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Introdução
A sociologia criminal aparece-nos assim como uma ciência muito recente (7),
muito depois do direito penal, cuja origem remonta à antiguidade, e depois ainda
da criminologia, cuja origem se poderá situar na escola clássica (8), muito
embora apenas tenha atingido a sua forma sistemática com a escola positiva
italiana (9). Mas, se ao direito criminal importa a definição do tipo de crime e a
sua consequência sancionatória, à criminologia importa a compreensão da
realidade criminal em todos os seus aspectos. Numa primeira fase, a criminologia
debruçou-se sobre a pessoa do delinquente, servindo-se de métodos próprios da
biologia e da psiquiatria - aquilo que alguns autores designaram por criminologia
"clínica". Numa fase mais avançada da reflexão criminal, o criminólogo deslocou o
seu estudo para o meio social onde se gerou a prática delitiva - a acentuação
deste aspecto da criminologia deu lugar à sociologia criminal que apareceu
também como um novo ramo da sociologia. A partir do momento em que se
compreende que não existe sociedade sem crime, não só não é concebível uma
sociologia que ignore este fenómeno, como não é possível estudar o crime,
considerado em abstracto, sem evocar o meio social onde se desenvolve.
A obra de Durkheim deve uma grande parte da sua importância ao facto de ter
compreendido esta relação entre o crime e a sociedade numa altura em que as
escolas positivas se refugiavam por detrás das concepções individualistas. Este
autor compreendeu que a sociedade não era simplesmente o produto da acção e
da consciência individual, pelo contrário, "as maneiras colectivas de agir e de
pensar têm uma realidade exterior aos indivíduos que, em cada momento do
tempo, a elas se conformam (10) e, mais que isso, "são não só exteriores ao
indivíduo, como dotados dum poder imperativo e coercivo em virtude do qual se
lhe impõem (11). O tratamento do crime como um facto social, de carácter
normal e até necessário, permitir-lhe-à reabilitar cientificamente o fenómeno
criminal e demonstrar que a prática de um crime poderá depender não tanto do
indivíduo que, de acordo com esta concepção, age e pensa sob a pressão dos
múltiplos constrangimentos que se desenvolvem na sociedade mas,
diversamente, poderá apresentar em abstracto uma ampla raiz de imputação
social.
A Teoria da Anomia
A Tese da Normalidade
O crime, definido como um "acto que ofende certos sentimentos colectivos (20),
apesar da sua natureza aparentemente patológica, não deixa de ser considerado
como um fenómeno normal, no entanto, com algumas precauções. O que é
normal é que "exista uma criminalidade, contanto que atinja e não ultrapasse,
para cada tipo social, um certo nível (21). A sociedade constrói-se, na verdade,
em torno de sentimentos mais ou menos fortes, sentimentos cuja dignidade
parece tanto mais inquestionável quanto mais forem respeitados. No entanto isso
não quer dizer que todos os membros da colectividade partilhem dos mesmos
sentimentos com a mesma intensidade. De facto, alguns indivíduos tenderão a
interiorizar mais esses sentimentos que outros, o que explica que possam existir
condutas que, pelo seu grau de desvio, venham a apresentar-se como
criminosas. Isso explicará naturalmente a natureza do crime como um facto de
sociologia normal. Essa constatação não impede contudo que se considerem
algumas condutas como particularmente anormais, o que será perfeitamente
admissível, segundo Durkheim, tendo em consideração alguns factores de ordem
biológica e psicológica na constituição da pessoa do delinquente (22).
Para além disso, o crime deverá ser reconhecido não como um "mal" mas pela
sua função utilitária enquanto um indicador da sanidade do sistema de valores
que constitui a consciência colectiva. Nesse sentido, o crime será mesmo um
elemento promotor da mudança e da evolução da sociedade. É a este propósito
que Durkheim refere peculiarmente que, face aos sentimentos atenienses, a
condenação de Sócrates "nada tinha de injusto(23). Efectivamente, será esta
dimensão do crime que explica que a mesma conduta poderá ser censurada por
uma determinada sociedade num determinado momento da sua evolução cultural
como poderá nada ter de censurável na mesma sociedade num outro e diferente
momento da sua evolução cultural. Isso permitir-nos-à compreender que um acto
criminoso transpõe, de modo negativo, uma construção valorativa, de tal modo
que poderá dizer-se que "não há acto algum que seja, em si mesmo, um crime.
Por mais graves que sejam os danos que ele possa causar, o seu autor só será
considerado criminoso se a opinião comum da respectiva sociedade o considerar
como tal (24).
Conclusão
Esta visão da sociedade não deixou de ter a sua projecção no modelo sócio-
criminal que Durkheim defendeu. Antes de tudo porque o crime, embora de modo
algo ambíguo, passou a ser considerado não apenas como o resultado de
condutas anti-sociais, mas como condutas contextualizadas socialmente. O crime
mais que um fenómeno do criminoso passou a ser encarado como uma realidade
social cuja importância era inquestionável para o estudo sociológico,
nomeadamente para a compreensão das grandes estruturas de sedimentação e
desenvolvimento social. A um crime tão atomizado na sua explicação como o foi o
homem desde a escola clássica até à escola positiva opôs-se, através desta nova
dimensão da criminologia, uma explicação das causas do crime que procura a
solução do problema criminal não apenas na responsabilização exclusiva do
delinquente mas na responsabilização do comportamento criminal por elementos
típicos da própria sociedade que funciona como um ambiente verdadeiramente
condicionador da acção individual. Mas, mais que isso, a concepção de Durkheim
explica já que as causas do crime poderão estar em relação directa com as
disfuncionalidades fácticas e normativas do conjunto inter-relacional, como
poderão resultar das opções consensuais dos ordenamentos sociais de cada
época.
Mas se isto será assim para Durkheim, para alguns autores contemporâneos,
inspirados no modelo de conflito marxista, o importante não será, no entanto,
penetrar nos problemas, o importante e "imperioso é criar uma sociedade em que
a realidade da diversidade humana, seja pessoal, orgânica ou social, não esteja
submetida ao poder de criminalizar(25).
Referências
* Trabalho apresentado no seminário História do Pensamento Sociológico dirigido
pelo Prof. Doutor Augusto Silva, no âmbito do Curso de Mestrado em Sociologia,
na variante Poder e Sistemas Políticos, Departamento de Sociologia, Universidade
de Évora. 1997.
19. Um facto social, segundo Durkheim, "é normal para um tipo social
determinado, considerado numa fase determinada do seu desenvolvimento,
quando se produz na média das sociedades dessa espécie, considerada na fase
correspondente da sua evolução", DURKHEIM, Émile, As regras do Método
Sociológico, Lisboa: Editorial Presença, 6.ª Ed., 1995, p. 84.