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COTIDIANO: tempo e espaço do encantamento

“No cotidiano nossa temporalidade torna-se eternidade, nossas dúvidas se


transformam em certezas e nossa finitude se mostra infinitude” (Custódio
Almeida)

Um olhar mais profundo sobre a nossa realidade resgata a perspectiva do


encantamento.
A partir do encantamento olhamos para a rotina cotidiana e buscamos nela
situar a perspetiva de um projeto e de uma dinâmica sempre abertos, retomando
continuamente os fundamentos dos sonhos para atingir a plenitude do humano;
todo encantamento pressupõe sair dos lugares comuns, que por força do
hábito, mutilam esses sonhos.
O cotidiano é o lugar do encantamento; o dia-a-dia da vida é atrativo pela própria razão de seu ser-
existir. Rubem Alves nos recorda que a verdade mora no nebuloso, na escuridão, no silêncio. É isto que
faz com que haja magia no cotidiano.

Tal encantamento faz sentido, uma vez que o cotidiano é o lugar para o
desvelamento, para o descobrimento e a construção do mundo. Desvelar,
descobrir, construir são ações próximas do sublime, pois pela ação cotidiana, o
oculto se mostra, o escondido aparece, o disperso se agrupa...
Mas o maior encantamento revelado pelo cotidiano é aquele da mágica do
encontro, aonde um eu encontra outro eu, diferente, interpelador, às vezes
assustador, justamente porque distinto.
No encontro de pessoas, o eu se afirma, afirmando também os outros.
A descoberta do outro não só plenifica os olhos, mas sobretudo plenifica o
coração.
O cotidiano é, portanto, o lugar onde uma espécie de rotina, o fazer diário, nos
coloca em contato com uma realidade intuitiva, ou seja, aquela sobre a qual
vamos construindo as referências sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre a
natureza e sobre nossa dimensão de mistério.
O espaço do cotidiano, por sua própria natureza, encanta ao permitir que a
pessoa aproxime-se de si mes-
ma, descubra o outro, encontre o Grande Outro, desvende a natureza e se
posicione frente a seus limites.
Do encanto do desconhecido para o encanto do conhecido: encantar que gera um novo encantar,
porque a realidade, uma vez decifrada não pode apenas ser dominada, submetida, usada, mas precisa ser
reintegrada, acolhida como novo desafio.
O encantamento não nos deixa acomodar-nos passivamente aos ditames da sociedade, mas para
subvertê-los a partir de sua raiz mesma.

No entanto, há sempre o perigo do cotidiano deixar de ser um espaço do


fantástico e do sublime para ser espaço da regra, da disciplina, do previsto...
A disciplina é obtida e reforçada na repetição dos atos. Estabelecemos e
retomamos as regras de cada dia e, no fluir do tempo, o regresso constante às
mesmas coisas se encarrega de transformar a magia do buscar, do descobrir, do
conviver... em obrigação de preservar, de fixar, de conservar... o que é
conhecido.
Com isso, o cotidiano perde, pela força de sua rotina, o encanto do perguntar;
rende-se às respostas conhecidas para confirmar a mesmice de nosso agir.
Disciplinados pelo repetir das tarefas, afastamo-nos cada vez mais de nós mesmos, perdemo-nos na
obrigação de ter que acertar. O cotidiano da vida, com suas estruturas de regramento, compromete no
ser humano aquilo que lhe é mais específico: o encantamento.
Abandonamos a busca para vivenciar o seu resultado que não mais desafia ao jogo mas à fixação do
resultado. Perdemos o atrativo e a surpresa, o cotidiano não mais nos acolhe, pretende nos “reciclar”,
tornando-nos meros competidores.
Ele que nos havia mostrado o sonho presente no ritmo da vida, agora, vigoroso, nos conclama a fazer, a
possuir, a reter, a fixar...

Devemos sempre recordar que a realidade cotidiana é o lugar onde somos


chamados a viver a espirituali-dade cristã e a deixar-nos conduzir pelo mesmo
Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama humana e a assumir o
risco da história.
Textos bíblicos: Ex. 3,1-10 Jo. 4,1-26
“As grandes coisas devem começar pela
humildade, para que cresçam com bom
cimento” (S. Inácio)

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