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A liberdade de ver os outros By gira

Um dos escritores mais admirados de sua geração, o americano David Foster Wallace se suicidou no mês
passado, aos 46 anos, enforcando-se. Este texto foi tirado de seu discurso de paraninfo para formandos do
Kenyon College, há três anos*
A liberdade de ver os outros David Foster Wallace

Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário.
Ele os cumprimenta e diz:
- Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
- Água? Que diabo é isso?
Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o
que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é
que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa
forma, a frase soa como uma platitude – mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta,
lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.
Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou
dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda
de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver
hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo,
mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em
nossos circuitos ao nascermos.
Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central
absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás,
à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos
outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é
imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão,
desprendimento ou outras “virtudes”. Essa não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar
alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar
desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu
ser.
Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa
configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma
formação acadêmica – pelo menos no meu caso – é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as
questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está
ocorrendo bem na minha frente.
Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de
hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha
formatura vim a entender que o surrado clichê de “ensinar os alunos como pensar” é, na verdade, uma
simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. “Aprender a pensar” significa aprender como
exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que
escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na
vida adulta, estarão totalmente à deriva.
Lembrem o velho clichê: “A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível.” Como tantos
clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não
é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na
cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho.
Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas
que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e
respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão – a
de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.
Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que
vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o
outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um
desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.
Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para
seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado,
e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e
depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida
na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir
ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas
fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você
gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores
superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas
emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de
compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os
adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e
pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que,
como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não
pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o
cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um “boa noite, volte sempre” numa voz que tem o
som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O
engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu
não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar
comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a
minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas
não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e
inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos
celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e
utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de
gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que
sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos
e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros
idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por
desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-
acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e
tal.

Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim – só que
pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha
configuração padrão.

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os
outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas
dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não
conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o
bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e
estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim.
Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo.
Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem
mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver
um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar
em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como
eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam
como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação “inferno
do consumidor” não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as
estrelas.

Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam
decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como “não venerar”. Todo mundo
venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de
Deus ou ente espiritual para venerar – seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de
princípios éticos – é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e
extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar
seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio – e quando o tempo e a idade
começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas.
Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros
para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um
farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas – e sim em serem inconscientes.
São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia.
Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de
que está fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do
dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um
faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e
liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do
tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais
preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade
verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar
com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a
liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de
certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida
depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos
30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência –
consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor – daquilo que
devemos lembrar, repetindo sempre: “Isto é água, isto é água.”

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.

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