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A Salvação como divinização na Patrística grega

“Não te admires se repetimos muitas vezes as mesmas coisas com os mesmos


argumentos. Uma vez que falamos da bondade de Deus, exprimiremos assim a
mesma ideia com muitas palavras, para não parecer que omitimos algo e não
corrermos o risco de nos expressarmos insuficientemente” (ATANÁSIO, De
Inc. Verb. V,11).

Introdução

Sendo o presente Congresso sobre o “mistério da redenção” conduzido


sob uma orientação ecuménica, era indispensável que nos debruçasse-mos sobre
este outro modo de falar da mesma “salvação” característico da teologia greco-
oriental. O tema justifica-se, no entanto, por si mesmo, graças às suas
consistentes bases bíblicas e ao espaço que lhe dedicou a tradição patrística.
Como não sou especialista em teologia oriental, abordarei o tema sobretudo
nesta última perspectiva, isto é, cingindo-me ao período patrístico e aos autores
gregos, por terem sido sobretudo estes os grandes cultivadores desta doutrina de
que a teologia ortodoxa se fez zelosa herdeira.
A tendência comum em esquematizar e descrever dialecticamente o contraste
entre as teologias greco-oriental e latino-ocidentail, levou frequentemente a
simplificações pouco amigas da verdade (ex. teologia da glória versus teologia da
cruz). A propósito da doutrina da salvação, é um lugar comum afirmar-se que,
enquanto os latinos, mais aristotélicos, insistiram, na sua scientia fidei, sobretudo no
aspecto negativo e jurídico da salvação, apresentada como libertação do pecado e da
servidão diabólica1; os gregos, mais místico-platónicos, desenvolvendo o tema da
divinização-qšwsij, ou deificação-qeopo…hsij2, elaboraram uma soteriologia mais
positiva, concebida como re-criação ou restauração da “imagem de Deus”, através da
Incarnação e como resultado da visão-qewr…a3.
Embora não se possa considerar a doutrina da “divinização” uma perspectiva
alternativa típica exclusiva do cristianismo grego, acabamos por constatar e
reconhecer que a ideia da qeopo…hsij foi particularmente e continuadamente cara aos
Padres gregos e constitui um dos tesouros mais bem “guardados” pela teologia
1
Cf. P. EVDOKIMOV, Les âges de la vie spirituelle, Paris 1964, 169: “A la lumière da la Révelation, le salut n‟a
rien de juridique, il n‟est pas une sentence de tribunal. Le verbe yacha en hébreu signifie „être au large‟, à l‟aise;
dans le sens plus général, il veut dire délivrer, sauver d‟un danger, d‟une maladie, de la mort enfin, ce qui dégage
et précise la signification très particulière de rétablir l‟équilibre vital, de guérir... Dans le Nouveau Testament
swthr…a en grec vient du verbe sèzw, l‟adjectif sîj correspond au latin sanus et signifie donc rendre la santé à
celui qui l‟a perdu, sauver de la mort, fin naturelle de toute maladie”.
2
Cf. S. BOULGAKOV, L‟ortodoxie, Paris 1932, 150; V. LOSSKY, À l‟image et la rassemblence de Dieu, Paris
1967, 96-97. Se inicialmente o termo qeopo…hsij é preferido (Já usado por Clemente Alexandrino), sobretudo sob
influxo do Pseudo-Dionísio será o vocabulário da qšwsij a impor-se. Sobre o uso e significado patrístico do
vocábulo qšwsij, cf. G.W.H. LAMPE, A Patristic Greek Lexicon, Oxford 1968, 649-650.
3
Cf. Y. CONGAR, Chrétiens en dialogue. Contribution catholique à l‟oecuménisme, Paris 1964, 264-270.
Bastaria, no entanto, ler alguns capítulos do De incarnatione Verbi de S. Atanásio (cf. V,20), para constatar a
importância que a linguagem forense já ocupa aí como expressão da doutrina da salvação operada pela paixão de
Cristo. Vale a pena evocar a autoridade de um outro ilustre grego, Gregório de Nissa que afirma explicitamente
que Cristo “foi pregado na cruz no momento designado pelo plano da salvação através da morte”, Orat. cat.
XXXII,6 (PG XLV, 83).

1
ortodoxa, sua herdeira directa4. De facto, mesmo os “ocidentais” como Ireneu, ou
“latinos”, como S. Hilário5, que mais desenvolveram esta doutrina, fizeram-no sob o
influxo da forma mentis grega6.
Isto não nos autoriza a divinização um tema secundário na teologia latina, ou
de menor relevância para a teologia em geral. Efectivamente, esta, além ocupar um
espaço fundamental em autores genuinamente ocidentais como Agostinho 7, constitui
um capítulo essencial da tradição cristã comum8 e, como dissemos, com consistentes
raízes bíblicas9. Uma verdadeira teologia da “divinização” seria mesmo, talvez, a
melhor via de penetração profunda na mensagem de salvação em Cristo.
Efectivamente, desde muito cedo, se generalizou entre os crentes e teólogos
cristãos a convicção profunda de que a vida cristã é uma vida divinizada. Desde
Ireneu a João Damasceno esta ideia constitui o núcleo de explanação de toda a
economia salvífica, resumida nestas grandes afirmações: Que Deus nos criou com a
capacidade de nos tronarmos semelhantes a Ele; Que através da Sua graça, Deus
actua esta capacidade, deificando-nos; Que esta graça não é simplesmente a vida
nova do homem sob acção do Espírito, mas a própria participação na vida de Deus,
que nos torna Seus partners (termo moderno que traduz bem o que os antigos
chamavam “participação”, cf. Jo 15,12-15)10.
Porque o modo como se vive e concebe a espiritualidade depende
fundamentalmente da forma como se entende a salvação, os diferentes acentos com
que o ocidente e o oriente tratou o tema da salvação marcou decisivamente os matizes
específicos das respectivas espiritualidades.

4
A síntese de Gregório Palamas (1296-1356) não fez mais que assumir toda a tradição da experiência
divinizante desenvolvida pelo cristianismo grego. Cf. V. LOSSKY, La teologia mistica della Chiesa d‟Oriente.
Bologna 1967, 385-400.
5
Cf. A. FIERRO, Sobre la gloria en San Hilario. Una sintesis doctrinal sobre la nocion de “doxa”, Roma 1964.
6
De resto, é compreensível que os autores e igrejas sediadas no contexto cultural helénico estivessem
filosófica e mentalmente mais predispostas para desenvolver todas as vertentes teológicas e consequências
espirituais da doutrina da qšwsij de algum modo já preparada pelo misticismo grego.
7
Cf. V. CAPÁNGA, La deificación en la soteriología agustiniana, in Aug. Mag. II, 1955, 745-754. Sobre a
“divinização” nos Padres latinos, cf. G. BARDY, Divinisation III: Chez les Pères latins, in DSp. III, 1389-1398;
B. STUDER, Divinizzazione, in DPAC I, Casale Monferrato, 1983, 999. Bem sabemos que Agostinho, sendo um
ocidental, não é isento de influxos orientais. Basta comparar a VIª Homilia sobre o Êxodo de Orígenes e
Enarrationes in Psal. XLIX,2 de Agostinho (CCL XXXVIII, 575-576). Por outro lado, não há dúvida que
Agostinho desenvolve sobretudo a doutrina da graça, justificação e santificação.
8
Catecismo da Igreja Católica: 398: “Criado num estado de santidade, o homem estava destinado a ser
plenamente „divinizado‟ por Deus na Glória”. Cf. Ibid. 460,1265,1812,1988. Por outro lado, se nos primeiros
três séculos não existe ainda a distinção entre autores cristãos gregos/latinos; durante o período patrístico não se
pode contrapor a teologia oriental/ocidental à católico-romana/ortodoxa, anacronismo frequente.
9
Se é verdade que a tradição filosófica e religiosa grega influi na concepção teológica sobretudo dos Padres
gregos, deve, todavia desde já ressalvar-se que todas a linguagem, e mesmo a ideia grega da qšwsij-divinização,
só foi acolhida na medida em que esta vinha ao encontro da afirmação bíblica e depois de reelaborada à luz da
revelação. Desde a narração da criação “à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26-27), os autores cristãos
desenvolvem os vários aspectos da divinização a partir do apelo à imitação da perfeição de Deus (cf. Lev
19,1-2; Mt 5,48; 1 Jo 3,2; 1 Cor 11,1; 2 Ped 1,3-7), da ideia de adopção como herdeiros de Deus (Rm 8,15-17;
Gal 4,4-7), da unificação com Deus em Cristo (Jo 17,11-23) assim como da participação nos sofrimentos e
glória de Cristo (cf. Rm 8,16-18; 2 Cor 3,18; 4,16-18; Fil 3,20-21; 2 Tim 2,10-12). A partir de passos em que
a Escritura apresenta humanos como “deuses” (Ex 4,16; 7,1; Sl 82,6; Jo 10,34-36).
10
Na terminologia teológica tradicional, a divinização é a graça incriada, isto é, o próprio Deus que se revela
e se dá ao homem. Cf. CLEMENTE ALEXANDRINO, Protr. XII, 122,3 (SC 2bis, 192).

2
A complexidade e amplidão do tema11 obriga-nos a subentender os seus
precedentes preparatórios: desde o antigo orfismo que divulgara no mundo
helénico a ideia da origem divina da alma12; aos cultos mistéricos nutridos da
aspiração de um renascimento para a filiação Divina e da busca da swthr…a;
passando pelo hermetismo que se apresenta como uma via de “salvação”,
através da regeneração de ordem puramente intelectual13; sem esquecer,
finalmente, as múltiplas formas de gnose que floresceram a partir do século II,
todas elas alimentadas pelo ideal da divinização (qewqÁnai)14. Pressupondo
estes importantes antecedentes15 que foram assumidos pelos Padres como uma
preparatio evangelica16, a nossa síntese deveria contemplar as seguintes alíneas
fundamentais: 1. A doutrina do homem “imagem e semelhança de Deus”; 2. A
doutrina da incarnação para nossa divinização; 3. O espírito vivificante; 4. A via
sacramental da divinização; 5. Divinização e progresso humano-espiritual; 6. A
salvação como visão de Deus. (Na presente exposição somos, no entanto,
forçados a “sobrevoar” alguns destes itens, assim como numerosos parágrafos de
um texto que, na sua versão final, será bem mais completo).

11
“Um grande número de temas convergentes delimita, sem esgotá-lo, este mistério da redenção deificante”,
O. CLEMENT, La Iglesia ortodoxa, Madrid 1990, 57; “La ricerca sulla divinizzazione viene però resa molto
complessa anche dagli stessi dati storici”, B. STUDER, Divinizzazione, in DPAC I, 995.
12
Cf. E. DES PLACES, La religion grecque. Dieux, cultes, rites et sentiment religieux dans la Grèce antique,
Paris 1969, 360.
13
Se nos cultos mistéricos a salvação era garantida através da participação em determinados ritos que agiam sobre
a parte emotiva do indivíduo, no caso do hermetismo a salvação alcança-se através do conhecimento e da
contemplação extática, pela qual o homem reconhece a sua origem divina e refaz o percurso de regresso e união
com o divino. No Corpus hermeticum, a swthr…a é concebida como uma libertação do destino (eƒmarmšnh),
graças à divinização operada apenas ao nível do noàj e do lÒgoj, isto é, através da gnose, Cf. A.-J.
FESTUGIÈRE, Ermetismo e mistica pagana, Génova 1991, 77.
14
Poimandres I,26. Pressupondo o parentesco essencial da alma com Deus, a divinização, entendida como retorno
ao estado divino primitivo, só poderá ter lugar depois da dissolução do corpo material, cf. Corpus Hermeticum,
X,6; E. DES PLACES, La religion grecque, 324.
15
Amplamente estudados sobretudo por A.-J. FESTUGIÈRE, Ermetismo e mistica pagana, 77. ID., L‟idéale
religieux des grecs et l‟Évangile, Paris 1981 e J. GROSS, La divinisation du chrétien d‟après les Pères grecs,
Paris 1938, 5-69.
16
Coube sobretudo à filosofia grega encontrar as melhores expressões desta aspiração do homem a
aproximar-se do divino. Mas será o cristianismo a oferecer a resposta que o pensamento helénico não
encontrou. Coube sobretudo aos Padres gregos, discípulos da longa reflexão helénica e do Evangelho propor a
mensagem cristã como reposta cabal à luz do Evangelho.

3
1. A vocação do homem: Criação e deificação

Salvação pressupõe sempre um antropologia. À pergunta “mostra-me o


teu Deus”, Teófilo de Antioquia (c.180) responde: “mostra-me o homem que
há em ti!” 17. O homem é, na concepção patrística, esse ser “intermédio”, “um
mundo grande num ser pequeno que Deus colocou sobre a terra como um anjo,
um adorador dotado de dupla natureza, guardião da criação visível e iniciado
nas criaturas invisíveis; rei de todas as coisas, mas súbdito do Reino das
realidades supremas; um ser terreno e celeste, efémero e imortal, visível e
inteligível, colocado entre a grandeza e humildade, espírito e carne ao mesmo
tempo: espírito por graça recebida e carne por causa sua soberba; espírito
para que continuasse a viver e a glorificar o seu Benfeitor, e carne para que
sofresse e sofrendo se recorde daquilo que era e lhe servisse de lição quando se
orgulhasse de sua grandeza. Um ser animado que era governado na terra
destinado a um outro lugar até ao cúmulo de se tornar divino precisamente por
este seu tender para Deus”18.
As religiões não bíblicas e, particularmente, o misticismo grego já
concebera o homem como uma “fronteira-limite” entre o material e o espiritual,
o visível e o invisível, o divino e o animal19. A teologia cristã faz desta tensão
antropológica o ponto de partida do crescimento e auto-superação do humano
no Divino. Nesta posição limite (meqÒrioj) radica a grandeza distintiva da
criatura humana como condição de exercício da sua liberdade e progresso
temporal em direcção ao seu destino divino20.
A salvação não é, por isso, resultado de um determinismo natural, nem o
fruto conquistado por uma vida “gnóstica”, mas resulta do encontro deste dom
de Deus com a liberdade humana21.
A liberdade original supunha a possibilidade do pecado que os Padres
interpretam como uma perda da comunhão com Deus e das prerrogativas
derivadas desta comunhão: verdadeira liberdade, impassibilidade, imortalidade22
ou incorruptibilidade (Aphtharsia)23. De facto, é conhecido o adágio patrístico:
Deus pode tudo, menos obrigar o homem a amá-lo.
Facto é que toda a patrística é unânime em afirmar que o homem foi
“criado para acolher em si a glória de Deus”24. Ele é, na expressão de S.

17
TEÓFILO DE ANTIOQUIA, Ad Autol. I,1 (SC 20, 60).
18
GREGÓRIO DE NAZIANZO, Orat. XXXVIII, 11 (C. MORESCHINI, 888). Cf. Ibid. XLV,7 (1142).
19
Cf. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Oratio, 45, 7 (C. MORESCHINI, 1142).
20
Cf. ORÍGENES, De oratione XXVIII,13 (PG XI, 524-528); GREGÓRIO DE NISSA, De hom. opif. XVI (PG
XLIV, 181); MARIA CÂNDIDA M. PACHECO, S. Gregório de Nissa. Criação e tempo, Braga 1983, 202.
21
CIRILO DE ALEXANDRIA, como todos os outros Padres, sabe que o homem é “imagem” de Deus
enquanto ser racional e livre: “O homem, desde o momento da criação, recebeu o domínio dos seus desejos e
podia seguir livremente as inclinações da sua escolha, porque a Divindade, de que ele é imagem, é livre”,
BASÍLIO, Glaphyra ad Gen. 1 (PG LXIX,24C).
22
Cf. CIRILO DE ALEXANDRIA, In Rom. (PG LXXIV, 789).
23
Conceito fundamental em Ireneu, cf. Y. DE ANDIA, Homo vivens, 17.
24
ORÍGENES, In Mat. 16,23 (PG XIII, 1453).

4
Basílio25, “uma criatura que recebeu o convite para ser Deus”. Seu amigo e
discípulo Gregório de Nazianzo, o cantor da divinização, comunga da mesma
convicção: “o ser humano é um animal vocacionado a tornar-se Deus”26.
Máximo Confessor, o “doutor da incarnação e da deificação”27, confirma que
“foi para isso que Deus nos criou: para que venhamos a comungar da natureza
divina”28.
Este desígnio divino de fazer participar o homem criado da condição de
Deus, embora assuma um carácter trágico com a “queda” e “redenção” do
homem, nunca foi, porém, alterado nem interrompido na sua orientação
fundamental. Pois a finalidade primordial da criação do homem é a participação
na “vida, incorruptibilidade e na glória eterna” de Deus29.
Tal finalidade é puro dom gratuito do Criador. No principio30 e no fim
está a Glória de Deus que se alarga e comunica a toda a humanidade 31 que é
chamada a participar da mesma glória que o Verbo tinha junto do Pai antes da
criação.
É no quadro deste grande plano que Ireneu e seus sucessores situam a criação do
homem e a sua salvação. A criação é salvífica, porque orientada para a participação
divinizante na glória de Deus. Os discípulos de Cristo, garante Ireneu, tomarão parte “na glória
do Senhor que os plasmou e preparou precisamente para que, permanecendo com Ele,
participem da sua glória”32. Esta participação não foi dada ao homem e de forma completa, de
uma só vez, desde o momento da criação33. Feito ad imaginem, isto é, aberto ao imenso
horizonte do dom de Deus, esta imago permanece perfectível, chamado a crescer na
semelhança34. O homem terá todo o tempo da história para realizar plenamente o desígnio de
Deus. No final deste crescimento, alcançará a condição divina.
Quanto ao homem ele é sempre “imagem de Deus”. Porém, enquanto o psíquico ou
carnal (alma e corpo, sem participação do Espírito de Deus) é apenas “imagem”, pois só o
homem espiritual e perfeito (corpo e alma que participam do Espírito) é “à imagem e

25
Testemunho reportado por GREGÓRIO DE NAZIANZO, Orat. XLIII,48 (C. MORESCHINI, 1082).
26
J. PLAGNIEUX, Saint Grégoire de Nazianze Théologien, Paris 1951, 425. GREGÓRIO DE NAZIANZO,
Orat. XXXVIII,11 (C. MORESCHINI, 888).
27
H.-H. DALMAIS, Un traité de théologie contemplative: le „Commentaire du Pater‟ de saint Maxime le
Confesseur, in Revue d‟ascétique et de mystique 29 (1953) 148, cit. por J.-C. LARCHET, La divinisation de
l‟homme selon saint Maxime le Confesseur, Paris 1996, 59.
28
MÁXIMO CONFESSOR, Ep. 24 (PG XCI, 609). ID., Pater: “A obra do Conselho divino consiste na
divinização da nossa natureza” (PG XC, 873D).
29
IRENEU, Adv. haer. IV,14,1 (A. ROUSSEAU, 538).
30
IRENEU, Adv. haer. IV,14,1: “ante omnem conditionem glorificabat Verbum Patrem suum” (A. ROUSSEAU,
538).
31
IRENEU, Adv. haer. IV,14,1: “haec enim gloria hominis, perseverare ac permanere in Dei servitute”. (A.
ROUSSEAU, 540).
32
IRENEU, Adv. haer. IV,14,1 (ibid.).
33
Ao contrário do que pensava o platonismo e suas derivantes, a alma não é humana não é de essência divina,
mas pode vir a ser divina “participando” progressivamente de Deus que se dá ao homem.
34
Cf. IRENEU, Adv. haer. IV,14,2 (A. ROUSSEAU, 542-544). Antes de Ireneu, nem o Novo Testamento nem
os escritores cristãos conhecem a distinção entre e„kèn e Ðmo…wsij, na exegese de Gn 1,26. Cf. R. M. WILSON,
The Early History of the Exegesis of Gen. 1,26, in Studia Patristica 1, 420-427. Ireneu terá sido influenciado pelos
seus rivais Valentinianos que estabeleciam uma clara distinção entre o significado antropológico dos dois termos.
Clemente Alexandrino refere-se a “alguns dos nossos” que estabeleciam esta distinção entre “imagem” e a
“semelhança”, Strom. II,22,131,6 (SC 38, 133). Orígenes retoma esta distinção (cf. De principiis, III,6; In
Genesim hom. I,13), que Atanásio assim como Greório de Nissa ignoram (cf. Oratio contra gentes, 2).

5
semelhança”35. De facto, é a posse ou não do Espírito que faz a diferença na perspectiva da
“semelhança” na qual o homem deve progredir: “Em todos nós há o Espírito que grita „Abba,
Pai, e modela o homem à semelhança de Deus”36. O Espírito Santo é “o principio activo de
assimilação do homem a Deus37.
A Salvação não consiste no regresso ao passado, num retorno ao nostálgico paraíso,
mas num passo em frente, num progressivo ser assumido no divino: “o homem foi criado no
início à imagem de Deus, para ser totalmente gerado pelo Espírito segundo a decisão, e para
adquirir para si mesmo a semelhança através da observância do mandamento divino, a fim de
que a mesma obra modelada por Deus segundo a natureza, seja filho de Deus e deus pelo
espírito segundo a graça”38.

a) “Sereis como deus” (Gn 3,5). Não é esta promessa do Adversário de Deus e
dos homens o eco de uma aspiração tão profunda e antiga como a
humanidade?
O mundo antigo reagiu perante este anseio seguindo duas grandes
tendências:
- Tanto a poesia como a religião tradicionais aconselhavam homem a
moderar e evitar este desejo desmedido, exortando-o a não “procurar ser
Deus”39, pois “haverá sempre duas raças bem distintas, a dos deuses imortais e a
dos homens que caminham sobre a terra”40;
- Por outro lado, a filosofia41, sobretudo o neoplatonismo e a gnose
hermética, propunham-se dar sequência a este anseio e esperança da
humanidade: “o homem, sendo da raça dos deuses”, tende naturalmente a
participar da sua vida e felicidade, esforçando-se, para tal, por imitar a
divindade42.
O cristianismo não nega ao homem a legitimidade desta aspiração que
radica na sua condição de “imagem de Deus” 43. Apenas faz ver que não é
possível “ser como Deus” sem Deus ou contra Deus. Foi neste sentido que se
interpretou a sedutora tentação do Diabo, que propunha ao primeiro homem

35
IRENEU, Adv. haer. V,6,1 (A. ROUSSEAU, 72).
36
IRENEU, Dem. 5 (A. ROUSSEAU, 90) . Taciano, em Orat. 12, fala de duas espécies de espíritos: “um a que
chamamos alma, outro superior à alma que é imagem e semelhança de Deus” (Th. VON OTTO, VI, 56).
37
Cf. Y. DE ANDIA, Homo vivens, incorruptibilité et divinisation de l‟homme selon Irénée de Lyon, Paris 1986,
70.
38
MÁXIMO CONFESSOR, Amb. Io. 42 (PG XCI, 1345-1347). Este autor concebe três gerações: a primeira
refere-se à criação do homem à imagem de Deus, isto é, a geração física ou natural. Nesta primeira geração, o
homem é já portador de uma vocação divina, a de crescer na semelhança e se tornar filho de Deus pela graça;
Obedecendo aos preceitos de Deus e crescendo na semelhança, o homem opera em si uma nova geração
espiritual, tornando-se um deus por participação; Porém, o homem em vez de operar sempre conforme ao bem
e à vontade de Deus e à sua vocação espiritual, deixou-se seduzir pelas coisas inferiores e viu-se “caído”
numa nova geração carnal, que caracteriza a actual condição da humanidade post-lapsária. Cf. J.-C.
LARCHET, La divinisation, 410.
39
Cf. PÍNDARO, Istm. 5,14.
40
HOMERO, Ilíada, V,441-442. Cf. E. DE PLACES, La religion grecque, 358-359; A.-J. FESTUGIÈRE,
Divinisation du chrétien, in Suplément a la Vie Spirituelle, 1939, 91-92.
41
Já Heraclito considera que o homem é um “deus corpóreo e mortal” Poimandres, 10,25.
42
Cf. E. DES PLACES, La religion grecque. Dieux, cultes, rites et sentiment religieux dans la Grèce antique,
Paris 1969, 320-321.
43
Cf. por ex. MÁXIMO CONFESSOR, segundo J.-C. LARCHET, La divinisation de l‟homme, 630-631.

6
ser igual a Deus, “sem Deus, antes de Deus, e não segundo Deus” 44. O pecado
do homem reside fundamentalmente no orgulho e na philautia de “querer
pertencer-se, recusando ultrapassar-se em Deus”45. A consequência grave do
pecado original não deriva tanto da desobediência a Deus, mas do facto de o
homem deixar de ter fome de Deus e tender para a vida em Deus 46.
Esta aspiração profunda a “ser como Deus” radicava, segundo a filosofia e a mística
gregas, no princípio da suggšneia, isto é, da conatural semelhança do homem com Deus,
princípio que preside a todo o discurso sobre os fins do homem no mundo antigo 47. O homem
é um Deus em miniatura, e Deus um homem superlativo 48. A forma de fazer crescer e
restaurar a suggšneia com o divino passa pelo incremento da Ðmo…wsij “na medida do
possível” (Teeteto 176b). Tal Ðmo…wsij implica o esforço da parte do homem de assimilação,
através do retorno a Deus, do divino que há em si (to h emin qewn).
Tanto a gnoseologia como a teosofia tradicional sustenta que o semelhante só pode ser
conhecido pelo semelhante (tù Ðmo…J tÕ Ómoion)49, havendo uma verdadeira afinidade entre
o mundo humano e o mundo divino e é este parentesco que move o homem à auto-superação
da condição terrena. Esta afinidade entre a parte superior da alma humana e o mundo divino é
condição pressuposta a todo o esforço de elevação intelectual e espiritual50.
Este será também o princípio fundamental da metafísica plotiniana: o natural desejo do
divino exige a imanência do objecto desejado no sujeito desejante51. Esta permanente
tendência da alma para ascender ao mundo inteligível não é senão uma reminiscência da sua
origem divina para a qual tende naturalmente a regressar, após um caminho de purificação e
separação do corpo. Trata-se, afinal, de um itinerário de progressiva separação do mundo
sensível para uma crescente “assimilação a Deus, na medida em que isto é possível”, como diz
Platão52. A alma humana vai, deste modo, recuperando a sua Ðmo…wsij Qeù53, assumindo
cada vez mais a sua natureza divina, graças à crescente visão da realidade divina. Estamos já a
perceber porquê a divinização proposta pelo platonismo foi considerado “o ideal mais sublime
jamais concebido fora do cristianismo”54.
De facto, todo o sistema plotiniano não é senão um itinerário de ascensão místico-
filosófica em direcção a união perfeita com Deus, no termo do qual o homem “se torna deus”
(qeÕn genÒmenon)55. Todavia, uma tal divinização não se realiza verdadeiramente a não ser a
partir do momento em que o homem saiu completamente do seu corpo (Eneades, VI,9,10).
Se a participação no divino só é possível se no homem existe já algo de divino ou e/ou
se o próprio Deus que se dá ao homem, caberá à teologia cristã resolver esta patente aporia

44
MÁXIMO CONFESSOR, Ambigua, (PG XCI, 11560).
45
P. EVDOKIMOV, Les Ages de la vie spirituelle, Paris 1964, 110.
46
Cf. ATANÁSIO, De incarn. Verb. III,11 (SC 199, 201).
47
Cf. ORÍGENES, Contra Celsum, I,8, onde Celso admite “existir no homem uma parte superior ao terrestre,
aparentada a Deus” e que “a alma tende com todas as suas forças para aquilo que lhe é aparentado” (SC 132, 96);
Cf. CÍCERO, Tusc. I,32; E. DES PLACES, sungeneia, Paris 1964, 43-102.
48
V. GROSSI, Lineamenti di antropologia patristica, Roma 1083, 29.
49
PLOTINO, II,4,10,3; cf. IV,8,1; VI,9,11.
50
Os filósofos antigos, particularmente Platão, já intuíram que o facto do homem acreditar na divindade,
comprova um certo parentesco divino (Leis X,899d) devido ao parentesco com os deuses o homem é o único dos
seres animados que acredita nos deuses, que lhe constrói altares estátuas” (Protágoras, 322a). Cf. PLOTINO,
Eneades, V,1,3,1: “porque a alma é algo de divino, sobe com confiança até Deus”; Cf. JUSTINO, Diál. 4 (Th.
VON OTTO, II, 22).
51
Cf. R. ARNOU, Il desiderio di Dio nella filosofia di Plotino, Milão 1997, 121.
52
PLATÃO, Teeteto, 176B.
53
PLATÃO, Teeteto 176B; Leis IV,716. Outros textos em H. MERKI, OMOIWSIS QEW, Friburgo 1952.
54
J. GROSS, La divinisation du chrétien, 49.
55
PLOTINO, Eneades, VI,9,9.

7
entre o agnostos Theos (teologia apofática: “é preciso ser Deus para compreender Deus”, dirá
Fílon56) e o Deus imanente, revelado e incarnado na própria condição humana (Theos
Anthropos)57.
Será o mistério da incarnação a tornar possível o que a mística gnóstica perseguia,
superando os limites desta última. Na verdade, a divinização pagã aparece fundamentalmente
como uma reminiscência ou percurso de retorno da alma que se recorda da sua origem
divina. Trata-se, além disso, de um movimento operado ao nível do noàj (gnose) ou em
termos rituais (misticismo) e, por isso mesmo, de uma deificação “na medida do possível”58 e
parcial (de uma parte do homem). De facto, a distância que separa a divindade da humanidade
nunca é anulada. Nunca um pagão ousou ordenar “torna-te Deus!”. Nem nunca um pagão
poderia conceber um “Deus feito homem”, pois “os deuses amam os homens apenas na
medida em que nós somos da sua mesma raça”59.
Estamos, como bem diz R. Arnou, perante “um naturalismo integral” 60 em que não há
espaço para a intervenção gratuita de Deus61. O platónico Apuleio traduz bem o pensamento
antigo ao recordar que “Deus não deve estar sujeito a qualquer sentimento temporal de ódio
ou amor; nele não pode haver nem ira nem misericórdia... mas está livre de toda a paixão,
não podendo estar sujeito à dor, nem alegrar-se”62.
Um tal conceito de Deus, qual “motor imóvel” que não se move nem comove, não
poderia conferir qualquer valor ao sofrimento e paixão dos homens, ao contrário do Deus de
Jesus Cristo: “deixai que eu imite a paixão do meu Deus”, suplica S. Inácio aos cristãos de
Roma63
Deus não pode, sobretudo, estar sujeito à morte. Desde a mais primitiva teologia grega,
a característica divina, por excelência é a imortalidade. QeÒj e ¢q£natoj acabam por ser
praticamente sinónimos64 designativos da qualidade distintiva dos deuses. Os deuses e os
homens permanecem separados por este abismo fundamental do sofrimento e da morte65.
Mesmo assim, o homem nunca deixou de acreditar que este “abismo” pode ser
transposto, através da purificação e assimilação a Deus. Este sonho da apothéosis foi, sem
dúvida, uma das grandes aspirações do homem grego. De facto, a beatitude da imortalidade só
é possível através duma divinização, isto é, da assimilação a Deus66. Para aceder à
imortalidade é preciso primeiro ser divino, já que esse é um privilégio reservado aos deuses.

56
Cit. por M. LOT-BORODINE, La déification de l‟homme, Paris 1970, 23. IRENEU, como todos os outros
Padres confirmarão que “o homem por si mesmo não pode ver Deus”, Adv. haer., 20,5 (A. ROUSSEAU, 638).
57
IRENEU, Adv. haer.. IV,6,4: “quoniam Deum scire nemo potest nisi deo docente, hoc est sine Deo non
cognosci Deum” (A. ROUSSEAU, 446).
58
A qeopo…hsij platónica e neoplatónica refere-se, portanto, não ao homem na sua totalidade psico-somática e
concreta. Além disso, enquanto resultante sobretudo do mérito e esforço humano, a união extática com a
divindade apresenta-se como uma possibilidade reservada às elites intelectuais, negando a via da deificação às
gentes de vil condição. E isto porque, todo o processo se centra na confiança excessiva nas forças do noàj, o
sujeito operante principal que, em todo iter salvífico não deixa grande espaço para a intervenção divina.
59
DIÃO CRISÓSTOMO, Disc. Olimp. 30,26. Clemente Alexandrino dirá que Deus ama os homens porque eles,
em si mesmo e enquanto criados à imagem de Deus, são amáveis, Pedagogo, I,3,8,1 (SC 70, 124).
60
R. ARNOU, Platonisme des Pères, in DTC XII,2282.
61
Cf. A.-J. FESTUGIÈRE, L‟ideale, 53.
62
APULEIO, De deo Socratis, 12.
63
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Rom. 6 (J.B. LIGHTFOOT, II/2, 220).
64
J. GROSS, La divinisation du chrétien, 6. Já a filosofia platónica estabelecera o dogma de que só os seres
não originados nem produzidos (agennhtoj) são por natureza incorruptíveis (¥fqartoj) e imortais (¢q£natoj).
O mesmo princípio irá servir aos autores cristãos para desenvolverem a sua soteriologia centrada na iniciativa
divina. O homem acede à participação na vida divina através da gnîsij de Deus revelado por Jesus Cristo, e pela
p…stij. Por isso Clemente Romano chama os ensinamentos de Cristo uma “gnose imortal” (¢q£natoj gnîsij)64.
65
PÍNDARO, Nem. VI,1-7. Cf. A.-J. FESTUGIÈRE, L‟idéale religieux des grecs et l‟Évangile, Paris 1981, 38.
66
Cf. GREGÓRIO DE NISSA, In Psalmos, 1.12 (PG XLIV, 433C, 557C); In Cant. Cant. hom. IX (PG XLIV,
960).

8
“A ¢qanas…a supõe a qeopo…hsij”67, pois só mudando de condição o homem se pode
imortalizar.
“Deus criou o homem para a incorruptibilidade e o fez imagem da sua própria
natureza” (Óti Ð qeÕj œktisen tÕn ¥nqrwpon ™p' ¢fqars…v kaˆ e„kÒna tÁj „d…aj
¢ŽdiÒthtoj ™po…hsen aÙtÒn) (Sb 2,23). O homem foi feito para a imortalidade, na medida
em que ele participa da natureza de Deus e, portanto, da sua eternidade. A imortalidade que no
Génesis era consequência da obediência ao preceito de não comer da árvore do “conhecimento
do bem e do mal”, no livro da Sabedoria é o “salário de uma vida santa e recompensa das
almas irrepreensíveis” (2,22).
A imortalidade está assim inscrita na própria condição do homem como criatura à
imagem e semelhança do seu Criador, e aparece mesmo como a finalidade última da própria
criação do homem feito para ¢fqars…v. Para realizar uma tal vocação, o homem tem, no
entanto, de colaborar e progredir na aquisição da sabedoria e a observância das suas leis que
são “garantia de incorruptibilidade e a incorruptibilidade aproxima de Deus” (Sb 6, 17-19)68.
Os Padres, assumindo o dogma há muito adquirido que faz da “aghenesia” e
incorruptibilidade atributos exclusivos de Deus69, concordam que a imortalidade e
incorruptibilidade do homem consiste na participação da natureza divina. Só através da
qeopo…hsij o homem pode aceder à imortalidade dos deuses70.
Esta odeia fará parte da teologia incipiente dos Apologistas que, como Taciano,
sustentam que o homem foi “feito à imagem da imortalidade, para que, já que a
incorruptibilidade é própria de Deus, participando o homem da porção de Deus, possua a
imortalidade”71.
Teófilo de Antioquia, o primeiro autor cristão a assumir a o vocabulário da
divinização, não receia em afirmar que o homem foi criado para “crescer e se aperfeiçoar até
chegar a ser Deus (qeÒj ¢nadeicqe…j), subir ao céu e alcançar a imortalidade”72: “se o homem
se orientar para as realidades da imortalidade, observando os preceitos de Deus, receberá como
recompensa a imortalidade e tronar-se-á Deus”73.
S. Paulo, pioneiro na arte de bem missionar todos os povos e culturas, tira partido desta
consciência da suggšneia do homem com a divindade para, a partir dum conceito comum
enunciado nos versos de Arato (Act 17,28: toà g¦r kaˆ gšnoj ™smšn= ipsius enim et genus
sumus), dar a conhecer o verdadeiro Deus de Jesus Cristo. A verdade é que, mais do que um
consenso de ideias, o exórdio do Apóstolo prepara uma novidade absoluta na história da
doutrina da deificação que compreende, a partir de agora, a mediação de Cristo e implica a

67
A.-J. FESTUGIÈRE, L‟idéale religieux des grecs et l‟Évangile, 39.
68
Por outro lado, a literatura sapiencial assume e adapta o axioma já conhecido: “a imortalidade reside no
parentesco com a Sabedoria” (8,17: Óti ¢qanas…a ™stˆn ™n suggene…v sof…aj). Os Padres gregos irão
desenvolver esta relação entre a imortalidade e a gnose. O homem acede à participação na vida divina através da
gnîsij e pela p…stij: Já na Didachê, X,2: kaˆ Øpr tÁj gnèsewj kaˆ p…stewj kaˆ ¢qanas…aj. Por isso
Clemente Romano chama os ensinamentos de Cristo uma “gnose imortal” (36,2: ¢q£natoj gnîsij, J.B.
LIGHTFOOT, I/2, 112).
69
Cf. ATENÁGORAS, Legat. IV (Th. VON OTTO, VII,20); TEÓFILO, Ad Autol. II,8 (SC 20,114). Atenágoras,
procurará, em contrapartida, conciliar a doutrina grega da imortalidade da alma com o dogma cristão da
ressurreição dos corpos. Assim, o homem possui, no que se refere à alma, desde o seu nascimento e por
disposição divina, a perpetuidade imutável; quanto ao corpo, receberá a incorruptibilidade por uma
transformação”, cf. Resur. 16 Th. VON OTTO, VII, 252).
70
O livro da Sabedoria formula já este princípio: incorruptela vero proximum facit esse Deo” (6,19).
71
TACIANO, Oratio ad graecos, 7 (Th. VON OTTO, VI, 30). Em Taciano encontramos já a associação da
incorruptibilidade ao conhecimento de Deus, numa relação causa-efeito. Esta é, no entanto condicionada pela
inhabitação do Esp. Santo (cf. 15)
72
TEÓFILO, Ad autol. II,24 (SC 20, 158).
73
TEÓFILO, Ad autol. II,27: †na e„ ·šyV ™pˆ t¦ tÁj ¢qanas…aj thr»saj t¾n ™ntol¾n toà qeoà, misqÕn
kom…shtai par' aÙtoà t¾n ¢qanas…an kaˆ gšnhtai qeÒj (SC 20, 164).

9
totalidade do homem. Na Segunda Carta de S. Pedro, reafirma-se a vocação do cristão a
“participar na natureza divina” (divinae consortes naturae, 1,4), como um dom gratuito de
Deus em Cristo, que requer, porém, o esforço de aperfeiçoamento moral da parte do homem.
E não pensemos tratar-se de uma expressão enfática ou metafórica. Este passo
escriturístico será frequentemente evocado para mostrar que Deus se comunica
verdadeiramente e pode ser realmente alcançado pelo homem na união-visão74. A deificação é
real, isto é, a vida que o Espírito nos comunica designa uma presença ontológica do próprio
Deus” concedida por Sua pura graça75.
Também Clemente Alexandrino assume a continuidade com o ideal helénico da
divinização, na medida em que esta está ou é disposta em acordo com as Escrituras cristãs.
Retomando a tese de Platão segundo o qual “o fim último do felicidade é a assimilação a
Deus, na medida em que tal é possível” 76, o Alexandrino apresenta o Lógos-Cristo como via e
resposta para a longa e laboriosa procura e aspiração da humanidade de aceder à condição
divina77. O sumo bem do homem consiste precisamente na assimilação o mais perfeita
possível a Deus, através da imitação da Sua perfeição78 e da didaskalia ou gnose79. Se a
soteriologia de Clemente culmina na contemplação do Senhor na eternidade, a condição de
possibilidade desta visão está já presente na criação do homem racional à imagem de Deus80.
Embora Clemente, e os Padres gregos em geral, testemunhos paradigmáticos da
primeira inculturação da fé, continuem devedores da doutrina da linguagem grega da qšwsij,
esta é, no entanto, radicalmente reformulada a partir da matriz bíblica. Assim, em vez da
doutrina da suggšneia vão falar de “imagem” (e„kèn) e semelhança Ðmo…wsij81, e
reelaboram uma antropologia totalmente renovada, ainda que sob a roupagem terminológica
tradicional82.
Na verdade, segundo a antropologia bíblica, o homem não é a sua alma, mas uma alma
incarnada. É uma sarx intrinsecamente frágil e perecível como a flor do campo. Em contraste
com o homem auto-suficiente grego, o homem bíblico define-se precisamente enquanto frágil
e ciente de que a sua existência e consistência dependem totalmente de Deus.

74
Cf. ORÍGENES, In Lev. Hom. IV,4 (SC 286, 170); ID., In Io. Com. XX, 176 (SC 290, 244); V. LOSSKY, La
teologia mistica della Chiesa d‟Oriente. Bologna 1967, 61-62.
75
O. CLEMENT, La Iglesia Ortodoxa, 72.
76
CLEMENTE ALEXANDRINO, Strom. II,19,100,3 (SC 38, 112); cf. Ibid. II,9,45,7; 18,80,5; VI,12,104, 2 (70,
97). Cf. PLATÃO, Teeteto, 176 a-b.
77
Cf. CLEMENTE ALEXANDRINO, Protr. XI,117 (SC 2bis, 185).
78
CLEMENTE ALEXANDRINO, Strom. II, 19: “A assimilação a Deus com vista a tornar-se tão justo e
santo quanto possível, tal é o fim da fé” (SC 38, 109).
79
CLEMENTE ALEXANDRINO, Protr.XI,114,4 (SC 2bis, 183).
80
Mas não é tanto pela racionalidade, mas pelo cultivo das virtudes que a alma se torna semelhante a Deus e o
homem será divinizado, cf. Strom VII,3 (PG IX, 411). Ao contrário do que pensam os gnósticos, Clemente sabe
que a alma não foi criada perfeita, mas com a capacidade de vir a sê-lo, através da prática das virtudes, via de
progressiva assimilação a Deus até se tornar apta para a perfeita contemplação
81
ORÍGENES, De princ. I,1,7; III,1,13; III,6,1 (PG XI, 126-127; 273; 333; 356). Cf. A.-J. FESTUGIÈRE,
Divinisation du chrétien, 96. A imagem- e„kèn refere-se sempre a Deus que pode ser visto como modelo directo
ou indirecto: é modelo directo do Lógos, enquanto o homem é “segundo a imagem” de Deus, isto é, à imagem do
Verbo. Enquanto Clemente e toda a tradição Alexandrina considera que só o noàj humano é imagem do Lógos
divino, Ireneu defende que é o homem corporal que é imagem do Lógos incarnado.
82
Se os Padres associam o e„kèn a uma semelhança analógica entre o lÒgoj-noàj humano e divino, quanto à
Ðmo…wsij designa, segundo os mesmos, uma semelhança mais perfeita e um estado de perfeição em potência que
deve ser actualizado através do esforço humano na imitação de Deus, possível pela graça divina depositada no
homem. O pecado não apagou a “imagem”, mas fez que se perdesse a “semelhança” superior conferida pela
graça, a qual, a partir de agora, só é recuperável pelo mesmo Lógos que originariamente a concedera ao homem: e
é neste contexto que se insere a economia salvífica da incarnação. A divinisação consiste nesta restauração da
Ðmo…wsij através da Incarnação do Verbo.

10
b) Imagem e Semelhança

Ainda que não exista um consensus patrum na exegese de Gn 1,26-27; e


83
2,7 , o acordo dos autores antigos é unânime em ver nesse passo bíblico o
fundamento de toda a antropologia e ponto de partida da soteriologia cristã.
Acreditar que o homem foi criado “à imagem e semelhança de Deus”
significa defini-lo para além da sua humanidade, para lá daquilo que ele é: não
foi feito para permanecer ou perecer na infirmitas da caro, nem para existir
encerrado sobre si mesmo, mas para crescer e alcançar a condição próxima do
seu Criador. Segundo Taciano, o Lógos celeste “criou o homem à semelhança
do Pai que O gerara como imagem da imortalidade, para que, do mesmo modo
que a imortalidade é própria de Deus, assim também o homem, participando de
Deus, acedesse à imortalidade”84. A imortalidade é, portanto resultado da
“semelhança divina” já inscrita na criatura humana.
O homem, a obra prima da criação, não é então definido naquilo que é
(perecível, mutável, mortal...), mas naquilo que é chamado e virá a ser: uma
caro capx Dei, dirá Ireneu. S. Máximo Confessor, que assinala o apogeu da
doutrina da divinização, não se cansa de sublinhar o destino admirável da
humanidade integral: “Pela natureza, o homem, corpo e alma, é menos que um
homem; pela graça torna-se Deus, na sua totalidade, na sua alma e no seu
corpo”85.
“O homem enquanto homem foi feito para a familiaridade com Deus” 86,
ou segundo a linguagem de S. Ireneu, para “participar da gloria de Deus” 87. Ab
initio fomos estabelecidos numa economia de comunhão estreita com o divino,
ao participar do Lógos que faz do homem um ser logikos, conforme ao projecto
criador88. Ora o que foi concebido pelo Pai, é realizado no Filho e levado à

83
As duas narrações referem-se ao mesmo objecto? Os gnósticos respondem: não, o anthropos original (Gn 1,26)
era de condição divina; mas o homem terreno (Gn 2,7) foi configurado segundo o modelo anterior. Temos,
portanto, dois homens (um pneumático e outro material). Enquanto que para Ireneu e Tertuliano, mais próximos
da concepção bíblica e da sensibilidade asiática, a “imagem” se refere ao homem todo (alma e corpo), a maioria
dos Padres gregos, incluindo Hilário de Poitier, distinguem, na senda de Fílon, uma dupla criação: a do homem à
imagem eikon Qeou (homem inteligível, incorporal, incorruptível) e a formação do homem modelado da terra
“segundo a imagem da imagem” (kat'e„kÒna (homem sensível, mortal). Neste, o nouj ou sopro divino é apenas
uma imitação (m…mhma) e reflexo da verdadeira imagem não formada do Lógos. Pelo facto de ser obra de Deus,
resultante do seu sopro e contacto, a alma humana contém algo de divino que a habilita para o conhecimento de
Deus. Ireneu coloca-se numa posição claramente critica face a tal interpretação: as duas narrações do Génesis
referem-se a uma mesma criação: Deus criou o homem modelando-o; Gn 1,26 e Gn 2,27 evocam dois aspectos
unidos numa mesma realidade. O homem nunca foi irmão dos anjos (numa pretensa economia primitiva, como
pensa a exegese alexandrina). Precisamente nisto reside a dignidade extraordinária do homem: o próprio Deus,
“com as suas mãos”, o plasmou à sua imagem. Em nenhuma outra criatura resplandece tanto a grandeza do seu
amor, pois o homem que procede do pó da terra está destinado ao que há de mais elevado.
84
TACIANO, Orat. 7 (Th. VON OTTO, VI, 30).
85
MÁXIMO CONFESSOR, Ambigua, XXVIII,64 (PG XCI, 1269).
86
CLEMENTE ALEXANDRINO, Protr. X,100,2 (SC 2bis, 168).
87
IRENEU, Adv. haer. IV,14,1-2. (A. ROUSSEAU, 542).
88
CLEMENTE ALEXANDRINO, Protr. X,98,2-4 (SC 2bis, 166). Ideia fundamental em Cirilo de Alexandria,
cf. W.J. BURGHARDT, The Image of God in Man according to Cyril of Alexandria, Woodstock 1957, 25.

11
plenitude pelo Espírito89. Por isso, os Padres gregos não receiam chamar ao
homem o “deus criado”, uma verdadeira “hipóstase terrestre de Deus”90.
Adão, epónimo místico de toda a raça humana e imagem criada do Lógos,
naturalmente deiforme91, simboliza, no paraíso terrestre, o destino definitivo da
humanidade: Vindas de Deus, todas as coisas regressarão a Deus, causa primeira
e última de todo o ser criado.
Este é, portanto, o fim último tanto da criação como da incarnação, este o
desígnio amoroso do Criador92: Deus criou-nos “à Sua imagem e semelhança”,
recorda S. Atanásio, “para nos fazer partícipes da Sua imagem que é Jesus
Cristo. De modo que [os homens] compreendendo a imagem... conhecendo o
seu Criador, vivam uma vida realmente feliz e bem-aventurada”93.
Esta “imagem” projectada no primeiro Adão94 realizou-se plenamente e
historicamente apenas no Novo Adão que é Cristo (Cl 1,15; 2Cor 4,4), a imagem
perfeita e concreta do Deus invisível, a imagem “igual a Deus” (Fil 2,6) de tal
forma que “quem o vê, vê o Pai” (Jo 14,9. 12,45). O Lógos é ao mesmo tempo
agente da criação e o obreiro do seu regresso a Deus.
De facto só o Filho é eŠkon toà Qeoà, imagem natural do Pai (segundo Col 1,15:
imago Dei invisibilis). Quanto ao homem, ele é kat/ eikÒna ou “imagem da Imagem”. Cristo
é “a figura do que nós somos” e viremos a ser (kaq/ Ðmo…wsin) e pelo qual “nos tornamos
divinos”95. Sendo a Imagem do Pai invisível, tornando-o visível na Incarnação, o Filho é a
verdadeira imagem do homem plasmado segundo o tipo do Lógos incarnado. Deus fez o
89
Cf. M. LOT-BORODINE, La déification, 41.
90
Cf. M. LOT-BORODINE, La déification, 43; P. EVDOKÌMOV, L‟ortodossia, Bologna 1965, 98. “um deus
criado, um deus segundo a graça”.
91
Enquanto a teologia latina, na senda de Agostinho, considera o estado de justiça do primeiro homem um “dom
acrescentado” à maneira de um privilégio gratuito de Deus; os gregos vêem nessa condição não um dom
adicionado, mas substancial, a essência da própria natureza humana, na medida em que é propriedade inalienável
da natureza humana e corresponde ao querer profundo e primeiro do criador. Por isso, no primeiro caso, o homem
caído desce abaixo do status naturae, privado do dom que lhe fora concedido por adição; no segundo caso, o
homem perde a sua verdadeira natureza, as prerrogativas da deificação. Além disso, a culpa que no sistema
agostiniano e posterior tradição ocidental parece prevista e necessária na perspectiva da Incarnação, nunca
será considerada, na tradição oriental, uma felix culpa, pois a Incarnação não é concebida em função da
Redenção, mas da deificação. Para S. Máximo Confessor, o Verbo teria incarnado, mesmo sem o pecado de
Adão, mas não se teria sujeitado à morte sem esse pecado. Só a cruz é exigida e consequência do pecado original
que nenhum Padre da Igreja, grego ou latino, alguma vez negou.
92
Cf. CIRILO DE ALEXANDRIA, Com. in Io. I,9 (PG LXXIII, 145).
93
ATANÁSIO, De incarn. Verb. III,11 (SC 199, 304).
94
O homem criado por Deus “à sua imagem e semelhança” (Gn 1,26) remete-nos para as narrações mitológicas
do médio Oriente, onde se afirma que Deus criou o homem a partir de um modelo ou imagem previamente
concebido. Assim, a deusa Aruru, para criar Enkidu, tomou um pedaço de argila e traçou nela um esboço,
concebido como um zikru, uma imagem do deus Anu (Guilgamesh, I,2,30). Também Ea criou Atarhasis fazendo
um modelo de homem, cf. H. GRESSMANN, Altorientalische Texte zum AT, 1926, 205. É neste mesmo contexto
cultural que se desenvolveu a ideia de que o rei fosse a imagem de uma divindade, cf. E.-P. DION, Rassemblance
et image de Dieu, I: Egypte et Mesopotamie, DBS X (1981) 370. Esta ideia, porém, apenas vaga e sem
consequências antropológicas, ganha na tradição bíblica a consistência definitiva sobre a natureza e destino do
homem, como hadar-majestade do aspecto externo de Deus, como figura esplêndida do Criador; ou ainda como
kebod-dÒxa, isto é, gravidade e potência interior que se manifesta por irradiação (cf. Sl 8,6: “Fizeste-o pouco
inferior a um deus, coroando-o de glória e beleza”.
95
GREGÓRIO DE NAZIANZO, Orat. XXXVII,2 (C. MORESCHINI, 858). Temos assim o retomar do
esquema filoniano: Deus-Filho(imagem)-Homem(imagem da imagem), FÍLON, Leg. Allleg. III,96. Cf. A.
ORBE, La teologia dei secoli II e III. Il confronto della Grande Chiesa com lo gnosicismo, I, Roma 1995, 268-
273.

12
homem à Sua imagem, tornando-o participante do Seu próprio Verbo, sendo como que a
sombra do Verbo. Na carne humana realiza-se, assim, a imagem de Deus ou do Filho, pois
“quanto ao homem, Deus modelou-o com suas próprias mãos... imprimiu os seus próprios
traços à sua obra, para que, mesmo o que nele é visível fosse deiforme: porque foi depois de
ser modelado à imagem de Deus que o homem foi colocado na terra. Por outro lado, para que
o homem se tornasse vivente „Deus soprou sobre a sua face um sopro de vida‟ de modo que,
tanto segundo o sopro como segundo a obra modelada o homem fosse semelhante a Deus”96.
É, portanto, o homem todo e inteiro, no corpo, alma e Espírito que é imagem do Lógos
e chamado a realizar a “semelhança” com Deus. O corpo é, deste modo já divinizado pela
imagem de Deus Incarnado que ab initio leva em si e por ser chamado in fine a participar de
Deus.
Em resposta ao conceito desencarnada de divinização desenvolvido pelas escolas
gnósticas97, Ireneu não se cansa de afirmar que é na sua totalidade concreta de corpo e alma
que o homem é imagem de Deus98. Ele não é uma alma ligada por infortúnio a um corpo, mas
um corpo e uma alma capax Dei porque “imagem de Deus” e animados pelo Espírito99. Em
evidente contraste com o gnosticismo, e mesmo com a tradição ortodoxa alexandrina 100, o
bispo de Lyon sustenta que é a extrema indigência do homem plasmado que é capax gloriae
Patris, isto é, capaz de acolher a própria vida de Deus, graças à efusão do Espírito que torna o
homem espiritual e perfeito, isto é, “semelhante a Deus”. Se falta à alma este Espírito o
homem permanece carnal e imperfeito, “mantendo a imagem na carne, mas não possuindo a
semelhança no Espírito”, pois é a mistura e união do corpo, alma e espírito que fazem o
homem perfeito101.
Retomando a distinção gnóstica entre a “imagem” e a “semelhança”,
Ireneu como Clemente102, distanciam-se da falsa gnose que considerava a
Ðmo…wsij como uma partícula consubstancial ao divino e, como tal, parte da

96
IRENEU, Dem. 11 (A. ROUSSEAU, 98).
97
Cf. IRENEU, Adv. haer. I,21,5; I,18,2 (A. ROUSSEAU, 304, 276). Também o gnosticismo concebe a
salvação como uma divinização ou recuperação da condição perdida da parte do homem espiritual... O homem é
obra não do Deus bom supremo, mas dum Eon inferior, o Demiurgo que criou o homem “à imagem e
semelhança”. Enquanto o homem hylico-material foi formado “segundo a imagem” (kat'e„kÒna), “próximo de
Deus, mas não consubstancial” o homem psyquico, resultante do sopro divino, foi formado “segundo a
semelhança” (kat' Ðmo…wsin IRENEU I,5,5). Há ainda uma terceira categoria de homens nos quais um deus
inferior depositou uma semente pneumática que os torna capazes da ciência perfeita. Só estes últimos são
incorruptíveis por natureza e têm a salvação garantida.
98
Homem completo é um composto de corpo, alma (sopro de vida) e espírito (espírito vivificante que torna o
homem espiritual). Pelo contrário, os alexandrinos afastam-se do realismo bíblico de Ireneu, excluindo o corpo da
“imagem”, o que terá graves consequências para a antropologia posterior, cf. CLEMENTE ALEXANDRINO,
Protr. 98,4 (SC 2bis, 166); Strom. II,102,6 (SC 38,113).
99
O homem completo não é só o espírito (pneumático), nem só o corpo (hylico), nem só a alma (psíquico), mas o
“composto e mistura de todas estas coisas é que constitui o homem”, IRENEU, Adv. haer. V,6,1. Ireneu, Adv.
haer. V,8,2: “Os espíritos sem corpo, nunca serão homens espirituais, mas o que constitui o homem espiritual,
recebendo o Espírito de Deus, é a nossa realidade inteira, isto é, o composto alma-corpo” (A. ROUSSEAU, 96).
“A imagem -confirma S. Gregório de Nissa- não se encontra numa parte da natureza (do homem), mas é a
natureza, na sua totalidade, que é imagem de Deus”, De creatione hominis, 16 (PG XLIV,185).
100
Assumindo o cristianismo e, de modo particular Ireneu, a bondade e integridade somática do homem,
punha-se a questão de como entender a “imagem e semelhança”? Para Clemente, Orígenes e os alexandrinos em
geral, a imagem reside não no homem corporal mas na parte superior da alma (nous). Ireneu responde que é o
homem plasmado, na sua tríplice dimensão, corpo-alma-espírito que é “imagem e semelhança” de Deus. O
Criador não manifestou, porém, logo de uma vez o significado pleno do mistério que se tinha realizado. Era
necessário que o Verbo se fizesse carne para entender tal evento, quando a imagem apareceu em todo o seu
esplendor e realidade.
101
IRENEU, Adv. haer. V,6,1 (A. ROUSSEAU, 78).
102
Cf. CLEMENTE ALEXANDRINO, Protr. XII,122,4 (SC 2bis, 192-193).

13
natureza humana. Para os teólogos da “grande Igreja”, o homem nunca foi nem
uma parcela de Deus nem uma degradação do divino, mas é imagem da própria
natureza de Deus e a sua Ðmo…wsij resulta dum dom de Deus, dom que se
identifica com o Espírito Santo dado à criatura humana para o seu crescimento
divinizante.
Por outro lado, a “imagem de Deus” não é uma qualidade acrescentada à
humanidade, mas é constitutiva da própria natureza humana que só é na medida
em que recebe de Deus o ser. De facto, a noção de “imagem” designa a
possibilidade inscrita no próprio coração do homem de viver e crescer na
comunhão com o seu Criador e é esta comunhão que é para ele fonte de vida em
abundância103.
A religião bíblica e cristã não resulta da projecção de necessidades
humanas não satisfeitas (não é o homem que cria uma ideia antropomórfica de
Deus, segundo a sua imagem), mas radica na própria origem e destino
transcendente do homem (é a ideia de homem que é teomórfica). “A natureza
antropo-cósmica foi criada com um dinamismo de assimilação à glória
divina”104.
Assim se compreende que o homem tenda, por natureza (i. é, como
imagem de Deus), para uma comunhão cada vez mais próxima e íntima com a
sua origem e fim últimos105.
Entre a criação do homem à imagem e semelhança de Deus e a visão de
Deus desenvolve-se toda a economia salutis, como uma história de crescimento
e progresso para o Pai. Neste processo está envolvido o homem todo, assim
como a Trindade toda: o Pai que criou “com suas mãos”, salva o homem
também na comunhão da Trindade106.
No fim, garante Ireneu, “Deus será glorificado na obra por Ele
modelada, quando a tiver tornado conforme e semelhante ao seu Filho. Pois foi
pelas Mãos do Pai, isto é, pelo Filho e o Espírito que o homem inteiro, e não
uma parte, foi criado secundum similitudinem Dei”107. É homem todo, repetirá
Máximo Confessor, que é divinizado, alma e corpo, pois não existe homem a
não ser num corpo108.

103
“O coração do homem foi criado como um imenso cofre, tão amplo capaz de conter ao próprio Deus”,
NICOLAU CABASILAS, cit. por O. CLEMENT, La Iglesia ortodoxa, 54.
104
O. CLEMENT, La Iglesia ortodoxa, 53-54.
105
Segundo a tradição oriental, a noção de “graça” identifica-se com a ideia de “participação” e, por isso mesmo,
natureza e graça nunca se opõem mas supõem-se mutuamente: é a graça que faz o homem ser o que ele é na sua
própria natureza, isto é, imagem de Deus. “A imagem é a natureza humana”, escreve Gregório de Nissa, Dial. de
anima et resurrectione (PG XLVI,160C). Ao contrário da tradição ocidental que, a partir da polémica pelagiana,
irá demorar-se em complexos debates que bipolarizavam e questão antropológica opondo a natureza à graça, o
natural ao sobrenatural, o oriente não conheceu tais polémicas e não concebeu nunca uma natureza pura nem a
oposição graça/liberdade. Na verdade, a criatura (natureza) não possui senão o que recebeu. É o tema da
sinergia (colaboração entre o livre arbítrio e a graça divina) desenvolvido pela patrística grega. Cf. M.LOT-
BORODINE, La déification, 216-222; J. MEYENDORFF, Le Christ dan la théologie byzantine, Paris 1969, 152.
106
Cf. IRENEU, Adv. haer. IV,20,6 (SC 100, 644).
107
IRENEU, Adv. haer. V,6,1 (A. ROUSSEAU, 76).
108
Cf. J.-C. LARCHET, La divinisation, 638-640.

14
Gregório de Nissa, no seu Grande discurso catequético, assinala o ponto
de chegada equilibrado da reflexão patrística sobre a doutrina da divinização 109.
Na base do seu pensamento está a doutrina da criação do homem à imagem de
Deus110. Criado em tudo “semelhante à divindade”, ele é já uma “cópia” e
“imitação da natureza divina” (m…mhma tÁj qe…aj fÚsewj)111. Precisamente
nesta sua parentela com Deus (suggenj prÕj tÕ qe‹on) radica a vocação do
homem para os bens divinos:
“Se o homem é chamado à vida para tomar parte nos bens de Deus, ele é
necessariamente apto, pela sua própria constituição, para participar destes
bens... O homem criado para gozar das vantagens divinas, devia ter uma
certa afinidade de natureza com o objecto do qual participa. Por isso ele é
dotado de vida, razão e sabedoria, e de todos os outros bens
verdadeiramente dignos da divindade, a fim de que cada um destes o faça
desejar o que lhe é aparentado”112.
Para além dos evidentes ecos de temas platónicos popularizados no
espaço mental em que os Padres gregos elaboram o seu pensamento, não há
dúvida que o misticismo de Gregório se serve apenas da cultura helénica para
exprimir a o significado da bem-aventurança evangélica. A deiformidade
original da pessoa constitui a raiz da futura divinização:
“Não caiais no desespero, pensando que não podereis contemplar aquele
que procurais. Pois vós levais em vós mesmos já, numa certa medida, uma
aptidão para ver Deus, porque, desde o início, Aquele que vos criou fez
deste bem imenso uma parte da vossa própria natureza, do mesmo modo
que se imprimem na cera os traços dum carimbo”113.
A imagem, constitutiva da “natureza” do homem, leva em si impressa
todas as propriedades do seu modelo que nela se reflecte como a luz do sol num
espelho114. Ela é impressão e expressão do Criador. Não existe, portanto, uma
natureza ou uma liberdade oposta à graça, mas uma humanidade elevada à graça
de Deus que se gloria na Sua imagem. O pecado pode ofuscar esta imagem, mas
nunca apagá-la totalmente.

109
Cf. B. STUDER, Divinizzazione, in DPAC I, 998. De facto, Gregório de Nissa, introduziu os elementos
fundamentais da doutrina da divinização que serão continuados e desenvolvidos pelos outros Capadócios, por
Cirilo Alexandrino, Teodoro de Mopsuestia até às grandes sistematizações de Máximo Confessor e à “mística da
divinização” do Pseudo-Dionísio.
110
Cf. R. LEYS, L‟Image de Dieu chez Saint Grégoire de Nysse, Bruxelas-Paris 1951. Gregório insiste
frequentemente em que o homem “é imagem de Deus” (V,7); é “uma cópia da natureza divina” (XXI,1); “imagem
da potência celeste” (VI,5); “imagem da beleza exemplar” (VI,10); “divinamente ornado de todos os bens”
(VIII,17).
111
GREGÓRIO DE NISSA, Oratio cat. V,10 (PG XLV, 21). Esta “imitação”, assim como a ideia da
“semelhança” implicam, ao mesmo tempo, identidade e diferença, pois, o homem é “semelhante” a Deus
enquanto Sua criatura, isto é sujeito à mutabilidade e, portanto distinto (VIII,3.6; VI,7).
112
GREGÓRIO DE NISSA, Oratio cat. V,4-6 (PG XLV, 21-22).
113
GREGÓRIO DE NISSA, De beat. 6,4 (PG XLIV, 1272).
114
Cf. GREGÓRIO DE NISSA, De virg. XI,5 (PG XLVI, 362).

15
Por outro lado, a imagem não é uma essência estática, mas uma presença
dinâmica, uma forma de ser e de viver que exige um continuado exercício na
prática das virtudes que nos mostram Deus em nós115.
S. Máximo Confessor recolhe todo o legado da tradição para elaborar a
sua admirável antropologia da deificação. Desde a sua formação o homem é
“imagem e semelhança de Deus”, graças à racionalidade e ao dom da
incorruptibilidade e impassibilidade donde nasce todo o ideal de perfeição. A
Adão bastava-lhe transformar a impassibilidade em imutabilidade a fim de se
“tornar Deus pela deificação”116. Porém, Adão afastou-se voluntariamente de
Deus, perdendo a impassibilidade e imortalidade pela sua desobediência117.

2. Cur Deus homo? Incarnação divinizante

À luz desta economia da progressiva deificação salvífica concebida desde


toda a eternidade pelo Pai e iniciado com a criação do homem “à imagem”,
surge a pergunta do porquê da Incarnação. Cur Deus homo?
A resposta está implícita na ampla visão da economia da salvação,
segundo a qual, o Lógos, sendo ao mesmo tempo agente da criação e o obreiro
do seu regresso a Deus (salvação), é Ele “o princípio, o meio e o fim de todos os
tempos. Por isso, se o tempo anterior a Cristo é o da preparação da Incarnação, o
tempo posterior a Cristo é o da divinização do homem” 118.
Para S. Paulo, a reformatio do homem à imagem de Deus consiste no
conhecimento (que inclui prática da virtude e vivência conforme Cristo) da
verdadeira imagem de Deus que é Cristo119. A condição de pecado só poderia
ser superada pela incarnação do Filho de Deus, o “novo Adão” que veio reparar
a obra de morte do primeiro. Os privilégios que todos perdemos no primeiro
Adão foram restaurados sobrabundantemente em Cristo. Para aceder a esta
“nova criação” (2Cor 5,17), o homem deve conformar-se à imagem de Cristo
(Rm 8,29), para viver “para Deus em Cristo” (Rm 6,11). A união com Cristo em
quem “habita corporalmente a plenitude da divindade” garantirá ao homem
“alcançar a sua plenitude” (Col 2,9-10). A salvação ou deificação consiste nesta
participação mística na morte e ressurreição do Deus-Salvador, e o baptismo é a
forma sacramental em que essa participação se actualiza.
Quanto à questão colocada, Cur Deus homo?120, toda a tradição patrística
respondeu com uma fórmula que se repete ininterruptamente como um refrão:

115
Cf. GREGÓRIO DE NISSA, De beat. 6,4 (PG XLIV, 1272).
116
MÁXIMO CONFESSOR, Quaest. Ad Thalass., LX (PG XC, 624D).
117
MÁXIMO CONFESSOR, Quaest. Ad Thalass., XLI (PG XC, 405).
118
J. GROSS, La divinisation du chrétien, 320. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Quaest. Ad Thalass. LX (PG
XC,624D).
119
Cf. G. B. LADNER, The Ideia of Reform. Its Impact on Christian Thought and Action in the Age of the
Fathers, Cambridge 1959, 59.
120
O ocidente viu no mistério da incarnação sobretudo um meio de reparação do pecado, a redenção e o perdão
em que Deus substitui o homem para recuperar o dom da graça e amizade com Deus perdidos na falta de Adão.

16
“Deus fez-se homem para que o homem possa tornar-se Deus”121, “para nos
tornar participantes da natureza divina” (2 Pd 1,4). “A ilimitada filantropia da
bondade divina” assumiu realmente a nossa condição, sem confusão nem
diminuição da sua divina natureza para nos gratificar com a comunhão dessa
mesma natureza122. Esta era a doutrina pregada ao povo cristão por gregos e
latinos: “para fazer deuses aos que eram homens, Aquele que era Deus fez-se
homem”, enuncia Agostinho, num sermão natalício123.
A doutrina da salvação como “comunhão” com Deus, operada na
Incarnação, ocupa um papel nuclear em Ireneu e seus sucessores 124. Em Cristo
“recapitulou-se” todo o destino do homem, e cumpriu-se já em potência. É o
Filho que “in communionem et unitatem Dei hominem ducit”125. Cristo veio para
realizar a commixtio-koinon…a de Deus e do homem na qual se anuncia já a
“visão de Deus”.
Gregório de Nissa repete que Deus “se uniu ao nosso ser, para que, graças à
sua mistura com o divino, o nosso ser se possa tornar divino”126, “para que a
humanidade fosse divinizada”127. O Nisseno retoma, como fará Cirilo de
Alexandria128, a concepção fisicista da divinização que envolve a
“Humanidade”, isto é, a natureza humana na sua totalidade, enquanto realidade
concreta divinizada por Cristo129. Deus uniu-se ao nosso ser “para que este se
torne divino, mediante a comunhão com o divino” (†na tÕ ¹mšteron tÍ prÕj
tÕ qe‹on ™pimix…v gšnhtai qe‹on) 130. Estamos perante uma doutrina orgânica

Para a tradição grega, a Incarnação assinala sobretudo uma re-criação, regeneração ou uma reformatio in melius
de natureza humana, recapitulada e restaurada em Cristo. Cf. 1Cor 15,28. Em Jesus Cristo, a humanidade atinge
uma tal perfeição que nunca seria possível em Adão.
121
IRENEU, Adv. haer. V, pref.: “O Verbo de Deus, Jesus Cristo nosso Senhor... fez-se o que nós somos para
fazer de nós o que Ele é” (A. ROUSSEAU, 14); ATANÁSIO, De inc. Verb. 54,3: “Ele mesmo se fez homem
para que nós sejamos deificados” (SC 199, 458); ID., Ep. Ad Adelphium, 4: o Filho de Deus “fez-se homem a fim
de n‟Ele nos deificar” (PG XXVI,1077A); Cf. GREGÓRIO DE NISSA, Orat. cat. XXV,2 (PG XLV, 65);
CIRILO DE ALEXANDRIA, Rom. hom. IX,3. M. LOT-BORODINE, La déification, 55-56.
122
PSEUDO-DIONÍSIO, Eccl. hier. III,3,11 (PG III, 441AB).
123
AGOSTINHO, Sermo 192,1 (PL XXXVIII, 1012). O autor (Cipriano?) do escrito apologético Quod idola dii
non sint, evoca o mesmo axioma em sentido cristológico: “quod homo est, esse Chistus voluit, ut et homo possit
esse quod Christus est” (11, CSEL III/1, 28). Agostinho e os latinos em geral acentuam mais o facto de a
verdadeira deificação se realizar neste mundo apenas in spe: TERTULIANO, De bapt. 5,7: “imago in effigie,
similitudo in aeternitate censentur” (CCL I, 282); cf. AGOSTINHO, En. in Ps. XLV,14 CCL XXVIII, 503); Ibid.
XLIX,2 (576).
124
Cf. J.I. GONZÁLES FAUS, Carne de Dios. Significado salvador de la Encarnación en la teología de san
Ireneo, Barcelona 1969, 25-43.
125
IRENEU, Adv. haer. IV,13,1 (A. ROUSSEAU, 526); ORÍGENES, Contra Celsum, III,28 (SC 136,68).
126
GREGÓRIO DE NISSA, Hom. in Cant. XXV,2 (PG XLIV, 788).
127
GREGÓRIO DE NISSA, Hom. in Cant. XXXVII,12 (PG XLIV, 126).
128
CIRILO DE ALEXANDRIA, In Io. XVI,6: “N‟Ele, ao aparecer como homem, estávamos todos nós” (PG
LXXIV, 433).
129
Cf. GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunómio III,3 (PG XLV, 609); Cf. Hom. in Cant. IX. Isto não significa
que Gregório não distinga a divinização de toda a humanidade assumida em Cristo, da divinização da cada
indivíduo.
130
GREGÓRIO DE NISSA, Orat. cat. XXV,2 (PG XLV,65).

17
que implica um realismo integral radicado na real comunhão da natureza
humana e divina já consumada no Verbo Incarnado131.
Jesus Cristo fez-se o que nós somos para que nós possamos, por graça, vir a
ser o que Ele é por natureza132. Fica assim estabelecida a necessidade absoluta
da incarnação do Verbo, propter nostram salutem. Salvação que não é mais que
a recuperação da incorruptibilidade através da união íntima com Deus
incarnado133.
Assim sendo, a Incarnação é essencialmente e simultaneamente
divinizante e salvífica, pois tudo o que foi assumido foi redimido e a glorificação
pressupunha a reconciliação134. São conhecidas as palavras de Gregório de
Nazianzo: “Aquilo que não é assumido não é curado e só o que é unido a Deus
é salvo”135.
“A descida do Verbo, concebido pré-eternamente no seio do Pai, a sua
anthroposis, estão no centro da Redenção”, tal como a entende a tradição grega
e é sobre essa base que “se edifica a doutrina da théôsis pela koinônia
restabelecida”136.
Pela sua geração imaculada o Homem-Deus “retribuiu à natureza uma
nova origem, um novo nascimento no Espírito Santo... conferindo à natureza,
pela sua Incarnação, a graça que supera a natureza, isto é, a deificação”137 que
consiste na recuperação da imortalidade.
Para S. Máximo Confessor, Cristo, “desejoso da salvação de todos os
homens e faminto da sua divinização”138, não faz depender esse desejo do
pecado de Adão, mas insere-o no plano mais abrangente de Deus desde a criação
do homem139. Deus, já entes dos séculos, pensou em fazer participar o homem
da sua condição. Para isso “operou e consumou verdadeiramente a sua

131
Se Gregório de Nissa fala da Incarnação em sentido abrangente (incluindo toda a vida e mistérios de
Jesus), poderia parecer a uma primeira vista que o Nisseno, e os Padres gregos em geral, não afirmam a
necessidade expiatória da morte de Cristo em proveito do resgate da criatura pecadora. O que sucede é que
não é este o acento principal da sua soteriologia. Esta é perspectivada no contexto do amplo plano da
economia divina e à luz da incarnação considerada no seu mistério total.
132
Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Quaest. ad Thalass. 63 (PG XC, 632A); AGOSTINHO, En. ps. 38, 49,2:
“manifestum est ergo, quia homines dixit deos, ex gratia sua deificatos, non de substantia sua natos” (CCL
XXXVIII, 422).
133
O acento da soteriologia oriental cai sempre sobre a ideia de restauração ou regeneração, enquanto o
ocidente se centrará sobre o conceito de reconciliação ou remissão dos pecados. Neste último caso fala-se de
justificação, enquanto na tradição oriental se fala sobretudo de glorificação. Cristo veio para destruir a morte e
nos renovar à Sua imagem. Para os Padres gregos, a Incarnação opera uma verdadeira modificação de
estrutura no próprio homem, pela qual a natureza criada (caída) é virtualmente restaurada. Cristo não se limita
a expiar uma pena ou a perdoar uma ofensa, mas restitui e glorifica in actu.
134
A paixão e morte aparece, neste contexto, como uma forma de nos fazer participar da morte-ressurreição
de Jesus, pois é a morte do Deus feito homem (que para os padres gregos é a paixão do Deus-homem,
enquanto os latinos celebram sobretudo a paixão do homem-Deus) que salva a humanidade pecadora,
comunicando-lhe a sua vida imortal.
135
GREGÓRIO DE NAZIANZO, Epist. 101 ad Cledonium (PG XXXVII,181-183).
136
M. LOT-BORODINE, La déification, 212.
137
MÁXIMO CONFESSOR, Quaest. ad Thalass. LXI (PG 632).
138
MÁXIMO CONFESSOR, Quaest. ad Thal. 20 (PG XC, 309D).
139
Cf. J.-C. LARCHET, La divinisation de l‟homme selon Saint Maxime le Confesserur, Paris 1996, 83-84.

18
inhumanização perfeita” a fim de nos divinizar140. O Verbo fez-se homem para
levar a termo o desígnio divino, “preconcebido antes dos séculos”, de unir a
criatura e o Criador, uma vez que o homem, desde o início, não conseguiu levar
a cabo tal desígnio141.
O papel determinante é conferido sempre ao Verbo de Deus: antes do o
pecado primordial a função divinizante do Verbo era levada a cabo
independentemente da economia da Ensarkôsis, possuindo o homem criado a
possibilidade de adquirir a semelhança com Deus, de se unir e comungar
(koinonia) n‟Ele, de nascer espiritualmente como filho adoptivo e receber assim
a divinização. Na sequência do pecado de Adão, este modo de comunhão com
Deus tornou-se impossível, exercendo-se agora de um outro modo (previsto
desde toda a eternidade pelo conselho divino) que requer a Incarnação do Verbo
como única via de comunhão com Deus e divinização142.
Depois do pecado de Adão, só podemos conceber a divinização operada
pela Incarnação. Neste sentido, o Verbo incarnou porque a finalidade que Deus
tinha proposto para o homem criado não podia, após o pecado, realizar-se
segundo o modo primeiramente estabelecido por Deus143.
Quando se fala da economia divinizante da Incarnação esta é entendida
nos seus largos horizontes que abarcam a totalidade da história, desde a criação
de Adão à ressurreição, isto é, à “plena realização da natureza humana à
semelhança de Deus”144:
“O Filho de Deus, afirma S. João Damasceno, tornou-se homem, a fim de
restituir ao homem o porquê da sua criação... Depois de nos ter criado à sua
imagem e permitido participar do seu espírito, dons que nós não soubemos
conservar, Deus participa Ele mesmo da fraqueza e da pobreza da nossa
humanidade a fim de nos tornar íntegros... e nos permitir, deste modo,
participar na Sua divindade”145.
A Incarnação tem, por isso, como fim último a divinização, objectivo final de toda a
economia divina, apesar do pecado do homem e tem como fim primeiro e imediato a salvação
do homem146. Se é um facto que a maior parte dos Padres gregos distinguem a salvação e a
divinização147, a verdade é que não ambas as realidades (divinização e salvação) se implicam
mutuamente no mesmo mistério da incarnação. A divinização pressupõe a salvação (libertação

140
MÁXIMO CONFESSOR, Quaest. ad Thalass. 22 (PG XC, 318-320).
141
Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Amb. Io. VII (PG XCI, 1097CD).
142
É verdade que a doutrina do Confessor parece ir longe demais, ao absolutisar a incarnação do Verbo como
projectada por Deus em vista à divinização, reduzindo a economia incarnacional a uma função instrumental
subordinada à divinização. Consciente deste risco, Máximo Confessor adverte que “foi segundo a economia e não
segundo a lei da natureza que, de forma inefável, o Verbo de Deus habitou, pela carne, entre os homens”, Ep. 13
(PG XCI, 517). Cf. J.-C. LARCHET, La divinisation de l‟homme, 87-88.
143
MÁXIMO CONFESSOR, Amb. 7 (PG XCI,1097).
144
CIRILO DE ALEXANDRIA, In Io. com. 16 (PG LXXIV, 432); cf. MÁXIMO CONFESSOR, Quaest. ad
Thalass. 22 (PG XC, 317-320).
145
JOÃO DAMASCENO, De fide ortodox. III,6; IV,13 (PG XCIV, 1008 e 1137); cf. IRENEU, Adv. haer.
V,14,1 (A. ROUSSEAU, 182).
146
Cf. J.C. LARCHET, La divinisation, 226.
147
Cf. V. LOSSKY, Rédemption et déification, in ID., À l‟image et à ressemblance de Dieu, Paris 1967, 95-108.
Referido por J.-C. LARCHET, La divinisation, 227.

19
do pecado ancestral), esta, porém, insere-se na ampla perspectiva da divinização motivo
primeiro da incarnação148. Este mistério da inhumanação do Verbo ultrapassa, sem a excluir,
portanto, a finalidade salvífica, como o amor de Deus ultrapassa, sem excluir, a sua
misericórdia redentora149.
Além disso, a fé na incarnação introduz uma novidade radical na tradicional concepção da
homo capax Dei. Por um lado, agora não é apenas a parte superior da alma humana 150, “o
divino que há em nós” que é reassumido no seu mundo congénito, mas é a própria carne que
se torna capax Dei151. Contra as várias correntes gnósticas que defendiam uma redenção de
natureza puramente pneumática, da qual a carne permanecia totalmente alheia, e onde não
havia espaço para a linguagem do sacrifício e da paixão 152, Ireneu denuncia este erro de
querer “desertar a economia da paixão” e do sofrimento “que Ele e os seus discípulos
sofreriam”153. A incarnação e paixão real do Senhor demonstram e garantem que a carne, e
não só o pneuma, é capax Dei.
Só reconhecendo o Emanuel nascido da Virgem, “o Verbo da incorruptibilidade”, o
homem acederá ao “seu dom” prometido nestes termos pelo próprio Verbo: “Ego dixi: Dii
estis et filii Altissimi omnes”154.
Pela incarnação, Deus fez-se semelhante ao homem para lhe conferir a sua semelhança,
dando-lhe como preceito o dever de imitar o Pai celeste; tudo isto com vista à visão de Deus
(ad videndum Deum) e a alcançar o Pai (capere Patrem). O Verbo de Deus que habitou no
homem para o habituar a acolher Deus e habituar Deus a habitar o homem, está no centro de
toda a economia salvífica155. De facto, é a carne de Cristo, que assumiu o homem todo, que
emana o esplendor da glória do Pai que transfigura a nossa carne.
Toda a economia divina se orienta para restituir à carne a incorruptibilidade, através da
carne divinizada de Cristo no qual se realizou a misteriosa commixtio et communio Dei et
hominis156.
“propter immensam suam dilectionem factus est quod sumus nos,
uti nos perficere esse quod est ipse”157.
Ao fazer-se homem, o Verbo de Deus “assimilou-se a si mesmo ao homem
e assimilou o homem a si mesmo, para que, graças à semelhança com o Filho, o
homem se tornasse mais caro ao Pai”. O que a incarnação veio revelar foi então
o significado verdadeiro do que antes fora anunciado:
“No passado, dizia-se que o homem fora feito à imagem e semelhança de Deus,
isto não era, porém, ainda manifesto. Na verdade o Verbo permanecia invisível à

148
S. MÁXIMO CONFESSOR: “tendo cometido o pecado pela vontade, necessitávamos da salvação
d‟Aquele que purifica a vontade de toda a servidão, assumindo-a, e diviniza toda a nossa natureza pela
Incarnação”, Th. Pol. 15 (PG XCI, 157A). Cf. J.-C. LARCHET, La divinisation, 225-230.
149
Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Quaest. ad Thalass. 60 (PG XC, 623-624); ID., Amb. Io. 41 (PG XCI, 1305-
1308).
150
PLATÃO, Alcibiades, 129-130e.
151
IRENEU, Adv. haer. V,3,3. 7,2 (48, 80-82,). TERTULIANO: “caro salutis est cardo”, Res. mort. 8,2 (CCL II,
930); Adv. Marc. I,24,5 (CCL I, 468).
152
Cf. IRENEU, Adv. haer. I,7,2; 8,2 (A. ROUSSEAU, 104).
153
IRENEU, Adv. haer. III,18,5 (A. ROUSSEAU, 354-356). A doutrina cristã da theosis continua a ser objecto
de interpretações distorcidas. Nos nossos dias, o fenómeno teosófico designado por New Age propõe-se
retomar o ideal da theosis, ignorando as consequências do pecado e sofrimento humanos, assim como do
sacrifício e da cruz de Cristo. Ora a deificação passa também, segundo a tradição bíblica e patrística, pelo
sofrimento e morte de Cristo (cf. Rom 8,17).
154
IRENEU, Adv. haer. III,19,1 (A. ROUSSEAU, 372).
155
IRENEU, Adv. haer. III,20,2 (A. ROUSSEAU, 388).
156
Cf. IRENEU, Adv. haer. IV,20,4 (A. ROUSSEAU, 634).
157
IRENEU, Adv. haer. V, praef. (A. ROUSSEAU, 14).

20
imagem do qual o homem fora criado. Esta a razão pela qual ele perdeu facilmente a
semelhança (Ðmo…wsij). Mas uma vez feito carne, o Verbo de Deus afirma uma e
outra, porque ele revelou a verdadeira imagem ao tornar-se Ele mesmo aquilo que era
a sua imagem, e restabeleceu solidamente a semelhança tornando com ele o homem
semelhante ao Pai invisível pelo Verbo visível”158.
No Verbo incarnado o homem e Deus reencontram-se, e esta união é a única via
de acesso à incorruptibilidade159. Sendo imortal e incorruptível por natureza, só Deus,
o homem apenas por participação na condição divina poderá vir a sê-lo160. A
incarnação insere-se neste plano de Deus de nos fazer participar da sua natureza,
através da natureza comum que, em Cristo, é divinizada161. No Verbo incarnado a
carne humana, em crasis perfeita com o Espírito, foi glorificada oferecendo-nos o
exemplar antecipado da salvação humana.
Razão pela qual a obra da restauração do plano inicial de Deus postulava a
Incarnação, isto é, que “o Filho de Deus se fizesse Filho do homem” para que “o
homem recebesse a adopção e se tornasse filho de Deus”162, abrindo-nos a via da
incorruptibilidade. Ora este acesso à imortalidade não seria possível se “a
incorruptibilidade e a imortalidade não se tivessem tornado primeiro o que nós somos,
para que o que era corruptível fosse absorvido pela incorruptibilidade e o que era
mortal pela imortalidade e recebêssemos a adopção de filhos”163.
Claro que esta absoluta centralidade conferida à incarnação não esvazia o valor
redentor da paixão e da cruz de Cristo pela qual a morte foi vencida e nos foi aberta a
porta da incorruptibilidade164. Só a cruz redime, como só a Incarnação diviniza. Por
outro lado, a união deificante com o Lógos passa por uma vivência da fé na Igreja e
nos seus sacramentos através dos quais o homem se renova na “imagem e semelhança”
e acedem à vida eterna165.
Clemente Alexandrino, apresenta, à semelhança de Ireneu, a salvação como um
processo pedagógico deificante e Cristo como a consumação perfeita da vocação do
homem à “assimilação com Deus (™xomoièsei tÍ prÕj tÕn qeÒn)” posta em causa
pelo pecado de Adão166. A deificação é concebida também em Clemente como termo

158
IRENEU, Adv. haer. V,16,2 (A. ROUSSEAU, 216).
159
IRENEU, Adv. haer. III,18,7 (A. ROUSSEAU, 364). Já o apologista Taciano argumenta que o Lógos celeste
criou o homem “à imagem da imortalidade (e„kÒna tÁj ¢qanas…aj) para que a incorruptibilidade pertencente a
Deus, participando o homem da porção de Deus (Qeoà mo…ranran metalabèn), possua a imortalidade”,
TACIANO, Orat. 7 (Th. VON OTTO, VI, 30). Esta “porção de Deus” que faz do homem “imagem e
semelhança” é o espírito superior dado por Deus (12). A alma, embora sendo mortal, permanecendo unida ao
Espírito de Deus já não lhe falta ajuda para se elevar onde a conduz o Espírito, porque a morada do Espírito está
no alto, enquanto a morada da alma está em baixo”, TACIANO, Orat. 13. Nenhum espaço, portanto, para o
panteísmo nem para a soteriologia gnóstica.
160
S. Paulo insere-se na longa tradição sapiencial que apresenta a incorruptibilidade e imortalidade como atributo
específico de Deus (Rm 1,23: ¥fq£rtoj qeÒj), o “único que possui a imortalidade” (1Tm 6,16: Ð mÒnoj œcwn
¢qanas…an). Sendo a incorruptibilidade uma propriedade divina, a sua comunicação ao homem só é possível
pela Incarnação, cf. IRENEU, Adv. haer. III,19,1; Ibid. IV,33,4.
161
Cf. J.C. LARCHET, La divinisation, 373-374, notas 48-51.
162
MÁXIMO CONFESSOR, Th. Ec. II,25: “Deus, o Verbo de Deus Pai, fez-se filho do homem e homem para
fazer os homens deuses e filhos de Deus” (PG XC, 1136B); ID., Quaest. ad Thalass. 40: “Foi para isso que Ele se
fez verdadeiramente homem: para, pela graça, fazer de nós deuses” (CCSG VII, 275).
163
IRENEU, Adv. haer. III,19,1 (A. ROUSSEAU, 372).
164
IRENEU, Adv. haer. II,20,3 (A. ROUSSEAU, 202-204).
165
Cf. J. GROSS, La divinisation du chrétien, 152.
166
CLEMENTE ALEXANDRINO, Strom. II,22,131 (SC 38, 133); ID., Pedag. I,12,98, 2-3 (SC 70, 284).

21
de uma sábia pedagogia do Verbo incarnado: “O Lógos de Deus fez-se homem, para
que fosse um homem a ensinar-vos a tornar-se Deus”167.
É o Lógos incarnado “que nos oferece a divina, grande e inalienável herança
paterna, com um ensinamento celeste que diviniza os homens (oÙran…J didaskal…v
qeopoiîn tÕn ¥nqrwpon)168. Clemente é o primeiro autor a adoptar o vocabulário
qeopoišw-qeopo…hsij, que se tornará património da teologia grega posterior. Este
Alexandrino concebe a vida cristã como uma “escola” onde o Lógos ensina a
praticar as virtudes do Pai, como via de “assimilação ao Deus Salvador” 169.
Conduzido pela pedagogia do Lógos, o homem vai-se aperfeiçoando segundo a
vontade do Pai, “praticando já na terra a vida celeste segundo a qual somos
divinizados”170. Tal pedagogia do Lógos-Cristo deve conduzir o crente da fé à gnose
que, por sua vez, “culmina na caridade que une conhecedor ao conhecido como um
amigo a um amigo”171. Uma vez que “a amizade se opera através duma semelhança”
(¼ te fil…a di' ÐmoiÒthtoj pera…netai)172, a salvação consiste, nasce e desenvolve-
se como resposta à “hiperbólica filantropia divina” que torna o homem cada vez mais
Ðmo…wj tù Qeù. Esta assimilação não é identificação nem mera “imagem” enquanto
criatura dotada de faculdades superiores, mas uma verdadeira participação dos bens
divinos, participação concedida ao homem por pura generosidade e bondade divina.
De facto, a ¢g£ph é “superior a todo o conhecimento”173. Orígenes insere-se na
mesma sintonia de pensamento ao fazer assentar toda a doutrina da divinização na
Incarnação, pois em Jesus o olhar da fé pode constatar como “a natureza divina e a
natureza humana começaram a entrelaçar-se (sunufa…nesqai) para que, pela sua
comunhão com o que é mais divino, a natureza humana se torne divina, não apenas em
Jesus, mas também em todos aqueles que, com fé, adoptam o género de vida ensinado
por Jesus”174. A deificação do homem é o resultado de uma participação (metoc») na
divindade de Deus que, no entanto, é um dom do Verbo feito carne175. O Verbo é
mesmo designado com o título de qeopoiÒj, “fazedor de deuses”176.
A soteriologia da divinização desenvolvida por S. Atanásio177 reformula
a doutrina salvífica de Ireneu a partir da teologia da imagem178, e com base em
duas grandes verdades cristológicas: a fé na verdadeira divindade do Verbo e a
fé na verdadeira Incarnação.
Depois do pecado de Adão que trouxe como consequências a perda da
imortalidade e do conhecimento de Deus, o homem só poderia voltar a Deus
167
CLEMENTE ALEXANDRINO, Protr. I,8,4: Ð lÒgoj Ð toà qeoà ¥nqrwpoj genÒmenoj, †na d¾ kaˆ sÝ
par¦ ¢nqrèpou m£qVj, pÍ pote ¥ra ¥nqrwpoj gšnhtai qeÒj (SC 2bis, 63). Com justiça A. Hamman afirma
que, para Clemente, “Cristo é menos restaurador que instaurador da economia da semelhança”, L‟homme image
de Dieu, Paris 1987, 121.
168
CLEMENTE ALEXANDRINO, Protr. XI,114,4 (SC 2bis, 183).
169
CLEMENTE, Strom. II,9,45,7 (SC 38, 70); Ibid. II,19,100,3-4 (111).
170
CLEMENTE ALEXANDRINO, Pedag. I,12,98,3 (SC 70, 284).
171
CLEMENTE ALEXANDRINO, Strom. VII,10,57 (SC 428, 186).
172
CLEMENTE ALEXANDRINO, Strom. VII,11,68,3 (SC 428, 214).
173
CLEMENTE ALEXANDRINO, Strom. VII,11 (ibid.).
174
ORÍGENES, Contra Celsum, III,28 (SC 136, 68).
175
ORÍGENES, Frag. in Is. (PG XIII, 217A).
176
ORÍGENES, Sel. in Ez. I,3 (PG XIV,817C). Cf. ID. Com. in Io. II,17.
177
Cuja teologia se poderia qualifica, como faz B. STUDER, de uma “soteriologia da divinização”, Dio
Salvatore, 169. 171.
178
Cf. R. BERNARD, L‟Image de Dieu s‟après St. Athanase, Paris 1952, 91-106.

22
através da Incarnação do Verbo divino que restitui à carne humana um novo
princípio de imortalidade. Para salvar os homens, o Salvador tinha que ser
essencialmente igual ao Pai assim como ao homem179. Por isso, para operar a
divinização salvífica (entendida como restituição da imortalidade, do
conhecimento de Deus, e a restauração da imagem e da filiação divinas 180) “o
Filho de Deus fez-se homem, para nos fazer Deus”181:
“Como o Senhor, revestindo-se dum corpo, se fez homem, assim também
nós homens, assumidos pela sua carne, somos divinizados pelo Lógos e
acedemos finalmente à herança da vida eterna”182.
A carne de Adão, tornando-se carne do Lógos, recebeu a salvação e a
vida divina183. É significativo que Atanásio, como irão fazer Basílio, Gregório
de Nazianzo184 e Cirilo de Alexandria185, desenvolva a doutrina da divinização
como argumento provante da divindade de Cristo e do Espírito Santo, o que
mostra que se esta última verdade da fé era questionada por arianos e
pneumatomacos, quanto ao tema da divinização parece ser já doutrina adquirida
na Igreja186.
De facto, a salvação do homem só poderia operar-se através do Verbo feito
Homem, permanecendo realmente Deus: “Ele assumiu o corpo criado e
humano, para que, tendo-o renovado como criador, o divinizasse em si mesmo
e, deste modo, nos introduzisse todos no reino dos céus, segundo a nossa
semelhança com Ele. Ora o homem não poderia ser divinizado... se o Filho não
fosse verdadeiro Deus... Assim como também nós não teríamos sido libertos do
pecado e da maldição se a carne revestida pelo Verbo não fosse por natureza
uma carne humana”187.
Do mesmo modo, “o homem não teria sido deificado se o Verbo
incarnado não fosse oriundo do pai por natureza e Seu verdadeiro e próprio
Verbo. A união operou-se de tal modo que à natureza divina se uniu a humana e
a salvação e a deificação do homem foi garantida”188.
A Incarnação constitui, no pensamento unânime dos grandes Padres
gregos, o alicerce de toda a divinização salvífica: O Verbo fez-se homem, ensina
Gregório Nazianzeno, “por nossa causa, para que o homem venha a ser Deus por
Sua causa”189 Cristo, na sua dupla natureza espiritual e carnal é a chave de todo
179
ATANÁSIO, De incarnatione, 54,1 (SC 199, 456).
180
ATANÁSIO, De incarnatione, 9,1-4; 10,1; 19,1; 54,1-3 (SC 199, 294-296; 298; 456-458). BASÍLIO, Epist.
VIII,5: “foi por causa de nós que o Lógos se fez mortal, para nos livrar da mortalidade” (PG XXXII, 255).
181
ATANÁSIO, De incarn. Verb. 54,3 (SC 199, 458).
182
ATANÁSIO, Contra Ar. III,34 (PG XXVI, 397).
183
ATANÁSIO, Contra Ar. II, 61 (PG XXVI, 277).
184
Cf. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Oratio XXXI,28: “Se o Espírito Santo não deve ser adorado, como é que
ele me diviniza pelo baptismo?” (C. MORESCHINI, 772).
185
CIRILO DE ALEXANDRIA, Thesaurus, ass. 15: “Se o Lógos de Deus é uma criatura, como é que somo
unidos a Deus e deificados (QeopoioÚmeqa) através a união com Ele?” (PG LXXV, 284B).
186
Cf. J. GROSS, La divinisation du chrétien, 201.
187
ATANÁSIO, Contra Ar. III,33 (PG XXVI, 383-386).
188
ATANÁSIO, Contra Ar. II,70 (PG XXVI, 296).
189
GREGÓRIO DE NAZIANZO, Oratio, XL,45 (C. MORESCHINI, 974); ID., Poem. dogm. I,10: “uma vez
que Deus se fez homem, o homem tornou-se deus” (PG XXXVII, 465).

23
este mistério: “carne e espírito, uma divinizou, outra foi divinizada”190. Cirilo de
Alexandria, reitera a mesma convicção: “o Verbo fez-se o que nós somos para
nos fazer participar do que Ele é”191. Apropriando-se da nossa condição Ele nos
faz participar da Sua condição divina 192. O que implica que Cristo seja ao
mesmo tempo Deus e homem, pois se não fosse da mesma substância do Pai,
não poderia elevar a nossa humanidade caída a participar da natureza divina 193.
Por outro lado, “se Deus não se tivesse feito homem, o homem não viria a ser
Deus”194, pois a deificação requer essa real solidariedade entre nós e Ele. É deste
contacto consumado em Cristo da nossa natureza com a natureza divina que
resulta a divinização da natureza humana. Para explicar este conceito fisicista da
divinização195, Cirilo recorre à imagem do ferro que, em contacto com o fogo
recebe as suas características, sem deixar de ser ferro196. Do mesmo modo o
homem deificado não vem a ser deus por natureza, mas por participação ou
“instituição” (qšsij)197.
É portanto o contacto ou comunhão íntima do Lógos divino com a carne
humana, realizados na Incarnação, que garante a deificação. Assim, a
salvação/redenção identifica-se com a divinização da humanidade realizada no
Homem-Deus, isto é, na própria constituição da Pessoa de Cristo. N‟Ele a
inhabitação do Lógos divino na humanidade envolve e penetra esta última da
vida divina.
Esta nossa “participação” (metoc») ou assimilação (™xomo…wsij) a Deus
não significa uma identificação ou confusão da criatura no Criador
(panteísmo)198. O homem perfeito permanecerá sempre homem, ainda quando
deificado: “cumprindo a plena adesão a Deus, assimilamo-nos ao Senhor, na
medida do possível, ainda que permanecendo, por natureza, sujeitos à morte” 199.
Parece ser este o significado que os autores cristãos conferem ao clássico ideal
da “semelhança e união a Deus na medida do possível”200.
A natureza humana será sempre a da criatura dependente de Deus e só é
elevada à condição divina porque “Deus nos comunica a Sua graça e nos confere

190
GREGÓRIO DE NAZIANZO, Oratio XXXVIII,13 (C. MORESCHINI, 892).
191
CIRILO DE ALEXANDRIA, Chr. un. (SC 97, 328).
192
CIRILO DE ALEXANDRIA, Cf. In Io. XX,17 (PG LXXIV, 700).
193
CIRILO DE ALEXANDRIA, Thesaurus, ass. 1. 15. 20 (PG LXXV, 24-28; Contra Nest. 3 (PG LXXVI, 144).
194
CIRILO DE ALEXANDRIA, Thesaurus, ass. 20; cf. In Io. XIV,33 (PG LXXV, 333).
195
Este conceito fisicista da divinização fora já antecipado por Ireneu e Orígenes Cf. J. GROSS, La divinisation
du chrétien, 179, 206.
196
Cf. CIRILO DE ALEXANDRIA, Hom. in pasch. XVII (PG LXXVII, 785 ss.). Esta imagem é
particularmente cara a S. Cirilo como forma de ilustrar analogicamente o modo como se opera a nossa
participação em Deus, cf. In Io. VI,58; Thes. ass. 12 (PG LXXV, 199B). A mesma imagem que será retomada por
S. Tomás de Aquino, já é conhecida de Orígenes, cf. De principiis, II,6,6 (PG XI, 214).
197
CIRILO DE ALEXANDRIA, In Io. VI,58 (PG LXXIII, 589).
198
Cf. CLEMENTE ALEXANDRINO, Strom. VII,3,13 (SC 428, 68-70).
199
CLEMENTE ALEXANDRINO, Strom. II,18,80,5 (SC 38, 98).
200
PSEUDO-DIONÍSIO, Eccl. hier. I,3 (PG III,376A). Para a história desta problemática, continua fundamental
a obra de H. MERKI, OMOIWSIS QEW: Von der platonischen Angleichung an Gott zur Gottähnlichkeit bei
Gregor von Nyssa, Freiburg (Schweiz) 1952.

24
a Sua própria dignidade”201. O homem virá a ser deus por garça e participação,
sem que, todavia isto venha a significar uma igualdade ou absorção da natureza
humana na divina202. A filiação divina é-nos concedida em Jesus Cristo, mas um
só é Deus e Filho por natureza. Citando o famoso passo do Sl 81,6 (Dii estis et
filii Altissimi omnes), Orígenes comenta: “mas um só é filho por natureza, o
Único do Pai, pelo qual todos recebem o nome de Filhos”203.
Atanásio retoma o assunto não com menor clareza: “um só é Filho por
natureza, quanto a nós, tornamo-nos filhos, mas não como Ele por natureza e
verdade, mas segundo a graça daquele que nos chama. Permanecendo homens
terrestres, somos chamados deuses, não como o Deus verdadeiro ou seu Verbo,
mas como Deus dispôs, concedendo-nos esta graça”204.
Referindo-se à santificação dos anjos, S. Basílio distingue claramente
entre a santificação por natureza e por participação205. Mesmo o homem
deificado nunca obterá a mesma natureza de Deus206, nem o homem será nunca
diluído na natureza divina207. Uma coisa é a união essencial das duas naturezas
em cristo, outra coisa não coincidente permanece a união relacional do homem
com Deus que, embora sendo uma verdadeira união, salvaguarda as duas
pessoas unidas208.
S. Máximo Confessor e toda a posterior teologia confirmam que o Verbo
Incarnado “nos comunicou a natureza divina, não por identidade de essência,
mas pela inefável potência da Sua inhumanização, pela sua carne santa vinda de
nós”209.
Os escritos do Pseudo-Dionísio assumem definitivamente o termo qšwsij
para designar a divinização ou assimilação a Deus, “na medida em que isso é
possível”, através da incarnação do Verbo210. Para o misterioso autor duma
verdadeira mística da divinização, “a salvação só é possível através da qšwsij. E
divinizar-nos é tornar-nos semelhantes a Deus na medida em que isso nos é
possível”211.
Por outro lado, quando se fala de divinizção pela Incarnação, não significa
que se reduza toda e economia salvífica à Incarnação do Verbo. De facto, todos
os autores, desde Ireneu a Atanásio estão de acordo em afirmar que a
divinização motivo pelo qual o Verbo se fez carne, compreende, por um lado, a
vitória sobre a morte e, por outro, a restauração da incorruptibilidade e,

201
ORÍGENES, Frag. in Luc. 73 (SC 87, 524).
202
Cf. ORÍGENES, Hom. in Ex. VI,5 (GCS VI, 196-198).
203
ORÍGENES, Com. in Rom. VII,1 (PG XIV, 1103).
204
ATANÁSIO, Contra Ar. III,19 (PG XXVI, 363).
205
Cf. BASÍLIO, Adv. Eunom. III,2 (SC 305, 152-154).
206
Cf. GREGÓRIO DE NISSA, De anim. et res. (PG XLVI,41C).
207
Cf. GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunom. III,2 (PG XLV, 609); De hom. opif. XVI (PG XLIV,184); Orat.
cat. VIII,18 (PG XLV, 33).
208
Cf. CIRILO DE ALEXANDRIA, Apol. contr. Theod. anath. 3 (PG LXXVI,408C).
209
MÁXIMO CONFESSOR, Ep. 12 (PG XCI, 468C).
210
PSEUDO-DIONÍSIO, Eccl. hier. III,3,11 (PG III, 441).
211
PSEUDO-DIONÍSIO, Eccl. hier. I,3 (PG III, 893A).

25
finalmente, a restauração da imagem ou da filiação divina 212. Quando Atanásio
fala de Incarnação, compreendem neste mistério todas as outras etapas da vida
de Cristo, e particularmente a sua morte e ressurreição 213. Por outro lado, a
salvação/deificação não é um processo automático, mas requer sempre a livre
adesão da fé e participação sacramental do homem214.
Tudo o que o Verbo assume na sua incarnação é renovado in melius para a
nossa salvação e divinização. De facto, ao assumir a natureza humana constitui o
seu fermento de incorruptibilidade, tornando-se a natureza humana N‟Ele
theofora, consubstancial ao divino 215. Trata-se não tanto de reparar uma ofensa,
mas de se reparar a si mesmo, através duma nova comunicação divina, para
alcançar o fim para que fora criada.
Por mais maravilhosa e proveitosa que tenha sido a criação, ela é
totalmente ofuscada diante da nova aliança do divino e do humano que se
opera na Incarnação, essa “comunhão muito mais extraordinária” 216. O Verbo
assume a carne para lhe conferir a imortalidade e salvar a “imagem” nunca
totalmente perdida.

3. O Espírito vivificante

A divinização ou a salvação não brota, portanto, como torrente natural do


esforço religioso do homem, mas é suscitada como resposta a um Outro 217. Se o
Filho é a fonte principal da carnis resurrectio e da divinização, é o Espírito
Santo que presidiu a toda a incarnação e pneumatização, é Ele, enquanto
hipóstase da vida (pneuma zôopoion), o grande agente da transfiguração
humana. Este é, sem dúvida, um dos acentos característicos da teologia grega
(que é sempre uma teologia espiritual): “o Espírito do Pai, repousando no Filho e
manifestando-O às criaturas, é quem deifica in actu”218.
A Encarnação de Deus em Cristo e a presença do Espírito Santo no
homem constituem um só e mesmo evento e movimento: Deus fez-se sarcóforo,
para que o homem pudesse tornar-se pneumatóforo (Atanásio) e teóforo219.
A acção de Deus no homem Jesus de Nazaré mostra e prepara o que
operará no homem o Espírito Santo. A divinização pressupõe a filiação adoptiva
que se opera em Jesus Cristo através do Espírito:

212
Cf. ATANÁSIO, De Incarn. Verb. IX,1-4; XVI,5; LIV,1-3 (SC 199, 294-296).
213
Cf. a título de exemplo, De Incarn. Verb. 6-9 (SC 199, 282-294); Contra Ar. III,33 (PG XXVI, 383-395).
214
Cf. ATANÁSIO, Contra Ar. III,18-22. 25 (PG XXVI, 360-369); J. GROSS, La divinisation du chrétien, 214.
215
MÁXIMO CONFESSOR, Amb. Io. 42: “o nosso Deus... renovou a natureza, ou dizendo melhor, inovou-a.
Restituí-a à sua beleza original da incorruptibilidade, por meio da Sua carne santa e dotada duma alma racional
que tomou de nós e, mais ainda, concedeu-lhe a divinização com liberalidade” (PG XCI, 1320A).
216
Cf. GREGÓRIO DE NAZIANZO, Orat. XXXVIII,13 (C. MORESCHINI, 892).
217
Cf. JOÃO CRISÓSTOMO, Hom. 21 de statuis 10 (PG XLIX, 114-118).
218
M. LOT-BORODINE, La déification, 273.
219
Para S. Inácio de Antioquia os cristãos são “portadores de Deus” (qeoforoi) (Ef. 9,2) e “participantes de
Deus” Qeou gemete) (Ef. 4,2); chamados a “tomar parte em Deus” (Ep. Polic. 6,1) e da “incorruptibilidade da
vida eterna” (ibi. 2,3).

26
“No princípio, o homem começou a existir à imagem de Deus, seguramente
para ser gerado pelo Espírito segundo as escolhas e adquirir a semelhança que
receberia graças à observância do mandamento divino, a fim de que o mesmo
homem plasmado por Deus segundo a natureza, seja Filho de Deus e deus pelo
Espírito segundo a graça. Não é possível doutra forma que o homem criado seja
declarado filho de Deus e deus segundo a divinização que vem da graça, se não
fosse previamente, por sua opção, gerado pelo Espírito”220.
Como para Ireneu, também para Atanásio a divinização possibilitada pela
incarnação é obra do Espírito Santo que o Verbo dá (Dom) aos homens. O bispo
alexandrino vai, porém, mais longe ao considerar a igualdade com Deus não
apenas como o ponto de chegada final de um processo, mas como uma nova
criação que não teria tido lugar sem o pecado. A partir do princípio atanasiano
de que “nada há que suceda que não seja obra do Lógos no Espírito” 221, a
participação de Deus só pode operar-se no Verbo através do Espírito Divino.
“No Espírito Santo o Lógos deifica as criaturas”222. Na verdade, “é no Espírito
que o Lógos glorifica a criação e, divinizando-a e adoptando-a, a conduz ao Pai
(qeopoiîn d kaˆ uƒopoiîn pros£gei tù Patr…)223. Para provar a divindade
do Espírito Santo, Atanásio recorda que “é pelo Espírito Santo que temos parte
em Deus. Pela participação no Espírito, tornamo-nos participantes da natureza
divina... é por isso que aqueles em quem habita o Espírito são divinizados. Se
Ele diviniza, não há dúvida que a sua natureza é divina”224.
No seu tratado Sobre o Espírito Santo, S. Basílio insiste na defesa da
divindade do Espírito Santo, sublinhando o seu papel na divinização.
Argumentando contra Eunómio, demonstra a natureza divina do Espírito sem a
qual não se conceberia a divinização do homem: “Se nós chamamos deuses
aqueles cuja virtude é perfeita e se a perfeição vem do Espírito, que diviniza os
outros, como poderia a divindade não estar nele?”225 . De tal modo que “as
almas habitadas e iluminadas pelo Espírito Santo, tornam-se elas mesmas
espirituais. E daí deriva a cidadania celeste... a morada permanente em Deus, a
semelhança com Deus (prÕj QeÕn Ðmo…wsij), e o cúmulo de todos os desejos,
tornar-se deus” (qeÕn genšsqai)226.
“Na verdade, aquele que não vive já segundo a carne mas que é movido
pelo Espírito de Deus, é chamado Filho de Deus e torna-se semelhante à
imagem do Filho de Deus”227.
Cirilo de Alexandria concebe a obra da salvação e deificação como obra
da Trindade e, em particular o Espírito Santo que nos diviniza, agindo em nós,

220
MÁXIMO CONFESSOR, Amb. Io. XLII (PG XCI, 1345D).
221
ATANÁSIO, Ad Serap. I,31 (SC 15, 139).
222
ATANÁSIO, Ad Serap. I,25 (SC 15, 129).
223
ATANÁSIO, Ad Serap. I,25: 'En toÚtJ g' oân Ð LÒgoj t¾n kt…sin dox£zei, qeopoiîn d kaˆ uƒopoiîn
pros£gei tù Patr… (SC 15, 129).
224
ATANÁSIO, Ad Serap. I,24 (SC 15, 126).
225
BASÍLIO, Adv. Eunom. III,5 (PG XXIX, 665).
226
BASÍLIO, De Spirit. Sanct. IX,23 (PG XXXII, 109).
227
BASÍLIO, De Spirit. Sanct. XXVI,61 (PG XXXII, 180).

27
unindo-nos a Ele, fazendo-nos participar da natureza divina: “Nós somo o
templo do Espírito que existe e subsiste; por causa d‟Ele somos também
chamados deuses, na medida em que pela nossa união com Ele, entramos em
comunhão coma divina e inefável natureza”228. Cirilo de Alexandria precisa
melhor esta acção divinizante do Espírito Santo. Este, “introduz em nós uma
certa conformação divina”229, “fazendo-nos passar a um outro estado (›xij)”230.
O Espírito opera assim uma transformação profunda pela qual a nossa natureza
se vê transfigurada ao ponto de se tornar “semelhante” à natureza divina.
Semelhante mas nunca idêntico ou da mesma natureza de Deus. A divinização é,
portanto, sempre obra da dynamis vinda do Pai identificada com o Espírito
Santo, e não obra da natureza ou duma criatura231. É graças a esta acção que o
homem se trona participante da natureza divina e realmente deificado232:
“Nós tornamo-nos participantes da natureza divina e, por isso, nascidos de
Deus e chamados deuses. Não é apenas pela graça que somos elevados a esta
glória sobrenatural. De facto, nós possuímos Deus habitando e permanecendo
em nós... somo templos de Deus, segundo S. Paulo, porque o Espírito habita em
nós”233.
S. Máximo Confessor, ao referir-se à divinização que passa pela adopção
filial, atribui um papel fundamental ao Espírito santo que descendo sobre nós no
baptismo nos “faz deus pela graça”234. Uma divinização que, desde o baptismo,
é ainda potencial e que deve tornar-se actual através de uma vida espiritual
conforme e regida pelo Espírito.

4. Via sacramental da divinização

Se a divinização se opera através da união a Cristo no qual a natureza


humana se encontra já verdadeiramente transformada pela divina, esta
assimilação a Cristo opera-se, em primeiro lugar, através dos sacramentos e
implica a mediação eclesial. A Igreja é o meio favorável à divinização do
homem235 e os sacramentos são os instrumentos dessa divinização salvífica.
O baptizado, “depois de despojado de si mesmo reveste a natureza da
Cristo”236 e participará da divindade. O homem começa o seu itinerário de
divinização no baptismo237. Ser divinizado, lemos na obra do Pseudo-Dionísio,
“é fazer nascer Deus em si. Ora ninguém poderia compreender e menos ainda

228
CIRILO DE ALEXANDRIA, De Trin. VII (PG LXXV, 1088).
229
CIRILO DE ALEXANDRIA, In Is. LXIV,21-22 (PG LXX, 936).
230
CIRILO DE ALEXANDRIA, In Io. XVI,6-7 (PG LXXIV, 433).
231
Cf. CIRILO DE ALEXANDRIA, Thes. ass. 33 (PG LXXV, 597).
232
CIRILO DE ALEXANDRIA, In Io. XVI,15 (PG LXXIV, 452); In Is. LII,1; De Trin. VII (PG LXXV, 1089);
Contra Nest. II,12 (PG LXXVI, 108).
233
CIRILO DE ALEXANDRIA, In Io. I,13 (PG LXXIII, 157).
234
MÁXIMO CONFESSOR, Quaestiones et dubia 4 (SCSG X, 8-9).
235
Cf. J.-C. LARCHET, La divinisation, 400.
236
GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eun. III,1 (PG XLV, 608).
237
GREGÓRIO DE NISSA, Oratio cat. 36,2 (PG XLV, 92); PSEUDO-DIONÍSIO, Eccl. hier. II,3,6 (PG III,
404).

28
pôr em prática as verdades de Deus se, primeiro, não lhe fosse concedido
subsistir divinamente”238.
Clemente de Alexandria, exprime bem esta ideia prometida pelo Salmo
81,1: “Como baptizado, somos iluminados, como iluminados somos adoptados
como filhos de Deus, adoptados como filhos somos feitos perfeitos, tornados
perfeitos recebemos a imortalidade. Diz a Escritura: „Eu disse, vós sóis
deuses”239.
Se “toda a acção sacramental consiste em unificar, divinizando as nossas
vidas dispersas e em reunir na conformidade divina tudo o que é divinizado” 240,
o sacramento da eucaristia constituiu como que a súmula de toda a operação
sacramental. De facto, o homem é divinizado sobretudo através da comunhão
eucarística pela qual o homem se une concretamente a Deus: “Deus uniu-se à
natureza à natureza perecível a fim de com Ele deificar a humanidade
admitindo-a a partilhar da divindade. Esta a razão pela qual ele se distribui
como uma semente a todos os crentes... nesta carne composta de vinho e Pão, e
se mistura com o corpo dos crentes para permitir ao homem, graças à união
com o corpo imortal, de participar na incorruptibilidade”241.
S. Cirilo de Alexandria confere uma grande importância ao tema da
filiação divina como via de divinização: unindo-se à natureza humana, o Verbo
faz-nos participar do parentesco e herança divina242. Os sacramentos são a via de
acesso a esta participação da vida divina. Pelo baptismo e eucaristia o crente
experimenta já na terra os efeito divinizantes da incarnação243. A carne de Cristo
deificada pela sua união ao Lógos, torna-se instrumento da nossa divinização244,
mormente através da eucaristia em que o Verbo, tendo santificado e deificado
em primeiro lugar em Cristo a Sua carne, esta carne, uma vez deificada,
diviniza aqueles que se unem a Ele pela comunhão eucarística245.
O “homem em Cristo” é aquele que, formado da terra pelo Lógos, foi
“regenerado pela água, cresceu pelo Espírito, educado [pelo Pedagogo Jesus]
com a palavra, orientado por santos preceitos para a adopção filial e a salvação...
e para realizar plenamente aquela palavra divina: „Façamos o homem, conforma
à nossa imagem e semelhança”246.

238
PSEUDO-DIONÍSIO, Eccl. hier. II,1 (PG III,392B).
239
CLEMENTE, Pedag. I,6,26,1 (SC 70, 58) . Clemente cita o mesmo versículo bíblico em Protr. XII, 123,1 (SC
2bis, 193); Strom. II,20,125,5; VI,146,2 (SC 38, 127).
240
PSEUDO-DIONÍSIO, Eccl. hier. III,1 (PG III, 424C).
241
GREGÓRIO DE NISSA, Oratio cat. 38,12 (PG XLV, 98). Cf. A. CASALEGNO, Divinizzazione e Scrittura
nel „Grande discorso catechetico‟ di Gregorio Nisseno, in C. GIRAUDO, Liturgia e spiritualità nell‟Oriente
cristiano, Turim 1997, 118-121.
242
Cf. L. JANSSENS, Notre filiation divine d‟après saint Cyrille d‟Alexandrie, in Eph. Theol. Lov. 15 (1938)
233-278.
243
Cf. P. DESSEILLE, L‟eucharistie et la divinisation des chrétiens selon les Pères de l‟Église, in Le Messager
orthodoxe, 87 (1981) 40-56.
244
CIRILO DE ALEXANDRIA, Ep. XVII, 11; In Io. VI,54 (PG LXXIII, 577).
245
CIRILO DE ALEXANDRIA, In Io. IV,3. cf. Ibid. IV,2.
246
CLEMENTE, Pedag. I,12,98, 1-2 (SC 70, 285).

29
Há uma relação directa de continuidade entre a primeira criação e o
baptismo, ambos os mistérios mediados pelo Lógos Pedagogo e Salvador e
actuado pelo Espírito. O baptismo realiza a vocação original do homem
realizando a “imagem e semelhança”247.

5. Divinização e progresso humano-espiritual

Deus criou o homem para lhe comunicar todos os seus dons, para a sua
transfiguração total, pois, como escreve Clemente Alexandrino, “os bens dos
amigos são comuns”248.
Disposto para um tal destino, o ser humano não está, no entanto,
determinado necessariamente para a deificação, pois esta é uma porta aberta
pela iniciativa divina, que requer sempre a colaboração humana 249. Por isso os
Padres distinguem entre a imago actual e a similitudo ainda in fieri, por acção
do espírito santificador250.
O conceito de “progresso” adquire, deste modo, um significado central na
espiritualidade patrística. Para que a história e a vida humana fosse uma via de
progresso, “fomos feitos primeiro homens e, em seguida, deuses”, afirma
Ireneu251.
Teófilo de Antioquia, referindo-se ao primeiro homem, diz-nos que o
Criador, ao colocá-lo no paraíso “lhe deu um princípio de progresso segundo o
qual ele se pode desenvolver, tornar-se perfeito e mesmo ser proclamado
Deus”252. De facto, sustenta o mesmo apologista, o homem não foi criado nem
imortal, o que equivaleria a ser deus, nem mortal, para não culpar Deus da sua
morte, mas “capaz de uma e de outra coisa” 253. Nesta sua posição intermédia
entre céu e terra 254 reside a “capacidade” humana de progredir na perfeição ao

247
CLEMENTE ALEXANDRINO, Pedag. I,9,1 (SC 70, 244).
248
CLEMENTE ALEXANDRINO, Protr. XII, 122,3 (SC 2bis, 192).
249
Cf. J. GROSS, La divinisation du chrétien, 233.
250
O Espírito que agora nos é dado só em parte (pars) para nos dispor e preparar para a incorruptibilidade e
nos “habituar” progressivamente a portar Deus, quando nos for dada graça do Espírito total (universa Spiritus
gratia) “tornar-nos-á semelhantes a Deus e cumprirá a vontade de Pai, fazendo o homem à imagem e
semelhança”, IRENEU, Adv. haer. V,8,1 (A. ROUSSEAU, 94-96).
251
IRENEU, Adv. haer. IV,38,4 (A. ROUSSEAU, 958).O mundo grego concebia o homem virtuoso ou
“perfeito” como uma realidade alcançada e acabada. Para a concepção cristã, o homem “perfeito” é aquele
que está em contínuo progresso, Cf. GREGÓRIO DE NISSA, Vida de Moisés, pref. (SC 1bis, 2-3). Perfeição é
um adjectivo que só se adequa ao Incriado. O homem, enquanto criatura, é, necessariamente perfectível, cf.
IRENEU, Adv. haer. IV,38,1 (A. ROUSSEAU, 944). CLEMENTE ALEXANDRINO, subscreve a mesma ideia
quando recorda que “Adão não foi criado perfeito, mas apto a acolher a virtude”, Strom. VI,12,96,2 (PG IX, 317).
252
TEÓFILO DE ANTIOQUIA, Ad Autol. II,24 (SC 20, 158).
253
TEÓFILO DE ANTIOQUIA, Ad Autol. II,27; II,24 (SC 20, 164). Ao contrário do que sustentam os filósofos
gregos, a alma não é por si mesma imortal, mas capaz de imortalidade: TACIANO, Orat. 13: “A nossa alma, ò
gregos, não é por si mesma imortal, mas mortal; todavia é capaz também de não morrer” (Th. VON OTTO, VI,
62).
254
TEÓFILO DE ANTIOQUIA, Ad Autol. II,24 (SC 20, 158).

30
ponto de vir a merecer “receber de Deus o galardão da imortalidade e chegar a
ser Deus (gšnetai QeÒj)”255.
Toda a teologia de S. Ireneu, assenta nesta ideia de uma progressiva
pedagogia de crescimento para Deus, que criou o homem imperfeito, “para que
este crescesse e se superasse” (plasmavit hominem in augmentum et
incrementum/plenitidinem)256. Nisto se distingue o homem de Deus, a criatura
do Criador257. Desde a sua criação, a obra plasmada estava destinada a percorrer
o caminho da progressiva deificação, aproximando-se paulatinamente da
perfeição divina (paulatim proficiente et perveniente ad perfectum), pois perfeito
só o Incriado258.
Ciente de que “só se pode subsistir na vida participando de Deus”259,
Ireneu concebe toda a história da salvação como um processo in crescendo em
que o homem se vai “habituando” (assuesco) a Deus e Deus ao homem260, num
crescimento “vital” progressivo para a visio Dei261. O Homem não é uma obra
acabada, mas uma liberdade aberta a um progresso sem limites. Deus criou-o
para acompanhar, com amor, a sua obra, levando, progressivamente a
“imagem” plasmada ao seu cumprimento262. Ao contrário dos outros animais e
dos anjos, o homem não foi criado adulto, mas infans, razão pela qual se deixou
facilmente enganar pelo Sedutor263. É, porém, nesta sua apetência para crescer
que reside a sua grandeza que pode superar anjos.
Gregório de Nazianzo apresenta o pecado de Adão como um desejo
prematuro de saborear o fruto da contemplação do qual Deus o tinha proibido,
apenas para proteger a sua debilidade nativa. Era preciso primeiro ser educado e
crescer na aprendizagem da vida divina (pr©xij ™p…basij e„j qeor…an)264. Por
isso a humanidade foi criada no tempo para que possa amadurecer e, crescendo,
alcançar a “semelhança” e os frutos da imortalidade 265, acolhendo o “ritmo e
movimento” trinitário que preside a toda a obra salvífica:
“Portanto, através desta ordem, de tais ritmos e movimentos, o homem
criado e plasmado torna-se à imagem e semelhança de Deus incriado:
O Pai decide benevolamente e ordena,
O Filho executa e plasma,

255
TACIANO, Orat. 13 (Th. VON OTTO, VI, 63). Metódio retomará esta ideia, defendendo, em polémica com o
origenismo, que o homem se encontra numa posição intermédia entre incorruptibilidade e corruptibilidade,
depende da sua decisão progredir no sentido da vida ou da morte, cf. S. ZINCONE, Studi sulla visione dell‟uomo
in ambito antiocheno (Diodoro, Crisostomo, Teodoro, Teodoreto), Roma 1988, 31.
256
IRENEU, Adv. haer. IV,11,1 (A. ROUSSEAU, 498).
257
Cf. IRENEU, Adv. haer. IV,11,2; IV,38,1 (A. ROUSSEAU, 500; 944-946).
258
IRENEU, Adv. haer. IV,38,3 (A. ROUSSEAU, 954). A ¢gennhs…a, assim como a afqarsia são atributos
distintivos exclusivos de Deus.
259
IRENEU, Adv. haer. IV,20,5 (A. ROUSSEAU, 638).
260
Cf. P. ÉVIEUX, La théologie de l‟accoutumance chez saint Irénée, in RecSR 55 (1967) 5-53.
261
IRENEU, Adv. haer. IV,20,7 (A. ROUSSEAU, 648).
262
IRENEU, Adv. haer. IV,11,1: “plasmavit enim eum in augmentum et incrementum” (A. ROUSSEAU, 498).
263
Cf. IRENEU, Dem. 12 (A. ROUSSEAU, 100); Adv. haer. IV,38,1 (A. ROUSSEAU, 944).
264
GREGÓRIO DE NAZIANZO, Oratio XXXVIII, 12. 13 (C. MORESCHINI, 890).
265
IRENEU, Adv. haer. IV,5,1: “qui temporalia fecit propter hominem, uti maturescens in eis fructificet
immortalitatem” (A. ROUSSEAU, 424); cf. Ibid. IV,39,2 (964-966).

31
O Espírito nutre e faz crescer,
E o homem, pouco a pouco progride e eleva-se à perfeição, isto é, aproxima-se
do incriado; pois só o incriado é perfeito, isto é, Deus. Por isso, era necessário
que o homem primeiro fosse criado, depois de ter sido criado, que crescesse, e
depois de ter crescido, se tornasse adulto, e depois de se tornar adulto, se
multiplicasse, e depois de se ter multiplicado, se tornasse forte, e depois de se
ter tornado forte, fosse glorificado, e depois de ter sido glorificado, visse o
Senhor” 266.
Assim se cumpre o grande desígnio do Criador no que se refere à Sua criatura.
A história e a vida de cada homem é o tempo de crescimento no Espírito até à
consumação do homem “adulto” na “visão” de Deus.
Este progresso, decorre segundo as grandes etapas da visão progressiva: da
visão profética à Incarnação do Verbo (participação do Spiritus Filii); da incarnação
(visão indirecta) à visão escatológica (Spiritus Patris).
Tal progresso e crescimento referido em Ireneu à historia salutis de toda a
humanidade267, é tratado pelos autores alexandrinos e os grandes Padres espirituais
sobretudo na perspectiva da pedagogia divina aplicada pessoalmente ao itinerário
espiritual de cada cristão.
Clemente, Orígenes e seus sucessores desenvolvem a doutrina dos vários
degraus da vida espiritual até ao acme da contemplação, na qual o nous é divinizado
naquilo que contempla”268. Embora conferindo um papel mais determinante à fé
baptismal, a vida espiritual cristã é apresentada como “o conhecimento do Pai” através
do Verbo, o que constitui a “gnose perfeita”269. Tendo presente que o verbo “conhecer”
recupera aqui o seu genuíno sentido bíblico de “unir-se a”, a gnose divina tende
necessariamente para a união com Deus270.
O baptismo é apenas o início deste processo de divinização que será consumado
apenas na escatologia: “Tornar-se Deus, um deus instituído é verdade, mas cheio de
luz suprema da qual nesta terra degustamos apenas as primícias duma forma ainda
módica”271. A nossa divinização vai-se realizando já nesta vida, imitando as “virtudes”
de Deus na vida quotidiana272 e percorrendo um percurso ascético, de tal forma que,
segundo Clemente, “o gnóstico pode já tornar-se Deus sobre a terra273. E Gregório de
266
IRENEU, Adv. haer. IV,38,3 (A. ROUSSEAU, 954-956).
267
IRENEU, Adv. haer. IV, 20,5 (A. ROUSSEAU, 636); ID., Epid. 7 (A. ROUSSEAU, 92).
268
ORÍGENES, Com. in Io. XXXII,17 (PG XIV, 817C).
269
ORÍGENES, Com. in Io. XXXII,18 (PG XIV, 817).
270
Cf. J. GROSS, La divinisation du chrétien, 182.
271
GREGÓRIO DE NAZIANZO, Poem. mor. X, 140-143.
272
Os gregos já conheciam a doutrina da imitação das virtudes divinas como via de divinização, Cf. Platão,
Leis, IV,716 b-c; PORFÍRIO, Ep. ad Marcel. XVII. Justino compara o cristão aos atletas e heróis divinizados
pelos poetas, os quais se tornam incorruptíveis (¥fqaroi) graças à prática da virtude (2Apol. 11). Ainda
segundo Justino, aos crentes imitadores dos atributos de Deus será concedida a “convivência com Ele, a
participação no seu reino” e o dom da “incorruptibilidade e impassibilidade” (1Apol. 10,2: ¢fq£rtouj kaˆ
¢paqe‹j genomšnouj). Gregório de Nazianzo exorta a que não cessemos de progredir na prática das virtudes,
“desejando-as ardentemente até à perfeição e à nossa divinização, para a qual nascemos e em direcção à qual
estamos orientados”, GREGÓRIO DE NAZIANZO, Oratio IV, 124 (C. MORESCHINI, 180-182).
273
CLEMENTE, Strom. IV,149,8, citando o Sl 81,6 para confirmar a sua afirmação. A “gnose” é a a via que
conduz a este “fim perfeito sem limites, ensinando-nos previamente o modo de vida segundo Deus que será o
nosso quando morarmos entre os seres divinos... tornados puros de coração, espera-os a reintegração
definitiva na contemplação eterna para a união com o Senhor. E receberam o nome de deuses, aqueles que
ocuparão o mesmo trono dos deuses”, Strom. VII,56,4-6 (SC 428, 184). JUSTINO, comentando o mesmo

32
Nissa define o “cristianismo como uma imitação da natureza divina”, única via de
assimilação a Deus274.
Enquanto tal ela, permanece, no entanto, sempre perfectível275, pois só na
ressurreição atingirá a perfeição definitiva276, no “perfeito conhecimento de Deus”277.
A partir da fé, o discípulo de Jesus deve progredir de degrau em degrau, sempre
guiado pelo Lógos, até à visão de Deus, termo deste itinerário que vai da praxis
ascética donde nascem as virtudes divino-humanas até à união-visão directa e pessoal:
“O intelecto purificado e elevado acima de todas as coisas materiais para adquirir uma
visão clara de Deus é deificado pela sua visão”278. Através deste itinerário da “gnose
divina”, a criatura humana pode, já nesta vida, vislumbrar e esboçar aquilo que se
realizará plenamente na visão beatífica, termo da proposta salvífica oferecida por Deus
ao homem.
Não se trata, é bom insistir, apenas de um processo de “imitação” ou
aproximação moral à vida e virtude divinas, mas de um verdadeiro processo ontológico
que envolve uma progressiva transformação do homem todo e desde o presente: “Já
desde agora -garante S. Atanásio - nós homens somos divinizados pelo Verbo e
herdamos a vida eterna”279. A salvação não é senão este progressivo caminho para a
sua consumação na visão do Pai, na qeor…a ou contemplação de Deus face-a-face280.
Então todos verão a Deus, mas não em igual medida. O tempo futuro será ainda
de incremento, pois Ireneu alarga o progresso na visão indefinidamente, para além
desta vida terrena. De facto, depois das etapas da visão adoptive em Jesus Cristo e
paternaliter no reino, o progresso de “crescimento” do homem não terminou, pois

versículo do Salmo 81 (vós sois deuses e filhos do Altíssimo, v. 6), recorda que o homem, “tendo sido criado
impassível e imortal, como Deus” e “tendo-se-lhe concedido ser chamado filho de Deus”, ao “fazer-se
semelhantes a Adão e Eva, os homens encontraram para si próprios a morte”. Mesmo assim, continua o
Apologista, “fica demonstrado que aos homens é concedido chegar a ser deuses e todos podem converter-se
am filhos do Altíssimo”, JUSTINO, Diál. 124,4 (Th. VON OTTO, II, 446-448). S. Agostinho refere-se ao
mesmo versículo 6 do Salmo 81 para fundamentar a doutrina da filiação adoptiva e deificação, Sermo, 79: “vultis
scire quid nos velit facere? audite psalmum: ego dixi, dii estis, et filii excelsi omnes” (PL XXXVIII, 493). Cf. ID.,
In Io. Ev. tract. I,4; XLVIII,9; LIV,2 (CCL XXXVI, 2; 417; 459).
274
GREGÓRIO DE NISSA, De profess. christiana (W. JAEGER, VIII,1,136).
275
Cf. CIRILO DE ALEXANDRIA, In 2 Cor. III,18 (PG LXXIV, 932). A maioria dos autores gregos admite
que, já nesta vida, é possível ao homem espiritual alcançar a divinização, à maneira de Moisés e S. Paulo, e a
experiência da Transfiguração experimentada por Pedro, Tiago e João. Estes são, no entanto, vistos como
modelos e momentos excepcionais. Na verdade, todos os Padres estão de acordo em que a plenitude da
perfeição só se alcançará no Reino. Cf. J.-C. LARCHET, La divinisation, 644-645.
276
Cf. CIRILO DE ALEXANDRIA, Adv. anthr. XVI (PG LXXVI, 1104-1105).
277
CIRILO DE ALEXANDRIA, Glaph. in Ex. II (PG LXXIX, 429A); Cf. ID., In Io. XIV,25 (PG LXXIV, 464).
278
ORÍGENES, Com. in Io. XXXII,17 (PG XIV, 817C); Ibid. XIX,1 (PG XIV,569).
279
ATANÁSIO, Contra Ar. III, 34 (PG XXVI, 397).
280
A escola valentiniana distinguia dois tipos de salvação-visão: os psíquicos limitar-se-ão à “audição” ou
conhecimento indirecto do verdadeiro Deus; os espirituais, filhos naturais de Deus, estão, por sua vez,
naturalmente destinados à visão de Deus em Espírito. Contra esta teoria, Ireneu defende a unidade e
universalidade fundamental da salvação através da visão do Criador a que todos os homens são chamados, Cf. A.
ORBE, Introducción a la teologia de los siglos II y III, I, Roma 1987, 1034. Desta visão, segundo as
antropologias alexandrinas da salus animae, srá excluída a carne. Ireneu, ao contrário, defendendo a salus
plasmatis, garante a visão directa e imediata de Deus será “segundo a carne” em sentido literal e não alegórico. A
carne humana, em comunhão de espírito com a Cerne gloriosa do Verbo, contemplará Deus Pai secundum
spiritum, por afinidade com o Seu Espírito. Não se trata, portanto, de uma visão por via conceptual ou material,
mas de experiência in carne do Espírito do Pai, fonte de imortalidade e incorrupção. O homo-caro captará
directamente Deus Pai, à “imagem e semelhança” da carne gloriosa de Cristo. Posição bastante diferente a de
Orígenes. Cf. ORÍGENES, De principiis, I,1,7 (PG XI, 127-128). A mentalidade ocidental é mais herdeira da
soteriologia “gnóstica” que exclui a carne da visão de Deus.

33
haverá ainda uma última etapa antes da visão face a face. Depois da ressurreição, os
justos reinarão (sobre a terra) com Cristo, “crescendo após a aparição do Senhor; e se
habituarão, graças a Ele, a alcançar a glória do Pai no reino”281.

6. A salvação como Visão de Deus

No Antigo Testamento, a suprema aspiração do justo é contemplar a glória


de Deus282. O platonismo e suas derivantes identificavam o fim da vida
filosófica e a beatitude com a contemplação do mundo divino e consumação da
semelhança com Deus283. S. Paulo e todo o Novo Testamento cristianizam esta
ideia para traduzir o ideal escatológico do cristão, chamado a “tomar parte” de
Deus:
“Desde já somos filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se
manifestou. Sabemos que por ocasião desta manifestação seremos
semelhantes a Ele (Ómoioi aÙtù ™sÒmeqa), porque O veremos tal como
Ele é” (Óti ÑyÒmeqa aÙtÕn kaqèj ™stin)284.
Alcançar a plena realização da “semelhança” coincide, portanto, com a
visão de Deus e com o “ser como Deus” (æj QeÕj). A divinização não é senão a
consumação da imagem e vice versa285. Isto mesmo afirma S. Máximo
Confessor, quando se refere à “comunhão e a identificação com Deus recebidas
segundo a participação pela semelhança, pela qual o homem é julgado digno de
se tornar deus”286.
Se na tradição filosófica multisecular a bem-aventurança suprema
consistia na contemplação do Princípio dos princípios, sabendo, porém, que o
seu objecto (o primum movens) nunca será acessível a quem o deseja
contemplar, para a tradição cristã, Deus é o Amor criador primeiro que,
enquanto tal, se comunica a Si mesmo como Beatitudo de que nos quer fazer
participar287: “bem-aventurados... porque verão a Deus” (Mt 5,8)288. Esta é uma

281
Sobre este complexo capítulo da doutrina do milénio em Ireneu, cf. A. ORBE, Introducción a la teologia,
966-983.
282
Cf. G. KITTEL, Doxa, GLNT, II (Brescia 1966) 1370-1383.
283
O que levou Justino a abraçar a filosofia platónica, chegando a convencer-se de ter atingido a tal “visão de
Deus, pois tal é o fim da filosofia platónica”, Diálogo, 2,6; Cf. CLEMENTE ALEXANDRINO, Strom.
II,22,131,2-5 (SC 38, 133) .
284
1Jo 3,2. Cf. ainda Mt 5,8; 1Cor 13,12; 2Cor 3,18.
285
Cf. J. GROSS, La divinisation du chrétien, 144-148. 152. 157-159. 161-162. 177.
286
MÁXIMO CONFESSOR, Mystag. XXIV (PG XCI, 704). E, noutro passo: “a participação das realidades
divinas que estão acima da natureza é a semelhança dos participantes ao Participado. A semelhança dos
participantes ao Participado é a identidade recebida em acto pela semelhança dos participantes neste mesmo
Participado. A identidade recebida em acto pela semelhança com o Participado é a divinização dos dignos de
divinização” (Thal. 59 (PG XC 608-609). Cf. J.-C. LARCHET, La divinisation, 631-633.
287
O ocidente preferiu falar sempre de beatitudo, em vez de deificatio. Possuir Deus e aceder à felicidade daí
derivada constitui o grande fim do homem. Sobre estes e outros acentos que distinguem a tradição oriental da
ocidental, cf. Y. CONGAR, Chrétiens en dialogue. Contribution catholique à l‟Oecuménisme, Paris 1964, 264-
270.
288
IRENEU, Adv. haer. IV,20,5 (A. ROUSSEAU, 638). S. Justino, filósofo e mártir do século II, lembrava que
“conhecer Deus e o homem não é a mesma coisa que conhecer música, aritmética, ou astronomia... De facto, há

34
convicção fundamental na teologia de S. Hilário de Poitier: após a presente visão
specular (cf. 2Cor 3,18), contemplaremos Deus tamquam corporali visu289. Mais
uma vez, porém, a facies Dei, é Cristo qui imago Dei invisibilis est290.
Quanto ao objecto da visão, Deus sicuti est-kaqèj ™stin, a sua
interpretação constitui um dos pontos de divergência entre as teologias oriental e
ocidental291. Afinal como conciliar a bem-aventurança de Jesus (beati mundo
cordi..., Mt 5,8), com o que antes Deus dissera a Moisés (nemo hominum videbit
faciam meam et vivet, Ex 33,20)? Orígenes responde que ninguém verá Deus, a
não ser após “se ter despojado de tudo o que é humano, e se ter transformado em
anjo e em Deus, o que não acontece aqui na terra”292.
Ireneu, atento ao incontornável problema da evidente contradição entre a
transcendência inacessível da glória de Deus e a “visão” prometida, encontra a
solução na doutrina da o„konom…a salutis. Deus que, “na Sua grandeza”
(secundum magnitudinem et gloriam), não pode ser conhecido, torna-se
acessível e participável “graças ao seu amor” (secundum dilectionem et
humanitatem)293.
De facto, “desde o princípio, a Palavra de Deus anunciava que Ele seria
visto pelos homens, e conviveria com eles sobre a terra, e conversaria e estaria
presente junto do Seu plasma, salvondo-o e fazendo-se ver; de tal modo que o
homem, recebendo o Espírito, aceda à glória do Pai”294.
Efectivamente, o mesmo Deus “invisível” fez-se anunciar e foi “visto
outrora pelos profetas, mediante o Espírito, foi visto depois adoptivamente,
mediante o seu Filho, e será visto também no reino dos céus, segundo a
paternidade”295
A visão é pois resultado da filantropia (humanitas)296 de Deus que, livre e
gratuitamente, se faz ver “quando quer e como quer”. Toda a economia da
história salvífica, nas suas diferentes etapas da visão (profética, adoptiva e

ciências que provêem da aprendizagem e da discussão, e outras que nos fornecem o conhecimento através da
visão”, Diálogo com Trifão, (PG VI, 481).
289
HILÁRIO, Tr. in psal. 121,1 (PL IX, 661), ibid. 127,11: “tunc facie ad faciem visuri, non interposita
obscuritatis nube aut speculi aemulantis splendore, sed vera et conspicabili beatitudinis nostra contemplatione
laetabimur” (PL IX, 710). Cf. A. FIERRO, Sobre la gloria, 314.
290
HILÁRIO, Tr. in psal.142,9 (PL IX, 840).
291
Sobretudo a partir do século XIV, a questão da visão beatífica foi entendida de forma diferente pelas duas
tradições. Os concílios de Constantinopla de 1341, 1351 e 1368 afirmam, com base na autoridade bíblica (cf.
1Tim 6,16), que Deus permanece absolutamente inacessível ao conhecimento e visão, no que se refere à sua
super-essência, fazendo-se acessível e cognoscível apenas nas suas “energias” incriadas e deificantes. A
teologia romana colocava a questão duma forma bem diferente: ignorando a distinção entre “essência” e
“energias” divinas, sustenta que a visão intuitiva de Deus é o termo da vida sobrenatural e o acto beatificante da
alma divinizada. Em 1336, o Papa Bento XII, na sua constituição Benedictus Deus, afirmava: “depois da paixão
de NSJC os eleitos verão e vêem a essência divina numa visão intuitiva face a face, sem qualquer intermediário
criatural... sem véus, clara e abertamente”. Cf. V. LOSSKY, La teologia mistica della Chiesa d‟Oriente, 248; P.
N. EVDOKÌMOV, Teologia della Bellezza, Milão 19905, 279-281.
292
ORÍGENES, Exc. ps. 23,6 (PG XVII, 116A).
293
IRENEU, Adv. haer. IV,20,1 (A. ROUSSEAU, 624).
294
IRENEU, Adv. haer. IV,20,4 (A. ROUSSEAU, 634-636).
295
IRENEU, Adv. haer. IV, 20,5 (A. ROUSSEAU, 638).
296
IRENEU, Adv. haer. V,20,5 (ibid.).

35
paterna)297, consiste num continuado processo de preparação e crescimento para
a visão deificante, em que toda a Trindade se vê empenhada298:
“O Espírito preparando o homem para o filho de Deus,
o Filho conduzindo o homem ao Pai,
e o Pai dando-lhe a incorruptibilidade e a vida eterna
que resultam da visão de Deus para aqueles que O vêem”299.
Durante o Antigo Testamento o Espírito Santo dispunha o homem, na
carne, para acolher o Filho de Deus; durante o Novo Testamento, o Filho conduz
o homem ao Pai, dispondo-o, pelo Espírito de filiação, para a visão directa do
Pai, onde o Espírito de filiação dá lugar ao próprio Espírito do Pai, alimento de
incorruptibilidade e vida eterna.
Finalmente o homem verá Deus invisível. A visão que antes provocaria a
morte (cf. Ex 33,20), é agora garantia de vida eterna, depois de percorrida a
distância que separava a sarx plasmada da condição divina para a qual foi criada.
Divinamente educada, desde o princípio, pelo Espírito, o plasma humano vai
sendo deificado para os tempos novíssimos do Filho que, humanamente
glorificado, assume em si o homem e continua a sua deificação pelo Espirito
Filial, dispondo-o para ir ao Pai. Por sua vez, o Verbo é, “desde o começo, o
único Revelador do Pai”300, única via para a visão de Deus301, salvaguardando,
ao mesmo tempo, “a invisibilidade do Pai, para que o homem não menospreze
Deus e tenha sempre um objectivo para onde progredir”302.
Esta progressão orienta-se para essa última etapa da visão de Deus face-a-
face, em que o homem voltará a ser plenamente “imagem e semelhança de
Deus”, mediante o dom do Espírito do Pai303. O Verbo dispensador da graça do
Pai para utilidade dos homens” garante que, “através das múltiplas
dispositiones”304, o Pai seja acessível aos homens (hominibus quidem ostendens
Deus), e o homem seja elevado e apresentando a Deus (Deo autem exhibens
hominem)305. Essas diversas etapas da economia adoptadas pelo Filho visam
fazer descer Deus ao nível do homem, sendo, deste modo, Deus glorificado no

297
Não significa que se tratem de etapas cronologicamente sucessivas, pois em cada uma delas e sem cessar
actuam as três pessoas da trindade. O PSEUDO-DIONÍSIO dirá que Deus, “em virtude da sua bondade
própria e natural... dignou-se, no seu amor pelos homens, esforçar-se por vir até nós e, unindo-nos a Ele,
assimilar-nos a Ele”, Eccl. hier. II,2,1 (PG III,393A).
298
A. ORBE, Teologia de San Ireneo, IV, Madrid 1996, 289; ID., Gloria Dei vivens homo, in Gregorianum 73/2
(1992) 242.
299
IRENEU, Adv. haer. IV,20,5: “Spiritu quidem praeparente hominem in Filio Dei, Filio autem adducente ad
Patrem, Patrem autem incorruptellam donante in aeternam vitam” (A. ROUSSEAU, 638). Cf. ID., Epid. 7 (A.
ROUSSEAU, 92).
300
IRENEU, Adv. haer. IV,20,7 (A. ROUSSEAU, 646).
301
Cf. IRENEU, Adv. haer. IV,6-5-6 (A. ROUSSEAU, 636-644).
302
IRENEU, Adv. haer. IV, 20,7 (A. ROUSSEAU, 648).
303
IRENEU, Adv. haer. V,8,1: “Se desde agora, tendo recebido o penhor do Espírito, gritamos „Abba, Pai‟, que
sucederá quando, ressuscitados, o veremos face-a-face?... Tornar-nos-á semelhantes a Ele e nos levará ao
cumprimento da vontade do Pai, porque fará o homem à imagem e semelhança de Deus” (A. ROUSSEAU, 94).
Cf. CLEMENTE ALEXANDRINO, Pedag. I,12,2 (SC 70, 284).
304
IRENEU, Adv. haer. IV,20,11 (A. ROUSSEAU, 660).
305
IRENEU, Adv. haer. IV,20,7 (A. ROUSSEAU, 648).

36
Homem (Jesus) com a vida de Deus, e sendo o homem deificado e glorificado
na carne. Deste modo, na mediação do Filho, Deus invisível e transcendente faz-
se visível para a salvação do homem. Isto é, “para que o homem não deixe de
existir” (ne in totum deficiens a Deo homo cessaret esse):
Gloria enim Dei vivens homo,
Vita autem hominis visio Dei”306.
Na verdade, sem a comunhão com Deus o homem deixa de ser o homo
vivens no qual o Pai é glorificado. A glória de Deus Pai307, razão de ser de todas
as “economias” do Filho, é, de facto, o homem dotado da vida de Deus à qual
acede pela visão do Deus Invisível. É a contemplação da glória divina, luz
incorruptível ou incorruptibilidade luminosa resplandecente no rosto glorificado
de Cristo que concederá ao homem a vida eterna308. Pois é o Filho “que sempre
esteve com o Pai” (quippe qui ab initio est cum Patre)309 que nos revela e
comunica o “estar-com-o-Pai”, esta relação filial que o une ao Pai desde a
eternidade. Toda a história da salvação é movida por este desejo do Pai que quis,
no seu filho, associar a humanidade à intimidade da sua Vida de amor310.
“Se já a manifestação de Deus na criação dá a vida a todos os seres que
vivem sobre a terra, quanto mais a manifestação do Pai pelo verbo dará a
vida àqueles que vêm Deus”311.
A criação é já salvífica, isto é, manifestação de vida vinda de Deus e da
única economia salutis. Fica mais uma vez patente a relação directa entre a
epifania da glória em toda a economia da revelação (criação-incarnação) e a
salvação-redenção, isto é, a Vida que o Pai comunica ao homem através do
Verbo e do Espírito. A glória de Deus é o homem salvo, isto é, possuído pelo
Espírito (donatio Dei quae est vita aeterna)312 que “torna o homem vivente e
perfeito” (viventem et perfectum hominem)313. De facto, o processo de
crescimento até ao “homem vivo perfeito capaz de compreender o Pai perfeito”
empenha “as duas mãos de Deus” que modelaram Adão, isto é, o Verbo e o
Espírito314.
S. Hilário irá desenvolver a mesma ideia a partir do conceito-chave da
“glória”315. A Claritas divina ilumina os que se aproximam de Deus e, é esta
claritas que se comunica por proximidade que é a fonte da vida para o homem.

306
IRENEU, Adv. haer. IV,20,7 (A. ROUSSEAU, 648).
307
Entenda-se, a glória que Deus quer e coloca no homem, não a glória que busca para si no homem, mas a
que de si concede ao homem, cf. A. ORBE, Gloria Dei vivens homo, 263.
308
Cf. ORÍGENES, Hom. ps. 38, 1,2 (PG XII,1402B); ID., Com. Rom. 4,8 (PG XIV, 991-992C).
309
IRENEU, Adv. haer. IV,20,7 (A. ROUSSEAU, 646).
310
Cf. T. SCHERRER, La gloire de Dieu dans l‟oeuvre de Saint Irénée, Roma 1997, 276.
311
IRENEU, Adv. haer. IV,20,7: “Si enim quae est per conditionem ostensio Dei vitam praestat omnibus in terra
viventibus, multo magis ea quae est per Verbum manifestatio Patris vitam praestat his qui vident Deum” (A.
ROUSSEAU, 648).
312
IRENEU, Adv. haer. V, 2,3 (A. ROUSSEAU, 34).
313
IRENEU, Adv. haer. V,1,3. 6,1 (A. ROUSSEAU, 26, 78).
314
IRENEU, Adv. haer. V,1,3 (A. ROUSSEAU, 26) . Cf. Y. DE ANDIA, Homo vivens, 64-67.
315
Cf. A. FIERRO, Sobre la gloria en San Hilario, passim.

37
Contemplando a dÒxa divina o homem transforma-se no objecto da sua
contemplação316.
Jesus Cristo concedeu o seu Espírito “fazendo-o habitar no homem,
tornando-se Ele mesmo cabeça do Espírito e dando o Espírito para que Ele seja a
cabeça do Homem: pois é pelo Espírito que nós vemos, entendemos e falamos”
(per illum enim vidimus et audimus et loquimur)317. A glória de Deus é o
Espírito que, dado ao homem (ubi Spiritus Patris, ibi homo vivens318, “o dispõe e
prepara para a incorruptibilidade, habituando-nos progressivamente a alcançar e
portar Deus”319, o torna Vivo da mesma vida incorruptível de Deus320.
A “vida eterna” requer, portanto, uma longa preparação operada pelo
Espírito e no Filho, até à etapa final da deificação do homem concreto, como
resultado de receber, mediante a visão de Deus, o seu próprio Espírito e a glória
do Pai. A sarx humana, agora totalmente assimilada a Deus, vê-se, sem perder a
sua identidade humana e individual, impregnada da luz e Espírito que a visão do
Pai comunica, tornando-se o receptáculo da vida eterna de Deus321.
Se é verdade que a visão pressupõe a divinização e esta é fruto da visão,
por outro lado, aquela só será plenamente concedida aos olhos que já foram
revestidos da incorruptibilidade de Deus e é essa visão face-a-face que
consumará a nossa salvação322, pois “ver” significa participar da vida de
Deus323:
“Porque a glória de Deus vivifica; aqueles que vêem Deus participam da
vida. Este o motivo pelo qual Aquele que é inacessível e incompreensível
e invisível se oferece para ser visto, compreendido e acessível aos
homens: para vivificar aqueles que dele participam e o vêem”324.
Por outro lado, há uma continuidade, pelo menos analógica, entre a vida
actual, na qual o corpo recebe da alma uma vida efémera, e o regime definitivo
em que o corpo viverá do Espírito do Pai.

316
BASÍLIO, De Spir. Sanct. 21: “os objectos colocados próximos de cores vivas, ficam coloridos elas mesmas
com o esplendor que irradia delas. Do mesmo modo, quem fixa os seu olhar no Espírito, vê-se transformado de
certo modo numa realidade mais radiante pela glória (™k tÁj dÒxhj) do Espírito” (PG XXXII, 165B-C).
317
IRENEU, Adv. haer. V,20,2 (A. ROUSSEAU, 260).
318
IRENEU, Adv. haer. V, 9,3 (A. ROUSSEAU, 112).
319
IRENEU, Adv. haer. V,8 (A. ROUSSEAU, 92).
320
Cf. IRENEU, Adv. haer. III,17,2; V,8,1 (A. ROUSSEAU, 330-332, 92).
321
Cf. A. ORBE, Gloria Dei vivens homo, 243.
322
Cf. TEÓFILO DE ANTIOQUIA, Ad Autol. I,2-7: “Quando tiveres deposto a tua natureza corruptível e fores
revestido de incorruptibilidade (afqarsia), poderás então ver Deus, na medida em que serás digno. Pois Deus
ressuscitará a tua carne, tornando-a imortal com a alma e então, tornado imortal, verás o Imortal” (SC 20, 60-62).
Cf. HILÁRIO, Tr. in ps. 118, 7-8 (PL IX, 634).
323
Embora esta qšwsij só se actue na sua plenitude no século futuro, já desde agora se opera esta união
deificante progressiva que transforma a natureza corruptível, adaptando-a à vida eterna. Se Deus nos deu, através
dos sacramentos e da Igreja, todos os meios e condições objectivas para alcançar esta nossa vocação, tal não se
opera a não ser que criemos as condições subjectivas, aderindo e colaborando neste progresso deificante. De facto,
a união e visão só se opera na “sinergia”, na colaboração do homem com Deus. Daí a importância que assume a
ascese e prática das virtudes no itinerário e espiritual.
324
IRENEU, Adv. haer. IV,20,5 (A. ROUSSEAU, 640).

38
Como escreve Ireneu, não se pode viver sem vida: humanamente sem vida
humana, divinamente sem vida divina. Como a Vida se comunica pela visão de
Deus, o homem tem de contemplar Deus para viver da mesma vida divina:
“Quoniam vivere sine vita impossibile est,
subsistentia autem vitae de Dei participatione evenit,
participatio autem Dei est videre Deum
et frui benignitate eius” 325.
Não tem sentido uma b…oj destinada à morte. Não é ainda verdadeiramente
zw» o sopro vital que anima o plasma, mas só a que é garantida pelo Espírito de
Deus, capaz de eternizar o homem e de o promover à mesma condição de Deus.
A incorruptibilidade é o primeiro dom divino de que o homem participa e
constitui o elemento fundamental da nossa divinização. Por isso, já S. Inácio de
Antioquia, em evidente sintonia com a tradição paulina e joanina, concebe a vida
cristã como uma “participação de Deus”326, e na “incorruptibilidade da vida
eterna” (¢fqars…a kaˆ zw¾ a„ènioj) consumada na eternidade327. Tal
¢fqars…a-incorruptibilidade não é senão o primeiro efeito da nossa união com
Deus na visão consumada nos últimos tempos328.
“Os homens verão a Deus para viver, e, pela visão se tornarão imortais e
alcançando Deus”329, “do mesmo modo que aqueles que vêem a luz na sua se
encontram na luz e participam do seu esplendor, assim aqueles que vêem Deus
estão em Deus e participam da sua claritas”330. É este o destino do homem,
participar dos dons de divinos331 alcançar a condição divina, para viver a Vida
de Deus, através da contemplação da Sua glória: Sem deixar de ser “carne” e
“plasma”, o homem revestir-se-á dos atributos divinos, isto é, da imoralidade,
incorruptibilidade e da vida eterna. Para os gnósticos esta comunicação da
divindade restringia-se às fronteiras do puro espírito. Nem a psychê nem a hyle
nem a sarx têm acesso ao Espírito divino. Contra tal visão, Ireneu garante que é
o homem terreno e concreto, disciplinado ao longo da Economia que se dispõe a
penetrar secundum carnem na esfera do divino.
Todo o itinerário salvífico pode então ser descrito como um processo de
manifestação transformante da glória de Deus ao homem que se deixa “habituar”
e tornar “semelhante” ao Seu Criador, graças à mediação do Filho no qual habita
a plenitude da divindade e a plena humanidade.
Pode parecer toda esta teologia demasiado elevada e pouco ao alcance da
vida concreta dos homens do nosso tempo. Estes, porém e a seu modo, não
deixam de “aspirar às coisas do alto”, pois o desejo de “ser como Deus, na
325
IRENEU, Adv. haer. IV,20,5 (A. ROUSSEAU, 642).
326
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Ef. 4,2; Ep. a Policarpo, 6,1 (J. B. LIGHTFOOT, 41-42, 304-306 ).
327
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Ep. a Policarpo, 2,3. 6,1 (J. B. LIGHTFOOT, 340, 350).
328
Cf. GREGÓRIO DE NISSA, Orat. cat. XXXV (PG XLV, 92).
329
IRENEU, Adv. haer. IV,20,6: “homines igitur videbunt Deum ut vivante, per visionem immortales facti et
pertingentes usque in Deum” (A. ROUSSEAU, 642).
330
IRENEU, Adv. haer. IV,20,5 (A. ROUSSEAU, 640).
331
IRENEU, Adv. haer. IV,14,2: “Sic Deus ab initio hominem quidem plasmavit propter suam munificentiam”
(A. ROUSSEAU, 542).

39
medida do possível” está inscrito no coração de cada homem que se experimenta
criatura de Deus. Anunciar hoje a “Boa Nova da Salvação” passa pela
proclamação desta grandiosa vocação do homem a qual, por sua vez, se
concretiza no “re-conhecimento” e “imitação” da bondade de Deus, como reza
este texto do anónimo Ad Diognetum, com que terminamos esta comunicação:
“Se tu também desejares ardentemente esta fé,
se tu a abraçares, começarás a conhecer o Pai.
Porque Deus amou os homens,
pelos quais fez o mundo,
aos quais submeteu tudo quanto há na terra.
Deu-lhes inteligência e razão,
só a eles concedeu levantar os olhos para Ele,
plasmou-os à sua própria imagem,
para eles enviou o seu Filho Unigénito,
prometeu-lhes o reino no céu, e o há-de dar aos que o amam.
Havendo-o conhecido, de que alegria não te sentirás repleto?
Ou como amarás Aquele que de tal modo te amou primeiro?
Amando-o, imitarás a sua bondade.
E não te admires de poder um homem tornar-se imitador de Deus.
Pode-o se Deus quiser.
Não é ser feliz dominar despoticamente o próximo,
nem querer violência contra os inferiores.
Em nada disto alguém imitaria a Deus;
Tudo isto está excluído da sua grandeza.
Quem carrega o fardo do próximo,
Quem procura fazer bem ao inferior naquilo que ele é melhor,
Quem transfere os dons de Deus para os necessitados,
Torna-se um deus para os que os recebem,
É imitador de Deus.
Então, ainda que morando na terra,
contemplarás Deus reinante na cidade celeste,
então começarás a falar dos mistérios de Deus...”332.

332
Ad Diognetum, X,1-7 (SC 33bis, 76-78).

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