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RESUMO: Este artigo pretende apresentar o cenário ABSTRACT: This article intends to present the current
atual dos acordos para aplicação de sanção penal situation of agreements for criminal sanction with the
por consenso do réu no processo penal brasileiro. defendant’s consent in the Brazilian criminal justice. To
Para tanto, expõe-se as características básicas do this end, it will expose the basic characteristics of the
processo penal brasileiro, os mecanismos atuais Brazilian criminal process, the current mechanisms of
de acordos criminais e a descrição da aplicação criminal agreements, and the description of the prac-
prática dos acordos de colaboração premiada na tical application of collaboration agreements in Oper-
Operação Lava Jato. Conclui-se que, embora ainda ation Lava Jato. It concludes that, although there is still
inexista mecanismo que possibilite uma condena- no bargain that allows a conviction without process, the
ção sem processo, os institutos atuais autorizam current mechanisms authorize the imposition of crimi-
a imposição de sanções penais sem processo e nal sanctions without process and characterize hypoth-
caracterizam hipóteses que fogem à lógica tra- eses that diverges of the traditional logic of legality in
dicional da obrigatoriedade da ação penal. Assim, criminal procedure of non-adversarial systems. Thus,
com certas distinções, pode-se verificar no Brasil a with certain distinctions, the tendency of administrati-
tendência de administrativização da justiça penal. zation of criminal justice can be verified in Brazil.
PALAVRAS-CHAVE: Colaboração premiada – Acor- KEYWORDS: Cooperation agreements – Plea bar-
dos penais – Justiça criminal negocial – Admi- gaining – Negotiated criminal justice – Adminis-
nistrativização – Processo penal. tratization – Criminal procedure.
VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada e negociação na justiça criminal brasileira: acordos para
aplicação de sanção penal consentida pelo réu no processo penal.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 166. ano 28. p. 241-271. São Paulo: Ed. RT, abril 2020.
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SUMÁRIO: Introdução. 1. Premissas sobre o processo penal brasileiro. 2. Justiça criminal ne-
gocial no Brasil. 3. A colaboração premiada no processo penal brasileiro. 4. Os mecanismos
de acordos penais brasileiros diante da tendência internacional de expansão do consenso e
administrativização da justiça criminal. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
De1 um modo distinto da maioria dos países latino-americanos, o Brasil ain-
da não realizou uma reforma ampla em sua justiça criminal, que segue regida por
um Código de Processo Penal de 1941, embora com alterações significativas em
alguns capítulos.2 Além disso, o Brasil parece ainda resistir à tendência interna-
cional de expansão e generalização de acordos penais para imposição de sanções
sem a necessidade do transcorrer integral do processo penal, com todas as suas
garantias tradicionais.3
Nos últimos anos, inovações legislativas inseriram mecanismos de consenso
penal, como a transação penal, a suspensão condicional do processo, o acordo
de não persecução penal e a colaboração premiada. Os três primeiros mecanis-
mos citados possuem aplicabilidade limitada a crimes de menor gravidade, sem
a possibilidade de imposição de pena de prisão, mas somente sanções não restri-
tivas de liberdade, além de não ocasionar uma condenação formal contra o réu.
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aplicação de sanção penal consentida pelo réu no processo penal.
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12. NUCCI, Guilherme S. Curso de direito processual penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2018. p. 50.
13. Nos termos do art. 156 do CPP brasileiro, o julgador pode “I – ordenar, mesmo antes de
iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevan-
tes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida” e “II – deter-
minar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências
para dirimir dúvida sobre ponto relevante”.
14. Conforme os arts. 12 e 155 do CPP brasileiro, o inquérito deve ser integralmente anexa-
do aos autos do processo e o juiz pode considerar seus elementos na sentença, embora
isso não possa ser fundamentação suficiente para condenação: “Art. 12. O inquérito
policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou ou-
tra”; “Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida
em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos
elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não
repetíveis e antecipadas”.
15. Afirmando tratar-se de sistema inquisitivo: COUTINHO, Jacinto Miranda. Introdução
aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro. Revista de Estudos Criminais,
São Paulo, n. 01, 2001. p. 28; LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012. p. 134-135.
16. O Supremo Tribunal Federal tem posição consolidada no sentido da adoção de um
sistema acusatório, com a separação das funções de acusar e julgar, embora, em regra,
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não vede a iniciativa probatória do julgador. Para uma exposição de tal jurisprudência:
VASCONCELLOS, Vinicius G. O “sistema acusatório” do processo penal brasileiro:
apontamentos acerca do conteúdo da acusatoriedade a partir de decisões do Supremo
Tribunal Federal. Direito, Estado e Sociedade, n. 47, p. 181-204, jul.-dez. 2015.
17. Conforme o § 5º do art. 39 do CPP: “O órgão do Ministério Público dispensará o inqué-
rito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a
ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de quinze dias”.
18. FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria geral do procedimento e o procedimento no pro-
cesso penal. São Paulo: RT, 2005. p. 35.
19. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 5. ed. São Paulo: RT, 2017. p. 121.
20. FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria Geral do procedimento e o procedimento no pro-
cesso penal. São Paulo: RT, 2005. p. 75.
21. LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo J. Investigação preliminar no processo penal. 6.
ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 107-108.
22. Cita-se, por exemplo, a súmula vinculante 14 do STF (“É direito do defensor, no in-
teresse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documenta-
dos em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia
judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”) e a alteração trazida pela
Lei 13.245/2016, que ampliou a atuação do advogado no inquérito policial (Disponível
em: [www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13245.htm]. Acesso
em: 15.10.2018).
23. Sobre tal cenário, ver: SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo:
RT, 2004. p. 198-205; CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação
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criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 124-132; TUCCI, Rogério Lauria.
Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 4. ed. São Paulo: RT, 2011.
p. 303-304; LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo J. Investigação preliminar no pro-
cesso penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 468.
24. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 5. ed. São Paulo: RT, 2017. p. 145-150.
25. Art. 17, CPP: “A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito”.
26. Em relação a tal debate, ver: LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo J. Investigação
preliminar no processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 243-249.
27. STF, Recurso Extraordinário 593.727/MG, julgado em 14.05.2015.
28. LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo J. Investigação preliminar no processo penal. 6.
ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 258-260.
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34. Nos termos da Constituição brasileira de 1988 (arts. 102 e 105, por exemplo), existem
hipóteses de foro privilegiado (foro por prerrogativa de função), em que pessoas que
ocupam funções relevantes ao Estado são julgadas diretamente por Tribunais colegia-
do, como Tribunais de Justiça estaduais, Tribunais Regionais Federal, Superior Tribu-
nal de Justiça ou até pelo Supremo Tribunal Federal.
35. Art. 74, § 1º, CPP. Disponível em: [www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del-
3689Compilado.htm]. Acesso em: 16.10.2018.
36. O Supremo Tribunal Federal já decidiu reiteradamente que não podem existir prisões
automáticas, pelo simples fato do início do processo penal ou pela gravidade abstrata
do crime imputado. Existem duas espécies de prisões cautelares, preventiva (CPP) e
temporária (Lei 7.960/89), que podem ser motivadamente decretadas pelo julgador, a
partir de fundamentos cautelares. Contudo, o CPP prevê que a prisão preventiva pode
ser decretada para resguardar a “ordem pública” (art. 312), um conceito aberto que per-
mite abusos para restrição à liberdade sem motivação cautelar, além de que não existem
prazos máximos determinados em lei.
37. Dados fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça referentes ao ano de 2018. Dis-
ponível em: [www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/08/bnmp.pdf]. Acesso em:
13.11.2019.
38. STF, ADPF 347 MC, Plenário, rel. Min. Marco Aurélio, DJe 19.02.2016.
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julgamento das ADCs 43, 44 e 54, em que o Plenário da Corte, em votação apertada
(6x5), declarou a constitucionalidade do art. 283 do CPP e proibiu a execução pro-
visória da pena após o julgamento por Tribunal de segundo grau.39
A sentença condenatória ou absolutória pode ser revista por tribunal de se-
gundo grau por meio do recurso de apelação. Trata-se de meio de impugnação
sem maiores formalidades e requisitos, que devolve toda a matéria para reexame,
de modo escrito e sem imediação. Embora o CPP autorize a reprodução de pro-
vas em segundo grau, tal dispositivo quase nunca é utilizado na prática. Portan-
to, decide-se o recurso com base nos elementos produzidos pelo juiz de primeiro
grau e documentados nos autos do processo.40
Depois, existem os recursos especial e extraordinário, respectivamente dire-
cionado ao Superior Tribunal de Justiça (por violação à dispositivo de lei federal,
como o CPP, ou divergência entre Tribunais de segundo grau) e ao Supremo Tri-
bunal Federal (por violação à Constituição). Embora abstratamente possam ser
utilizados em qualquer caso, tais meios de impugnação se submetem a controles
rígidos, com requisitos de admissibilidade que dificultam o conhecimento dos
recursos pelos Tribunais superiores.
39. STF, ADCs 43, 44 e 54, Plenário, rel. Min. Marco Aurélio, j. 07.11.2019.
40. Progressivamente tem se inserido mecanismos de gravação audiovisual de audiências,
de modo que os Tribunais podem reproduzir os atos por áudio e vídeo, mas isso ainda
não é algo generalizado no território brasileiro.
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41. VASCONCELLOS, Vinicius G. Barganha e justiça criminal negocial: análise das ten-
dências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. 2. ed. Belo
Horizonte: D’Plácido, 2018. p. 50.
42. “[...] no campo da justiça penal consensual, a lei de 1995 não só regulou a transação
prevista na Constituição, mas também criou o acordo reparatório e a suspensão con-
dicional do processo (probation).” (GRINOVER, Ada Pellegrini. A marcha do processo.
Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 74). Pensa-se, contudo, que o instituto da composição
civil dos danos (art. 72, Lei 9.099/95) não se caracteriza como mecanismo negocial,
pois envolve acordo entre vítima e ofensor, sem negociação com o Estado (acusador
público).
43. MENDONÇA, Andrey Borges de. A colaboração premiada e a nova Lei do Crime Orga-
nizado (Lei 12.850/13). Revista Custos Legis, v. 4, 2013. p. 2.
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previsto na Resolução do CNMP.47 Nos termos do art. 28-A, “não sendo caso de
arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a
prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima in-
ferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não per-
secução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção
do crime”, com a possibilidade de imposição de condições que não envolvam a
restrição à liberdade do indivíduo. Tal mecanismo possui uma abrangência ra-
zoavelmente ampla, pois grande parte dos tipos penais brasileiros possuem pe-
na abstrata mínima inferior a 4 anos, o que acarretará uma expansão da justiça
criminal negocial no Brasil. Contudo, ainda não há a possibilidade de condena-
ção ou imposição de prisão sem o processo penal, somente a partir do consenso
do réu.
Em diversos projetos de Lei atualmente em trâmite no Congresso Nacional
almeja-se a expansão dos mecanismos penais negociais no Brasil. No projeto
de novo CPP (PL 8.045/2012), aprovado no Senado e em debate na Câmara
dos Deputados, é previsto “procedimento sumário”, que autorizaria a “aplicação
imediata de pena nos crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse oi-
to anos”, devendo ela ser concretizada em seu mínimo legal, após a confissão do
acusado e a dispensa da produção de provas pelas partes. Assim, haveria a criação
de um “rito alternativo” que determina o encerramento antecipado do processo
em razão do consenso.48 Contudo, na doutrina houve forte resistência, apontan-
do inconstitucionalidades em tal proposta.49
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Além disso, vale citar o projeto de lei que originou a já mencionada recente
Lei 13.964/19. O governo federal eleito em 2018 apresentou projeto de lei com
o objetivo de alterar diversos aspectos da legislação penal e processual penal do
Brasil, denominado “Pacote anticrime”.50 Além do “acordo de não persecução
penal” anteriormente descrito, almejava-se a criação de um “acordo penal”, o
que autorizaria a imposição de sanções penais, inclusive prisão, em qualquer
espécie de crime, sem qualquer limitação pela gravidade ou pela pena abstrata
cominada. Ou seja, seria inserido mecanismo que potencialmente possibilita-
ria a generalização da justiça criminal negocial no processo penal brasileiro. As
críticas apresentadas a tal proposta foram intensas51 e findaram na exclusão do
dispositivo em parecer de comissão legislativa preliminar. De qualquer modo, a
presença constante de propostas legislativas no sentido de ampliar os mecanis-
mos negociais demonstra a tendência de generalização do sistema na justiça cri-
minal brasileira.
50. Sobre o pacote anticrime, ver as edições especiais de abril e maio do Boletim do IBC-
CRIM. Disponível em: [www.ibccrim.org.br/noticia/14463-Boletim-IBCCRIM-lanca-
-duas-edicoes-especiais-sobre-Pacote-Anticrime]. Acesso em: 13.11.2019.
51. VASCONCELLOS, Vinicius G. Análise da proposta de “acordo penal” (art. 395-A) do
Pacote Anticrime: risco de generalização e necessidade de limitação da justiça criminal
negocial. Boletim do IBCCRIM, v. 27, p. 27-29, 2019.
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firmados na operação Lava Jato, perceber que a prática tem destoado dos limites
legais e ampliado o mecanismo da colaboração premiada.
Conforme o art. 4º da Lei 12.850/2013, determinam-se os possíveis benefí-
cios e os resultados necessário à colaboração do imputado:
56. Conforme Marcos Zilli, “não podem as partes pactuantes ampliar os prêmios para
além daqueles indicados em lei”, pois “aqui impera o princípio da legalidade do
conteúdo” (ZILLI, Marcos. No acordo de colaboração entre gregos e troianos o
cavalo é o prêmio. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 25, n. 300, nov. 2017. p. 4). De
modo semelhante, afirmando a submissão do julgador e do acusador à legalidade
estrita: CAPEZ, Rodrigo. A sindicabilidade do acordo de colaboração premiada. In:
MOURA, Maria Thereza A.; BOTTINI, Pierpaolo C. (Coord.). Colaboração premia-
da. São Paulo: RT, 2017. p. 235.
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60. STF, HC 127.483/PR, Trib. Pleno, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.2015, p. 63. De modo
semelhante: STF, QO na PET 7.074, Trib. Pleno, rel. Min. Edson Fachin, j. 29.06.2017.
61. COURA, Alexandre C.; BEDÊ JR., Américo. Atuação do juiz no acordo de colaboração
premiada e a garantia dos direitos fundamentais do acusado no processo penal brasilei-
ro. Revista dos Tribunais, ano 105, v. 969, jul. 2016. p. 150-151; TORTATO, Moacir R. O
papel do juiz na delação premiada. Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá e Escola da
Magistratura Mato-Grossense, v. 5, jan.-dez. 2017. p. 302.
62. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 3. ed. São Paulo: RT, 2015. p. 458; MEN-
DONÇA, Andrey B. A colaboração premiada e a criminalidade organizada: a confiabi-
lidade das declarações do colaborador e seu valor probatório. In: SALGADO, Daniel
R.; QUEIROZ, Ronaldo P. (Org.). A prova no enfrentamento à macrocriminalidade. 2. ed.
Salvador: JusPodivm, 2016. p. 254.
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63. LOPES JR., Aury. Prefácio. In: VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça
criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no pro-
cesso penal brasileiro. São Paulo: IBCCrim, 2015. p. 14.
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“(i) o benefício não pode ser expressamente vedado por lei; (ii) deve haver
relativa cobertura legal, permitindo a analogia, embora sejam possíveis adap-
tações ao caso concreto; (iii) o objeto do acordo deve ser lícito e moralmente
aceitável; (iv) deve respeitar os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa
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Por outro lado, há quem clame por uma “cultura de legalidade dos benefícios”,65
de modo a assegurar a correspondência entre aquilo proposto no acordo e a pos-
terior concretização do benefício no sentenciamento. Segundo Silva Jardim, “o
Ministério Público não pode oferecer ao delator ‘prêmio’ que não esteja expres-
samente previsto na lei específica”, além de que “tal limitação se refere não só ao
tipo de benefício (prêmio), como também se refere à sua extensão, mesmo que
temporal”.66
Sem dúvidas, pode-se afirmar que os acordos de colaboração premiada realiza-
dos na Operação Lava Jato e analisados neste estudo previram cláusulas com be-
nefícios e deveres distintos daqueles autorizados nos termos da Lei 12.850/2013.
Ou seja, a prática da colaboração premiada brasileira, ao menos na referida ope-
ração que pode ser considerada um padrão marcante ao sistema, extrapolou e
desconsiderou os limites definidos na legislação, o que foi chancelado pelo Poder
Judiciário, ao menos majoritariamente. Assim, afirma-se que, na prática, adotou-
-se uma “visão arrojada” da colaboração premiada prevista na Lei 12.850/2013,
visto que se ampliou em muito as possibilidades de negociações em relação às
disposições da referida legislação.67
Em dezembro de 2019 foi promulgada a Lei 13.964/19, que inseriu e alte-
rou dispositivos relevantes sobre colaboração premiada na Lei 12.850/13. No
que se relaciona ao aqui explorado, a nova legislação alterou o § 7º do art. 4º,
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70. “Assim, enquanto as influências norte-americanas no mundo da civil law têm sido ine-
gáveis, ao menos em seus procedimentos criminais formais, elas não estão produzin-
do uma forte ‘americanização’, ou adversarialização, da civil law, mas, na verdade, sua
fragmentação. Essa fragmentação se dá ao menos em parte em razão do fato de que
os sistemas inquisitoriais ‘traduziram’ as influências adversariais norte-americanas de
modos diferentes” (LANGER, Máximo. From Legal transplants to legal translations.
In: THAMAN, Stephen C. (Ed.). World plea bargaining. Consensual procedures and
the avoidance of the full criminal trial. Durham: Carolina Academic Press, 2010. p. 79)
(tradução livre). Também sustentando a tese de fragmentação, nos termos propostos
por Máximo Langer: ARMENTA DEU, Teresa. Sistemas procesales penales. La justicia
penal en Europa y América. Madrid: Marcial Pons, 2012. p. 288.
71. Sobre isso: GRANDE, Elisabetta. Comparative approaches to criminal procedure:
transplants, translations, and adversarial-model reforms in European criminal process.
In: BROWN; TURNER; WEISSER. The Oxford Handbook of Criminal Process. Nova Ior-
que: Oxford University Press, 2019. p. 67-88; VIEIRA, Renato Stanziola. O que vem
depois dos “legal transplants”? Uma análise do processo penal brasileiro atual à luz de
direito comparado. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 4, n. 2,
p. 767-806, maio-set. 2018.
72. LANGER, Máximo. From legal transplants to legal translations. In: THAMAN, Stephen
C. (Ed.). World plea bargaining. Consensual procedures and the avoidance of the full
criminal trial. Durham: Carolina Academic Press, 2010. p. 39-42.
73. “Especificamente, as transformações que a plea bargaining sofreu quando foi transferida
para essas jurisdições de civil law podem ser entendidas tanto como decisões tomadas
pelos ‘tradutores’ (i.e., reformadores legais) ou como produto das diferenças estruturais
que existem entre as ‘linguagens’ adversarial e inquisitorial” (LANGER, Máximo. From
Legal Transplants to Legal Translations. In: THAMAN, Stephen C. (Ed.). World plea
bargaining. Consensual procedures and the avoidance of the full criminal trial. Durham:
Carolina Academic Press, 2010. p. 8) (tradução livre).
VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada e negociação na justiça criminal brasileira: acordos para
aplicação de sanção penal consentida pelo réu no processo penal.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 166. ano 28. p. 241-271. São Paulo: Ed. RT, abril 2020.
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74. LANGER, Máximo. Plea bargaining, trial-avoiding conviction mechanisms, and the
global administratization of criminal convictions. Annual Review of Criminology,
2019. p. 16 e nota 33.
75. Ibidem, p. 4, nota 4.
76. Ibidem, p. 2 (tradução livre).
77. Conforme Gabriel Anitua, tais institutos “têm como característica comum a outorga
ao Estado (que é representado pelo Poder Judiciário ou pelo Ministério Público) da
possibilidade de reduzir a pena ou, inclusive, perdoar o acusado com base em pactos ou
acordos” (ANITUA, Gabriel I. En defensa del juicio. Comentarios sobre el juicio penal
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aplicação de sanção penal consentida pelo réu no processo penal.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 166. ano 28. p. 241-271. São Paulo: Ed. RT, abril 2020.
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aplicação de sanção penal consentida pelo réu no processo penal.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, retomam-se os problemas que orientaram o desenvolvimen-
to deste trabalho: os mecanismos consensuais e acordos no processo penal brasilei-
ro podem ser comparados ao cenário internacional de expansão da justiça criminal
negocial e da barganha? Em relação à colaboração premiada, os acordos realizados
na operação Lava Jato se conformam com os dispositivos legais vigentes no Brasil?
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aplicação de sanção penal consentida pelo réu no processo penal.
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