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dor e sofrimento humanos no âmbito da saúde, especificamente no hospital. Hoje. muito se fala
como que um espelho, o que de pior e de melhor acontece na nossa sociedade desumanizada e
dor e sofrimento humanos, o sistema de saúde brasileiro ainda está numa fase rudimentar. Há
questão, bem como intervir no aparelho formador de profissionais para criar uma nova cultura.
antropológica holística, que cuide da dor e sofrimento humanos nas suas várias dimensões. ou
seja. física. social, psíquica. emocional e espiritual. Para além da difícil resposta à questão do
"porquê" da dor/sofrimento. campo das filosofias e religiões. o cuidado solidário, que alia com-
petência técnico-científica e humana, em meio à dor e sofrimento do outro é uma chance pre-
ciosa para nos deixarmos tocar em nossa sensibilidade e nos humanizarmos no processo.
Dame CicelySaunders
"O -[ [ 11
N S corpos nao so}rem, aS pessoas so}rem.
o
7 Eric CasseI
.-
o
1__1-
.
INTRODUÇÃO
"'-
Numa primeira aproximação à questão da que atinge o todo da pessoa(4). Avança real-
humanização da dor e sofrimento humanos no çando a necessidadede uma visão antropológi-
contexto hospitalar, constatamos que passa- ca holística que valorize as diversasdimensões
mos por uma profunda crise de humanismo. do fenômeno dor/sofrimento, ou seja, a
Falamos insistentemente de ambientes desu- dimensão física, psíquica, social e espiritual
manizados, tecnicamente perfeitos, mas sem (5). Em termos de assistênciade saúde, enfa-
alma e ternura humana. A pessoahumana vul- tiza a necessidadeimperiosa de cuidado solidá-
nerabilizadapela doençadeixou,de sero centro rio que une competência técnico-científica e
de atençõese passoua ser instrumentalizada humanidade, principalmente naquelas situa-
em função de determinado fim, podendo ser ções extremas na fronteira entre a vida e a
transformada em objeto de aprendizado,o sta- morte (6).
tus do pesquisador,ou ser cobaia de pesquisa,
só para citar algumas situ1ções que compro-
metem a verdade ética de que as coisas têm 1. As catedrais contemporâneas da saúde
preço e podem sertrocadas,mudadase comer- e do sofrimento humano
cializadas, mas as pessoastêm dignidade que
deve ser respeitada! A manipulação, enfim, Façamosinicialmente uma rápida viagematé a
sutilmente sefaz presentee rouba aquilo que é Idade Média e entremos numa catedral.
mais precioso à vida humana: sua dignidade. "VIsívelà distância,emblemada cidade,a catedral
, é na realidadeo coraçãode um vastoconjuntode
Acreditamos que frente a este cenário gerador múltiplas/unções:centroreligioso,intelectual,eco-
de sofrimento podemos implementar uma nômico,caritativo,artístico,umacidadesagradae
política de assistênciae cuidado que honre a simbólicadentroda cidade.Lugar dos principais
dignidade do ser humano doente. Nos limites centrose nós de organizaçãodo espaçourbano e
de um texto introdutório à problemática em do urbanismo(comsua praça),ela é tambémum
tela, nosso roteiro tem como partida uma aná- centrodo poder,objetode conjlitos'l(l).
lise contextual da realidade hospitalar (1),
apresentaalguns dados preocupantesem rela- A catedralera ao mesmo tempo símbolo, cen-
ção à dor na realidadebrasileira (2), segueana- tro e sínteseda história da cidade. Em volta e
lisando o fenômeno da tecnologizaçãodo cui- dentro deste templo, viviam-se e reviviam-se
dado que transforma a dor e o sofrimento todos os acontecimentosfelizes,tristes e dolo-
humano num mero problema técnico (3), ridos daquelepovo. Diante de suasportas rea-
aprofunda a problemática no contexto clínico, lizam-se os teatros que cantavam a vida da
propondo uma distinção entre dor, que sesitua populaçãoà luz de seusvaloresculturais e reli-
mais no âmbito da dor física e do sofrimento giosos. Os vitrais, como os outdoorsde hoje,
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ÓSIO
eram catecismos coloridos de suas crenças. É importante termos uma visão histórica de
Todas as corporações celebravam dentro da como era esta instituição até muito recente-
catedralo dia do seupadroeiro, bem como suas mente, e que passoupor transformaçõesradi-
reuniões de rotina. A vida, as festas, as ale- cais ao longo do séculoxx. A narrativa de M.
grias, as tristezas, a morte, as esperanças, Foucault é simplesmentecontundente: '.Antes
enfim a vida -do nascerao morrer -era cele- do séculoXVIII, o hospital era essencialmente
brada dentro daquele edifício sagrado,a cate- uma instituição de assistência aos pobres.
dral, verdadeiro orgulho de todos. Instituição de assistência, como também de
separaçãoe exclusão.O pobre como pobre tem
Em nossa civilização contemporânea, a cate- necessidadede assistênciae, como doente,porta-
dral da cidade está sendo substituída por dor de doençae de possívelcontágio,é perigoso.
outros tipos de templos sagrados, por novos Por estas razões,o hospital deve estar presente
tipos de catedrais. É o caso das catedraisdo tanto para acolhê-loquanto para proteger os
esporte,que são os grandes estádios; as cate- outros do perigoque eleencarna.O personagem
drais da riqueza,que sãoos bancos;as catedrais ideal do hospital, até o séculoXVIII, não é o
do lazer, que são os grandesparques de entre- doentequeé precisocurar, mas o pobre que está
tenimento e diversões;as catedraisdo prazer, morrendo.É alguémquedeveser assistido mate-
que são as casas noturnas requintadas e os rial e espiritualmente,alguéma quemsedevedar
motéis luxuosos; as catedraisdo trabalho,que os últimos cuidadose o último sacramento.Esta
são as fábricas e empresasprestadorasde servi- é a /unção essencialdo hospital. Dizia-se corren-
ços; as catedraisdo saber,que são as universi- temente,nestaépoca,queo hospital era um mor-
dades.E no m~io de tantos novos templos, eis redouro,um lugar ondemorrer"(2}.
que surgem as catedraisda saúde,que são os
hospitais. Passarde uma instituição onde sevai para mor-
rer para uma instituição onde se cuida e se
Dentro de um hospital, como nas antigas cate- aprimora a saúde exigiu muito tempo e desco-
drais, recapitulam-se todas as fasesda vida do bertas c-ientíficas.Entremos no hospital. Esta
ser humano. O nascimento, com suasfestase instituição é um pequenomicrocosmodo gran-
esperanças,as doenças,a restauraçãoda saúde, de macrocosmo(sociedade),isto é, nele encon-
a cura, as pesquisasna buscade novos medica- tramos em dose concentrada um resumo do
mentos, as cruzadasdas campanhaspreventi- que de mais nobre, bonito e incrível encontra-
vas, asvigdias nas UTls -as corporaçõesou as mos na sociedade,bem comp o que de mais
equipesprofissionais combatendo o "inimigo" triste, degradantee violento nela existe. Ele
infecção; as oraçõese meditaçõesnos oratórios aceita a todos indiscriminadamente. Nele nos
e/ou capelas, sem esquecerdo silêncio e da defrontamos com a realidadenua e crua, sem
inquietude em momentos de despedida de disfarcesou máscaras,que caem por terra sem
vida. pedir licença. É uma realidade contrastante
f .
que nos questiona. Nela nos defrontamos com opçãopelaeutanásiatoma-se atrativa,no sentido
o santo e o bandido, o crente e o ateu, a crian- de abreviara vida intencionalmentepor causada
ça que apenasexalouo primeiro vagido de che- dor e do sofrimento.É muito freqüenteouvir nas
gadae que setoma um grito de adeuse o velhi- UTIs e corredoresdo hospitalpacientesque ver-
nho que, no vigor dos seus90 anos, ainda luta balizamem alto e bom tom quenão tememtanto
para viver e de fato vive... -e que alguns dias a morte em si mesma,mas sim a dor e o sofri-
após a alta volta ao hospital para agradecere mento do processodo morrer. O cuidadoda dor
distribuir um "presentinho" aosque delecuida- e do sofrimento é a chavepara o resgateda dig-
ramo Em situações de emergência, chega no nidadedo serhumano nestecontexto crítico, e é
pronto-socorro alguém que fez tudo para tirar um dosobjetivosda Medicina desdetemposime-
a própria vida numa tentativa frustrada de sui- moriais. A problemáticada dor e do sofrimento
cídio, e nós, profissionais da saúde,somos cha- não é pura e simplesmenteuma questãotécnica:
madosa fazero possívele o impossívelpara que estamosfrente a uma dasquestõeséticascontem-
continue a viver. Tantas jovens mulheres que- porâneasde primeira grandezae que precisa ser
rendo sermães,e por problemasde esterilidade vista e enfrentadanas suasdimensõesfísica,psí-
não podem; por outro lado, outras, sendofér- quica, social e espiritual. Finalmente, veremos
teis, desperdiçamvidas e em muitas circunstân- neste capítulo que, no Brasil, estamos ainda
cias morrem no processo.Trata-sede uma rea- numa fase bastante rudimentar em relação ao
lidade simplesmenteparadoxal. cuidadoda dor no sistemade saúde.Existe muita
dor não aliviadaea esperança
estána intervenção
É um contraste chocante, provocador de nas escolasde fonnação dos profissionais da
indigna~ão ética em muitas instâncias, mas saúde,na refonnulaçãocurricular,quecontemple
que nos convoca a sermos arautos do cuidado estavisão antropológica,para além da fonnação
da vida marcada pela dor e sofrimento. tecnocientíficanecessária
e na implementaçãoda
Ninguém vai ao hospital por prazer ou para filosofia doscuidadospaliativos,em nívelinstitu-
tirar férias, muito menos para passear.Trata-se cional ou domiciliar,frente aquelassituaçõesem
de uma necessidadede preservaçãoda própria que curar não é mais possível.Falamosaqui no
vida. É neste contexto que sempre temos a cuidadodo sofrimento tenninal da vida humana.
presença inoportuna da dor e do sofrimento Vejamosa seguircomoa dor é tratadano contex-
que nos provocam profundamente como seres to de saúdebrasileiro.
humanos e como profissionais da saúde.
ÓSIO
mentos populares, por uma cultura que cheira cas, causadorasde dor contínua, ou que retor-
o conformismo dolorista ("é assim mesmo") na em intervalos de mesesou anos.
da sociedadeenquanto tal. Num ethos social
marcado por desigualdadee exclusão,herança Estudos epidemiológicossobre a ocorrência e
de nosso período de escravidão,"o pobre tem etiologia dos quadros álgicos são poucos, e o
que sofrer", e o crente não menos, para conhecimento sobre o tema ainda é bastante
"ganhar o céu". Felizmente, este manto dolo- primário no BrasJ. Sabe-se,porém, que a dor
rista, que acaba sacralizando a desigualdade é a razão principal pela qual 75%-80% das
sociopolítica e cultural, vai desaparecendoaos pessoasprocuram o sistemaprimário de saúde.
poucos. A dor crônica acometeparcela significativa da
populaçãobrasJeira e é apontada como sendo
Alguns sinais positivos já começama surgir no a principal causade falta ao trabalho, licenças
contexto clínico brasJeiro. Foi criado em médicas,aposentadoriaspor doença,indeniza-
1997, no âmbito do Ministério da Saúde, um ções trabalhistas e baixa produtividade. No
Programa Nacional de Educação Continuada BrasJ, 6 dos 11 medicamentos campeõesde
em Dor e Cuidados Paliativos para os venda no ano de 1998 foram analgésicose/ou
Profissionais da Saúde (3). antiinflamatórios (5).
O que entender por dor? A palavra "dor" ori- As dores oncológicas representam 5% das
gina-se do latim d%re. Os dicionários costu- dores crônicas. Estima-se que 18 mJhões de
mam defini-Ia como impressão desagradável pessoasno mundo apresentemcâncerdiagnos-
ou penosa,deco~ente de alguma lesão ou con- ticado atualmente, e a dor é um problema
tusão, ou de um estado anormal do organismo comum nesses pacientes. Os estudos têm
ou de parte dele. apontado que a dor oncológica não tem sido
adequadamentecontrolada, não por falta de
O tema dor é geralmente negligenciadopelos recursos terapêuticos, mas por avaliação
profissionais e educadoresdo setor saúde que imprecisa do quadro de dor e utJização inade-
elaboram os currículos de formação dos futu- quada do arsenalantiálgico disponível.
ros profissionais da área. Segundo especialis-
tas, existem basicamentedois tipos de dor: as Estudos realizados nas unidades de cuidados
agudase as crônicas. A dor aguda geralmente paliativos e câncerda OrganizaçãoMundial da
está associadaa algum tipo de lesão corporal e Saúde (OMS) mostram que 4,5 mJhões de
tende a desaparecerlogo que esta melhora. A pacientes em países em desenvolVimentoe
dor crônica é aquela que perdura por mais de desenvolvidosmorrem anualmente sem receber
seis meses. É aquela que persiste além do tratamento da dor e semquelhes sejamconside-
tempo razoávele esperadopara a cura de uma radosoutros sintomastão prevalecentesquanto
lesão, ou que está associadaa doençascrôni- a dor e que também causamsofrimento.
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Em suma, a dor ainda não recebea atenção pela dignidade do serhumano, bem como sen-
devida na assistênciaà saúde em nosso país. sibilidade no processode tomada de decisões
Necessitamos de programas de educação em terapêuticas, devem permear toda a atividade
relaçãoa essaproblemática para doentes,fami- de ensino, pesquisae assistência;
liares, médicos, farmacêuticos, enfermeiros,
psicólogos, assistentessociais e outros profis- 3) Presença de equipe multidisciplinar. A i
sionais. O desafiopara a comunidade científi- experiência assistencialrepresentaa possibili-
ca, para os profissionais da saúdee para toda a dadede integraçãodos conceitosque envolvem
sociedadeé a elaboraçãode um programa espe- o estudo da dor e seumanejo. O treinamento ,.
cial sobre essaquestão nos currículos de for- deve incluir o atendimento aos doentes com
mação dessesprofissionais. O tema dor deve dor, realizado por todos os profissionais de
ser discutido e esclarecido para que haja saúde,de forma integrada. Entre os princípios
melhor compreensãoe prevençãode sua pre- que devemalicerçaros programaseducacionais
sença, bem como de seucontrole (6,7). da área da saúde em dor, devem ser acrescen-
tados os conceitos da filosofia de cuidados
Estes programas de educação devem funda- paliativos que visam cuidar da dor e sofrimen-
mentar-se em alguns princípios fundamentais, to dos pacientesfora de possibilidadesterapê~-
que assinalamosa seguir: ticas.
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ÓSIO
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tes cadavez mais poderosospara dar àspessoas particulares e individuais, que uma visita a um
a impressão de que estão plenamente vivas. especialistarenomado, um bom calmante, um
Fala-seaqui de esquizoalgia,significando o sin- passeio ou um regime alimentar na base dos
toma de supermedicalização, destruiçãoiatrogê- "diets'" e "lights" podemresolver.Isto é muito
nica do poder de sofrer. Gestãotécnica da dor, importante de ser levado em conta principal-
que enfraquecee expropria(9). mente numa realidadede América Latina, em
que temos "dor e sofrimento sociais" provoca-
A medicalização penetra fundo em nossas dos por um sistema socioeconômicoexcluden-
vidas e constitui um dos domínios em que o te em plena era de globalizaçãoeconômica (8).
poder da técnica foi mais bem acolhido e Considerando-seestecontexto "macro", volte-
menos contestado. Cada pessoatorna-se um mo-nos agora ao contexto "micro", ou seja,à
hóspede potencial dos hospitais, um paciente realidadeclínica, fazendo uma distinção entre
quasecerto de determinadascirurgias, um fre- a dor e o sofrimento humano causadopelas
qüentador assíduode consultórios e ambulató- enfermidades(11).
rios. Se antes freqüentar um hospital era sinal
de pobreza (local de concentraçãode indigen-
tes), hoje os hospitais e clínicas são indica40- 4. A dor e o sofrimento humano no con-
res de desenvolvimento econômico e social, texto clínico
lugares que as pessoastêm obrigação quase
moral de freqüentar (10). A cura da doença e o alívio do sofrimento,
desde o nascedouroda medicina hipocrática,
Sob tat ótica, a dor foi transformada em pro- são aceitos como sendo os objetivos da
blema de economia política. A pessoatorna-se Medicina. A doença destrói a integriqade do
consumidora de anestesiase se lança à procu- corpo, e a dor e o sofrimento podem ser fato-
ra de tratamentos que determinam insensibili- res de desintegração da unidade da pessoa.
dade, inconsciência, abulia e apatia provocadas Enquanto hoje a medicina está até que bem
artificialmente. Toda dor é vista como resulta- aparelhadapara combater a dor, no que tange
do de tecnologia faltosa, de legislação injusta ao lidar com o sofrimento encontra-se ainda
ou ausênciade medicina analgésica.A hetero- num estágiobastante rudimentar (12).
nomia da dor transforma-a em demandaaguda
de medicamentos, hospitais, serviçosde saúde Ganha sempre mais importância e até uma
mental e outros cuidadosprofissionais. certa popularidade nos meios científicos que
lidam com pacientes terminais a distinção
Por estecaminho da medicalizaçãoda vida bio- entre dor e sofrimento. Disso resulta a neces-
lógica e psíquica, os problemas cruciais são sidade de, ao tratarmos da problemática, esta-
despojadosde suasdimensõessociais, são des- belecermosclaramente as definições e distin-
politizados, e apresentam-se como questões çõesnecessárias. ,
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PÓSIO
CasseIaba que "o sofrimento ocorre quando lima abordagemque contemple não somenteo
existe a possibilidade de uma destruição imi- tratamento de suas causas,mas também de
nente da pessoa,continua até que a ameaçade suasconseqüênciaspsicológicase sociais.
desintegraçãopassaou até que a integridadeda
pessoaé restauradanovamentede outra manei- Existem pelo menos mais duas definições de
ra". Aponta que o"sentido e a transcendência" dor que valem a pena lembrar. Em 1979, a
oferecem duas pistas de como o sofrimento Associação Internacional para o Estudo da
associadocom a destruição de uma parte da Dor assima definiu:
personalidadepode serdiminuído. Dar um sig-
nificado à condição sofrida freqüentemente "uma experiência emocional e sensorialdesa-
reduz ou mesmo elimina o sofrimento a ela gradável, associada com dano potencial ou
associado...A transcendênciaé provavelmente atual de tecidos, descrita em termos de tais
a forma mais poderosana qual alguémpode ter danos". Em 1986, reformulou esseconceito
sua integridade restaurada, após ter sofrido a para "uma experiência sensorial e emocional
desintegraçãoda personalidade(13). desagradável,associadaa lesõesreais ou poten-
ciais, ou descrita em termos de tais lesões"(4).
Em relaçãoà dor, constata-seque grandeparte
dos profissionais de saúde não sabem o que Dame Cicely Saunders, a fundadora do
significa" dor" quando falam nela. A dor tem moderno hospice, tomando esta descrição
duas característicasimportantes: a primeira é como basecunhou a expressão"dor total", que
que estamos diante de um fenômeno dual: de inclui além da dor física a dor mental, social e
um lado, a perc~ção da sensação;de outro, a espiritual. Falhar em considerar esta aprecia- \
respostaemocional do paciente a ela. A segun- ção mais abrangentede dor é uma das princi-
da característica é que a dor pode ser sentida pais causaspelas quais os pacientes não rece-
como aguda, e portanto passageira,ou crôni- bem alívio adequadodos sintomas dolorosos.
ca, e conseqüentementepersistente.
Por vezes,existe um momento na doença crí-
A dor aguda tem um momento definido de iní- tica em que os sentimentos de desesperançae
cio, sinais físicos objetivos e subjetivos e ativi- impotência se tomam mais intoleráveis que a
dade exageradado sistema nervoso. A dor crô- própria dor. Neste ponto, a diferença entre dor
nica, em contraste, continua além de um e sofrimento toma-se evidente. Nem sempre
período de seis meses, com o sistema nervoso quem está sentindo dor está sofrendo. O sofri-
seadaptandoa ela. Nos pacientescom dor crô- mento é uma questão subjetiva e está mais
nica, nem, sempre existem sinais objetivos, ligado aosvaloresda pessoa.Porexemplo,duas
mesmo quando eles apresentam mudanças pessoaspodem ter a mesma condição física,
visíveis em sua personalidade,estilo de vida e mas somente uma delas pode estar sofrendo
habilidade funcional. Esse tipo de dor exige com isso. A palavra dor deve ser usada para a
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percepçãode um estímulo doloroso na perife- bilidade provocadapela doença exige uma res-
ria ou no sistema nervoso central associadaa posta, chamada"cuidado" (16).
uma resposta efetiva. Nem toda dor leva ao
sofrimento (a dor de um atleta vencedor de Um dos principais perigos em negligenciar a
uma maratona leva ao prazer), e nem todo distinção entre dor e sofrimento no contexto
sofrimento requer a presençade dor física (a clínico é a tendência dos tratamentos se con-
angústia de saber que um ente querido tem centraremsomentenos sintomas físicos, como
mal de Alzheimer, por exemplo). se apenas fossem a única fonte de angústias
para o paciente. Isto resulta, freqüentemente,
Daniel Callahan (14) definiu sofrimento como na situação de pacientesque estãofisicamente
sendoa experiênciade impotência ê6m d pros- mais confortáveis por causada terapia da dor, j
pecto de dor não aliviada, situação de doença mas cujo sofrimento continua presente.
que leva a interpretar a vida vazia de sentido. :
Portanto, o sofrimento é mais global que a dor A distinção entre dor e sofrimento tem um j
e, fundamentalmente, sinônimo de qualidade significado todo particular e urgente quando se
de vida diminuída (15) -situações como as de trata de cuidar da dor dos pacientesterminais.
doençassériase prolongadasque causamrup- Diante da impotência que define o sofrimento,
turas sociais na vida do paciente, juntamente Callahan (17) acredita que "a medicina que
com a crise familiar, preocupaçõesfinanceiras, somenteprocura prolongar a vida, estendendo,
premoniçõesde morte e preocupaçõesque sur- mas não aliviandoo sofrimento,chegouno fim de
gemda manifestaçãode novos sintomas e seus seusrecursose objetivos".Não fazer a distinção
possí"eissignificados. entre dor e sofrimento nos permite continuar
agressivamentea prescrevertratamentos médi-
A dor pode ser definida como uma perturba- cos fúteis, na crença de que enquanto prote-
ção, sensaçãono corpo, como já dito anterior- gem os pacientesda dor física também os pro-
mente. O sofrimento, por outro lado, é um tegem de todos os outros aspectos.Em outras
conceito mais abrangentee complexo. Podeser palavras,a distinção nos obriga a perceberque ']
definido, no caso de doença, como um senti- a disponibilidade de tratamento da dor em si
mento de angústia, vulnerabilidade, perda de não justifica a continuação de cuidados médi-
controle e ameaça à integridade do eu. Pode cos fúteis. A continuação de tais cuidados
existir dor sem sofrimento e sofrimento sem pode simplesmente impor mais sofrimentos \
dor. Em cada caso, somente nós podemos para o paciente terminal.
senti-Io, bem como aliviá-lo. Certamente,
algum nível de dor e sofrimento pode sertole- Ouvimos, com freqüência, confidências de
rado, e seria na verdadeutópico dizer que o alí- pacientesterminais que não têm tanto medo de
vio de toda dor e sofrimento seria um objetivo morrer, mas temem o sofrimento relacionado
apropriado para o sistemade saúde.A vulnera- com o processodo morrer. Isto ocorre especial-
j;~
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PÓSIO
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ÕSIO
A dor física é geralmente a mais fácJ de se Os médicos também falham em aliviar a dor
controlar. Embora os textos médicos descre- dos pacientes.Alguns ignoram a natureza da
vam abordagensfarmacológicas e não-farma- dor. Outros não diagnosticamacuradamentea
cológicaspara controlar a dor, existemuita dor sua origem, ou falham em avaliar o pa~iente
física não aliviada. Peritos estimam que 75% em intervalos regulares para detectar novos
dos pacientes com dor são tratados inadequa- processos causadores de dor e que exigem
damente, e que de 60% a 90% dos que estão novasterapias.Alguns simplesmentenão acre-
na fase terminal sentem dor de severaa mode- ditam na descriçãoda dor do paciente.Outros,
rada, suficiente para prejudicar as funções físi- ainda, não tentam alternativas para a terapia
cas, o humor e a interação social. Quase 25% medicamentosa,tais como estimulação elétri-
dos pacientesde câncer morrem com dor seve- ca dos nervos, massagemou terapiasorientais,
ra e não aliviada"(31). como a acupuntura, por exemplo(34, 35, 36,
37,38,39,40,41,42).
Na perspectivado paciente,a dor pode aumen-
tar a partir do medo, isolamento, insônia ou Os que utJizam terapias medicamentosassão
depressão.As respostasdos pacientespara os por demais tímidos em prescrevernarcóticos,
tratamentos de dor também podemvariar. Um pelas seguintesrazões: a) ignorância básica da
dos grandesproblemasque os pacientestêm é magnitude de dosesnecessáriaspara combater
encontraruma linguagemadequadaparaexpres- a dor aguda; b) medo exageradode causaruma
sar sua dor, de modo a que sejaadequadamente paradarespiratória; c) ansiedadeem relaçãoao
identificada e cuidada.Muitos relutam em falar perigo de adicção; d) medo irracional de ser
da dor, porque sentem que os outros os julga- processadocivil ou criminalmente; e) estimati-
riam como fracos e que só sabem reclamar. va exageradados efeitos colaterais de alguns
Outro problema em cuidar da dor dos doentesé analgésicos,tais como adicçãopotencial.
que algunsnão cooperamcom o programatera-
pêutico, talvez para evitar efeitos colaterais do Recentesestatísticasestimamque mais de 90%
tratamento que os impediriam de resolverques- da dor pode seraliviada, e geralmentepor meio
:
,
--,
.
dor e usar as técnicas para seucontrole. peitar a integridade do doente como pessoa,
visando garantir que o paciente: a) serámanti-
Na verdade, há muito a serfeito nesta área do do livre da dor tanto quanto possível,de forma
controle, administração e alívio da dor. O que o momento final seja marcado pela digni-
sofrimento sentido na fase terminal da doen- dade; b) receberácuidados continuados e não
ça é muito mais que físico. Ele afeta não será abandonado ou perderá sua identidade
somente o conceito de si próprio, mas tam- pessoal;c) terá tanto controle quanto possível
bém o sensoglobal de sentir-se conectado com em relação a decisõesrelacionadas com seu
os outros e com o mundo. Este sofrimento tratamento, e permissão de recusar as inter-
psicossocioespiritual pode ser sentido como vençõesterapêuticas que apenas prolongam o
uma ameaça para o paciente em relação ao processodo morrer; d) será ouvido como pes-
sentido de vida, perda de controle, enfraqueci- soa nos seus medos, pensamentos,sentimen-
mento da relação com os outros, uma vez que tos, valores e esperanças;e) terá a opção de
o processodo morrer intensifica o isolamento morrer aonde desejar.
e interrompe as formas ordinárias de contato
com os demais. Os pacientes em estadotermi- A força-tarefa do Estado de Nova York sobre
nal freqüentem ente têm sentimentos de a Vida e a Lei conclui o documento Quando a
impotência, desesperança e isolamento. morteé procurada:suicídioassistido e eutanásia
Assim, um plano adequado para lidar com no contextomédico com as seguintespalavras:
este ~ofrimento psicossocioespiritual deve "O cuidado efetivo da dor exige um programa
enfrentar esta realidade. compreensível,como é exemplificado na filo-
sofia dos cuidadosde hospice. Os profissionais
"Talvez o remédio mais eficaz em termos de da saúdetêm o deverde oferecerefetivo alívio
cura seja a qualidadedo relacionamento man- da dor e paliaçãopara os sintomas dos pacien-
tido entre o paciente e seuscuidadores,e entre tes quando necessário,de acordo com um jul-
o paciente e sua famdia. A qualidadecuradora gamento médico apropriado e as abordagens
da relação terapêutica pode facilmente ser mais avançadasdisponíveis. O alívio da dor e
enfraquecida ou ameaçada quando reações dos sintomas da doença é uma contribuição
emocionais(negação,raiva, culpa e medo)sen- poderosapara a qualidadede vida do paciente.
tidas pelos pacientes, famdias ou cuidadores Ele pode também apressara recuperaçãoe pro-
não são adequadamentetrabalhadas. É claro ver outros benefíciosmédicos.Os médicose as
que está no coração da relação terapêutica enfermeiras têm uma responsabilidadeética e
entre paciente e cuidadores o cuidado das profissional para oferecer um cuidado efetivo
necessidades
de relaçãoe sentido, bem como de da dor e dos seussintomas. Esta responsabili-
uma comunicaçãohonesta e verdadeira" (43). dade deve ser entendida como central na arte
ÓSIO
da medicina e dos cuidadosmédicos. O cuida- Jó, a não serpara observar,em forma de acusa-
do dos sintomas dolorosos sentidos pelo ção e julgamento, que ele devia ter feito algu-
paciente não devese restringir ao final da vida, ma coisa de muito ruim para merecer aquele
nem deve ser um sinal de que os esfor}5oscura- destino nas mãos de um Deus justo. Sob o
tivos foram abandonados.Os cuidadospaliati- impacto de tantas perdas causadorasde sofri-
vos devem ser compreendidos para incluir o mento, Jó tentava desesperadamentemanter
controle dos sintomas em todos os estágiosda sua auto-estima, a certeza de que era um
doença"(44). homem bom e digno. A última coisa que dese-
java ouvir era que não vinha agindo bem (45).
Vale a pena lembrar um dos principais lemas
da medicina: Sedared%rem opus divinum est, Extrapolando a explicação cientificamente
que traduzido para o português significa: perfeita e o arrazoadoteológico, a solidarieda-
"Aliviar a dor é uma obra divina". Nesta mis- de marcada pela competênciatécnico-científi-
são de "aliviar a dor", quer como pro~sionais ca e humana é a chavedo cuidado e sentido do jll
ou simplesmente como sereshumano~, vale a "mistério" do sofrimento humano. iI
pena lembrar o livro da Bíblia, chamadoLivro li
;
deJá, consideradoum dos clássicosda literatu- ,i
ra universal. Seu personagem,Jó, sofre uma Considerações finais ;
.
Deus que quase simplesmente esqueceramde tual. O desenvolvimentoe implementação da
, ,65,
.
filosofia dos cuidadospaliativos, que se consti- mento igualmente nos infunde temor, medo,
tui num clamor unânime de todas as partes porque vemos como que num espelho nossa
envolvidasnesta discussão,é uma grandeespe- fragilidade, vulnerabilidade e mortalidade,
rança para a real efetivação de um cuidado dimensões de nossa existência humana que
digno das pessoasque têm dor e sofrimento nem sempregostamosde que sejamlembradas.
atrozes causadospor doenças.
É procurando traduzir em gestosconcretos o
A dor e o sofrimento humanos foram vistos no valor da pessoahumana em termos de autocui-
nível fenomenológico enquanto sintomas dado que estaremos melhor preparados para
dolorosos,que exigemuma intervenção urgen- cuidar da vida, com humanismo e competência
te e por vezesemergentede cuidados médicos técnico-científica. Quem cuida do cuidador?
e de toda a equipe,de saúde. Não foi nosso Considerar a pessoanão simplesmente como
objetivo trabalhar a teologia ou antropologia um corpo, não reduzindo-a à biologia, pura e
do sofrimento humano (46), chave preciosa simplesmente,é um grandedesafio. Uma visão
para alcançar um horizonte de sentido numa holística, multi, inter e transdisciplinar, é
perspectivade ética. Lembramos, ao finalizar imperiosa. O serhumano é um todo uno, um
estareflexão, uma preciosaafirmação antropo- nó de relações.Ser gente é possuir corpo, é ter
lógica da exortaçãoapostólica Salv;jici Doloris, um psiquismo e coração, é conviver com os
ao afirmar que: "O sofrimento humano susci- outros, cultivar uma esperançae crescer na
ta compaixão, inspira também respeito e, a perspectivada fé em valoreshumanos.
seu modo, intimida. Nele, efetivamente, está
conti~ a grandezade um mistério específico" É zelando, promovendo e cuidando desta uni-
(47). dadevulnerávelpela dor e sofrimento que esta-
remos sendo instrumentos propiciadores de
Reflitamos conclusivamente sobre o sentido vida digna. Quem cuida e se deixa tocar pelo
destaafirmação. O sofrimento suscitacompai- sofrimento humano do outro toma-se um
xão, isto é, empatia traduzida em ação solidá- radar de alta sensibilidade, se humaniza no
ria e não somente uma exclamaçãoanestesia- processoe, para além do conhecimento cientí-
dora de consciência: "que pena", "que dó". A fico, tem a preciosa chance e o privilégio de
indiferença, simplesmente, é um fator desu- crescerem sabedoria.Esta sabedorianos colo-
manizante que aumenta ainda mais a dor e o ca na rota da valorizaçãoe descobertade que a
sofrimento. O sofrimento suscita respeito vida não é um bem a ser privatizado, muito
também. Em quem muito sofre acabamospor menos um problema a ser resolvidonos circui-
criar uma auréola de sacralidade.Uma criança tos digitais e eletrônicos da informática, mas
que nascecom seríssimosproblemasgenéticos, um bem fundamental, um "mistério" e dom, a
por exemplo, os que a cuidam não se intimi- ser vivido prazerosamente e solidariamente
dam em dizer "é um(a) santinho(a)". O sofri- partilhado com os outros.
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RESUMEN
Humanización deI dolor y sufrimiento humano en el contexto hospitalario
;;67
.i
:1
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ABSTRACT
A human approach to human pain and suffering in a hospital setting [
This paper addresses the importance of a badly needed approach to the human dimen- I
sion of efforts to alleviate the pain and suffering experienced in the context of healthca-
re in general and hospitaIs in particular. Many complaints and references are made these
days to the dis-humanization ofhealthcare institutions. Nowhere else are these problems
more cIearIy mirrored than at hospitaIs, reveaIing the best and the worst facets of our
inhuman and dis-humanizing societies. Thus, the humanization of hospitaIs necessarily
requires the humanization of society at large. With regard to a dignifying approach to
human pain and suffering, the Brazilian health system is still at a very rudimentary stage.
Much needs to be dane to stimulate public policies on the issue, as well as to effect chan-
ges in the professional education apparatus intent on creating a new culture. In a context
marked by the increasing technologization of medical care, it is impera tive to restare a
holistic anthropologic view of human pain and suffering, be it physical, social, psycholo-
gical, emocional, or spiritual. In addition to answering the question of "why" people
experience pain and suffering, a territory better covered by philosophy and religion, the
afie-ta-afie provision of care, mixing technical and scientific knowledge with human vir-
tues in view of the pain and suffering of others, presents us with a precious opportunity
to develop sympathy and become more human in the processo
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