Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Microscopia eletrônica mostra célula tumoral (em branco) sob o ataque de dois linfócitos T,
artificialmente coloridos (em vermelho)
Ricardo Zorzetto
V
amberto Luiz de Castro não esperava de câncer – um deles, o de Castro. Seu nome é
viver mais muito tempo quando che- complicado: terapia com linfócitos T com recep-
gou ao Hospital de Clínicas da Uni- tores quiméricos de antígeno, ou, em uma versão
versidade de São Paulo em Ribeirão enxuta em inglês, CAR-T cell therapy.
Preto (USP-RP) em agosto deste ano. Tinha um Nesse tratamento, a equipe médica extrai um
câncer avançado e havia perdido quase 20 quilos tipo de célula de defesa – os linfócitos T – do san-
nos meses anteriores. Em 2017, esse funcionário gue do paciente (para evitar rejeição) e o modifica
público aposentado de Belo Horizonte havia sido geneticamente em laboratório para que identifique
diagnosticado com um linfoma decorrente da e destrua as células do tumor. Em indivíduos sau-
proliferação dos linfócitos B. Em pessoas saudá- dáveis, os linfócitos T naturalmente reconhecem
veis, essas células produzem anticorpos contra e eliminam células doentes, como as tumorais.
vírus, bactérias e outros elementos estranhos Estas, no entanto, às vezes escapam dessas senti-
ao organismo. Em pessoas com câncer, porém, nelas do corpo. Nos últimos 30 anos, descobriu-
passam a se multiplicar descontroladamente. -se como dar uma mãozinha para os linfócitos T
Os médicos que inicialmente atenderam Castro executarem a tarefa. Bastava inserir no genoma
tentaram combater a doença com medicamentos deles a receita de uma proteína que fica exposta
e radiação. Com a ineficácia dos tratamentos, em sua superfície externa e tem afinidade com as
RITA ELENA SERDA / INSTITUTO NACIONAL DO CÂNCER (NCI) / DUNCAN
COMPREHENSIVE CANCER CENTER AT BAYLOR COLLEGE OF MEDICINE
deram-lhe mais um ano de vida. O aposentado células a serem destruídas – a estratégia funciona
mineiro estava sob cuidados paliativos, receben- bem contra os linfócitos B (ver página 44).
do morfina para suportar a dor, quando seu filho Dominado recentemente pelo grupo da USP, o
Pedro Augusto soube de um tratamento inovador tratamento é uma forma promissora de combater
e arriscado que começaria a ser oferecido de tumores causados por proliferação dos linfócitos
modo experimental no país. B e resistentes a químio e radioterapia. Quem pri-
Em Ribeirão Preto, pesquisadores liderados meiro mostrou sua viabilidade foi o imunologista
pelo hematologista Dimas Tadeu Covas haviam israelense Zelig Eshhar, em 1989. De lá para cá,
concluído pouco tempo antes o desenvolvimen- grupos nos Estados Unidos aperfeiçoaram a ma-
to de uma terapia inédita na América Latina e se nipulação das células e a segurança da terapia,
preparavam para oferecê-la como tratamento testada pela primeira vez em seres humanos há
compassivo (quando se esgotaram as alterna- cerca de 10 anos. O desenvolvimento de variações
tivas terapêuticas) para pessoas com dois tipos do tratamento decolou em 2013 e hoje existem
cerca de 680 versões em diferentes estágios de Como nenhuma das terapias está aprovada no
desenvolvimento (ver página 46). Brasil, uma alternativa para Castro seria buscá-
Apesar dessa explosão de possibilidades, só -la no exterior. O problema era o custo. O proce-
duas terapias com células CAR-T são comercia- dimento sairia por quase US$ 1 milhão, afirmou
lizadas para uso clínico. Uma para tratar um ti- o aposentado ao podcast do jornal O Globo, em
po de leucemia (câncer do sangue) e outra para outubro, dias após receber alta do Centro de Te-
combater linfomas, ambos decorrentes da pro- rapia Celular (CTC) da USP em Ribeirão Preto,
liferação de linfócitos B. onde foi tratado com as células CAR-T.
O primeiro foi desenvolvido na Universidade “Em 2018 nosso grupo já havia dominado o
da Pensilvânia, Estados Unidos. Essa terapia foi ciclo de produção dessas células e estava madu-
aprovada pela agência regulatória de medica- ro para atender os primeiros pacientes”, conta
mentos norte-americana (FDA) para leucemia Covas, coordenador do CTC, um dos Centros de
linfoblástica aguda de células B resistente aos Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados
medicamentos convencionais. Lá, o tratamento, pela FAPESP, e atual diretor do Instituto Bu-
chamado Kymriah, sai por US$ 475 mil, fora o tantan. “São poucos os lugares no mundo com
custo hospitalar. Uma revisão publicada em 2018 capacidade de proporcionar esse tratamento.”
no New England Journal of Medicine indica que Por prudência, a equipe adiou a oferta da terapia
de 70% a 90% das pessoas tratadas apresentam em modo compassivo até que o hematologista
regressão do câncer logo após a terapia. Com o Renato Cunha retornasse do NCI, onde passou
tempo, 25% voltam a ter leucemia. uma temporada aprendendo a manejar os efei-
No Instituto Nacional do Câncer (NCI) dos tos colaterais, que são intensos e podem matar.
Estados Unidos, criaram o segundo tratamento, Injetadas no sangue, as células CAR-T iniciam
comercializado com o nome de Yescarta, contra uma perseguição. Quando encontram um linfócito
linfomas de linfócitos B que não cedem às tera- B, aderem a ele e lançam um banho de compostos
pias tradicionais, como o do aposentado mineiro. químicos (citocinas) que o matam – seja ele sau-
Seu custo é de US$ 370 mil, ainda assim proi- dável ou tumoral. Necessário para eliminar as cé-
bitivo para muitos que poderiam se beneficiar lulas tumorais, esse banho químico, a tempestade
dele. Entre 65% e 85% das pessoas com linfoma de citocinas, é um sinal de que o tratamento está
de linfócitos B grandes inicialmente apresentam funcionando. Em níveis elevados, no entanto, esses
redução do tumor, mas só para metade delas a compostos baixam a pressão sanguínea e causam
resposta é completa e duradoura. extravasamento de líquidos para os órgãos.
Célula
cancerígena
Antígeno
5 INFUSÃO
Uma quimioterapia leve é usada para
reduzir a quantidade de linfócitos T no
sangue do paciente, antes da infusão
das células geneticamente modificadas
“Um efeito adverso preocupante é o edema cere- primeiros usos bem-sucedidos em humanos leva-
bral”, relata o imunologista norte-americano Ken- ram o grupo de Ribeirão a investir no domínio das
neth Gollob, chefe do Grupo de Imuno-oncologia etapas necessárias para, de modo independente,
Translacional do ACCamargo Cancer Center, em criar uma linha de produção de células CAR-T.
São Paulo, que busca novos alvos para as células Uma forma de produzir essas células exige o
CAR-T. “Para lidar com esses efeitos, é preciso uso de vírus. São eles que inserem no genoma
ter uma equipe clínica bem preparada, além de dos linfócitos T os genes com a receita das pro-
acesso rápido a uma unidade de terapia intensiva teínas que os direcionam contra os linfócitos B.
e a medicamentos para controlar os efeitos cola- Em geral, cada grupo de pesquisa ou empresa
terais da tempestade de citocinas”, afirma Covas. farmacêutica desenvolve uma estratégia de pro-
Quando Castro foi à primeira consulta em Ri- dução e patenteia suas etapas ou as mantém em
beirão, o grupo do CTC já tinha linfócitos T de segredo. Por essa razão, a equipe da USP optou
outros pacientes em preparo para o primeiro tra- por criar a sua própria. “Inicialmente, pensamos
tamento. A gravidade de seu caso, porém, levou em comprar os vírus de laboratórios norte-ame-
os médicos a alterarem a ordem dos procedimen- ricanos”, conta a bióloga Virginia Picanço e Cas-
tos. O linfoma havia progredido rapidamente e tro, do CTC, coautora do livro Chimeric antigen
tomado o interior dos ossos. O paciente sentia receptor T Cells, a ser publicado em 2020 (editora
dores excruciantes e febre intermitente, além de Humana Press). “Como a importação é complexa
suores que, à noite, encharcavam sua roupa e a ca- e cara, decidimos desenvolver aqui essa etapa.”
ma. “Nesse estágio, as células tumorais se repro- Foram necessários quatro anos de trabalho, in-
duzem tão rapidamente e têm um metabolismo clusive com o treinamento no exterior, para do-
INFOGRÁFICO E ILUSTRAÇÃO ALEXANDRE AFFONSO
tão elevado que é como se o paciente praticasse minar as etapas de produção do vetor viral e de
atividade física durante o sono”, relata Covas. multiplicação dos linfócitos T geneticamente
A decisão de oferecer o tratamento havia sido modificados. Picanço e Castro passou um perío-
precedida de longo preparo. Estruturado há duas do na Universidade Purdue, nos Estados Unidos,
décadas, o CTC tem ampla experiência em trans- aprendendo a preparar o vírus, enquanto a química
plantes de medula óssea e havia sido pioneiro no Amanda Mizukami foi para a Universidade de Wa-
país no uso de células-tronco para tratar doenças shington treinar o cultivo dos linfócitos genetica-
autoimunes, como o diabetes tipo 1. O aprimora- mente modificados. As duas etapas são essenciais
mento na produção de células CAR-T, os resultados ao desenvolvimento da terapia e, no retorno ao Bra-
promissores nos testes in vitro e com animais e os sil, as pesquisadoras as implantaram em Ribeirão.
Terapia em 81
avaliação 63
53
261 testes com 40
pacientes estavam
em andamento entre
9 8
2009 e 2019 1 2 0 3 1
2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
estudo publicado em abril na Human Gene The- Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
rapy. Em um trabalho mais recente, Bonamino na versão on-line.