Você está na página 1de 2

O CUIDADO COMO MODO-DE-SER ESSENCIAL

“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve
uma idéia inspirada.
Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o
que havia feito, apareceu Júpiter.
Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado.
Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado,
Júpiter o proibiu.
Exigiu que fosse imposto o seu nome.
Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra.
Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material
do corpo da Terra.
Originou-se então uma discussão generalizada.
De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou
a seguinte decisão que pareceu justa:
‘Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da
morte dessa criatura.
Você Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando
essa criatura morrer.
Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus
cuidados enquanto ela viver.
E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta
criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”
(Gaius Julius Hyginus)

O sintoma mais doloroso, já constatado há décadas por sérios analistas e


pensadores contemporâneos, é um difuso mal-estar da civilização. Aparece sob o
fenômeno do “descuido”, do descaso e do abandono, numa palavra, da falta
de cuidado.
A crise generalizada que afeta a humanidade se revela pelo descuido e pela falta de cuidado com que se
tratam realidades importantes da vida: a destruição da natureza, a contaminação e a poluição
ambiental, os moradores de rua, as crianças condenadas a trabalhar como adultos, os
aposentados, os idosos, os indígenas, a marginalização dos negros e da mulher, a saúde
pública, a educação mínima, a moradia digna, etc...
Tudo o que existe e vive precisa ser cuidado para continuar a existir e a viver: uma planta, um animal,
uma criança, um idoso, o planeta Terra...
É urgente uma práxis de cuidado, de re-ligação, de benevolência, de paz perene para com a Terra, para
com a vida, para com a sociedade e para com o destino das pessoas, especialmente das grandes maiorias
empobrecidas e condenadas da Terra.

Após séculos de materialismo, buscamos hoje ansiosamente uma


espiritualidade simples e sólida, baseada na percepção do mistério do
universo e do ser humano, na ética da responsabilidade, da solidariedade e da
compaixão, fundada no cuidado, no valor intrínseco de cada coisa, no trabalho
bem feito, na competência, na honestidade e na transparência das intenções
(para quem? para quê?...).
O cuidado é algo mais que um ato e uma atitude entre outras.
O cuidado se encontra na raiz primeira do ser humano, antes que ele faça qualquer coisa. E, se fizer, ela
sempre vem acompanhada de cuidado e imbuída de cuidado.
Significa reconhecer o cuidado como um “modo-de-ser essencial” do ser humano.
É uma dimensão fontal, originária, primeira, impossível de ser totalmente desvirtuada.

O cuidado entra na natureza e na constituição do ser humano.


O “modo-de-ser cuidado” revela de maneira concreta como é o ser humano.
Sem cuidado, ele deixa de ser humano. Se não receber cuidado, definha, perde
sentido e morre.
Se, ao longo da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender,
acabará por prejudicar a si mesmo e por destruir o que estiver à sua
volta. Por isso o cuidado deve ser entendido na linha da essência hu-
mana. O cuidado há de se estar presente em tudo. O ser humano é um
“ser-de-cuidado”, mais ainda, sua essência se encontra no cuidado.
O cuidado é o remédio contra o cinismo e a apatia, duas feridas pro-
fundas do nosso tempo. Colocar cuidado em tudo que projeta e faz,
eis a característica singular do ser humano.
Texto bíblico: Mt. 6,25-34

Você também pode gostar