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Conceito de Fato Social na obra de Émile Durkheim e suas

implicações nas teorias sociológicas contemporâneas


Resumo: No presente artigo descrevemos o percurso teórico de Émile Durkheim na
formação do conceito de fato social, e apontamos suas implicações nas teorias
sociológicas contemporâneas, especialmente em relação ao funcionalismo. O que se
busca é a conceituação de fato social na sociologia durkheiniana e destacar a
importância de se estabelecer tal conceito fundado bases teóricas metodológicas sólidas,
para o estudo e desenvolvimento das Ciências Sociais.

Palavras-chave: Fato social – Funcionalismo – Epistemologia

Durkheim (2007), desde a introdução de sua obra em análise, se preocupa com a


questão metodológica da sociologia, aplicada ao estudo sério dos fatos sociais. Ele se
implica na criação de um método de observação de tais fatos, adequado às suas
particularidades e nuances. Observa que autores como Stuart Mill, Augusto Comte e
Herbert Spencer não se preocuparam em estabelecer uma metodologia, para o estudo
dos fatos sociais, rigorosamente científica, o que comprometeu os resultados a que
chegaram, tendo eles se limitado, por muitas vezes, a fazer meras observações
generalizadas acerca da natureza da sociedade.

Um método de pesquisa é o procedimento pelo qual se observa cientificamente um


objeto. Portanto, no primeiro capítulo do livro sob comento, Durkheim (2007: 1) se
volta a definir o objeto próprio de estudo da sociologia: os fatos sociais. O autor observa
que não é qualquer fato que ocorra no interior da sociedade que recebe a qualificação de
fato social, tais como comer, pensar e dormir, visto que, caso isso ocorresse, a
sociologia não possuiria objeto próprio, e estaria invadindo campos de observação da
biologia e da psicologia. Neste ponto, é interessante destacar a influência exercida pela
obra de Durkheim no pensamento sociológico contemporâneo, especialmente nos
autores estruturais funcionalistas, tais quais Merton (1967) e Parsons (1951), e o
discípulo deste, Niklas Luhmann (1998), que desenvolveram a Teoria dos Sistemas
Sociais. Este autor, antes de estudar o funcionamento dos sistemas sociais, delimita o
objeto de suas investigações no funcionamento dos sistemas sociais, diferenciando-os,
dos sistemas psicológicos e dos sistemas biológico, com a preocupação muito parecida à
de Durkheim, relativa à delimitação do objeto de estudo da sociologia[1].

O que Durkheim (2007:2) observa como nota característica dos fatos sociais é
justamente a circunstância de tais fatos existirem fora da consciência individual de cada
um dos membros da sociedade. Eles já existiam quando nascemos e muito dificilmente
poderemos mudá-los pelo nosso próprio esforço, e independem de nossa vontade,
exercendo sobre nós, força coercitiva. Podemos observar que quando alguém não
observa uma regra, institucionalizada ou não pelo sistema do Direito, mas que possua
vigência no meio em que vive, a referida pessoa experimenta, ou deveria experimentar,
uma sanção correspondente, oriunda de outra pessoa ou uma instituição, e tal é a força
coercitiva dos fatos sociais, que não necessariamente excluem a personalidade
individual. Assim se expressa Durkheim:

“Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais:
consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são
dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõe a ele. Por
conseguinte, eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, já que
consistem em representações e em ações; nem com fenômenos psíquicos, os quais só
têm existência na consciência individual e através dela. Esses fatos constituem portanto
uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada a qualificação de sociais.”
(DURKHEIM, 2007:2)

A prova da propriedade de tal definição pode ser observada na educação infantil,


destaca Durkheim (2007: 6). Ele observa que a educação de uma criança é sempre
voltada à introjeção de valores e costumes de determinada sociedade, consistentes nos
modos de o indivíduo se portar, aos quais as crianças não chegariam espontaneamente.
Ao passo que as crianças crescem e vão se educando, a coerção relativa a tais fatos
sociais vai sendo cada vez menos sentida, porque as referidas práticas passam a se
tornar hábitos corriqueiros.

Não podemos confundir os fatos sociais, coercitivos, apreendidos pela educação, que
representam regras de comportamento próprias de diferentes lugares e momentos da
sociedade, com pensamentos e sentimentos coletivos, ainda que se encontrem em todas
as consciências individuais, que são elementos próprios dos sistemas psíquicos, e não
são sociais, visto que podem perfeitamente existir mesmo no interior do indivíduo, sem
jamais serem exteriorizados. O que diferencia os fatos sociais das citadas manifestações
é justamente a repercussão individual destas.

Durkheim (2007: 9) observa que certo fenômeno só pode ser coletivo se for comum a
todos os membros da sociedade ou, pelo menos, à maior parte deles, em outros termos,
um fenômeno somente pode ser social se for geral. “Ele está em cada parte porque está
no todo, o que é diferente de estar no todo por estar nas partes.” (DURKHEIM, 2007:
9). Mais uma vez, vemos na transmissão das crenças e práticas anteriores ao nascimento
do indivíduo, operadas pela educação infantil, o exemplo mais patente de transmissão
de fenômenos sociais.

“Isso é sobretudo evidente nas crenças e práticas que nos são transmitidas inteiramente
prontas pelas gerações anteriores; recebemo-las e adotamo-las porque, sendo ao mesmo
tempo uma obra coletiva e uma obra secular, elas estão investidas de uma particular
autoridade que a educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar. Ora, cumpre assinalar
que a imensa maioria dos fenômenos sociais nos chega dessa forma. Mas, ainda que se
deva, em parte, à nossa colaboração direta, o fato social é da mesma natureza. Um
sentimento coletivo que irrompe numa assembléia não exprime simplesmente o que
havia de comum entre todos os sentimentos individuais. Ele é algo completamente
distinto, conforme mostramos.” (DURKHEIM, 2007:9)
Assim, podemos delimitar bem o objeto de estudo da sociologia. Os fatos sociais, que
são maneiras de fazer algo, como se portar ou pensar, se localizam no exterior das
consciências individuais, ainda que nelas opere alguma repercussão, sendo sempre
movidos por energias sociais de origem coletiva, nunca individual. Se todos os
indivíduos de determinada sociedade com ele concordam, o fazem no sentido desta
força externa que move seus sentimentos na direção dos referidos fatos. Tal capacidade
de coerção sobre os indivíduos, aliada à sua difusão do grupo, é a característica
marcante dos fatos sociais, que se torna visível quando observamos a imposição de
sanção ou de resistência a qualquer tentativa individual de a eles se opor. Assim observa
Durkheim:

“Podemos assim representar-nos, de maneira precisa, o domínio da sociologia. Ela


compreende apenas um grupo determinado de fenômenos. Um fato social se reconhece
pelo poder de coerção externa que exerce ou é capaz de exercer sobre os indivíduos; e a
presença desse poder se reconhece, por sua vez, seja pela existência de alguma sanção
determinada, seja pela resistência que o fato opõe a toda tentativa individual de fazer-
lhe violência. Contudo, pode-se defini-lo também pela difusão que apresenta no interior
do grupo, contanto que, conforme as observações precedentes, tenha-se o cuidado de
acrescentar como segunda e essencial característica que ele existe independentemente
das formas individuais que assume ao difundir-se”. (DURKHEIM, 2007:9)

Observamos que os fatos sociais são distintos de simples condutas repetidas pelos
membros de determinada sociedade. Um modo de fazer ou ser, representado por um
fato social possui maior caráter de perenidade que algumas condutas mais efêmeras que
determinadas sociedades praticam. Durkheim (2007:12) indica que, por exemplo, uma
regra jurídica é um arranjo não menos permanente que um modelo arquitetônico.
Porém, uma regra moral possui bases bem mais rígidas que costumes profissionais ou
modismos. Destarte, vemos que a cerimônia de um funeral, por exemplo, é um costume
bem mais arraigado do que o costume relativo a utilizar chapéus em dias de sol, ainda
que seja a moda atual, a ponto de ser considerado um fato social, em nossa sociedade.

Durkheim (2007:13), por fim, define o que seriam fatos sociais, nos seguintes termos:
“É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o
indivíduo uma coerção exterior, (…) que é geral na extensão de uma sociedade dada, e,
ao mesmo tempo, possui existência própria, independente de suas manifestações
individuais.”

Assim, podemos pensar em inúmeros exemplos de fatos sociais, desde os modos à mesa
até rituais religiosos. Porém, da análise do texto de Durkheim (2007, 1999), podemos
vislumbrar uma classe muito marcante de fatos sociais: as regras jurídicas. No estudo
sociológico de tais regras, identificamos que um sistema normativo de determinada
sociedade se apresenta como um conjunto de maneiras de fazer, fatos sociais, em que a
coerção dos indivíduos que delas destoam é tão patente que há a previsão expressa de
sanção a quem não as observa, no caso, por exemplo, da prática de crimes, e há um
aparato estatal montado com esse desiderato, justamente for fazerem referência a
estados fortes da consciência coletiva (DURKHEIM, 1999:51). Podemos ver, no caso
do crime, esta marca indelével:

“De fato, a única característica comum a todos os crimes é que eles consistem – salvo
algumas exceções aparentes, que serão examinadas abaixo – em atos universalmente
reprovados pelos membros da cada sociedade. Muitos se perguntam hoje se essa
reprovação é racional e se não seria mais sensato considerar o crime apenas uma doença
ou um erro. Não temos, porém, de entrar nessas discussões; procuramos determinar o
que é ou foi, não o que deve ser. Ora, a realidade do fato que acabamos de estabelecer
não é contestável; isso significa que o crime melindra sentimentos que se encontram em
todas as consciências sadias de um mesmo tipo social”. (DURKHEIM, 1999:43)

Por fim, cabe ressaltar que a definição de fatos sociais nos termos expostos, tratando-os
como coisas, externas aos indivíduos, porém, de existência imaterial, nos permite, além
de delimitar o objeto de estudo da sociologia, realizar análises e estudos sociológicos
avançados, tais como os estudos realizados pelos citados estudiosos do estrutural
funcionalismo e da teoria dos sistemas sociais, ambas teorias que não partem do marco
teórico relativo ao conceito de ação social (ou socialmente relevante) de Max Weber, e
que tratam a sociedade como um sistema, uma superestrutura, que possui pressupostos
de funcionamento próprios e intrasistêmicos, e até autopoiéticos (LUHMANN, 1997), o
que possibilita um estudo mais aprofundado, objetivizado e científico, devido ao fato de
priorizar menos uma maior interseção dos fatos sociais com o funcionamento mental do
indivíduo, tal qual a apontada teoria weberiana, e ter mais em vista a ocorrência coletiva
dos fenômenos estudados pela Sociologia. 

Referências bibliográficas:

DURKHEIM, É. As Regras do Método Sociológico, São Paulo, Martins Fontes, 2007.

DURKHEIM, É. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

LUHMANN, N., Organización y Decisión: Autopoiesis, acción y entendimiento


comunicativo. Barcelona: Anthropos. 1997.

LUHMANN, N. Sistemas sociales: lineamientos para una teoría general. Barcelona:


Anthropos, 1998.

MERTON, R. K. Sociologia – teoria e estrutura, São Paulo: Mestre Jou, 1970.

PARSONS, T. The Social System. Glencoe, IL: Free Press, 1951

TOMÁS, M. A., SERRETTI, A. P. “O mal-estar e as origens do Direito: bases de uma


teoria sociológica a partir de Freud e Luhmann”. Anais do I Congresso Nacional de
Psicanálise, Direito & Literatura, p. 386-409, 2009.
As Etapas do Pensamento Sociológico: Émile Durkheim – As Regras
do Método Sociológico

Ao analisar os três grandes livros de Durkheim, pode-se notar a semelhança dos


métodos utilizados e dos resultados obtidos: no ponto de partida, uma definição do
fenômeno; depois, a refutação das interpretações anteriores. Por fim, uma explicação
propriamente sociológica do fenômeno considerado.

Nos três livros, as interpretações anteriores são refutadas e tem a mesma característica:


são interpretações individualistas e racionalizantes. Nos três casos, a explicação a que
chega é essencialmente sociológica, embora o adjetivo tenha em cada livro um sentido
algo diferente. Em Da divisão do trabalho social a explicação é sociológica porque
propõe a prioridade da sociedade sobre os fenômenos individuais. Em O Suicídio, o
fenômeno social pelo qual explica o suicídio é o que chama de corrente suicidógena, ou
uma tendência social ao suicídio, que se manifesta, em determinados indivíduos. Em As
Formas Elementares da Vida Religiosa, a explicação sociológica tem dupla
característica: de um lado, e a exaltação coletiva provocada pela reunião de indivíduos
num mesmo lugar, que faz surgir o fenômeno religioso e inspira o sentido do sagrado;
de outro lado, e a própria sociedade que os indivíduos adoram sem o saber.

As regras do método sociológico representa a formulação abstrata da prática dos dois


primeiros livros. O objetivo de Durkheim é demonstrar que pode e deve existir uma
sociologia objetiva e científica, tendo por objeto o fato social.  Para que haja tal
sociologia, duas coisas são necessárias: que seu objeto seja específico, distinguindo-se
do objeto das outras ciências, e que possa ser observado e explicado de modo
semelhante ao que acontece com os fatos observados pelas outras ciências. Esta dupla
exigência leva às duas fórmulas que servem de fundamento para a metodologia de
Durkheim: é preciso considerar os fatos sociais como coisas; a característica do fato
social é que ele exerce uma coerção sobre os indivíduos.

De acordo com Durkheim, a coerção é apenas a aparência externa, uma característica


que permite reconhecer o fato social. Durkheim parte da ideia de que convém definir os
fatos sociais pelas características externas facilmente reconhecíveis, a fim de evitar os
preconceitos. O perigo deste método é duplo: substituir imperceptivelmente uma
definição, intrínseca, por outra, extrínseca, relacionada com sinais exteriores
reconhecíveis, e pressupor arbitrariamente que todos os fatos classificados nessa
categoria derivam necessariamente de uma mesma causa.

Essa tendência a ver os fatos sociais como suscetíveis de serem classificados em


gêneros e em espécies aparece no Cap. V, dedicado às regras relativas à constituição dos
tipos sociais. A classificação das sociedades, de Durkheim, se baseia no princípio de
que o diferente grau de complexidade é que as diferencia. O ponto de partida é o grupo
mais simples, a que Durkheim chama horda. Depois da horda vem o clã, que
compreende várias famílias e é a mais simples sociedade historicamente conhecida. Para
classificar as outras sociedades, basta aplicar o mesmo princípio. Este critério permite
determinar a natureza de uma sociedade sem referência às fases históricas, tais como as
etapas do desenvolvimento econômico.

Os sociólogos do século XIX, Auguste Comte e Karl Marx, se esforçaram por


determinar as fases do progresso intelectual, econômico e social da humanidade.
Segundo Durkheim, estas tentativas não levam a nada, pois uma sociedade pode
absorver certo desenvolvimento econômico sem que sua natureza fundamental se
transforme. Contudo, é possível fazer uma classificação cientificamente válida dos
gêneros e espécies de sociedades, com base num critério que reflete a estrutura da
sociedade considerada, como o número dos segmentos justapostos numa sociedade
complexa e o modo de combinação desses segmentos.

As teorias da definição e classificação dos gêneros e espécies levam à distinção do


normal e do patológico. A distinção do normal e do patológico, desenvolvida no
Capitulo III de As regras do método sociológico, é uma das bases do pensamento de
Durkheim. Sua vontade de ser um cientista puro não o impedia de afirmar que a
sociologia não valeria nada se não permitisse o aperfeiçoamento da sociedade. A
distinção entre o normal e o patológico é precisamente uma das intermediações entre a
observação dos fatos e os preceitos. Se um fenômeno é patológico, temos um argumento
cientifico para justificar projetos de reforma.

Para Durkheim, será considerado normal o fenômeno que encontrarmos mais


frequentemente numa sociedade dada, num certo momento do seu desenvolvimento.
Esta definição da normalidade não exclui que, subsidiariamente, se procure explicar a
causa que determina a frequência do fenômeno considerado.

Assim como a normalidade é definida pela generalidade, a explicação, segundo


Durkheim, é definida pela causa. Explicar um fenômeno social é identificar o fenômeno
que o produz. Uma vez estabelecida a causa de um fenômeno, pode-se procurar
igualmente a função que exerce, a sua utilidade. As causas dos fenômenos sociais
devem ser procuradas no meio social. É a estrutura da sociedade considerada que
constitui a causa dos fenômenos que a sociologia quer explicar.

A explicação dos fenômenos pelo meio social se opõe à explicação histórica segundo a
qual a causa de um fenômeno deveria ser procurada no estado anterior da sociedade.
Durkheim pensa que se podem explicar os fenômenos sociais pelas condições
concomitantes. De certa maneira, a causalidade eficiente do meio social representa,
para Durkheim, a condição da existência da sociologia cientifica.

Esta teoria da sociologia cientifica se fundamenta numa afirmativa central do


pensamento de Durkheim: a sociedade é uma realidade de natureza diferente das
realidades individuais. Todo fato social tem como causa um outro fato social, e nunca
um fato da psicologia individual.
Este é o centro do pensamento metodológico de Durkheim. Para ele o fato social é
específico, provocado pela associação dos indivíduos, e diferente, pela sua natureza, do
que se passa no nível das consciências individuais. Os fatos sociais podem ser objeto de
uma ciência geral porque se distribuem em categorias, e os próprios conjuntos sociais
podem ser classificados em gêneros e espécies.

Bibliografia:

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 7. ed. São Paulo: Martins


Fontes, 2008.

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