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1
A
disciplina
do
uso
da
Internet
no
Brasil
tem
a
liberdade
de
expressão
como
o
seu
fundamento,
conforme
dispõe
o
artigo
2º.
Logo
em
seguida,
no
artigo
3º,
a
sua
garantia
aparece
como
princípio
dessa
mesma
disciplina.
O
artigo
8º,
por
sua
vez,
afirma
que
a
proteção
da
liberdade
de
expressão
é
condição
para
o
pleno
exercício
do
direito
de
acesso
à
rede.
No
que
diz
respeito
aos
danos
causados
na
Internet
e
a
consequente
responsabilização
de
seus
agentes,
a
liberdade
de
expressão
desempenha
ainda
dois
relevantes
papéis.
O
caput
do
artigo
19,
que
estabelece
a
regra
para
responsabilização
dos
provedores
de
aplicações
de
Internet,
é
iniciado
com
a
expressão
“com
o
intuito
de
assegurar
a
liberdade
de
expressão
e
impedir
a
censura.”
Com
relação
aos
danos
causados
aos
direitos
autorais
na
Internet,
o
Marco
Civil,
no
parágrafo
segundo
do
mesmo
artigo
19,
afirma
ainda
que
a
aplicação
do
regime
de
responsabilização
por
ele
determinado
depende
de
previsão
legal
específica.
Embora
essa
redação
desloque
o
tratamento
do
tema
para
outro
processo
de
alteração
legislativa,
é
importante
destacar
que,
segundo
o
dispositivo
mencionado,
essa
nova
legislação
específica
deverá
“respeitar
a
liberdade
de
expressão
e
demais
garantias
previstas
no
art.
5o
da
Constituição
Federal”.
O
presente
artigo
passa
em
revista
as
referidas
cinco
menções
à
liberdade
de
expressão
no
Marco
Civil
da
Internet
e,
a
partir
das
mesmas,
busca
abordar
questões
de
natureza
prática
envolvendo
a
sua
tutela
conforme
desenhada
pela
Lei
nº
12.965/14.
Embora
o
campo
de
aplicação
desse
direito
seja
extremamente
abrangente,
a
compreensão
sobre
como
se
dá
a
sua
tutela
é
de
clara
relevância
para
garantir,
nos
casos
práticos,
a
aplicação
dos
dispositivos
legais
em
atenção
às
transformações
constantes
apresentadas
pelas
modernas
tecnologias
de
comunicação
e
informação.
2.
Fundamentos
da
proteção
à
liberdade
de
expressão
Nenhum
outro
conceito
parece
ter
gerado
mais
adágios,
axiomas
e
verbetes
em
dicionários
de
citações
do
que
a
liberdade.
Em
sua
defesa
se
organizaram
no
decorrer
da
história
alguns
dos
mais
importantes
movimentos
políticos
e
sociais,
assim
como,
em
seu
nome,
indizíveis
atrocidades
foram
cometidas.1
Por
ser
tão
próxima
à
natureza
humana
a
ponto
de
se
identificar
com
a
própria
condição
do
homem,
apreender
o
conceito
de
liberdade
é
tarefa
deveras
complexa.
Por
isso,
e
apenas
para
fins
de
argumentação
no
presente
texto,
pode-‐se
dizer
que
a
liberdade
é
a
ausência
de
restrições
de
ordem
física
ou
moral,
não
estando
a
vontade
do
sujeito
submetida
a
de
terceiros.
Assim,
pelo
aspecto
negativo
é
mais
facilmente
compreendida
a
ideia
de
liberdade.2
1 CASANOVA, Ludovico. Del Diritto Constituzonale. Florença, Eugenio e Filipo Cammeli, 1875; p.
29.
2
Vide,
dentre
outros,
Gilberto
Haddad
Jabur,
Liberdade
de
Pensamento
e
Direito
à
Vida
Privada.
São
Paulo:
Revista
dos
Tribunais,
2000;
p.
141.
Uma
definição
pelo
aspecto
positivo
é
apresentada
2
Vide,
dentre
por
outros,
Antonio
Gilberto
Scalisi,
Haddad
segundo
Jabur,
o
qual,
Liberdade
de
Pensamento
e
Direito
à
Vida
Privada.
a
liberdade
é
“a
faculdade
do
homem
de
explicar
São
Paulo:
Revista
dos
Tribunais,
2000;
p.
141.
Uma
definição
pelo
aspecto
positivo
é
2
A
vontade
do
sujeito,
contudo,
pode
não
ser
exteriorizada.
Justamente
por
isso
é
importante
ressaltar
que
essa
dimensão
interna
da
liberdade
não
sofre
qualquer
restrição
de
natureza
jurídica.
Por
outro
lado,
é
exatamente
no
atuar
do
indivíduo,
na
expressão
de
seu
pensamento,
que
o
Direito
incide
para
ordenar
condutas
e
promover
o
apaziguamento
das
relações
sociais.
Saber
em
quais
condições
o
Direito
protege
essa
expressão
é
de
fundamental
relevância.
Através
dessa
percepção,
poderia
se
imaginar
que
a
presença
de
uma
norma
jurídica
implica
necessariamente
no
cerceamento
da
vontade
individual,
constituindo
uma
verdadeira
prisão
do
livre-‐arbítrio.
Essa
noção
foi
exposta,
em
termos
literários,
por
Giuseppe
Tomasi
di
Lampedusa,
autor
do
célebre
romance
Gattopardo,
em
seu
poema
La
gioia
e
la
legge,
no
qual
a
existência
de
lei
opõe-‐se
ao
sentimento
de
felicidade.3
Todavia,
a
oposição
não
é
de
todo
procedente,
pois
ao
lado
de
sua
função
repressiva,
cerceadora
da
liberdade
individual,
a
lei
também
–
e
principalmente
–
assegura
os
direitos
fundamentais
a
dignidade
da
pessoa
humana.
Essa
dupla
missão
é
presente
no
texto
constitucional,
ao
tutelar
direitos
e
ao
impor
deveres
e
restrições.
Da
mesma
forma,
o
Marco
Civil
da
Internet,
profícuo
em
menções
à
liberdade
de
expressão,
explicita
em
seu
artigo
6º
que
a
sua
vigência
não
visa
apenas
a
sancionar
condutas,
como
mais
tipicamente
se
esperaria
de
uma
legislação
penal,
mas
principalmente
visa
a
assegurar
as
liberdades
conquistadas
através
do
uso
da
rede.
Tanto
é
assim
que
a
própria
“natureza
da
internet”
é
alçada
explicitamente
ao
patamar
de
vetor
interpretativo,
conforme
consta
do
mencionado
artigo:
Art.
6o
Na
interpretação
desta
Lei
serão
levados
em
conta,
além
dos
fundamentos,
princípios
e
objetivos
previstos,
a
natureza
da
internet,
seus
usos
e
costumes
particulares
e
sua
importância
para
a
promoção
do
desenvolvimento
humano,
econômico,
social
e
cultural.
Nesse
sentido,
o
melhor
entendimento
das
razões
que
justificam
a
edição
do
Marco
Civil
da
Internet
parecem
apontar
para
o
fato
de
que
a
regulação
das
relações
travadas
pela
internet
através
de
seus
dispositivos
visa
não
apenas
a
orientar
condutas
e
apontar
os
princípios
que
devem
reger
regulações
futuras
sobre
a
internet
no
País,
mas
também
garantir
que
as
liberdades
conquistadas
através
do
desenvolvimento
da
internet
e
das
tecnologias
de
informação
e
comunicação
não
sejam
erodidas
por
interesses
diversos.
Em
fóruns
globais
sobre
regulação
e
governança
da
rede
é
sempre
repetida
a
expressão
“internet
freedom”.
Nesse
compasso,
é
importante
esclarecer
-‐
e
o
Marco
Civil
auxilia
nessa
empreitada
-‐
que
a
liberdade
desfrutada
apresentada
por
Antonio
Scalisi,
segundo
o
qual,
a
liberdade
é
“a
faculdade
do
homem
de
explicar
a
própria
personalidade,
interpretar
e
viver
a
experiência
existencial,
segundo
um
próprio
e
pessoal
modo
de
sentir
o
universo
ao
qual
pertence”
(in
Il
Valore
della
Persona
nel
Sistema
e
i
Nuovi
Diritti
della
Personalittà.
Milão,
Giuffrè,
1990;
p.
31).
3
Apud.
LUÑO,
Antonio-‐Enrique
Pérez.
Teoría
del
Derecho.
Madrid,
Tecnos,
2002;
p.
25.
3
na
Internet
não
existe
porque
não
há
lei
que
regule
as
condutas
ali
desempenhadas,
mas
ao
contrário,
ela
existe
justamente
por
que
as
leis
que
atualmente
se
projetam
ou
que
começam
a
vigorar,
além
da
interpretação
de
leis
anteriores
ao
desenvolvimento
da
rede,
devem
procurar
preservar
as
liberdades
conquistadas
pelo
desenvolvimento
da
tecnologia,
sempre
atentando
para
o
equilíbrio
de
direitos
envolvidos
em
sua
aplicação.
A
própria
liberdade
apenas
pode
ser
praticada
plenamente
em
razão
de
prover
ao
Direito
os
meios
necessários
para
a
sua
efetividade.
A
função
repressora
e
protetora
da
lei
já
estava
sintetizada
desde
os
tempos
romanos,
quando
se
cunhou
o
brocardo
ubi
lex,
ibi
poena;
ubi
periculum,
ibi
lex.
Para
o
Direito,
o
ser
humano,
condenado
à
liberdade,
segundo
trecho
sempre
referido
de
Sartre4,
é
livre
para
atuar
no
mundo
da
forma
que
melhor
lhe
aprouver,
contanto
que
não
incida
em
proibitivo
jurídico.
Por
outro
lado,
é
o
próprio
Direito
que
irá
garantir
o
exercício
dessa
liberdade,
tutelando
diversas
manifestações
desse
primeiro
direito
à
liberdade.
Assim,
encontram
proteção
no
ordenamento
jurídico
as
liberdades
de
pensamento,
de
comunicação,
de
religião,
de
expressão
intelectual,
artística
e
científica,
profissional,
e
de
reunião.
Por
conta
dos
desafios
apresentados
pelo
desenvolvimento
da
internet,
maior
destaque
será
aqui
concedido
à
análise
da
liberdade
de
expressão
e
seus
contornos
constitucionais,
já
que
é
justamente
a
partir
de
uma
interpretação
sobre
como
a
Constituição
protege
essa
liberdade
que
poderá
ser
melhor
compreendida
a
sua
tutela
no
Marco
Civil
da
Internet.
2.1.
Liberdade
de
pensamento
e
de
expressão
Dentre
as
diversas
formas
de
manifestação
da
liberdade
individual,
a
Constituição
Federal
confere
amplo
tratamento
ao
tema
da
liberdade
de
pensamento
e
de
expressão.
As
referidas
liberdades
podem
ser
caracterizadas
como
liberdades
de
conteúdo
intelectual,
tendo
como
pressuposto
para
o
seu
exercício
a
interação
entre
indivíduos,
com
o
escopo
de
fazer
comunicar
o
produto
do
pensamento,
mais
especificamente,
as
suas
crenças,
conhecimentos,
ideologias,
opiniões
políticas
e
trabalhos
científicos.5
Partindo-‐se
do
binômio
pensamento/manifestação,
pode-‐se,
para
fins
meramente
acadêmicos,
separar
o
pensamento
não
exteriorizado
daquele
já
manifestado.
Surge
assim
uma
divisão
entre
liberdade
de
pensamento,
configurada
no
direito
à
liberdade
de
opinião,
ainda
que
não
manifestada,
e
liberdade
de
expressão,
através
da
qual
se
tutela
a
livre
manifestação
do
pensamento.
4
SARTRE,
Jean-‐Paul.
L’Existentialisme
est
un
Humanisme.
Paris,
Nagel,
1970;
p.
37.
5
SILVA,
José
Afonso
da.
Curso
de
Direito
Constitucional
Positivo.
São
Paulo:
Malheiros,
1999,
p.
240.
4
A
liberdade
de
expressão
abrange
basicamente
um
direito
individual
à
manifestação
do
pensamento
e
à
criação.
Para
além
do
pensamento
não
exteriorizado,
a
liberdade
de
expressão
tutela
a
liberdade
de
culto
e
organização
religiosa,
a
liberdade
de
expressão
intelectual,
artística
e
científica
e
cultural,
bem
como
a
liberdade
de
informação.
O
pensamento
íntimo,
não
exteriorizado
pelo
indivíduo,
é
o
objeto
de
proteção
da
liberdade
de
opinião.
Quando
e
se
for
exteriorizado,
a
liberdade
de
opinião
dará
espaço
à
liberdade
de
manifestação
do
pensamento
(expressão).
Conforme
esclarece
Claudio
Luiz
Bueno
de
Godoy:
“forma-‐se
assim
a
opinião
do
indivíduo,
que
ele,
como
expressão
ainda
da
liberdade
de
pensamento,
já
sob
sua
vertente
exterior,
tem
o
direito
de
propagar.”6
A
liberdade
de
opinião
pode
ser
considerada
o
ponto
de
partida
para
todas
as
demais
espécies
de
liberdade
de
pensamento,
pois
representa
a
possibilidade
de
adotar
o
indivíduo
a
atitude
intelectual
que
melhor
lhe
aprouver.
A
proteção
constitucional
à
liberdade
de
opinião
está
contemplada
na
parte
inicial
do
art.
5º,
VI,
da
Constituição
Federal,
segundo
o
qual
“é
inviolável
a
liberdade
de
consciência
e
de
crença”,
bem
como
na
redação
do
art
5º,
VIII,
que
garante
a
liberdade
de
crença
religiosa
e
convicção
filosófica.
A
liberdade
de
expressão,
por
sua
vez,
traduz-‐se
na
faceta
externa
da
liberdade
de
pensamento,
conferindo
a
Constituição
uma
tutela
em
caráter
genérico
para
a
manifestação
do
pensamento.
Essa,
por
seu
turno,
poderá
ter
por
conteúdo
uma
crença
religiosa,
uma
matéria
jornalística,
um
trabalho
científico
e
etc.
A
tutela
conferida
à
liberdade
de
expressão,
está
regrada
no
texto
constitucional
no
art.
5º,
IV,
da
Constituição
Federal,
que
garante
a
livre
manifestação
do
pensamento,
sendo
vedado
o
anonimato,
e
no
art.
5º,
XIV,
segundo
o
qual
“é
assegurado
a
todos
o
acesso
à
informação
e
resguardado
o
sigilo
da
fonte,
quando
necessário
ao
exercício
profissional”.
O
artigo
220
da
CFRB,
por
seu
turno,
afirma
que
a
“manifestação
do
pensamento,
a
criação,
a
expressão
e
a
informação,
sob
qualquer
forma,
processo
ou
veículo
não
sofrerão
qualquer
restrição,
observado
o
disposto
nesta
Constituição”.
A
liberdade
de
expressão,
na
dicção
de
Ingo
Wolfgang
Sarlet,
“nas
suas
mais
diversas
manifestações,
engloba
tanto
o
direito
(faculdade)
de
a
pessoa
se
exprimir
quanto
o
de
não
se
expressar
ou
mesmo
de
não
se
informar”.
Sendo
assim,
“em
primeira
linha,
a
liberdade
de
expressão
assume
a
condição
precípua
de
direito
de
defesa
(direito
negativo),
operando
como
o
direito
da
pessoa
de
não
ser
impedida
de
exprimir
e/ou
divulgar
suas
ideias
e
opiniões,
sem
prejuízo,
6 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A Liberdade de Imprensa e os Direitos da Personalidade. São
5
todavia,
de
uma
correlata
dimensão
positiva,
visto
que
a
liberdade
de
expressão
implica
um
direito
de
acesso
aos
meios
de
expressão”.7
Ao
oferecer
um
ambiente
favorável
ao
desenvolvimento
da
liberdade
de
expressão,
busca
o
texto
constitucional
empoderar
não
apenas
o
indivíduo,
mas
também
criar
condições
para
o
desenvolvimento
do
próprio
Estado
Democrático
de
Direito.
Essa
empreitada
não
se
esgota
no
texto
normativo.
Ao
contrário,
ela
dialoga
com
as
práticas
sociais
para
fortalecer
uma
cultura
de
tutela
da
liberdade
de
expressão
que
incentive
e
aprimore
a
participação
na
vida
pública,
ao
mesmo
tempo
em
que
cria
condições
para
o
amplo
desenvolvimento
da
personalidade.
Conforme
expõe
Nicole
Mader
Gonçalves:
“A
consolidação
de
um
Estado
Democrático
de
Direito,
no
qual
os
cidadãos
exercem
com
plenitude
a
autonomia
pública,
participando
da
esfera
pública
de
decisão
de
forma
livre
e
igual,
e
possuem
segurança
e
proteção
para
o
desenvolvimento
de
sua
autonomia
privada,
isto
é,
para
refletir,
pensar,
participar
e
se
expressar
de
forma
livre,
está
diretamente
condicionada
a
forma
como
a
liberdade
de
expressão
está
interiorizada
nas
práticas
e
nos
costumes
sociais.”8
A
partir
dessa
rápida
incursão
sobre
os
fundamentos
da
proteção
à
liberdade
de
expressão
pode-‐se
então,
a
seguir,
analisar
os
cinco
momentos
em
que
a
sua
tutela
é
acionada
no
Marco
Civil
da
Internet
e
quais
controvérsias
de
natureza
prática
ela
pode
gerar.
3.
Liberdade
de
expressão
como
fundamento
da
disciplina
do
uso
da
Internet
no
Brasil:
O
caput
do
art.
2º
do
Marco
Civil
da
Internet
afirma
que
“a
disciplina
do
uso
da
internet
no
Brasil
tem
como
fundamento
o
respeito
à
liberdade
de
expressão”.
Logo
em
seguida,
o
dispositivo
aponta
outros
fundamentos
que,
juntamente
com
a
liberdade
de
expressão,
exercem
esse
papel
essencial
para
a
construção
da
disciplina
da
rede
no
Brasil.
Dentre
os
incisos
do
artigo
segundo
pode-‐se
encontrar
também
designados
como
fundamentos
os
“direitos
humanos,
o
desenvolvimento
da
personalidade
e
o
exercício
da
cidadania
em
meios
digitais”(art.
2º,
II),
a
“pluralidade
e
a
diversidade”
(art.
2º,
III),
a
“livre
iniciativa,
a
livre
concorrência
e
a
defesa
do
consumidor”
(art.
2º,
V)
e
a
“finalidade
social
da
rede”
(art.
2º,
VI).
Um
primeiro
questionamento
que
surge
da
leitura
desse
dispositivo
é
a
razão
para
a
liberdade
de
expressão
ter
gozado,
na
redação
da
Lei
nº
12965/14,
de
um
destaque
tão
evidente,
fazendo-‐se
constar
no
caput
do
artigo
segundo
como
fundamento
da
disciplina
da
rede,
ao
passo
que
os
demais
fundamentos
encontram-‐se
elencados
nos
subsequentes
incisos.
7
SARLET,
Ingo
Wolfgang;
MARINONI,
Luiz
Guilherme;
e
MITIDIERO,
Daniel.
Curso
de
Direito
Constitucional.
São
Paulo:
Revista
dos
Tribunais,
3ª
ed.,
2014;
p.
459.
8
GONÇALVES,
Nicole
P.S.
Mader.
“Liberdade
de
Expressão
e
Estado
Democrático
de
Direito”,
in
CLÈVE,
Clèmerson
Merlin
(coord).
Direito
Constitucional
Brasileiro.
São
Paulo:
Revista
dos
Tribunais,
2014;
p.
403.
6
Existem,
na
verdade,
razões
técnicas
e
políticas
para
esse
tratamento
concedido
à
liberdade
de
expressão.
Em
termos
políticos,
a
colocação
da
liberdade
de
expressão
em
destaque
logo
no
caput
do
artigo
2º
atende
à
demanda
de
prontamente
defender
a
legislação
como
um
passo
importante
para
melhor
garantir
a
manifestação
do
pensamento
na
Internet.
A
rede
mundial
de
dispositivos
conectados
é
frequentemente
associada
à
potencialização
das
formas
de
expressão,
furando
bloqueios
impostos
por
governos
ou
empresas
sobre
outros
meios
de
comunicação.
Embora
essa
seja
uma
visão
simplista
dos
desafios
que
a
liberdade
de
expressão
enfrenta
para
a
sua
realização
na
Internet
-‐
já
que
a
mesma
rede
que
potencializa
o
discurso
também
pode
ser
um
meio
eficaz
para
o
seu
cerceamento
-‐
existe
até
por
conta
de
seu
alcance
global,
a
percepção
de
que
a
Internet
seria
um
território
de
franco
exercício
da
liberdade
de
expressão.
Durante
o
processo
que
levou
à
aprovação
do
Marco
Civil,
muitas
foram
as
críticas
destinadas
ao
então
projeto
de
lei
pelo
simples
fato
dele
buscar
estabelecer
parâmetros
para
a
regulação
do
uso
da
Internet
no
País.
Conforme
exposto
no
item
2
acima,
a
simples
existência
de
uma
lei
para
tratar
de
temas
relacionados
ao
desenvolvimento
da
tecnologia
pode
ser
vista
como
uma
restrição
à
liberdade
pretensamente
existente
justamente
pela
ausência
de
uma
lei
específica.
O
processo
de
aprovação
do
Marco
Civil
da
Internet
precisou
contornar
então
a
natural
desconfiança
de
parte
da
comunidade
técnica,
que
via
na
Lei
–
ou
em
qualquer
lei,
diga-‐se
de
passagem
–
uma
intromissão
no
desenvolvimento
de
práticas
que
são
transformadas
pela
natural
evolução
dos
usos
da
rede.
Adicionalmente,
componentes
de
natureza
político-‐partidária
se
juntaram
à
mencionada
resistência,
procurando
descredenciar
a
iniciativa
do
projeto
de
lei
como
sendo
uma
manobra
do
Governo
Federal
para
cercear
discursos
contrários
aos
seus
interesses
na
rede.
Sendo
assim,
o
destaque
dado
à
liberdade
de
expressão
no
caput
do
artigo
2º
possui
inegavelmente
um
componente
político,
procurando
rebater,
de
uma
só
vez,
uma
parcela
da
comunidade
técnica
que
via
no
Marco
Civil
uma
intromissão
no
progresso
tecnológico,
ao
mesmo
tempo
em
que
se
procurava
evidenciar
que
a
sua
aprovação
não
levaria
a
qualquer
efeito
de
censura;
muito
pelo
contrário,
a
liberdade
de
expressão
estava
até
mesmo
consagrada
em
grande
destaque
como
fundamento
da
disciplina
da
Internet
no
Brasil.
Um
segundo
componente
que
ajuda
a
esclarecer
o
papel
desempenhado
pelo
Marco
Civil
da
Internet
no
caput
do
artigo
2º
não
é
de
natureza
política,
mas
sim
técnica.
Da
leitura
do
texto
da
Lei
nº
12.965/14
como
um
todo
pode-‐se
perceber
que
o
legislador
procurou
criar
um
ambiente
favorável
à
manifestação
de
pensamento
na
rede.
Esse
ambiente
pode
ser
percebido
não
apenas
pelas
enunciações
gerais
de
seus
primeiros
dispositivos,
mas
especialmente
a
partir
do
regime
de
responsabilidade
civil
estabelecido
nos
artigos
18
e
seguintes.
7
Em
especial
o
artigo
19,
que
será
melhor
detalhado
mais
à
frente,
cria
para
os
chamados
provedores
de
aplicações
de
Internet
um
ambiente
que
restringe
a
possibilidade
de
sua
responsabilização
por
conteúdos
gerados
por
terceiros
apenas
para
casos
de
descumprimento
de
ordem
judicial.
Esse
regime
de
isenção
de
responsabilidade
dos
provedores
se
apoia
claramente
em
outras
iniciativas
legislativas
que
geraram
forte
impacto
para
a
promoção
do
discurso
e
para
a
inovação
em
outros
países,
conforme
se
deu,
por
exemplo,
com
o
artigo
230
do
Communications
Decency
Act,
nos
Estados
Unidos.9
Dessa
forma,
o
sistema
de
responsabilização
de
provedores
de
aplicações
no
Marco
Civil
garante
que
o
não
atendimento
de
uma
notificação
privada
não
seria
suficiente,
em
regra,
para
tornar
o
provedor
responsável
por
conteúdo
de
terceiro.
Entendendo
que
essa
engenharia
garante
um
ambiente
mais
favorável
à
livre
manifestação
do
pensamento,
confere-‐se
sentido
à
redação
do
caput
do
artigo
2º
ao
eleger
a
liberdade
de
expressão
como
fundamento
da
disciplina
do
uso
da
rede
no
País.
Na
verdade,
a
menção
à
liberdade
de
expressão
no
caput
do
artigo
2º
guarda
até
mesmo
uma
certa
atecnicidade,
já
que
logo
em
seguida,
no
inciso
II,
é
afirmado
que
os
direitos
humanos
são
também
fundamento
da
disciplina
do
uso
da
rede.
Sob
todas
as
luzes,
a
liberdade
de
expressão
é
um
direito
humano,
razão
pela
qual
já
estaria
contemplada
como
fundamento
da
disciplina
da
rede
no
Brasil
apenas
pela
redação
do
inciso
II.
Todavia,
tendo
em
vista
as
motivações
políticas
e
técnicas
aqui
mencionadas,
torna-‐se
claro
o
papel
que
o
seu
posicionamento
no
caput
do
artigo
2º
desempenha.
4.
Liberdade
de
expressão
como
princípio
da
disciplina
do
uso
da
Internet
no
Brasil:
O
art.
3º,
I,
da
Lei
nº
12.965/14
determina
que
a
disciplina
do
uso
da
internet
no
Brasil
tem
como
um
de
seus
princípios
a
“garantia
da
liberdade
de
expressão,
comunicação
e
manifestação
de
pensamento,
nos
termos
da
Constituição
Federal”.
Através
dessa
redação
percebe-‐se
que
a
liberdade
de
expressão,
além
de
ser
fundamento
para
a
disciplina
do
uso
da
Internet
no
País,
é
também
um
dos
princípios
que
devem
reger
essa
disciplina.
Vale
destacar
que,
na
locução
do
mencionado
artigo,
a
garantia
da
liberdade
de
expressão
será
desempenhada
“nos
termos
da
Constituição
Federal”,
atraindo
assim
toda
a
experiência
9 Vide, dentre outros, o relatório “Shielding the Messengers: Protecting Platforms for Expression
and
Innovation”,
elaborado
pelo
CDT
-‐
Center
for
Democracy
&
Technology,
em
dezembro/2012,
in
https://www.cdt.org/files/pdfs/CDT-‐Intermediary-‐Liability-‐2012.pdf
(acessado
em
20.12.2014).
No
mesmo
sentido,
para
uma
relação
de
casos
envolvendo
a
aplicação
do
artigo
230,
vide
a
compilação
elaborada
pela
EFF
-‐
Electronic
Frontier
Foundation:
https://www.eff.org/pt-‐
br/issues/cda230
(acessado
em
20.12.2014).
8
acumulada
por
décadas
de
interpretação
sobre
os
dispositivos
constitucionais
sobre
o
tema,
em
especial
os
artigos
5º,
IV
e
220
da
CFRB.
Uma
vez
incorporada
a
disciplina
constitucional
da
liberdade
de
expressão
ao
Marco
Civil
da
Internet,
uma
questão
surge
com
grande
evidência:
o
papel
desempenhado
pelo
anonimato
na
rede
e
como
compatibilizar
o
seu
desenvolvimento
com
o
texto
constitucional
que
garante
a
liberdade
de
expressão,
mas
proíbe
o
discurso
anônimo.
Para
melhor
compreender
esse
dilema
e
como
pode
ser
o
texto
constitucional
interpretado
de
modo
a
viabilizar
as
diversas
formas
de
implementação
do
anonimato
na
rede,
é
necessário
recorrer
de
início
à
experiência
norte-‐americana
sobre
o
tema,
já
que
o
tratamento
concedido
ao
discurso
anônimo
nos
Estados
Unidos
pode
oferecer
boas
indicações
sobre
o
tema.
4.1.
A
tutela
da
liberdade
de
expressão
nos
Estados
Unidos
A
liberdade
de
expressão
é
garantida
no
ordenamento
jurídico
norte-‐
americano
pela
Primeira
Emenda
à
Constituição.
Uma
longa
trajetória
de
decisões
que
buscaram
compatibilizar
o
texto
–
que
aparentemente
assegura
à
liberdade
de
expressão
um
tratamento
absoluto
–
com
os
demais
direitos
fundamentais
e
interesses
coletivos,
como
a
segurança
pública,
terminaram
por
moldar
uma
tutela
rigorosa
visando
à
preservação
da
liberdade
do
cidadão
para
se
expressar
livremente,
salvo
algumas
exceções
nas
quais
entendeu
o
Judiciário
que
a
liberdade
individual
deveria
ceder
espaço
para
valores
mais
relevantes
no
caso
concreto.
Assim
dispõe
a
Emenda
nº
01
à
Constituição
norte-‐americana:
“Congress
shall
make
no
law
respecting
the
establishment
of
religion,
or
prohibiting
the
free
exercise
thereof;
or
abridging
the
freedom
of
speech,
or
of
the
press;
or
the
right
of
the
people
peaceably
to
assemble,
and
to
petition
the
Government
for
a
redress
of
grievances.”
Para
compatibilizar
a
liberdade
de
expressão
com
outros
direitos,
a
jurisprudência
da
Suprema
Corte
norte-‐americana
criou
diversos
standards
para
mesurar
se,
em
determinada
situação,
a
referida
liberdade
deve
ser
cerceada.
Um
dos
mais
conhecidos
standards
norte-‐americanos
é
o
denominado
“perigo
claro
e
iminente”
(clear
and
present
danger),
segundo
o
qual
serão
constitucionais
restrições
impostas
pela
legislação
à
liberdade
de
expressão,
se
a
mesma
se
justificar
“por
evidente
interesse
público,
ameaçado
não
por
um
perigo
duvidoso
e
remoto,
mas
por
um
perigo
evidente
e
atual”.10
10 Trecho do voto do Justice Rutlegde, proferido no caso Thomas vs. Collins. Apud. SARMENTO,
Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio: Lumen Juris, 2002; p. 158.
9
O
critério
do
perigo
claro
e
iminente
foi
criado
a
partir
de
voto
proferido
pelo
Justice
Oliver
Wendell
Holmes
no
caso
Schenk
vs.
Arizona,
julgado
em
1919.
O
caso
envolvia
a
distribuição
de
panfletos
pelo
correio
realizada
por
dois
indivíduos,
visando
obstruir
o
alistamento
nas
forças
armadas
durante
a
Primeira
Guerra
Mundial.
O
texto
objeto
da
controvérsia
convocava
o
cidadão
norte-‐americano
a
resistir
à
intimidação
do
alistamento,
apontava
o
interesse
de
uma
escolhida
minoria
de
Wall
Street
na
participação
dos
Estados
Unidos
no
conflito,
bem
como
negava
o
acerto
em
se
enviar
soldados
americanos
“a
fim
de
aterrorizar
os
povos
de
outras
terras”.11
Em
seu
voto,
o
Justice
Holmes
afirmou
que
“[a]
mais
rígida
garantia
da
liberdade
de
expressão
não
protegeria
um
homem
que
falsamente
gritasse
‘fogo!’
num
teatro,
e,
assim,
causasse
pânico...
A
questão
em
cada
caso
é
saber
se
as
palavras
foram
usadas
em
circunstâncias
e
são
de
tal
natureza
que
envolvem
perigo
claro
e
iminente
(“clear
and
present
danger”)
de
produzirem
os
males
substantivos
que
o
Congresso
tem
o
direito
de
prevenir.”12
Nos
anos
sessenta,
durante
o
período
que
ficou
conhecido
como
a
Corte
de
Warren,
a
liberdade
de
expressão
foi
fortemente
tutelada,
alcançando
a
Primeira
Emenda
uma
efetividade
inédita,
declarando-‐se
a
inconstitucionalidade
de
diversos
atos
legislativos
que
restringiam
de
forma
indevida
as
liberdades
previstas
naquele
dispositivo.
Atualmente
a
Suprema
Corte
utiliza
também
outros
standards
para
avaliar
a
conveniência
de
se
declarar
uma
lei
inconstitucional
por
lesão
à
Primeira
Emenda.
A
proteção
à
liberdade
de
expressão
tem
sido
mais
intensa
para
discursos
de
natureza
política
e
um
dos
debates
inseridos
no
contexto
de
tutela
da
liberdade
de
expressão
a
partir
da
Primeira
Emenda
é
justamente
aquele
derivado
da
proteção
do
chamado
“discurso
anônimo”
e
em
especial
a
sua
proteção
na
internet.
A
Corte
Distrital
de
Washington,
por
exemplo,
ao
apreciar
caso
de
postagem
anônima
na
rede,
afirmou
que
“a
internet
é
um
verdadeiro
fórum
democrático
para
a
comunicação.
Ela
permite
o
livre
intercâmbio
de
ideias
de
forma
inédita
tanto
em
velocidade
como
em
escala.
Por
essa
razão,
os
direitos
constitucionais
dos
usuários
da
internet,
incluindo
a
proteção
da
Primeira
Emenda
ao
discurso
anônimo,
devem
ser
tutelados
de
forma
cuidadosa.”13
A
Corte
Distrital
do
Norte
da
Califórnia,
por
sua
vez,
ao
analisar
caso
envolvendo
a
postagem
anônima
de
críticas
em
um
blog,
explicitou
que
“as
pessoas
podem
interagir
através
de
pseudônimos
ou
de
forma
de
anônima,
contanto
que
seus
atos
não
impliquem
em
violação
à
lei.
A
possibilidade
de
se
11 Conforme relata o voto de Wendell Holmes, transcrito em CAPALDI, Nicholas. Da Liberdade de
Expressão:
uma
antologia
de
Stuart
Mill
a
Marcuse.
Rio,
FGV,
1984;
p.
51.
12
RODRIGUES,
Leda
Boechat.
A
Corte
Suprema
e
o
Direito
Constitucional
Norte-‐Americano.
Rio,
10
expressar
sem
que
terceiros
possam
saber
detalhes
sobre
a
sua
identidade
pode
fomentar
a
comunicação
ampla
e
um
debate
robusto.”14
Justamente
pela
forte
proteção
constitucional
conferida
ao
discurso
anônimo,
as
Cortes
norte-‐americanas
criaram
nos
últimos
quinze
anos
uma
série
de
condições
para
que
a
vítima
de
ofensas
derivadas
de
comentários
anônimos
possa
requerer
judicialmente
a
identificação
do
autor
do
discurso
lesivo.
Os
critérios
para
que
essa
identificação
ocorra
são
os
mais
variados,
mas
o
elenco
de
condições
impostas
no
caso
Dendrite
Int’l
v.
Doe
No.
3,
apreciado
pela
Corte
Superior
de
Nova
Jersey,
ganhou
especial
destaque
e
vem
sendo
rotineiramente
aplicado
para
danos
causados
através
da
internet
por
postagens
anônimas.
Segundo
o
teste
decorrente
da
decisão,
a
vítima,
ao
buscar
a
identificação
da
autoria
de
comentário
lesivo
e
anônimo,
precisará
reunir
cinco
condições
para
o
sucesso
de
sua
demanda:
(i)
demonstrar
que
a
vítima
se
compromete
a
promover
a
citação
do
autor
do
discurso
anônimo;
(ii)
indicar
claramente
a
expressão
do
pensamento
que
viola
seus
direitos;
(iii)
apontar
que
o
Poder
Judiciário
poderá
analisar
o
caso
e
que
a
ação
contra
o
autor
do
discurso
anônimo
é
viável;
(iv)
produzir
provas
suficientes
que
possam
prima
facie
instruir
a
ação;
e
(v)
a
Corte
ponderar
a
proteção
do
discurso
anônimo
presente
na
Primeira
Emenda
com
a
força
dos
argumentos
apresentados
pela
vítima
do
dano
no
sentido
de
se
revelar
a
identidade
do
autor
do
discurso
anônimo
e
ofensivo.”15
Dessa
forma,
percebe-‐se
que
na
tradição
constitucional
norte-‐americana
o
discurso
anônimo
é,
em
regra,
protegido
pela
Primeira
Emenda,
sendo
permitido,
em
situações
restritas,
à
vítima
do
dano
buscar
a
identificação
de
seu
autor
e
a
partir
desse
resultado
prosseguir
com
uma
ação
de
natureza
indenizatória.
É
importante
conhecer
a
experiência
norte-‐americana
sobre
o
tema
para
que
se
possa
compreender
em
que
medida
a
disciplina
do
tema
no
Brasil
se
diferencia
daquele
tratamento
conferido
nos
Estados
Unidos.
Ainda
que
o
Brasil
não
tenha
uma
tradição
em
proteger
o
discurso
anônimo
como
ocorre
naquele
País,
é
preciso
reconhecer
quais
são
as
razões
para
que
a
tutela
constitucional
da
liberdade
de
expressão
tenha
sido
atrelada
à
vedação
do
anonimato
e
como
a
mesma
pode
ser
realizada
em
tempos
de
internet.
4.2.
A
vedação
ao
anonimato
no
Direito
brasileiro
O
artigo
5º
IV,
da
Constituição
Federal,
proclama
ser
"livre
a
manifestação
do
pensamento,
sendo
vedado
o
anonimato".
Esse
dispositivo
traz
para
o
Direito
brasileiro
a
percepção
de
que
o
discurso
anônimo
não
deve
ser
protegido,
distanciando-‐se
assim
da
tradição
norte-‐americana,
conforme
retratada.
14
Columbia
Ins.
Co.
v.
Seescandy.Com,
185
F.R.D.
573,
578
(N.D.Cal.
1999)
15
Dendrite
International,
Inc.
v.
Doe
No.
3,
A-‐2774-‐00T3
(2001)
11
Mas
qual
seria
a
razão
para,
na
experiência
brasileira,
a
tutela
da
liberdade
de
expressão
não
incluir
a
proteção
ao
discurso
anônimo?
Na
raiz
desse
preceito,
conforme
explicitado
pelos
mais
renomados
comentaristas
ao
texto
constitucional,
está
a
preocupação
em
se
identificar
quem
é
o
autor
de
uma
manifestação
do
pensamento
para
que
o
mesmo
possa
responder
pelos
eventuais
abusos
na
expressão
e
danos
que
vier
a
causar.
A
vedação
ao
anonimato,
vale
lembrar,
não
foi
introduzida
no
Direito
brasileiro
pela
atual
Constituição.
A
sua
disposição
decorre
desde
a
Constituição
de
1891,
em
seu
art.
72,
§
12.
Desde
então
esse
atrelamento
entre
vedação
ao
anonimato
e
necessidade
de
se
responsabilizar
o
autor
de
danos
causados
através
do
abuso
na
manifestação
do
pensamento
é
recorrente
na
doutrina
e
na
jurisprudência
nacional.
Nesse
sentido
já
se
pronunciou
o
Supremo
Tribunal
Federal:
“O
veto
constitucional
ao
anonimato,
como
se
sabe,
busca
impedir
a
consumação
de
abusos
no
exercício
da
liberdade
de
manifestação
do
pensamento,
pois,
ao
exigir-‐se
a
identificação
de
quem
se
vale
dessa
extraordinária
prerrogativa
político-‐jurídica,
essencial
à
própria
configuração
do
Estado
democrático
de
direito,
visa-‐se,
em
última
análise,
a
possibilitar
que
eventuais
excessos,
derivados
da
prática
do
direito
à
livre
expressão,
sejam
tornados
passíveis
de
responsabilização,
'a
posteriori',
tanto
na
esfera
civil,
quanto
no
âmbito
penal.
(...)
Torna-‐se
evidente,
pois,
que
a
cláusula
que
proíbe
o
anonimato
-‐
ao
viabilizar,
'a
posteriori',
a
responsabilização
penal
e/ou
civil
do
ofensor
-‐
traduz
medida
constitucional
destinada
a
desestimular
manifestações
abusivas
do
pensamento,
de
que
possa
decorrer
gravame
ao
patrimônio
moral
das
pessoas
injustamente
desrespeitadas
em
sua
esfera
de
dignidade,
qualquer
que
seja
o
meio
utilizado
na
veiculação
das
imputações
contumeliosas.”16
(grifos)
Diversos
são
os
autores
que
interpretam
esse
dispositivo
para
realçar
a
sua
finalidade
de
restringir
comportamentos
danosos
e
identificar
o
autor
de
abusos
na
manifestação
do
pensamento.17
Partindo
do
disposto
do
art.
7º,
da
revogada
Lei
de
Imprensa,
que
também
vedava
o
anonimato,
aponta
Edilson
Farias
que,
“tendo
em
vista
que
o
anonimato
significa
a
ocultação
maliciosa
do
próprio
nome
para
fugir
à
responsabilidade
pela
divulgação
de
matérias
que
podem
causar
prejuízos
a
terceiros,
é
fácil
deduzir
que
a
finalidade
precípua
do
princípio
em
tela
é
evitar
que
os
autores
de
mensagens
apócrifas
fiquem
imunes
dos
dados
provocados
à
honra,
à
intimidade
16
STF,
MS
nº
24369
MC/DF,
rel.
Min.
Celso
de
Mello;
j.
em
10/10/2002.
17
Vide,
dentre
outros,
MORAES,
Alexandre
de.
“Constituição
do
Brasil
Interpretada”.
São
Paulo:
12
e
bem-‐estar
da
sociedade,
constituindo,
assim,
a
identificação
do
agente
comunicador
um
ônus
da
liberdade
de
expressão
e
comunicação.”18
Nesse
ponto
parece
muito
apropriada
a
expressão
de
Daniel
Sarmento
sobre
o
modelo
de
tutela
da
liberdade
de
expressão
desenhado
pela
Constituição
de
1988
ser
o
da
“liberdade
com
responsabilidade”.19
Isto
é,
apenas
se
protegeria
o
discurso
na
justa
medida
em
que
se
fizesse
possível
a
identificação
de
seu
autor
para
fins
de
se
promover
a
consequente
responsabilização
por
abusos
cometidos
na
expressão
do
pensamento.
4.3.
Liberdade
de
expressão
e
anonimato
na
Internet
A
evolução
das
forma
de
comunicação
através
da
internet
passam,
em
grande
medida,
pela
preservação
do
anonimato.
Para
fins
políticos,
a
disponibilização
de
meios
de
navegação
e
comunicação
anônimas
têm
sido
cruciais
para
o
desenvolvimento
do
potencial
libertário
da
rede,
em
especial
em
países
cujos
governos
exercem
um
monitoramento
e
uma
censura
rígida
do
que
se
vê
e
do
que
se
posta
na
Internet.
O
atrelamento
entre
a
disponibilização
de
ferramentas
que
permitem
o
uso
anônimo
da
rede
e
importantes
movimentos
de
resistência
política
no
passado
recente
evidenciam
o
papel
que
o
anonimato
exerce
para
impulsionar
a
tutela
da
liberdade
de
expressão
e
do
acesso
ao
conhecimento
e
à
informação.
Uma
das
ferramentas
que
permite
a
navegação
anônima
através
de
uma
série
de
roteamentos
para
a
conexão
à
rede
é
o
browser
Tor.
Hoje
sustentado
por
uma
extensa
comunidade
de
voluntários
e
doadores
para
essa
iniciativa,
o
navegador
Tor
foi
um
instrumento
importante
para
a
comunicação
e
o
acesso
à
informação
que
instruiu
movimentos
políticos
de
extrema
relevância
como
a
Primavera
Árabe.20
Após
as
revelações
trazidas
à
tona
por
Edward
Snowden
sobre
a
implementação
de
um
extenso
programa
de
vigilância
em
massa
na
rede21 ,
ferramentas
de
anonimização
da
navegação
e
de
proteção
do
conteúdo
das
comunicações
pela
internet
se
tornaram
mais
comentadas.
Nesse
sentido,
não
apenas
o
Tor,
mas
também
alguns
dos
navegadores
mais
populares
da
rede
passaram
a
implementar
uma
função
de
“navegação
anônima”,
conforme
hoje
disponível
para
os
browsers
Google
Chrome
e
Mozilla
Firefox.
Além
do
componente
político
e
de
preservação
da
privacidade,
o
anonimato
também
vem
se
constituindo
como
uma
ferramenta
poderosa
para
a
18 FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação – Teoria e Proteção Constitucional. São
F.;
SARLET,
Ingo
W.;
STRECK,
Lenio
L.
(Coords.).
Comentários
à
Constituição
do
Brasil.
São
Paulo:
Saraiva/Almedina,
2013;
p.
259.
20
Tor,
Anonymity,
and
the
Arab
Spring:
An
Interview
with
Jacob
Appelbaum,
in
13
criação
de
comunidades
na
internet.
Nesses
casos,
o
discurso
anônimo
tem
gerado
não
apenas
comunidades
online
para
a
disseminação
de
toda
espécie
de
material,
como
o
site
4Chan,
até
o
desenvolvimento
de
grupos
extremamente
organizados
como
o
anonymous 22 .
Provavelmente
uma
das
evidências
mais
claras
do
papel
que
o
anonimato
desempenha
na
rede,
o
grupo
anonymous
tem
sido
objeto
de
diversos
estudos
sobre
a
sua
controvertida
forma
de
organização
e
de
atuação.23
Durante
os
protestos
que
marcaram
a
recente
histórica
política
do
Brasil,
o
uso
de
máscaras
por
parte
dos
manifestantes
fez
surgir
um
intenso
debate
sobre
os
contornos
da
liberdade
de
expressão
no
País.
Podem
os
manifestantes
cobrir
seus
rostos
com
máscaras
durante
um
protesto?
Como
pode
o
Poder
Público
garantir
que
abusos
cometidos
durante
essas
manifestações
sejam
punidos?
Seria
melhor
proibir
a
utilização
de
máscaras
ou
simplesmente
determinar
que
toda
pessoa
mascarada
poderá
ser
obrigada
a
se
identificar
para
uma
autoridade
policial
para
fins
de
eventual
responsabilização?
Esse
dilema
evidencia
como
o
anonimato,
impulsionado
pelos
comportamentos
naturais
da
rede,
pode
ter
consequências
que
transbordam
o
universo
da
internet.
O
grupo
anonymous
elegeu
a
máscara
utilizada
pelo
revolucionário
irlandês
Guy
Fawkes
(e
popularizada
por
quadrinhos
e
filme)
como
seu
símbolo.
A
mesma
máscara
hoje
em
dia
pode
ser
vista
em
protestos
e
manifestações
pelo
mundo
afora.
Desde
deputados
na
Polônia
usando
a
máscara
como
protesto
contra
a
votação
de
uma
lei
sobre
propriedade
intelectual24,
até
a
sua
extensa
utilização
nos
protestos
de
2013
no
Brasil.
Assim,
elementos
técnicos,
políticos,
sociais
e
jurídicos
se
confundem
no
mosaico
que
reflete
o
papel
relevante
que
o
anonimato
desempenha
na
evolução
das
formas
de
comunicação
através
da
internet.
4.4.
O
caso
do
aplicativo
Secret
Um
caso
ocorrido
logo
após
a
aprovação
do
Marco
Civil
da
Internet
já
teve
a
oportunidade
de
colocar
em
prática
o
debate
aqui
trazido
sobre
o
papel
do
anonimato
na
rede
e
a
tutela
constitucional
da
liberdade
de
expressão.
Tratou-‐se
da
proibição
da
disponibilização
de
um
aplicativo
denominado
“Secret”
no
País.
O
aplicativo
foi
disponibilizado
no
Brasil
através
das
lojas
virtuais
das
empresas
Apple
(“AppStore”)
e
Google
(“Google
Play”),
tendo
rapidamente
se
tornado
um
sucesso
em
número
de
downloads
e
de
usuários
no
País.
Disponibilizado
de
forma
gratuita,
o
aplicativo
permite
que
seus
usuários
publiquem
pequenos
comentários
sem
que
exista
uma
identificação
imediata
sobre
a
autoria
da
mensagem.
22
http://pt.wikipedia.org/wiki/Anonymous
23
Vide,
dentre
outros,
OLSON,
Parmy.
“We
Are
Anonymous:
Inside
the
Hacker
World
of
LulzSec,
Anonymous,
and
the
Global
Cyber
Insurgency”.
Nova
Iorque:
Back
Bay
Books,
2014.
24
http://www.forbes.com/sites/parmyolson/2012/01/27/amid-‐acta-‐outcy-‐politicians-‐don-‐
anonymous-‐guy-‐fawkes-‐masks/
(acessado
em
20.12.2014).
14
Ao
usuário
do
aplicativo
apenas
é
informado
se
o
autor
da
mensagem
é
“amigo”
ou
“amigo
de
amigo”.
Essa
informação
é
obtida
a
partir
do
momento
em
que
o
usuário
autoriza
o
aplicativo
a
ter
acesso
à
lista
de
amigos
do
Facebook
ou
aos
contatos
da
agenda
de
seu
aparelho
celular.
Comentários
mais
populares
podem
ainda
ser
exibidos
no
aplicativo
através
da
seção
“Explorar”.
Em
versões
anteriores
do
aplicativo,
era
ainda
facultado
o
upload
de
qualquer
foto
para
ilustrar
a
mensagem.
Ao
visualizar
uma
mensagem,
outros
usuários
podem
curtir
ou
inserir
comentários.
Não
existe,
nem
para
o
autor
da
mensagem,
nem
para
os
que
comentam,
qualquer
indicação
sobre
autoria
da
mensagem
original
ou
dos
comentários
subsequentes.
A
disponibilização
do
aplicativo
foi
objeto
de
Ação
Civil
Pública
movida
pelo
Ministério
Público
do
Estado
do
Espírito
Santo,
através
de
sua
26ª
Promotoria
Cível
da
Cidade
de
Vitória.
A
ação,
ingressada
contra
as
empresas
Apple,
Google
e
Microsoft,
buscava
proibir
a
disponibilização
do
aplicativo
no
Brasil
por
entender
que
sua
operação
violava
a
vedação
constitucional
ao
anonimato
e
proporcionava
ofensas
à
dignidade
da
pessoa
humana.
O
Juízo
da
5ª
Vara
Cível
concedeu
medida
liminar
para
que
as
empresas
Apple
e
Google
removessem
o
aplicativo
de
suas
lojas
virtuais
e
que,
no
prazo
de
dez
dias,
apagassem
os
aplicativos
já
instalados
de
todos
os
dispositivos
móveis
no
País.
Em
face
dessa
medida,
a
empresa
responsável
pelo
aplicativo
tomou
medidas
para
evitar
que
danos
a
direitos
de
terceiros
fossem
cometidos
através
de
seu
aplicativo.
Nesse
sentido,
foi
restringida
inicialmente
a
utilização
de
fotos
na
plataforma
para
usuários
brasileiros.
A
empresa
afirmou
ainda
à
imprensa
que
buscava
remover
rapidamente
qualquer
publicação
ilícita
assim
que
notificada
pela
eventual
vítima,
usualmente
através
de
mecanismo
existente
no
próprio
aplicativo
desde
o
seu
lançamento.25
Ao
apreciar
o
agravo
impetrado
pela
Google
Brasil,
o
Tribunal
de
Justiça
do
Espírito
Santo
entendeu
que
a
medida
que
obrigava
as
empresas
Google,
Apple
e
Microsoft
a
apagar
o
aplicativo
dos
dispositivos
celulares
de
quem
havia
realizado
o
seu
download
não
poderia
prosperar.
Em
seu
voto
o
relator
mencionou
que
a
invasão
de
dispositivo
informático
alheio
é
crime
no
País
desde
a
entrada
em
vigor
da
Lei
12.737/12
(conhecida
como
“Lei
Carolina
Dieckmann”)
e
por
isso
não
poderia
o
Poder
Judiciário
adotar
tal
medida.26
Para
além
do
debate
sobre
a
possibilidade
de
serem
removidos
conteúdos
diretamente
dos
dispositivos
móveis
particulares
–
tema
que
cresce
em
relevância
na
mesma
velocidade
em
que
avança
a
inclusão
digital
através
da
internet
móvel
no
País
–
é
relevante
investigar
se
o
caso
do
aplicativo
Secret
se
enquadra
nos
contornos
constitucionais.
25 http://idgnow.com.br/blog/circuito/2014/09/03/secret-‐quer-‐colaborar-‐com-‐as-‐autoridades-‐
15
Essa
investigação
faz-‐se
relevante
pela
diversidade
de
aplicações
de
Internet
que,
de
variadas
formas,
se
vale
do
anonimato
(ou
pela
menos
de
sua
aparência
ou
expectativa)
como
uma
característica
essencial
da
ferramenta.
O
aplicativo
Secret
parece
então
integrar
o
extenso
e
complexo
conjunto
de
aplicações
na
internet
que
promove
o
anonimato.
Ao
permitir
que
usuários
postem
mensagens
sem
a
sua
imediata
identificação,
a
plataforma,
em
primeira
análise,
parece
propiciar
o
uso
anônimo
de
seus
serviços.
Uma
análise
mais
apurada
sobre
como
o
aplicativo
é
utilizado
e
como
provedores
reagem
à
notificações
sobre
conteúdos
ilícitos,
revela
uma
perspectiva
bem
diferente.
Por
mais
paradoxal
que
possa
parecer,
o
que
o
aplicativo
em
questão
oferece
aos
seus
usuários
não
é
a
experiência
de
anonimato
integral,
mas
tão
somente
uma
expectativa
de
anonimato.
Essa
conclusão
pode
ser
retirada
da
leitura
da
Política
de
Privacidade
do
aplicativo,
que
muito
claramente
afirma
manter
o
pretenso
anonimato
apenas
entre
os
usuários
do
serviço,
sendo
assegurada
a
possibilidade
não
apenas
de
identificação
de
quem
é
o
autor
de
uma
referida
mensagem,
bem
como
o
compartilhamento
dessa
informação
com
autoridades
que
venham
a
deter
a
competência
para
ordenar
a
empresa
a
revelá-‐la
para
fins
de
apuração
de
ilícitos.
A
Política
de
Privacidade
da
Consulente,
em
sua
versão
de
11
de
junho
de
2014,
esclarecia
que,
mesmo
com
o
pretenso
anonimato
existente
na
interface
entre
usuários,
“ainda
é
tecnicamente
possível
para
o
Secret
conectar
seus
Posts
com
o
seu
endereço
de
e-‐mail,
número
de
telefone
ou
outros
dados
pessoais
que
você
nos
tenha
fornecido.
Isto
significa
que,
se
um
tribunal
ou
uma
autoridade
competente
nos
pedir
para
revelar
a
sua
identidade,
poderemos
ser
obrigados
a
fazê-‐lo.”27
Além
de
informar
as
autoridades
competentes
sobre
dados
que
podem
identificar
o
autor
de
mensagens
danosas,
a
empresa
Secret
também
disponibiliza
para
a
vítima
de
eventual
dano
causado
através
de
sua
plataforma
uma
ferramenta
para
a
denúncia
de
conteúdo
ilícito.
Uma
ferramenta
que
gera
expectativa
de
anonimato
no
ambiente
em
que
usuários
interagem,
e
que
possui
os
meios
para
identificar
o
autor
das
mensagens,
informando
tais
dados
às
autoridades
competentes,
além
de
promover
a
retirada
de
conteúdos
reputados
como
lesivos,
se
enquadra
então
na
proibição
constitucional
ao
discurso
anônimo?
Ao
permitir
a
identificação
do
autor
de
mensagens
postadas
em
sua
plataforma,
mantendo
apenas
o
pretenso
anonimato
entre
os
seus
usuários,
pode
ser
mesmo
questionado
se
o
aplicativo
Secret
criou
um
ambiente
que
pode
ser
reputado
anônimo.
Parece
mais
apropriado
caracterizar
o
anonimato
disponibilizado
pelo
aplicativo
como
relativo,
ou
na
melhor
das
hipóteses,
como
uma
mera
expectativa
de
anonimato,
que
pode
ser
quebrada
na
exata
16
circunstância
em
que
o
autor
da
mensagem
viola
os
termos
de
uso
da
ferramenta
ou
causa
um
dano.
Em
suporte
ao
entendimento
de
que
o
ambiente
disponibilizado
pelo
Secret
não
se
enquadra
na
proibição
constitucional
ao
anonimato
pode-‐se
ainda
afirmar
que
a
ratio
do
preceito
constitucional
é
evitar
que
o
discurso
anônimo
venha
a
incentivar
o
abuso
na
manifestação
do
pensamento,
usando
o
autor
da
expressão
o
manto
do
anonimato
para
se
evadir
de
eventual
responsabilização.
Nesse
sentido,
ao
manter
a
possibilidade
de
identificação
do
autor
da
mensagem,
ao
colaborar
com
as
autoridades
competentes
para
essa
identificação
seja
conhecida,
e
ao
promover
um
sistema
de
denúncia
e
remoção
de
conteúdos
ilícitos,
parece
que
o
aplicativo
cumpre
com
a
finalidade
da
norma
constitucional
que
tutela
a
liberdade
de
expressão
no
art.
5º,
IV.
Conforme
visto,
doutrina
e
jurisprudência
afirmam
que
a
interpretação
teleológica
da
vedação
ao
anonimato
presente
na
Constituição
é
garantir
a
responsabilização
decorrente
do
discurso
que
causa
danos.
O
aplicativo
Secret,
nessa
direção,
parece
construir
um
ambiente
que
busca
aproveitar
a
liberdade
que
o
pretenso
anonimato
confere,
incentivando
que
seus
usuários
expressem
as
suas
ideias
e
opiniões
livremente,
o
que
remete
à
raiz
da
proteção
do
anonimato
na
sua
origem
norte-‐americana,
mas,
ao
mesmo
tempo,
afirma
que
a
identificação
do
autor
de
mensagens
danosas
será
possível,
o
que
parece
condizente
com
a
ratio
do
preceito
constitucional
brasileiro.
A
interpretação
teleológica
do
preceito
constitucional
parece
indicar
nesse
sentido.
Nessa
direção,
lembra
a
sempre
citada
lição
de
Francesco
Ferrara,
que
“toda
disposição
de
direito
tem
um
escopo
a
realizar,
quer
cumprir
certa
função
e
finalidade,
para
cujo
conseguimento
foi
criada.
A
norma
descansa
num
fundamento
jurídico,
numa
ratio
iuris,
que
indigita
a
sua
real
compreensão.”28
A
finalidade
do
dispositivo
constitucional
em
se
vedar
o
anonimato
não
estenderia
os
efeitos
de
vedação
ao
uso
do
aplicativo
Secret
conforme
atualmente
desempenhado.
Em
outras
palavras,
o
usuário
do
aplicativo
é
anônimo
até
o
momento
em
que
ele
abusa
da
sua
liberdade
de
expressão
e
passa
a
causar
danos
a
terceiros,
atendendo
assim
ao
mandamento
constitucional.
Resta
então
uma
última
questão
que
se
pode
retirar
da
disciplina
constitucional
sobre
liberdade
de
expressão
e
sua
ligação
com
o
Marco
Civil
da
Internet:
se
aplicativos
que
geram
mera
expectativa
de
anonimato
podem
ser
disponibilizados
no
País,
o
que
dizer
daqueles
que
realmente
oferecem
uma
experiência
completa
de
anonimato,
não
revelando
o
autor
da
mensagem
e
nem
mesmo
retendo
registros
sobre
a
utilização
do
serviço?
Para
essas
ferramentas
será
preciso
construir
uma
nova
interpretação,
já
que
a
análise
finalística
da
Constituição
apenas
mais
diretamente
protegeria
aquelas
aplicações
que
produzem
um
pretenso
anonimato
para
quem
usa
a
plataforma,
mas
não
para
as
autoridades
competentes
para
apurar
eventuais
danos
causados.
28 FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. São Paulo: Saraiva, 1987; p. 141.
17
Em
adição
ao
questionamento,
vale
ainda
enfatizar
que
o
Marco
Civil
obriga,
conforme
dispõe
o
artigo
15,
os
provedores
de
aplicações
de
Internet,
constituídos
na
forma
de
pessoa
jurídica
e
que
exerçam
essa
atividade
de
forma
organizada,
profissionalmente
e
com
fins
econômicos,
a
manter
os
respectivos
registros
de
acesso
a
aplicações
de
internet,
sob
sigilo,
em
ambiente
controlado
e
de
segurança,
pelo
prazo
de
6
(seis)
meses,
nos
termos
do
regulamento.
Dessa
forma,
ao
gerar
um
ambiente
de
aparente
anonimato,
mas
com
a
retenção
de
registros
em
conformidade
com
a
regulamentação
do
artigo
15
do
Marco
Civil,
os
provedores
de
aplicações
poderiam
disponibilizar
aplicativos
como
o
Secret
no
Brasil.
Todavia,
como
já
se
percebe
hoje,
essa
questão
é
de
menor
complexidade
perto
da
disponibilização
de
ferramentas
que
garantem
integralmente
o
anonimato
na
rede.
5.
Liberdade
de
expressão
como
condição
para
o
pleno
exercício
do
direito
de
acesso
à
Internet:
O
artigo
oitavo
do
Marco
Civil
da
Internet
estabelece
que
a
“garantia
do
direito
à
privacidade
e
à
liberdade
de
expressão
nas
comunicações
é
condição
para
o
pleno
exercício
do
direito
de
acesso
à
internet.”
Dotado
de
grande
carga
principiológica,
esse
artigo
dialoga
com
o
processo
de
construção
do
acesso
à
internet
como
um
direito
e
condiciona
o
seu
pleno
exercício
ao
fato
de
que,
uma
vez
tendo
acesso
à
rede,
ao
seu
uso
sejam
assegurados
o
direito
à
privacidade
e
à
liberdade
de
expressão.
O
debate
sobre
o
acesso
à
internet
como
um
direito,
seja
ele
humano
ou
fundamental,
transcende
os
limites
desse
trabalho.
Em
breve
nota,
pode-‐se
afirmar
que
a
discussão
atualmente
encontra-‐se
polarizada
entre
aqueles
que
entendem
que
o
acesso
à
Internet
seria
apenas
um
meio
para
a
realização
de
verdadeiros
direitos
fundamentais
(como
o
acesso
à
informação
e
a
própria
liberdade
de
expressão),
enquanto
outros
reconhecem
o
seu
caráter
de
direito
humano
autônomo.
Um
posicionamento
bastante
lembrado
contrariamente
ao
reconhecimento
do
acesso
à
rede
como
direito
é
aquele
defendido
por
Vint
Cerf
em
artigo
publicado
no
jornal
New
York
Times.29
Segundo
o
autor,
o
acesso
à
internet
não
deveria
ser
considerado
um
direito
humano,
pois,
como
toda
tecnologia,
é
apenas
uma
“viabilizadora
de
direitos”;
um
meio
e
não
um
fim
em
si
mesma.
No
mesmo
texto,
Vint
Cerf
afirma
que
o
progresso
tecnológico
deriva
das
realizações
alcançadas
por
técnicos
e
que
deveria
caber
aos
mesmos
decidir
sobre
os
rumos
da
tecnologia,
inclusive
garantindo
que
a
internet
continue
a
viabilizar
o
exercício
de
direitos
humanos.
Essa
afirmação
possui
um
29
http://www.nytimes.com/2012/01/05/opinion/internet-‐access-‐is-‐not-‐a-‐human-‐
right.html?_r=0
(acessado
em
20.12.2014)
18
destinatário
oculto
-‐
os
governos
-‐
e
pode
ser
lida
como
um
discurso
em
prol
da
autorregulação
técnica
da
internet.
A
ideia
parece
igualmente
simpática
e
arriscada.
O
risco
mais
evidente
é
a
sua
própria
radicalização,
levando
ao
entendimento
de
que
a
internet,
como
recurso
técnico,
não
deveria
ser
objeto
de
decisões
políticas.
Essa
percepção
perde
de
vista
o
fato
de
que
a
tecnologia
não
é
um
dado,
mas
sim
um
construído.
Naturalmente
a
tecnologia
não
é
neutra,
mas
sim
fruto
de
escolhas,
de
decisões
humanas
inerentes
ao
seu
processo
de
desenvolvimento.
Ela
não
gera
impactos
na
sociedade,
como
algo
externo
que
se
desloca
e
colide
com
a
sociedade;
ao
contrário,
ela
está
na
sociedade.
Por
isso
mesmo
existem
tecnologias
mais
ou
menos
propensas
a
gerar
certos
comportamentos.
Veja
o
exemplo
das
redes
sociais
e
como
a
sua
própria
arquitetura
sugere
os
efeitos
derivados
do
seu
uso.
Redes
em
que
se
pode
seguir
quem
bem
entender
são
mais
diversificadas
e
informativas,
estimulando
a
crítica
e
a
troca
de
ideias.
Redes
sociais
que
apenas
permitem
acompanhar
a
postagem
de
amigos,
por
outro
lado,
podem
isolar
o
usuário
em
uma
verdadeira
bolha
de
preferências,
estilos
e
ideologias
partilhadas
apenas
por
um
grupo
reduzido
de
pessoas
que
se
parecem
entre
si.
O
resultado
de
se
defender
uma
regulação
estritamente
técnica
da
internet
significa
então
apenas
retirar
de
cena
os
canais
políticos
institucionalizados,
pois
a
tecnologia
é
o
resultado
de
escolhas,
de
decisões
que
são,
em
última
instância,
políticas.
A
internet
é
assim
um
espaço
para
viabilização
de
direitos,
mas
cuja
construção
cabe
não
apenas
à
comunidade
de
especialistas,
mas
também
aos
governos,
empresas,
terceiro
setor,
academia
e,
é
claro,
ao
usuário
da
internet,
que
deve
ser
participante
e
o
fim
de
toda
regulação
da
rede.
O
Marco
Civil
é,
nesse
aspecto,
um
bom
exemplo
de
construção
multissetorial
envolvendo
os
mais
diversos
interessados
na
regulação
da
rede.
Sendo
assim,
dispositivos
essencialmente
principiológicos
como
o
aqui
mencionado
artigo
oitavo
abrem
caminho
para
uma
compreensão
mais
abrangente
sobre
o
que
se
deve
entender
como
pleno
exercício
do
direito
de
acesso
à
internet
e
o
papel
destacado
que
a
liberdade
de
expressão
opera
nesse
cenário.
Mais
especificamente,
ao
garantir
que
a
construção
do
dispositivo
legal
seja
plural
na
medida
em
que
diferentes
atores
puderam
contribuir
durante
o
processo
de
criação
do
Projeto
de
Lei
que
deu
origem
ao
Marco
Civil
da
Internet,
municiando
o
Poder
Legislativo
com
a
expertise
necessária
para
promover
a
aprovação
de
seu
texto
final,
a
Lei
nº
12.965/14
aponta
em
uma
direção
profícua
para
compreender
também
como
opera
o
multissetorialismo
na
definição
dos
termos
legais.
Em
outras
palavras,
a
composição
de
interesses
que
marca
o
processo
legislativo
não
se
evidencia
apenas
em
dispositivos
específicos
que
busquem
19
diretamente
atingir
uma
ou
outra
atividade.
Muito
ao
reverso,
em
artigos
essencialmente
principiológicos,
como
o
art.
8º,
ao
afirmar
que
a
liberdade
de
expressão
é
condição
para
o
pleno
exercício
do
direito
de
acesso
à
rede,
o
Marco
Civil
busca
evidenciar
um
equilíbrio
que
atinge
a
todos
os
setores.
6.
Liberdade
de
expressão
como
parâmetro
a
ser
ponderado
em
casos
de
responsabilidade
civil
de
provedores:
Um
dos
aspectos
mais
relevantes
do
tratamento
da
liberdade
de
expressão
no
Marco
Civil
da
Internet
decorre
justamente
da
sua
inserção
como
parâmetro
a
ser
ponderado
em
casos
de
responsabilidade
civil
de
provedores
por
conteúdos
de
terceiros.
O
caput
do
artigo
19
está
assim
redigido:
“Art.
19.
Com
o
intuito
de
assegurar
a
liberdade
de
expressão
e
impedir
a
censura,
o
provedor
de
aplicações
de
internet
somente
poderá
ser
responsabilizado
civilmente
por
danos
decorrentes
de
conteúdo
gerado
por
terceiros
se,
após
ordem
judicial
específica,
não
tomar
as
providências
para,
no
âmbito
e
nos
limites
técnicos
do
seu
serviço
e
dentro
do
prazo
assinalado,
tornar
indisponível
o
conteúdo
apontado
como
infringente,
ressalvadas
as
disposições
legais
em
contrário.”
É
digno
de
nota
que
o
artigo
sobre
responsabilidade
civil
de
provedores
de
aplicações
inicie
a
disciplina
do
tema
indicando
que
o
regime
a
seguir
disposto
tenha
por
intuito
preservar
a
liberdade
de
expressão
e
evitar
a
censura.
Essa
menção
por
si
só
já
sinalizaria
o
papel
destacado
que
a
liberdade
de
expressão
desempenha
no
Marco
Civil
da
Internet
e
justificaria
o
seu
tratamento
mencionado
no
artigo
2º
como
fundamento
da
disciplina
do
uso
da
rede
no
Brasil.
Dessa
forma,
o
desenho
do
regime
de
responsabilidade
civil
por
ato
de
terceiros
no
Marco
Civil
da
Internet
visa
a
assegurar
que
a
liberdade
de
expressão
não
sofra
restrições
indevidas,
sendo
a
mesma
alçada
à
parâmetro
de
interpretação
teleológica
de
todo
o
sistema
de
responsabilização
previsto
na
Lei
nº
12.965/14.
Sabe-‐se
que
diferentes
regimes
de
responsabilidade
podem
gerar
distintos
impactos
no
modo
pelo
qual
a
liberdade
de
manifestação
do
pensamento
é
exercida.
Um
sistema
de
responsabilidade
objetiva,
por
exemplo,
ao
tornar
o
provedor
de
aplicações
diretamente
responsável
pelo
conteúdo
exibido,
incentiva
o
dever
ativo
de
monitoramento
e
exclusão
de
conteúdos
potencialmente
controvertidos.
Como
consequência
dessa
medida,
a
manifestação
do
pensamento
sofre
uma
indevida
restrição
gerada
pelo
receio
por
parte
dos
intermediários
de
que
venham
a
ser
responsabilizados
por
conteúdos
alheios.
Na
dúvida,
caso
identificado,
o
conteúdo
crítico,
polêmico,
contestador,
ainda
que
lícito,
seria
removido.
20
Essa
foi
justamente
a
conclusão
alcançada
pela
Suprema
Corte
Argentina
ao
apreciar
caso
em
que
se
buscava
responsabilizar
a
Google
por
resultados
constantes
de
seu
mecanismo
de
busca
naquele
País.
O
item
a
seguir
passa
em
revista
essa
decisão
para
que,
com
base
em
seus
termos,
seja
possível
melhor
compreender
o
resultado
que
o
Marco
Civil
brasileiro
procura
alcançar.
6.1.
Lições
de
um
precedente
argentino:30
A
Suprema
Corte
da
Argentina
decidiu
em
28
de
outubro
de
2014
o
caso
em
que
a
atriz
e
modelo
María
Belén
Rodríguez
procurava
responsabilizar
provedores
de
pesquisa
pela
exibição
de
fotos
suas
não
autorizadas,
além
de
direcionar
a
pesquisa
pelo
seu
nome
para
sites
de
conteúdo
adulto.
A
modelo
processou
o
Google
e
o
Yahoo!
na
Argentina
alegando
que
os
seus
direitos
à
privacidade,
à
imagem
e
à
honra
estariam
sendo
violados
com
a
disponibilização
de
resultados
de
busca
que
levavam
para
sites
adultos.
Afirmou
ainda
a
atriz
que
o
uso
de
pequenas
amostras
de
imagens
(thumbnails)
na
pesquisa
também
representava
uma
infração
ao
seu
direito
à
própria
imagem.
Embora
esses
conteúdos
não
tivessem
sido
gerados
pelos
provedores
de
pesquisa,
defendeu
a
atriz
que
a
sua
veiculação
através
das
chaves
de
busca
tornava
mais
fácil
o
seu
acesso.
Além
da
remoção
dos
links
e
imagens,
foi
pedida
a
reparação
pelos
danos
causados
e
que
o
tribunal
ordenasse
que
os
réus
desenvolvessem
meios
para
evitar
que
o
dano
viesse
a
se
repetir
no
futuro.
O
debate
promovido
pela
Corte
girou
em
torno
da
função
desempenhada
por
esses
provedores
para
a
promoção
do
acesso
ao
conhecimento
e
à
informação,
além
dos
impactos
que
uma
decisão
que
viesse
a
impor
uma
filtragem
sobre
os
sites
poderia
gerar
na
tutela
da
liberdade
de
expressão.
De
outro
lado,
procurou-‐se
compreender
como
danos
causados
pela
rede
poderiam
ser
evitados
sem
que
isso
implicasse
em
censura
prévia
por
parte
dos
provedores.
Essa
é
justamente
a
mesma
direção
apontada
pelo
Marco
Civil
da
Internet
brasileiro
ao
dispor
sobre
o
tema.
A
primeira
questão
analisada
pela
Suprema
Corte
era
saber
se
os
provedores
de
pesquisa
poderiam
estar
sujeitos
a
alguma
forma
de
responsabilidade
objetiva,
ou
seja,
se
eles
poderiam
ser
responsabilizados
apenas
pela
veiculação
do
conteúdo
em
si,
independentemente
de
qualquer
conduta
culposa
de
sua
parte.
Esse
tipo
de
responsabilidade
é
geralmente
derivado
da
afirmação
pelos
tribunais
de
que
certa
atividade
coloca
em
risco
direitos
de
terceiros.
Assim,
mesmo
sem
qualquer
notificação,
seja
pelo
particular
ou
por
alguma
autoridade
competente,
o
provedor
já
seria
responsabilizado.
O
tribunal
rejeitou,
por
unanimidade,
essa
tal
abordagem.31
30
Parte
dos
comentários
à
decisão
argentina
aqui
reproduzidos
são
derivados
de
artigo
elaborado
originalmente
para
o
Observatório
da
Internet
no
Brasil,
um
projeto
do
Comitê
Gestor
da
Internet
no
Brasil
(CGI.br):
http://observatoriodainternet.br/
(acessado
em
20.12.2014).
31
A
íntegra
da
decisão
argentina
pode
ser
encontrada
no
link:
http://www.dataprivacylaws.com.ar/wp-‐content/uploads/2014/11/CSJN-‐Rodriguez-‐Maria-‐
Bel%C3%A9n-‐c-‐Google-‐Inc.-‐s-‐28-‐oct-‐2014.pdf
(acessado
em
20.12.2014).
21
Ao
fazê-‐lo,
o
tribunal
observou
que
as
chaves
de
busca
desempenham
um
"papel-‐chave
na
disseminação
global
de
conteúdo
online,
facilitando
muito
o
acesso
e
a
identificação
dos
dados
relevantes
para
bilhões
de
usuários."
Assim,
o
tribunal
entendeu
que
não
existiria
qualquer
dever
prévio
dos
provedores
de
monitorar
a
sua
plataforma
em
busca
de
conteúdos
potencialmente
lesivos,
tendo
em
vista
que
essa
avaliação
pode
ser
altamente
subjetiva.
Mas
o
que
acontece
se
o
provedor
recebe
uma
notificação
da
vítima
alegando
que
certo
conteúdo
está
causando
danos?
Deveria
então
o
provedor
agir
para
remover
o
material?
E
se
ele
falhar
em
remover
o
conteúdo
ou
mesmo
optar
por
não
fazê-‐lo
ao
entender
que
não
existe
dano
no
caso
reclamado?
O
Tribunal
considerou
então
que
a
simples
notificação
privada
não
seria
suficiente
para
gerar
a
responsabilidade
dos
provedores.
Em
sua
decisão,
a
Suprema
Corte
argentina
questiona
os
efeitos
de
se
criar
um
sistema
em
que
qualquer
pessoa
poderia
notificar
o
provedor
e
com
isso
ver
o
conteúdo
removido.
Aproximando-‐se
de
um
cenário
de
verdadeira
censura
privada,
a
Corte
afirmou
que
esse
resultado
terminaria
por
privar
o
Poder
Judiciário
de
agir
como
instância
legítima
para
averiguar
se
um
material
é
realmente
lícito
ou
ilícito.
Segundo
consta
da
decisão,
apenas
uma
ordem
judicial
ou
notificação
de
autoridade
competente
teria
o
condão
de
dar
ao
provedor
a
ciência
inequívoca
de
que
um
conteúdo
é
ilícito
e
que
precisaria
ser
tomada
medida
para
a
sua
remoção.
Todavia,
como
exceção,
entendeu
ainda
a
Corte
que
essa
regra
poderia
ser
afastada
em
casos
de
materiais
cuja
ilicitude
fosse
manifesta,
enquadrando-‐
se
nessa
categoria
a
pornografia
infantil,
ameaças
de
morte,
genocídio
e
"lesões
deliberadas
à
honra"
de
terceiro.
Ou
seja,
a
regra
geral,
conforme
a
decisão
argentina,
determina
que
os
provedores
de
pesquisa
não
respondem
objetivamente
pelo
conteúdo
que
indexam.
Eles
apenas
podem
ser
responsáveis
se
não
cumprem
uma
notificação
que
dá
ciência
inequívoca
da
ilicitude
do
material,
como
ocorre
com
uma
decisão
judicial.
A
exceção
à
essa
regra
recai
sobre
os
casos
em
que
a
ilicitude
é
manifesta,
sendo
em
tais
circunstâncias
possível
que
um
particular,
mediante
notificação,
possa
ter
o
provedor
responsável
se
ele
não
age
para
remover
o
material
depois
de
notificado.
Se
o
Tribunal
foi
unânime
na
aferição
desse
regime
de
responsabilidade
dos
provedores,
o
mesmo
não
aconteceu
com
a
questão
do
uso
não
autorizado
da
imagem
da
atriz
nos
thumbnails
visualizados
na
pesquisa
por
imagens.
Embora
a
maioria
tenha
isentado
os
provedores
de
qualquer
responsabilidade
por
esse
uso,
dois
ministros
da
Suprema
Corte
defenderam
a
tese
de
que
a
Lei
de
Propriedade
Intelectual
da
Argentina
não
permitira
esse
uso
já
que
o
mesmo
não
é
autorizado
e
não
se
enquadra
nas
exceções
ao
direito
à
imagem
lá
previstas
(como
o
uso
sem
consentimento
da
imagem
alheia
para
fins
científicos,
acadêmicos
ou
culturais).
Segundo
o
artigo
31
da
Lei
11.723:
"Es
libre
la
publicación
del
retrato
cuando
se
relacione
con
fines
científicos,
didácticos
y
en
22
general
culturales,
o
con
hechos
o
acontecimientos
de
interés
público
o
que
se
hubieran
desarrollado
en
público."
Ainda
existiu
divergência
entre
os
julgadores
no
que
diz
respeito
à
criação
de
meios
para
evitar
que
o
dano
venha
a
se
repetir
no
futuro.
A
atriz
demandou
que
os
provedores
passassem
a
criar
um
filtro
para
impedir
que
o
mesmo
conteúdo
ilícito
pudesse
voltar
à
tona
e
ser
encontrado
através
das
ferramentas
de
busca.
Esse
é
um
ponto
extremamente
delicado,
já
que
tais
filtros
geralmente
não
são
precisos
e
podem
terminar
por
bloquear
muito
mais
do
que
se
intencionava,
atingindo
homônimos
e
manifestações
legítimas
do
pensamento.
A
maioria
da
Corte
entendeu
que
não
caberia
ao
tribunal
exigir
a
implementação
desses
filtros,
salvo
em
questões
claramente
excepcionais,
conforme
enunciado
na
Convenção
Americana
sobre
Direitos
Humanos.
A
consequência
dessa
decisão
por
maioria
é
a
determinação
de
que
a
vítima
do
dano
deve
necessariamente
apontar
de
forma
clara
a
localização
do
conteúdo
que
ela
deseja
ver
removido.
Ou
seja,
para
que
os
tribunais
possam
determinar
a
sua
remoção,
os
conteúdos
devem
vir
indicados
com
a
correspondente
URL
ou
outro
meio
preciso
de
localização,
evitando
assim
a
restrição
de
acesso
ao
material
por
meio
de
filtros
e
bloqueios
genéricos.
E
o
que
essa
decisão
pode
gerar
como
precedente
na
região?
Além
de
ser
a
primeira
decisão
de
uma
Corte
Constitucional
na
América
do
Sul
que
se
debruça
com
maior
profundidade
sobre
a
responsabilidade
civil
dos
provedores
de
pesquisa,
ela
deverá
receber
uma
repercussão
maior32
pelo
resultado
que
a
mesma
alcança
na
ponderação
entre
a
necessidade
de
se
compensar
danos
causados
na
rede
com
o
potencial
de
ameaça
à
liberdade
de
expressão
que
filtros
e
bloqueios
poderiam
causar.
Em
suas
razões
de
decidir
a
Corte
argentina
citou
ainda
o
Marco
Civil
da
Internet
brasileiro
para
afirmar
que
a
solução
encontrada
pelo
tribunal
ia
na
mesma
direção
daquela
prevista
em
nossa
Lei
n.
12965/14.33
Segundo
Darian
Pavli,
o
julgamento
argentino
pode
criar
condições
para
a
construção
de
uma
terceira
via
sobre
responsabilidade
civil
de
intermediários,
ficando
entre
os
extremos
apresentados
pelos
Estados
Unidos,
que
possui
uma
larga
isenção
de
responsabilidade
como
regra
(e
um
sistema
de
notificação
e
32
http://www.lanacion.com.ar/1739554-‐los-‐buscadores-‐de-‐internet-‐no-‐son-‐responsables-‐de-‐
los-‐contenidos
(acessado
em
20.12.2014)
33
É
verdade
que
tanto
a
decisão
judicial
argentina
como
o
Marco
Civil
compartilham
do
23
retirada
para
direitos
autorais)
e
a
Europa,
que
permitiria
um
espaço
maior
para
a
notificação
privada.34
Uma
preocupação
que
fica
para
o
futuro
é
a
exceção
prevista
pelo
tribunal
no
sentido
de
que
em
casos
de
manifesta
ilicitude
a
regra
poderia
ser
afastada,
gerando
uma
responsabilidade
do
provedor
ao
falhar
em
atuar
depois
de
ter
inequívoca
ciência
do
material
lesivo.
Ao
dar
exemplos
de
casos
de
manifesta
ilicitude
como
"lesões
deliberadas
à
honra"
permanece
o
perigo
de
que
o
julgamento
sobre
a
ilicitude
de
conteúdo
postado
online
seja
extremamente
subjetivo.
Dependendo
de
como
caminharem
as
decisões
futuras,
essa
abertura
concedida
pelo
tribunal
poderia
mesmo
transformar
a
exceção
em
regra.
A
Suprema
Corte
argentina
buscou
alcançar
um
equilíbrio
entre
a
tutela
da
liberdade
de
expressão
e
dos
direitos
da
personalidade
ao
afirmar
que
os
provedores
de
pesquisa
não
são
responsáveis
pelo
conteúdo
que
indexam,
salvo
se
não
cumprirem
ordem
judicial
que
determine
sua
remoção,
ou
não
atuem
depois
de
ter
ciência
inequívoca
de
material
flagrantemente
ilícito
(ainda
que
por
via
de
notificação
privada).
6.2.
Liberdade
de
expressão
e
danos
no
Marco
Civil
O
Marco
Civil
da
Internet,
em
seu
artigo
19,
aponta
na
direção
de
que
a
responsabilidade
civil
dos
provedores
de
aplicações
é
de
natureza
subjetiva,
mas
ela
não
deriva
do
descumprimento
de
uma
notificação
privada,
mas
sim
da
falha
em
cumprir
ordem
judicial
que
determine
certo
conteúdo
como
sendo
ilícito.
Ao
afirmar
o
Poder
Judiciário
como
instância
fundamental
para
decidir
sobre
a
ilicitude
de
um
material
disponibilizado
na
Internet
o
Marco
Civil
se
aproxima
do
precedente
argentino,
reduzindo
o
espectro
das
notificações
privadas.
Vale
ressaltar,
contudo,
que
se
as
exceções
na
decisão
argentinas
são
amplas,
no
caso
do
Marco
Civil
brasileiro
as
exceções
à
essa
regra
encontram-‐se
previstas
diretamente
no
texto
da
lei
e
são
elas
direcionadas
ao
tratamento
dos
direitos
autorais
(art.
19,
parágrafo
segundo)
e
aos
materiais
que
possam
ser
enquadrados
como
“pornografia
de
vingança”35
(art.
21).
A
jurisprudência
nacional
anterior
ao
Marco
Civil
da
Internet,
sobretudo
no
que
diz
respeito
ao
Superior
Tribunal
de
Justiça,
vem
entendendo
que
os
provedores
de
aplicações
seriam
responsáveis
a
partir
do
momento
em
que
não
retiram
do
ar
conteúdo
notificado
pelo
interessado
como
sendo
ilícito.
Esse
regime
valeria
tanto
para
questões
envolvendo
direitos
autorais,
como
para
aquelas
relacionadas
à
defesa
dos
mais
distintos
direitos
da
personalidade,
como
honra,
privacidade
e
imagem.36
34 PAVLI, Darian. “Case Watch: Top Argentine Court Blazes a Trail on Online Free Expression”, in
http://www.opensocietyfoundations.org/voices/case-‐watch-‐top-‐argentine-‐court-‐blazes-‐trail-‐
online-‐free-‐expression
(acessado
em
20.14.2014).
35
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pornografia_de_vingan%C3%A7a
(acessado
em
20.12.2014).
36
STJ,
Resp
1193764/SP,
rel.
Min.
Nany
Andrighi;
j.
em
14.12.2010.
Vide
ainda
STJ,
Agr.
Reg.
em
24
Nesse
sentido,
o
Marco
Civil
adota
uma
direção
distinta
daquela
marcada
na
experiência
nacional
nos
últimos
anos
e
assim
o
faz,
dentre
outras
razões,
pelo
papel
destacado
que
a
liberdade
de
expressão
encontra
em
seus
termos.
Ao
dedicar
ao
tema
da
liberdade
de
expressão
as
cinco
menções
neste
artigo
expostas,
a
Lei
nº
12.965/14
assegura
que
a
manifestação
do
pensamento
tenha
uma
tutela
dedicada
sobre
o
tema.
A
Internet
é
um
meio
de
comunicação
e
informação
sem
precedentes.
Se
por
um
lado
é
verdade
que
não
se
precisa
de
lei
nova
para
cada
nova
forma
de
manifestação
do
pensamento
que
venha
a
surgir,
a
rede
inovou
de
forma
tão
profunda
as
maneiras
de
expressão
que
o
Direito
não
pode
ficar
inerte
ao
seu
desenvolvimento.
A
missão
delicada
do
Marco
Civil
é
encontrar
um
equilíbrio
entre
a
criação
de
um
espaço
em
que
se
possa
cultivar
a
liberdade
de
expressão
-‐
já
que
a
rede
tanto
amplia
como
potencialmente
restringe
o
discurso
de
forma
tão
facilitada
–
ao
mesmo
tempo
em
que
se
garante
às
vítimas
da
disponibilização
de
conteúdo
ilícito
os
meios
para
identificar
o
seu
autor
e
a
remoção
do
material
impugnado.
Vale
destacar
que
o
Marco
Civil
apenas
condiciona
a
responsabilidade
dos
provedores
de
aplicações
ao
não
cumprimento
de
uma
ordem
judicial,
o
que
prestigia
o
Poder
Judiciário
como
instância
legítima
para
definir
o
que
seria
conteúdo
ilícito.
Todavia,
essa
afirmação
em
nada
impediria
os
provedores
de,
na
organização
de
suas
atividades,
criar
regras
que
possam
definir
o
que
pode
ou
não
ser
exibido
em
sua
plataforma.
Sendo
assim,
caso
recebam
notificações
privadas
apontando
que
um
conteúdo
é
ilícito,
o
provedor
tem
a
liberdade
de
decidir
se
mantém
o
conteúdo
ou
se
o
remove
conforme
solicitado.
Essa
conclusão
parece
oferecer
um
equilíbrio
mais
complexo
sobre
o
exercício
de
direitos
na
medida
em
que
retira
do
provedor
a
pressão
para
que
remova
todo
e
qualquer
conteúdo
apontado
como
ilícito,
o
que
atingira
em
cheio
a
liberdade
de
expressão
na
rede,
mas
não
o
impede
de
assim
proceder
caso
entenda
que
o
material
é
realmente
contrário
aos
termos
de
uso
e
demais
políticas
que
regem
o
funcionamento
da
plataforma.
Assim,
embora
não
possua
o
condão
de
obrigatoriamente
forçar
o
provedor
a
remover
o
conteúdo
ilícito,
sob
pena
de
sua
responsabilização,
a
notificação
privada
é
prática
costumeira
na
rede
para
reportar
a
existência
de
materiais
eventualmente
danosos.
Já
que
não
existe
para
os
provedores
dever
de
monitoramento
prévio,
a
notificação
atua
como
um
alerta
para
que
os
mesmos
possam
averiguar
a
procedência
de
um
suposto
dano
causado.
E
assim
sendo,
caso
decidam
remover
o
conteúdo
por
ser
contrário
aos
termos
que
regem
a
plataforma,
os
provedores
também
não
ofendem
o
Marco
Civil
da
Internet,
já
que
a
Lei
nº
12.965/14
não
proíbe
a
exclusão
de
conteúdo
nesses
termos.
Isso
não
significa
dizer
que
o
provedor
não
possa
abusar
de
sua
posição
e
ativamente
filtrar
ou
bloquear
conteúdos
de
forma
a
restringir
indevidamente
a
liberdade
de
expressão.
25
Nesses
casos
será
relevante
ponderar
as
razões
que
levaram
ao
bloqueio,
filtragem
ou
remoção
espontânea
do
conteúdo
(buscava
o
provedor
evitar
danos
derivados
daquele
conteúdo?)
com
o
impacto
que
a
sua
implementação
gera
sobre
a
liberdade
de
expressão.
Já
que
gozam
de
isenção
de
responsabilidade
no
caput
do
artigo
19,
com
as
referidas
exceções,
devem
os
provedores
tomar
o
exercício
da
liberdade
de
expressão
como
vetor
de
suas
atividades
e
apenas
tomar
medidas
para
filtrar,
bloquear
ou
remover
conteúdos
quando,
fora
das
hipóteses
previstas
em
lei,
razões
muito
evidentes
assim
determinem.
Importa
por
fim
esclarecer
que,
se
para
grande
parte
dos
provedores
de
aplicações
o
Marco
Civil
inova
ao
garantir
que
a
responsabilidade
apenas
será
decorrente
de
falha
em
cumprir
ordem
judicial,
um
tratamento
distinto
aos
chamados
“provedores
de
pesquisa”
tem
sido
concedido
pela
jurisprudência.
Em
caso
apreciados
pelo
STJ,
a
Google,
enquanto
operadora
de
chave
de
busca,
teve
reconhecida
a
sua
não
responsabilização
pelos
conteúdos
exibidos
como
resultado
de
pesquisas
realizadas
por
seus
usuários.37
No
caso
da
apresentadora
de
televisão
Xuxa
Meneghel,
em
que
buscava
a
autora
compelir
a
Google
a
remover
da
pesquisa
resultados
relativos
à
busca
pela
expressão
‘xuxa
pedófila’
ou
qualquer
outra
que
associasse
o
seu
nome
a
uma
prática
criminosa
qualquer,
o
STJ
entendeu
pela
improcedência
do
pedido.
Segundo
consta
dos
termos
do
acórdão:
6.
Os
provedores
de
pesquisa
não
podem
ser
obrigados
a
eliminar
do
seu
sistema
os
resultados
derivados
da
busca
de
determinado
termo
ou
expressão,
tampouco
os
resultados
que
apontem
para
uma
foto
ou
texto
específico,
independentemente
da
indicação
do
URL
da
página
onde
este
estiver
inserido.
7.
Não
se
pode,
sob
o
pretexto
de
dificultar
a
propagação
de
conteúdo
ilícito
ou
ofensivo
na
web,
reprimir
o
direito
da
coletividade
à
informação.
Sopesados
os
direitos
envolvidos
e
o
risco
potencial
de
violação
de
cada
um
deles,
o
fiel
da
balança
deve
pender
para
a
garantia
da
liberdade
de
informação
assegurada
pelo
art.
220,
§
1o,
da
CF/88,
sobretudo
considerando
que
a
Internet
representa,
hoje,
importante
veículo
de
comunicação
social
de
massa.38
Dessa
forma,
a
liberdade
de
expressão,
como
visto
desde
o
precedente
argentino,
exerce
especial
influência
sobre
o
desenho
do
regime
de
responsabilização
de
provedores
no
Marco
Civil
da
Internet.
Resta
ainda
comentar
uma
última
face
da
liberdade
de
expressão
na
Lei
nº
12.965/14,
especialmente
no
que
ela
se
aplica
ao
regime
dos
direito
autorais.
7.
Liberdade
de
expressão
e
direitos
autorais:
O
parágrafo
segundo
do
artigo
19
remete
o
tratamento
dos
casos
de
responsabilidade
civil
por
infração
aos
direitos
autorais
à
previsão
legal
específica,
da
seguinte
forma:
37
STJ,
Resp
1316921/RJ,
rel.
Min.
Nancy
Andrighi;
j.
em
26.06.12.
38
STJ,
Resp
1316921/RJ,
rel.
Min.
Nancy
Andrighi;
j.
em
26.06.2012.
26
Art.
19,
§
2o
A
aplicação
do
disposto
neste
artigo
para
infrações
a
direitos
de
autor
ou
a
direitos
conexos
depende
de
previsão
legal
específica,
que
deverá
respeitar
a
liberdade
de
expressão
e
demais
garantias
previstas
no
art.
5o
da
Constituição
Federal.
Vale
notar
que
o
mencionado
dispositivo
não
apenas
direciona
o
tratamento
do
tema
dos
direitos
autorais
para
fora
dos
limites
da
Lei
nº
12.965/14,
como
também
já
o
encaminha
com
a
recomendação
de
que,
qualquer
que
seja
a
solução
encontrada,
ela
deverá
“respeitar
a
liberdade
de
expressão.”
Essa
recomendação
tem
a
sua
raiz
em
um
longo
debate
sobre
o
exercício
dos
direitos
autorais
e
como
a
sua
aplicação
nas
últimas
décadas
deu
ensejo
à
uma
série
de
transformações
legislativas,
especialmente
no
campo
penal,
buscando
consolidar
um
amplo
aparato
legal
para
responsabilizar
os
envolvidos
em
infrações
a
tais
direitos.
Dois
movimentos
surgem
nesse
cenário:
de
um
lado
um
crescimento
no
debate
sobre
a
pirataria
e
como
as
infrações
aos
direitos
autorais
devem
ser
tratadas
de
forma
rigorosa
na
legislação;
de
outro
a
compreensão
de
que
não
apenas
as
infrações
aos
direitos
autorais
devem
ser
analisadas,
mas
também
o
comportamento
dos
autores
e
titulares
de
direitos
autorais,
já
que
os
mesmos
podem
abusar
do
exercício
desse
mesmo
direito.39
Nesse
debate
surge
então
a
necessidade
de
reconhecer
o
papel
que
a
liberdade
de
expressão
desempenha
e
como
o
desenho
de
uma
ou
outra
forma
de
exercício
dos
direitos
autorais
pode
impactar
a
manifestação
do
pensamento.
Ao
garantir
ao
autor
e
ao
titular
dos
direitos
autorais
a
possibilidade
de
impedir
o
uso
não
autorizado
de
uma
criação
intelectual,
resta
claro
que
essa
faculdade
legítima
pode
colidir
com
outros
direitos
em
especial
com
a
liberdade
de
expressão.
A
publicação
de
uma
crítica,
o
acesso
à
documentos
para
pesquisa,
a
elaboração
de
uma
paródia,
a
citação
de
obra
artística,
dentre
diversas
outras
situações
podem
servir
de
exemplos
nos
quais
a
interface
entre
o
respeito
aos
direitos
autorais
e
a
manifestação
do
pensamento
se
faz
evidente.
É
nesse
sentido
que
se
pode
compreender
o
parágrafo
segundo
do
artigo
19
como
uma
imposição
de
que,
qualquer
que
seja
a
solução
encontrada
para
a
responsabilização
pelos
danos
causados
aos
direitos
autorais,
para
evitar
que
esse
regime
acabe
invadindo
o
campo
reservado
à
manifestação
do
pensamento,
deve
ela
sempre
ter
a
liberdade
de
expressão
como
referência.
Conclusão:
39 Sobre o tema, vide LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e Cultura. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2005;
SOUZA,
Allan
Rocha.
A
Função
Social
dos
Direitos
Autorais.
Campos
dos
Goytacazes:
Faculdade
de
Direito
de
Campos,
2005
e
SOUZA,
Carlos
Affonso
Pereira
de.
Abuso
do
Direito
nas
Relações
Privadas.
Rio
de
Janeiro:
Elsevier,
2013.
27
As
cinco
faces
da
liberdade
de
expressão
no
Marco
Civil
da
Internet
demonstram
de
forma
inequívoca
a
importância
desse
direito
para
a
compreensão
do
papel
que
a
Lei
nº
12.965/14
ocupa
no
ordenamento
jurídico
nacional.
Reconhecida
internacionalmente
como
um
passo
positivo
na
direção
da
proteção
dos
direitos
fundamentais
na
rede
mundial
de
dispositivos
conectados,
o
seu
futuro
passa
em
grande
medida
pelo
desafio
das
diversas
interpretações
geradas
a
partir
dos
princípios
e
fundamentos
por
ela
traçados.
Nesse
particular,
o
lugar
de
destaque
da
liberdade
de
expressão
no
Marco
Civil
da
Internet
atende,
como
visto,
a
razões
de
natureza
técnica
e
política.
O
equilíbrio
que
se
buscou
estabelecer
com
a
sua
elaboração
é
complexo
e
caberá
ao
Poder
Judiciário
fazer
valer
os
quase
sete
anos
de
pesquisa
acadêmica,
ativismo
na
rede
e
trabalho
legislativo
dedicados
à
sua
formulação.
A
Internet
trará
desafios
não
imaginados
para
a
aplicação
dos
termos
do
Marco
Civil.
Isso
é
uma
certeza.
Uma
segunda
certeza
é
a
percepção
de
que,
sejam
quais
forem
os
desafios,
ter
a
liberdade
de
expressão
como
um
dos
vetores
de
interpretação
e
aplicação
dessa
e
das
demais
leis
e
regulamentos
sobre
Internet
no
País
é
um
passo
na
direção
certa.
É
um
movimento
no
sentido
de
consolidar
o
Brasil
como
líder
na
regulação
da
rede
pautada
por
direitos
humanos
e
em
direção
oposta
das
tentações
que
a
mesma
rede
oferece
para
que
a
expressão
seja
cerceada.
A
mesma
Internet
que
impulsiona
liberdades
é
aquela
que
as
restringe.
Sendo
assim,
melhor
será
o
futuro
da
Lei
nº
12.965/14
quanto
mais
liberdades
e
direitos
ela
impulsionar.
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Comentário
ao
artigo
5º,
IV.
In
CANOTILHO,
J.
J.
Gomes;
MENDES,
Gilmar
F.;
SARLET,
Ingo
W.;
STRECK,
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