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EDITH RAQUEL BIGARELI

AI, EU TROQUEI AS LETRAS...


Refletindo sobre o contexto, a tradição e a inovação de canções folclóricas infantis

BATATAIS

2009
EDITH RAQUEL BIGARELI

AI, EU TROQUEI AS LETRAS...


Refletindo sobre o contexto, a tradição e a inovação de canções folclóricas infantis

Trabalho de Conclusão de
Curso apresentado ao
Centro Universitário
Claretiano para obtenção do
título de especialista em:
Arte - Educação.
Orientador: Prof(º) Renato
Tocantins Sampaio.

BATATAIS

2009
EDITH RAQUEL BIGARELI

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro Universitário Claretiano para


obtenção do título de especialista em Arte-Educação. Orientador : Prof.(º) Renato Tocantins
Sampaio.

AI, EU TROQUEI AS LETRAS...


Refletindo sobre o contexto, a tradição e a inovação de canções folclóricas infantis

Orientador : ____________________________________________________

Examinador(a): ___________________________________________________
Batatais, ______ de ___________________________ de 2009.

AI, EU TROQUEI AS LETRAS...


Refletindo sobre o contexto, a tradição e a inovação de canções folclóricas infantis

Edith Raquel Bigareli

(letra domínio público) (letra modificada)

AI EU ENTREI NA RODA AI EU TROQUEI AS LETRAS

PARA VER COMO SE DANÇA DAS CANÇÕES DO MEU FOLCLORE

EU ENTREI NA CONTRA DANÇA FUI BRINCANDO E COMECEI

EU NÃO SEI DANÇAR ESSA INVESTIGAÇÃO

LÁ VAI UMA LÁ VÃO DUAS FOI NA NET QUE BUSQUEI E

LÁ VÃO TRÊS PELA TERCEIRA QUE ENCONTREI INFORMAÇÃO

LÁ SE VAI O MEU AMOR LI RELI E COMECEI

DE VAPOR PRA CACHOREIRA ESTE ARTIGO ESCREVER


RESUMO

A transformação das letras das canções folclóricas infantis substituindo aspectos

negativos por outros mais otimistas é um fenômeno que vem ocorrendo nas escolas e

nos lares. Instigada por esse processo, busquei neste artigo analisar discussões de

profissionais das mais diversas áreas, através de pesquisa bibliográfica, internet e de

entrevistas que realizei.

Anterior ao desenvolvimento da pesquisa, eu concordava com a troca do

conteúdo e brincava em família com a criação de variadas letras para canções já

conhecidas das crianças, tal como exemplo: Boi, boi, boi... Boi da cara preta, pega essa

menina e dá uma volta de lambreta... Entretanto, já na primeira crítica que li sobre o

assunto, fiquei incomodada e fui levada a rever os meus conceitos.

Os especialistas (psicólogos, educadores, músicos, artistas etc.) apontam que as

alterações das letras, ao enfatizarem somente os aspectos positivos, podem trazer um

universo aparentemente falseado, ausente de conflitos, medos e decepções. E a troca

ainda pode trazer o risco de perdermos a memória, o contexto e o registro de nossa

cultura popular, o que a meu ponto de vista é ainda pior.

Nas entrevistas que realizei pude constatar que as opiniões são bastante

divergentes quanto ao assunto, sendo que alguns são radicalmente contra a alteração do

conteúdo, principalmente no que se refere à perda da tradição, enquanto outros são

favoráveis, pontuando que uma visão mais otimista favorece atitudes melhores. E há

ainda os que pensam que a troca, assim como quaisquer brincadeiras e atividades de

paródia, pode acontecer desde que não deixemos de trazer o contexto, a explicação

sobre as letras “originais”, suas variações regionais e temporais etc. Pessoalmente,

compartilho com esta modalidade de pensamento.


Esta pesquisa sobre música e patrimônio cultural está no início, mas com estas

reflexões inicias já pude tecer algumas considerações e caminhos sobre o meu pensar e

agir a partir do fenômeno que ocorre com as canções infantis. Pela minha experiência e

vivência, tanto no ambiente escolar quanto no familiar, posso concluir que é

fundamental a valorização e preservação de nossa cultura popular, e que, essa riqueza,

somada ao respeito por todos os seres vivos e a uma boa qualidade de ensino levará à

transformação almejada, através da música, através da arte.

Palavras Chave: arte-educação; canções folclóricas infantis; cultura popular;

ensino de música; atirei-o-pau-no-gato.

AI, EU TROQUEI AS LETRAS...

Refletindo sobre o contexto, a tradição e a inovação de canções folclóricas infantis

Edith Raquel Bigareli

INTRODUÇÃO

Nino é um canário marrom que veio morar em nossa casa quando eu ainda era

solteira, aproximadamente há 18 anos. Seu dono viajou, ficamos cuidando dele e o

óbvio aconteceu, não pudemos devolvê-lo. Passou a ser o mascote da casa. Todos os

dias ao final da tarde na hora dele dormir, eu pegava jiló, colocava sementes em meu

dedo e o Nino aprendeu a comer ali. Eu cantava bem baixinho pra ele, Boi da cara

preta, várias vezes. Ele fixava seus olhinhos no meu sem piscar, como se estivesse me

dizendo alguma coisa. Enquanto eu cantava aquela música podia perceber que o sono

vinha vindo, que aquilo o tranqüilizava. Desde então já pensava: como uma música de

melodia tão agradável pudesse ter letra ameaçadora e efeito calmante?


Em minhas aulas de musicalização infantil, sempre usei e abusei das canções

folclóricas, das brincadeiras de roda que sempre foram recebidas com entusiasmo e

alegria pelas crianças de 2 a 6 anos. Com turmas de 7 a 9, trabalhei as canções

folclóricas trocando as letras, em forma de paródia. Listávamos palavras que rimavam,

criávamos letras diferentes e em seguida cantávamos. Foi uma experiência bem

interessante. As crianças ficavam envolvidas, achavam graça e participavam durante

toda a aula. Nessa época (1992), não levantei nenhum tipo de questionamento ainda em

relação às letras das canções. Nem eu, nem as crianças! Não havia problema algum com

essas músicas, pelo contrário, eram e ainda são muito utilizadas nas escolas e no

aconchego dos lares.

Em 1996, no porão da casa onde funcionava meu atelier, encontrei um gatinho

recém nascido com sua mãe. Porém, quando me viu ela fugiu assustada e não voltou,

deixando-o para trás. Eu nunca tive gatos (e nenhum animal de estimação, além do

canário) e me desesperei, pois não podia deixá-lo morrer de fome. Saí à procura de

ajuda e foi muito difícil, não existia em minha cidade uma associação que amparasse

animais abandonados. Nesta busca, conheci pessoas boas dispostas a ajudar porque

amavam animais. Diante deste e outros problemas referentes a animais que apareceram

em minha vida, ajudei a criar a APA, Associação Protetora dos Animais “São Francisco

de Assis” em Jacareí, SP, a qual sou voluntária até hoje. Foi uma maneira encontrada de

exercer minha cidadania. Minha casa é repleta de cães e gatos, que já não tinham um lar

ou foram abandonados no portão. Conviver com animais e com tanto amor

incondicional que eles dispensam a nós, mudou a minha vida e ouvir alguém a cantar

Atirei o pau no gato, começou a me incomodar.

Este incômodo aumentou quando as crianças nasceram. Meu filho e minha

sobrinha têm hoje a mesma idade, dois anos, e foi brincando com as crianças que
começamos a trocar as letras das canções. Inventávamos na hora. Meu cunhado

improvisando cantou: Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esta menina e dá uma volta

de lambreta. E assim começou. Trocávamos as letras de várias canções e anotávamos

para não esquecer. Por vezes, acrescentávamos duas ou mais versões a uma mesma

canção. Além dessa brincadeira, começamos a compor várias músicas com foco na

infância, com letras que vivenciam o universo infantil, divertidas, cantando rotinas,

família, televisão, brinquedos, animais, amigos, escola, passeios e com especial atenção

voltada à natureza.

Retornando ao aspecto das letras das nossas canções folclóricas, sobre cantar

alegrias e não violências ou ainda decepções, iniciei uma pesquisa na internet, em sites,

blogs, buscando estudos e pesquisas sobre o assunto. Meu interesse pelo tema cresceu, e

pretendo me aprofundar e realizar um projeto de mestrado sobre a questão, pois já pude

constatar que são poucos os estudos na área, como aponta Veríssimo de Melo:

As nossas cantigas de ninar – aspecto do folclore infantil de tão


encantadoras sugestões, - não foram ainda coligidas e estudadas
convenientemente, sob critério científico. É tarefa que aguarda a paciência
dos mestres do folclore brasileiro. O que existe, na pequena bibliografia
sobre o tema, são contribuições modestas, como a nossa, embora com a
virtude única de apresentarem pesquisas recolhidas diretamente da tradição
oral (MELO, 1991, p.31).

Neste artigo, desenvolvo minhas primeiras observações e pesquisa sobre o tema.

DESENVOLVIMENTO

As tradicionais cantigas infantis brasileiras, incluindo-se os acalantos, as

brincadeiras de roda, as cirandas, os jogos e as parlendas, são em sua maioria de

influência portuguesa e espanhola, de autoria anônima e possuem um inesgotável


tesouro em seu conteúdo colhido das tradições orais, de geração em geração. Por se

tratar de tradição oral, já sofreram modificações e continuam se transformando,

variando de região para região, constantemente reinterpretados.

A canção “A moda da Garranchinha”, por exemplo, é encontrada com o nome

trocado de diversas maneiras, tais como: Garranchinha, Carranchinha, Carranquinha,

Carrasquinha, Garanchinha, Carrasquiña.

A ludicidade está presente nos ritmos variados e nas melodias das cantigas de

roda, que sempre sugerem uma brincadeira, contém letras simples de fácil

memorização.

Veríssimo de Melo em seu livro Folclore Infantil distribuiu as cantigas em cinco

grupos, segundo o espírito e o estado de ânimo de cada uma:

I – Amorosas; II – Satíricas; III – Imitativas; IV – Religiosas; V – Dramáticas.

Como musicista e educadora, escolhi como tema deste trabalho analisar a

polêmica envolvendo a troca das letras das canções tradicionais, que em seu contexto

revela preceitos morais, preconceitos, ameaças e decepções, por letras “politicamente

corretas”. A minha pretensão em relação a este assunto é descobrir até que ponto esta

mudança afeta a história do nosso folclore e refletir sobre a percepção das crianças em

relação às cantigas de roda.

Farei minha reflexão através de revisão bibliográfica, artigos da internet, através

das experiências vivenciadas por mim em sala de aula e também a partir dos resultados

de uma entrevista que estou realizando com diversos educadores e profissionais das

mais variadas áreas. Estou encontrando uma acirrada discussão em torno do assunto. Há

os defensores das cantigas tradicionais originais, sem modificações, justificando que


ocorrem sim retrocesso e empobrecimento cultural devido à troca das letras, e outros

que apóiam a troca, alegando que as crianças são influenciadas pelas letras das canções.

Circulou na internet um e-mail em que supostamente uma estudante brasileira

que mora nos Estados Unidos e trabalha como babá, faz relações entre a baixa estima do

povo brasileiro e as letras das nossas canções folclóricas infantis. A mesma diz sentir-se

constrangida ao traduzir as letras e que naquele país as cantigas de ninar são

acolhedoras e não ameaçadoras como as daqui. Por outro lado, afirma que a garotinha

que ela fazia adormecer em seu colo, adorava a música Boi da cara preta. Conclui-se

então, que a criança ficou envolvida com a melodia da canção, pois não compreendia a

letra que ela cantava no nosso idioma.

O professor de português e presidente da Academia Araçatubense de letras Hélio

Consolaro, que coordena um site na internet, compara essa discussão à outra também

alusiva que são os filmes ou até mesmo os desenhos animados com cenas de violência

que as crianças assistem na TV. Sobre as canções, o autor destaca a época e o contexto

em que surgiram, tempo em que as escravas faziam ninar em seus braços, filhos de

Sinhá, por quem não tinham nenhum amor, já que os escravos eram maltratados e

perseguidos.

Já o engenheiro eletricista e músico amador Antonio Paulo de Moraes Leme

recebeu o mesmo e-mail da babá, após ter presenteado os filhos de um colega de

trabalho com um CD de canções infantis de Villa Lobos, inspirados nas canções do

nosso folclore. O colega respondeu com convicção que as canções infantis eram

politicamente incorretas, pois eram racistas, ameaçadoras e ainda falavam de brigas

conjugais (o cravo brigou com a rosa). Chateado e incomodado com as colocações do

colega, quis saber o que as canções estrangeiras tinham de melhor a oferecer. Pesquisou
no Google as palavras “nursery rhymes”, que em nossa língua quer dizer rimas de

berçário, ou cantigas de ninar, e o que encontrou foram canções nada diferente das

nossas, tão criticadas, como no exemplo :

Rock a bye Baby (origem Americana)

Rock a bye baby on the tree top, Balance um “adeus bebê” no topo da

árvore,
When the wind blows the cradle will rock,
Quando o vento soprar o berço irá
When the bough breaks the cradle will
balançar,
fall,
E quando o galho quebrar o berço cairá,
And down will come baby, cradle and all.
E abaixo virá o bebê, berço e tudo.

Ilan Brenman, psicólogo, educador, contador de histórias e autor de vários livros

infanto-juvenis, não concorda com as novas versões adaptadas às canções folclóricas.

Acredita que as crianças, desde cedo, devem aprender a lidar com situações de conflito

e que isso servirá como base para enfrentar as dificuldades da vida, e que, retirada essas

situações das canções e/ou histórias infantis a própria formação será prejudicada.

Afirma ainda que nunca matou um animal por cantar Atirei o pau no gato.

Para ele, a imposição do “politicamente correto”, como substituir palavras ou mesmo

alterar as letras das canções, pode afastar a juventude das histórias tradicionais. Ressalta

ainda que se atitudes não forem tomadas, num futuro próximo não contaremos mais a

história do Negrinho do Pastoreio e sim do “Afrodescendentezinho do Pastoreio”.

Assim como no conto de fadas existe o bem e o mal, o corajoso herói que luta

pela busca de seu objetivo ultrapassando obstáculos, a mensagem é sempre boa e

otimista e esses contos são amados por crianças do mundo inteiro.


A psicóloga Paula Dely traça um paralelo entre as cantigas de roda e a

agressividade e defende que ela não é prejudicial ao ser humano e sim um complemento

para o seu desenvolvimento, e que um espaço saudável para a convivência da criança é

aquele em que existe amor e força para que ela não tenha medo de lidar com seus

sentimentos e fantasias, usando assim, a agressividade como uma força produtiva, que

se desenvolve pelo simples ato de brincar, em que o prazer físico e emocional presente

domina os impulsos agressivos naturais a todos nós.

Se para nós, adultos, a mensagem de uma cantiga adquire uma aparente


hostilidade, ela não deve ser considerada, por si só, prejudicial. Nós mesmos
ainda lembramos delas com nostalgia e, de tanto ouvi-las e cantá-las,
certamente não nos transformamos em seres violentos ou agressivos. Para a
criança, assim como foi para nós um dia, cantar em roda, de mãos dadas
com os amigos, é prazeroso. Cantigas estimulam o desenvolvimento da
percepção e da criatividade.
A falta de afeto, a violência, as punições incoerentes e a falta de diálogo e de
limites claros e definidos é que devem ser alvo de cuidados e atenção. Se
quisermos proteger nossas crianças e transformá-las em adultos saudáveis,
devemos, antes de tudo, prestar atenção em nós mesmos (em nossa conduta,
capacidade de compreensão alteridade e ética) e nos valores que
fundamentam a sociedade atual (DELY,www.aprendebrasil.com.br)

O educador e pesquisador César Obeid, fala em seu site sobre Tradição e

Modernidade e as mudanças ocorridas com o tempo, que não acontecem por aceitação e

sim por uma imposição coletiva. Em relação às escolas que não cantam mais Atirei o

pau no gato ou mesmo que não permitam a briga do Cravo com a Rosa, questiona se a

transformação das letras das cantigas formará jovens mais pacíficos.

De acordo com especialistas no tema, a cultura da paz não significa a ausência

da guerra. Diminuir e controlar nossa própria violência interna já seria um passo

conquistado, afinal, um pai violento que só grita com seus filhos nunca poderá

transmitir-lhes nenhum valor de paz, mesmo que leia qualquer história “politicamente

correta”.
Obeid chama a atenção também para outras formas de violência explícita nas

tradições culturais como a farra do boi, rodeios e mesmo um circo que ainda exibe

animais para diversão humana. São claramente exemplos de maus tratos aos animais

que mesmo assim são carimbados de “folclore”. Destaca ainda que a coleta seletiva não

realizada por muitas escolas, embora embutidas em todo um discurso, também é uma

forma de violência, que agride o meio ambiente, a nós mesmos e às futuras gerações, e

que professores de arte ainda insistem em fazer trabalhos em isopor em sala de aula.

Concordo com o autor quando pontua que é trabalho árduo mudar os velhos hábitos, e

que uma mudança verdadeira, consciente, de respeito e harmonia também faz parte da

tradição.

A jornalista Monica Weinberg, em seu artigo Educação, será?, publicado na

revista VEJA, escreve sobre esse polêmico assunto das “novas versões” das canções

folclóricas. Uma escola tradicional de São Paulo adotou as versões “politicamente

corretas” a pedido dos pais dos alunos. Porém, são apresentadas as duas versões às

crianças, para que elas mesmas sejam capazes de discernir o certo e o errado, explica a

coordenadora.

Beatriz de Souza Bessa, psicóloga, mestranda em Memória Social e componente

do Núcleo Experimental de Arte-Educação destaca como o significado da palavra

politicamente correto virou um jargão e está presente na mídia e no cotidiano de todos

nós: “O politicamente correto ensejaria, portanto, uma robótica das relações sociais.

Será que isso combina com experiência musical na infância?”

(BESSA,www.polemica.uerj.br).

Analisando as respostas das entrevistas sobre a troca das letras das canções por

outras politicamente corretas, e a influência desta alteração na tradição e no

desenvolvimento do caráter da criança, optei por colocar aqui as observações mais


relevantes das pessoas entrevistadas. Os comentários recebidos me surpreenderam,

assim como os mais divergentes pensamentos, como podemos acompanhar a seguir.

A Promotora de Justiça da Vara da infância e juventude, Roseny Zanetta

Barbosa, 38 anos, acredita que esse não seja o melhor caminho para educar as crianças;

ela não vê nenhum problema nas letras originais das canções e que a troca não faria

crianças melhores. Coloca ainda que saudável é viver num ambiente pautado de

respeito, sob a vigilância dos pais e onde os mesmos, dentro desse contexto, não percam

a autoridade sobre seus filhos e se preocupem mais com a violência explícita nos jogos

de vídeo game e na internet.

Lucila Bigarelli Terrabuio, 62 anos, formada em letras e professora de língua

portuguesa adorou quando sua netinha cantou Não atire o pau no gato e comenta que o

amor pelos animais pode deixar marcas profundas através da música. Crê firmemente

que cantar “alegrias” mais do que outras coisas faz crianças melhores. Completa ainda

que sua personalidade é marcante e que se ela recebe uma informação no lar baseada

nos valores éticos, morais e religiosos, não é uma letra de música que a desvirtuará.

Para o agente cultural e documentarista Victor Hugo Martins de Menezes, 33

anos, formado em Comunicação Social, mesmo que haja uma questão ligada à

preservação da história do folclore, uma abordagem mais positiva das letras é válida,

pois as palavras têm poder e que se é correto que as crianças acostumem desde cedo a

lidar com conflitos e à realidade da vida, que nem sempre é só alegria, letras mais

positivas contribuem para um estado de alma mais otimista e uma melhor projeção do

inconsciente coletivo, criando um povo com auto-estima maior.

Já a jornalista Janaina Lacerda Machado, 25 anos que atua como analista de

responsabilidade social coloca que a língua portuguesa vem sofrendo várias alterações

ao longo do tempo e que as canções também podem se transformar, porém defende que
as letras das músicas devem ser mantidas em sua originalidade, devendo ser passada de

geração em geração como resgate das tradições folclóricas. Não acredita que cantar as

novas versões pode formar crianças melhores porque elas não são como nós, adultos,

não estão preocupadas com as letras das músicas e sim com a brincadeira inserida nela.

O médico veterinário André Zanarella de 42 anos discorda totalmente sobre essa

mudança, mesmo que pareça politicamente correta. Afirma que mudar o folclore é como

negar ou matar nossas raízes. Relata que durante toda a sua infância cantou Atirei o pau

no gato e, no entanto, por amor aos animais tornou-se veterinário e que a formação do

caráter das crianças depende da boa educação e bons exemplos transmitidos pelos pais,

aos quais, muitos hoje em dia, transferem essa responsabilidade para a escola. Acredita

que o ensino da música sim, pode lapidar o caráter não só das crianças, mas de todo ser

humano.

Edson Toledo Albino, 48 anos, professor com licenciatura em língua portuguesa,

pensa que a escola deve oferecer à criança a oportunidade de entrar em contato com

ambas as possibilidades, ou seja, conhecer a letra original da música, seu contexto

folclórico, cantar sua melodia e buscar seu referencial de vida além de outras propostas

que traduzam a realidade atual, recriando não só a letra, como também criando novas

melodias para expressar o que pensa e sente. Neste sentido, o educador, embora possa

fazer intervenções que achar pertinente, deverá acima de tudo, respeitar e valorizar a

expressão espontânea do aluno.

Sobre a versão original de Atirei o pau no gato, ele não acredita que a criança

possa tomar ao pé da letra o que diz a música, pois se assim fosse, os gatos estariam

extintos. Lembra de um episódio de sua infância, que achou engraçado jogar torrões de

terra nas patas de um cachorro, só para vê-lo pular, até que um desses torrões acertou-

lhe a pata e ele latiu de dor. No mesmo instante, com o coração partido, a brincadeira
transformou-se em arrependimento. Neste caso, vê a questão principal em como a

criança está sendo educada e orientada em seu entorno e completa que, por ser o

folclore uma manifestação popular de caráter dinâmico, que as canções e as festas

folclóricas nunca serão as mesmas, por mais esforço que façamos em reproduzi-las com

fidelidade. O que importa não é obedecer “liturgicamente” os ritos, mas sim entender a

razão de ser do folclore, que é um desejo coletivo de pessoas que comungam o mesmo

espírito e que se identificam enquanto comunidade e que faça memória que se atualiza

na vida das pessoas, que hoje absortas num mundo virtual, tenham deixado de exercer a

magia do encontro que ele propicia. Alterar a letra com um propósito de contextualizar

o folclore à realidade é um exercício de liberdade de expressão, mas adverte que é

sempre bom estabelecer a referência, fazer memória, cultuar o antigo e saudar o novo.

A professora de música Marly Ferreira Santos, 54 anos, acredita que a

sociedade, a família e a escola estejam passando por uma fase delicada em termos de

violência e que isso influencia numa vontade coletiva de promoção da paz,

principalmente no que se refere à infância e a criança.

Sarah do Carmo Bandicioli, advogada, 34 anos, não gostou das músicas que

ouviu com as letras alteradas. Acha que o problema ligado a violência nada tem a ver

com as canções e sim com o comportamento da família e educadores onde a

permissividade e a falta de autoridade é que são os males do mundo contemporâneo.

Sobre trocar a letra de O Cravo brigou com a Rosa, disse que se perderá toda a poesia

da música.

O músico Agnaldo Dias, 39 anos, vê esse assunto como uma falha no processo

de reprodução cultural, pois a aceitação de uma alteração artificial na letra se dá pelo

desconhecimento da forma original, pela falta de registro físico e que assim sendo, essas

alterações não causarão estranheza a quem o tenha como novo. Sob seu ponto de vista
isso é uma violação de produto cultural e faz uma comparação semelhante a de Ilan

Brenmam já citado neste artigo, onde imagina um Saci-Pererê sem cachimbo e em vez

de chamá-lo de perneta ou de uma perna só, tenha que se referir a ele dizendo “ aquele

personagem folclórico portador de deficiência física em um de seus membros

inferiores”.

Nessas entrevistas pude constatar diferentes raciocínios e emoções, tais como

indignação, dúvidas, surpresas, decepções, ironias e até certa dose de humor.

Lucy do Carmo é minha mãe, 68 anos e aposentada como supervisora de ensino.

Como participa de minhas conversas e discussões sobre o tema, fiquei curiosa para

saber o que pensa sobre o assunto. Sobre a alteração nas letras das músicas, ela acha

boa, pois assim afasta a idéia de violência e “terrorismo”. Terrorismo? Bem, foi isso que

ela disse, talvez não tenha encontrado a palavra correta para se expressar. Quanto a

alterar a história do folclore, acredita que a mudança é para melhor e que isso é sinal de

que a humanidade também está mudando, percebendo com bons olhos os seres vivos e o

planeta num sentido geral. Porém considera muito importante uma explicação para as

crianças para que entendam o motivo dessa mudança.

Fiz uma pergunta sobre o que as pessoas prestam atenção primeiramente quando

escutam uma música, se é na letra ou na melodia e a resposta unânime foi: a melodia.

Para finalizar a entrevista, cantei a música Samba Lelê e comentei que a

pobrezinha além de estar com a cabeça quebrada ainda merecia umas palmadas e sugeri

que tentassem substituir uma letra mais “otimista” para a mesma melodia. Eis o

resultado:

Samba Lelê está contente/está toda enamorada/agora é que a morena bonita/vai dar

umas boas risadas...


Samba Lelê está contente/está com a cabeça enfeitada/Samba Lelê precisava/é de uma
batucada...
A menina Lelê/ensina a criançada/rodopiar com alegria/no seu lindo bambolê...
Samba Lelê está doente/está com a cabeça cansada/Samba Lelê precisava/é de umas

boas risadas...
Samba Lelê está contente/está toda animada/ela ganhou o presente/que há tanto tempo

esperava...

Outras pessoas disseram que a letra está boa do jeito que está outras que nada

precisa ser alterado ou ainda que não conseguiram imaginar outra letra para esta música.

No momento sou pianista de coral e leciono piano e teclado. Estou há muito

tempo afastada da sala de aula, mas pretendo voltar em breve. Então, elaborei algumas

brincadeiras de roda e alguns jogos de percepção envolvendo ritmo e melodia e realizei

está oficina com crianças de cinco anos de uma escola municipal cuja professora, minha

amiga, achou interessante este assunto. Levei o teclado para cantar com elas e comecei a

tocar algumas melodias, entre elas: Pirulito que bate-bate, Ciranda cirandinha, Atirei o

pau no gato, entre outras. A tarefa foi adivinhar que música eu estava tocando e elas

acertaram todas. Em seguida, usando as músicas já ouvidas, eu bati o ritmo com palmas

e pés e elas tiveram que descobrir a música. Acertaram também. Depois brincamos de

roda e para encerrar eu disse a elas que cantaríamos algumas músicas que elas já

conheciam. Esse momento foi o mais esperado para mim, pois comecei a cantar Não

atire o pau no gato e imediatamente elas me falaram que “não era assim”, que eu estava

cantando errado. Depois de pedir a elas que cantassem a maneira correta para eu

aprender conversamos sobre animais. Todos tinham uma história pra contar de seus

animais de estimação e quando não tinham, falavam dos animais de seus vizinhos, avós

e assim por diante. Uns falaram que gostam mais de cachorros, outros que gostam mais

de gatos. Um garoto disse que o certo era cantar Atirei o pau no gato, mas que isso era
só de brincadeira, que se jogassem um pau no gatinho que ele ficaria machucado e que

ia doer.

Com a música O Cravo e a Rosa, em vez de cantar, iniciei uma discussão sobre

a letra e perguntei por que será que o cravo tinha brigado com a rosa. Responderam-me

que a rosa tem espinhos e machucou o cravo, que o cravo beijou outra flor, etc., mas

que no final eles iam fazer as pazes, que não foi uma briga séria.

Infelizmente o tempo foi curto para as oficinas com crianças, mas esse resultado

era o esperado por mim. As crianças conhecem as canções folclóricas, elas ainda se

encantam e brincam da mesma forma como nós nos encantamos um dia... e

continuamos a nos encantar.

CONCLUSÃO

Em minha trajetória como professora de música sempre valorizei as canções do

nosso folclore e as priorizei em meus planejamentos. Esse rico patrimônio cultural é

quase infinito, em quantidade e em qualidade, pois, além do registro da nossa cultura,

do nosso folclore, registra também doces recordações de uma fase muito importante

para todos nós, que foi a infância. Porém, uma infância um pouco diferente das crianças

de hoje. Não tínhamos malícia nem vídeo game, nem computador, muito menos escola

em período integral. Brincávamos na rua de roda, mãe da rua, amarelinha, queimada,

esconde-esconde, polícia e ladrão, subíamos em árvores, andávamos de bicicleta,

jogávamos bola na praça mais perto de casa...

Por acreditar que a nossa cultura popular é um tesouro valioso, tanto para nós

como para nossas crianças, é que senti a necessidade de buscar mais informações e

pesquisar sobre o tema aqui apresentado, a fim de resgatar e divulgar as canções, jogos
e brincadeiras tradicionais relacionados ao folclore brasileiro, os quais Veríssimo de

Melo aborda com detalhe em seu precioso livro Folclore Infantil.

A pesquisa baseou-se principalmente na discussão das letras das canções que

hoje, sob os olhos de alguns pais e profissionais, são consideradas como sendo

“politicamente incorretas”, como é o caso de Atirei o pau no gato e O Cravo brigou

com a Rosa.

Acredito que existe sim uma preocupação com essas letras e que são vistas com

bons olhos, pois se os adultos de outrora não se importavam em cantar Atirei o pau no

gato, felizmente os de hoje se preocupam, mas não concordo com o foco que se tem

dado a esse assunto. Existe algo mais importante a ser resgatado antes de trocarmos as

letras de canções que trazem uma bagagem que pertence a nós, que é contar a história

disso tudo para as crianças, contextualizar, pois as crianças não estão preocupadas com

isso e acho que uma explicação é necessária no momento certo.

A cultura também tem caráter dinâmico e não podemos nos esquecer disso.

Qualquer pessoa pode acrescentar a sua versão numa música, desde que compreenda

que não é a única, pois em cultura popular não existe isso. Fala-se muito em “preservar

as letras originais”. E quem saberá a original? Na bibliografia que possuo sobre as

cantigas de roda, as mesmas músicas sofrem alterações dentro do mesmo estado,

imagine então pelo Brasil afora quantas versões diferentes e modificadas encontraremos

da mesma música.

O importante é resgatar as canções e as brincadeiras inseridas nelas, pois é no

ato de brincar, no caráter lúdico da música que a criança se concentra. Não podemos

esquecer a melodia que é elemento musical essencial, o primeiro a despertar nossa

impressão quando ouvimos uma música.


Não acredito que a troca das letras atualmente chamadas de “politicamente

incorretas” possa influenciar a criança no desenvolvimento de sua personalidade.

Conforme a revista VEJA (edição 1948), uma pesquisa realizada pela

Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, perguntou a 3.000 crianças o que elas

concluíam depois de escutar tradicionais cantigas de roda cujos personagens centrais

eram seres assustadores: 83% responderam que nem sequer prestavam atenção à letra.

Fala-se muito em cultura da paz, mas acredito em uma cultura capaz de

transformar pessoas, de construir pontes para continuar a encaminhar futuras gerações

para um futuro brilhante e que aprenda a respeitar a nossa gente, através do ensino da

arte e num contato mais direto com nossa cultura popular.

Continuarei esta pesquisa na minha vida profissional e acadêmica, pois o tema

abordado aqui, agora me instiga muito mais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Editora, 1999.

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<http://brincandocomcores.blogspot.com/2009/07/musicas-folcloricas-para-

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