. Nas
solidariedades mecânicas, características das sociedades ditas "primitivas", a
consciência colectiva cobre a maior parte das consciências individuais, pelo que
se poderá dizer que o indivíduo está estreitamente integrado no tecido social. No
caso das sociedades orgânicas, dominadas pela divisão do trabalho, a consciência
colectiva apresenta uma menor extensão face ao indivíduo que se determina com
uma maior autonomia. Porém, compreender a solidariedade orgânica como
correspondente a uma sociedade contratualista - marcada pela atomização do
indivíduo cujos contratos se efectivariam num dado contexto inter-individual -
sem uma consciência colectiva mínima, não só constituiria uma paradoxal
sociedade sem sociedade como "implicaria a desintegração social (12). O normal
será que a sociedade desenvolva os seus mecanismos de solidariedade, ainda que
estejamos perante uma sociedade acente na diferenciação social e marcada pela
especialização das funções. Isso não significa que não existam, no âmbito do
processo de desenvolvimento da solidariedade social, algumas patologias na
divisão do trabalho, como é o caso da divisão forçada e da divisão anómica do
trabalho. Assim, se não existir uma adequada interacção de funções e um eficaz
sistema normativo capaz de regular essa interacção, estaremos perante uma
anomia na divisão do trabalho.

A teoria da anomia aparece também desenvolvida em O Suicídio (13) que se


revela, além do mais, como a primeira etapa da teoria do controlo social. O
estudo do suicídio, que é um fenómeno especificamente individual, apesar de só
em aparência, permitirá a Durkheim demonstrar as fortes relações entre o
indivíduo e a colectividade. A estrutura da obra acenta no pressuposto da
existência de três tipos de suicídios: o suicídio egoísta, "que resulta de uma
individualização excessiva (14) e cujo grau de integração do indivíduo na
sociedade não se apresenta suficientemente forte; o suicídio altruísta, que ao
contrário resulta de uma "individualização insuficiente (15); e o suicídio anómico,
que se relaciona com uma situação de desregramento, típica dos períodos de
crise, que impede o indivíduo de encontrar uma solução bem definida para os
seus problemas, situação que favorece um sucessivo acumular de fracassos e
decepções propícias ao suicídio (16). Pela observação de estatísticas oficiais, este
autor observou que o suicídio era mais frequente nas comunidades protestantes
que nas comunidades católicas, fenómeno que explicou através da noção de
integração religiosa. No mesmo sentido, Durkheim verificou que o suicídio ocorria
menos entre os indivíduos casados que entre os celibatários, viúvos e
divorciados, situação que, segundo ele, se explicaria através da noção de
integração familiar. Neste trabalho, notou ainda que a taxa de suicídios diminuía
em períodos de grandes acontecimentos políticos, em que aumentava a coesão
sócio-política em torno da ideia de nacionalidade. A partir destas observações, o
sociólogo francês pôde assim concluir que o suicídio variava na razão inversa do
grau de integração da sociedade religiosa, familiar e política.

O suicídio altruísta apresenta-se como a situação oposta ao suicídio egoísta. Um


exemplo deste tipo de suicídio é o existente entre os esquimós, em que um velho
que se torne um fardo para a colectividade se deixa morrer ao frio; um outro, que
ocorre na índia, é o suicídio da mulher ou dos servidores de um defunto, os quais
se deixam imolar no dia do seu funeral. Em qualquer dos casos, o indivíduo
determina a sua morte por força de "um imperativo social interiorizado,
obedecendo ao que o grupo ordena ao ponto de asfixiar dentro de si próprio o
instinto de conservação (17).

O terceiro tipo de suicídio, o suicídio anómico, é estudado através do


relacionamento do suicídio com os movimentos económicos. A análise das
estatísticas revelou que os suicídios aumentavam tanto em períodos de recessão
como de crescimento económico. O que se observa desses resultados é que "se a
influência reguladora da sociedade deixa de se exercer, o indivíduo deixa de ser
capaz de encontrar em si próprio razões para se auto-impor limites (18). Numa
época de rápidas transformações económicas a acção reguladora da sociedade
não pode ser exercida de modo eficaz e por forma a garantir ao indivíduo um
conjunto normativo conciliável com as suas aspirações. Ora, esta situação de
desregramento, que lança o indivíduo num universo sem referências, caracteriza
uma situação de anomia que corresponde, no fundo, a uma situação de
dissociação da individualidade face à consciência colectiva.
As conclusões extraídas do estudo do suicídio permitem, como se referiu,
enquadrar a construção durkheimiana nas teoria do controlo social. Com efeito,
um dos postulados definidos ao longo da sua obra foi o da necessária integração
social do indivíduo que revela uma maior tendência para a prática de certas
"patologias" sociais, como o suicídio e o crime, quando desinserido do grupo
social a que pertence. O facto de se verificar que as instituições tradicionais de
coesão social (a família, a religião, etc.) não constituírem um factor de agregação
eficaz das sociedades modernas, leva Durkheim a defender que o único grupo
social capaz de favorecer a integração social é a profissão ou a empresa. Ora, se
uma integração social do indivíduo poderá diminuir a sua tendência para se
conformar com os imperativos sociais, isso significará de certa maneira que a
sociedade terá de encarar uma grande parte das condutas suicidas e
criminógenas como perfeitamente normais numa sociedade caracteristicamente
dinâmica.

A Tese da Normalidade

A definição dos factos sociais normais (19) permitiu a Durkheim importantes


considerações acerca da natureza normal ou patológica do crime, como resulta do
seu estudo em As Regras do Método Sociológico.

O crime, definido como um "acto que ofende certos sentimentos colectivos (20),
apesar da sua natureza aparentemente patológica, não deixa de ser considerado
como um fenómeno normal, no entanto, com algumas precauções. O que é
normal é que "exista uma criminalidade, contanto que atinja e não ultrapasse,
para cada tipo social, um certo nível (21). A sociedade constrói-se, na verdade,
em torno de sentimentos mais ou menos fortes, sentimentos cuja dignidade
parece tanto mais inquestionável quanto mais forem respeitados. No entanto isso
não quer dizer que todos os membros da colectividade partilhem dos mesmos
sentimentos com a mesma intensidade. De facto, alguns indivíduos tenderão a
interiorizar mais esses sentimentos que outros, o que explica que possam existir
condutas que, pelo seu grau de desvio, venham a apresentar-se como
criminosas. Isso explicará naturalmente a natureza do crime como um facto de
sociologia normal. Essa constatação não impede contudo que se considerem
algumas condutas como particularmente anormais, o que será perfeitamente
admissível, segundo Durkheim, tendo em consideração alguns factores de ordem
biológica e psicológica na constituição da pessoa do delinquente (22).

Para além disso, o crime deverá ser reconhecido não como um "mal" mas pela
sua função utilitária enquanto um indicador da sanidade do sistema de valores
que constitui a consciência colectiva. Nesse sentido, o crime será mesmo um
elemento promotor da mudança e da evolução da sociedade. É a este propósito
que Durkheim refere peculiarmente que, face aos sentimentos atenienses, a
condenação de Sócrates "nada tinha de injusto(23). Efectivamente, será esta
dimensão do crime que explica que a mesma conduta poderá ser censurada por
uma determinada sociedade num determinado momento da sua evolução cultural
como poderá nada ter de censurável na mesma sociedade num outro e diferente
momento da sua evolução cultural. Isso permitir-nos-à compreender que um acto
criminoso transpõe, de modo negativo, uma construção valorativa, de tal modo
que poderá dizer-se que "não há acto algum que seja, em si mesmo, um crime.
Por mais graves que sejam os danos que ele possa causar, o seu autor só será
considerado criminoso se a opinião comum da respectiva sociedade o considerar
como tal (24).

Conclusão

Um dos aspectos mais salientes da sociologia de Durkheim passa pela


consideração obrigatória de uma estreita relação entre as determinações
individuais e as construções sociais, donde resulta, antes que tudo, uma clara
ascendência da consciência colectiva sobre a consciência individual. Ao contrário
do que defendiam os contratualistas, que imaginavam uma sociedade de
indivíduos, a sociedade não é o mero somatório das partes, pois ainda assim não
passaria de um conjunto heterogéneo de afirmações diferenciais. A sociedade,
muito pelo contrário, é, para Durkheim, um depositório de valores que de uma
forma mais ou menos regular se consensualiza.

Esta visão da sociedade não deixou de ter a sua projecção no modelo sócio-
criminal que Durkheim defendeu. Antes de tudo porque o crime, embora de modo
algo ambíguo, passou a ser considerado não apenas como o resultado de
condutas anti-sociais, mas como condutas contextualizadas socialmente. O crime
mais que um fenómeno do criminoso passou a ser encarado como uma realidade
social cuja importância era inquestionável para o estudo sociológico,
nomeadamente para a compreensão das grandes estruturas de sedimentação e
desenvolvimento social. A um crime tão atomizado na sua explicação como o foi o
homem desde a escola clássica até à escola positiva opôs-se, através desta nova
dimensão da criminologia, uma explicação das causas do crime que procura a
solução do problema criminal não apenas na responsabilização exclusiva do
delinquente mas na responsabilização do comportamento criminal por elementos
típicos da própria sociedade que funciona como um ambiente verdadeiramente
condicionador da acção individual. Mas, mais que isso, a concepção de Durkheim
explica já que as causas do crime poderão estar em relação directa com as
disfuncionalidades fácticas e normativas do conjunto inter-relacional, como
poderão resultar das opções consensuais dos ordenamentos sociais de cada
época.

Mas se isto será assim para Durkheim, para alguns autores contemporâneos,
inspirados no modelo de conflito marxista, o importante não será, no entanto,
penetrar nos problemas, o importante e "imperioso é criar uma sociedade em que
a realidade da diversidade humana, seja pessoal, orgânica ou social, não esteja
submetida ao poder de criminalizar(25).

Referências
* Trabalho apresentado no seminário História do Pensamento Sociológico dirigido
pelo Prof. Doutor Augusto Silva, no âmbito do Curso de Mestrado em Sociologia,
na variante Poder e Sistemas Políticos, Departamento de Sociologia, Universidade
de Évora. 1997.

1. O facto de em todas as sociedades, desde as menos evoluídas às mais


evoluídas, se encontrarem manifestações anti-sociais não significa que todas as
sociedades definam os mesmos tipos de crimes e que os mesmos crimes sejam
delimitados com as mesmas características. Na realidade, a tipologia dos crimes
evolui no mesmo sentido da evolução social, o que quer dizer que, em certa
medida, o crime é produzido pela sociedade, em termos abstractos, e praticado,
em concreto, por um determinado membro da sociedade que não aderiu à ordem
social. Assim, seguindo a diferenciação social de Durkheim entre sociedades de
solidariedade mecânica e orgânica, poderá dizer-se que nas primeiras,
correspondentes a sociedades menos evoluídas, e porque o indivíduo se encontra
firmemente ligado ao grupo, os crimes mais graves são os que ponham em
"perigo o conjunto da colectividade", enquanto que nas segundas, onde o
indivíduo se encontra grandemente emancipado, se tutelam valores em torno dos
quais o indivíduo constrói a sua personalidade, seja sob a forma de crimes contra
a pessoa (os crimes contra a vida, os crimes contra a integridade física, os crimes
contra a honra, os crimes sexuais, etc.), seja contra a propriedade individual
(crimes de roubo, crimes de furto, crimes de abuso de confiança, etc. que
implicam geralmente um enriquecimento verso empobrecimento para cada uma
das partes envolvidas). Ora, o que nos permite considerar que o crime constitui
uma realidade de natureza sócio-cultural da maior importância: não só espelha
uma dimensão negativa da ordem social estabelecida pela colectividade, como
ainda se revela como uma dimensão de absoluta necessidade conceptual na
doutrina do controlo social.

2. Cf. RADZINOWICZ, L., Ideology and Crime, London: Heinemann. 1966.

3. Destacam-se, na escola franco-belga, A. Guérry (Essai sur la statistique morale


de la France,1833) e A. Quételet (Essai sur le dévelopment de facultés de 1
'home ou essai de phisique social, 1835), que utilizam cartas geográficas para
indicar a distribuição diferencial das taxas e tipos de criminalidade pelas diversas
áreas geográficas, na escola alemã, A. von Oettingen (Die moralstatistik in ihre
bedeutung für eine sozialethik) e G. von Mayr (Statistik der gerichtlichen polizei
im königreiche bayern und in einigen landern, 1868), na escola inglesa, Benthan
(Princípios do código penal), W. Rawson (An inquirity into the statistics of crime
in England and Wales, 1839), W. Buchanan (Remarks on the causes and state of
juvenil crime in the metropolis with hints for preventing its incrase, 1846), J.
Flechter (Moral and educational statistics of England and Wales, 1848) e H.
Mayhew (The criminal prisons of london and scenes from prison life, 1862, e
Those that will not work, 1864).

4. Lacassagne é o autor de Marche de la criminalité en France - 1825-1880


(1881) e de Les vois á l'etalage et dans les grands magasins (1986) e é fundador,
com Manouvrier, dos Archives d' Anthropologie Criminelle. A sua importância é
assinalável por ter iniciado as hostilidades ao positivismo lombrosiano, ao
proclamar, no 1.º Congresso de Antropologia Criminal, em 1885, que "cada
sociedade tem os criminosos que merece" e ao apontar como causa do crime o
meio social.

5. Gabriel Tarde (1843-1904) foi magistrado, dirigiu os Service de la Statistique


Criminelle e publicou um grande número de obras dedicadas ao fenómeno
criminal. A sua teoria do crime explicava-se pelo princípio da imitação que se
explicaria segundo três "leis": a imitação funcionaria em razão directa da
proximidade social; a imitação funcionaria no sentido das classes mais baixas
para as mais elevadas, quando existisse conflito entre dois modelos contrários de
comportamento, um poderia substituir outro. Durkheim refere-se à teoria da
imitação a propósito do suicídio, revelando o seu desprezo por esta teoria quando
diz que "uma coisa é sentir em comum, outra coisa inclinar-mo-nos perante a
autoridade da opinião e outra coisa ainda repetir automaticamente o que outros
fizeram". Embora constitua uma via de recurso para alguma da investigação no
domínio da teoria da aprendizagem em psicologia social, poderá dizer-se que a
teoria da imitação pouco representa hoje para a criminologia (Cf. LÉVY-BRUHL,
Henri, "Problemas da Sociologia Criminal", in Georges Gurvitch (org.), Tratado de
Sociologia, Porto: iniciativas editoriais, 1964, pp. 290-291; DIAS, Figueiredo, e
ANDRADRE, Costa, Criminologia: o Homem Delinquente e a Sociedade
Criminológica, Coimbra: Coimbra Editora, 1992, pp. 20-25. MANNHEIM,
Hermann, Criminologia Comparada, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985,
p. 698, Vol. II).

6. Durkheim (1858-1917) destaca-se na sociologia criminal pela sua definição do


crime como um facto social e pela tese da normalidade e funcionalidade do crime.
A importância paradigmática de Durkheim deve-se ainda ao facto de o seu
pensamento representar uma das vertentes das modernas teorias sócio-
criminológicas, o modelo de consenso, que se opõem à fundamentação marxista,
o modelo de conflito.

7. O facto de a sociologia criminal aparecer apenas no século XIX não significa


que só a partir desta altura tenha iniciado a preocupação e a reflexão criminal,
significa tão só que é nesta altura que a reflexão criminal atinge um elevado nível
de sistematização e rigor na explicação do crime, mediante a elaboração de
complexos estudos apoiados na consideração do meio social onde se desenvolve
o crime e numa metodologia suficientemente idónea para a abordagem credível
deste fenómeno. Assim, poderemos encontrar vestígios dessa preocupação e
reflexão em Platão (As Leis) que viu o crime como uma doença cujas causas
derivavam das paixões, da procura de prazer e da ignorância. Aristóteles, por seu
turno, considerou que a causa do crime tinha origem na miséria (Tratado da
Política) e que o criminoso era um "inimigo" da sociedade que deveria ser
castigado (Ética a Nicómaco). São Tomas de Aquino, na sequência de Aristóteles,
também atribuirá a origem do crime à miséria. Mas, o primeiro autor a dar-se
conta das causas sociais do crime foi Thomas Morum (1478-1535) na sua obra
Utopia. Porém, apenas no século XVIII, com o movimento iluminista, nasceu uma
forte reacção à arbitrariedade com que se determinava a medida das penas e à
desigualdade com que concretamente se aplicavam.

8. A escola clássica caracteriza-se por ter projectado na doutrina do crime os


ideais do movimento iluminista, donde se destacam, por terem tomado posição
nesta luta, Montesquieu, Hobbes, Voltaire, Rousseau, Diderot, d'Holbach. Mas os
autores que de modo mais directo participaram no debate do problema criminal
foram Beccaria, Feuerbach, Benthan, Blackstone, Carranara, etc. O mais
representativo de todos estes autores geralmente apontado é o italiano Cesare
Beccaria que expõe o principal do seu pensamento em Dei delitti e delle pene
(1764), onde defendia uma construção do tipo legal de crime em condições de
oferecer o mínimo de segurança ao homem no exercicio da sua liberdade social
face às autoridades públicas que manuseavam o respectivo processo sem
sujeição a qualquer tipo de regras, aplicando as respectivas penas de forma
"arbitrária". Menos feliz parece ter sido a sua explicação hedonista do crime,
quando defende que a prática do crime estaria associada ao prazer, de modo que
a pena deveria estabelecer-se por forma a anular as compensações da sua
prática. Pelo que a pena teria como finalidade diminuir a ocorrência do crime de
modo a assegurar a continuidade da sociedade civil livremente constituída. Neste
sentido, a teoria clássica surge como uma teoria de controlo social, partindo da
ideia de que a sociedade para existir celebrou livremente um contrato social,
através do qual estabeleceu o regime de tutela dos bens essenciais (o "bem-estar
pessoal" e a "propriedade privada") à convivência pacífica do homem. Os
homens, "iguais perante a lei", deveriam por isso determinar racionalmente a sua
liberdade em conformidade com aquele contrato. Mas todo o homem, com base
em motivações de ordem irracional, aparecia como um potencial violador do
contrato, razão pela qual estava sujeito às consequências de um estatuto penal,
cujas penas, que visavam dissuadi-lo preventivamente dessa conduta, deveriam
ser "exactas" na sua correspondência ao crime cometido. Só que a teoria clássica
ao estabelecer que os homens eram formalmente iguais perante a lei, apresenta,
por um lado, uma contradição básica na sua formulação quando "não presta
atenção ao facto de a carência de bens poder ser motivo para que o homem
tenha uma maior probabilidade para cometer crimes", tornou-se, por outro lado,
numa técnica duplamente perversa, ora porque em certos casos se revelava
excessiva, ora porque noutros se revelava insuficiente. Os neo-clássicos, como
Rossi, Garaud e Joly, para superarem tais dificuldades, introduziram algumas
reformas tendentes a ultrapassar as contradições dos princípios clássicos "puros"
que colocavam algumas dificuldades na determinação prática da medida da pena.
Com esta revisão, os neoclássicos tiveram de tal modo em conta as
"circunstâncias atenuantes", os "antecedentes criminais" e a "inimputabilidade"
do delinquente, ou seja, "pegaram no homem racional solitário da criminologia
clássica e deram-lhe um passado e um futuro" (Cf. TAYLOR, I., WALTON, P. e
YOUNG, J., La Nueva Criminologia: Contribuicion a una Teoria Social de la
Conduta Desviada, Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1990, p. 22).

9. O positivismo científico, na área da criminologia, surgiu, no Século XIX, com a


inauguração da escola positiva italiana em 1876, com a publicação de L 'Umo
Delinquente, de Cesare Lombroso, que reage contra os fracassos da escola
clássica no tratamento do problema criminal. Efectivamente, a escola clássica,
representada por Beccaria, centrara a sua preocupação no sistema penal
estabelecido de modo arbitrário; contudo a criminalidade ao invés de reduzir
aumentara e diversificara-se sem que a teoria clássica oferecesse uma explicação
satisfatória. A escola positiva surge assim, num ambiente de crise, como
alternativa da explicação das causas do crime, deslocando a investigação criminal
para o próprio delinquente e propondo-se tratar o crime com base nos métodos e
instrumentos utilizados pelas ciências ditas "objectivas". Como características
fundamentais desta escola realça-se o postulado determinista do comportamento
e a rejeição do livre arbítrio de raiz metafísica. Entre os fundadores da escola
positiva destacam-se não só Lombroso, que se detém na questão antropológica,
mas também dois dos seus discípulos: Enrico Ferri, que realçou na sua
investigação sobre o crime os elementos sociológicos, e Raffaele Garófalo, que
põem em destaque para a explicação do crime o elemento psicológico. A
formulação da antropologia criminal de Lombroso contou com alguns trabalhos
precursores que tentaram encontrar as causas do crime nos estigmas individuais
do delinquente, caso das teorias fisiológicos (J. K. Lavater, Fragmentos
Fisionómicos, 1775), que pretendiam diferenciar o criminoso pelos seus traços
fisionómicos, das teorias frenológicas (F. Gall, Sur les fonctions du cerveau, 1791-
1825, H. Lauvergue, Les forçat considérés sous le rapport physique, moral et
intellectuel, observés au Bagne de Toulouse, 1848, e C, Caldwell, Elements of
Phrenology, 1829), que procurou os sinais identificadores do delinquente no
formato craniano, entre outros. Mas, foi com base em Darwin (The origin of
species, 1859, e Descent of man, 1871) que formulou urna teoria baseada na
natureza atávica de todos os delinquentes - o criminoso seria reconhecível
através de certos estigmas físicos ("dentição anormal", "assimetria do rosto",
"orelhas grandes", "defeitos dos olhos", "características sexuais invertidas", etc.)
correspondentes a um homem menos civilizado que os seus contemporâneos -, o
que confirmaria estatisticamente. No entanto, perante as críticas que lhe foram
dirigidas, Lombroso seria forçado a moderar a extensão da sua teoria, porém não
ao ponto de corrigir alguns defeitos que serão definitivos para a sua
descredibilização, nomeadamente defeitos técnicos, relacionados com a utilização
de técnicas estatísticas inadequadas (Cf. C. Goring, The english convict, 1913),
uma errada consideração dos estigmas físicos, que geralmente são uma
consequência directa do meio social, uma infundada teoria genética, já que está
excluída pela moderna teoria genética a regressão evolutiva até espécies
anteriores. O pensamento de Ferri - considerado por alguns autores como o
fundador da sociologia criminal -, no domínio da criminologia, foi exposto na sua
obra Nuovi horizonti del diritto e della procedura penalle (1851) que serviu de
base à sua obra principal Sociologia criminale (1892). Segundo ele, as causas do
crime seriam não só de carácter antropológico e físicas, mas também sociais.
Será neste autor que Durkheim irá encontrar uma grande parte da sua inspiração
no tratamento social do crime, porém enquanto Ferri utiliza um método
predominantemente empírico, a análise de Durkheim "faz-se em profundidade e
não se satisfaz com a mera descrição" (Lévv-Bruhl, Op. Cit., p. 291). Por seu
turno, Garófalo conta com uma extensa bibliografia dedicada ao tema da
criminologia, de onde se destacam Criminologia (1885), Ripparazione alle vittime
dei delitto (1887) e La superstition socialiste (1895). A sua obra está marcada
pela tentativa de definição de um conceito sociológico de crime, concebido como
violação dos sentimentos básicos da colectividade, a que se reconduzia a sua
explicação psicológica do crime. As críticas ao positivismo não se fizeram esperar.
Tanto a sociologia criminal (Lacassagne, Tarde e Durkheim) como da antropologia
criminal (Baer e Goring) criticaram o determinismo lombrosiano determinado
pelas suas teses antropológico-causais. Mas, o certo é que de certa maneira
permanece o perigo das ideologias de tratamento que marcam uma vasta
influência na política criminal, sustentando-se, ao contrário do que defendia a
escola clássica, não uma redução mas uma ampliação da reacção social ao crime,
posição que leva Garófalo a admitir a hipótese de irradiação do delinquente
quando fosse "incapaz para a vida social" (Cf. DIAS, Figueiredo, e ANDRADRE.
Costa, Op. Cit, pp. 18-19).

10. DURKHEIM, Émile, As Regras do Método Sociológico, Lisboa: Editorial


Presença, 6.ª Ed., 1995, Prefácio à segunda edição original, p. 23.

11. Idem, p. 30.

12. ARON, Raymond, As Etapas do Pensamento Sociológico, Lisboa: D. Quixote,


1994, p. 323.

13. A actualidade da obra O Suicídio de Durkheim deve-se em grande medida ao


facto de estar na base da investigação de uma serie de condutas que se inserem
no quadro dos desvios e que continuam a preocupar o mundo moderno. Isso não
quer dizer que não haja nela um conjunto de aspectos cuja validade é hoje
contestável, desde logo a validade das estatísticas (no caso, oficiais), a
ambiguidade do conceito de anomia (Cf. Teoria da Anomia de Merton), as
dificuldades de distinção do suicídio egoísta do anómico (Cf. DURKHEIM, Émile. O
Suicídio: Estudo Sociológico, Lisboa: Editorial Presença, 1996, p.286), etc. É
ainda, por isso, uma obra de referência para a investigação social nos diversos
domínios, nomeadamente na área da criminologia social ou sociologia criminal.
Por isso, merece especial apreço a compreensão dos princípios e conceitos em
que se estrutura toda a obra. Desde logo, Durkheim entende por suicídio "todo o
caso de morte que resulta directa ou indirectamente de um acto positivo ou
negativo praticado pela própria vítima, acto que a própria vítima sabia dever
produzir este resultado" (Idem, p. 10) (V. ARON, Raymond, Op. Cit., 1994, p.
325), ou, em síntese, o "acto de um homem que prefere a morte a vida"
(DURKHEIM, Émile, Op. Cit., p. 275).

14. DURKHEIM, Op. Cit.., p. 200.

15. DURKHEIM, Op. Cit., p. 207.

16. A esta tipologia Durkheim acrescentou ainda os suicídios fatalistas que se


opõem aos suicídios anómicos: o suicídio fatalista, de modo inverso, é "aquele
que resulta de um excesso de regulamentação" (DURKHEIM, Émile, Op. Cit., p.
273, n.29).

17. ARON, Op. Cit., p. 329.

18. CUSSON, Maurice, "Desvio", in Rayrnoud BOUDON, Tratado de Sociologia,


Porto: Edições Asa, 1995, p. 391.

19. Um facto social, segundo Durkheim, "é normal para um tipo social
determinado, considerado numa fase determinada do seu desenvolvimento,
quando se produz na média das sociedades dessa espécie, considerada na fase
correspondente da sua evolução", DURKHEIM, Émile, As regras do Método
Sociológico, Lisboa: Editorial Presença, 6.ª Ed., 1995, p. 84.

20. DURKHEIM, Émile, Op. Cit.., p. 87.

21. DURKHEIM Émile Op. Cit.., p. 86.

22. DURKHEIM, Émile, Op. Cit., p. 86, nota 10.

23. DURKHEIM Émile, Op. Cit., p. 90.

24. LÉVY-BRUHL, Henri, Op. Cit., p. 292.

25. TAYLOR, I., WALTON, P e YOUNG, I., Op. Cit., p. 298.

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