Você está na página 1de 200

Organizadores

Claudia Lucia Silva Mendes


Elionaldo Fernandes Julião
Janaina de Fátima Silva Abdalla

Trajetória de vida,
violência e
vulnerabilidade

DEGASE
Rio de Janeiro
2019
Conselho Editorial Aderaldo Santos
André Porfiro
Claudia Meira
Fabiana Rodrigues
Janaina de Fátima Silva Abdalla
Jean Maciel Xavier
Maria Beatriz Barra de Avelar
Maria Tereza Azevedo Silva
Raul Japiassú Câmara
Renan Saldanha
Soraya Sampaio Vergílio
Vivian de Oliveira
Comissão Científica Claudia Lucia Silva Mendes
Elionaldo Fernandes Julião
Janaina de Fatima Silva Abdalla

©Claudia Lucia Silva Mendes Direitos desta edição adquiridos


Elionaldo Fernandes Julião pelo DEGASE. Nenhuma parte desta
Janaina de Fátima Silva Abdalla obra pode ser apropriada e estocada
em sistema de banco de dados ou
processo similar, em qualquer forma
ou meio, seja eletrônico, de fotocópia,
gravação, etc., sem a permissão da
editora e /ou autor
Organizadores
Claudia Lucia Silva Mendes
Elionaldo Fernandes Julião
Janaina de Fátima Silva Abdalla

Trajetória de vida,
violência e
vulnerabilidade

DEGASE
Rio de Janeiro
2019
Presidente da República Jair Messias Bolsonaro

Governador do Estado do Rio de Janeiro Wilson José Witzel

Secretário de Estado de Educação Pedro Fernandes

Diretor-Geral do Novo DEGASE Márcio de Almeida Rocha

Revisão Ortográfica Antonino Sousa Fona

Revisão Bibliográfica Danielle Torres


Lilian Casimiro

Imagem da capa Alex Marcos Lima Alves

Capa, Diagramação e Finalização Fernando Diaz Picamilho


Gabriela de O. G. Costa
Trajetória de vida,
violência e vulnerabilidade

Organizadores
Claudia Lucia Silva Mendes
Elionaldo Fernandes Julião
Janaina de Fátima Silva Abdalla
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 11
Claudia Lucia Silva Mendes
Janaina de Fátima Silva Abdalla
Soraya Sampaio Vergílio

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA NOÇÃO DE 17


INDIVÍDUO PERIGOSO NO BRASIL E A
SUJEITAÇÃO CRIMINAL DE JOVENS NEGROS
E POBRES SOB A ÓTICA DA PERMANÊNCIA
HISTÓRICA
Ana Lucia de Lima Pansini 
Lohaine Jardim Barbosa

A DEFESA NA JUSTIÇA JUVENIL FRENTE AOS 39
PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO DA
JUVENTUDE NO RIO DE JANEIRO
Tatiana Lourenço Emmerich de Souza

CARTOGRAFANDO “SOCIOEDUCAÇÕES” NO 58
SISTEMA SOCIOEDUCATIVO: O TRÂNSITO ENTRE
DIFERENTES TERRITÓRIOS E EFEITOS
Carla Magliano 
Maira Bruna Monteiro Santana
Thiago Benedito Livramento Melicio

“OFICINA DA PALAVRA”: ADOLESCENTES EM 74


CONFLITO COM A LEI PROTAGONIZANDO
SUA PRÓPRIA HISTÓRIA.
Débora Barbosa da Silva
Nataly Soares de Araujo Neves

ENTRE ELES E NÓS: AFETOS, VIOLAÇÕES E 86


DESLOCAMENTOS.
Julia de Almeida Roffé Borges
Juliana da Silva Gonçalves
Tamiris Rejane Moreira Freitas
Anna Paula Uziel
ADOLESCENTES EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE, 99
CONVIVÊNCIA FAMILIAR E TERRITORIALIDADE:
DEMANDAS EM POLÍTICAS PÚBLICAS NA ÁREA
DA JUVENTUDE
Maria Tereza Azevedo Silva 
Leandro Soares de Souza
Maria Helena Zamora

O QUE DIZEM OS ADOLESCENTES EM MEDIDA 119


SOCIOEDUCATIVA DE SEMILIBERDADE
SOBRE SUAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS?
Carolina Seixas da Rocha
Vanessa Barbosa Romera Leme

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM ADOLESCENTES 139


PRIVADOS DE LIBERDADE: O ESTIGMA DE
INFRATOR E SUAS IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS
Marco Antonio de Oliveira

DA ORDEM DE SER O IDEAL AO QUE ME 154


CONSTRUO HOJE: SOBRE DISCIPLINARIZAÇÃO E
AS LINHAS DE FUGA NA SOCIOEDUCAÇÃO
Ana Camilla de Oliveira Baldanzi
Raiane Barreto Teixeira
Loíse Lorena Silva do Nascimento
Juliana Carnevale da Cunha
Thiago Benedito Livramento Melicio
Anna Paula Uziel

DIREITOS SEXUAIS DE HOMENS JOVENS EM 168


PRIVAÇÃO DE LIBERDADE E IMPLEMENTAÇÃO
DO PRESERVATIVO: DESAFIOS INSTITUCIONAIS
Jimena de Garay Hernández
Patricia Castro de Oliveira e Silva
Vanessa Pereira de Lima
Bárbara Silva da Rocha
Luisa Bertrami D’Angelo
Ana Camilla de Oliveira Baldanzi
Anna Paula Uziel

RESSOCIALIZAÇÃO OU SOCIOEDUCAÇÃO? 184


PERSPECTIVAS AO ADOLESCENTE EM
CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS
Vania Morales Sierra
APRESENTAÇÃO
Desde a Constituição Federal (1988) e do Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), as instituições
responsáveis pelo atendimento aos adolescentes envolvidos em
atos ilícitos passaram por mudanças impostas pelas leis dirigidas
à criança e ao adolescente, na perspectiva da proteção integral,
e pelas pressões da sociedade. A Lei do Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (SINASE- 2012), vinte dois anos
após a promulgação do ECA, estabeleceu a estrutura filosófica,
pedagógica, física e humana das instituições de atendimento ao
adolescente em Medidas Socioeducativas. Para Abdalla (2013)1,
se, por um lado, tais estabelecimentos possuem um conjunto de
normas e modelos oficiais aceitos e divulgados, por outro lado, os
paradoxos existentes entre os discursos e as práticas desafiam-
nos a cada período da história.
Atualmente, o cenário nacional nos anuncia um quadro
ainda mais perverso na medida em que se acirra um discurso
de intolerância e endurecimento para as políticas voltados aos
jovens envolvidos com a violência: vulneráveis e autores de atos
infracionais (VERGILIO, 2018)2. Ações voltadas para os estudos,
pesquisas e programas de qualificação-formação de profissionais
para atuarem direta e indiretamente com estas juventudes
tornam-se instrumentos de luta para o Sistema de Garantia de
Direitos das Crianças e Adolescentes SGD-CA.
Propondo a reflexão sobre as políticas para crianças e
adolescentes no Brasil, desde 2010, o Departamento Geral de
Ações Socioeducativas (DEGASE), órgão da Secretaria de Estado
de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC), responsável pela
execução das Medidas Socioeducativas de privação e restrição de
liberdade no estado do Rio de Janeiro, vem organizando os
Seminários Estadual e Internacional Socioeducativos, convidando
a sociedade em geral para o debate, principalmente sobre as
políticas socioeducativas implementadas.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 11


Nos últimos sete anos, foram realizados sete Seminários
Estaduais e três Internacionais, reunindo, em amplos debates,
profissionais, estudantes, gestores, representantes da sociedade
civil organizada e pesquisadores interessados no tema. Desde
2012, quando os eventos passaram a contar com a parceria da
Universidade Federal Fluminense (UFF), através do Grupo de
Trabalho e Estudos sobre Políticas de Restrição e Privação de
Liberdade do seu Programa de Pós-graduação em Educação, o
estado do Rio de Janeiro vem se tornando um dos principais
promotores de tal debate.
Em 2016, a parceria UFF / DEGASE se amplia e inicia-
se a pesquisa “Trajetórias de Vida de adolescentes e jovens em
privação de liberdade no Estado do Rio de Janeiro – A realidade
para além do ato infracional” cujo objetivo principal é revelar, a
partir destas trajetórias, como sujeitos autores de atos infracionais
relacionam-se e vivem em diferentes espaços e contextos. Tal
iniciativa do DEGASE/ UFF, pauta-se no entendimento de que
qualquer política de atendimento deve conhecer o público ao
qual se destina (VERGILIO, 2018).
O Seminário Socioeducativo, em maio de 2018, teve como
tema: “Trajetórias de Vida, Violência e Vulnerabilidades de
Adolescentes e Jovens em Restrição e Privação de Liberdade”
cujos objetivos foram : ampliar e aprofundar a articulação
entre os saberes produzidos no âmbito acadêmico e no fazer
cotidiano das instituições socioeducativas, de forma a qualificar
o atendimento socioeducativo e a reflexão crítica.
Como desdobramento do seminário , apresentamos esta
publicação: Trajetória de vida, violência e vulnerabilidade
Iniciando o livro, apresentamos o artigo “A CONSTRUÇÃO
SOCIAL DA NOÇÃO DE INDIVÍDUO PERIGOSO NO BRASIL
E A SUJEITÇÃO CRIMINAL DE JOVENS NEGROS E POBRES
SOB A ÓTICA DA PERMANÊNCIA HISTÓRICA”, de Ana
Lucia de Lima Pansini e Lohaine Jardim Barbosa, que, a partir de
pesquisa histórica, problematizam a perpetuação e legitimação,

12 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


pelo Estado e pela sociedade brasileira, da imagem social e do
processo de subjetivação da juventude negra e de baixa renda
como sujeito criminal e perigoso.
O artigo a seguir, de Tatiana Lourenço Emmerich de
Souza, “A DEFESA NA JUSTIÇA JUVENIL FRENTE AOS
PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO DA JUVENTUDE NO
RIO DE JANEIRO”propõe uma reflexão sobre os discursos
estigmatizantes que incidem sobre os adolescentes em conflito
com a lei, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, trazendo
para o debate a garantia de direitos fundamentais destes sujeitos.
Os pesquisadores Carla Magliano, Maira Bruna Monteiro
Santana e Thiago Benedito Livramento Melicio, no artigo
“CARTOGRAFANDO ‘SOCIOEDUCAÇÕES’ NO SISTEMA
SOCIOEDUCATIVO: O TRÂNSITO ENTRE DIFERENTES
TERRITÓRIOS E EFEITOS”, realizado a partir pesquisa empírica,
desenvolvida em duas unidades do Departamento Geral de Ações
Socioeducativas do Rio de Janeiro (DEGASE), com adolescentes
em privação de liberdade, agentes socioeducativos e corpo
técnico, com metodologia pautada na Cartografia Psicossocial,
propõe-se a refletir sobre práticas plurais coexistentes, tanto
as que dão ressonância às normativas de políticas públicas
destinadas aos jovens, tais quais as previstas no Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo (SINASE), como as provenientes
de lógicas punitivo-coercitivas.
No artigo “OFICINA DA PALAVRA: ADOLESCENTES EM
CONFLITO COM A LEI PROTAGONIZANDO SUA PRÓPRIA
HISTÓRIA”, as graduandas em Psicologia pela Universidade
Federal Fluminense – UFF, Débora Barbosa da Silva e Nataly
Soares de Araújo Neves, relatam suas experiências no Centro de
Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente – CRIAAD
de Macaé, através de pesquisa de intervenção realizada na
atividade pedagógica “Oficina da Palavra” em que utilizou-se
escuta qualificada com o objetivo de ampliar os “olhares dos
adolescentes” sobre si mesmos e de outrem.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 13


No artigo “ENTRE ELES E NÓS: AFETOS, VIOLAÇÕES E
DESLOCAMENTOS”, as pesquisadoras Julia de Almeida Roffé
Borges, Juliana da Silva Gonçalves, Tamiris Rejane Moreira
Freitas e Anna Paula Uziel deslocam a analise “sobre” os jovens
em privação de liberdade e “sobre” o Sistema Socioeducativo,
a partir das conversas realizadas com adolescentes tidos
como perigosos, para discutir as implicações e afetações dos
pesquisadores impactados pelo campo da pesquisa. Segundo
as autoras, as conversas foram realizadas “em locais inóspitos,
sob vigilância e reprovação”. Destacam que a análise de
implicação mostrou-se uma potente ferramenta para desvelar os
atravessamentos e deslocamentos e os processos de subjetivação
possível aos jovens.
Fazendo parte de análise parcial da pesquisa
“Trajetórias de vida e escolar de jovens em situação de risco
e vulnerabilidade”(UFF/ DEGASE, 2016), os pesquisadores
Maria Tereza Azevedo Silva, Leandro Soares de Souza e Maria
Helena Zamora, apresentam o artigo “ADOLESCENTES EM
PRIVAÇÃO DE LIBERDADE, CONVIVÊNCIA FAMILIAR
E TERRITORIALIDADE: DEMANDAS EM POLÍTICAS
PÚBLICAS NA ÁREA DA JUVENTUDE”. A análise
realizada traz reflexões sobre territorialidade, políticas
públicas voltadas à infância e juventude e o enfrentamento de
discriminações a partir do lugar social de pertencimento dos
jovens em privação de liberdade no DEGASE.
Vanessa Barbosa Romera Leme e Carolina Seixas da Rocha,
em seu artigo “O QUE DIZEM OS ADOLESCENTES EM
MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE SEMILIBERDADE SOBRE
SUAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS?”, utilizando a metodologia
de grupos focais com jovens do sexo masculinos em cumprimento
de Medida Socioeducativa de semiliberdade no Rio de Janeiro,
objetivam investigar as percepções dos jovens sobre suas relações
interpessoais na família, escola e instituição, a fim de fornecer
subsídios para a implementação de uma intervenção focada na
promoção interações sociais positivas.

14 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


No artigo “REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM
ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE: O ESTIGMA
DE INFRATOR E SUAS IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS”,
Marco Antonio de Oliveira objetiva apresentar os resultados
de pesquisa realizada com adolescentes privados de liberdade
em uma unidade socioeducativa do Rio de Janeiro, acerca das
representações sociais do estigma de infrator e suas repercussões
psicossociais na vidas destes sujeitos.
O artigo “DA ORDEM DE SER O IDEAL AO QUE ME
CONSTRUO HOJE: SOBRE DISCIPLINARIZAÇÃO E AS
LINHAS DE FUGA NA SOCIOEDUCAÇÃO”, de Ana Camilla
de Oliveira Baldanzi, Raiane Barreto Teixeira, Loíse Lorena Silva
do Nascimento, Juliana Carnevale da Cunha, Thiago Benedito
Livramento Melicio e Anna Paula Uziel, objetiva discutir
como certos modos de subjetivação serializados ganham corpo
no território de privação de liberdade, tendo como categoria
de análise a “disciplina” nas relações construídas dentro do
Sistema Socioeducativo.
A partir de experiências vividas em um curso sobre Direitos
Sexuais e Reprodutivos realizado em uma unidade masculina de
internação do DEGASE, as autoras, Jimena de Garay Hernández,
Patricia Castrode Oliveira e Silva, Vanessa Pereira de Lima,
Bárbara Silva da Rocha, Luisa Bertrami D’Angelo, Ana Camilla
de Oliveira Baldanzi e Anna Paula Uziel apresentam o artigo
“DIREITOS SEXUAIS DE HOMENS JOVENS EM PRIVAÇÃO
DE LIBERDADE E IMPLEMENTAÇÃO DO PRESERVATIVO:
DESAFIOS INSTITUCIONAIS” em que buscam revelar a
importância e o desafio de discutir os direitos dos jovens, bem
como noções sobre gênero, sexualidade, Socioeducação e como
tais temas atravessam a vida dos jovens e de profissionais no
cotidiano da unidade.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 15


Encerrando esta obra, a palestrante Vânia Morales Sierra
convida-nos a refletir acerca do conceito de ressocialização
e do próprio sentido e desafios da Socioeducação através
do artigo “RESSOCIALIZAÇÃO OU SOCIOEDUCAÇÃO?
PERSPECTIVAS AO ADOLESCENTE EM CUMPRIMENTO DE
MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS”. Propondo-se a apresentar as
diferenças entre ambos os conceitos, a autora promove diversas
reflexões e traz referências da história brasileira e pautadas nos
marcos nacionais legais e operativos sobre infância e juventude
(Código de Menores de 1927 e 1979, SINASE e o Estatuto da
Criança e Adolescente).
Por fim, gostaríamos de agradecer aos autores dos artigos
por partilharem seus saberes, pesquisas e vivências, fruto de
muitas reflexões e estudos, horas dedicadas a questões que
ainda carecem de maior visibilização, sobretudo em um país
ainda tão desigual.
Aos leitores também o nosso muito obrigado e fica aqui o
convite para, quem sabe, no próximo ser você a dividir conosco
seus conhecimentos, suas experiências.

16 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA NOÇÃO DE INDIVÍDUO
PERIGOSO NO BRASIL E A SUJEIÇÃO CRIMINAL DE
JOVENS NEGROS E POBRES SOB A ÓTICA
DA CONTINUIDADE HISTÓRICA

Ana Lucia de Lima Pansini


Lohaine Jardim Barbosa

RESUMO
A presente pesquisa teve por objetivo relacionar a construção
social da noção de indivíduo perigoso no Brasil, desde a
Abolição da Escravatura até os tempos atuais, apontando para a
continuidade histórica da sujeição criminal da juventude negra
e de baixa renda como uma forma histórica que se configura
também na atualidade de forma revigorada e legitimada pelo
Estado e pela sociedade.

Palavras-chave: Sujeição Criminal. Biopolítica. Políticas Públicas.

1. A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE SUJEITO PERIGOSO


NO BRASIL

Falar da abolição da escravidão dos negros implica


falar de uma história de não reconhecimento destes enquanto
seres humanos e de uma histórica criminalização a que foram
submetidos. Faz parte desta história a trajetória de evolução
da legislação brasileira em relação aos crimes e ao tratamento
dispensado aos considerados criminosos (sujeitos perigosos).
Nesta longa e complexa história, a questão racial e a
questão nacional encontram-se interligadas. Assim, as primeiras
medidas concretas para o fim do trabalho escravo coincidem
com a própria independência do país (OLIVEIRA, 2011).
A escravidão negra no Brasil durou desde o início da
colonização até 1888. Segundo Oliveira (2011), a abolição da
escravidão no Brasil não foi fruto de uma revolução ou guerra. Foi

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 17


resultado de um longo processo de negociação entre o governo
imperial, os senhores de escravos e os próprios escravos, bem
como de interferência da Inglaterra. Para efetivá-la, foi elaborado
um primeiro documento nacional que trazia o compromisso de
pôr fim à escravidão, o Tratado Anglo-Brasileiro, assinado em
novembro de 1826 e ratificado em março de 1827.
O tratado trazia expresso que ao fim de três anos (março de
1830) seria considerado ilegal, para os súditos do Imperador do
Brasil, a realização de tráfico de escravos africanos sob qualquer
pretexto ou maneira e que o exercício desse tráfico por qualquer
pessoa, súdito da Majestade Imperial, após o prazo designado,
seria julgado e tratado como pirataria (OLIVEIRA, 2011).
Data desse período, o primeiro Código Criminal brasileiro, 1830.
O capítulo um desta norma legal versa sobre os crimes e os criminosos.
Nele, considera-se crime toda ação ou omissão voluntária contrárias às
leis penais da época, sendo considerados criminosos os que cometessem,
constrangessem ou mandassem alguém cometer crimes.
No artigo 10 do Código Criminal do Império do Brasil,
encontra-se expresso que não se julgarão criminosos: os menores
de quatorze anos e os loucos de todo o gênero, salvo se tiverem
lúcidos intervalos e neles cometerem o crime (BRASIL, 1830).
Nesse sentido, se ficasse comprovado que os menores de
quatorze anos tivessem cometido crimes e que o fizeram com
discernimento, então deveriam ser recolhidos à Casa de Correção
pelo tempo que o juiz determinasse. Mas, o recolhimento não
poderia exceder a idade de dezesseis anos (SANTOS, 2008).
É importante lembrar que, nesta época, conviviam no
território brasileiro dois grupos distintos: os negros escravizados
e os senhores de escravos. As legislações que foram sendo
elaboradas tiveram como protagonistas o segundo grupo em
detrimento do primeiro. Assim, fica explícito que “aprisionar
crianças desde a sua mais tenra idade porque eram vistas como
‘potenciais de criminalidade’ é uma cultura política cunhada
desde o período colonial”, (SANTOS, 2008, p. 15), isto é, desde o
período escravocrata.

18 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Em 1830, foi assinado um tratado com a Inglaterra, no
qual havia a previsão de que os africanos que chegassem ao
Brasil não poderiam ser escravizados. As leis brasileiras, desde
1831, com a aprovação do projeto do Marquês de Barbacena,
ratificavam que todos os africanos que chegassem ao Brasil
deveriam ser declarados livres. No entanto, apesar de toda a
pressão e repressão inglesa, a lei de 1831 foi ignorada e o comércio
de escravos continuou sendo realizado no país sem nenhum
problema (OLIVEIRA, 2011).
Diante disso, a gênese do problema se relacionava a duas
faces de uma mesma moeda: o tráfico e a própria escravidão.
Assim, as leis que proibiam o tráfico e as pressões inglesas podem
ter surtido algum efeito, mas, concretamente, pouco modificaram
a realidade escravista existente à época, destaca Oliveira (2011).
Em 1850, Euzébio de Queiroz, preocupado,
principalmente, com a perda completa da soberania brasileira no
assunto em questão e com o desequilíbrio populacional (devido
à maior quantidade de afrodescendentes, em comparação com
os brancos), apresentou um projeto de lei de extinção do tráfico,
fazendo com que o governo brasileiro passasse a se esforçar para
a coibição do tráfico de escravos (OLIVEIRA, 2011).
Em relação ao desenvolvimento do processo abolicionista,
enfraquecimento da estrutura escravista e concretização do fim
do trabalho escravo no Brasil, destacam-se a década de 1870 e a
lei do ventre-livre. Assim, a lei de 1871

[...] mais do que eliminar o último modo legal de realimentação da


escravidão, simbolicamente, a lei enfraqueceu uma das bases de
sustentação do escravismo brasileiro, a política de domínio direta entre
senhor e escravo (OLIVEIRA, 2011, p. 6).

A partir desse período, a vontade dos escravos passou a


se fazer presente nas transações comerciais, reflexo da lei.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 19


Até 1871, a revogação da alforria era legal e poderia ser feita
unilateralmente e considerando apenas o desejo do senhor, o que em
muitos casos mantinha certa subserviência, fidelidade e até mesmo
prestação de serviços. Do mesmo modo, foi com a lei que o pecúlio do
escravo tornou-se legal e os senhores passaram a ser obrigados a libertar
seus escravos mediante indenização. Os valores dessas indenizações,
inclusive, passaram a ser determinados a partir de um arbitramento
que incluía representantes de ambas as partes, e um terceiro, caso não
houvesse consenso (OLIVEIRA, 2011, p. 6).

Parte significativa dos escravos e dos libertos das principais


áreas urbanas passou a estar preocupada e envolvida em uma
negociação constante, em busca de estratégias de liberdade e
de cidadania na sociedade em que viviam. No entanto, deve-
se reconhecer também que essas ações, colocadas em prática
por escravos e libertos, estavam sempre amparadas em maior
ou menor grau por livres, brancos ou não, argumenta Oliveira
(2011). Essas alianças, portanto, foram fundamentais para o
sucesso de muitas empreitadas e revelam outro ponto crucial
nesse processo: a falência gradual do domínio do senhor ocorria
simultaneamente à falência também gradual da própria estrutura
escravista (OLIVEIRA, 2011). Assim:

[...] procuradores, juízes, libertos, comerciantes, advogados e livres,


todos estavam envolvidos e deles dependiam as vitórias e sentenças
favoráveis aos escravos. Eram eles os responsáveis legais pelas ações
judiciais, por empréstimos, por conceder empregos, por advogar e por
interpretar a lei favoravelmente aos escravos, mesmo quando essa não
fosse a atitude juridicamente mais correta (OLIVEIRA, 2011, p. 7).

Todavia, em relação à situação das crianças consideradas


potenciais criminosos, com a promulgação da Lei do Ventre Livre,
Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, a situação se agravou.
Esta legislação declarava livre os filhos de mulher escrava que
nascessem a partir da data de sua entrada em vigor, e dava
outras providências sobre a criação e tratamento daqueles filhos
menores, bem como sobre a libertação dos demais escravos.

20 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


2 A LEI DO VENTRE LIVRE E A CRIMINALIZAÇÃO DA
JUVENTUDE
De acordo com a Lei do Ventre Livre, os filhos menores
deveriam ficar sob a autoridade dos senhores de suas mães, os
quais teriam a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de
oito anos completos. Ao completar a dita idade, o senhor da
mãe tinha a opção de receber do Estado uma indenização de $
600.000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de
21 (vinte e um) anos completos. No primeiro caso, o Governo
deveria receber o menor, e lhe dar destino, em conformidade
com a presente lei (BRASIL, 1871).
Desse modo, segundo Santos (2008), essa legislação
marginalizava a criança negra, porque determinava que esta
poderia estar livre da escravidão, mediante prévia indenização
que poderia ser oferecida ao senhor de escravo por sua mãe. E,
além disso, suscitou o debate jurídico acerca de como deveria
ser denominado o filho livre da mãe escrava, que acabou sendo
definido como ‘ingênuo’, ou seja:

[...] o filho do ventre livre não adquiria liberdade jurídica e, por isso,
estava impedido de frequentar a escola e participar da vida política
do país. Pela Lei do Ventre Livre, o senhor que ficava com a criança
liberta não era obrigado a oferecer instrução primária, o que provocou
a situação do abandono de milhares de crianças (SANTOS, 2008, p. 16).

Portanto, o processo abolicionista no território nacional


foi longo e complexo. Nas décadas iniciais, a dinâmica esteve
concentrada nos debates governamentais, nos tratados e leis
que pouco modificaram o cotidiano da população escrava. A
mudança mais significativa, com a intensificação do movimento
abolicionista e a ampliação da participação de livres, libertos
e escravos nesse processo, ocorre a partir da década de 1870,
sobretudo na década de 1880 (OLIVEIRA, 2011).
Essa cumplicidade social em torno do tema da abolição,
envolvendo diferentes segmentos da sociedade, torna o processo

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 21


irreversível. A solidariedade entre os fazendeiros, inclusive,
foi abalada com a contratação de ex-escravos libertados
pelos abolicionistas. A própria posição da Coroa, direta ou
indiretamente, encorajava as ações abolicionistas com a concessão
de títulos nobiliárquicos, arrecadação de fundos e manifestações
pessoais de apoio, como as diversas ações públicas da Princesa
Isabel (OLIVEIRA, 2011).
Os cafeicultores do Sudeste, ao contrário, em sua maioria
eram contrários à abolição e cada vez mais aderiam ao
movimento republicano. Estes fazendeiros eram os mesmos que
atemorizavam os escravos que estavam aguardando, em Casas
de Comissão ou Detenção, decisões que selariam o seu destino.
Os escravos preferiam qualquer alternativa a terem que ir para
essas fazendas (OLIVEIRA, 2011).
Em 1884, na região sudeste, as províncias do Ceará, de Porto
Alegre e do Amazonas aboliram a escravidão em seus territórios,
sendo um sinal de que o Estado Monárquico estava perdendo o
controle de suas instituições. Em 13 de maio de 1888, foi assinada
a Lei Áurea, declarando a extinção da escravidão em território
brasileiro, além da proibição do trabalho escravo. Nesta época,
em relação ao ano da Abolição, os negros que se encontravam
em condição de liberdade no Brasil perfaziam 50,1% do total da
população, enquanto os escravos representavam 9%, sendo este
o contingente atendido pela lei (VIEIRA; SILVA, 2012).
A medida resultou na queda do regime monárquico, pois
sendo adotada tardiamente, não foi possível contabilizar os
efeitos positivos da lei a favor do regime. Sendo instaurado o
regime republicano em 1889, resultado de uma organização
formada em sua maioria por militares, constituindo-se em uma
revolução de cima para baixo (VIEIRA; SILVA, 2012).
Segundo as autoras (2012), os líderes do movimento em
prol da República organizaram um governo provisório, sob a
chefia do marechal Deodoro da Fonseca. Em novembro de 1890,
foram iniciados os trabalhos da Assembleia Constitucional que

22 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


desenvolveu uma carta magna1 inspirada a partir da dos norte-
americanos. Houve a restrição da participação na vida política do
novo regime, não sendo incluídos novos atores na cena política,
o número de eleitores no início do regime era de 2%, o que na
vigência da Constituição não ultrapassaria os 5%.
No texto constitucional não havia mais demarcações
em relação ao status jurídico dos cidadãos demarcados pelo
nascimento. Coube à ciência, a partir das teorias raciais, construir
novas diferenciações, as quais vieram construir marcas sociais
que orientaram a participação e integração na sociedade. Desse
modo, como consequência tem-se a construção da posição de
inferioridade do afrodescendente. Neste contexto, as teorias
raciais foram sendo construídas para dar as bases para a formação
de um povo nacional e integrar o Brasil aos estados modernos
europeus (VIEIRA; SILVA, 2012).
A Primeira República pode ser classificada em um período
de transformações e também continuidades, pois neste momento
entra em divergência a diversidade social, cultural e econômica
existentes no Brasil. Esta divergência é explicitada ao entrar em
choque com o país que buscava se modernizar. Daí em diante,
são construídos os espaços destinados ao afrodescendente
nos centros urbanos e de como foi a existência deste sujeito na
formação da sociedade (VIEIRA; SILVA, 2012).
Em relação à transformação do escravo em cidadão, é
possível identificar que no período monárquico havia distinção
jurídica entre os homens, que eram separados em escravos e
cidadãos, o que não existirá mais no período republicano. A
cor neste período se apresentou como elemento segregador.
Ou seja, enquanto no período escravocrata a discriminação se
realizava contra o membro da casta, da raça negra, dos escravos,
na sociedade de classes em formação, o preconceito concentrou-
1 Algo considerado importante na Constituição de 1891 foi a definição do eleitorado,
sendo abolido o uso da renda como critério de definição do eleitorado ou mesmo dos
candidatos. Neste momento seriam eleitores os homens com idade mínima de 21 anos,
alfabetizados, o voto sendo direto e aberto (VIEIRA; SILVA, 2012).

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 23


se sobre a cor, sendo utilizado para distinguir e distanciar os
homens, na mesma condição. Assim, a cor foi sendo um símbolo
incorporado pela consciência social do branco, do mulato e do
negro, que exprimiu uma metamorfose ideológica das pessoas
que originariamente ocupavam posições no sistema social
(VIEIRA; SILVA, 2012).
Portanto, a cor da pele foi utilizada como atributo social
para a delimitação dos espaços, já que com o fim da escravidão
não havia mais atividades exclusivas e desempenhadas por
negros ou brancos, ambos passaram a ocupar os mesmos espaços
que, em teoria, deveriam possuir os mesmos direitos e deveres,
enquanto cidadãos. Todavia, a cor e outros atributos físicos
marcaram a relação dos afrodescendentes com a escravidão.
Coube, portanto, às teorias cientificistas justificar a permanência
da distinção entre os homens, o que acabou determinando a
inferioridade do afrodescendente (VIEIRA; SILVA, 2012).
Nesse período é promulgado o Código Criminal de 1890. No
título III, artigo 27 encontra-se expresso: “Não são criminosos: § 1º Os
menores de 9 anos completos; § 2º Os maiores de 9 e menores de 14,
que obrarem sem discernimento; [...]” (BRASIL, 1890, n.p.). Assim,
logo após a Proclamação da República, duas legislações merecem
destaque: o Código Penal, de 1890, e o Decreto 145, de 1893.
O Código Criminal de 1890, primeiro da República, dispunha
sobre as crianças que perturbavam a ordem, a tranquilidade e a
segurança pública. Alterou a idade de responsabilidade criminal
para nove anos. Além disso, definiu que os infratores entre
nove e quatorze anos deveriam ser indicados ao recolhimento
nas casas de correção, inaugurando, assim, uma política de
institucionalização e criminalização dos jovens (SANTOS, 2008).
O Decreto 145, de 1893, determinou o isolamento dos
vadios, dos vagabundos e dos “capoeiras” na Colônia de
Correção. Desde então, a legislação passou a perseguir a arte e a
cultura de resistência dos capoeiristas, considerada uma situação
de vagabundagem e passível de prisão (SANTOS, 2008).

24 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Santos (1999, p.7)2 ressalta que para entender as dificuldades
econômicas dos antigos escravos é importante atentar para o que
ocorreu no dia seguinte à abolição:

Mais de setecentas mil pessoas (aproximadamente 5% da população da


época) foram colocadas à disposição de um mercado de trabalho fictício.
Os imigrantes chegavam em grande número e estavam, de fato, mais
preparados para o trabalho assalariado do que os ex-escravos. Para que
se possa ter uma ideia adequada do impacto causado, esse montante
representaria, em 199l - ano do último censo -, mais de 7 milhões de
pessoas colocadas de uma só vez no olho da rua! Aliás, no olho da rua
ficaram para não mais sair. Parte importante do desemprego estrutural
brasileiro nasce daí. Os efeitos contra o povo negro se fazem sentir ainda
hoje. Trata-se de um desemprego e subemprego permanentes; tão antigos
que já fazem parte da cultura econômica, onde sempre há uma multidão
disponível de pessoas mal- capacitadas para qualquer vaga que surja.

Como continuação dessa lógica perversa, o que se vê


atualmente é que as ocupações mais modestas, que remuneram
menos, são exercidas, principalmente, por pretos e pardos.
Mesmo entre os trabalhadores de baixa renda, os pretos e pardos
recebem menos do que os brancos – apesar de as pessoas terem
a mesma capacitação, recebem salários diferentes devido à
cor da pele3 (SANTOS, 1999). Quanto ao subemprego, Santos
(1999, p.8) destaca que a maioria dos bicos é feita pelos pretos
e pardos. Ou seja, “o subemprego negro antecede a Abolição.
Os negros já libertos, em plena escravidão, já operavam assim:
trabalha hoje; não trabalha amanhã nem depois; um dia aqui,
depois acolá – nada fixo”. Ressalta que, aliado a isso, existe o
fator discriminação racial sofrida no mercado de trabalho pelos
negros, a qual se apresenta de três formas.
O primeiro tipo, segundo Santos (1999), relaciona-se
às dificuldades de obtenção de vaga para as funções melhor
remuneradas e valorizadas, é a discriminação ocupacional.
2 Disponível em http://www2.tjce.jus.br:8080/esmec/wp-content/uplo-
ads/2008/10/discriminacao_racial_no_brasil.pdf, acessado em 22 de março de 2017.
3 Os dados são de vinte anos atrás. Contudo, ao considerar a data da abolição da escrava-
tura, percebe-se uma continuidade da lógica perversa de discriminação racial no Brasil.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 25


Por meio dela parece haver um questionamento em relação
à capacidade do negro para executar determinadas tarefas
consideradas mais complexas. Isto é, apesar de o negro se
encontrar capacitado como os demais, ele é vetado.
O segundo tipo diz respeito às diferenças salariais, quando
se exercem as mesmas funções. É a discriminação salarial que, no
fundo, utiliza a ideia de que o trabalho do negro não vale tanto
quanto o dos demais.
E a terceira e última, tão perversa quanto às demais, é a
fobia pela presença do negro. Pode ocorrer em uma simples
padaria de subúrbio ou em um luxuoso escritório de advocacia.
É a discriminação pela imagem. Através dela “o empregador,
[...] busca manter aquilo que ele considera a imagem ideal de
sua empresa. Tal entendimento ocorre mais junto à pequena e
média empresas” (SANTOS, 1999, p. 10-11). É a questão da “boa
aparência”, utilizada ao longo do tempo para vetar o acesso de
negras e negros para as mais diferentes funções. Pois, por esta
lógica, “o conceito de beleza existente no Brasil – o país com
maior mescla racial do mundo – é olimpicamente branco e de
preferência loiro mesmo” (SANTOS, 1999, p. 10). Assim:

[...] o povo negro foi lesado barbaramente por essa prática racista
durante muito tempo. Os discriminados desconfiavam e sofriam
os efeitos da prática sem decodificar por completo como se dava a
operação. As perdas continuam para os negros e os códigos adquiriram
novas configurações. A rigor, não há uma decisão formal sobre o veto a
negros. Trata-se de um acordo tácito, onde ninguém precisa falar nada;
está tudo subentendido (SANTOS, 1999, p. 11).

Portanto, ao analisar a distribuição da força de trabalho e


de rendimentos por grupo raciais, considerando trabalhadores
manuais e não manuais, percebe-se que os melhores empregos
(onde o trabalho não é braçal) têm uma participação esmagadora
dos brancos que ficam com mais de 3/4 das ocupações (77%).
Contudo, a remuneração deste segmento é superior à sua
participação, a qual supera 85% da renda. Os pretos e pardos

26 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


(juntos) ficam com a quinta parte das vagas. Entretanto, recebem
apenas a nona parte da renda total pelo seu trabalho. Ou seja, no
setor mais sofisticado da economia, os brancos, além de serem
a maioria, absorvem uma participação da renda acima de sua
força de trabalho (SANTOS, 1999).
Em relação aos trabalhadores manuais urbanos, pode ser
constatado que, dentre os trabalhadores braçais da cidade (operários),
os negros têm uma participação um pouco maior na força de trabalho.
Porém, ainda perdem para os brancos que ficam com a maioria
(55,4%) das vagas, e chegam a perceber uma renda de 19% acima da
sua efetiva participação. Quanto aos negro-descendentes, nota-se que
estes têm rendimentos abaixo da sua real força de trabalho. Ou seja,
percebem cerca de 25% abaixo dela (SANTOS, 1999).
Na área rural, o trabalhador negro-descendente é maioria. E os
brancos têm a mesma vantagem que têm quando trabalham na cidade.
Recebem 18% a mais. Já os trabalhadores negros, recebem 19% abaixo
de sua efetiva participação na força de trabalho (SANTOS, 1999).
No âmbito da Educação, a situação não se modifica:

[...] os pretos e pardos têm quase o dobro de chances de serem analfabetos,


comparativamente com os brancos. Em relação aos de origem asiática
(amarelos), a comparação fica ainda pior. Cerca de 5% destes não são
alfabetizados; enquanto que os negro-descendentes atingem uma marca
4 vezes maior: 22%. [...] 103 anos após o fim da escravidão, grande parte
da população negro-descendente ainda não tem escolaridade alguma.
Findando a escravidão, aos negros cabia batalhar para sobreviver.
Estudar era “coisa de branco” (SANTOS, 1999, p. 17-18).

Na atualidade, a Educação é direito de todos (BRASIL,


1988). Contudo, a escola pública, que é aquela para a qual os
pretos e pardos podem ir, está em ruínas, o que nem sempre foi
assim4. Isso ocorreu:

4 A escola pública secundária, no Brasil, foi tida, por muito tempo, como padrão de
excelência no ensino. Para ela iam os filhos dos coronéis e políticos, no interior. Nas
grandes cidades, muitas dessas escolas serviram de base para diversas figuras que
depois iriam trilhar nos mais diferentes campos da vida (SANTOS, 1999).

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 27


[...] a partir da chamada “democratização do ensino”. Isto é: quando a
população carente (da qual os pretos e pardos são larga maioria) passou
a ter acesso à escola pública esta se deteriora por completo. A partir daí,
os governos (municipal, estadual e federal) começaram a desprestigiar a
escola pública. Afinal, os filhos das elites não cursavam mais aquela escola,
agora “infestada” por um alunado carente de tudo (SANTOS, 1999, p. 18).

Em relação ao nível de instrução por grupo racial, à medida


que os anos de estudos vão se ampliando, os “pretos” e “pardos”
perdem posição. Ou seja, os brancos com curso superior (+ de
15 anos de estudo) superam em 5 vezes os pretos e pardos. No
Brasil, ainda que cerca de 1 terço dos pretos e pardos não tenham
instrução, aproximadamente, 1 quarto deles têm, apenas, entre
1 a 3 anos de estudos. Os mais qualificados são os amarelos,
seguidos pelos brancos (SANTOS, 1999).
É possível observar ainda que, entre as pessoas que cursam
o 3º grau, os brancos detêm quase 4/5 das vagas, apesar de serem
apenas 52% da população (SANTOS, 1999). E, no que se refere ao
Mestrado ou Doutorado a comparação demonstra ainda maior
diferença, pois, os brancos detêm 86% das vagas. Os amarelos,
apesar de terem uma participação populacional cerca de 12 vezes
menor que a dos pretos, conquistam, praticamente, o mesmo
número absoluto de vagas do que estes no curso superior. O
mesmo se repete quanto ao Mestrado e Doutorado.
Santos (1999) destaca que a sociedade brasileira discrimina
os pretos e pardos e isso se reflete no trabalho das polícias civil e
militar. Este tipo de corporação, segundo o autor, desenvolveu-
se notadamente à medida que negros foram sendo alforriados
da escravidão. Assim, com o fim do escravismo, ampliaram-se
as delegacias de vadiagem (polícia civil) que eram criadas para
inibir os que não trabalhavam. E, com, o desemprego estrutural
dos negros (notadamente dos homens) alargado após 13 de maio
de 1888, a organização da máquina policial foi sendo direcionada
à repressão dos negros. Assim, atualmente, as polícias militares
(PMs) no Brasil cuidam do chamado policiamento ostensivo, que

28 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


busca, sobretudo, prevenir e inibir atos violentos e criminosos, e,
com isso, acabam reservando atenção ao público negro.
E, assim, tendo sido constituída, enquanto permanência
histórica, até os dias atuais, um histórico de marginalização e
inferioridade que recaem sobre a população negra, mas de forma
ainda mais perversa, na criminalização da pobreza, na qual uma
grande parcela é composta por negros, incluindo os adolescentes.

3 BIOPOLITICA E CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA:


CONTINUIDADE HISTÓRICA
A biopolítica e o biopoder foram estudados por Michel
Foucault, no início dos anos 70, como o ponto terminal da
genealogia dos micropoderes disciplinares que visavam à
administração do corpo individual - surgidos durante o século
XVII -, em consonância com uma gradativa formação de um
conjunto de instituições sociais como o exército, a escola, o
hospital, a fábrica etc. (DUARTE, 20085).
No estudo da genealogia do poder e sua relação com a
construção social da verdade, no que chamou de sociedade
disciplinar, Foucault identificou dois conceitos que se cruzam:
o de anatomopolítica e o de biopolítica, fundamentais para a
compreensão de uma disciplinarização dos corpos em prol de
uma economia da verdade. Seu estudo mostrou que se encontram
entrelaçados o poder, a sujeição, o confinamento, a disciplina e a
verdade. E, para o exercício do poder, há produção de discursos
de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele.
Com isso, só se exerce o poder mediante a produção da verdade
(ÂNGELO, 20076).

5 Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/files/sobre%20a%20


biopolitica.pdf> Acessado em 24 novembro de 2017. In Revista Cinética, 2008.
6 Disponível em: <http://www.revistacinetica.com.br/cep/miguel_angelo.pdf>
Acessado em 12 março de 2017. In Revista Cinética, 2007.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 29


Para se chegar ao conceito de biopolítica ou biopoder, que
caracteriza a sociedade disciplinar, Foucault identificou outros
dois pilares do disciplinamento utilizados no século XVIII, início
do século XIX que é a anatomopolítica e o desenvolvimento das
forças desse poder no controle da vida em geral, em um biopoder
(ÂNGELO, 2007).
Na genealogia do poder, o interesse se desloca unicamente
para as práticas, para os processos de subjetivação do indivíduo
e do grupo social. A biopolítica aponta, portanto, para um poder
disciplinador e normalizador que já não se exercita sobre os
corpos individualizados nem se encontra disseminado no tecido
institucional da sociedade, mas se concentra na figura do Estado
e se exercia a título de política estatal que tem a pretensão de
administrar a vida e o corpo da população (DUARTE, 2008).
Desse modo, a biopolítica prioriza as intervenções
nos fenômenos em nível global, como escopo de estabelecer
mecanismos reguladores da vida social, ocupa-se com os processos
biológicos relacionados ao homem-espécie, estabelecendo sobre
ele uma forma de regulamentação. Nesse sentido, enquanto
instrumento de gestão da vida política e social, a biopolítica
visa ao estabelecimento do controle social, afirmando os sujeitos
incluídos no espaço político, bem como segregando/excluindo
parcelas da população que não correspondem aos padrões
normativos/sociais vigentes (WERMUTH; ASSIS, 2016).
Com isso,

[...] a biopolítica exclui do contexto social parcelas da sociedade que


considera como desnecessárias para atender aos padrões de consumo
e acumulação da sociedade capitalista neoliberal. Nesse sentido, é
possível identificar os contornos biopolíticos do sistema prisional
brasileiro: no momento em que ele seleciona aqueles que irão compor
a sociedade intramuros, verifica-se que esse processo de seletividade
e segregação acaba por fazer da pessoa privada de liberdade um
ser humano excluído e marginalizado do contexto social, político e
econômico restando uma vida desprovida de qualidade e dignidade.
Com efeito, além de sofrer todas as mazelas do cárcere, quando posto

30 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


em liberdade o sujeito enfrentará o preconceito e o estigma de ex-
presidiário, o que compromete a sua reintegração social (WERMUTH;
ASSIS, 2016, p. 184).

Segundo Misse (2010), a sujeição criminal também se


‘territorializa’, ganha contornos espaciais e amplifica-se nos
sujeitos locais e mesmo nas crianças e adolescentes cuja sujeição é
esperada. Como tal, não pode ser compreendida exclusivamente
apenas no plano da interação contextual e do desempenho de
papéis sociais, pois se mostra ancorada num plano macro de
acumulação social da violência em tipos sociais constituídos e
representados por sujeitos criminais produzidos em contextos
sócio-históricos determinados.
Santos (2010), em sua dissertação de Mestrado, buscou
comprovar a hipótese de que o sistema prisional presta-se à
segregação de indivíduos vítimas da ‘sujeição criminal’ e que,
dentro do ‘campo jurídico’, magistrados e acusadores discursam
justificando a desqualificação das vítimas da prisão (justificando a
‘sujeição criminal’), o que, segundo ele, tende a tornar o cumprimento
da pena cada vez mais uma afronta à dignidade do indivíduo.
O autor utiliza o conceito de sujeição criminal, cunhado
por Michel Misse, por entender que este possui grande
importância para romper com a ideia de que a pobreza é a causa
da criminalidade. Para tal, investiga, dentro do campo jurídico,
seguindo as lições de Bourdieu sobre campo e habitus, como
tendem a atuar os magistrados e os acusadores (membros do
Ministério Público) no processo penal e, ainda, no processo de
execução da pena privativa de liberdade – a pena de prisão. Isto
para saber como se dá a sua participação na seletividade do sistema
punitivo, verificando como é tratado o indivíduo, que sofre prévia
incriminação (sujeição criminal - ele é apontado como bandido),
por magistrados e acusadores, tanto na fase processual – antes da
condenação – como na fase da execução da pena – na prisão.
Santos (2010) apreendeu em seu estudo que a prisão tem
constituído um indivíduo que, embora seja declarado como pessoa

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 31


humana, tem sido tratado como se não fosse. E não somente os
indivíduos encarcerados têm sido tratados assim, seus familiares,
principalmente aqueles familiares que se recusam a esquecê-los,
a manterem-se distantes, aqueles familiares que se aproximam
do sistema prisional, também têm sido tratados como indivíduos
de dignidade inferior. Assim, “a prisão, é a consequência mais
dramática da sujeição criminal. Porque as vítimas da sujeição
criminal são os pobres, os negros (vítimas da invisibilidade),
aqueles rejeitados pela sociedade” (SANTOS, 2010, p. 116).
Contudo, segundo Júnior (2007), o genocídio continua
e postula a legitimidade para as reinvindicações em prol da
punição. E com isso, o campo de extermínio pode ser mudado
da periferia para a prisão e vice-versa. Além disso,

[...] crianças e jovens são os segmentos sob os quais se experimenta


preferencialmente reformas punitivas e programas de prevenção;
empregos e recursos a fundos governamentais e privados se fiam nisso,
geram informações, criam índices estatísticos, explorações cartográficas
que ampliam modalidades de vigilância a céu aberto e que são instadas
a apresentarem resultados e avaliações e compor bancos de dados,
listas e perfis de experiência que, embora realizadas localmente,
podem ampliar-se a grandes áreas territoriais e populacionais. Frente
aos critérios bem explícitos da seletividade o que se percebe são
medidas de contenção social, gestão de grupos rebeldes, vulneráveis
(GONÇALVES; FRANÇA, 2013, p. 51).

E assim,

[...] o estigma construído em torno dos adolescentes em conflito


com a lei tem sido pedra fundamental na produção de práticas de
culpabilização e punição, como as que ocorrem: nas abordagens
policiais que revistam preferencialmente jovens pobres e negros; nas
incursões direcionadas aos territórios habitados pela pobreza; nos
projetos de lei para a redução da maioridade penal; na história dos
sistemas socioeducativos; na autorização que a população confere a
essas ações e mesmo nas exigências de muitos setores sociais para que
os adolescentes sejam tratados com rigor e rudeza. Assiste-se a uma
demanda por mais punição na gestão dos riscos individuais e sociais,
em busca de uma maior proteção frente a determinados grupos sociais
associados à criminalidade (GONÇALVES; FRANÇA, 2013, p. 51).

32 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Conforme argumentam as autoras, o processo denominado
de incriminação, que impõe o rótulo de criminoso a determinados
grupos sociais, ocorre no interior das relações sociais, capturando
o conjunto das instituições e de seus atores. Ou seja, realiza-se
nas interações e faz emergir a figura do criminoso, revelando-se
como processo de captura de todas as subjetividades, criminais
ou não, operando como poderoso instrumento de controle
social (GONÇALVES; FRANÇA, 2013) no interior das relações
sociais que são também relações de poder. E, neste âmbito,
ocorre o que o que Foucault denomina de guerra das raças (no
sentido biológico-social), ou seja, uma mesma raça é desdobrada
em super-raça e sub-raça. Nesse processo, a sociedade é
representada a partir de uma fratura existente entre dois
grupos, a classe dominante e a classe dominada. E, neste mesmo
sentido do termo, também se encontra manifesto nos discursos
biológico-racistas organizados em torno de um darwinismo
social, fazendo com que o discurso da luta das raças funcione
como princípio de eliminação, segregação e de normalização da
sociedade (JÚNIOR, 2013).
Desse modo, a criminalização operada por meio da
sujeição criminal dos jovens pobres e negros no Brasil aponta
para a ocorrência do racismo que, segundo Foucault, (2010) é o
meio de introdução, por meio do poder, no domínio da vida,
de um corte entre os que devem morrer e os que devem viver.
Assim, dentro da sociedade brasileira, há a existência de dois
grupos diferentes, duas classes, duas raças: uma, a mais alta,
que se sente ameaçada pela outra, a mais baixa (rotulada e
estigmatizada), que é considerada a causa da violência (JÚNIOR,
2013), à qual pertencem os adolescentes e jovens pobres e negros.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O resultado dos processos aqui narrados culmina na
adequação à carreira criminal e à produção da carreira criminal
enquanto modos de produção de subjetividades que vão além

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 33


do cometimento do ato infracional. Nesse sentido, a forma como
cindimos o social entre grupos marginais e não marginais faz
crer que todos aqueles colocados para além dessa linha divisória
carregam algo que os define, desde sempre, como marginais e
que sua passagem pelas instituições é nada mais que o marco
que confirma uma trajetória inarredável para o sujeito. Com isso,
“do ponto de vista dos adolescentes, incriminados no processo,
o rótulo costura rente os corpos, adere à pele, atravessa as falas,
impede os risos” (GONÇALVES; FRANÇA, 2013, p. 53).
Tão grave quanto o relatado anteriormente, é que:

[...] nessa lógica, o senso comum associa o jovem favelado ao tráfico


de drogas e ao cometimento de violências as mais diversas. Essa
crença termina por construir um olhar que reveste o jovem envolvido
com o tráfico, mas se estende também àquele que não tem nenhuma
relação com o mundo das drogas. Monta uma visão sobre os jovens
favelados que os iguala uns aos outros, nivelados além do mais na
condição de perigosos; passa a representar uma forma de entender
os jovens a partir desse viés. Assim é que o adolescente que cumpre
medida socioeducativa termina sendo tomado como prova inconteste
de uma lógica que só se afirma porque não nos damos conta de
que ela só se justifica, porque fundada na generalização indevida (e
convenientemente ocultada) (GONÇALVES; FRANÇA, 2013, p. 55).

As autoras, ancoradas em Michel Misse, enfatizam que não


se trata apenas da aplicação do Código Penal, mas, sobretudo,
de um complexo processo de interpretação em que a acusação
constrói o criminoso em um panorama de profunda desigualdade
social. Desse modo, os processos coletivos criam tipos sociais
e áreas de risco para serem alvo preferencial da suspeição dos
agentes de controle (incriminação) e provocam a cristalização do
crime num indivíduo, em vez de analisar as especificidades dos
contextos sócio-históricos que produzem os sujeitos criminais.
O mais perverso é que nesse processo de sujeição criminal
os próprios adolescentes reproduzem estereótipos sob os quais
esses jovens são enquadrados e estes contaminam as demais
esferas de sua vida social.

34 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


O rótulo de “bandido”, “perigoso” dilui a identidade do
sujeito na homogeneidade da sujeição criminal e produz uma
camada da população estigmatizada sob a ótica de criminalização:

[...]. A partir daí, “o sujeito social [...] se torna agora um ‘mau caráter’,
um ‘bandido’. Não é apenas uma pessoa que cometeu crimes” [...].
O efeito deste fenômeno é que os sujeitos, ao incorporarem o rótulo
de perigosos, aderem ao que é esperado deles e se apegam à carreira
criminal através da qual passam a se significar enquanto sujeitos.
“Tudo isso se passa envolvendo agentes e atores sociais, operadores
institucionais, desempenho de papéis, modos de produção de verdades
em diferentes escalas – moral, política, enfim, todo um complexo
processo social” (GONÇALVES; FRANÇA, 2013, p. 56).

A noção de indivíduo perigoso, historicamente construída na


formação social do Brasil, escravista e oligárquico, desde a Abolição
da Escravatura, até os tempos atuais, aponta-nos para a continuidade
histórica da sujeição criminal da juventude negra e de baixa renda,
como uma forma histórica que se configura também na atualidade de
forma revigorada e legitimada pelo Estado e pela sociedade.
A situação dos negros alforriados não se difere em termos
de criminalização do atual lugar social ocupado na atualidade
pela população negra e pobre dos subúrbios brasileiros.
Dessa forma, podemos falar em sujeição criminal e racial,
uma vez que os recortes raciais evidenciam de maneira nítida os
danosos efeitos do longo escravismo brasileiro. Logo, combater
ambos os processos é uma questão de medida de justiça.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 35


REFERÊNCIAS

ÂNGELO, M. Biopolítica e sociedade do controle: notas sobre a


crítica do sujeito entre Foucault e Deleuze. 2007. Disponível em:
http://www.revistacinetica.com.br/cep/miguel_angelo.pdf .
Acesso em: 12 mar. 2017. p. 1-8.
AZEVEDO, C. M. M. Onda negra medo branco: o negro no
imaginário das elites século XXI. 2 ed. São Paulo: Annablume, 2004.
BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Império do Brasil, 1830.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
lim/LIM-16-12-1830.htm. Acesso em: 02 mar. 2017.
BRASIL. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Império do
Brasil, 1871. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm. Acesso em: 02 mar. 2017.
BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890 (promulga
o Código Criminal). Revogado. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851- 1899/d847.htm.
Acesso em: 03 mar. 2017.
BRASIL. Decreto n. 145 – de 11 de julho de 1893. Disponível
em: http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.
action? id=47839&norma=63611. Acesso em: 03 mar. 2017.
BRASIL. Constituição [da] República Federativa do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988: supervisão editorial Jair
Lot Vieira. 9 ed. rev. atual. até a
Emenda Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000. Bauru,
SP: EDIPRO, 2000. (Série Legislação).
DUARTE, A. Sobre a biopolítica: de Foucault ao século XXI.
2008. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/cep/
andre_duarte.htm. Acesso em: 24 nov. 2016. p. 1-15.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. 2 ed. tradução de
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

36 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


GONÇALVES; H. S.; FRANÇA; Y. M. “Fica bandido!”: pensando
o adolescente e os processos de sujeição criminal. In: JULIÃO; E. F.;
VERGÍLIO, S.S. (orgs.). Juventudes, políticas públicas e medidas
socioeducativas. 1. Ed. Rio de Janeiro: DEGASE, 2013. p. 49-64.
JÚNIOR, E. L. S. Política e segurança pública: uma vontade
de sujeição. 2007. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)
– Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.
JÚNIOR, H. R. Governamentalidade neoliberal e biopolítica
da exceção: as intervenções biopolíticas sobre a população no
contexto da arte de governar neoliberal. 2013. Tese (Doutorado
Ciências Jurídicas e Sociais) - Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2013.
MISSE, M. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma
contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. São Paulo.
Lua Nova, São Paulo, 2010. p. 15-38.
OLIVEIRA, L. L. O Pós-Abolição: perspectivas dos libertos e
projetos de Brasil - súditos, bestializados ou cidadãos negros?
Rio de Janeiro. Projeto de pesquisa de Doutorado (Casa de Rui
Barbosa). Rio de Janeiro, 2011.
SANTOS, G. V. C. Segregação das vítimas da sujeição criminal:
Lugar de bandido é na cadeia. 2010. Dissertação (Mestrado em
Ciências Sociais) – Programa de Pós- Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2010.
SANTOS, H. Discriminação racial no Brasil. 1999. Disponível
em: http://www2.tjce.jus.br:8080/esmec/wp- content/
uploads/2008/10/discriminacao_racial_no_brasil.pdf. Acesso
em: 22 mar. 2017. p. 1-23.
SANTOS, G. Da Lei do Ventre Livre ao Estatuto da Criança e do
Adolescente: uma abordagem de interesse da juventude negra.
São Paulo. Boletim do Instituto de Saúde, n. 44. São Paulo, 2008.
Disponível em: http://periodicos.ses.sp.bvs.br/scielo.php?

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 37


script=sci_arttext&pid=S1518-18122008000100005&lng=pt&nrm
=iso. Acesso em: 03 mar. 2017.
VIEIRA, T.; SILVA, M. N. Processo de abolição da escravatura,
integração do afro-descendente na sociedade enquanto cidadão
no sudeste brasileiro (1870-1930). Paraná, 2012. Disponível em:
http://www.uel.br/eventos/semanacsoc/pages/arquivos/
Tamara%20Vieira%20-%20Sem%20Socias%20II.pdf Acesso em:
20 fev. 2017.
WERMUTH; M. Â. D.; ASSIS, L. R. O controle social penal
e a produção da vida nua no sistema carcerário brasileiro:
o viés biopolítico da seletividade e da imposição do medo do
Direito Penal no Brasil. Rio Grande do Sul. Revista Científica
Internacional, Nº 2, volume 11, art. Nº 10, abr/jun 2016. Rio
Grande do Sul, 2016. p. 169-191.

38 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


A DEFESA NA JUSTIÇA JUVENIL FRENTE AOS
PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO DA
JUVENTUDE NO RIO DE JANEIRO.

Tatiana Lourenço Emmerich de Souza

RESUMO
A criminalização de adolescentes em conflito com a lei é um
problema social que se perpetua ao longo da história brasileira.
Atualmente a conjuntura não se modificou, no que tange aos
sujeitos sobre os quais a norma vigente recai, afirmando os
processos de sujeição criminal. Assim, faz-se necessária
uma reflexão sobre os discursos estigmatizantes que incidem
sobre os adolescentes em conflito com a lei, principalmente na
cidade do Rio de Janeiro. Neste ponto, o trabalho trouxe o debate
sobre a defesa desses adolescentes como garantia de direitos
fundamentais, mesclando a metodologia teórica e empírica.
Dentre os resultados encontrados, destaca-se a participação
mitigada da defesa ao longo do processo.

Palavras-chave: Defesa. Justiça Juvenil. Garantias de Direitos.


Adolescentes em conflito com a lei. Processo de criminalização.

1. INTRODUÇÃO
A criminalização de adolescentes em conflito com a lei é
um problema social que se perpetua ao longo da história
brasileira. Desde meados do século XIX, esses adolescentes
- denominados “menores” delinquentes ou abandonados, em
sua maioria advindos das classes mais pobres e vulneráveis da
população, em sua maioria negra, com pouco/nenhum acesso à
educação, inseridos em famílias categorizadas como típicas de
“ambientes de marginalização”, considerados locais de “maus
hábitos” onde eram exercitados uso de drogas, prostituição e
pequenos crimes - são alvos constantes da Polícia e da Justiça.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 39


Em pleno século XXI, a conjuntura não se modificou,
no que tange aos sujeitos sobre os quais a norma vigente recai, o
processo por meio do qual isso se dá configura-se como sujeição
criminal, conforme atesta (MISSE,1999).
Dessa maneira, faz-se necessária uma reflexão
sobre os discursos estigmatizantes que incidem sobre os
adolescentes em conflito com a lei, principalmente na cidade do
Rio de Janeiro, locus de pesquisa empírica deste artigo. Também
deve ser ressaltada a política criminal que tem como alicerce a
repressão violenta pelo Estado, das camadas mais pobres da
população. Segundo o relatório do CNJ de 20121 :

Outra situação preocupante é a violência física sofrida pelos


adolescentes. Dos jovens entrevistados em conflito com a lei, 28%
declararam ter sofrido algum tipo de agressão física por parte dos
funcionários, 10% por parte da Polícia Militar dentro da unidade da
internação e 19% declararam ter sofrido algum tipo de castigo físico
dentro do estabelecimento de internação. É possível observar a
recorrente violação de direitos como o direito à liberdade, ao respeito
e à dignidade como pessoas humanas em processo de
desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e
sociais garantidos na Constituição e nas leis (art.15 ECA); o direito ao
respeito que consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica
e moral da criança e do adolescente (art.17); direito à dignidade,
que preceitua ser dever de todos velar pela dignidade da criança
e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento
desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor
(art.18)(CNJ,2012).

A maioria dos adolescentes, internados na comarca


do Rio de Janeiro, praticou crimes análogos ao de tráfico de
drogas e de roubo, segundo a pesquisa do Conselho Nacional
de Justiça (2012)2 . No período que corresponde a Junho de 2017,
de acordo com a Coordenação de Medidas Socioeducativa do
DEGASE, só na capital, a instituição manteve no total 2.279
1 Relatório do Conselho Nacional de Justiça. Panorama Nacional de Execução de
Medidas Socioeducativas de Internação, 2012
2 Relatório do Conselho Nacional de Justiça. Panorama Nacional de Execução de
Medidas Socioeducativas de Internação,2012.

40 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


adolescentes, do sexo masculino, em cumprimento de medidas
privativas de liberdade, seja internação provisória , internação
ou semiliberdade, pelo cometimento de atos infracionais.
Desse total, 1.310 jovens cumpriam Medida Socioeducativa de
internação nas unidades do DEGASE, revelando uma prevalência
da escolha da privação de liberdade como medida a ser aplicada
pelo Juizado da Infância e Juventude.
Outro dado revelador, fornecido pela Coordenação
de Medidas Socioeducativa do DEGASE, é que a maioria dos
meninos que integravam o Sistema Socioeducativo na Capital,
no período de 2010 a 2016, possuíam Ensino Fundamental
incompleto. À vista disso, é possível perceber a amplitude
do problema e a real emergência de métodos preventivos,
para que se possam estagnar os processos de criminalização,
revelando a estes “menores” novas possibilidades fora do
mundo do “crime”.
Desta maneira, pode-se pensar que o Estado promove
mais políticas de internação do que programas que aceleram
o processo de afirmação de direitos básicos (educação, saúde,
profissionalização, arte, cultura e lazer). Isso sugere características
de um sistema, assistido pelo Poder Judiciário, que abusa do
poder punitivo estatal ao invés de afastar a punição.
Sabe-se que o cerceamento de direitos se perpetua dentro
dos centros de internação, em função da indisponibilidade
de serviços assistenciais e essenciais à reeducação: psicólogos,
médicos, assistentes sociais e, principalmente, advogados e
defensores. Isso se dá, sobretudo, em função da superlotação do
sistema de internação, que sofre com a falta de investimentos
estatais em meio à crise do estado do Rio de Janeiro.
Portanto, com a manutenção do sistema de
responzabilização penal juvenil e com a carência de acesso à
Justiça, vê-se fundamental a presença da defesa processual/
técnica para assegurar garantias e diretos básicos normatizados
pelo ECA e pela CF de 1988.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 41


Estudos que tratam da história da Justiça Juvenil no Brasil
revelam que a carência de advogados e defensores sempre
foi uma situação permanente e cotidiana. A defesa desses
jovens é deficitária, visto o grande volume processual da
defensoria pública que faz a assistência da maioria dos
meninos, ou seja, não existe equivalência para o número de
processos frente ao número de defensores, conforme o estudo da
Defensoria Pública do ano de 2017. Como consequência, a defesa
permanece prejudicada, acarretando uma maior permanência
destes adolescentes nas unidades de internação. Advogados
particulares são minoria.
O objetivo desse trabalho é mostrar como acontece a
atuação da defesa na Justiça Juvenil, na parte infracional, e
como ela é afetada com os processos de criminalização de
jovens na cidade do Rio de Janeiro. A defesa, ao mesmo tempo que
é prevista no ECA, tem seu papel muitas vezes mitigado dentro
do Sistema Socioeducativo, ou seja, procuramos investigar até
que ponto sua atuação é feita para garantia de direitos ou se
existe a prevalência de um sistema acusatório disfarçado
de inquisitorial, em que prevalece a punição. Neste ponto é
levantado o debate sobre as doutrinas da proteção integral e da
teoria garantista.

2 METODOLOGIA

A metodologia deste resumo é mista, por se tratar de


uma pesquisa teórica – em que busquei esgotar as referências
bibliográficas sobre o tema, tanto na área do Direito quanto da
Sociologia, bem como de uma pesquisa quantitativa em que utilizei
pesquisas realizadas por órgãos do Governo Federal e do estado
do Rio de Janeiro, por exemplo, do Conselho Nacional de Justiça
– CNJ - e DEGASE, para ilustrar a atual realidade dos jovens em
conflito com a lei que estão inseridos no Sistema Socioeducativo.

42 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


3 HISTÓRICO SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA DEFESA: DO
CÓDIGO DE MENORES AO ECA

A proposta deste item é reconstituir um breve histórico


do papel da defesa na Justiça Juvenil no Brasil, a partir das
legislações que compreendem o primeiro Código de Menores de
1927 até o ECA, destacando de cada período a existência ou não
de defesa, assim como analisando características normativas de
cada época, por exemplo, se estas normas tinham o propósito de
garantir ou não os direitos dos adolescentes.
Desta maneira, o que percebemos é que a questão da
infância e adolescência em conflito com a lei nem sempre
foi tratada da mesma forma, principalmente em função
do significado que lhe foi atribuído a partir da era da
modernidade. Assim, podemos perceber que atualmente o
grupo da infância e adolescência tem uma história e é produto
de uma construção social.
Essa percepção pode nos remeter a uma quebra temporal
de conceitos, ou seja, a partir deste momento, o homem, como
indivíduo, começa a perceber a necessidade de proteger crianças
para garantir a integridade do indivíduo até sua fase adulta,
declarando a incapacidade desta categoria frente à sociedade. A
incapacidade das crianças fez surgir a indispensabilidade de
sua socialização, em que duas grandes instituições tomaram
frente para discipliná-los: a escola e a família, como bases de
macro poder.
Porém, nem todas as crianças e adolescentes conseguiram
ser atingidos pela disciplina através da escola, muitos não
tiveram acesso a ela, outros se evadiram ou foram expulsos das
instituições, o que consequentemente resultou na diferenciação
dos mesmos: os que frequentavam o ambiente escolar daqueles
que não o frequentavam. A partir deste momento, foi que surgiu
a nova categoria “menor”, composta por “delinquentes” e
“menores em estado de abandono”, que se diferenciava da
categoria “infância”. De acordo com Méndez (1996) “A origem

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 43


da justificativa de controle social sobre crianças e jovens está na
construção diferenciada das categorias criança e “menor”, em
ambos os casos objeto de incapacidade e de imposição.”
Em relação ao Brasil do século XX, imerso em um cenário
crítico em relação às questões políticas da República Liberal,
com o desenvolvimento do Capitalismo, surgiu um processo
de massificação da pobreza e, consequentemente o aumento de
crianças pobres com problemas a serem enfrentados pelo
Estado. Assim, face ao questionamento do papel do Estado
nas demandas sociais no país , nasceu o primeiro Código de
Menores3 , criado em 1927, a partir da experiência do Juiz Mello
Mattos no primeiro Juizado de Menores do Brasil, localizado no
Distrito Federal, no ano de 1923.
A partir deste período, a codificação foi a representação
material da preocupação com a criminalidade juvenil que já vinha
necessitando de espaço exclusivo para tratar dos “interesses” das
crianças e adolescentes.
De acordo com o Código de 1927, o Estado tinha
responsabilidade legal pela tutela da criança órfã ou abandonada,
adotando, pela primeira vez, características de um modelo tutelar.
Este tipo de intervenção, feita pelo aparelho estatal, foi o marco
inicial do pensamento da Doutrina da Situação Irregular, que
seguia a orientação higienista e com características de eugenia4,
para tentar sanear aquele que era considerado o problema da
população brasileira: o “menor delinquente”.
Desta maneira, a Pedagogia unida à puericultura
e ao Direito positivo, visaram atacar o problema de forma
“assistencialista” e multidisciplinar, voltada para os Juizados e
Conselhos de Assistência que formavam um sistema atribuindo
deveres aos pais, impondo obrigações ao Estado e punições
aos menores. A principal característica desta norma era a
centralização de poder na figura do juiz que não tinha qualquer
limitação de seu poder na legislação. Pode-se dizer que é deste
3 Decreto Federal 17.943, de 12 de outubro de 1927.
4 Bioteoria que busca produzir uma seleção nas coletividades humanas, baseada em
leis genéticas; eugenismo.

44 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


modo que surge a massificação da criminalização da pobreza
como consequência da judicialização dos problemas da infância.
As barreiras que impediam que a punição fosse descontrolada,
no Código de Menores de 1927, também foram superadas, uma
vez que não existia mais a diferença entre menor abandonado
e delinquente. Isso ampliou, de maneira significativa, as
situações de intervenção estatal, mobilizando principalmente o
Poder Judiciário através do Juizado de Menores, resultando na
institucionalização do menor. Portanto, não havia distinção para
aplicação de medidas, isto ficava a cargo exclusivo da decisão do
juiz de menores.
As ações judiciais aplicadas indiscriminadamente só
poderiam responsabilizar criminalmente os “menores” a partir
dos 14 até 18 anos de idade, porém, esses processos, por terem
características de natureza especial, avaliavam detalhadamente
a condição do menor.
Destaca-se do artigo acima o termo “em perigo de
o ser”, que permitiu ampliar o rol de crianças e adolescentes
“enquadradas” como menores delinquentes, uma vez que, a partir
daquele momento, as principais características a serem avaliadas
eram as que levavam a uma possível identificação criminal,
ou seja: cor, roupa, condição financeira, lugar de apreensão,
para assim poder analisar o que hoje denominaríamos o biotipo
do inimigo5 , este que estaria sujeito às regras do Código.
Esta intervenção direcionada e sem delito (BATISTA,
2003) que se iniciava nas mãos do poder de polícia, dava
ensejo a uma ação tutelar do Estado, de característica seletiva
e lombrosiana que antecipa preventivamente o processo de
incriminação que pode resultar na sujeição criminal6. Apenas
menores pobres, negros, em condição de miséria e abandono
seriam alvo da intervenção e institucionalização, sujeitos a
5 Direito penal do inimigo é um conceito introduzido em 1985 por Günther Jakobs, em
que para ele certas pessoas, por serem inimigas da sociedade (ou do Estado), não detêm
todas as proteções penais e processuais penais que são dadas aos demais indivíduos.
6 Para Misse (1999), o sujeito, nesse sentido, é o efeito de ser posto pela estrutura (po-
der) e de emergir como seu ser contraposto e reflexivo (potência).

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 45


processos a serem resolvidos em tribunais e não mais em
ambientes sociais, por exemplo, a escola ou família.
Esse tipo de situação é o que podemos chamar de
cidadania negativa, terminologia usada pelo professor Nilo
Batista7 , que segundo Batista(2003):

[...] se refere a concepção de cidadania negativa, que se restringe


ao conhecimento e exercícios dos limites formais à intervenção
coercitiva do Estado. Esses setores vulneráveis, ontem escravos,
hoje massas marginais urbanas, só conhecem a cidadania pelo seu
avesso, na ‘trincheira auto- defensiva’ da opressão dos organismos
do nosso sistema penal.(BATISTA, 2003).

A novidade neste Código foi o aparecimento da


figura de defesa dos “menores” que, segundo Batista (2003), “
representa um indicativo de um certo nível de garantia inexistente
até então e que será cassada anos mais tarde no período de 1942-
1962.” Porém, a presença de advogado não era cotidiana e
apenas “menores” com melhores condições financeiras, que
fugiam aos padrões de perfil cotidiano de negros, pobres e
sem escolaridade, faziam uso do recurso de defesa, conforme
aborda Batista (2003).
A pouca presença de advogados, aliada à lentidão do
sistema, contribuíram para o crescimento da intervenção estatal
de caráter seletivo e inquisitivo, uma vez que o Código de
Menores de 1927 facultava a presença do defensor/ advogado,
a limitava à quantidade de apenas 1 (um) por instrução do
processo, de acordo com os artigos 161 e 148 do ECA.
Interessante ressaltar que, no Código de 1927, a palavra
“garantia” só aparece com o significado de garantias morais e não
da perspectiva de direitos e garantias fundamentais, assim como,
a palavra “direito” só é direcionada ao direito dos pais – mãe, pai
ou familiares, mas nunca referente aos “menores”. Outra questão
observada foi a palavra “proteção” e “assistência” que aparecem
na legislação com significado de vigilância dos adolescentes.
7 BATISTA, Nilo. “Fragmentos de um discurso sedicioso”, in discursos Sediciosos –
crime, direito e sociedade, nº 1. Rio de Janeiro, Relume – Dumará, 1996, p. 71

46 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Assim, a característica tutelar punitiva foi particular
ao Código de 1927, situação que veio a piorar, nas décadas
de 30 e 40, marcadas pela ênfase na assistência, esta realizada
prioritariamente em instituições fechadas. As críticas ao modelo
também começaram a surgir, fato que impulsionou propostas de
mudança até a década de 50, quando cresceram as denúncias de
superlotação e maus-tratos no SAM – Serviço de Assistência
ao Menor, um órgão do Ministério da Justiça que funcionava
como um sistema penitenciário para a população menor de
idade, de orientação correcional - repressiva, característico
do período autoritário do Estado Novo. O sistema previa
atendimento diferente para o adolescente autor de ato infracional
e para o menor carente e abandonado (RIZZINI, 1997).
As primeiras iniciativas foram de assistência asilar de
caráter preventivo e punitivo, quando, até meados de 1935,
os “menores” eram apreendidos e levados para abrigos de
triagens. Posteriormente, com a entrada em vigor do Código
Penal de 1940, foi fixada a idade de imputabilidade penal aos 18
anos, estabelecendo também que menores de 18 anos estariam
submetidos somente ao regime previsto no Código de Menores
de 1927. Com isso, em 1942, as assistências asilares evoluíram
para o SAM, Serviço de Assistência ao Menor, para muitos
autores, um marco na política pública para infância e adolescência.
A estrutura do SAM era sob a forma de reformatórios,
como também casas de correção para os infratores que se tornaram
precárias pela superlotação e lentidão dos procedimentos
investigatórios que, consequentemente, agravavam a situação de
privação de liberdades desses menores. O SAM foi denunciado
na imprensa da época por escândalos e torturas a que eram
submetidos os menores (MISSE, 2007).
Em 1964, o golpe militar produziu um intenso impacto
político-social, de caráter negativo, com o fortalecimento do
autoritarismo que, consequentemente, foi reproduzido no
sistema de justiça juvenil, a começar com o fim do SAM para
criação da FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 47


Menor) e a FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do
Menor), em cada estado da Federação, influenciadas pela
Doutrina da Segurança Nacional que militarizou a disciplina
dentro dos internatos-prisão.
As mudanças não pararam por aí. A legislação foi
profundamente alterada com a criação da Lei nº 4513/64 sobre a
política nacional de bem-estar do menor e com a Lei nº 6697/79
que criou o novo Código de Menores de 1979, dirigido aos
menores em situação irregular.
Nesta época, a situação irregular era vista como uma
patologia social ampla, para Migliari (1996), “a situação irregular
é metafora da criança/adolescente pobre que precisa estar sob o
controle rígido de um conjunto de normas jurídicas.”
Desta maneira, não é de se surpreender que o novo código de
1979 não faz menção a nenhum direito da criança e do adolescente
e fortalece o poder simbólico nas mãos do Poder Judiciário.
O esgotamento do Código de 1979 se deu em função,
principalmente, de não se vislumbrar a integralidade do
problema da infância e juventude “infratora”, por consequência
da incapacidade do sistema fazer com que a criança ou o
adolescente se inserisse novamente no contexto social.
Neste contexto, em 1986, organizações não
governamentais se uniram em prol do movimento em defesa
dos direitos da criança e do adolescente, influenciados
também pelo projeto da Convenção dos Direitos da Criança
da ONU, e iniciaram um movimento em direção à introdução
do conteúdo do documento das Nações Unidas na futura
Constituição Federal de 1988 (PAES, 2013).
Esta convenção priorizava o desenvolvimento
saudável dos “menores”, tanto na esfera social quanto na
sua individualidade, já que estes ainda estão em processo de
formação de suas personalidades. Durante mais de um século, a
pobreza e a delinquência foram fundamentos para a intervenção
de controle social e punitivo dos denominados “menores” que
hoje, por força do ECA e da Constituição de 88, são chamados
de crianças e adolescentes.

48 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Com o processo de redemocratização, é promulgada a
“Constituição Cidadã de 1988”, com avanços significativos para
as garantias dos direitos de milhares de crianças e adolescentes
no Brasil. Nesta conjuntura, nasce o ECA, em 1989, iniciando
consequentemente o reordenamento institucional, com a tentativa
de desinstitucionalizar jovens e torná-los sujeitos de direitos.
Desta maneira, o ECA trata o assunto sob outro
prisma: o da doutrina da “proteção integral”. Essa proteção
integral está alicerçada em dois pilares importantíssimos:
a criança e o adolescente enquanto “sujeito de direitos” e a
sua “condição peculiar de pessoa em desenvolvimento” - art.
227, parágrafo 3º, inciso IV da CRFB/88 (SPOSATO, 2002).
Para Veronese (1998), a nova lei reguladora dos preceitos
constitucionais, em sua primeira parte, arrola os direitos das
crianças e dos adolescentes; na segunda, a forma de viabilização
desses direitos. É aí, pois, que se insere e se torna relevante a
figura do advogado.
No ECA, a figura do advogado se mostra de caráter
obrigatório, porém não constitui algo totalmente inovador, já
que a nova legislação segue os preceitos das regras mínimas das
Nações Unidas para administração da justiça de menores –
“Regras de Beijing”8 do ano de 1984.
Portanto, o que podemos ver, ao longo de toda a trajetória
da legislação brasileira, é a ausência ou a pouca relevância da
defesa e dos direitos que fossem assegurados aos adolescentes
em conflito com a lei. Apenas com o ECA, a defesa se tornou um
direito, de caráter obrigatório, na defesa juvenil, juntamente com
o advento da Doutrina da Proteção Integral. Essas características
são bem preocupantes, visto a herança autoritária e punitivista
da Justiça Juvenil no Brasil, o que dificulta a efetividade de
implementação de políticas públicas, assim como a ressocialização
do adolescente, tendo em vista a persistência de uma visão que o
concebe como um inimigo social.

8 Especificamente, às regras de números 7.1 e 15.1.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 49


A atuação da defesa na Justiça Juveni, é exercida por
dois personagens: o defensor público e o advogado privado.
É importante ressaltar que ambos são regidos pelas mesmas
normas inseridas no ECA e na CRFB/88, e, a qualquer momento,
podem ser acionados para realizar a defesa técnica de jovens em
conflito com a lei.
No ECA, a defesa pela Defensoria Pública é prevista
no artigo 141, com atuação permanente, porém, em alguns
estados do Brasil, ainda não existe a presença do órgão da
Defensoria Pública, o que acarreta a designação da competência
para advogados dativos e, principalmente, para o Ministério
Público dos estados.
Por muitas vezes, mesmo o estado membro possuindo
o órgão da Defensoria, muitas vezes ele não atinge todas as
regiões, como também não possue em seu corpo profissionais
especializados na área da infância infracional, fato que pode
legitimar, diante da falta de estrutura adequada, a condição de
desigualdade institucional (COSTA, 2005).

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

O estado do Rio de Janeiro, por exemplo, teve uma das


pioneiras defensorias públicas criadas no Brasil, porém não são
todas as comarcas que possuem varas especializadas na parte
da infância e juventude infracional. Na comarca do Rio de Janeiro,
das cinco varas da infância e juventude, apenas uma é direcionada
a infrações em âmbito de conhecimento e uma, recém-criada,
lida apenas com a execução de Medidas Socioeducativas.
Do ponto de vista prático - normativo, tanto a defesa
pública quanto a privada possuem paridade em relação ao
seu exercício de função nos tribunais, delegacias e demais
órgãos públicos que se relacionam aos jovens que cometeram
atos infracionais.
Porém, as principais diferenças aparecem especialmente em
relação ao volume de trabalho, condições de trabalho e honorários.

50 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Em relação ao volume, foi possível perceber, na
prática, que a Defensoria Pública atua na maioria dos processos
que envolvem adolescentes em conflito com a lei, ficando uma
minoria com o patrocínio da causa por advogados privados.
Isso acontece devido à maioria dos jovens advirem de classes
mais pobres, oriundos assim de famílias que não têm condições
de arcar com honorários advocatícios dos advogados
privados. Interessante destacar que, apesar do grande volume de
processos, somente uma pequena quantidade de autos sobe para
a 2ª instância recursal. Segundo os dados fornecidos pelo setor
de estatística do TJRJ, em um universo de 16. 355 processos no
mês de março de 2017, apenas 42 destes foram remetidos aos
Tribunal para julgar recursos ou habeas corpus.
Nas tabelas fornecidas pela Defensoria Pública do estado
do Rio de Janeiro, no “Projeto Planejando a Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro: Uma Análise de alocação de Defensores
entre as comarcas”, publicado em maio de 20179 , são
apresentadas estatísticas descritivas sobre a distribuição de carga
de trabalho pelas comarcas por competência – respectivamente:
criminal, família, fazenda pública, infância e adolescência e cível.
Segundo o Projeto, a carga de trabalho total da Defensoria
Pública no estado é de 668.548 mil processos, perfazendo uma
carga de trabalho de 1.494 processos por defensor efetivo.
Conforme verificado na tabela, na área da infância e
Juventude, essa porcentagem gira em torno de 4,9% desse total.

Fonte: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e Defensoria Pública


do Estado do Rio de Janeiro. Elaboração dos autores

9 Disponível em: <http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/b05d-


d02785e44af8b734280d8cff3c9b. pdf>. Acesso em 23 jul. 2017

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 51


A condição de trabalho também é um fator que influi na
defesa. Atualmente a Defensoria Pública conta com a falta
repasse de recursos do estado para sua plena atuação. O corpo
de defensores também não acompanha o número de defesas, ou
seja, o número de processos de atos infracionais é muito
maior que o corpo de defensores públicos necessários para
atingir uma efetividade da defesa na garantia dos direitos desses
adolescentes em conflito com a lei, visto que o limite máximo
previsto na tabela é de 26.121 processos e, atualmente, o total
estadual na comarca se encontra em 33.700 processos, aumento
significativo dentro da competência da infância e juventude.
A questão dos honorários também diferencia as defesas,
já que apenas o advogado privado pode cobrar o preço de seu
serviço, por ser um profissional liberal. No caso do defensor
público, por lei, esse tem que prestar seu serviço de forma
plena e gratuita durante todo o curso do processo, a não ser que
o próprio adolescente peça para que um advogado privado, de
sua preferência, assuma o caso.
Na Justiça Juvenil, a defesa começou a ter seu papel
evidenciado quando crianças e adolescentes se tornaram sujeitos
de direitos, desta maneira, principalmente na área infracional, a
viabilização dos direitos começou a ocorrer via defesa técnica, o
que tornou o papel do advogado relevante para o correto curso
do processo, dentro do que diz o princípio do devido processo
legal que garante que todo o processo deve correr seguindo
as normas jurídicas previstas na legislação brasileira.
Quando falamos no papel da defesa, por mais que sua
atuação se mostre necessária e fundamental conforme estabelece
os artigos do ECA, na prática, esse papel é quase “inexistente”
dentro do rito da Justiça Juvenil. Essa ausência também pode ser
configurada quando existe uma constante mudança de defensores
e advogados em uma mesma causa. Isto acarreta a ausência de
defesa em períodos cruciais do procedimento, em que a defesa
deveria estar presente para garantir o cumprimento da ampla

52 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


defesa desses jovens. Consequentemente, este tipo de atitude faz
com que exista a quebra de estratégia feita anteriormente pelo
defensor ou advogado responsável pelo caso, gerando possíveis
prejuízos para a nova defesa estabelecida, principalmente
prejuízos para o adolescente que está submetido à defesa material.
Desta maneira, as dificuldades e as lacunas da legislação
da infância e juventude ultrapassam limites da norma posta.
Queremos dizer com isso que, na Justiça Juvenil, ainda existe a
dificuldade de compreender a necessidade da defesa frente
à representação ministerial com a função de garantir que a lei
seja cumprida para que os ritos processuais sejam respeitados e,
portanto, sejam aplicados os direitos e garantias fundamentais
dos adolescentes que ingressam no Sistema Socioeducativo.
O que vemos, na prática, ainda é uma justiça enraizada
culturalmente em características da situação irregular, em que o
papel da defesa acaba sendo manipulado por posicionamentos
majoritários impostos, mas apresentados como se fossem de
comum acordo, sobre o que seria melhor para o adolescente. Ou
seja, por muitas vezes, concorda-se com a privação de liberdade
mesmo que não ocorra a defesa técnica, visto que já que existe
uma sabedoria popular dentro dos tribunais: que Medidas
Socioeducativas de Internação seriam melhores, porque tirariam
o adolescente da rua ou do seu meio, para que assim ele possa
não reincidir e receber o tratamento adequado.
Infelizmente, esse pensamento é dotado de um vazio
de conhecimento do atual estado do Sistema Socioeducativo,
sobretudo da parte que abriga adolescentes que cumprem
semiliberdade e internação. Em visita ao DEGASE-ESE, foi
possível perceber a conivência de autoridades com o abandono de
unidades socioeducativas, assim como perceber a precariedade
da forma com que são tratados, pelo estado na atualidade, os
serviços ali prestados aos jovens.
Como vimos, as dificuldades da defesa são inúmeras. Reuni,
neste artigo, as cinco mais discutidas e enfrentadas diariamente

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 53


por advogados e defensores, podendo destacar: 1-) A presença
de um sistema acusatório com características fortes de um
sistema inquisitório que mitiga o papel da defesa e sua
essencialidade dentro do rito processual, corroborando com a
manutenção do pensamento da situação irregular; 2-) Grande
carga processual das Defensorias Públicas frente a uma pequena
quantidade de advogados privados especializados na área de
infância e juventude, situações que podem acarretar déficits na
defesa técnica; 3-) Legislação do ECA que possui lacunas em alguns
artigos sobre a obrigação da defesa em determinados momentos
do rito da justiça juvenil, muito visto na fase pré-processual;
4-) Ministério Público em posição de destaque colocando
a defesa em posição inferior em relação ao estabelecimento de
Medidas de Socioeducativas; 5-) Diferenciação institucional da
defesa frente à estrutura triangular do processo.

5 CONCLUSÃO
Este trabalho procurou investigar o papel da defesa na
Justiça Juvenil, seus constrangimentos, sua efetividade, suas
lacunas e os seus reflexos nas garantias dos direitos dos
adolescentes em conflito com a Lei na cidade do Rio de Janeiro
frente ao processo de criminalização dos mesmos. O estudo
buscou mostrar como, em relação à defesa, as dificuldades e
as lacunas da legislação da infância e juventude ultrapassam
limites da norma posta. Queremos dizer com isso que, na Justiça
Juvenil, ainda existe a dificuldade de compreender a necessidade
da defesa frente à representação ministerial com a função de
garantir que a lei seja cumprida para que os ritos processuais
sejam respeitados e, portanto, sejam aplicados os direitos
e garantias fundamentais aos adolescentes que ingressam no
Sistema Socioeducativo.
Características como estas prejudicam diretamente
o trabalho feito pela defesa técnica (advogados e defensores
públicos) dos adolescentes em conflito com a lei na cidade

54 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


do Rio de Janeiro, onde pude destacar três das principais
dificuldades encontradas na prática, como também nos dados
quantitativos apresentados no trabalho. A primeira, de maior
destaque, foi a presença de um sistema tutelar acusatório
com características fortes de um sistema inquisitório que
mitiga o papel da defesa e sua essencialidade dentro do rito
processual, bem como faz a manutenção do pensamento da
situação irregular. A segunda foi referente à grande carga
processual das Defensorias Públicas frente à atuação de uma
pequena quantidade de advogados privados especializados
na área de infância e juventude, situações que podem acarretar
déficits na defesa técnica.
A terceira foi ligada à legislação do ECA que possui
lacunas em alguns artigos sobre a obrigação da defesa em
determinados momentos do rito da Justiça Juvenil, visto na fase
pré-processual, isto advém ainda do Código de Menores de
1927, em que era “comum” existir uma mitigação do exercício
profissional de advogados e defensores públicos na defesa dos
jovens em conflito com lei. Portanto, verificamos que, ao longo
de toda trajetória da legislação brasileira, há a ausência ou a
pouca relevância da defesa na Justiça Juvenil, características que
justificam os rastro de punitivismo existentes nos tribunais em
função do silenciamento da defesa. Logo, o papel do advogado
ou do defensor público que deveria ser prioritariamente
técnico e essencial ao processo, preservando a observância
dos direitos e garantias estabelecidos no ordenamento pátrio
e em convenções internacionais ratificadas, acaba, na prática,
revelando-se diferente, visto que estes fatores não são respeitados.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 55


REFERÊNCIAS

BATISTA, Karyna. O Direito Penal Juvenil. São Paulo: RT, 1998.


BATISTA, Vera Malagutti. Difíceis ganhos fáceis: Drogas e
juventude pobre no Rio de Janeiro. 2ª Edição. Rio de Janeiro:
ICC/Revan, 1998.
BATISTA, Karyna. O Direito Penal Juvenil. São Paulo: RT, 2003.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Panorama Nacional:
a execução das medidas socioeducativas de internação.
Programa Justiça ao Jovem. Brasília: CNJ,2012.
COSTA, Ana Paula Motta. As garantias processuais e o
Direito Penal Juvenil: como limite na aplicação da medida
socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2005.
MÉNDEZ, Emilio García. Infância e cidadania na América
Latina. São Paulo: Ed. HUMICITEC, 1996.
MIRÁGLIA, Paula. Aprendendo a lição: uma etnografia das Varas
da Infância e Juventude. Novos Estudos, nº 72, São Paulo, 2005.
MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos & a
acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese
(Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
(Iuperj), Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro, 1999.
MISSE, Michel. Notas sobre a sujeição criminal de crianças e
adolescentes. In: Juventude em conflito com a lei, org. J. T.
Sento-Sé e V. Paiva, Rio de Janeiro: Garamond, 1999.
MISSE, Michel. Notas sobre a sujeição criminal de crianças
e adolescentes. In: Juventude em conflito com a lei, org. J. T.
Sento-Sé e V. Paiva, Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
PAES, Janiere Portela Leite. O Código de Menores e o Estatuto
da Criança e do Adolescente: avanços e retrocessos. Conteúdo
Jurídico, Brasília - DF: 2013. Disponível em: <http://www.
conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.43515&seo=1>.
Acesso em: 26/09/2018.

56 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


RIZZINI, Irene. O Século perdido: raízes históricas das políticas
públicas para infância no Brasil. Rio de Janeiro: Petrobrás – BR:
Ministério da Cultura: USU Ed. Universitária, 1997.
SPOSATO, Karyna Batista. O direito penal juvenil no estatuto
da criança e do adolescente. Dissertação (Mestrado). São
Paulo, Departamento de direito penal, medicina forense e
criminologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002.
VERONESE, Josiane Rose Petry. A questão do menor no Brasil:
uma abordagem política jurídica. Dissertação (Mestrado em Direito)
– Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 1988.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 57


CARTOGRAFANDO ‘SOCIOEDUCAÇÕES’ NO SISTEMA
SOCIOEDUCATIVO: O TRÂNSITO ENTRE DIFERENTES
TERRITÓRIOS E EFEITOS

Carla Magliano
Maira Bruna Monteiro Santana
Thiago Benedito Livramento Melicio

RESUMO
O presente trabalho debruça-se sobre agenciamentos
de Socioeducação em unidades de privação de liberdade do
Sistema Socioeducativo. Busca-se refletir sobre práticas plurais
ali coexistentes, tanto as que dão ressonância às normativas de
políticas públicas destinadas aos jovens, tais quais as previstas
no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE),
como as provenientes de lógicas punitivo-coercitivas. A pesquisa,
pautada pela Cartografia Psicossocial, é realizada em duas
unidades do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do
Rio de Janeiro (DEGASE), junto a adolescentes em privação de
liberdade, agentes socioeducativos e corpo técnico.

Palavras-chave: Socioeducação. Políticas Públicas. SINASE,


Cartografia Psicossocial.

1. BREVE HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO


O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei 8069/90,
representa uma mudança de paradigma no que se refere aos
direitos juvenis. Com o ECA, as crianças e adolescentes passam
a figurar na alçada da Doutrina da Proteção Integral, devendo
ter garantido seu desenvolvimento em condições de liberdade
e dignidade. A lei também delega à família, à sociedade e ao
Estado a garantia de seus direitos fundamentais, consoante ao
art. 227 da Constituição Brasileira de 1988:

58 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O ECA é reflexo do processo de redemocratização


brasileira, compondo, junto à Constituição de 1988, os direitos
específicos de crianças e adolescentes, delineando juridicamente
tais categorias, sendo a primeira do nascimento aos 11 anos
incompletos e a segunda dos 12 aos 17 anos completos. O texto
foi redigido a partir de demandas de movimentos sociais e
princípios de tratados internacionais e interamericanos, com
especial atenção à Convenção sobre os Direitos da Criança e do
Adolescente (BRASIL, 2006b).
Contudo, ao observarmos os contextos efeitos de produção
legislativa, vemos que as políticas públicas e as legislações em
que se baseiam não são estagnadas. Para Rizzini (2008), o Estatuto
da Criança e do Adolescente é um produto de seu tempo, assim
como qualquer documento normativo, refletindo os modos de
pensar de sua época. O Estatuto contém negociações, consensos
e divergências, mantendo-se sujeito a despertar pressões para
sua reformulação, advindas dos diferentes interesses em jogo.
Se lançarmos o olhar a um período prévio, temos que
a Constituição Federal de 1967, anterior à vigente atualmente,
não previa direitos específicos à população cuja faixa etária é
atendida presentemente pelo ECA. Juntamente à Constituição
anterior, vigoravam os antigos Códigos de Menores, de 1927
e de 1979. Esses códigos estavam embasados na Doutrina da
Situação Irregular, em que crianças e adolescentes considerados
abandonados, expostos e/ou vulneráveis eram vistos como
sujeitos passíveis de serem corrigidos pelo Estado e retirados
de seu âmbito social (QUEIROZ, 2010). Conforme exposto no
artigo 2º do Código de Menores (1979), em seus incisos de I a
V, era considerado em situação irregular aquele que entre 0 e 18

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 59


anos estava: privado de condições essenciais à sua subsistência,
saúde e instrução obrigatória; vítima de maus-tratos ou castigos
imoderados impostos pelos pais ou responsável; em perigo
moral; privado de representação ou assistência legal, pela falta
eventual dos pais ou responsável; com desvio de conduta, em
virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; autor
de infração penal. Assim, no contexto da Doutrina da Situação
Irregular, temos que a intervenção estatal, seguida de internação
e privação de liberdade, poderia dar-se em qualquer das
situações descritas, seja em casos julgados como de abandono
ou descuido familiar, seja em aparente conflito com a lei, sem
haver juridicamente uma distinção entre estes. Sempre que havia
o julgamento de que se tinha uma “situação irregular”, a tutela
seria constituída pelo Estado, podendo a privação de liberdade
ser compulsória.
Um dos efeitos dos arranjos sociais acima citados é o da
ampla institucionalização de jovens. Recolhidos internamente
aos muros da tutela estatal, estes eram, por muitas vezes,
desprovidos do convívio familiar e acabavam por serem expostos
a uma série de privação de direitos pela precariedade das
instituições, geralmente superlotadas e insalubres. As crianças
encontravam-se naquele contexto privadas de afeto, lidando
com uma separação abrupta de familiares e amigos, geralmente
sem serem acolhidas por uma rede afetiva na instituição. Bowlby
descreve que, nessas condições, comumente podia observar-se
uma criança “indiferente, parada, infeliz, que não reage a um
sorriso ou a um murmúrio” (BOWLBY, 1981, p. 26).
Ao diferenciar-se deste modelo legislativo
intervencionista, que tinha como resposta a tutela estatal
desvinculada do território e das pessoas de convívio próximo,
o Estatuto da Criança e do Adolescente lançou luz aos direitos
básicos que deveriam ser promovidos não só pela família ou
pelo Estado, mas pela sociedade em conjunto, por meio de
integração social. Junto a esta empreitada encontra-se uma
nova arena de práticas e discursos que visam romper com a

60 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


lógica jurídico-policialesca. Como aponta Santos (2011), à época
dos Códigos de Menores, ocorre uma migração do enunciado
jurídico e especializado para o campo social, produzindo a
criminalização e privação de liberdade do jovem pobre, a partir
de uma suposta defesa do ordenamento social, fazendo com
que conhecimentos provenientes, entre outros, da Psicologia,
Antropologia e Medicina ganhassem emergência na esteira do
controle e da adaptação normativa.
Em 2006, ano em que se comemoravam os dezesseis anos
de promulgação do ECA, integrantes do Sistema de Garantia
de Direitos formularam o documento base que constitui o
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, o SINASE
(BRASIL, 2006a). O documento visa regulamentar e legitimar
as diretrizes do ECA no âmbito da Socioeducação, “tendo como
premissa básica a necessidade de se constituir parâmetros mais
objetivos e procedimentos mais justos que evitem ou limitem
a discricionariedade, o SINASE reafirma a diretriz do Estatuto
sobre a natureza pedagógica da medida socioeducativa”
(BRASIL, 2006a, p.13).
Assim, de acordo com Veronse e Lima (2009), as políticas
estabelecidas através do SINASE e do ECA visam situar o
adolescente autor de ato infracional enquanto sujeito em
processo de formação, através de um viés pedagógico, capaz de
oferecer novas perspectivas de existência, a partir da garantia de
direitos básicos. Na construção desse pensamento, é considerada
a vulnerabilidade em que se encontra a maioria desses jovens,
oriundos de contextos marginalizados, marcados historicamente
pela violência e negação de direitos, como o acesso à educação de
qualidade e saúde, entre outros.
Assim, observa-se um cenário de constantes avanços
e retrocessos, no campo legalista e normativo, bem como de
progressiva complexificação do campo da subjetividade. Em
texto em que discute as raízes do imobilismo político na área
de Segurança, Soares (2013) destaca que as transformações
legislativas não são acompanhadas de discussão e amplo

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 61


debate, sendo muitas vezes descoladas do cotidiano da maioria
da população. Por mais que ocorram importantes alterações
provenientes da Constituição de 1988 e documentos orientadores
daí derivados, há um campo de tensão no qual um novo
paradigma não supera o anterior, mas, sim, vem juntar-se a esse
na disputa pelo pleito de fundamentar e ser fundamentado pelas
posturas do dia a dia. No caso da Socioeducação, observa-se uma
paisagem em que diferentes lógicas estão atuantes. Mais do que
ver se a prática pode ser entendida ou não como socioeducativa,
procura-se ver que lógica de Socioeducação está em ação, uma
vez que sempre se estará produzindo um efeito na realidade,
seja pelo viés protetivo e garantidor de cidadania, seja pelo viés
disciplinarizador e punitivo.

2 POSTURA METODOLÓGICA
Em uma postura pautada pela cartografia psicossocial
(ROLNIK, 1989), a pesquisa intenta acompanhar processos
(BARROS; KASTRUP, 2009) cotidianos de instituições
socioeducativas de privação de liberdade na cidade do Rio de
Janeiro, através de um projeto de pesquisa-intervenção realizado
entre segundo semestre de 2015 e o primeiro de 2018, em duas
unidades do Departamento de Ações Gerais Socioeducativas do
Estado do Rio de Janeiro (DEGASE).
Os encontros realizados, ora com adolescentes, ora com
agentes socioeducativos e equipe técnica, visavam estabelecer
um espaço de livre circulação de ideias acerca das experiências
do cotidiano do DEGASE, a partir de temáticas levantadas
pelos próprios atores desse campo existencial, de forma que o
conhecimento fosse produzido de forma conjunta.
A Cartografia Psicossocial, proposta por Deleuze e
Guattari, define-se como princípio ético-estético-político, ao
propor o acompanhar dos processos de produção das paisagens
psicossociais, observando as formas e derivações dos encontros
(GUATTARI, 1995). Conforme aponta Rolnik (1989, p. 16), “as
cartografias trazem marcas dos encontros que as foram construindo.

62 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


[...] Tais marcas formam um relevo, feito de vozes reminiscentes das
mais variadas origens, sintonias e estilos”. Esse aspecto se reflete
através do acompanhamento e descrição em diários de campo
da emergência dos territórios existenciais nos encontros com os
agentes socioeducativos, a equipe técnica e os adolescentes em
cumprimento de Medida Socioeducativa de Internação.
Em artigo sobre pesquisa-intervenção, Rocha (2007, p.404)
pontua que “os agenciamentos coletivos de enunciação são
abordados enquanto efeitos dos encontros (nunca coincidentes)
de visibilidades e enunciabilidades constitutivos dos saberes,
sobre os quais se exercem as relações de poder”. Assim, ao
cartografar esses encontros, nos deparamo-nos, entre outras,
com as temáticas: Socioeducação, condições de funcionamento
das unidades, superlotação, violência, disciplinarização,
agenciamento do medo como modo de coerção e garantia de
manutenção da ordem. Dessa forma, buscou-se a reflexão acerca
de que paisagens psicossociais ganharam contornos, quando seus
enunciados eram agenciados em torno do tema da Socioeducação
– suas possibilidades e desafios.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
No intuito de observar as diferentes noções de
Socioeducação que emergiram durante os encontros, partimos
da postura cartográfica em que não se busca um fim para
análise, mas observar quais são os elementos que organizam o
território em que se está vivenciando. Nesse sentido, falar da
Socioeducação não será necessariamente falar da Socioeducação
tal qual é preconizada pelo SINASE e/ou ECA, e sim falar
de “socioeducações”, ou seja, de processos de produção de
subjetividade, bem como de formas de disciplinarização e
regulamentação desses processos, tais quais ganharam corpo
com as falas dos participantes.
Os modos de se fazer Socioeducação no cotidiano de uma
instituição de privação de liberdade remetem a diferentes campos
de forças, acionando e sendo sustentados por distintos regimes

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 63


de visibilidades relacionados aos jovens. Desse modo, torna-se
relevante pensar: Quais campos de conhecimento são possíveis
de serem investidos no âmbito da Socioeducação? Quais são os
direitos destinados e garantidos aos jovens? Quais são as práticas
historicamente sedimentadas neste contexto? Que fazeres se
tornam possíveis dentro de um campo de histórica complexidade?
Uma vez que, neste trabalho, a prática de “socioeducar” será
considerada não pelo cumprimento do que é previsto na legislação
(mesmo o trabalho defendendo que assim deveria ocorrer), mas
em função dos efeitos concretos que as diversas práticas produzem
no cotidiano (produzindo certa “educação social”), portanto, que
diferentes modos de Socioeducação vêm sendo produzidos dentro
do Sistema Socioeducativo?
As instituições de privação de liberdade apresentam-se
como territórios múltiplos e complexos, mas que constantemente
parecem ser atravessadas pelas relações de forças disciplinares do
corpo e de regulamentação da vida, reatualizadas cotidianamente
pela atuação de seus integrantes (FOUCAULT, 2005). No que
se refere ao campo de aplicação da privação de liberdade e
Socioeducação, Bronzo (2001, apud MENICUCCI; CARNEIRO,
2011) aponta a presença de duas lógicas distintas: coerção ou
socialização. Apesar da tentativa do SINASE de estabelecer
um modelo pedagógico no fazer cotidiano da Socioeducação,
a vivência na realidade produz contornos múltiplos, tendo
agenciamentos distintos, nos quais o medo e o controle parecem
ser intensos mobilizadores.
Assim, ao observar, em certos casos, o uso e a
naturalização da violência enquanto método de educação, as
práticas percebidas no DEGASE nos fornecem pistas no que
tange aos aspectos acima citados:
“Elas respeitam o que elas temem” (Agente F., 22/09/2017).
A ideia da violência enquanto ferramenta educativa
permeia o espaço social em seus diversos níveis. Ela pode ser
observada, muitas vezes, desde o meio familiar, onde o castigo
físico é uma ferramenta popularizada como método de correção.

64 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Azevedo e Guerra (2001, p.19) apontam as motivações mais
frequentes citadas, no que se refere à violência como suposto
instrumento educativo: “para discipliná-los, isto é, para controlá-
los, submetendo-os a certa ordem que convém ao funcionamento
do grupo familiar ou da sociedade em geral; para castigá-los, ou
seja, puni-los por faltas reais ou supostamente cometidas.”.
Dessa maneira, é possível refletir que, se em certas práticas
sociais gerais que visam à pedagogia da criança e do adolescente,
por vezes, a violência é utilizada como instrumento educativo
e/ou corretivo, dentro de uma prática institucional destinada à
Socioeducação, tal lógica também estaria presente, podendo ainda
ser reforçada. Trata-se da ideia de que o DEGASE, como qualquer
outro estabelecimento institucional, não está descolado da
sociedade em que se situa. Ao contrário, estando dentro do escopo
da Socioeducação para adolescentes, é notório que tenha lidar
com o clamor, de certa parcela da sociedade, de que as práticas ali
realizadas sejam regidas por meio da crença de que a punição seja
um caminho para transformação na vida dos adolescentes.
Pode-se observar, entre tantas outras instâncias, que
agenciamentos como violência e medo se ramificam em
práticas e posturas segregativas, práticas essas eventualmente
naturalizadas tanto por agentes de Socioeducação e técnicos,
quanto pelos próprios adolescentes em cumprimento de Medida
Socioeducativa. Tais ideias parecem basear-se, em sua maioria,
em conceitos cristalizados do modo como deve funcionar a
Socioeducação e quais caminhos devem ser percorridos a fim
de conduzir a Medida Socioeducativa de adolescentes que
cometeram ato infracional.
A fala do Agente F., citada anteriormente, demonstra
como o controle dos corpos pode se dar pela punição ou pela
ameaça de punição, visando gerar o medo de que isso ocorra. A
ameaça ou efetivação exemplar do que se está ameaçando torna-
se ordenador do cotidiano dentro da instituição. Tal processo
acaba por defender uma Socioeducação disciplinadora que busca
a ordem através de uma hierarquia baseada em medo e coerção.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 65


Em outra fala, a agente D. (22/09/2017) acrescenta:
“A responsabilidade tem que ser ensinada. Elas são fruto da
irresponsabilidade dos responsáveis, elas saem da mesma forma
que entraram, não estão nem aí”. Aqui, nota-se a culpabilização
dos membros da família, especialmente os pais e mães, como
principais responsáveis pela educação dos jovens. Todavia,
seria imprudente individualizar a análise, seja no sentido da
culpabilização dos responsáveis, seja na referência a um ou outro
profissional. Ao passo que as normativas vigentes, bem como
movimentos sociais e outros atores, apontam a responsabilidade
pela garantia de direitos, como a Educação, como sendo tanto da
família, do Estado e da Sociedade. Há outros grupos e discursos
que se aproximam mais de elementos das antigas legislações,
como a da doutrina da situação irregular, em que se retira a tutela
familiar por não conferir a ela o julgamento de capacidade para
prover, entre outros, a Educação. A família, de maneira mais
ou menos isolada, seria a responsável. O exemplo, portanto,
possui vazão não como opinião isolada, mas como discurso que
encontra terreno fértil em boa parte do histórico relacionado aos
jovens no Brasil.
Na mesma fala, por outro lado, D. manifesta considerar
certo fracasso das políticas socioeducativas, à medida em
que não vê a instituição enquanto produtora de mudanças no
pensamento e práticas dos adolescentes que por ela passam.
Assim, D. arremata: “O Sistema Socioeducativo dá às jovens
‘tudo de bandeja’: remédio na hora que querem, não lavam
pratos ou o refeitório” (22/09/2017).
Essas falas se relacionam com o que Menicucci e Carneiro
(2011, p. 538) descrevem como “o problema da coerção e
manutenção da ordem, que aponta para uma intervenção com
maior programabilidade e interação pouco intensa com o usuário,
procurando garantir rotinas, uniformidade e disciplina”.

“Se porrada adiantasse, isso aqui não tava cheio, porque não tem um aqui que
já não tenha tomado uma surra, seja de agente, seja da polícia...”
(Agente S., 28/08/2017).

66 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Em contrapartida ao pensamento anteriormente exposto,
há agentes que problematizam a prática da execução da violência
enquanto modo de educação. Foi possível observar que alguns
agentes possuem maior aproximação com os adolescentes,
através do diálogo e da troca de experiências proporcionadas
pelos encontros, permitindo, assim, um trânsito afetivo e,
consequentemente, novas possibilidades de construção de
relações a partir de suas trajetórias de vida.
É também necessário pontuar que essa experiência
de trocas entre agentes e adolescentes aparentemente é um
fenômeno que ocorre com maior facilidade na unidade feminina
de privação de liberdade. Existem notáveis diferenças no
cotidiano das instituições masculinas e femininas, como maior
quantitativo de jovens, superlotação e agrupamento em função
dos territórios de facções, nas unidades masculinas, entre outras,
além, claro, das especificidades e transversalidades das questões
de gênero e sexo.
A partir de experiência de inserção no tráfico, atividade em
que os jovens se encontram, por muitas vezes, imersos com maior
afinco do que as adolescentes, as unidades masculinas acabam
por reproduzir regras provenientes das facções no cotidiano do
cumprimento de Medida Socioeducativa. Uma das regras que
ali ganham contorno, em especial em relação a uma facção, é a
não interação dos adolescentes com os agentes, enxergando-os
como inimigos, a partir dos históricos conflitos entre as duas
categorias, marcados por questões punitivas e disciplinadoras.
Conforme comenta o agente E. (28/08/17), é acordado pelos
adolescentes da instituição não tocarem e nem dirigir a palavra
aos agentes. Tal fato torna-se um grande dificultador para
posturas de proximidade e maior diálogo entre ambos.
Por outro lado há agentes que, pela lógica da
disciplinarização, veem os códigos provenientes das facções
como facilitadores de seus trabalhos. Como nos aponta o agente
F. (22/09/2017): “eles vêm de facção, tem um código de honra.
Passam por um funcionário e abaixam a cabeça”.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 67


As regras das facções mostram-se como uma das
questões do cotidiano com a qual a Socioeducação tem que
lidar, havendo entraves, como no caso da inerente rivalização
e não possibilidade de trocas entre agentes e adolescentes, que
produzem a manutenção da tensão, sendo difícil seu rompimento.
O cotidiano delineia desafios à prática socioeducativa que tem
constantemente que se reinventar, a fim de se pensar como pode
ser realizada a redução de danos em um ambiente de privação
de direitos.

“A Socioeducação, na minha opinião, é que nem aquele desenho (aponta para


um quadro da aula de História na sala) ... Um reino tão, tão distante”
(Agente O., 20/10/2017).

O ECA possui uma proposta pedagógica garantidora


de saúde e dignidade humana, entretanto, o espaço físico das
unidades não se adequa ao modelo proposto. Silva e Gueresi
(2003), em relatório lançado no ano de 2003 como parte de
uma pesquisa desenvolvida pelo IPEA (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada), apontam que, em muitas unidades,
quartos individuais abrigavam até cinco adolescentes e quartos
coletivos chegavam a abrigar o dobro de sua capacidade, criando,
consequentemente, condições precárias para os adolescentes,
bem como de difícil trabalho para os agentes e equipe técnica.
Por mais que a referida pesquisa do IPEA tenha sido realizada
há pouco mais de 15 anos, pudemos observar e receber relatos de
condições parecidas nas unidades.
B. (10/11/2017), agente socioeducativo, nos relatou acerca
da Operação SINASE1, proposta pelo líder sindical da classe, no
ano de 2015, que pleiteava melhores condições trabalhistas. A
proposta era simplesmente que os agentes trabalhassem apenas
quando as normas estabelecidas na lei fossem cumpridas,
fazendo com que, assim, a segurança no trabalho fosse mais bem
garantida aos servidores. Segundo o agente, um exemplo desta
1 Mais informações sobre a Operação SINASE podem ser encontradas no link abaixo,
acessado em 25/07/2018: http://www.sinddegase.org.br/passo-a-passo-operacao-si-
nase.php

68 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


tentativa referia-se a uma das diretrizes do SINASE que orienta
uma proporção de “5 para 1”, ou seja: a cada cinco adolescentes
é necessário que haja um agente socioeducativo. O agente
acrescenta: “Ficam 4 [agentes] no colégio, um ou outro para o
futebol, 1 para a portaria, e outro para verificar as saídas! Às vezes
são 100 adolescentes na escola para 4 agentes. O contingente fica
quebrado, a demanda é demais!”. Após a denúncia, B. conclui: “O
desembargador impôs que a operação fosse imediatamente
suspensa sob pena de multa para o sindicato. Ele nem deve
ter lido...”.
Na fala do agente em questão surge a demanda pelo
asseguramento das condições salubres para todos ali presentes.
Uma vez que isso não encontra respaldo na realidade, o ambiente
de privação de liberdade torna-se uma cotidiana restrição de
direitos a todos, tanto aos adolescentes quanto aos profissionais.
São constantes e persistentes as condições de falta de
recursos orçamentários que incidem diretamente no estado das
unidades, na sua insalubridade e superlotação. O agente N.
(20/10/2017) diz: “O estado não dá a mínima condição. Se o ECA
fosse sério, se isso tudo fosse sério, talvez a gente ressocializasse
melhor”. Essa afirmativa encontra eco na voz do agente B. que
também discorreu sobre a dificuldade que é contribuir para um
processo socioeducativo, quando, no exercício de suas funções,
precisa lidar com acidentes de trabalho não notificados e
desfalque no número de agentes, ou com o fato de que sente falta
da atuação da Defensoria, juízes ou do Ministério Público, no
sentido de fiscalizarem o contínuo descumprimento dos deveres
do Estado (10/11/2017). N., arremata: “Estamos adoecendo! ”
(10/11/2017).

“Eu acho que aqui dentro não tem essa função de corrigir nada não. O trabalho
tinha que ser feito lá fora.” (Agente O., 20/10/17)

O SINASE prevê a aplicação das medidas restritivas


de liberdade (semiliberdade e internação em estabelecimento
educacional) apenas em caráter de excepcionalidade e brevidade,

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 69


priorizando-se as medidas em meio aberto (Prestação de Serviço
à Comunidade e Liberdade Assistida): “essa estratégia tem como
objetivo atenuar a tendência à internação, uma vez constatadas
todas as limitações existentes naqueles espaços” (BRASIL, 2006a,
p. 13). A partir dessa estratégia, a busca pela melhor garantia dos
direitos do adolescente procura manter sua integração ao seu
meio social, devendo ser a privação de liberdade uma medida
mais breve possível, pelo próprio cerceamento da liberdade.
Dados do Levantamento Anual SINASE 2016 (Ministério
dos Direitos Humanos, 2018) acerca do número de jovens no
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, em âmbito
nacional, apontam que havia “um total de 26.450 atendidos,
sendo 18.567 em medida de internação (70%), 2.178 em regime de
semiliberdade (8%) e 5.184 em internação provisória (20%)”. Ao
considerar-se a necessidade de internação, quando em casos de
reincidência ou de infração mediante grave ameaça ou violência
à pessoa, o percentual de internações mostra-se alto frente ao
número de adolescentes dentro do Sistema Socioeducativo.
Tendo em vista a complexa rede em jogo discutida neste
trabalho, é necessário discutir a necessidade de políticas públicas
que alcancem os jovens desde o início de suas trajetórias, para
que os mesmos tenham condições de formas de existência em
condições de direito e dignidade e não apenas encontrem tais
políticas quando dentro da rede socioeducativa. Destaca-se a
necessidade de trabalho em rede, fortalecendo os dispositivos e
equipamentos de direitos básicos nas comunidades em que os
jovens se inserem, de forma a que possam usufruir de modos de
produção de vida comunitários e diversos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observamos que não existem direções únicas no que
tange à prática socioeducativa nas instituições de privação
de liberdade para adolescentes. Entende-se que alguns
elementos se interconectam na constituição desse campo, tal
qual o contínuo trânsito simbólico entre os discursos e práticas

70 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


sociais como um todo e os discursos e práticas presentes neste
contexto. Aspectos estruturais também se destacam, como:
ausência ou insuficiência de espaços e práticas participativas,
que envolvam os diferentes atores do sistema socioeducativo,
de direção, corpo técnico e agentes a adolescentes de diferentes
grupos de origem; treinamento e propostas de educação
permanente dos profissionais que ali atuam; bem como outras
questões como condições de trabalho, atenção à segurança
e saúde do adolescente e dos profissionais, superlotação e
quantitativo do efetivo.
Fatores como a relativa autonomia que as instituições
possuem no momento em que adotam seus próprios métodos
de Socioeducação acabam por também contribui para o aspecto
plural dos modos de socioeducar.
Nesse sentido, a presente pesquisa considera que, dentro
de um campo complexo como os das unidades do DEGASE,
sempre estarão sendo agenciados certos modos de Socioeducação,
de distintas qualidades, critérios e formas de produção, ou seja,
há uma certa maneira de Socioeducação em todas as práticas e
encontros que ocorrem entre agentes, adolescentes, gestão e equipe
técnica, bem como com os componentes de estrutura institucional e
material. Tal qual a diversidade histórica de legislações, doutrinas e,
principalmente, de lógicas que as sustentam e por elas são sustentadas,
o manejo da Socioeducação ora vai no sentido de culpabilização
(individual, familiar ou estatal), ora no sentido de controle punitivo
pela sanção e medo, ora no sentido de fortalecimento de vínculo
e garantia de direitos. Por mais paradoxais que possam ser,
compõem conjuntamente esse complexo emaranhado do Sistema
Socioeducativo. Assim, mais do que nos perguntar se tem ocorrido
ou não Socioeducação no DEGASE, buscamos trazer a reflexão
das diversas e múltiplas socioeducações que ganham forma nas
vivências desse sistema, procurando ampliar os debates sobre suas
potencialidades e desafios.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 71


REFERÊNCIAS

AZEVEDO, M. A.; GUERRA, V. N. A. Mania de bater: a punição


corporal doméstica de crianças e adolescentes no Brasil. São
Paulo: Iglu, 2001.
BARROS, L. P.; KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar
processos. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.).
Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e
produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 52-75.
BOWLBY, J. Cuidados Maternos e Saúde Mental. São Paulo: Ed.
Martins Fontes, 1981.
BRASIL. Lei Federal 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o
Código de Menores. Diário Oficial da União: Brasília, DF, v. 1,
p. 14945, 11 out. 1979.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal
8.069/90, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre a proteção integral
à criança e ao adolescente. Brasília: Ministério da Justiça, 1990.
BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Brasília:
Conanda, 2006a.
BRASIL. Resolução nº 113, de 19 de abril de 2006. Dispõe sobre
os parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do
Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Brasília: SEDH/CONANDA, 2006b.
BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos (MDH). Levantamento
Anual SINASE 2016. Brasília: MDH, 2018.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. GUATTARI, F. As três ecologias. Campinas:
Papirus, 1995.
MENICUCCI, C. G.; CARNEIRO, C. B. L. Entre monstros e
vítimas: a coerção e a socialização no Sistema Socioeducativo de
Minas Gerais. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 535-556, 2011.

72 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


QUEIROZ, B. C. M. Evolução Histórico-Normativa da Proteção
e Responsabilização Penal Juvenil no Brasil. In: SARAIVA, J.
B. C. Compêndio de Direito Penal Juvenil Adolescente e Ato
Infracional. Ed. 4. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
RIZZINI, I. O Século Perdido: raízes históricas das políticas
públicas para infância no Brasil. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
ROCHA, D. Agenciamentos coletivos de enunciação em O
homem que copiava. Psi. em Estudo, Maringá, v. 12, n. 2, p. 403-
413, 2007.
ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: transformações
contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da
UFRGS, 1989.
SANTOS, E. Desconstruindo a menoridade: a psicologia e a
produção da categoria menor. In: GONÇALVES, H.; BRANDÃO,
E. Psicologia Jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: NAU, 2011. p.
43-72.
SILVA, E. R. A.; GUERESI, S. Adolescentes em conflito com
a lei: situação do atendimento institucional no Brasil. Brasília:
IPEA, 2003. (Texto para discussão 79)
SOARES. L. Raízes do Imobilismo Político na segurança
pública. 2013. Disponível em: <http://www.luizeduardosoares.
com/?p=1058>. Acesso em 25 jul. 2018.
VERONSE, J. R. P.; LIMA, F. S. O Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (Sinase): breves considerações.
Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade, São Paulo,
v. 1, n. 1, p. 29-46, 2009.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 73


“OFICINA DA PALAVRA”: ADOLESCENTES EM
CONFLITO COM A LEI
PROTAGONIZANDO SUA PRÓPRIA HISTÓRIA.

Débora Barbosa da Silva


Nataly Soares de Araujo Neves

RESUMO
Vivemos em uma sociedade marcada por estigmas e
generalizações. A partir de tal cenário, nós, graduandas do
curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, UFF,
através de uma parceria com o DEGASE de Macaé, um órgão do
governo do estado do Rio de Janeiro responsável pela aplicação
de Medidas Socioeducativas a adolescentes em conflito com a
lei, pudemos criar um dispositivo grupal, a “oficina da palavra”.
A elaboração do artigo tem como proposta potencializar o papel
da Socioeducação e como esta pode transformar vidas. Demos
protagonismo a muitos que nunca o tiveram sobre suas próprias
histórias, através da escuta qualificada. Pode parecer simples,
mas, a partir do ato da fala, pudemos acompanhar, ao longo de
sete meses, como o falar produz mudanças.

Palavras-chave: Socioeducação. Psicologia. Protagonismo.


Adolescente.

1. INTRODUÇÃO
A adolescência é um período crítico para a vida de qualquer
pessoa, uma fase de descobertas sobre a sexualidade, sobre gostos
pessoais, sobre como o caráter é moldado e estimulado. Isso tudo,
além dos altos e baixos sofridos no dia a dia, devido às alterações
hormonais constantes. E, quando, além de todas essas questões
apresentadas, o adolescente ainda tem sua vida atravessada pela
infração à lei? Esse foi o cotidiano enfrentado por graduandas de
Psicologia em atividade de estágio supervisionado, no período de
março a dezembro no ano de 2018, em função de uma parceria

74 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


entre a Universidade Federal Fluminense - UFF e o CRIAAD
(Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente)
Macaé – DEGASE . Nosso objetivo consiste em ilustrar a
construção do coletivo, através de relatos de um grupo realizado
com adolescentes que estão cumprindo Medida Socioeducativa.
A proposta é pensar como um grupo de meninos, totalmente
heterogêneo, pode construir um espaço com possíveis trocas
positivas, considerando que a maioria desses meninos participam
de facções (organizações criminosas) diferentes, residem em locais
distintos e possuem histórias de vida que são semelhantes, mas
que dispõem de suas particularidades.
A oficina tem por objetivo discutir sobre os impactos
gerados pela instituição, pelos principais aspectos da vivência
de cada adolescente e sobre quaisquer assuntos que os próprios
julgarem pertinentes para a discussão. Como metodologia foi
utilizada a psicodinâmica do trabalho, em que se entende o
trabalho não apenas como o sentido amplo de produção material,
mas em relação ao próprio resgate subjetivo do sujeito e suas
formas de trabalhar. A proposta era potencializar a voz desses
meninos que se encontram numa posição de desesperança. A
maioria tem entre quinze a dezoito anos e residem em Macaé
ou em municípios vizinhos. O projeto surge nominado como
“oficina da palavra”, num primeiro momento sem uma temática
definida e com encontros semanais. A princípio foi realizada
uma roda de conversa para sabermos se eles teriam interesse em
participar do grupo e quais temas seriam mais interessantes de
serem trabalhados.
Com efeito, as crianças e adolescentes envolvidos nas oficinas são
aprendizes de um processo que emancipa, torna-os sujeitos ativos
na construção de uma democracia participativa, fortalecendo o
protagonismo infanto-juvenil. (FIGUEIREDO et al, 2006, p.5)

Apesar de ser um grupo em que o fluxo de entrada e saída


é constante, conseguimos estabelecer um vínculo e uma relação
com bastante harmonia e respeito. Nosso grupo aconteceu às

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 75


terças-feiras, sendo os horários intercalados. Em uma semana,
era realizado às 9 horas e na seguinte às 13 horas e assim
sucessivamente. Como os meninos têm diferentes turnos em
suas escolas, foi acordado um modo de funcionamento para que
nenhum deles faltasse com as responsabilidades estudantis e
que a maioria pudesse estar presente, mesmo que em apenas um
horário, afinal acreditamos que o nosso trabalho não atingiria
a eficácia necessária sem a educação e a convivência com a
sociedade, fundamentais na formação de cada ser humano e
como medida socioeducativa.
Para nos prepararmos para esse projeto, tivemos que
nos desconstruir de nossos próprios preconceitos e entender
um pouco mais sobre a lógica vivenciada por esses meninos.
Segundo Teresa Carreteiro (2003), no Brasil há uma banalização
crescente da violência, principalmente nas populações mais
carentes. Com a lógica repressiva atuando constantemente,
junto às violências cotidianas (tanto físicas como simbólicas) e
humilhações, muitas vezes isso leva a um sentimento de ódio
e vingança. É então necessário intervir, construindo estruturas
mediadoras para acolher, criar e transformar as estruturas sociais.
Esse se tornou então nosso principal plano tático no DEGASE,
enquanto os meninos cumprem suas Medidas Socioeducativas,
para que no futuro possam estabelecer uma nova vida além dos
muros e grades. Esse é um processo que não pode ser imposto ou
dado, é uma construção individual e ao mesmo tempo coletiva.
“Como produzir conhecimento com eles tendo em vista que não
consideramos o conhecimento como representação da realidade,
mas um processo de construção coletiva?”. (KASTRUP; PASSOS,
2013, p.264).

2 DESENVOLVIMENTO
No DEGASE, a nossa estratégia inicial consistia em nos
apresentarmos e contarmos brevemente nossas histórias de
vida, não numa tentativa de provar que tínhamos histórias
semelhantes ou que as dificuldades se igualavam em certo

76 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


ponto, mas para mostrar que o coletivo pode ser construído com
pessoas diferentes, falas diferentes e realidades diferentes e que
o objetivo não era criar um grupo homogêneo, mas possibilitar o
surgimento desse coletivo através de heterogeneidade.
Incentivar o protagonismo de cada pessoa do grupo era
um dos objetivos ao propor a criação do mesmo, potencializar a
experiência de cada um enquanto ser vivente do real, abordando
com propriedade determinados temas que artigos e livros, que
os discutem, falham ao tentar descrever. Quando nos deparamos
com adolescentes em conflito com a lei, a primeira ação
frente a isso é a de generalizar, colocá-los na mesma caixinha
“pobre, negro e favelado”, assim, reforçamos um estigma e
silenciamos essas vidas que foram atravessadas por uma série
de acontecimentos que os tornam diferentes da pessoa do lado.
Para norteamos tal estrutura de pensamento, nos baseamos na
investigação cartográfica descrita a seguir:

Numa investigação cartográfica, conhecer tais experiências equivale a


transformá-las, o que coloca o desafio de pensar qual é o rumo a ser dado à
intervenção e como fazer. Os sentidos adquiridos pela pesquisa dependem
dos modos como o seu processo é incorporado, isto é, dos modos de sentir
e agir mobilizados. (SADE; FERRAZ; ROCHA, 2013, p. 284)

Em sua grande maioria, a sociedade, as facções e os


“experts” tentam enquadrar esses jovens e classificá-los o tempo
todo, mas isso os silencia como sujeito. Suas histórias, vivências,
gostos, saberes, tudo isso é ignorado, pois se trata de mais um que
compõe o quadro estatístico da criminalidade. A grande questão
aqui era não repetir tais atos os quais estiveram presentes na vida
toda destes e que ainda eles faziam consigo.

Cresci numa quebrada onde não pode dar mole, onde amigo e confiança
com certeza não há! Eu queria mudar, eu queria mudar, eu queria
mudar, eu queria mudar. O meu mundo me ensinou a ser assim, fazer
a correria os cana vinha atrás de mim. (Pacificadores, 2002)

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 77


O grupo teve como desafio inicial fazer com que a fala
circulasse de maneira “educada”, sem retaliação e sem que as
opiniões e relatos se tornassem motivo de chacota. Mas esse tipo
de comportamento apareceu em diferentes encontros. Torna-se
um desafio trabalharmos com um grupo repleto de pessoas com
pensamento diferente num mesmo local, principalmente quando
se trata de adolescentes que nunca foram ouvidos, ou melhor,
que cresceram ouvindo que suas histórias eram insignificantes.
Foi necessário um tempo até que todos pudessem entender a
importância do falar e ouvir. O processo para que os mesmos
saíssem do estigma ao qual estavam aprisionados foi custoso.
Romper a barreira do “não tenho nada pra falar e se eu falar
ninguém vai ouvir”, uma fala vinda de um deles, foi uma
importante conquista.
O primeiro assunto que abordamos foi sobre sonhos.
Queríamos além de estabelecermos um vínculo, estimulá-los a
indagar quais seus desejos e vontades. No início a frase “não sei”
foi a mais recorrente, e não se tratava de um “não saber” literal,
mas sim de um público que nunca foi convocado a pensar e
apresentar tais questões. Perguntamos quais eram os sonhos deles
e a grande maioria disse não ter, em contrapartida, uma minoria
que compartilhou seus sonhos foi inicialmente ridicularizada
por terem sonhos ditos “incomuns” para aquele contexto, como
“fazer faculdade de direito”, “conhecer a França”, entre outros,
algo que eles veem como distante da realidade que enfrentam.
“Como trabalhar com diferentes atores possibilitando espaço
para seus respectivos protagonismos?” (KASTRUP; PASSOS,
2013, p. 264).
A partir da fala dessa minoria, que trouxe um
empoderamento coletivo, muitas outras foram surgindo, mesmo
que timidamente. No decorrer da discussão, alguns meninos
relataram o desejo de conhecer outros lugares. Um deles disse
que tinha o desejo de conhecer o Rio de Janeiro e, num primeiro
momento foi motivo de risos, mas logo em seguida serviu
como encorajamento para os outros participantes. Os meninos

78 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


começaram a reagir de outra forma e a revelar os lugares que
nunca tinham tido a oportunidade de conhecer, lugares estes
dentro do próprio estado do Rio de Janeiro. Esses meninos se
permitiram ser afetados pela experiência do colega que relata
nunca ter passado pela ponte Rio - Niterói, ousaram pensar
quais os locais que eles ainda não conheciam. Em contrapartida,
os que já tinham visitado o Rio começam a descrever o lugar para
o colega que não foi, houve uma troca de afetação significativa
nesse momento.
O dispositivo grupal diz de uma sensibilidade em que o
corpo precisa estar implicado para que haja a experiência, a relação
de afetação não é dada, ela se constrói ao longo dos encontros,
com instrumentos que auxiliam na construção do coletivo, como
o sigilo, que faz com que os demais participantes se sintam à
vontade para compartilhar suas angústias, suas opiniões. A
escuta também se faz muito importante como auxiliador para
que o grupo funcione, pois não se trata de um espaço de fala
apenas, é imprescindível que as pessoas se coloquem na posição
de ouvintes e acolham a demanda do outro; que na implicação
o sujeito se apresente com um corpo passível de afetação; que se
permita tecer com o grupo uma experiência que lhes seja única,
que não esteja dada.
Não se trata de um grupo de adolescentes em conflito com a
lei, que fala unicamente sobre tráfico, a ideia é justamente provocar
discussões sobre temas que eles acreditam que não influenciam
diretamente o cotidiano deles (como a política, por exemplo)
com a intenção de entender por que há uma desterritorialização
tão grande desses meninos em relação à sociedade, ampliando a
visão deles em relação a tudo que contribui para que a história
deles seja assim (discriminação, miséria, etc.).
No decorrer dos encontros, fizemos a seguinte observação:
a palavra que se encontrava na fala de muitos meninos era
“família”, mas não ocupava um significado geral nessa roda,
uns mencionaram “o filho, ou a mulher, os pais” e até mesmo
a facção. Um desses meninos disse que o sonho dele era ser

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 79


chefe do tráfico, e aí surgiu um questionamento: qual o valor do
tráfico para ele, que lugar essas práticas ocupam na vida dele?
Foi perceptível a reação dos demais meninos em relação à fala
dele, numa posição de julgamento, e isso é um dado interessante,
quando se busca traçar um plano comum.

A pesquisa cartográfica faz aparecer o coletivo, que remete ao plano


ontológico, enquanto experiência do comum e, dessa maneira, é sempre
uma pesquisa-intervenção com direção participativa e inclusiva, pois
potencializa saberes até então excluídos, garante a legitimidade e a
importância da perspectiva do objeto e seu poder de recalcitrância.
O plano comum que se traça na pesquisa cartográfica não pode, de
modo algum, ser entendido como homogeneidade ou abrandamento
das diferenças entre os participantes da investigação (sujeitos e coisas).
Como pensar, então, o comum na diferença? Como pensar o plano
comum do heterogêneo? (KASTRUP; PASSOS, 2013, p.266)

A ideia não é dizer para esses adolescentes que o tráfico


pode destruir a vida deles, até porque alguns deles mostraram
ter consciência disso através da fala que “essa vida leva ao caixão,
cemitério e o choro de mãe”. É curioso ouvir uma frase dessas e
ver que a grande maioria desses meninos são ou serão reincidentes,
então fica o desafio: descobrir o que o tráfico representa para eles:
“status, estabilidade, visibilidade”? É possível que existam questões
para além disso e, para que isso fique claro no grupo, é preciso que
haja um espaço em que eles se sintam confortáveis para falar de tais
assuntos sem o medo de serem censurados e julgados.
Além das falas, foi possível notar uma agitação deles,
nos primeiros encontros, que talvez possa ser entendido como
uma resposta corporal ao ambiente e em relação à proposta do
grupo. A situação em que se encontram bem como o conflito
entre eles e entre a própria instituição ocasionavam um estresse
muito grande que, em alguns momentos, era possível notar a
hostilidade de algum deles, fazendo o sinal da sua facção com os
dedos quando um menino não pertencente a essa mesma facção
estava falando. Um claro exemplo disto foi o desrespeito em
relação a algumas falas, tratando-as pejorativamente, como foi o

80 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


caso do menino que disse que após sair da semiliberdade tinha
o desejo de ser contratado pelo “Atacadão”, um supermercado
conhecido na região. Notamos também que inicialmente havia
um certo comportamento direcionado a nós (estagiárias) como
se ocupássemos o lugar de “disciplinadoras”.
Desde o início, explicamos que o grupo era um espaço deles
e que os mesmos ficariam encarregados pela escolha dos temas,
pois não queríamos impor nada, mas notamos uma dificuldade
no fluir grupal, visto que eles tinham uma dificuldade para
entrar em acordo na escolha dos temas, assim, a dispersão era
muito grande. Como estratégia, começamos a definir as temáticas
sempre no encontro anterior de forma democrática, para que no
dia pudéssemos conversar sobre o tema sem nenhuma objeção e
para que os mesmos refletissem acerca do tema a ser abordado,
durante a semana. A mediação seria processo de criação de
elos entre dois agentes constituindo um composto híbrido que
não existia antes e que desloca os objetivos, funções e intenções
previamente estabelecidas. (FERREIRA; MORAES; ARENDT;
LUNA, 2010, p.11)
Em um dos encontros, notamos que os meninos se
encontravam tensos, e, ao invés de falarmos sobre a temática do
dia, eles optaram por falar sobre o que estava acontecendo no
momento. Começaram a falar que as funcionárias da cozinha eram
as únicas que os tratavam bem. Eles disseram ter dificuldades
para confiar nas pessoas, mas que o grupo estava sendo esse
espaço de confiança. Um fato bem interessante era que, quando os
agentes socioeducativos se aproximavam do grupo, os meninos se
calavam, pois, a presença deles, mesmo que de longe, significava
uma ameaça a esse espaço de fala. Isso nos leva a entender que,
para aquele espaço, todos os funcionários participam ativamente
na vida desses adolescentes. Por isso torna-se clara a compreensão
de que todos são fundamentais para a reintegração desses jovens
na sociedade e que podemos influenciá-los.
Através de uma conversa informal com um auxiliar de
serviços gerais, por exemplo, um adolescente pode encontrar uma

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 81


história de vida que o inspire ou converse sobre algo que mude a
sua perspectiva. São infinitas as possibilidades quando o assunto
remete ao ser humano e suas interações sociais. “O que se busca é
a constituição de um plano de experiência compartilhada, em que
as singularidades dos encontros que se fazem presentes no campo
concorram para multiplicar as possibilidades de conexões entre
sujeitos e mundos”. (SADE; FERRAZ; ROCHA, 2013, p. 283).
E nesse encontro foi possível traçar um comum: todos
estavam mobilizados pelas suas percepções do como acreditavam
serem tratados. Ouvir o outro significava potencializar aquilo
que ele mesmo estava experienciando, assim as diferenças foram
colocadas de lado. É importante ressaltar que não se tratava de
uma discussão sobre um problema dos meninos do CRIAAD, mas
de um problema institucional que os afetava de maneira singular.
Um deles disse que se incomodava, mas que já estava habituado,
afinal a sociedade vem fazendo isso desde sempre, pois “para eles
somos, de fato, animais”, e um outro o interrompeu dizendo que
sim, eles deveriam se importar e que era um absurdo acostumar-
se com esse tipo de postura, disse que “se você se considera um
animal, problema é seu, eu não sou”.

[...] se quisermos obter um caminho que dê a possibilidade para que


muito mais entidades sejam ativas, nós necessitamos de uma teoria que
nos impeça de decidir demasiadamente rápido o que é causa e o que é
efeito, o que afeta e o que é afetado. (DESPRET, 2004, p. 125)

Através da ideia de como os meninos se sentiam, sob


vidas moldadas através de uma vigília social que muitas vezes
pode ser cruel, conseguimos um dos encontros em que a troca
de experiências foi belíssima e muito rica. Nesse encontro
marcante, os meninos disseram que gostavam daquele espaço e
que se sentiam confortáveis para compartilhar suas questões e,
em contrapartida, começaram a falar sobre a perda de confiança
da sociedade e todos os percalços que isso ocasiona. “Nós somos
julgados por um erro, as pessoas perderam a confiança em nós”,
essa foi a fala de um dos meninos, que disse sentir-se mal quando

82 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


voltava para casa aos fins de semana e deparava-se com pessoas
o olhando de maneira diferente, fazendo comentários maldosos
e negando emprego. Isso ocorre principalmente aos que foram
presos por envolvimento com furto ou assalto.
É interessante pensar que a fala sobre a falta de
oportunidades, a “ausência de um voto de confiança”, tudo isso
foi sendo trazido para o grupo como um problema dos meninos
do CRIAAD e não de maneira individualizante, e esses temas
foram trabalhados pensando na realidade que era enfrentada num
momento anterior ao CRIAAD, trabalhando o contexto desses
meninos, abordando a sua particularidade, mas promovendo
um empoderamento no coletivo. Muitos afirmavam querer um
“voto de confiança pra sair dessa vida”, referindo-se ao tráfico
e outros delitos. Por isso acreditamos ser tão importante falar
disso no presente texto, como uma forma de conscientizar e dizer
que a reintegração desses meninos vai muito além dos muros do
DEGASE. É necessário um empenho da sociedade como um todo.
Interessante notar que se tomamos o mal entendido promissor como
uma positividade do dispositivo de intervenção, o que ele produz é
uma redistribuição das capacidades de agir: no lugar da distribuição
assimétrica que separa o pesquisador do pesquisado, entra em cena
uma outra distribuição da capacidade de agir, isto é, aquele que é
interpelado, torna-se ativo no sentido de participar ativamente do
dispositivo de intervenção. (MORAES, 2010, p. 30)

Em um dos encontros, optamos por fazer uma conversa


mais reflexiva. Perguntamos aos meninos como estava sendo o
grupo para eles, qual o efeito que esse espaço estava causando.
Por um momento houve um silêncio e logo em seguida um
menino se apresentou e disse que não poderia opinar, pois era
seu primeiro encontro. O restante do grupo, de maneira bem
gentil, explicou qual era a proposta daquele espaço e foram um a
um se apresentando para o menino que tinha acabado de entrar.
Os próprios meninos explicaram o que tínhamos feito até então e
falaram um pouco sobre alguns temas trabalhados.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 83


Com o passar dos encontros, foi possível perceber o
entrosamento entre os participantes e até uma certa autonomia do
grupo. Ao final de todos os encontros, nós elegíamos um monitor
que ficaria responsável por lembrar os outros meninos sobre o
horário do grupo e explicar aos novos qual era a proposta, o que
no começo havia uma resistência. Atualmente é perceptível a
apropriação que eles tiveram do espaço, pois nós (estagiárias) não
coordenávamos mais o grupo, éramos vistas como participantes
também, rompendo-se a relação hierárquica. Os meninos já se
organizavam, explicavam uns aos outros, sugeriam melhorias,
enfim, eles tomaram o espaço para si.

O mal-entendido é promissor justamente porque abre outras vias de


realização para um fenômeno, abre, enfim, uma bifurcação, ali onde
parecia haver uma certa ordenação estável de coisas. O que se abre,
portanto, é uma instabilidade, a possibilidade de uma deriva, de uma
variação. (MORAES, 2010, p. 29)

3 CONCLUSÃO
A construção de um coletivo não pode partir de extremos,
não podemos subestimar os participantes e nem exigir deles um
retorno imediato, a relação tem que ser estabelecida de maneira
natural, construindo a cada encontro um vínculo que vai permitir
a confiança, a troca de saberes, o afeto e a consciência de que o
grupo não anula a subjetividade do indivíduo, mas potencializa.
Cria-se a partir do coletivo um lugar onde o objetivo é estabelecer
uma “relação aditiva” (MORAES, 2010), possibilitando que as
experiências vividas, compartilhadas causem algum efeito sobre
as outras histórias, seja a nível de identificação ou até mesmo na
descoberta de um novo e, no caso desses meninos, uma outra
perspectiva de uma história que se dá no mesmo contexto, na
mesma comunidade, na mesma facção, no mesmo regime de
cumprimento de medida, mas que é contada sobre uma outra
ótica que faz daquele indivíduo um ser singular.

84 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


REFERÊNCIAS

CARRETEIRO, T. Sofrimentos sociais em debate. Psicologia


USP, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 57- 72, 2003.
DESPRET, V. O corpo com o qual nos importamos: figuras da
antropo-zoo-gênese. Tradução de Maria Carolina Barbalho,
revisão de Ronald João Jacques Arendt. Body and society, v.10,
n. 2-3, p.111-134, 2004.
FERREIRA, A. A. L.; MORAES, M. O.; ARENDT, R. J.; LUNA, L.
(org.). Teoria Ator-Rede e Psicologia. 1. ed. Rio de Janeiro: Nau, 2010.
FIGUEIREDO, M. A. C.; SILVA, J. R.; NASCIMENTO, E. S.;
SOUZA, V. Metodologia de Oficina Pedagógica: uma experiência
de extensão com crianças e adolescentes. Revista Eletrônica
Extensão Cidadã, Paraíba, v. 2, 01-12, 2006. Disponível em:
<http://periodicos.ufpb.br/index.php/extensãocidada/
article/download/1349/1022>. Acesso em: 18 jul. 2018.
KASTRUP, V.; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano
comum. Fractal, Rev. Psicol. [online], Niterói, v. 25, n. 2, p.
263-280, 2013.
MORAES, M. Pesquisar COM: política ontológica e deficiência
visual. In: MORAES, M; KASTRUP, V. Exercícios de ver e não
ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual. Rio de
Janeiro: Nau Editora, 2010.
PACIFICADORES. Eu queria mudar. Disponível em: http://
pacificadores.lyrics.com.br/letras/1138434/. Acesso em: 18 jun. 2018.
SADE, C.; FERRAZ, G. C.; ROCHA, J. M. O ethos da confiança na
pesquisa cartográfica: experiência compartilhada e aumento da
potência de agir. Fractal, Rev. Psicol.[online], Niterói, v. 25, n.
2, p. 281-298, 2013. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/
S1984-02922013000200005. Acesso em: 18 jun. 2018.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 85


ENTRE ELES E NÓS: AFETOS,
VIOLAÇÕES E DESLOCAMENTOS

Júlia de Almeida Roffé Borges


Juliana da Silva Gonçalves
Tamiris Rejane Moreira Freitas
Anna Paula Uziel

RESUMO
A partir de rodas de conversas com adolescentes
cumprindo Medidas Socioeducativas no DEGASE, buscamos
pensar e discutir sobre como essas experiências nos afetaram.
Muito é produzido sobre os jovens privados de liberdade, sobre
o Sistema Socioeducativo, porém decidimos discutir nossas
afetações nesses encontros com o outro. Pretendemos pensar
nos deslocamentos que o campo nos proporcionou, sobretudo
a partir das conversas em locais inóspitos, sob vigilância e
reprovação, com adolescentes tidos como perigosos. Quais são
os processos de subjetivação e agenciamentos possíveis neste
contexto? A análise da nossa implicação mostrou-se uma
potente ferramenta para colocar em análise nossos
atravessamentos e deslocamentos.

Palavras-chave: Socioeducação. Jovens. Ato infracional.


Violência. Análise de Implicação.

1. INTRODUÇÃO

(...) Tudo isto diz respeito à relação com o outro, e é por isso que a
chegada de um “estranho” estremece a segurança cotidiana. O
estranho seria a síntese da “sujeira” automática, autolocomotora e
autocondutora. É por isso que as sociedades lutam por classificar,
separar, confinar ou aniquilar os estranhos.(BATISTA,2003,p.78).

De acordo com Batista (2003) e Foucault (2001), aquilo


que se apresenta como estranho e monstruoso às nossas
práticas nos desperta o desejo de classificar, confinar, separar,

86 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


compreender, conceber a origem. Ao longo do último ano, nosso
grupo de estágio e pesquisa da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro passou a ter como prática quinzenal a ida a uma unidade
masculina de internação provisória do DEGASE. Campo
de estágio e pesquisa que a cada encontro nos desperta afetos,
atravessamentos, borbulhando inquietações e questionamentos.
O DEGASE é um órgão responsável pela
Socioeducação de adolescentes, baseando-se nos princípios
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).
Encontra-se ligado, neste momento, à Secretaria de Estado de
Educação. Foi em uma unidade deste sistema que fizemos rodas
de conversas com adolescentes, nas quais abordávamos os
mais diversos assuntos. Costumávamos levar propostas
disparadoras, como o ato infracional, parentalidade e família,
audiência judicial e código penal. Os grupos duravam em
média 1 hora e 30 minutos, compostos por 4, 5 estagiárias, a
supervisora e em média 6 a 8 meninos.
Nenhuma das estagiárias havia ido anteriormente a
uma instituição de privação de liberdade para adolescentes
e, a partir das nossas idas e experiências, nos deparamos
com questões nunca antes pensadas, com lugares nunca antes
ocupados. Questões como gênero, violência e juventude foram
e ainda são constantemente abordadas e em geral atravessam
nossas conversas, mesmo que não encabecem a temática do
dia. Considerando que somos seres social e historicamente
construídos, somos atravessadas por estereótipos e pré-conceitos
disseminados culturalmente, pela mídia, e às vezes até mesmo
pelo meio acadêmico sobre esses meninos. Concepções socialmente
difundidas como do “menor delinquente ou infrator”, do “pivete
perigoso” eram inegavelmente agenciadas previamente às idas
ao campo e até mesmo de forma privilegiada em alguns
momentos. O Medo e a insegurança nas grandes cidades
parecem dominar este campo Os jovens do DEGASE, assim,
em muitos momentos ocupavam o lugar do corrigível incorrigível

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 87


(FOUCAULT, 2001), passíveis de uma correção coercitiva. A fama
de ter sido uma unidade muito violenta no passado também
habitava o início do nosso trabalho.
Tendo como proposta norteadora a pesquisa-intervenção,
foi por meio dos encontros com os adolescentes que a pesquisa
se produziu. A partir do nosso posicionamento ético,
estético e político, buscamos fazer constantemente o exercício
de desconstruir a ideia de que seríamos especialistas detentoras
de saberes e optamos por seguir na direção do “pesquisar-com”
esses meninos em situação de privação de liberdade. O formato
de rodas de conversa facilitaria uma relação menos verticalizada,
mais transversal.
Por compreendermos o perigo de, como ciência,
naturalizarmos as demandas no sentido de vasculhar o outro
para encontrar uma explicação daquilo que nos parece diferente
ou estranho (BATISTA, 2013; FOUCAULT, 2001), temos
por objetivo, neste trabalho, discutir de que maneira estar
nesta instituição nos afetou, quais os deslocamentos e rupturas
promovidos nos encontros em ideias e hábitos que já havíamos
construído socialmente, colocando-nos em questão, e não o
outro, o estranhamento, e não aquilo que é visto como estranho.
Também pretendemos pensar nos desafios que este trabalho nos
impõe ou propõe, pré-conceitos que ainda precisamos superar,
além de temáticas como a relação entre criminoso versus vítima,
marcadas por gênero e violência e que nos convoca enquanto
aquelas que habitamos o “outro lado”.

2 METODOLOGIA
A partir de supervisões semanais, começamos a conversar
em equipe sobre nossos encontros com os adolescentes, trocando
vivências e afetações, buscando traçar relações entre o que
vivemos e as teorias que estudamos. Privilegiamos autores
como Michel Foucault (2008), Suely Rolnik (1995), Gilles Deleuze
e Félix Guattari (2014), como base teórica para nos acompanhar
em nossa empreitada. Buscamos discutir acerca do DEGASE,

88 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


colocando em análise os diferentes atores que compõem a cena
como jovens, técnicos, bem como as diversas instituições que os
atravessam como a instituição Socioeducação, atravessados pela
nossa análise de implicação enquanto pessoas psi da Universidade.
Traçamos como alguns pontos principais: a violência em
suas mais diversas faces; as relações de gênero, principalmente
entre nós, estagiárias, e os adolescentes, todos homens; os
lugares pré-estabelecidos de vítimas e criminosos; e também
as relações de poder na instituição. Pensamos na nossa
implicação no campo, nossas reproduções e produções de
diferença em relação à Socioeducação, bem como no impacto
das atividades para nossa formação como psicólogas, mas,
acima de tudo, como sujeitas sociais vivendo em uma cidade tão
propagada como violenta.
Buscamos também analisar nossos diários de campo,
pensando nos relatos produzidos em grupo: o que surgiu de
mais impactante em cada encontro, como isso nos afetou e
os direcionamentos que demos para as nossas experiências. Foi
a partir deste conjunto de relatos e experiências que traçamos
algumas discussões.
A partir do momento em que se deseja transformar
para conhecer o campo inserido, entende-se que, para isso,
é preciso comprometer-se com a construção de produção de
conhecimento, por isto o conceito de implicação é tido como
a pedra angular deste modo de pesquisar. Como proposta
metodológica, nos debruçamos sobre a cartografia proposta
por Deleuze e Guattari (2014).
Em nossa cartografia operam modelos de persistência
- também denominadas linhas duras - referentes a modelos
totalizadores, rígidos e hegemônicos, as linhas flexíveis e
as linhas de fuga, aquelas em que políticas totalizadoras não
se sustentam, provocando rupturas, e o nascimento de novas
possibilidades transformadoras (DELEUZE; PARNET, 1996). É
preciso ressaltar que a cartografia não é um método estático,
mas sim continuum, pois constitui-se também nas variações que

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 89


se produzem durante as relações, tendo o agenciamento como
importante dispositivo para viabilizar a aproximação entre o
instituído, ligado à força de conservação, ordem e identidade da
instituição e as novas possibilidades de instituinte, de forças
de mudança. Nós, cartógrafas, adentramos os portões e os muros
do DEGASE com nosso corpo vibrátil, fundamental para esta
pesquisa. Cheiros, barulhos, silêncios, animais que cruzam o
caminho, disputas na escolha dos lugares para o grupo...
A cartografia considera a transversalidade dos vínculos,
as possibilidades do ir e vir da institucionalização, no esforço
da desconstrução de discursos naturalizados e universais das
instituições. O Sistema Socioeducativo, por sua vez, tende a
classificar, definir e naturalizar os meninos como pessoas-objeto
dentro de uma lógica de relações verticais de poder e, muitas
vezes, funciona como mais um mecanismo de disciplinarização
e segregação, ao invés de inserção. A internação acaba por
seguir a lógica do aprisionamento, não só dos corpos, mas
das ideias, afetos e saberes, dificultando as possibilidades de
potências. (LEITE, 2014).

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
Em nosso estágio, que tem por metodologia a Análise
Institucional, fomos convidadas a colocar em análise os discursos
instituídos em nossa sociedade sobre jovens que cometem ato
infracional, seja pela opinião pública ou pela mídia, e que
muitas vezes são reforçados pelo discurso acadêmico. Com os
crescentes dados de violência no Brasil e, principalmente, no Rio
de Janeiro, o discurso de ódio e de intolerância a esses jovens que
são acusados de ato infracional tem crescido exponencialmente
nos últimos anos. O modelo socioeducativo é colocado em
questão, o que interessa é simplesmente pedir a punição desses
meninos e a redução da maioridade penal. A cada dia aumenta
o distanciamento de cuidado, carinho ou proteção entre esses
jovens e a sociedade. Supostamente, eles mereceriam a morte,
o linchamento, como colocado por um dos meninos no grupo: “é,

90 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


a população também vem pra cima de nós, 155 também é estratégia se tu
não for menor sagaz, saber dar pinote na rua, tu tá ferrado, população não
tem pena não” (Nícolas, 17 anos).
A nós, estagiárias, como mulheres e estudantes de
Psicologia que cotidianamente se deslocam pela cidade, a
diversidade e a intensidade desses discursos constantemente
atravessam-nos. Andar por certos territórios da cidade é sentir
ressoar o discurso do medo, acionar o andar mais rápido ou
atravessar a rua, ao avistar sujeitos com determinados traços
que reconhecemos como suspeitos. Quando a mídia decreta tais
lugares como perigosos, evitamo-los. Regulamos nossas roupas
e comportamentos em público. Questionamo-nos sobre como
será, quando formos vítimas de um assalto, em que os diferentes
lugares de assaltada e assaltante se encontram. Como reagiremos?
Como lidaremos um com a reação do outro? E se nosso impulso
for correr, reagir ou nos defender?
Os adolescentes que conhecemos no DEGASE se
encontravam ali por diversos motivos, tendo, em sua maioria,
relação com o tráfico e/ou roubo. Embora sem a possibilidade
de trocarmos de lugar ou misturar nossas posições, todos nós
estávamos inseridos nos mesmos territórios do Rio de Janeiro,
territórios do medo, da tensão de circular na cidade, de ter que
encarar a surpresa do encontro em um assalto, quando suas
vidas também correm riscos, assim como as nossas. Como para
todas nós estagiárias era a primeira vez que íamos a campo em
uma unidade masculina, tínhamos alguns receios do modo como
se dariam esses encontros: pelos estereótipos que, apesar dos
esforços de desconstrução, ainda carregávamos? E, pelo fato
de sermos todas mulheres, será que nos respeitariam? O
que é esta categoria respeito que aparece tão fortemente
como balizadora dos discursos? Será que sofreríamos
alguma agressão? Agressão de que tipo e por parte de quem
exatamente? Que olhares seriam possíveis em direção a esses
jovens, com o medo como um forte atravessamento? Em
que nossa presença impediria o diálogo? O que nos leva a estas
atividades e o que os motiva ou os obriga a estar conosco?

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 91


Em nosso primeiro encontro, o lugar dado pelos meninos
a quem reage a um assalto se apresentou a nós como um
analisador, fazendo-nos experimentar os mesmos territórios que
habitamos a partir de outras posições no cotidiano. Para eles,
estar no encontro de um assalto é um risco eminente, e qualquer
esboço de reação de outrem “É errado, porque tu tá tentando contra
minha vida, geralmente quem tenta reagir é como, é p2”; “Nós já vai
na pista pra matar ou morrer, antes de chorar minha mãe, chora
a mãe dele.”; “Toda ação tem uma reação” (Antônio, 17 anos).
Experiências deles e de outros colegas reafirmam o lugar do
matar ou morrer, da necessidade de se defender: “Já aconteceu
de parar nós no sinal e o cara arrancar com o carro, prendeu a
gente no muro, se nós não atira, nós fica como?” (Antônio,17
anos). A reação ameaça inverter a relação de poder que orienta
uma situação de assalto, por exemplo, fazendo com que se
precise reafirmar quem está no comando. O risco iminente de
transformar o assaltante em vítima precisa ser logo aniquilado
e cogitar este risco é ofensivo para quem está na posição de
ladrão ou de bandido, como eles se nomeiam.
A maneira como alguns disseram perceber as outras
pessoas quando estão na rua também nos apresenta outra
perspectiva do encontro do assalto. Qualquer um pode oferecer-
lhes riscos, além de que, segundo alguns relatos, a maioria da
população não teria medo da ocasião e/ou porque, hoje em dia,
é fácil recuperar um bem perdido: “Com todo respeito, a maioria
não tem medo não, até mulher já reagiu, e ela era lutadora, já pegou de
costas já e pá” (Marcelo, 17 anos); “Muitas vezes, quem sai sem reagir é
porque sabe que o seguro vai dar outro” (Vagner, 17 anos) - referindo-
se a roubo de carro. Para nós que os ouvimos, foi perceptível a
distância dos nossos discursos, o que trouxemos para o
encontro, compartilhando com eles isso. Contando histórias nossas
de assalto, mas do outro lado. Aos nossos olhos, se reagimos, isso
podia ocorrer pelo nervosismo do momento, e o assalto significava,
para nós, mais do que a retirada de um objeto. Era um momento de
constatar encontros com olhares muito distintos, ficamos de lados

92 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


diferentes, mas ali conseguimos construir um espaço para falar
de nossas transversalidades. Não havia busca de consenso,
mas de um comum (KASTRUP; PASSOS, 2013), experimentações
heterogêneas, mas que podem fazer sentidos.
Como dito, o receio nos atravessava, por estarmos em
um grupo composto somente por mulheres em uma unidade
masculina, o que, de certa forma, era reforçado pelo clima da
unidade. O lugar de fragilidade socialmente colocado para o
feminino nos dava uma sensação de vulnerabilidade, ao mesmo
tempo em que experimentávamos certa tranquilidade dada pela
diferença das grades que, uma vez atravessadas, propiciavam
nosso contato. Mas, justamente por essa vulnerabilidade, eles nos
relataram que não éramos consideradas os principais alvos, como
outrora pensávamos: “É igual teu pai, teu pai vai saber se defender,
a mulher não vai saber se defender” (Nelson, 17 anos). Um misto de
respeito, proteção, fragilidade, destinados ao feminino, retrato de
uma sociedade patriarcal e machista e que também atravessa
os discursos dos meninos e os constitui.
Como estudantes de Psicologia, estamos cotidianamente
em contato com discursos de cuidado, pensando em recursos
disponíveis a cada uma para lidar com a dor e a frustração,
sendo para nós a psicoterapia destacada como o veículo mais
recorrente, mas certamente não o único. Estar em contato com a
alteridade nos fez avistar realidades outras, diferentes das nossas,
lidar com afetações que perpassam todos nós. Um dos meninos
relatou ter ficado mal e com muita raiva quando sua mãe passou
por uma situação de assalto, e encontrou, à sua maneira, uma
forma de lidar com o que sentia “Eu tava uns 15 dias sem roubar,
minha mãe foi trabalhar 5h30 da manhã, roubaram o celular dela,
ela voltou chorando. Saí e roubei mais 20. Se minha mãe chora, a dos
outros vai chorar também” (Alex, 17 anos). Proteção? Vingança?
Afeto? Frustração?
Ter a oportunidade de conhecer outras histórias e outros
afetos, parecidos e diferentes dos que temos atualizados, não anula
os medos e tensões que podemos sentir ao andar pela cidade, nem

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 93


ao estar em uma instituição de internação para cumprimento
de Medidas Socioeducativas que, com tudo o que acontece
neste momento de superencarceramento e superlotação, pode
ser um barril de pólvora. Mas nos faz colocar em análise os
discursos que nos ressoam, as tensões que nos perpassam em
discurso, corpo e afeto. Promove em nós deslocamentos para
posturas que escolhemos ocupar, uma postura de proximidade,
em troca da de ódio e distanciamento. Uma postura em que nos
percebemos, todos, em uma realidade de violência que, por vezes,
reforça olhares individualizantes e estigmatizantes. Escolher
tais posturas é compreender que somos seres atravessados
não somente por dualidades de discursos, mas constituídos
de forma rizomática, redes de perspectivas advindas das mais
diversas experiências. E vamos nos conectando com os afetos que
se apresentam.
O risco a que somos submetidas todos os dias na cidade
é real, o medo ainda nos acompanha. Mas estar sentadas em
círculo por algumas horas com esses adolescentes internados
nos permite uma conexão e um vínculo ao diferente, mesmo que
talvez um dia, fora daquele espaço, acabemos nos reencontrando
em uma situação de violência, exercendo e reforçando lugares
antagônicos e estereotipados de criminosos e vítimas. Violência que
não encontra no adolescente em conflito com a lei, ou na
comunidade, o seu ponto de partida. Observamos que todos
nós estamos, em uma múltipla relação de força, capturados nessa
rede rizomática, em que a violência nos atravessa por diversos
lados e de maneiras diferentes na sociedade em que vivemos.
As frases ditas pelos adolescentes, além de nos impactar
e surpreender, fizeram com que nos deparássemos com
outras lógicas, outros sentidos. Deslocamo-nos dos nossos
lugares, entendendo, ainda sim, que, apesar de ocuparmos
outro espaço, estes permaneciam sendo diferentes dos deles.
Porém, isso não nos impedia de pesquisar-com. Os encontros nos
possibilitaram outro tipo de prática de pensamento, como
salienta Rolnik (1995): uma passagem entre a consciência, no

94 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


sentido do estabelecido e esperado e o inconsciente, aquilo que
está à sombra, o diferente e desconhecido. Foi nesse entre que se
deram agenciamentos e deslocamentos, nos convidando a todo
o momento a ir de encontro à heterogeneidade trazida nas
idas a esta unidade.
As atividades surgiram - e surgem - em conjunto com
os meninos, a partir de uma necessidade de se pensar
novas formas de expressão, traçando cartografias que
nos proporcionaram “indagar e estar atento a como se dá o
processo de reprodução e a criação em determinada realidade”
(ROMAGNOLI, 2014, p. 49). Durante os encontros
pudemos compartilhar vivências e experiências para além do ato
infracional e, por vezes, nos deparamos com diferentes modos de
pensar e existir, diferença essa que se dava entre os próprios
meninos, seja em relação à reação da vítima e do assaltante, seja
na construção de um Código Penal que eles desenvolveram
a partir dos crimes que julgavam mais ou menos graves,
ou ainda na ideia que tinham de família. Outras vezes, nossas
opiniões iam de encontro às das deles, e isso também nos
possibilitou aberturas e rupturas de pensamentos e, mais uma
vez, deslocamentos. A cada ida, experimentamos processos de
inconstâncias e atravessamentos e, com isso, conforme destaca
Rolnik (1989), nos permitimos as transformações e trabalhamos
com o corpo vibrátil. Corpo aberto, que se deixa afetar, que afeta.
Mergulhamos no que Rolnik (1995) denomina de invisível
da alteridade, e nos permitimos afetar e sermos afetadas,
atentas nesse vai-e-vem rizomático, entendendo que isso não
se dá de forma estática e/ou definitiva, mas que se constitui
junto com o instituinte e que possibilita invenções contínuas da
institucionalização. Por essa razão, o caos, ou seja, aquilo que
não está dentro da norma, é visto aqui como mais uma
das possibilidades de transformações. Os meninos que estão ali
reforçam e escapam da norma, trazem o inesperado e diferente,
e nos disponibilizarmos a desestabilizar essas diferenças
contribuiu para potencializarmos o alcance a diferentes

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 95


sensações - ao invisível que propicia nosso corpo vibrátil.
Reconhecer as diferenças nos deu a oportunidade de promover
novos territórios, territórios estes que não são fixos, mas que
fazem parte do ciclo de construção-desconstrução-reconstrução.
Eles eram forçados a ouvir outros relatos de vítimas. Relatos,
não a adrenalina do encontro que gera uma reação rápida, nem
sempre a desejada, mas em geral a justificável.
Podemos dizer que chegamos lá com nosso homem da ética
um pouco adormecido, enrijecido pelo homem da moral, aquele
mergulhado na subjetividade do visível, das normas sociais, dos
conjuntos de regras, ligado à nossa sobrevivência, e, por isso,
necessário. Mas, conforme as idas foram se dando, e, com elas
as aberturas de sentido, a partir dos encontros com os meninos
que foram acontecendo, despertamos o homem da ética, pois
nos permitimos ser afetadas pelas diferenças e sensações,
abarcando novos modos de existência. Isto nos possibilitou
criar e desfazer composições vigentes, nos permitiu desfazer
estereótipos, não no sentido de uma desconstrução em prol da
reconstrução, mas como uma suspensão necessária ao processo.
Contudo, vale salientar que, ao suscitar o homem da ética,
não anulamos o homem da moral, mas reconhecemos nossa
subjetividade para além deste visível, dando atenção também
para o que está à sombra - isto faz parte da processualidade da
existência,conforme destacado por Suely Rolnik:

O homem da ética vai dando seus saltos a cada aparecimento


de uma diferença; e a cada vez que isso acontece, o homem da
moral é sacudido em sua rotineira tarefa de guia turístico de
uma passagem estável, e se vê obrigado a aprender a operar numa
paisagem desconhecida. (ROLNIK, 1995, p.11).

4 CONCLUSÃO

A pesquisa, enquanto método cartográfico, é construída


e constituída a cada ida à unidade onde trabalhamos, mas
também a cada contato com o DEGASE, seja através de nossas

96 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


idas a reuniões, seminários, através da mídia ou do contato com
profissionais que lá trabalham ou nas conversas no carro, rumo
à UERJ, no pastel que comemos ao sair da unidade. Entretanto,
esta construção não é rígida, pelo contrário, é feita por meio das
instabilidades e possibilidades dos e nos encontros. O contexto da
Socioeducação, dentro de uma instituição como o DEGASE, é
por vezes atravessado e alimentado pelo medo, controle e
estereotipização dos meninos e meninas que ali estão. Nosso lugar
de estudantes de Psicologia não é de buscar uma verdade, nem de
reduzir esses sujeitos aos atos cometidos, mas sim de possibilitar
agenciamentos coletivos que promovam alternativas, ainda
que no micro, de práticas e modo de existências, até mesmo
para nós, inclusive quando ouvimos discursos que os meninos
fabricam, porque têm certeza que é isso que buscamos indo lá,
psicólogas que somos, e esperamos que eles sejam outras pessoas.
E isso se deu através das atividades com as quais conseguimos
acionar o homem da ética, aquele à sombra (ROLNIK, 1995) e
permitimo-nos afetar e sermos afetadas pelos discursos que
ali perpassavam. A partir disso, analisamos nossa implicação, os
atravessamentos e deslocamentos provocados pela pesquisa como
parte inerente ao processo de subjetivação, o que também nos
possibilita olhar o diferente como modo de produção deste
mesmo processo – que ocorre de diversas formas. Mas que se
enrijece pelas práticas institucionais que desejam, muitas das
vezes, excluir os diferentes e as diferenças.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 97


REFERÊNCIAS

BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois


tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan; 2003.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Rizoma. In: Mil Platôs: capitalismo
e esquizofrenia. v. 1. São Paulo: Editora 34, 2014.
DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. Paris: Flammarion, 1996.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008.
FOUCAULT, M. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
KASTRUP, V.; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano
comum. Fractal: Revista de Psicologia, [s.l.], v. 25, n. 2, p. 263-
280, maio/ago 2013.
LEITE, M. P. V. Cartografar (n)a prisão. Estud. pesqui. psicol.,
[s.l.], v. 14, n. 3, p. 795-813, 2014.
ROLNIK, S. À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética
e reinvenção da democracia. In: MAGALHÃES, M.C.R. (org.).
Na sombra da cidade. São Paulo: Escuta, 1995.
ROLNIK, S. Cartografia sentimental. Transformações
contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.
ROMAGNOLI, Roberta Carvalho. O conceito de implicação e a
pesquisa-intervenção institucionalista. Psicologia & Sociedade,
[s.l.], v. 26, n. 1, p. 44-52, 2014.

98 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


ADOLESCENTES EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE E
TERRITORIALIDADE: REFLEXÕES SOBRE DEMANDAS
EM POLÍTICAS PÚBLICAS

Maria Tereza Azevedo Silva


Leandro Soares de Sousa
Maria Helena Zamora

RESUMO
O presente artigo apresenta reflexões sobre
territorialidade e políticas públicas, compreendendo relações
existentes nos territórios nos quais vivem adolescentes em
conflito com a lei e as possíveis demandas existentes. Trata-se de
resultados parciais da pesquisa com adolescentes em medida de
internação no Departamento Geral de Ações Socioeducativas:
“Trajetórias de vida e escolar de jovens em situação de risco
e vulnerabilidade social”, realizada em parceria do Degase
com a Universidade Federal Fluminense, em 2016. O foco
deste trabalho são os aspectos relacionados à territorialidade,
políticas públicas e enfrentamento de discriminações a partir
do lugar social de pertencimento. A análise desses resultados
objetiva contribuir com as políticas públicas da juventude.

Palavras-chave: Adolescente. Territorialidade. Racismo. Políticas


Públicas.

1. INTRODUÇÃO
A Pesquisa “Trajetórias de vida e escolar de jovens
em situação de risco e vulnerabilidade social” - Pesquisa
“Trajetórias” - (DEGASE, 2018) proporcionou a constatação
de demandas diferenciadas, surgidas na participação dos
adolescentes, que evidenciam a necessidade de revisão em ações
realizadas pelas políticas públicas da infância e juventude, tal
como o enfrentamento da violência social, racial, institucional e
policial. A diretriz da proteção integral da infância e juventude
preconiza que toda e qualquer criança e adolescente é sujeito

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 99


de direitos, respalda e exige o respeito à condição especial de
pessoa em desenvolvimento (Constituição Federal, 1988).
Obstáculos estruturais ainda impedem a implantação integral
deste paradigma, levando a vivências de violações de direitos e
mesmo da negação de direitos pelos cidadãos ou até mesmo por
parte do próprio Estado.
A criação de um projeto de vida pelo adolescente é parte
do processo socioeducativo, momento em que a oportunidade real
de retornar à liberdade leva ao enfrentamento de um problema,
se considerarmos a oferta de políticas públicas existentes diante
da demanda. Na atualidade, o Sistema socioeducativo do Rio de
Janeiro ainda precisa de sistematização e alinhamento na atenção
ao núcleo familiar nas suas unidades (SILVA, 2018). Também é
uma realidade o número elevado de encaminhamentos a medidas
privativas de liberdades feito pelo Poder Judiciário, assim como
se encontra, no meio social e institucional, a continuidade da
violência com a juventude negra no estado, assinalando o não
alcance dos objetivos de políticas públicas voltadas à infância,
adolescência e juventude, confirmada com a existência de famílias
em situação de miséria ou outras violências. Tudo isso mostra
a necessidade de se repensar tais políticas e suas ações para
alcançar melhores resultados também na Socioeducação.
A ausência de apoio que deveria ser garantido pelos
órgãos públicos nas ações tanto na área da Saúde, Educação,
Segurança e outras são evidentes no cotidiano e na mídia, o que
ressalta as violações de direitos existentes, como assassinatos
de jovens desaparecimento de pessoas e inexistência de
recursos em setores essenciais. Uma questão de relevância
é a possibilidade de transformação da realidade atual, com
políticas públicas eficazes.

100 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


2 REFLETINDO SOBRE OS ADOLESCENTES E SUAS
IMPLICAÇÕES

O Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990)


abre a perspectiva de superação de práticas assistencialistas e
opressoras, advindas de um paradigma punitivo, pautado em
legislação anterior, na área da infância e juventude. O Estatuto
redireciona as ações para um paradigma socioeducativo também
com os adolescentes em conflito com a lei, na definição de
garantia de tratamento protetivo às pessoas em desenvolvimento,
na promoção de subsídios à participação social e ao exercício
da cidadania. A reflexão em torno das trajetórias de vida
desses adolescentes está relacionada à implicação da sociedade,
família e estado, de uma forma geral, em suas responsabilidades,
em diferentes setores, no lidar com especificidades como o
enfrentamento de violências, a existência de vulnerabilidades
diante de um desequilíbrio das reais oportunidades que surgem
entre classes sociais, gênero e raça, bem como tudo que cerca o
desenvolvimento de pessoas em formação. O aparato das políticas
públicas não deveria permitir a reprodução de discriminações ou
o impedimento do exercício de seus direitos, porém adolescentes
em conflito com a lei, em geral, estão expostos à violência,
discriminação, racismo, exclusão social e outras violações.
As dificuldades existentes e reconhecidas no Sistema
Socioeducativo do Brasil, apresentadas em documentos como
o Relatório da Infância e Juventude, do Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP, 2013) e o Levantamento Anual SINASE
2016 (BRASIL, 2018), reafirmam situações como a superlotação, a
não superação da violência institucional na interação com os jovens,
as dificuldades no embate com o Poder Judiciário, enfrentamento
de discriminações no acolhimento e inserção do adolescente
no meio social, entre outras, que reforçam a importância de se
intensificar a presença de diálogo e compromisso de outras
instâncias intersetoriais. Deve-se investir na força do coletivo, com
os adolescentes e familiares participando do processo para

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 101


trilhar o caminho na garantia dos direitos, não se curvando ao
“difícil de mudar”, mas enfrentando a violência institucional,
social, o descaso e a falta de sensibilidade aos graves problemas
existentes (SILVA, 2018).

3 A PROPOSTA
O conceito de Socioeducação, na área da infância e juventude,
vem associado às propostas de transformações nas políticas
públicas voltadas aos adolescentes autores de atos infracionais,
que ao serem apreendidos e encaminhados para o Sistema
Socioeducativo demandam ações que invistam numa reflexão
acerca de seu futuro, de seus atos, na construção de seu projeto
de vida, assim como ações que efetivem uma real oportunidade
de inserção social, no investimento de seu desenvolvimento
através de sua escolarização e profissionalização e a garantia da
possibilidade de exercício de sua cidadania.
Como tema principal, o trabalho se volta à importância
de provocar reflexões acerca da necessidade de investigação de
relações georreferenciadas e suas inter-relações com demandas de
políticas públicas nos territórios de referência dos adolescentes
em conflito com a lei, em cumprimento de Medida Socioeducativa
de Internação no Rio de Janeiro, em unidades do DEGASE. A
pesquisa Trajetórias foi um trabalho desenvolvido por equipe
interdisciplinar, da qual dois autores deste artigo fizeram parte
como pesquisadores, junto à equipe composta por servidores
do DEGASE e pesquisadores da Faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense. Uma leitura parcial de alguns
dos resultados desta pesquisa será apresentada neste trabalho
acerca do levantamento territorial dos recursos existentes nas
áreas de convivência familiar e comunitária desses adolescentes.
Contribuições para políticas públicas na Socioeducação
surgem a partir destes resultados, para investimento em
mudanças na conjuntura atual e futura no que diz respeito
aos adolescentes e suas famílias também em seu meio social,
na articulação intersetorial preconizada pela lei nº 12.594/2012,

102 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


conhecida como lei do SINASE (BRASIL, 2012), que instaura
princípios reguladores para o Sistema Socioeducativo. O
reconhecimento de suas realidades leva a uma adequada
contextualização do que está relacionado ao que o envolveu com
o cometimento de atos infracionais, que se encontra além do
universo pessoal, mais restrito, abrangendo o macrossocial.
A abordagem às falas e percepções, o reconhecimento das
histórias desses jovens, como se dá a convivência familiar e
comunitária e seu entorno social, a realidade na qual está inserido
e as relações com as instituições representativas da sociedade,
tudo isto promove uma abertura a novos caminhos a serem
trabalhados pelos operadores do Sistema Socioeducativo, para
o alcance de melhores e duradouros resultados.

4 REFLETINDO COM OS DADOS EXISTENTES


Analisando dados nacionais do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE, no Censo demográfico de 2010,
no que se refere à população jovem na faixa etária entre 15 a 17
anos – tem-se 4.378.066 de brancos, que representam (42,3%)
dos jovens; 747.651 são pretos (7,2%); 5.071.877 são pardos
(49,0%); 104.193 são amarelos (1,0%); 50.749 são indígenas (0,5%).
Somando pretos e pardos, teremos 56,2% da população de 15 a
17 anos. No “Levantamento anual dos adolescentes em conflito
com a lei”, realizado pela Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República, em 2012, é apresentado o resultado de
que, no cumprimento de Medida Socioeducativa de Internação,
a maior predominância é de adolescentes do sexo masculino,
negros, vivendo em situações de subsistência precária, e com
baixa escolarização (BRASIL, 2013). Em estimativas realizadas
sobre as condições de vida da população brasileira, dados do
IBGE, publicados em 2016, trazem resultados que apresentam
pretos e pardos representando 54% da população nacional, no
entanto, sendo 75,5% dos 10% com menores rendimentos
(contra 23,4% de brancos), ao mesmo tempo em que eram
apenas 17,8 % do percentual de 1% das pessoas com os maiores

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 103


rendimentos, contra 79,7% de brancos (IBGE, 2016). A população
negra, entre 15 a 17 anos, no Brasil, apresenta percentual de
56,2% e é mais ainda representativa no Sistema Socioeducativo
nacional (60%) e no estado do Rio de Janeiro alcança o total de
78%. Os jovens do Sistema Socioeducativo são marcados,
além de tudo, pela baixa renda: 20% ganham até 1 salário
mínimo e 26% mais de 3 salários mínimos. Estes dados
foram reafirmados na Pesquisa “Trajetórias” (DEGASE, 2018),
na qual 76,2% dos adolescentes internados em cumprimento
de Medida Socioeducativa do Rio de Janeiro é de cor negra ou
parda, e a maioria vive dentro de uma realidade precária
de subsistência, tendo-se o percentual de 64,5% de adolescentes
que ingressam na vida do trabalho entre 10 e 15 anos de idade.
Os dados apresentam o percentual de 55,1% de adolescentes que
informam ter a renda familiar até três salários mínimos e 68,4%
das famílias compostas com quatro ou mais pessoas, constatando
um valor mensal de baixa renda para toda a família. Tais dados
confirmam uma situação de exclusão e discriminação social
perversa na qual a grande maioria se encontra.
O enfrentamento por que passam as favelas, no estado
do Rio de Janeiro, como territórios estigmatizados, exprime
os efeitos da segregação social, marcados pelo corte racial,
evidência da criminalização da pobreza, da vitimização de
crianças e adolescentes, bem como da população mais pobre. As
violações de direitos são cometidas até mesmo pelo próprio
Estado e seus agentes e evidenciam-se por se voltar de forma
discriminatória a uma parte da população (ZAMORA, 2014).
O Mapa da Violência de 2013 aponta a constatação de que
a maior parte dos homicídios tem como vítima os homens,
em percentual de 93%, na maioria jovens e afrodescendentes
(WAISELFISZ, 2013), oriundos de regiões menos favorecidas no
cenário sociopolítico.
Apesar de muitos enfrentamentos vividos pela população
destas regiões, os dados informados na Pesquisa “Trajetórias”,
referentes ao território dos adolescentes, no que se refere à existência

104 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


de energia elétrica, apresentam 97,1% dos jovens informando
acesso a este serviço em suas casas. 89,3% afirmam ter o serviço de
fornecimento de água encanada em sua residência, e a maioria dos
jovens, no total de 74,6%, afirma que há tratamento de esgoto em
sua região. Assinalam, assim, que estão razoavelmente satisfeitos
com a atuação do Estado, na garantia de serviços básicos
de sua responsabilidade, como energia elétrica, fornecimento
de água, saneamento básico, dentre outros. É importante avaliar
como estes serviços existem e realmente como funcionam, bem
como verificar ainda os motivos de sua não implantação em
todas as regiões.
Estudos realizados, por exemplo, pelo Observatório de
Favelas, “O que é favela, afinal?” (2009), que compreende a
favela como um território constituinte da cidade, observam que
este espaço é referido com aspectos que ficam em torno de uma
insuficiência de investimentos pelo Estado e mercado imobiliário,
financeiro e de serviços. Assinalam este espaço territorial lidando
com forte estigmatização socioespacial e tendo características
bem específicas, tais como: construções, em sua maioria,
caracterizadas por serem obras de seus próprios moradores
e fora dos parâmetros definidos pela prefeitura ou órgãos
responsáveis; alta densidade de habitações; indicadores
educacionais, econômicos e ambientais abaixo da média da
cidade; alto índice de subemprego; densidade demográfica com
taxa elevada, acima da média do conjunto da cidade; alto grau de
vulnerabilidade ambiental; alta concentração de negros (pardos e
pretos) e descendentes de indígenas; alta incidência de situações
de violência, sobretudo a letal, mais elevada que a média da
cidade; relações de vizinhança singularizadas por sociabilidade e
valorização dos espaços de convivência (SOUZA e SILVA et al,
2009, p.22-23).
Na Pesquisa “Trajetórias” encontram-se dados que vêm
ao encontro dos levantamentos nacionais feitos no Sistema
Socioeducativo, alguns destes apresentados mais adiante, tais
como: alto índice de evasão escolar; interação conflitiva com

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 105


a escola que demanda intervenções; o não investimento pelo
adolescente no processo educativo, provocando, inclusive, uma
relação agressiva com os professores, acompanhados de
percepções negativas acerca da sociedade e dos aparelhos de
segurança do estado.
Evidencia-se a necessidade de compreendermos o que
leva esses jovens a não estarem na escola. Os dados apontam um
percentual de 43% de jovens de 15 a 17 anos que não frequentam
a escola há 1 ano ou mais, 15% entre 6 meses e 1 ano e 12% a
menos de 6 meses. Um total de 63,6% dos jovens está fora da
escola há mais de 1 ano, 20,4% entre 6 meses e 1 ano e 16% a
menos de 6 meses.
A gravidade da situação da exclusão, discriminação,
vulnerabilidade e fragilidade de tantas vidas se apresenta dentro
de um contexto neoliberal, no qual se faz cotidiana a falta da
segurança estatal, bem como a violência se coloca como a tônica
desta interação, manifesta através de violação de direitos e
criminalização de uma população mais vulnerável, pré-concebida
como de risco. Podemos observar que os atingidos são os mesmos
que enfrentam a precariedade da garantia de direitos, na
qual, intersetorialmente, deveriam estar articuladas as áreas
de Saúde, Educação, Cultura, profissionalização, moradia,
transporte, entre outras (ZAMORA; CANARIM, 2009, p.164).
No cotidiano institucional socioeducativo, no
acompanhamento aos adolescentes e suas famílias, pode se
constatar o enfrentamento de dificuldades em suas histórias,
impasses e violências sofridas e cometidas. Na sociedade, do
esquecimento e omissão, passa-se a uma atitude condenatória
que percorre o caminho para a ação de repressão e punição como
medidas sancionatórias (WAISELFISZ, 1998), quando a
proposta da Socioeducação acena, dentro de outra doutrina,
para outro rumo com as Medidas Socioeducativas. WAISELFISZ
(2015) aborda a evidência de jovens somente ocuparem
espaço na consciência social quando noticiado um crime
ou ato infracional com sua participação e assim apresentados

106 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


como delinquentes ou criminosos. De acordo com o Mapa da
Violência de 2016, segundo estimativas do IBGE (2015), os jovens
de 15 a 29 anos de idade representavam, aproximadamente, 26%
da população total do país, mas a sua participação no total de
homicídios por armas de fogo mais que duplica, chegando a 58%,
alcançando um quantitativo de 23.100 jovens negros assassinados,
completando um total de 63 vidas perdidas por dia, média de um
jovem a cada 23 minutos.
A Convenção Internacional de Direitos da Criança, de
1989, é considerada o principal instrumento de proteção integral
dos Direitos Humanos para todas as crianças. A Convenção, no
artigo 37, trata das condições da privação de liberdade. As
Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração
da Justiça da Infância e da Juventude, conhecidas como
Regras de Beijing, de 1985, apresentam princípios referentes
a uma política construtiva e preventiva para lidar com o
adolescente que cometeu um ato infracional e o foco é sua
proteção social, investindo na possibilidade de evitar a passagem
institucional, visando o seu bem-estar e as oportunidades para
seu desenvolvimento. Esse documento se refere à realização de
um estudo cuidadoso sobre cada caso, o meio de convivência e
as circunstâncias de vida do adolescente, as condições existentes
no momento do ato infracional, todas as variáveis em torno de
sua história e o trabalho feito na instituição para dar subsídios à
decisão da autoridade (SILVA, 2018).
Na superação de uma diretriz discriminatória que existia
em relação à infância e juventude em situação de vulnerabilidade
ou infracional, advém, em 1990, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, implicado em transformações que urgiam nesta área.
Esta lei é elaborada e fortalecida pela abertura promovida pela
Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 227: um marco na
transição democrática e na garantia jurídica de direitos humanos,
que assinala, dentro de uma definição legal, uma mudança referente
às crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, definindo uma
responsabilidade compartilhada entre família, sociedade e estado.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 107


Com o ordenamento jurídico-legal promovido pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), dentro da Doutrina
de Proteção Integral, a proposta de ação-intervenção com
adolescentes autores de atos infracionais e suas famílias avança
para um paradigma socioeducativo, afirmando assim sua natureza
pedagógica. O grande foco do trabalho a ser desenvolvido passa
a ser a possibilidade de educação para o convívio social. Não
mais na opressão e punição pelo ato cometido, mas sim o
investimento no desenvolvimento de potencialidades produtivas
através dos estudos pela formação escolar, como também
por aprendizados de ofícios, através da profissionalização. O
objetivo está em viabilizar a inclusão social deste jovem de forma
íntegra, quando o exercício de seu protagonismo juvenil tenha um
verdadeiro espaço de realização.
Dezesseis anos após a publicação do Estatuto da
Criança e do Adolescente, o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE, 2006) é desenvolvido também voltado
ao enfrentamento de situações de violência por adolescentes
autores de atos infracionais, no período de cumprimento de Medida
Socioeducativa, o que leva à constatação de que a Socioeducação
ainda não se aplica integralmente dentro dos objetivos aos quais
se propõe, demandando ainda a internalização de suas diretrizes.
Em 2012 foi promulgada a lei 12594/2012, do Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que regula
a execução das Medidas Socioeducativas destinadas à adolescente
que pratique ato infracional, entre outras medidas, sendo este
mais um passo na busca de efetivar as políticas públicas na área
da infância e juventude, com a efetiva prática da Socioeducação.
O poder público pode ser provocado ao investimento no
Sistema de Garantia de Direitos (SGD), na articulação de direitos
individuais e coletivos para o enfrentamento da vulnerabilidade
social de parte da população, com objetivo de superação da
existência de políticas públicas inoperantes que atuavam em
perspectiva inserida numa lógica de exclusão e discriminação
(ZAMORA; PEREIRA, 2013). O investimento no paradigma

108 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


da proteção integral demanda o desmonte desta lógica menorista,
para que políticas públicas voltadas à infância e juventude tenham
espaço garantido na sociedade.
Apesar do desenvolvimento de ações na formulação de
políticas, a ausência de investimentos com prioridade na área
da infância e juventude é um problema atual. Ações são
apresentadas dentro de planejamento de políticas relativas à
infância e juventude, mas, dentro de uma prioridade a esta
população, em sua execução, não alcançou bons resultados,
não apresentou uma atuação prioritária no atendimento nos
serviços públicos nem a execução das políticas sociais públicas
ou a destinação privilegiada de recursos (UNGARETTI, 2010,
p.104). O Sistema Socioeducativo demanda ainda transformações
para o alcance de sua missão, precisando realizar o devido
alinhamento conceitual, operacional e estratégico.
Na elaboração de novos saberes e superação de práticas
ilegítimas, impasses e dificuldades, advindas de anos de uma
cultura atravessada por preconceitos, temos a consciência
de muita produção a realizar. Para alcançar a compreensão
do exercício da cidadania para aqueles que enfrentaram
adversidades no lidar com a lei, é necessário encarar as
responsabilidades e a conscientização do viver em sociedade, o
respeito a si e aos outros e as oportunidades reais de redirecionar
suas vidas. Assim como existe o investimento em educação
geral e educação profissional, deve ser fato o investimento
na Socioeducação no Brasil, cuja missão é preparar os jovens
para o convívio social sem a quebra de regras de convivência
consideradas como crime ou contravenção no Código Penal que
legisla sobre o país (OLIVEIRA et al, 2010, p.27-29).
Trabalhar com as famílias e os adolescentes em
vulnerabilidades múltiplas demanda conscientização do muito a
fazer, e do desafio do acreditar nas transformações do adolescente,
tanto no que se refere às interações sociofamiliares - sendo fato
que sua mobilidade espacial pela cidade é muito limitada e o seu
capital social escasso -, como na possibilidade do enfrentamento

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 109


do descrédito de muitos em relação à potencialidade dos
jovens, e do desejo de não mudança de certos indivíduos
confortados em posições de poder pré-estabelecidas no meio
social, com benefícios de classe, cor ou gênero que podem
estar permeados em seus “não movimentos” para questionar as
discriminações existentes. Dados da Pesquisa Rota de Fuga (2006,
p.56) apresentam o predomínio de famílias numerosas chefiadas
por mulheres, apontam um percentual significativo de 31,74% de
jovens que moram com ambos os pais, e comparam este resultado
com os dados de ASSIS (1999), que assinala o percentual
de 21% dos adolescentes entrevistados residindo com ambos
os pais. O Sistema Socioeducativo deve ter como referência
e prática o paradigma da Doutrina da Proteção Integral,
definido pelas legislações existentes da infância e juventude, e
por todas as diretrizes que compõem o Sistema de Garantia de
Direitos. Acreditar na mudança demanda reconhecer também a
importância das famílias nas relações com os adolescentes, poder
investir nesta relação no cotidiano institucional, e fortalecer para a
vida em liberdade.

5 TEORIZANDO PARA O TRABALHO


Para que o adolescente possa ter uma oportunidade
verdadeira, é premente a superação e desconstrução de
estigmas e preconceitos em torno da juventude, e da superação
de discriminações existentes, sejam raciais, por nível social, por
qualquer tipo de exclusão, remetendo às violações de direitos que
atravancam o desenvolvimento da pessoa humana. Wacquant
(2001) explana, em seu livro “As Prisões da Miséria”, acerca da
criminalização da pobreza e os resultados nefastos que produzem
na sociedade, com o aprisionamento de pessoas pobres e negras.
Em paralelo, é encontrado um movimento similar no Brasil,
discriminatório por classe social e racista, com alto índice de
adolescentes negros, em conflito com a lei, ou não, sendo
apreendidos em “flagrantes” duvidosos e mesmo sendo mortos
em operações policiais questionáveis dentro das comunidades

110 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


ou em batidas policiais na cidade.
Para abordar as questões em torno do pertencimento
a territórios e enfrentamentos de discriminações e apontar
para a elaboração de políticas públicas, deverá fazer parte de
estudos aprofundados a abordagem do fenômeno da branquitude,
racismo e preconceitos existentes, que não podem ser
camuflados, para que a conscientização possa levar a uma
desconstrução do que está posto. Schucman (2015) sublinha, em
entrevista dada à Agência Fapesp (Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo), a premência do letramento
racial, que é uma forma de responder de maneira individual às
tensões raciais. Somando com ações coletivas, como cotas e políticas
públicas, o letramento investe na reeducação do indivíduo em
uma perspectiva antirracista. Políticas públicas nesta direção
devem ser investidas pelo Estado, para o desmonte do racismo
estrutural, começando com a conscientização da existência do
racismo e do fenômeno da branquitude, a expectativa de benefícios
pela condição de ser branco, e, além destes dois fundamentos,
para um letramento racial, a compreensão de identidades raciais
como resultante de práticas sociais, o vocabulário racial ser
uma provocação de se abordar o tema raça de forma libertária, e a
interpretação de códigos e práticas perpassadas pelo racial, com
detecção do racismo para sua desconstrução (SCHUCMAN,
2015). Raça e racismo considerados como categorias analíticas
poderão revelar forças de exercício opressivo e abrir espaço
para uma maior compreensão da subjetividade que produz
(ZAMORA, 2012) para sua superação.
Com a abertura para o paradigma da Doutrina da Proteção
Integral, na infância e juventude, a ação do Estado é colocada frente
ao desafio, para atender verdadeiramente a esta população, da
atuação sobre as políticas públicas e, entre estas, a política de
aplicação das Medidas Socioeducativas não pode ocorrer em
isolamento das outras, devendo estar articulada com os serviços
e programas (saúde, defesa jurídica, trabalho, profissionalização,
escolarização) voltados às crianças e aos adolescentes e aos

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 111


programas de execução de atendimento socioeducativo, para que
possam ocorrer ações de transformações necessárias no meio social
e dentro do próprio sistema (COSTA, 2006). Poder mapear essas
ações, para que possam embasar o planejamento de políticas
públicas, demanda reconhecimento das demandas e lacunas
existentes. O território de pertencimento dos adolescentes e seus
familiares tem uma importância ímpar no estudo a ser realizado,
pois, como pontua Barbosa (2006), os territórios de nossa vivência
estão mais complexos na atualidade, porém continuam sendo uma
referência como integrativa dos sujeitos: “É no território que
nos fazemos sujeitos da política e portadores de projetos da
sociedade”, onde as políticas públicas estarão fazendo seu papel.
O investimento em novas propostas para transformações
no quadro atual demanda, já em seu início, o lidar com a
representação dessa população pela sociedade, considerando a
existência de um estereótipo construído que alimenta as formas
de intervir do Poder Público e de organizações da Sociedade Civil.
Uma forma que sustenta uma estigmatização de um grupo
específico, que inclui estereótipos referentes a seus territórios
de moradia, com discriminações acontecendo sistematicamente
e resultando em violação de direitos, chegando a situações de
extermínio da população até mesmo pelas representações das
forças de segurança pública (SOUZA e SILVA, 2006).
Mecanismos de reprodução e manutenção da pobreza e
impedimento do exercício da cidadania se colocam através da
estigmatização e a fragilização de redes sociais e comunitárias,
assim, a escolha por pertencimento a facções criminosas tem
sido perpassada pela necessidade de romper a invisibilidade
social e alcançar um reconhecimento de existência, como uma
marca identitária de força, de poder que acaba por ultrapassar
os vínculos com a comunidade (SOUZA e SILVA, 2006).
Este grupo tem-se visto diante de uma violência letal de forma a
impedir o direito e exercício de sua cidadania, e também precisa
lidar com a fragilização em suas redes sociais e comunitárias,
com redução da rede social, assim como embates diversos a

112 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


serem enfrentados em seu cotidiano e, apesar de tudo isto, as
interações familiares têm-se mantido como relações de referência
significativa para esta população que se encontra em condições de
vulnerabilidade (SOUZA e SILVA, 2006).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões e breve abordagem a dados em torno


da realidade do adolescente em privação de liberdade no
país assinalam que o caminho na direção do paradigma
socioeducativo deve ser percorrido com passos firmes para
fazer acontecer e valer a proteção integral, pois as dificuldades
existentes não devem impedir uma evolução na atenção
a estes jovens. Fortalecer a integração com a participação
intersetorial é uma responsabilidade compartilhada e, no
momento, é um dispositivo que possibilita construir um
trabalho socioeducativo. A ideia que sustenta a Socioeducação
está pautada numa relação dialógica com as representações
territoriais, comunitárias, entre outras. As ações no exercício
socioeducativo devem estar voltadas ao encontro de pessoas
em desenvolvimento que precisam, além de todos os seus direitos
garantidos: de oportunidade, como sublinhou Antonio Carlos
Gomes da Costa (2006); de que os programas de ação social
educativa, para adolescentes em conflito com a lei, devem
promover condições para o desenvolvimento psicossocial
do educando, de suas potencialidades e habilidades, para
que se torne uma pessoa solidária, autônoma e competente
profissionalmente.
Movimentos para mudanças fazem-se necessários, sair
de uma posição passiva para uma posição ativa na produção de
ações, que poderão ser transformadoras, através do exercício da
resistência à violência, do exercício de busca e novas criações,
sempre investindo no caminho de superação da opressão de
poderes abusivos dentro ou externamente ao sistema, os quais
não contribuem com o processo socioeducativo dos adolescentes,

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 113


tampouco fortalecendo o protagonismo ou a cidadania. O
adolescente lida com resultados esparsos e incertos da ação
socioeducativa, com idas e vindas institucionais em seu
percurso juvenil, e a existência de analisadores demanda
mobilização sociopolítica para traçar uma nova jornada em sua
história. Diante deste quadro agravado pela crise no país,
mais ainda se evidencia que somente dentro das diretrizes
dos Direitos Humanos e da construção coletiva e implantação
de políticas competentes dá-se a possibilidade de transformações
efetivas na sociedade e no próprio Sistema Socioeducativo e,
para tal acontecer, é necessário também o investimento em
pesquisas públicas com bons levantamentos, os quais respaldem
resultados que conduzam o planejamento de caminhos no
sentido da superação da criminalização de jovens por seu perfil,
através da reversão de uma situação que perdura há anos e da
compreensão de uma sociedade mais justa e, assim, sublinha-se
aqui uma esperança em políticas públicas que possam compor
uma sociedade mais igualitária e com espaço para as diferenças.

114 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


REFERÊNCIAS

ASSIS, S. Traçando caminhos numa sociedade violenta: A vida


de jovens infratores e seus irmãos não infratores. Rio de Janeiro,
RJ: Fundação Oswaldo Cruz, 1999.
BARBOSA, J. L. Cidade e Território: desafios da reinvenção
política do espaço público. 2006. Disponível em: http://
observatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/06/
Cidade-e- Territo%CC%81rio_Por-Jorge-Luiz-Barbosa.pdf.2006.
Acesso em: 18 set. 2017.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República
Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.
htm#adct. Acesso em: 4 set. 2017.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Lei 8.069/90
de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União:
seção 1, Brasília, DF, 16 de julho de 1990. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069compilado.htm.
Acesso em: 4 set. 2017.
BRASIL. Lei n° 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Regulamenta
a execução da medida socioeducativa e altera algumas leis.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12594.htm. Acesso em: 06 set. 2017.
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República. Levantamento Anual dos/as Adolescentes em
Conflito com a Lei – 2012. Brasília: SDH, 2013. Disponível em:
http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e-adolescentes/pdf/
levantamento-sinase-2012. Acesso em: 20 ago. 2017.
BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos (MDH). Levantamento
Anual SINASE 2016. Brasília: MDH, 2018. Disponível em:
http://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2018/marco/
Levantamento_2016Final.pdf. Acesso em: 19 ago. 2018.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 115


BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Brasília,
DF: CONANDA, 2006.
BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resolução nº 113, de 19 de
abril de 2006. Dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização
e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e
do Adolescente. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 20 de abril de
2006. Disponível em: http://dh.sdh.gov.br/download/resolucoes-
conanda/res-113.pdf. Acesso em: 20 set. 2017.
CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Relatório
da Infância e Juventude – Resolução nº 67/2011: um olhar mais
atento às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes.
Brasília: CNMP, 2013. Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/
portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/Relat%C3%B3rio_
Interna%C3%A7%C3%A3o.PDF. Acesso em: 19 ago. 2018.
COSTA, A. C. G. (org.). Socioeducação: Estrutura e Funcionamento
da Comunidade Educativa. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, 2006. Disponível em: http://ens.sinase.sdh.gov.br/
ens2/images/Biblioteca/Livros_e_Artigos/material_curso_de_
formacao_da_ens/Socioeducacao.pdf. Acesso em: 21 set. 2017.
DEPARTAMENTO GERAL DE AÇÕES SOCIOEDUCATIVAS
(DEGASE); UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINESE (UFF).
Trajetória de vida de jovens em situação de privação de liberdade
no sistema socioeducativo do estado do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: DEGASE; UFF, 2018.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA
(IBGE). Censo Demográfico 2010: Características gerais da
população, religião e pessoas com deficiência. Disponível
em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/
censo2010/caracteristicas_religiao_deficiencia/default_
caracteristicas_religiao_deficiencia.shtm Acesso em: 11 ago. 2018.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA
(IBGE). Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições
de vida da população brasileira. 2016. Rio de Janeiro: IBGE,

116 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


2016. (Série Estudos e pesquisas. Informação demográfica e
socioeconômica). Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/
visualizacao/livros/liv98965.pdf. Acesso em: 11 ago. 2018.
OLIVEIRA, M. C. S. L. Da medida ao atendimento socioeducativo:
implicações conceituais e éticas. In: PAIVA, I.; SOUZA, C.;
RODRIGUES, D. (org.). Justiça Juvenil. Teoria e prática no sistema
socioeducativo. NATAL: EDUFRN, 2014. p.79-99.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança. 1989. Adotada em
Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de
1989. Disponível em: https://www.neca.org.br/programas/
convencao_direitos_criancas.pdf. Acesso em: 8 ago. 2018.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Regras
mínimas das nações unidas para a administração da justiça, da
infância e da juventude. Regras de Beijing, 1985. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/c_a/lex47.htm.
Acesso em 16 ago. 2017.
SCHUCMAN, L. V. Racismo e “branquitude” na sociedade
brasileira. Entrevista para José Tadeu Arantes, Agência FAPESP
em 5 fev. 2015. Disponível em: http://agencia.fapesp.br/
racismo_e_branquitude_na_sociedade_brasileira/20628/.
Acesso em 20 set. 2017.
SILVA, M. T. A. Família, Socioeducação e Projeto Golfinhos:
uma construção coletiva. Curitiba: Appris, 2018.
SOUZA E SILVA, J. (coord.). Sumário executivo. In: Pesquisa:
“Caminhada de crianças, adolescentes e jovens na rede do tráfico
de drogas no varejo do Rio de Janeiro, 2004 - 2006”. Rio de Janeiro:
Observatório de Favelas, 2006. Disponível em: http://of.org.br/
wp-content/uploads/2017/02/Pesquisa-Rotas-de-Fuga.pdf.
Acesso em: 11 ago. 2018.
SOUZA E SILVA, J. ; BARBOSA, J. L.; BITETI, M. O.; FERNANDES,
F. L. (orgs.). O que é a favela, afinal? Rio de Janeiro: BNDES;
Observatório de Favelas, 2009. Disponível em: http://
observatoriodefavelas.org.br/wp- content/uploads/2013/09/o-
que-%C3%A9-favela-afinal.pdf. Acesso em: 11 ago. 2018.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 117


UNGARETTI, M. A. fluxos operacionais sistêmicos: instrumento
para aprimoramento do sistema de garantia dos direitos da criança
e do adolescente no marco dos direitos humanos. In: UNGARETTI,
M. A. (org.). Criança e adolescente: direitos, sexualidades e
reprodução. São Paulo: ABMP, 2010. p. 101-127.
WACQUANT, L. As prisões da miséria. Tradução Ed. André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência: os jovens do Brasil. Brasília:
Ed. Garamond, 1998.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da Violência: homicídios e juventude no
Brasil. Brasília: Flacso Brasil, 2013.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência: os jovens do Brasil. Brasília:
Flacso Brasil, 2014.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da Violência: adolescentes de 16 a 17
anos no Brasil. Brasília: Flacso Brasil, 2015.
ZAMORA, M. H.; CANARIM, C. Direitos de crianças e
adolescentes: extermínio, racismo e o velho silêncio. In: SYDOW,
E.; MENDONÇA, M. L. (orgs.). Direitos humanos no Brasil 2009.
Relatório da rede social de justiça e direitos humanos. São Paulo:
Rede Social de Justiça e Direitos, 2009. p.161-167.
ZAMORA, M. H.; PEREIRA, I. Adolescente em conflito com a lei
e suas famílias. In: JULIÃO, E.; Vergílio, S. (orgs.). Juventudes,
políticas públicas e medidas socioeducativas. Rio de Janeiro:
DEGASE, 2013. p. 147-160.
ZAMORA, M. H. Desigualdade racial, racismo e seus efeitos.
Fractal, Rev. Psicol., Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 563-578, dez.
2012. Disponível em: http://periodicos.uff.br/fractal/article/
view/4915/4757. Acesso em: 20 jul. 2018.
ZAMORA, M. H. Defensores de direitos humanos: sofrimento
psíquico e atendimento psicológico. POLÊMICA, Rio de Janeiro,
v. 13, n. 4, p. 1655-1670, out. 2014. Disponível em: http://
www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/polemica/article/
view/13209/10202. Acesso em: 10 jul.
2018.

118 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


O QUE DIZEM OS ADOLESCENTES EM MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA DE SEMILIBERDADE SOBRE SUAS
RELAÇÕES INTERPESSOAIS1?

Carolina Seixas da Rocha


Vanessa Barbosa Romera Leme

RESUMO
O estudo investigou as percepções de adolescentes em
Medida Socioeducativa de Semiliberdade sobre suas relações
interpessoais na família, escola e instituição, a fim de fornecer
subsídios para a implementação de uma intervenção focada na
promoção de interações sociais positivas. Foram realizados
dois grupos focais com 29 adolescentes e jovens do sexo
masculino em Medida Socioeducativa de Semiliberdade
no Rio de Janeiro. A análise com o software IRAMUTEQ
identificou seis classes: relações familiares; adolescências e
masculinidades; amigos; escola; agentes socioeducativos;
semiliberdade. Os resultados indicaram potencialidades
e desafios em todos os contextos investigados, evidenciando a
necessidade de intervenções com essa população.

Palavras-chave: Adolescente em conflito com a lei. Semiliberdade.


Relações interpessoais.

1. INTRODUÇÃO
Em 2013, o Brasil possuía um total de 89.718
adolescentes inseridos no Sistema Socioeducativo, desses, 24.155
haviam cometido atos mais severos, ou seja, cumpriam Medidas
Socioeducativa de privação ou restrição de liberdade (SINASE,
2015). Somente no Rio de Janeiro, o número de adolescentes que
tinham sua liberdade privada ou restrita era de 1.655 (SINASE,
2015). A parcela de adolescentes brasileiros que cumprem
Medida Socioeducativa é percebida como ameaçadora
1 Esse trabalho é parte da dissertação de mestrado da primeira autora. Apoio financei-
ro: Bolsa da CAPES

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 119


por grande parte da população, o que gera contextos de
discriminação e vulnerabilidade social. Essa condição se amplia
quando o senso comum e o discurso midiático deixam de
visualizar os adolescentes em conflito com a lei enquanto sujeitos
de direito, o que se configura como um entrave para a reinserção
social desses jovens.
Frequentemente, os contextos da família e da escola
são citados como importantes fatores de proteção para
os adolescentes, principalmente por serem fontes de apoio
social, ao favorecerem a criação e manutenção de vínculos
de intimidade e reciprocidade, além de possibilitarem o
desenvolvimento de capacidades pessoais e profissionais
(ALVES; DELL’AGLIO, 2015). No entanto, no caso de
adolescentes em Medida Socioeducativa, ainda que estudos
identifiquem vínculos familiares de confiança e apoio, a maior
parte da literatura indica que tal relação é marcada por práticas
coercitivas e histórico de violência, bem como a baixa coesão e a
presença de conflitos familiares (NARDI; DELL’AGLIO, 2012).
No ambiente escolar, pesquisas vêm indicando uma
alta evasão e dificuldade de acolhimento de adolescentes em
Medida Socioeducativa, principalmente, pela presença de
estigmas e resistências da gestão escolar (NETO, 2018). Ao se
perceber desamparado por tais contextos, que os violentam e os
discriminam, os adolescentes podem aproximar-se ou mesmo
permanecer em contextos ou grupos que ofereçam risco, mas que
os reconheçam e façam-nos sentirem-se pertencentes (COSCIONI
et al., 2018). Esse fator é agravado em meninos, devido a papéis
de gênero estereotipados que costumam associar violência e
masculinidade de forma a naturalizar comportamentos violentos
e de risco como uma afirmação do masculino (JIMENEZ, 2014).
A baixa percepção de apoio social e a qualidade do
relacionamento familiar dos adolescentes em conflito com a
lei provocam um agravamento na situação de vulnerabilidade
desses jovens e dificultam sua reinserção social (ALVES;
DELL’AGLIO, 2015; ZAPPE; DELL’AGLIO, 2016). Assim,

120 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


desenvolver intervenções capazes de contribuir para a
efetividade da Medida Socioeducativa e para a ressocialização
desses adolescentes torna-se imprescindível. Para isso, é
preciso conhecer as necessidades dos adolescentes em
Medida Socioeducativa de Semiliberdade, bem como definir suas
potencialidades e desafios em diversos contextos. Nesse sentido,
o presente estudo investigou as percepções de adolescentes
em semiliberdade sobre suas relações interpessoais nos contextos
da família, escola e instituição socioeducativa, a fim de fornecer
subsídios para a implementação uma intervenção com foco na
promoção de relações interpessoais positivas.

2 MÉTODO
Os dados foram coletados em uma instituição de
semiliberdade, localizada na cidade do Rio de Janeiro (indicada
pela Escola de Gestão Socioeducativa do DEGASE, que coordena
as pesquisas nas unidades), a qual acolhia adolescentes de
diversas zonas da cidade e de diferentes comunidades. Os
grupos focais foram realizados numa sala que ficava em uma
região central da unidade.

3 PARTICIPANTES
No mês de dezembro, foi feito o primeiro contato com a
instituição, momento em que havia cerca de 40 jovens (idade entre
12 e 21 anos), sendo mais da metade adolescentes. No entanto,
após o recesso do Natal e do final do ano, o qual os jovens passam
com suas famílias, o número que retornou à instituição foi menor
do que antes desse período. Assim, na primeira semana de janeiro,
havia cerca de 20 adolescentes com idade de 14 a 18 anos, além de 9
jovens de 18 a 21 anos. Ainda que a pesquisa adotasse como critério
de inclusão idade até 18 anos, todos os jovens institucionalizados na
unidade em questão foram convidados a participar. Participaram
29 adolescentes, sendo que o primeiro grupo focal foi composto
por 12 jovens, dos quais nove eram adolescentes e três adultos,
com idade média de 15,9 anos e 18,3 anos, respectivamente. O

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 121


segundo grupo focal teve 17 participantes, sendo 13 adolescentes
e quatro adultos, com idade média de 16,1 anos e 18,4 anos,
respectivamente. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
autorizado pelo Juiz da 4ª Vara da Infância, da Juventude e
do Idoso da Comarca da Capital e pelo Departamento Geral
de Ações Socioeducativas (DEGASE). Os jovens com 18 anos ou
mais e os responsáveis pelos adolescentes assinaram ao Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido e os adolescentes assinaram o
Termo de Assentimento Livre e Esclarecido.

4 INSTRUMENTOS
Questionário sociodemográfico, elaborado para este
estudo com objetivo de investigar informações dos participantes,
tais como nome, idade, cor, religião, escolaridade, composição
familiar e escolaridade materna e paterna.
Roteiro semiestruturado, composto por questões
norteadoras divididas em perguntas: de aquecimento (por
exemplo, “quem é a sua família?”); de apoio social (por
exemplo, “como os membros da sua família te apoiam?”); de
habilidades sociais (por exemplo, “como seus familiares agem
quando vocês querem fazer algo que eles não permitem?”);
de crenças de autoeficácia (por exemplo, “vocês acham que
são capazes de atingir as expectativas das suas famílias?”);
de discriminação (por exemplo, “vocês enfrentam alguma
dificuldade para ser aceito na sua família, depois da estar na
medida socioeducativa?”). Tais questões tinham como objetivo
reflexão e discussão entre os participantes, sendo organizadas
por ordem crescente de complexidade.

5 PROCEDIMENTOS
A coleta de dados foi organizada em três etapas: treino
da equipe de pesquisadores; contato com instituições; por fim,
os grupos focais. A capacitação das pesquisadoras foi realizada
no primeiro ano da pesquisa e envolveu a participação em um

122 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


grupo de estudos com 15 horas, que abordou temáticas relativas
à TBDH, resiliência, vulnerabilidade, fatores de risco e proteção.
Posteriormente, foram realizados dois encontros com técnicos do
DEGASE para apresentação dos objetivos e procedimentos do
projeto, bem como para a entrega dos documentos necessários
para a autorização da pesquisa. Após a aprovação do Comitê de
Ética e a autorização da instituição, o DEGASE, realizou-se uma
reunião com os técnicos da unidade. Nesta oportunidade, foram
apresentados os objetivos da pesquisa, os instrumentos utilizados
e o planejamento dos grupos. Esse momento foi essencial para
coletar informações importantes para o planejamento dos grupos
focais, tais como o número de adolescentes na instituição e quais
recursos poderiam ser disponibilizados. Por fim, foi realizado um
momento para convidar os jovens a participar dos grupos, no qual
foi exposto os objetivos do projeto e os temas abordados.
Para os grupos focais, a sala foi organizada de modo que
os adolescentes estivessem dispostos em círculo, no formato de
roda de conversa. Antes de iniciar as atividades, foi solicitada
a permissão dos jovens para a gravação em áudio do encontro,
sendo discutidas as questões éticas e considerações a respeito
do anonimato e sigilo. O primeiro grupo focal abordou os
temas família, comunidade e amigos, enquanto o segundo
discutiu as instituições escola e unidade socioeducativa. Os grupos
foram realizados em dias intercalados, tendo duração média de
uma hora. Os dois grupos seguiram a seguinte estrutura:
estabelecer rapport, explicar os objetivos e procedimentos
da técnica de grupo focal, entrega e leitura em conjunto do
Termo de Assentimento Livre e Esclarecido que garante
confidencialidade das informações e entrega do questionário
sociodemográfico; questionamentos de aquecimento, com
objetivo de apresentar os temas e fomentar as discussões;
apresentação das questões centrais que nortearam a discussão
dos temas centrais; encerramento com síntese dos conteúdos
abordados, agradecimento pela participação e informações
acerca da possibilidade de se conversar privadamente

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 123


com as pesquisadoras sobre sentimentos e pensamentos que
emergiram durante o grupo. Ao final cada grupo foi realizada
uma confraternização com lanche, com a qual se buscou criar um
momento descontraído para o recebimento do feedback.

6 ANÁLISE DE DADOS
As falas dos participantes nos grupos focais foram
gravadas e transcritas em sua íntegra. Para as análises
qualitativa e quantitativa do corpus textual utilizou-se o
software livre IRAMUTEQ (Interface de R pour lês Analyses
Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) que
possibilita a utilização de técnicas que variam desde análises
lexicais clássicas até análises multivariadas, como a classificação
hierárquica descendente, análise de similitude e nuvem de
palavras. Devido à necessidade substancial de texto que o
software de análises necessita, optou-se por agrupar as falas
por participante, de modo a considerar a integridade individual
de cada adolescente. Por fim, esse último corpus foi salvo no
formato texto (.txt) e na codificação UTF-8. No presente trabalho,
optou-se pela utilização da análise de classificação hierárquica
descendente que agrupa e organiza graficamente de acordo
com a frequência (MOIMAZ et al., AMARAL, MIOTTO, COSTA,
GARBIN, 2017).

7 RESULTADOS E DISCUSSÃO
No corpus proveniente da transcrição dos grupos focais foi
observado a ocorrência de 6.987 ocorrências (palavras, formas ou
vocábulos), sendo 1.204 palavras distintas e 627 com uma única
ocorrência. Além disso, o corpus foi constituído por 10 textos,
separados em 200 unidades de contexto, sendo que, por meio
de classificações hierárquicas descendentes de segmentos de
texto, 149 indicaram semelhança no vocabulário dos seis
temas resultantes (74,5%). A análise indicou uma convergência
das características empíricas em torno de seis temas: classe 1
“Escola”, com 21 segmentos de texto (14,09%); classe

124 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


2 “Agentes socioeducativos”, com 20 segmentos de texto
(13,42%); classe 3 “Adolescências e masculinades”, com 25
segmentos de texto (16,78%); classe 4 “Relações familiares”, com 35
segmentos de texto (23,49%); classe 5 “Medida de semiliberdade”,
com 27 segmentos de texto (18,12%); classe 6 “Amigos”, com 21
segmentos de texto (14,09%). Para uma melhor compreensão
das classes, elaborou-se um dendograma com a lista de palavras
de cada classe geradas a partir do teste qui-quadrado (Figura 1).
Essas classes estão inseridas no corpus textual “Adolescer em
Conflito com a Lei”, gerado pela transcrição dos grupos focais,
que se divide em subcorpus. No caso, o subcorpus A, denominado
de “Instituições”, compreende as falas relacionadas às instituições
presentes na vida dos adolescentes, portanto, divide-se na classe 1
(“Escola”) e no subcorpus C (“Unidade de socioeducação”), no qual
estão a classe 2 (“Agentes socioeducativos”) e classe 5 (“Medida
de semiliberdade”). Já na ramificação B (“Redes de apoio”), que
compreende as falas em que os adolescentes apresentam as figuras
de apoio social, observa-se que se divide na classe 6 (“Amigos”) e
no subcorpus D (“Família”), que contempla a classe 4 (“Relações
familiares”) e a Classe 3 (“Adolescências e masculinidades”).

FIGURA1 - DENDOGRAMA DA CLASSIFICAÇÃO


HIERÁRQUICA DESCENDENTE COM AS PARTICIPAÇÕES
E CONTEÚDOS DO CORPUS DA PESQUISA

FONTE: As autoras
NOTA. Sendo que, X² corresponde ao qui-quadrado de associação da palavra com a classe e
% refere-se à porcentagem de ocorrência da palavra nos segmentos de texto nessa classe em
relação a sua ocorrência no corpus.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 125


As análises permitiram identificar, em cada uma das
classes, potencialidades e dificuldades apontadas pelos
adolescentes em Medida Socioeducativa. Essa perspectiva que
busca identificar fatores de risco e de proteção envolvidos
nos processos de resiliência, em oposição ao enfoque dado à
patologia, compõem os estudos dentro da Psicologia Positiva
(SELIGMAN; CSIKSZENTMIHALYI, 2000). Segundo esses
autores, esse movimento enfatiza aspectos positivos das
experiências, dos traços individuais e das instituições, com
objetivo de contribuir para o desenvolvimento de fatores
que permitam o florescimento de indivíduos e da sociedade
(SELIGMAN; CSIKSZENTMIHALYI, 2000). Portanto, os achados
do presente estudo, ao evidenciar as percepções positivas dos
adolescentes, sinalizam a importância de intervenções focadas
em promover potencialidades desses sujeitos como forma
de prevenção e promoção de saúde. A seguir são descritas as
classes identificadas na análise de dados e são exemplificadas
com falas de alguns participantes2.

7.1 RELAÇÕES FAMILIARES


Em relação ao conteúdo das classes, temos que a classe 4 (f
= 35 ST), denominada de Relações familiars, é a mais expressiva
do conteúdo dos grupos focais. Os elementos relacionados a
essa classe foram: mãe; pai; errado; coisa; família; fácil;
maior; bom; independente; importar, entre outros. Esta categoria
apresenta os significados atribuídos à família pelos adolescentes
e suas percepções a respeito das relações interpessoais
presentes nesse contexto. Uma parte das falas expõe a família
como um contexto capaz de proporcionar apoio e segurança
aos mesmos: “Meu pai sempre tá comigo ali, eu estando
errado ou certo. Não querendo dizer que ele vai ter que estar
comigo nas minhas vezes que eu vou estar errado, mas sendo
que ele sempre me corrige pro certo. [...] Por isso ele é minha
2 Nomes fictícios

126 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


família. Porque independente de qualquer coisa, ele vai estar
lá. É meu porto seguro” (Roberto, 18 anos). Esses dados são
corroborados pela literatura que afirma que mesmo havendo a
presença de conflitos familiares, os adolescentes em conflito com
a lei possuem vínculos de confiança e apoio no contexto
familiar (NARDI; DELL’AGLIO, 2012). Estudos indicam a
família como o principal e mais favorável ambiente para
desenvolvimento, uma vez que, nesse context, são estabelecidas
relações que favorecem o surgimento de vínculos de
intimidade, cooperação e afetividade (DESSEN, 2010).
Entretanto, observa-se que, apesar de perceberem a família
como rede de apoio, as relações familiares são conflituosas e
permeadas por violência, como ilustra a fala de Fernando (17
anos): “Primeiro ele [pai] bate, depois ele desenrola”. Nesse
sentido, práticas parentais coercitivas que incluem perda de
privilégios, além de punições físicas e verbais constituem um
fator de risco, pois podem ser associadas à violência intrafamiliar
e são incorporadas pelos adolescentes como estratégia de
resolução de problemas (PREDEBON; GIONGO, 2015; ZAPPE;
DELL’AGLIO, 2016). Desse modo, entende- se a importância de
fortalecer as relações familiares por meio do aprimoramento
de habilidades de autocontrole e empatia de pais e filhos,
uma vez que estas são fundamentais para o desenvolvimento
da assertividade. Por sua vez, a assertividade pode ser utilizada
como alternativa a modos agressivos de resolução de conflitos
interpessoais, promovendo uma convivência familiar positiva
(LEME; DEL PRETTE; COIMBRA,2015).

7.2 MEDIDA DE SEMILIBERDADE


A classe 5 (f = 27 ST), denominada Medida de Semiliberdade,
é a segunda classe com maior representatividade. Nela
visualiza-se que as palavras mais significativas foram: unidade;
semiliberdade; remédio; agente; quadra; tomar; trancar; gente;
dia; receita, entre outros. Esta categoria traz relatos das

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 127


experiências dos adolescentes na instituição e as características
singulares da Medida Socioeducativa de Semiliberdade. Em
primeira instância, os adolescentes reconhecem a necessidade
e as potencialidades da medida na reinserção social,
principalmente, devido às oportunidades que são oferecidas pela
Semiliberdade. Assim, a Medida Socioeducativa é vislumbrada
como um possível catalizador de mudança para trajetórias
positivas, como pode ser observado a seguir: “Eu cheguei aqui,
com a mentalidade, tipo assim, mudar de vida, conseguir um
trabalho. O que eu estava desejando, já está se realizando. Eu vou
assinar agora minha carteira de trabalho, começar a trabalhar.
Tipo assim, a vida já tá caminhando” (Bruno, 17 anos).
A literatura também tem evocado essa percepção dos
adolescentes em relação às vantagens da Medida Socioeducativa,
trazendo essa contradição nas falas dos adolescentes que veem a
medida negativa, mas percebem as oportunidades contidas nela,
inclusive como proteção às vulnerabilidades às quais estavam
expostos (MULLER et al., 2009; SEHN; PORTA; SIQUEIRA,
2015). No entanto, os discursos também revelam que o clima
institucional é marcado por relações interpessoais hostis e
práticas coercitivas dos agentes, como ilustra a fala a seguir:
“Quando eu cumpri medida de semiliberdade em (ocultado), os
agentes só trancavam a gente para dormir, podíamos ficar
o dia todo soltos, fazendo coisas, nós tínhamos até a chave
para fechar o alojamento. Já nessa unidade, os agentes trancam
a gente o dia inteiro, só liberaram para ir na quadra e nem é todo
dia” (Kássio, 14 anos).
Ao serem questionados a respeito do que julgam serem os
motivos dessa diferença entre as instituições, os adolescentes
sugerem que isso pode estar relacionado à inadequação da
estrutura física do local, principalmente pela unidade ter sido
construída no formato de unidade de privação de liberdade, o que
é demonstrado na fala de Paulo (17 anos): “Essa semiliberdade é
diferente das outras, essa unidade parece internação, isso faz com
que os agentes achem que podem fazer tudo”. Nesse sentido, a

128 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


literatura sugere que há uma relação bidirecional entre o ambiente
físico e o comportamento, uma vez que todo comportamento é
resultado de uma interação pessoa-situação (GÜNTHER;
ROZESTRATEN, 1993). Assim, o ambiente não estaria limitado
a um plano de fundo passivo, ao contrário, possuiria um papel
fundamental nas situações e nos modos de se comportar dos
indivíduos (MOSER, 1998).

7.3 ADOLESCÊNCIAS E MASCULINIDADES


Além da anterior classe, temos no subcorpus Família
(subcorpus D), a classe 3 (f= 25 ST), intitulada de Adolescências e
masculinidades, que possui como elementos mais representativos:
irmão; morar; casa; brigar; pai; discutir; anos; entre outros.
Portanto, o conteúdo expresso nas falas que compõem essa
classe refere-se ao processo de tornar-se adulto e dos papéis de
gênero. O conteúdo das falas expõe a presença de violência
extrafamiliar, principalmente quando o adolescente cita “os
amigos”, para se referir ao grupo de traficantes que está presente
em sua comunidade: “Pô, minha mãe querer me bater e eu não
aceitar, ficar discutindo com a minha mãe. Ela chama os amigos,
faz uma reclamação de mim. Os amigos já vai, como? E meu
irmão, qual foi? Já vai destravar em mim. Vou ganhar uns tapas
na orelha por desrespeitar minha mãe”. (Igor, 16 anos).
Ainda nessa direção, discute-se que a violência se
confunde com práticas associadas ao modelo cultural atribuído
ao gênero masculino, de modo que há uma naturalização da
violência por essa não ser interpretada como tal, mas sim como
uma prática de masculinidade (JIMENEZ, 2014), como pode
ser verificado na fala: “Meu pai sempre foi bandido, desde
pequeno. Sempre foi bandido na minha frente. Nunca tive
medo de arma” (Roberto, 18 anos). Esse modelo normativo
de masculinidade estaria associado a um conjunto de traços que
remeteriam ao que se espera cultural e socialmente dos meninos:
que sejam agressivos e competitivos para reafirmar sua

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 129


masculinidade, o que implicaria em um maior envolvimento
com comportamentos de risco (ZAPPE; DELL’AGLIO, 2016). O
discurso dos adolescentes trazia frequentemente experiências e
comportamentos associados à masculinidade, como brigas e uso
de drogas: “Quando eu era do tamanho desse moleque aqui, eu
roncava pra caralho com geral. Pô, vi um bebelzinho assim, falei:
‘mô otário, vou pegar ele’. O menor quebrou foi a minha cara,
fio” (Paulo, 17 anos).
Essa tendência à exacerbação da masculinidade
através do engajamento em comportamentos de risco pode
ser explicada devido à busca por pertencimento e inserção em
grupos de pares, o jovem pode ser pressionado a se engajar em
comportamentos de risco, como consumo de drogas e brigas
(ALVES; DELL’AGLIO, 2015; COSTA; CAVALCANTE, 2018).
Estudos ressaltam que a falta de reconhecimento e de espaços de
socialização positiva junto à família, à escola e à sociedade
fazem com que os adolescentes ponderem o tráfico como uma
possibilidade de obter poder e se sentir pertencentes a um
grupo (JIMENEZ, 2014). Então, ratifica-se a necessidade
de intervenções que desenvolvam o repertório de habilidades
sociais desses jovens de modo a possibilitar a reflexão crítica e a
busca por grupos positivos e espaços de reconhecimento.

7.4 ESCOLA
Inserida de modo isolado no subcorpus Instituições
(subcorpus A), temos a classe 1 Escola (f = 21 ST). Sendo que
as palavras mais relacionadas a essa classe foram: escola; olhar;
diretor; virar; mudar; mundo; chegar; querer; mulher; sentir;
entre outras. O conteúdo dessa classe aborda o significado da
escola e as dificuldades percebidas nesse ambiente. Inicialmente,
as falas demonstram reconhecer a importância da escola enquanto
espaço de acolhimento e de possibilidades, como é colocado a
seguir: “Eu estudo, porque para mim para ter um futuro melhor
tem que estudar. Ainda mais eu que tenho filha, tipo assim, para

130 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


eu dar um futuro para ela, eu tenho que fazer o meu futuro”
(Bruno, 17 anos).
Estudos têm considerado a escola como um importante
fator de proteção, uma vez que possibilita o desenvolvimento das
potencialidades, de conhecimentos, habilidades e competências
dos adolescentes, além de capacitá-los para um futuro profissional
(LEME; DEL PRETTE; COIMBRA, 2015). Em outra direção,
as falas revelam conteúdos negativos que, na percepção dos
adolescentes, dificultam a inclusão escolar desses jovens, sendo
citadas experiências negativas vividas na escola, como o
preconceito percebido por eles por parte da comunidade escolar:
“Na minha escola, eu não me sinto muito acolhido, pelo simples
fato de quando eu cheguei na escola, a diretora virou pra mim e
falou que eu estou sendo monitorado na escola. Monitorado
por eu estar cumprindo esse negócio aqui. [...]. Desde quando a
diretora virou pra mim e falou esse negócio, eu fiquei com raiva
dela. Como assim, como é que a escola toda tá de olho em mim?
E, realmente, a escola toda tá de olho em mim, que quando eu
chego na escola até os alunos de outras salas ficam de olho em
mim” (Roberto, 18 anos).
As resistências no acolhimento dos adolescentes em
conflito com a lei pela gestão escolar também têm sido alvo de
estudos que assinalam que tais oposições surgem a partir de
estigmas sociais presentes na dificuldade social de reconhecer
essa população como sujeitos de direito e em desenvolvimento
(NETO, 2018). A literatura considera a discriminação como
um tipo de violência e um empecilho para a ressocialização
(CUNHA; DAZZANI, 2016), sendo associada à queda
no desempenho escolar (BITTENCOURT et al., 2009). No
entanto, esse preconceito não é exclusivo do ambiente escolar,
ele também está presente na rua, como exposto na fala: “Eu e
ele estávamos na rua, e veio uma mulher com a filhas passando
na mesma calçada, quando viu nós dois, ela fez questão de
virar e atravessar a rua pro outro lado. A minha vontade era de
chegar assim apertando, pegar ela pelo braço e falar ‘não vou

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 131


te roubar não, oh, filha daquilo, daquilo e daquilo outro’. Ela
ficou com medo do quê? De preto” (Rodolfo, 18 anos). Portanto,
para que as Medidas Socioeducativas cumpram a função de
ressocialização, é essencial oferecer suporte para que estes
se percebam enquanto atores do seu desenvolvimento, de
modo a impulsioná-los a romper os estigmas e a marginalização
em torno de si mesmos.

7.5 AMIGOS
A classe 6 (f = 21 ST), intitulada Amigos, tem como
principais palavras: amigo; tráfico; amizade; comunidade;
ajudar; mãe; conversar; dia; mandar; bater; entre outras. Essa
classe retrata as relações de amizade com pessoas sem grau de
parentesco, sendo abordado o estabelecimento de vínculos
e as características necessárias para o desenvolvimento de
uma relação de amizade. Inicialmente, destaca-se a presença
de solidariedade, suporte e ajuda entre os adolescentes da
unidade e em suas relações com pares na comunidade, sendo
estas pautadas em aconselhamentos e trocas de favores entre
os adolescentes: “Eu tenho um amigo que mora sozinho, tem
filho e a mulher dele. Minha mãe me mandou pra fora de casa,
e o menor era meu amigão. Aí, o menor falou assim pra mim:
‘Qual é? Dorme aqui.’ Eu dormi lá, tomei banho. O menor me
emprestou roupa, comi, mexi no telefone, marquei com o menor.
[...] Se eu tiver precisando de um prato de comida, uma roupa.
Eu confio no menor” (Kássio, 14 anos).
O adolescente relata que se aproximou do amigo após ser
expulso de casa, da mesma forma, estudos têm indicado que os
adolescentes buscam grupos de pares para sentir segurança e
proteger-se dos conflitos e da violência intrafamiliar (PEREIRA ;
SUDBRACK, 2008). Além disso, durante a adolescência, conforme
o contato com os pais diminui, as relações com os pares e
com o mundo externo são ampliadas, assim os adolescentes
encontram-se em um período de intenso desenvolvimento do

132 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


self e de aumento da autonomia (CERQUEIRA-SANTOS et al.,
2014). No entanto, esse modelo traz novas demandas capazes
de aproximar os adolescentes de pares com comportamentos
de risco. Nesse caso, ocorre um movimento de culpabilização
do grupo pelo fracasso e a construção de uma imagem negativa
dos pares (PEREIRA; SUDBRACK, 2008). Os resultados
encontrados retratam esse cenário, uma vez que, ainda que
essa classe versasse sobre relações de amizade, a palavra mãe
foi tida como representativa. Em seus discursos, os adolescentes
contrapunham as relações de amizade à figura materna, de
modo que a última era tida como única fonte de cuidado e de
confiança, enquanto que os pares eram responsabilizados pela
trajetória negativa: “Se eu tiver passando mal na cama, quase
morrendo, não tem parceiro não. Eu tava aqui, passando mal.
Me levaram no médico, num tinha um remédio. Se minha mãe
não vai, um amigo meu: ‘pô, me dá ai um grau pra eu inteirar o
remédio’. Ninguém vai dar não. Minha mãe tirou do bolso dela
pra comprar um remédio pra mim. Se depender dos outros tu
morre, cara. Amigo é minha mãe, pô” (Igor, 16 anos). Ainda
nesse sentido, as falas apresentam dificuldades encontradas
ao estabelecer uma relação de confiança e de proximidade,
principalmente em ambientes hostis e violentos como no
tráfico de drogas e armas, como exemplo , veja-se a seguinte
fala: “Eu posso tá aqui ou ali, entocando minhas drogas. Meu
colega tá vendo eu entocar meus bagulhos. Espera eu entocar
meus bagulhos, espera eu sair e eu vou em casa, volto lá. Aí vou
procurar: cadê minhas cargas? Num sei, ninguém quem viu. Meu
colega mesmo pode me roubar” (Kássio, 14 anos). Um estudo
realizado em uma unidade de internação verificou que as
relações dos adolescentes eram, frequentemente, reconhecidas
como agressivas, além de pouco cooperativas ou solidárias
(ALMEIDA, 2013). Assim, reconhece-se a necessidade de
intervenções que promovam relações interpessoais positivas,
a fim de possibilitar o surgimento de vínculos com pares
que impulsionem o adolescente a trajetórias positivas.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 133


7.6 AGENTES SOCIOEDUCATIVOS
A classe 2 (f = 20 ST), Agentes Socioeducativos, também
parte do subcorpus C, possui como elementos mais relacionados:
semana; final; tirar; perder; prender; agente; causa; conseguir;
sexta-feira; entre outros. Essa classe evidenciou as relações
interpessoais dos adolescentes com os agentes de socioeducação.
Em sua totalidade, os conteúdos apontados pelos jovens refletem
problemas interpessoais e situações de enfrentamento com os
agentes, principalmente com a utilização de práticas coercitivas:
“Os agentes usam muita ameaça, fazem terror dizendo que vão
tirar o final de semana. Quando eles falam que perdemos o final
de semana, nós ficamos nervosos e acabamos fazendo mais
coisas erradas, chutamos a chapa, jogamos comida no chão”.
(Fernando,17 anos).
Estudos realizados em instituições socioeducativas
com funcionários e adolescentes têm indicado a presença
de práticas rotineiras de vigilância, abuso de poder, violência
psicológica e física, inclusive marcadas por uma naturalização
das punições físicas como resposta à indisciplina (MONTE;
SAMPAIO, 2012). Um trabalho de revisão sistemática com
pesquisas em unidades socioeducativas encontrou que 40%
dos artigos indicavam relações interpessoais negativas entre
os adolescentes e os agentes e 30% destacavam elementos
interpessoais positivos, mas que eram descritos como
pontuais (COSCIONI; COSTA; ROSA; KOLLER, 2018). Assim,
é importante ressaltar que as relações interpessoais entre os
agentes e os adolescentes são caracterizadas pouco empáticas,
como revela o seguinte discurso: “Se alguém aqui descumprir,
o jeito vai ser voltar para o crime, para o tráfico. Quando o
menor está cumprindo a medida, é porque quer mudar, quer
ficar com o nome limpo e ter a oportunidade de mudar de
vida, mas os agentes não entendem isso”. (Igor, 16 anos). Desse
modo, considera-se de fundamental importância intervenções
que busquem potencializar as habilidades empáticas e a
comunicação assertiva dos adolescentes, buscando estendê-las
às relações interpessoais com os agentes.

134 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A identificação dos fatores de risco (discriminação) e
de proteção (apoio social, habilidades sociais e autoeficácia)
presentes no contexto familiar, escolar e institucional tornou
possível a identificação dos recursos pessoais e contextuais dos
adolescentes, bem como suas dificuldades interpessoais. Dessa
forma, espera-se que os resultados permitam fornecer subsídios
para implementação de intervenções com essa população.
Sugere-se que estudos futuros busquem realizar uma
intervenção com foco no desenvolvimento do repertório de
habilidades sociais dos adolescentes em Medida Socioeducativa,
focalizando o autocontrole, empatia, assertividade e resolução
de problemas interpessoais. Tais habilidade são capazes de
favorecer a formação e manutenção de relações e vínculos
positivos que, por sua vez, contribuirão com o fortalecimento
das redes de apoio social e das crenças de autoeficácia.
Dessa forma, acredita-se que, ao intervir nas potencialidades
desses adolescentes, os fatores de proteção são ampliados,
de forma a contribuir com a promoção de saúde mental,
com a ressocialização e com a formulação de estratégias de
enfrentamento da situação de conflito com a lei.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 135


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, B. Socialização e regras de conduta para adolescentes


internados. Tempo Social, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 149-167, 2013.
ALVES, C.; DELL’AGLIO, D. Apoio social e comportamentos de
risco na adolescência. Psico, s.l. v. 46, n. 2, p. 165-175, 2015.
BITTENCOURT, A. et al. Feelings of discrimination among
students: prevalence and associated factors. Revista de Saúde
Pública, [s.l], v. 43, n. 2, p. 236-245, 2009.
CERQUEIRA-SANTOS, E.; MELO NETO, O.; KOLLER, S.
Adolescentes e adolescências. In: HABIGZANG, L.; DINIZ, E;
KOLLER, S. (org.). Trabalhando com adolescentes: teoria e
intervenção psicológica. Porto Alegre: Artmed, 2014. p. 17-29.
COSCIONI, V. et al. Projetos de vida de adolescentes em
medida socioeducativa de internação. Ciências Psicológicas,
[s.l.], v. 12, n. 1, p. 109-120, 2018.
COSTA, A.; CAVALCANTE, L. Fatores de risco no
desenvolvimento e nas relações de amizade de adolescentes em
acolhimento institucional. Pretextos, [s.l.], v. 3, n. 5, p. 376- 391,
2018.
CUNHA, E.; DAZZANI, M. A escola e o adolescente em conflito
com a lei: desvelando as tramas de uma difícil relação. Educação
em Revista, [s.l.], v. 32, n. 1, p. 235-259, 2016.
DESSEN, M. Estudando a família em desenvolvimento: desafios
conceituais e teóricos. Psicologia: ciência e profissão, [s.l.]., v. 30,
n. especial, p. 202-219, 2010.
GÜNTHER, H.; ROZESTRATEN, R. J. Psicologia ambiental:
algumas considerações sobre sua área de pesquisa e ensino.
Psicologia: teoria e pesquisa, [s.l.], v. 9, n. 1, p. 109-124, 1993.
JIMENEZ, L. Você já está manjado: a saúde de adolescentes em
conflito com a lei. Revista de Psicologia Política, [s.l.], v. 14, n.
31, p. 535-549, 2014.
LEME, V.; DEL PRETTE, Z.; COIMBRA, S. Social Skills, Social
Support and Well- Being in Adolescents of Different Family
Configurations. Paidéia, Ribeirao Preto, v. 25, p. 9-17, 2015.

136 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


MOIMAZ, S. et al. Análise qualitativa do aleitamento materno
com o uso do software IRAMUTEQ. Saúde e pesquisa , [s.l.], v.
9, n. 3, p. 567-577, 2017.
MONTE, F.; SAMPAIO, L. Práticas pedagógicas e moralidade
em unidade de internamento de adolescentes autores de atos
infracionais. Psicologia: Reflexão e Crítica,[s.l.] , v. 25, n. 2, p.
368-377, 2012.
MOSER, G. Psicologia ambiental. Estudos de psicologia, [s.l.], v.
3, n. 1, p. 121-130, 1998.
MULLER, F. et al. Perspectivas de adolescentes em conflito com
a lei sobre delito, a medida de internação e as expectativas
futuras. Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, [s.l.], v. 1,
n. 1, p. 70-87, 2009.
NARDI, R.; DELL’AGLIO, D. Adolescentes em conflito com a lei:
percepções sobre família. Psicologia: Teoria e Pesquisa, [s.l.], v.
28, n. 2, p 181-191, 2012.
NETO, A. Desafios do acesso escolar para adolescentes em
liberdade assistida. Pós- Graduação em Revista, São Paulo, v. 2,
n. 1, p. 39-59, 2018.
PEREIRA, S.; SUDBRACK, M. Drogadição e atos infracionais na
voz do adolescente em conflito com a lei. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, [s.l.], v. 24, n. 2, p. 151-159, 2008.
PREDEBON, J.; GIONGO, C. A família com filhos adolescentes
em conflito com a lei: contribuições de pesquisas brasileiras.
Pensando famílias, [s.l.], v. 19, n. 1, p. 88-104, 2015.
SELIGMAN, M.; CSIKSZENTMIHALYI, M. Positive psychology: an
introduction. American psychologist, [sl.], v. 55, n. 1, p. 5-14, 2000.
SECRETARIA NACIONAL DE PROMOÇÃO DOS DIREITOS
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Levantamento Nacional
do Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito
com a Lei - 2013. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2015.
SEHN, A.; PORTA, D.; SIQUEIRA, A. “Tocar a vida para frente”:
possibilidades de planos futuros de adolescentes que cometeram
ato infracional. Adolesc. Saúde, [s.l.], v. 12, n. 1, p. 28-34, 2015.
ZAPPE, J.; DELL’AGLIO, D. Variáveis pessoais e contextuais

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 137


associadas a comportamentos de risco em adolescentes. J. Bras.
Psiquiatr., [s.l.], v. 65, n. 1, p. 44-52, 2016.

138 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM ADOLESCENTES
PRIVADOS DE LIBERDADE: O ESTIGMA DE INFRATOR E
SUAS IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS

Marco Antonio de Oliveira

RESUMO
Este artigo objetiva apresentar os resultados de uma
pesquisa realizada em dezembro de 2017 com 100 adolescentes
privados de liberdade, em uma unidade socioeducativa do
Rio de Janeiro, acerca das representações sociais do estigma
de infrator e suas repercussões psicossociais. Utilizamos a TRS
(Teoria das Representações Sociais) de Serge Moscovici como
referencial teórico principal, acompanhada da abordagem
estrutural de Jean-Claud Abric, buscando identificar o núcleo
central e periférico de tais representações sociais. Esta
pesquisa foi de caráter qualitativo e utilizou, dentre outros
instrumentos, a Tarefa de Evocação Livre de Palavras, a partir
do termo indutor “Infrator”, na qual os participantes respondiam
cinco palavras ou frases associadas a este termo. Para efeito
deste trabalho, apresentaremos e discutiremos apenas os dados
obtidos a partir deste instrumento. Os resultados apontaram os
termos bandido, preconceito, tráfico e roubo como prováveis
elementos constitutivos do núcleo central e os termos crime,
prisão, morte, homicídio, drogas e estupro como representantes
das duas periferias.

Palavras-chave: Representações Sociais. Estigma. Adolescente.


Infrator.

1. INTRODUÇÃO
A história do Brasil é marcada por um grave processo de
exclusão social. Desde a colonização até os dias atuais, percebemos
um processo civilizatório no qual a divisão de classes atravessa
as normativas jurídicas e evidencia-se através da ausência

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 139


de políticas públicas efetivas voltadas para as camadas
menos favorecidas da população. Assim, temos, nas grandes
cidades, um aumento considerável dos índices de violência,
comprometendo este segmento populacional, sobretudo os
adolescentes pobres, oriundos de comunidades ou periferias.
Vários estudos apontam para uma correlação direta entre
pobreza e criminalidade, como se a condição de “ser
pobre” condicionasse, irreversivelmente, estes sujeitos à entrada
no mundo do crime.
Misse (1995), discutindo a relação entre criminalidade
e pobreza no imaginário social, relata que a grande maioria
dos trabalhos produzidos em toda década de 1980, no âmbito
da Sociologia, faz uma crítica a esta associação entre pobreza e
criminalidade. Ele assinala que esta correlação, que teria vindo
do século XIX, embora não fosse dominante, transformou-se
numa explicação hegemônica com a gradual substituição das
explicações médicas pelas de patologia social. Ele sustenta que:

[...] sem qualquer correlação linear, seria frutífero investir na


associação de um certo tipo de criminalidade com certos modos
de operar o poder das classes subalternas ‘marginalizadas’.
[...] particularmente se levarmos em conta que é esse ‘tipo de
criminalidade’ que tem sido selecionado pela percepção social e pela
mídia para representar o principal componente da ‘violência urbana’
que ‘precisa ser combatida’ (MISSE, 1995, p.11).

Algumas pesquisas sobre representações sociais


associadas a esta população também apontam uma significativa
contribuição da mídia no fortalecimento de imagens negativas
ou estigmatizantes referentes aos jovens privados de liberdade,
mormente os negros, pobres e de baixa escolaridade.
Abdalla e Paula (2014) realizaram um amplo estudo e
pesquisa empírica, entre 2010 e 2013, em uma instituição de
privação de liberdade de adolescentes do sexo masculino,
o Centro de Atendimento Intensivo de Belford Roxo (CAI
BELFORD ROXO), na baixada fluminense, pertencente ao

140 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), o
mesmo órgão onde trabalhamos e realizamos a nossa pesquisa.
No estudo em tela, foram apontadas as interfaces entre mídia/
violência e a construção social do adolescente/delinquente,
analisando os discursos midiáticos, especialmente, a produção
televisiva, como também as influências destas produções nos
processos de subjetivação/resistência dos internos.
As autoras supracitadas apontam o aumento da
veiculação de imagens, pelos canais midiáticos, de crianças e
adolescentes em cometimento de atos infracionais, sobretudo
de crimes violentos e seu envolvimento com determinadas
drogas, como o crack.

São imagens que destacam preferencialmente crianças e jovens,


negros ou pardos, procedentes dos estratos socioeconômicos mais
desfavorecidos da sociedade. Imagens que reforçam associações entre
pobreza e crime (ABDALLA e PAULA, 2014, p.83).

Importante destacar que esta correlação entre pobreza
e violência parece uma tática adotada pela indústria cultural,
fortalecendo uma referência tendenciosa na abordagem das
ideias propagadas pelos meios de comunicação, principalmente
quando se trata de crianças e adolescentes comprometidos em
situação de violência. O que também fica evidente nesta parte
do estudo é a utilização das práticas de encarceramento e
genocídios como modelo de enfrentamento desta realidade.

2 TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS


Serge Moscovici, psicólogo social romeno naturalizado
francês, a partir deste conceito de representações coletivas de
Durkheim, vai pensar o conceito de representações sociais
como forma de adaptação e compreensão destes fenômenos nas
sociedades contemporâneas e visar o desenvolvimento de
uma Psicossociologia do Conhecimento. Assevera ele que o
conceito de representação social origina-se na Sociologia e na
Antropologia, através de Durkheim e Levi-Bruhl.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 141


Um ponto de divergência entre Durkheim e Moscovici está
na valorização do saber do senso comum. Durkheim deixa bem
clara sua posição contrária à análise deste tipo de conhecimento,
demonstrando interesse apenas pelo saber científico, ao passo
que Moscovici tenta dar relevância e sentido ao conhecimento
produzido entre as classes populares na vida cotidiana.
Outros elementos contributivos da Teoria das
Representações Sociais foram a teoria da linguagem de
Saussure, a teoria das representações infantis de Piaget e a teoria
do desenvolvimento cultural de Vygotsky. É interessante
perceber essa pluralidade epistemológica utilizada por
Moscovici na formulação da TRS. Isso revela a importância
da linguagem, da cultura, dos sujeitos e das relações sociais e
simbólicas nesta abordagem.
A obra clássica de Serge Moscovici: “La Psychanalyse,
son image et son public”, datada de 1961, marca a história e serve
de referencial para a Psicologia Social. Nela, Moscovici cita, pela
primeira, vez o conceito de representação social, “tentando
compreender mais profundamente de que forma a psicanálise,
ao sair dos grupos fechados e especializados, é ressignificada
pelos grupos populares (OLIVEIRA; WERBA, 2013, p.104).
O estudo das representações sociais objetivaria conhecer o
modo como um grupo humano constrói um conjunto de saberes
que expressam a identidade de um grupo social, as representações
que ele forma sobre a diversidade de objetos, tanto próximos
como remotos, e, sobretudo, todo o universo cultural e seus
códigos que orientariam as regras sociais de determinado grupo
num momento histórico (OLIVEIRA ; WERBA, 2013).
Moscovici incomodava-se demasiadamente com o
modelo empirista da Psicologia norte-americana, limitada em
seus campos epistemológico e metodológico.
Ele não percebia em seus pressupostos funcionalistas
e positivistas um alcance real dos níveis de análise dos
fenômenos contemporâneos, sua complexidade e outras
dimensões, como o faz a corrente histórico-crítica.

142 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Esse viés positivista da Psicologia Social americana
também é realçado por Farr ( 2013), ao dizer que Allport (1954)
teria eleito Comte o fundador da Psicologia Social Moderna,
por ser este o fundador do positivismo. Ao contrário, diz ele,
Moscovici, em termos de ancestralidade, teria enfatizado a
continuidade entre o presente e o passado.
Vale mencionar que a Psicologia tradicional não
trabalhava com o saber social, pois seu foco era centralizado
no sujeito individual, cartesiano e ausente de contato com o
mundo externo.
O conceito de representação social aparece para
Moscovici sob a forma sociológica da Psicologia Social,
procurando compreender como as relações interpessoais são
produzidas e influenciam as opiniões, atitudes e comportamentos
de determinado grupo. Esse conceito promove uma
transposição para os modelos de análise, saindo da esfera
individual para o campo social.
É importante ressaltar que Moscovici não tinha o
intuito de criar um conceito acabado de representações
sociais, justamente para demonstrar o seu caráter dinâmico
e inovador, como também a sua complexidade. Para ele, uma
definição mais precisa poderia resultar numa restrição do seu
alcance conceitual.
Este autor, divergindo do aspecto reminiscente
da representação durkheimiana, debruçou-se sobre os
fenômenos mais cotidianos, dinâmicos e transitórios da
sociedade, criando um espaço psicossociológico específico, a fim
de se distanciar do excessivo individualismo da Psicologia Social
americana, priorizar o social sobre o individual e propor uma
nova compreensão das relações entre estas duas categorias.
Serge Moscovici (1981), mencionado por Sá (2002, p.31), define
representações sociais como “um conjunto de conceitos,
proposições e explicações originado na vida cotidiana no curso
de comunicações interpessoais. Elas são o equivalente,
em nossa sociedade, aos mitos e sistemas de crenças das

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 143


sociedades tradicionais; podem também ser vistas como a versão
contemporânea do senso comum”.
Podemos depreender desta definição um evidente interesse
do autor pelo senso comum, elevando-o a uma condição de
objeto de investigação. Moscovici vai perceber nas relações
cotidianas e no mundo social, onde estas são concretizadas,
uma fonte de conhecimento, até então, não muito valorizada e
desprezada, de certa forma, sobretudo pela ciência clássica, que
sempre priorizou o conhecimento produzido nas academias.
De acordo com Rocha (2014, p.7):

A teoria das representações sociais se coloca contra uma epistemologia


individualista, do sujeito puro, ou uma epistemologia do objeto
puro, focalizando seu olhar sobre a relação entre ambos, demonstrando
que tanto o mundo como o sujeito são construídos por meio da relação
dialética entre a atividade deste e a relação objeto-mundo.

Também Denise Jodelet (1989a apud Sá, 2002, p.32),


procurando sistematizar o conceito de representações sociais,
afirma que este “seria uma forma de conhecimento, socialmente
elaborada e partilhada, que tem um objetivo prático e concorre
para a construção de uma realidade comum a um conjunto
social.” Em sua concepção, uma representação social seria uma
forma de saber prático que ligaria um sujeito a um objeto, sendo
este de natureza social, material ou ideal.

3 TEORIA DO NÚCLEO CENTRAL


A Teoria do Núcleo Central (TNC) é uma abordagem
complementar da Teoria das Representações Sociais (TRS) e visa
facilitar, do ponto de vista epistemológico e metodológico, a
aplicabilidade da TRS na pesquisa social, identificando as
representações presentes em determinados contextos e dando
maior notoriedade ao conhecimento produzido por certos
grupos sociais.
Embora complementar à Teoria da Representação Social,
a Teoria do Núcleo Central não deixa de ser menos importante,

144 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


pois traz consigo elementos conceituais que aprofundam a
prática de investigação das representações sociais.
A Teoria do Núcleo Central origina-se de pesquisas
experimentais no campo metodológico, a despeito da Psicologia
Social europeia tecer severas críticas, neste aspecto, ao modelo
adotado pela Psicologia Social norte-americana. Na verdade, o
paradigma experimental ainda é bastante relevante na disciplina
psicológica e continua promovendo resultados significativos
sobre as temáticas estudadas.
Sá (2002) postula que a ocupação com a metodologia
experimental do estudo das representações sociais constitui
uma base para o surgimento e para o desenvolvimento
da TRS, sem desconsiderar a pluralidade metodológica -
apanágio fundamental da Teoria das Representações Sociais
- respaldada pelo Grupo do Midi (conjunto de pesquisadores
do sul da França).
A Teoria do Núcleo Central, como vertente suplementar
da Teoria da Representação Social, chamada por Doise de
“a grande teoria”, possui características essenciais a partir da
sua associação com a prática experimental.
A TNC é apresentada pela primeira vez na tese de
doutorado de Jean- Claude Abric intitulada “Jeux, conflits et
representations sociales”, na Universidade de Provença, em 1976.
Neste trabalho, baseado na ótica experimental, Abric sustenta
a hipótese de que os elementos da representação social seriam
hierarquizados e que toda representação seria organizada em
torno de um núcleo central, sendo este formado por determinados
elementos que forneceriam significados à representação.
Ele atesta que a representação direcionaria o significado
e a interação, assim como cada representação geraria distintos
resultados nas suas várias ações individuais. Sua proposição
surgiria de estudos correlacionando comportamento e
representações sociais.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 145


4 MÉTODO
Esta pesquisa foi realizada no Educandário Santo
Expedito - localizado em Bangu, na zona oeste carioca - unidade
socioeducativa do DEGASE (Departamento Geral de Ações
Socioeducativas), órgão estadual responsável pelo cumprimento
das Medidas Socioeducativas no estado do Rio de Janeiro, com
100 adolescentes privados de liberdade, no mês de dezembro
de 2017. Dentre os métodos utilizados na pesquisa, utilizamos:
a Técnica de Evocação Livre, a partir do termo indutor infrator,
solicitando aos mesmos que elencassem 5 (cinco) palavras
ou frases associadas ao termo indicado; um questionário
sociodemográfico com 14 perguntas, a fim de obter o perfil
destes jovens ; e perguntas abertas como forma de adquirir
mais informações sobre as repercussões do termo infrator na
vida e na rotina dos adolescentes entrevistados. Para a execução
da pesquisa, tivemos a permissão do Poder Judiciário, da
Direção-Geral do DEGASE e da direção da unidade. Durante a
aplicação das perguntas, tivemos todos os cuidados para termos
um ambiente tranquilo e refrigerado, em condições satisfatórias
e de modo a não interferir nas respostas.

5 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

5.1ANÁLISE DAS EVOCAÇÕES LIVRES


O método das associações ou evocações livres é
considerado por Abric como uma técnica fundamental na
coleta dos elementos constitutivos dos conteúdos de uma
representação. Dentre algumas vantagens do método, ele cita
seu caráter espontâneo (menos controlado) e a sua dimensão
projetiva enquanto facilitadores do acesso aos elementos que
constituem o universo semântico do termo estudado.
A tabela abaixo se refere à Teoria Estrutural de Jean-
Claude Abric e sua concepção de Núcleo Central e Núcleo
Periférico. Nela constam as explicações dos significados de
cada quadrante e o que comportam.

146 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


TABELA 1- Esquema das quatro casas das distribuições das
representações sociais

1º Quadrante 2º Quadrante

Elementos que Primeira Periferia


provavelmente constituem Abriga elementos
o Núcleo Central, pois tardiamente evocados, mas
deste quadrante integram ainda com considerável
os elementos com alta frequência de evocação.
frequência de evocação. Integra os elementos
periféricos mais evocados.

3º Quadrante 4º Quadrante

Segunda Periferia
Elementos de Contraste Elementos tardiamente
Abriga cognomes evocados e com baixa
prontamente evocados, frequência e, portanto,
porém com baixa frequência. encontram-se mais
distantes do Núcleo Central.

FONTE: O autor

Segundo Abric (1994), as representações sociais se


organizariam num duplo sistema, o central e o periférico.
Do núcleo central, fariam parte os elementos mais fortes das
representações, os elementos mais vezes e mais prontamente
evocados, enquanto do periférico fariam parte os elementos
menos evocados e com menos prontidão de evocação. No
entanto, apesar de menos força ao serem evocados, os
elementos periféricos protegeriam, fortaleceriam, regulariam
e concretizariam os integrantes do núcleo central.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 147


Os elementos mais evocados foram considerados
como os mais prováveis integrantes do núcleo central das
representações sociais, já que é no núcleo central que se
concentram os elementos mais fortemente evocados e, portanto,
os mais resistentes das representações sociais. São os elementos
mais significantes das representações.
Outras características no núcleo central seriam a sua
ligação e determinação pelas condições históricas, sociológicas
e ideológicas, indícios da memória coletiva de um grupo e
de seu sistema normativo. Ele teria uma função consensual
(base comum das representações sociais) e seria estável e
resistente à mudança, garantindo a função de continuidade
e permanência da representação. Já o sistema periférico
atualizaria e contextualizaria as determinações normativas
através da interface entre a realidade concreta e o núcleo
central, seria funcional e manteria a mobilidade e flexibilidade
das representações sociais.
A seguir apresentaremos a distribuição dos resultados
obtidos pela técnica da evocação livre e tratados pelo software
EVOC (Ensemble de Programmes Permettant I’analyse dês
Evocations), proposto por Vergès, em 1999. Em seu trabalho,
este autor propõe a combinação de dois critérios: a frequência
da evocação livre e a ordem média de evocação de cada
palavra, possibilitando a identificação daquelas que mais
provavelmente pertencem ao núcleo central.

5.2 ANÁLISE PROTOTÍPICA

n= 100
Frequência Mínima 5
Termo indutor- INFRATOR

148 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


FIGURA 1 - Estrutura da representação social acerca do termo
indutor INFRATOR
< 2,5 ordem média de evocação ≥ 2,5

FONTE: O autor

A partir dos dados analisados pelo software EVOC,


percebemos no gráfico supra, no seu primeiro quadrante
(lado superior esquerdo), a prevalência dos termos bandido e
preconceito com 48 evocações, tráfico com 39 evocações e roubo
com 35 evocações como prováveis elementos constituintes
do núcleo central, devido a sua alta frequência de evocação.
No segundo quadrante (lado superior direito), indicativo
da primeira periferia, onde encontramos os elementos
tardiamente evocados, mas ainda com considerável frequência
de evocação, observamos o termo crime com 21 evocações e com
uma frequência maior ou igual a 21; já no terceiro quadrante
(lado inferior esquerdo), zona dos elementos de contraste,

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 149


que abriga os cognomes prontamente evocados, todavia de
baixa frequência, temos os termos infração (12 evocações), ódio
(6 evocações) e violência (5 evocações) com frequência menor
ou igual a 21. Por último, no quarto quadrante (lado inferior
direito), área ligada à segunda periferia, no qual encontramos os
elementos tardiamente evocados, com baixa frequência e, por
conseguinte, mais distanciados no núcleo central, temos
os termos prisão (19 evocações), morte (18 evocações), homicídio
(15 evocações), drogas (13 evocações) e estupro (10 evocações).
Desse modo, fica indicado no primeiro quadrante o
provável núcleo central com as palavras bandido, preconceito,
tráfico e roubo; no segundo quadrante (primeira periferia) o
termo crime; no terceiro quadrante (zona de contraste) os termos
infração, ódio e violência e no quarto quadrante (segunda
periferia) os termos prisão, morte, homicídio, drogas e estupro.
Durante a análise dos dados, dentre os elementos
constituintes do núcleo central, o elemento bandido esteve
relacionado tanto à prática delituosa em si como ao alto grau de
comprometimento com a ilicitude. O elemento preconceito foi
muito associado aos aspectos étnicos e socioeconômicos, como
também a regiões geográficas específicas, mormente periferias
ou comunidades. O elemento tráfico teve ligações com o uso e
a participação no comércio ilegal de drogas e o elemento roubo
com furtos e os artigos 155 e 157. Já o termo crime, presente
na primeira periferia, esteve ligado a delitos diversos como
roubo, tráfico etc. Por sua vez, os termos infração, ódio
e violência, constantes na zona de contraste, mantiveram,
respectivamente, correlação com os atos infracionais em si, com
o sentimento despertado por estar preso ou sofrer alguma forma
de preconceito e com ações violentas cometidas ou sofridas
pelos adolescentes. Finalmente, os termos formadores da
segunda periferia - prisão, morte, homicídio, drogas e estupro -
foram ligados à ideia de: estar internado ou apreendido; matar
ou correr risco de morte; cometer homicídio ou latrocínio;
comercializar, traficar ou consumir substâncias psicoativas
(drogas); e cometer estupro.

150 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


6 CONCLUSÃO
Os elementos constituintes do núcleo central parecem
indicar o quanto estes adolescentes, na condição de privação
de liberdade, carregam em seu imaginário uma forte correlação
com seu universo cultural e suas trajetórias de vida. Sendo
em sua maioria oriundos de comunidades ou periferias,
negros e de baixa escolaridade, suas vidas são por vezes
marcadas por tragédias pessoais e familiares, desemprego,
violência e falta de oportunidades.
Estes dados atestam ainda uma associação com as péssimas
condições de vida destas populações, histórica e socialmente
excluídas, sem acesso a mínimos graus de cidadania e
direitos. Estas representações sinalizadas por estes jovens
falam de sua memória, de seu grupo e de sua história. História
de ausências, de descaso e abandono do poder público. Não
fica difícil perceber que, ainda hoje, em pleno século 21, a nossa
infância e adolescência não são tratadas dignamente, embora
disponha-se de uma lei mais inclusiva e menos excludente, mas
ainda com muitas dificuldades em sua concretização.
Também o elemento crime, integrante da primeira
periferia, com considerável número de evocações, permite-
nos pensar numa extrema conexão desta juventude com este
universo. A tática de relacionar pobreza e criminalidade,
já descrita neste documento, ainda resiste e persiste,
culpabilizando, responsabilizando e criminalizando indivíduos
das classes pobres. Podemos inferir, a partir destes
resultados, o quanto ainda mantemos acesa a chama do
encarceramento dos jovens pobres, institucionalizados em
precários estabelecimentos, sem acesso à cidadania plena e sem
perspectivas futuras.
O estigma de infrator, construído sócio-historicamente,
mostrou seu impacto na vida simbólica e relacional destes
adolescentes, dificultando a elaboração de um projeto de vida
inclusivo. A identidade afetada no ambiente prisional,

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 151


fortalecida por este estigma, parece trazer consigo marcas
indeléveis e de difícil superação. Também a influência do
estigma de infrator foi fortemente sinalizada no processo
de ressocialização destes jovens, seja pelo tempo de privação
vivenciado, pelas perdas de oportunidades decorrentes deste
período de permanência ou mesmo pelo olhar social
preconceituoso de familiares, amigos ou vizinhos, expressado
após o retorno ao convívio social. Assim, em nossa pesquisa
(OLIVEIRA, 2018) conseguimos identificar, discutir e
demonstrar o quanto o estigma de infrator interfere na
percepção dos adolescentes e em sua ressocialização.
Urge repensar o modelo socioeconômico que vige em nossa
sociedade, reduzir este individualismo e este egocentrismo que
assola as relações sociais. Os nossos adolescentes estão ainda
alijados de seus direitos, embora sejam considerados “sujeitos de
direitos” pela nova lei, o Estatuto da Criança e do Adolescente
(Brasil, 2010). Estes direitos que foram sempre negados na
história brasileira. A institucionalização e o aprisionamento
deste segmento populacional em nada parece ter contribuído
para a redução dos índices de violência, pelo contrário, essas
ações são extremamente violentas com estes indivíduos,
cansados e excluídos pela sua condição socioeconômica.

152 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


REFERÊNCIAS

ABDALLA, J. F. S.; PAULA, M. F. Mídia, violência e adolescentes


privados de liberdade. In: Julião, E. F. et al. (org.). Delinquência
Juvenil, Políticas Públicas e Direitos Humanos. Rio de Janeiro:
Novo Degase, 2014.
ABRIC, J. C. Pratiques Sociales et Représentations. Paris:
Presses Universitaires de France, 1994.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069, de 13
de julho de 1990. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
FARR, R. M. As Raízes da Psicologia Social Moderna. 11. ed.
Petrópolis: Vozes, 2013.
MOSCOVICI, S. On social representations. In: Forgas, J. P. (ed.).
Social Cognition: Perspectives on Everyday Understanding.
London: Academic Press, 1981. p. 181-209.
MISSE, M. Crime e pobreza: velhos enfoques, novos problemas.
In: Gonçalves, M. A.; Villas-Boas, G. (org.). O Brasil na Virada
do Século. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
OLIVEIRA, M. A. Representações sociais em adolescentes
privados de liberdade: o estigma de infrator e suas implicações
psicossociais. 2018. Dissertação (Mestrado em Psicologia) -
Instituto de Educação, Departamento de Psicologia, Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2018.
OLIVEIRA, F. O.; WERBA, G. C. Representações sociais. In:
Strey, M. N. Psicologia Social Contemporânea: livro texto.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
ROCHA, L. F. Teoria das representações sociais: a ruptura de
paradigmas das correntes clássicas das teorias psicológicas.
Revista Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v. 34, n. 1, 2014.
SÁ, C. P. Núcleo Central das Representações Sociais. 2 ed.
Petrópolis: Vozes, 2002.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 153


DA ORDEM DE SER O IDEAL AO QUE ME CONSTRUO
HOJE: SOBRE DISCIPLINARIZAÇÃO E AS LINHAS DE
FUGA NA SOCIOEDUCAÇÃO

Ana Camilla de Oliveira Baldanzi


Raiane Barreto Teixeira
Loíse Lorena Silva do Nascimento
Juliana Carnevale da Cunha
Thiago Benedito Livramento Melicio
Anna Paula Uziel

RESUMO
No Capitalismo, há um forte investimento em padrões
a serem consumidos. Assim, quem não se insere em tal
lógica passa por processos de segregação, criminalização e
inferiorização. O contexto do DEGASE mostra, de forma mais
explícita, mecanismos de vigilância e disciplinarização dos
corpos cujos objetivos são torná-los dóceis e normatizados
para a vida social. Este artigo visa discutir como certos modos
de subjetivação serializados ganham corpo nesse território,
compreendendo a disciplina como uma importante categoria de
análise para pensar as relações construídas dentro do sistema,
bem como as possíveis rupturas e linhas de fuga nas práticas
socioeducativas.

Palavras-chave: Disciplinarização. Subjetividade. Socioeducação.


Poder.

1. INTRODUÇÃO
Na conjuntura atual da sociedade, atravessada
cotidianamente pela violência, algumas das características
atribuídas a adolescentes autores de ato infracional, tais como
preguiçoso, mentiroso, dissimulado, mau-caráter, ganham muito
mais força quando atreladas ao sentimento de insegurança da
população, fazendo com que revolta e inconformidade dominem
cada dia mais a opinião pública. Segundo Barcelos e Sousa

154 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


(2015), tais representações são cotidianamente reproduzidas
e disseminadas em formas de discurso, sem anteriormente se
fazer uma análise crítica, logo, são marcadas por conceituações
negativas e pejorativas com o adolescente em conflito com a lei.
Nesse sentido, olhar o adolescente que cometeu um ato infracional
é encará-lo longe de seu contexto, como o vilão que não recebe
a pena que merece, alguém inerentemente mau, que precisa de
‘uma correção’, disciplina e controle, para que se torne o jovem
que as máquinas produtoras de subjetividade delineiam como
socialmente valorizado: educado, cidadão de bem, passivo, controlável
e disciplinado. Contudo, se, ao invés de ter uma visão reducionista
sobre o indivíduo, nos atentarmos para o que está em seu entorno,
possibilita-se a construção de outra narrativa, percebendo outra
história (SOUZA; BARCELOS, 2015).
A invisibilização da vulnerabilidade coloca no sujeito a
total responsabilidade sobre sua condição. Assim, cobram-se
passos gigantes de quem não teve oferecidas as mínimas condições
de engatinhar; requer-se equilíbrio, estrutura e construção de
uma vida estável de quem, em sua maioria, não teve ofertadas
historicamente possibilidades para tal. Neste sentido, a forma de
análise não realiza a implicação do coletivo, da sociedade e do
Estado, mas, diferentemente, enfatiza a ideia de escolhas e méritos
individuais, passando a culpabilizar o sujeito pela sua miséria,
violência, suposta desestrutura familiar, falta de oportunidades.
Bicalho, Rossoti e Reishoffer (2016) ressaltam que a noção de
desordem, somada ao medo como operador político, demanda uma
reivindicação por ordem, uma vez que o caos poderia inviabilizar
“a institucionalização da possibilidade de manutenção da vida”
(p.87). Em nome de uma sociedade civilizada, ordeira e segura,
justifica-se que os corpos e as vidas sejam transversalizadas pelo
ordenamento social e pela repulsa ao risco. A ordem passa a ser
uma demanda com fim em si própria para amenizar a noção de
desordem que a concepção de caos traz em si, fazendo com que,
pela apropriação confusa dessa ordem, matem-se e determinem-
se modos de viver. Esses autores sintetizam a ideia da ordem

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 155


colocada sobre as pessoas que constituem a maior parcela em
privação de liberdade:

Eles têm endereço, cor, escolaridade, uma determinada maneira de


ocupar o espaço urbano, estes “desordeiros”. Os que devem ser presos,
vigiados, controlados ou exterminados são facilmente definíveis,
aqueles que não se encaixam na lógica de trabalho-produção-consumo.
São a “sujeira” da cidade, a “matéria fora do lugar” no sistema neoliberal
vigente. Sim: porque lixo, em uma sociedade como a nossa, nada mais é
do que matéria fora do lugar. Nada mais são do que aqueles “se lugar”
no sistema de produção. A eles, um lugar: junto aos “guardiões de
ordem” (BICALHO; ROSSOTTI; REISHOFFER, 2016, p.87).

No escopo desta pesquisa, intitulada “Subjetivação


e Problematização dos modos de vida junto às adolescentes
do DEGASE feminino no Rio de Janeiro”, coordenada por
Thiago Melício, foram realizados encontros com adolescentes e
profissionais do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do
estado do Rio de Janeiro, entre 2015 e 2018. Uma fala disparadora,
ouvida no contexto do sistema, que reforça o pensamento de que
os adolescentes são irrecuperáveis, foi: “UPP invade, vagabundo
que tá ali não vai virar trabalhador (...)”(Z, 20/10/17). Dentre
outras implicações que essa concepção mais presente na sociedade
traz, prevalece a ideia das vidas que valem socialmente e as que
não valem, ou melhor, que valem punição e privação, sendo
condenadas a uma descartabilidade da vida social (AGAMBEN,
2004 apud BICALHO, ROSSOTTI, REISHOFFER, 2016). Contudo,
nesse contexto, agenciam-se subjetividades, dentre distintas
construções de si mesmo que fogem do que lhes é socialmente
esperado e escoam para outros possíveis, configurando novas
formas de ser e estar no mundo.

2.TRANSITANDO POR EXPERIMENTAÇÕES: CARTOGRAFAN-


DO VIVÊNCIAS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO
Nossa pesquisa teve início em 2015 em uma unidade
feminina e estendeu-se posteriormente a uma unidade masculina,
ambas localizadas na zona norte do Rio de Janeiro. Os encontros

156 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


com os adolescentes ocorreram quinzenalmente, na parte da
manhã, para os quais era disponibilizada uma sala. Geralmente
a atividade era sobre um tema, mas nada que impedisse que
mudássemos a condução do trabalho, se surgissem outros
assuntos.
O trabalho teve o intuito de pesquisar COM, e não SOBRE,
buscando acompanhar processos, ao invés de representá-los
(KASTRUP, 2009), deslocando o grupo de pesquisadoras de um
lugar que preza a neutralidade para admitir que são também
afetadas pelo campo, sem supor um saber, mas tendo abertura
para produzir em conjunto um lugar comum com os jovens e
agentes socioeducativos. Com esta pesquisa, objetiva-se, portanto,
cartografar as composições subjetivas que vão sendo produzidas
no contexto de privação de liberdade, das quais a disciplinarização
será uma das ramificações usadas para discutirmos sobre como ela
transpassa esse sistema, especificamente o Departamento Geral de
Ações Socioeducativas (DEGASE), no Rio de Janeiro.
Pautados pela postura da cartografia psicossocial
(GUATTARI; ROLNIK,1999), nossa metodologia nos convida
a pesquisar apostando na posição de estrangeiras, como a
multiplicidade de linhas formam territórios existenciais. Pensar em
cartografia é repousar nos conceitos inicialmente geográficos para
compreender que nós, enquanto sujeitos, somos uma produção e
que cada afetação, experiência, relação com o outro e com o mundo
nos atravessa e vai nos compondo, como um território, tracejado
por fluxos e afetações.
Entretanto, esse território existencial não é estático.
Podemos modificar nossas fronteiras, nos ancorar num espaço por
um momento e noutro não nos reconhecermos mais, produzindo
outros territórios a serem habitados e explorados. Diante desse
cenário, entendemos que a privação de liberdade produz um
sujeito de acordo com as possibilidades do plano virtual que
talvez não existisse em outro contexto. É uma subjetividade que é
produzida socialmente a partir dos agenciamentos de enunciação
que nos sobrecodifica, como aponta Deleuze (1996).

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 157


Os territórios existenciais podem ser compostos por 3 tipos
de linhas: a segmentada (linha dura), a linha flexível e a linha
de fuga. Podemos entender a linha dura como totalizadora, sem
possibilidade de circulação de ideias intermediárias: “ou é isso ou
é aquilo”. Já a linha flexível, como o próprio nome diz, traz uma
abertura ainda que pouca a esse território enrijecido. A linha de fuga,
por sua vez, causa uma fissura que faz o território não conseguir
ser sustentado, provocando processos de desterritorialização
e reterritorialização em uma nova possibilidade de ser e estar
no mundo (DELEUZE; PARNET, 1996). Essas linhas não estão
classificadas em grau de importância, não havendo uma que se
sobreponha à outra. Elas simplesmente existem e nos contornam
em territórios existenciais. É válido ressaltar que elas são dinâmicas
e estão a todo tempo em movimento.
No âmbito de nossa pesquisa, tomamos a disciplinarização
como um dispositivo, como uma das linhas que transversalizam
os territórios produzidos no cotidiano do DEGASE, tendo em
consideração o caráter múltiplo de cada experimentação, e
evidenciando que a experiência no sistema não é igual a todos. Falar
em produção de subjetividade é sair da lógica de uma identidade
interiorizada para compreender que há modos de subjetivações
sendo consumidos a todo instante e que nessa produção alguns
modos se tornam hegemônicos, mas não únicos. Deste modo,
buscamos refletir criticamente sobre a ideia de que um jovem
cometer um ato infracional seja algo natural e inato e perceber,
com a cartografia psicossocial, como essas linhas vão compondo
tais territórios, no sentido de acompanharmos processos.
Partindo do pressuposto de que estamos sempre nos
constituindo, nos produzindo subjetivamente e socialmente,
analisamos que a disciplinarização presente no ordenamento
social também faz parte dessa produção e está a serviço de uma
manutenção de ordem. Cabe, assim, pôr em análise que ordem
é esta que se procura, quais critérios ela sustenta e é sustentada
por e quais seus efeitos para as viabilidades sociais de diferentes
territórios existenciais poderem ou não se manifestar.

158 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Para tratarmos sobre essa temática da disciplinarização
vigente no ambiente do DEGASE, recorremos ao que Foucault
conceitua como anátomo-política e biopolítica. Nessa disseminação
de poder, este autor relata como elas se instrumentalizam,
passando por importantes transformações, no contexto europeu
ocidental, entre o final do século XVII e início do século XIX, sendo
que a própria constituição da ciência vai se submeter a esse poder
(FOUCAULT, 2005).
Com a passagem do poder do soberano ao poder disciplinar,
no primeiro período acima citado, temos que o poder sobre os
sujeitos era exercido por diversos mecanismos disciplinares,
tais como a vigilância, o registro contínuo, a posição dos corpos,
por uma anátomo-política (que está para o nível do corpo, mais
individualizante) que pretendia, por efeito, a produção de uma
sociedade de corpos dóceis (disciplinados) e úteis (saudáveis
para exercer sua força de trabalho ao máximo). Todavia, desde o
segundo período citado, esse poder passa a contemplar também
o sujeito em suas esferas coletivas, seja no âmbito biológico da
espécie (corpo-espécie), seja no âmbito grupal da sociedade e do
Estado. À medida que questões como natalidade, segurança, saúde
e outras vão se tornando objetos da política, esses mecanismos
regulamentadores vão compor a biopolítica que atuará num
nível da população, no intuito de fortalecer o corpo social. A
existência de uma não exclui a outra, ou seja, tanto a anátomo
quanto a biopolítica vão se transversalizar, constituindo o que o
autor chama de biopoder. As relações do poder, nessa concepção,
disseminam-se nos discursos e nas práticas, a disciplina aparece
como uma das formas de seu exercício (FOUCAULT, 2005).
Assim, o exercício desse poder pretende modelar, ajustar
e disciplinar os corpos, regulamentando as formas de vida em
que a sociedade investe, oferencendo poucas possibilidades de
sustentação da diferença que não seja pelas da via da segregação
e exclusão. Assim, qualquer diferença terá classificações como
‘rebeldia’ e ‘delinquência’, custando um preço alto a se pagar.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 159


Faz-se necessário assinalar também que essa vigilância
transversaliza, além da Justiça, outros poderes que regulamentam a
vida social como instituições psicológicas e médicas, criminológicas
e pedagógicas. Essas esferas se articulam na construção de sujeitos
funcionalmente inseridos na lógica da economia, bem como
instauram um sistema de individualização que objetiva modelar
sua existência. (REVEL, 2005). Portanto, é preciso refletir sobre
esse exercício do poder para além dos instrumentos de dominação
do Estado, como a polícia, o exército, entre outros (NUNES, 2016).
Essa relação de poder se mantém através de dispositivos, como
a família, a escola, a igreja e outros lugares em que se permeia a
lógica de domesticação dos corpos, de controle e construções de
subjetividade, visando esta manutenção (FOUCAULT, 2010 apud
NUNES, 2016).

3. AGENCIANDO SENTIDOS SOBRE A DISCIPLINARIZA-


ÇÃO: UMA RELAÇÃO RIZOMÁTICA ENTRE TEORIA E
PRÁTICAS
No avanço da pesquisa, com a realização dos encontros
em unidades feminina e masculina com adolescentes e agentes
socioeducativos, chamou-nos a atenção que essa disciplinarização
se desse de modos distintos. Retomando a ideia de Bicalho, Rossoti
e Reishoffer (2016) sobre a manutenção da ordem, foi percebido que
a disciplinarização que permeia o contexto de privação de liberdade
se evidencia em práticas por vezes enrijecidas e naturalizadas,
fazendo parte da rotina a ponto de não se pensar sobre isso,
apenas sendo reproduzida em larga escala. Em alguns encontros,
pudemos perceber tal realidade à medida que temas relacionados
à lógica repressiva emergiam. Esta aparecia não só no contexto
da instituição, como também estava presente no cotidiano dos
adolescentes enquanto os mesmos estavam em liberdade.
No âmbito da unidade masculina, percebeu-se uma forma
de controle intensa e exaustiva quanto ao posicionamento dos
corpos dos adolescentes. Existe uma rotina que não permite nada
fora do script. Esse corpo, em muitos casos, transita na unidade

160 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


socioeducativa com as mãos para trás, olhando para baixo e sem
falar, sem encarar ou permitir ser encarado pelos profissionais que
estão a sua frente.
Na unidade feminina, a disciplina exercida sobre a
sexualidade e sobre o comportamento das adolescentes parece
depender mais das forças situacionais, que estão em jogo no
momento, fazendo com que a vigilância se dê de formas diferentes
nos contextos masculino e feminino. As situações que parecem
demandar atenção, conforme as falas, referem-se, por exemplo,
aos relacionamentos que elas podem desenvolver umas com
as outras, à altura com que conversam no período da noite e ao
quanto comem. Também há um controle sobre o ciclo menstrual
das jovens, as quais só podem solicitar apenas um absorvente por
dia, o que reforça a lógica da vigilância e disciplinarização dos
corpos exposta acima. Percebemos, deste modo, como algumas
das construções de gênero atravessam o Sistema Socioeducativo,
alterando e moldando as práticas disciplinares e diferenciando a
dinâmica das instituições. Pode vir, inclusive, a trazer incômodos
e também desafios no manejo da relação dos agentes masculinos
com as adolescentes da unidade feminina, em situações conflitantes
como as de “sedução” ou de enfrentamento.
Outra diferenciação percebida foi de alguns dos efeitos das
divisões por facções na unidade masculina, onde o funcionamento
da instituição acaba por girar em torno dessa questão: as facções
não podem se encontrar. São destinados alojamentos diferentes,
horários distintos, em grande parte, seja das refeições ou outras
atividades. A lógica do ‘lado de fora’, externo ao DEGASE, em
que as facções são rivais, disputando o controle de locais e tráfico
de drogas, estende-se a essas unidades. Quem é de fora da facção,
o que então carrega a diferença em relação ao grupo de origem,
converte-se em “inimigo”, “alemão”. Desse modo, a coerção se
intensifica para evitar um caos maior, principalmente quando
esses espaços sofrem com uma superlotação.
Em relação ao trabalho com os agentes, as rodas de
conversa também ocorriam quinzenalmente. Esses encontros

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 161


foram demandados pelos próprios agentes, pois reivindicavam
um espaço de fala para suas versões sobre as relações com os
jovens. Durante os encontros, percebemos uma diversidade
de falas. Por um lado, houve um delineamento de práticas
repressivas que, em seus discursos, eram ações justificáveis pelo
contexto que o DEGASE representa para alguns: de superlotação,
precarização do trabalho e necessidade de ‘controlar os meninos’
com baixo quantitativo profissional. Por outro lado, alguns
agentes comentaram sobre a busca por formas de relações mais
próximas aos adolescentes, segundo eles, mais relacionadas à
Socioeducação, com mais diálogo e escuta. Todavia, este último
grupo relatou que os agentes que não tinham práticas ríspidas
e mais severas eram vistos de forma diferenciada pelo próprio
coletivo. O que nos apareceu nesses encontros, e que eles assim
denominam, é que existe o ‘agente linha dura’ e o agente ‘pão doce’:
o primeiro manteria uma relação mais agressiva com os internos e
internas, sendo restrito o diálogo e por vezes usando de ameaças
para garantir a disciplina; o segundo, por sua vez, usaria o diálogo
como uma das principais ferramentas de trabalho, estando aberto
à escuta e permitindo-se aproximar dos jovens.
Ao nos encontrarmos com os profissionais, percebemos
que por vezes a atuação destes pode parecer uma prática única
e igual a todos. Contudo, ao cartografar este contexto, observa-
se que a atuação, às vezes tão descrita e demarcada, passa para
algo que vai além da sua prescrição. As relações que são criadas
e suas ramificações são múltiplas: há agentes que “ganham o
respeito” pela coerção, outros pela “conversa”; algumas relações
entre agente e adolescente são construídas com aspereza, outros
com camaradagem, outras são as mais ínfimas possíveis, pois
alguns agentes, como dito em um dos encontros, “só estão ali
para trabalhar e quanto menos souberem da história de vida do
adolescente, melhor para eles”.
Muitas são as formas de como a relação entre agente e
adolescente irá ocorrer. Apesar de parecer haver grande vazão à
violência, a aparição de medidas alternativas vai se constituindo.

162 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Seja em razão de discursos sociais compartilhados não apenas no
DEGASE, como na sociedade como um todo, seja por elementos
relacionados, por exemplo, às precárias condições de trabalho,
a manutenção de um ordenamento em que se controla o risco,
parece ser um grande agenciador. Certa vez um agente nos
falou: “Estamos aqui para garantir primeiro a nossa integridade,
depois da visita e depois deles. Acontece briga, estupro,
morte aqui dentro... se você for omisso, eles mesmos tomam a
providência. ”(D. 20/10/17). Eram comuns os relatos, por parte
dos profissionais, das dificuldades em se implantar e implementar
o que o SINASE propõe como Socioeducação. Consideravam o
modelo socioeducativo, tal como é proposto pela legislação, uma
boa ideia, mas que na prática não haveria muito espaço para tal.
Retomando a ideia inicial de Bicalho, Rossoti e Reishoffer (2016),
poucas são as brechas para que a vida se exerça sem a manutenção
da ordem, fazendo com que esse grupo, no caso desta pesquisa,
os adolescentes autores de ato infracional, seja de sujeitos “sem-
lugar”, alvo de não outra coisa senão a vigilância.
Nessa posição, podemos compreender que existe uma
composição rizomática das práticas sobre as quais, no mesmo
território, ambivalências se relacionam. Pensemos então sobre
as linhas. Há certos territórios que se organizam em torno de um
controle do comportamento por meio da expressão ou da ameaça
de expressão da violência, geralmente transitando pela linha
segmentarizada (dura), não abrindo margem para outras práticas,
fechando-se sobre si mesmo. Em contrapartida, há territórios que
caminham entre as linhas flexíveis, abrindo uma maior margem
ao singular. Sendo assim, o que é possibilitado é um desafio de
se tentar transitar sobre as linhas flexíveis e/ou de fuga, pois fica
aberto à desterritorialização e reterritorializaçao, ou seja, permite-
se circular por outros espaços e ideias para construir novas práticas
sem bloquear-se em função da ameaça pelo desconhecido.
Os adolescentes, assim como os agentes, têm suas distintas
formas de perceber e experienciar o Sistema Socioeducativo. É
importante ter em mente que estes não estão passivos no processo

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 163


de disciplinarização. Não são simplesmente sujeitos que existem
naquele espaço no qual deveriam apenas estar submetidos à ação
de outro - majoritariamente agentes do Estado. As relações, intra e
extramuros, seja entre os jovens, seja destes com os agentes, dão-se
de forma mais complexa e rizomática do que entendemos.
Essa complexidade na dinâmica das relações abarca
inúmeras mobilizações que fogem ao exercício estrito desses papéis
de autoridade e submissão, evidenciando que as relações são
transversais e não exclusivamente hierarquizadas. Possibilitando,
desta forma, que outros contatos para além de uma punição sejam
feitos, podendo transformar a própria forma de enxergar um ao
outro (agente e adolescente) e seus papéis dentro dessa instituição.
Viabiliza-se, nesse sentido, que ambos se apropriem da potência
criadora de estabelecer outras posições ao enfrentamento das
circunstâncias que vão aparecendo, muitas vezes conflituosas, não
se limitando apenas ao que tange à relação dos profissionais com
os adolescentes, como também à estrutura precária de trabalho.
Em um de nossos encontros, uma das falas trazidas que nos
remete a esta discussão foi: “Eles oprime nós, mas nós também
não fica com medo não” (P. 13/07/2018). Esta apareceu quando
falávamos sobre Direitos Humanos e violência com os adolescentes.
Como sequência de uma mesma atividade disparadora, nesse
mesmo encontro, outra fala sobre a relação dos agentes com eles
foi: “Eles sabem como é o ritmo da favela, é diferente. Os mais
playboys são os que mais maltratam” (Y. 13/07/2018). Destaca-se
que enquanto os agentes se diferenciam por “pão doce” e “linha
dura”, os adolescentes associam essa diferenciação de atuação ao
contexto extramuros. Aqueles que conhecem o cotidiano da favela
teriam uma prática menos repressiva, enquanto os que são de
outra realidade social são os que, na visão deles, constroem com
eles relações mais ríspidas.
O modo de vida desses jovens nos levantou o
questionamento sobre quais linhas - dura, flexível e de fuga-
estariam sendo manifestadas no que tange a estar envolvido com
facções de venda de drogas. Assim, considerando este campo

164 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


como algo multifacetado, como são todos os campos sociais,
podemos pensar a criminalidade ora como linha de fuga de uma
cobrança moral da sociedade, do Capitalismo (ao mesmo tempo
em que funciona como uma resposta a ele, pela exigência do
consumo, do poder, da força, da lógica presente nas produções
de subjetividade), ora sustentando e sendo sustentada em
uma linha dura, uma vez que as leis do tráfico, por exemplo,
podem se mostrar como ainda mais rígidas que as ‘do asfalto’,
funcionando em uma dinâmica diferente. Cartografa-se, assim,
um contínuo movimento entre as linhas, com fluxos de escape
ao hegemônico em certos arranjos, e fluxos de reatualização
do controle e da vigilância em outros. Passa a ser um modelo
hegemônico dentro de outro, ao traçar uma linha de fuga para
escapar de uma realidade, cai-se em outra linha.
Em suma, há o que Nunes (2016, p.41) chama de paradoxal
no que tange às ações socioeducativas:

A instituição que pretende socioeducar, escolarizar e profissionalizar


adolescentes, autorredirecionando os seus projetos de vida para a não
reincidência infracional, paradoxalmente apresenta relatos de violência
institucional e dispositivos de docilização e violação do eu, acabando
por produzir a delinquência.

4. DAS DIREÇÕES TOMADAS, ALGUNS APONTAMENTOS


NECESSÁRIOS...
Mesmo estando em um mesmo espaço físico, a própria
diferenciação da posição ocupada por agentes e adolescentes na
instituição faz com que essas linhas (duras, flexíveis e de fuga) se
desenhem com enorme multiplicidade. Na pesquisa realizada,
analisamos que no sistema de privação de liberdade, onde a
palavra de ordem é punição, conseguimos acompanhar que,
na esfera da micropolítica, existem práticas que apontam para
outras direções.
Afastando-nos de processos de generalização e
homogeneização de outrem, em que se rotulam certos aspectos em

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 165


certos grupos, percebemos que, tanto no caso dos adolescentes,
como dos agentes, ainda num contexto tão rígido, há possibilidade
de linhas de fuga, que causam fissuras. É importante ressaltar
que as linhas duras, flexíveis e de fuga não são excepcionais ou
isoladas. Tais linhas podem ser experimentadas por um mesmo
grupo ou pessoa, em situações diferentes, bem como estarem
presentes, em diferentes aspectos, numa mesma situação. O
grande desafio compreendido é justamente delinear linhas
que fujam ao que já está estabelecido. O que foi percebido pelo
nosso grupo se deu na relação, e enfatizamos que isso vai além
do discurso. Existe uma lógica que opera uma Socioeducação
e tem seus efeitos consolidados na disciplinarização, apesar da
tentativa de anulação do sujeito. Da parte dos adolescentes,
uns mais e outros menos passivos, agenciamentos subjetivos se
constroem, sendo para além dos “sem-lugar”, construindo seu
modo de ser e estar no mundo.
Ressaltamos que nossas discussões sobre as temáticas
que surgiram nos encontros foram em sua grande parcela
possibilitadas por uma metodologia que não busca um resultado
final, mas que entende que o campo é vasto de potências e
vicissitudes sobre as quais não vamos ter domínio. Deste modo,
podemos nos permitir acompanhar os fluxos que se desenham
e as linhas pelas quais têm caminhado, nos provocando
intensas reflexões e debates sobre uma atuação que não venha
individualizar as questões e sim articular saberes e práticas que
ampliem perspectivas e horizontes de possibilidades.

166 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


REFERÊNCIAS

BICALHO, P. P. G.; ROSSOTTI, B. G. P. P.; REISHOFFER, J.C. A


pesquisa em instituições de preservação da ordem. Revista Polis
e Psique, Porto Alegre, v.1, n. 6, p. 85 – 97, 2016.
DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. Paris: Flammarion, 1996.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis:
Vozes, 1987.
FOUCAULT, M. Aula de 17 de março de 1976. In: FOUCAULT,
M. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.
285-315.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do
Desejo. Petrópolis: Vozes, 1999.
KASTRUP, V. O funcionamento da atenção no trabalho do
cartógrafo. In: PASSOS, E,; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (org.).
Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa- intervenção e
produção de subjetividade. 2.ed. Porto Alegre: Editora Sulina,
2009. p. 32-51.
NUNES, T. C. Relações de poder e produção de subjetividade:
desafios da contemporaneidade. In: ABDALLA, J. F.; PEREIRA,
M. B.; GONÇALVES, T. M. (org.). Ações socioeducativas:
Estudos e Pesquisas. Rio de Janeiro: Degase, 2016. p. 139-150.
REVEL, J. Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz,
2005.
SOUZA, T. M. C.; BARCELOS, M. V. Representações sociais sobre
adolescentes em conflito com a lei. Perspectivas em Psicologia,
Uberlândia, v. 17, n. 1, p. 65-82, 2013.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 167


DIREITOS SEXUAIS DE HOMENS JOVENS EM
PRIVAÇÃO DE LIBERDADE E IMPLEMENTAÇÃO DO
PRESERVATIVO: DESAFIOS INSTITUCIONAIS

Jimena de Garay Hernández


Patricia Castro de Oliveira e Silva
Vanessa Pereira de Lima
Bárbara Silva da Rocha
Luisa Bertrami D’Angelo
Ana Camilla de Oliveira Baldanzi
Anna Paula Uziel

RESUMO
Este trabalho narra as experiências vividas em um
curso sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos realizado em
uma unidade masculina de internação do DEGASE.
Através de metodologia participativa e visando implementar
a disponibilização de preservativos para os jovens, contou
com equipes técnicas, agentes socioeducativos, direção, e um
grupo de jovens. Os diálogos, debates e desdobramentos da
experiência revelaram a importância e o desafio de discutir os
direitos dos jovens, bem como noções sobre gênero, sexualidade,
Socioeducação e como elas atravessam a vida dos jovens e dos
profissionais no cotidiano da unidade.

Palavras-chave: Direitos sexuais. Socioeducação. Preservativo.


Pesquisa-intervenção.

1. INTRODUÇÃO
O conceito de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos
(DSDR) pode ser considerado ainda recente devido ao fato de
ter começado a ser construído na década 90, com forte atuação
dos movimentos de gays e lésbicas e também de setores do
movimento feminista, trazendo como maior contribuição a
ênfase na perspectiva da vivência da sexualidade descolada
da reprodução e da patologia (LEITE, 2012). Também é

168 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


relativamente nova a perspectiva de crianças e adolescentes
como sujeitos de direitos, o que, no caso brasileiro, pode ser
historicamente situado na promulgação da Lei n° 8.069/1990, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Fundamentado
sob o viés histórico-político-cultural de garantia dos Direitos
Humanos, o ECA vem demandar novas construções de relações
“do mundo adulto com a infância e adolescência, uma vez que
nossa sociedade foi historicamente autoritária e tutelar com essas
categorias sociais” (LEITE, 2012, p.92).
Reconhecendo os desafios que o campo dos DSDR e que
a perspectiva de adolescentes e jovens como sujeitos de direitos
per se já se nos apresentam, podemos dizer que é um duplo
desafio falarmos de Direitos Sexuais de homens jovens, em
especial, quando estes se encontram em uma situação peculiar de
institucionalização pelo Estado, como é o caso do cumprimento
de Medida de Privação de Liberdade1. Pesquisas apontam que, em
instituições de restrição e privação de liberdade, os DSDR, quando
vistos como direitos, são considerados secundários, em face à
precariedade do próprio sistema e às moralidades que circulam
neste campo (D’ANGELO; DE GARAY, 2017; FRANCO; RACY;
SIMONETTI, 2012).
A pesquisa-intervenção, desenvolvida ao longo dos anos
de 2015-2017 em três unidades de privação de liberdade do
Sistema Socioeducativo do estado do Rio de Janeiro, teve como
tema principal as experiências em gênero e sexualidade e revelou
que estes são dispositivos essenciais para compreender as
dinâmicas institucionais, as relações entre as pessoas e os fluxos e
movimentos do poder, uma vez que atravessam constantemente
a Socioeducação e são por ela atravessados.
1 Embora a perspectiva de análise que propomos fale sobre Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos, em alguns momentos é importante diferenciar esses dois tipos de
direitos. Por exemplo, ao pensar o tema específico do trabalho aqui apresentado,
não estamos nos referindo aos Direitos Reprodutivos dos jovens, tais como o exercício
da paternidade ou a prevenção da gravidez, mas aos seus Direitos Sexuais dentro da
unidade, especialmente a garantia de que possam explorar e expressar sua sexualida-
de, bem como se relacionar sexualmente entre eles de forma segura, digna e prazerosa
para os envolvidos.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 169


Mais especificamente sob o enfoque dos Direitos Sexuais
de jovens homens, uma série de acontecimentos mobilizou as
equipes técnicas de uma das unidades masculinas onde a
pesquisa vinha sendo realizada: a presença de jovens vivendo
com HIV e a possibilidade de contaminação de outros jovens
na instituição; e jovens assumindo no contexto institucional
relacionamentos afetivo-sexuais entre eles. Tais situações
trouxeram à tona práticas e discursos acerca do gênero e das
sexualidades associados a diferentes códigos institucionais
- códigos estes produzidos não somente pela instituição de
privação de liberdade, como também pelo tráfico de drogas,
aqui entendido como instituição, com uma pedagogia
particular, agenciamentos de um ethos específico que modulam
as decisões cotidianas (SILVA, et. al.,2016), “produtoras de
subjetividades, reguladoras de desejos, tempos e territórios,
atravessando de forma bastante marcada as relações e
coproduzindo o funcionamento do DEGASE” (DE GARAY,
2018, p.19).
A partir desses acontecimentos e da forma como foram
enunciadas as regras explícitas e implícitas no que tange às relações
entre os jovens e os desdobramentos que essas regras têm em sua
saúde e no cotidiano institucional, as equipes técnicas perceberam
a urgência da construção de estratégias para possibilitar o acesso
ao preservativo, inicialmente objetivando a prevenção às ISTs2/
HIV/Aids, mas, sobretudo, colocando em pauta a discussão sobre
Direitos Sexuais, gênero e sexualidades entre/de jovens de
maneira ampliada na instituição, e a implicação desta na garantia
de direitos desses jovens em situação de privação de liberdade sob
a tutela do Estado. A tarefa apresentou inúmeros desafios diante
da percepção de seu caráter desnecessário por grande parte das/os
profissionais e, também, ainda que em menor grau, das reticências
de alguns jovens a respeito dos desdobramentos da presença
do preservativo na unidade.

2 Infecções Sexualmente Transmissíveis

170 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Diante de algumas ações já desenvolvidas pela equipe
técnica e das dificuldades percebidas neste percurso, foi
considerada urgente a construção de um curso direcionado
a profissionais que constituiria a última etapa para a implementação
do preservativo3 , segundo algumas profissionais que já vinham
realizando ações focadas na prevenção de ISTs, e que já estavam
discutindo e implementando a distribuição de preservativos e
panfletos informativos de maneira mais pontual, atendendo às
solicitações feitas por alguns jovens e agentes socioeducativos.
Nesse contexto, nossa equipe foi convidada a coordenar o
curso cujo programa foi desenvolvido conjuntamente com
duas dessas profissionais. Como apontado por Natália
Padovani (2015, p.78), “só é possível ser aliado daqueles de
quem se tem confiança, com quem se tem expectativas de
reciprocidade”, o que fez pensar que essa demanda de certa
forma exprimia como tinha sido construída a nossa relação com
o campo ao longo desses dois anos de pesquisa. A possibilidade
desta parceria na produção de um curso sobre esta temática e
com este objetivo é vista por nós a partir das relações tecidas no
decorrer da pesquisa, tanto com jovens quanto com profissionais
dos diversos segmentos atuantes na unidade.
Buscamos, então, a partir da produção colaborativa
do curso, enunciar as malhas/tramas de poder na contenção,
controle e organização do gênero e da sexualidade (DE GARAY,
2018), buscando pensar saídas coletivas a conflitos a partir da
troca de pontos de vista entre equipe de pesquisadoras, gestão
da unidade, equipe técnica, socioeducadores/as e jovens. A
partir das experiências vivenciadas no planejamento do curso
e no decorrer dos encontros realizados ao longo do mesmo, o
objetivo neste texto é discutir as forças que se colocam em jogo
quando nos debruçamos sobre as possibilidades e os limites da
distribuição de preservativos para jovens homens cumprindo
Medida Socioeducativa de Internação, a partir da perspectiva
dos Direitos Sexuais enquanto Direitos Humanos.
3 Ao longo do texto, destacamos com itálico as palavras e expressões emitidas no cam-
po da pesquisa- intervenção.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 171


2 METODOLOGIA
O curso “Direitos Sexuais e Reprodutivos no Sistema
Socioeducativo”, oferecido aos/às profissionais da referida
unidade, insere-se numa proposta mais ampla de pesquisa-
intervenção desenvolvida pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ) entre 2015-2017, em três unidades
socioeducativas de internação do estado do Rio de Janeiro.
A pesquisa-intervenção é perpassada por e produz potências
e tensões no campo, o que pode ser refletido ao acionarmos
o conceito de análise de implicação, utilizado pela Análise
Institucional. Para esta perspectiva, é necessária a análise da
“maneira como aquele que intervém se vincula aos indivíduos,
grupos e instituições com os quais trabalha” (RODRIGUES;
SOUZA, 1991, p.43). A análise de implicação é, portanto, a
“análise dos vínculos (afetivos, profissionais e políticos) com
as instituições em análise naquela intervenção em tal ou qual
organização e, de forma ainda mais generalizada, da análise dos
vínculos (afetivos, profissionais e políticos) com todo o sistema
institucional” (RODRIGUES; SOUZA, 1991, p.43). Desta
forma, não há presunção de imparcialidade, pelo contrário, há
intenção de afetar e ser afetado/a.
Nesse processo, é importante considerar as nossas
referências e práticas institucionais, com sua história, suas
relações, não só no campo, mas no contexto sociopolítico,
colocando em análise as instituições que nos atravessam
e que nos constituem, saindo dos nossos portos seguros
(COIMBRA; NASCIMENTO, 2008). Diante disso, pensar no
caráter coletivo das pesquisas é primordial, bem como criar
métodos em equipe, recuperando as perspectivas diversas
das pessoas envolvidas e elaborando coletivamente com as/os
participantes a produção e a análise dos conhecimentos a partir
dos problemas, multiplicando os sentidos e inaugurando novos
problemas (BARROS; BARROS, 2013). Assim, ao propor o curso,
a ideia foi produzir afetações no campo, mobilizar as redes e
possibilitar ações cotidianas na instituição.

172 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Deste modo, o programa do curso foi pensado: a partir
da noção de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos enquanto
Direitos Humanos, objetivando fortalecer a perspectiva desses
direitos enquanto básicos, necessários à vida de qualquer
pessoa, direitos que não podem ser considerados secundários
ou menores; e ainda do entendimento de gênero e sexualidade
como organizadores da vida, portanto, fundamentais para
pensar a Socioeducação, vista como um exercício pedagógico de
produção de uma plataforma de ações e de ressignificação dos
diversos lugares sociais.
O objetivo mais concreto do curso foi o de estabelecer
estratégias para implementar o preservativo masculino na
unidade, tais como: locais para colocar os dispensadores
de preservativos; pessoas responsáveis para gestionar essa
ação; regras de uso e descarte; e projetos de formação que
acompanhariam o acesso a esse direito. Foram realizados 08
encontros num total de 40 horas quando os seguintes temas
foram abordados: juventudes; sexualidade e gênero; prevenção
às ISTs/HIV/AIDS e uso do preservativo; diversidade familiar
e paternidade; violência sexual e planejamento estratégico para
implantação do preservativo.
No curso, investimos em metodologias participativas
e dinâmicas que evocassem e trabalhassem a partir das
experiências cotidianas e conhecimentos das pessoas, incluindo
as dos jovens que participaram. Trabalhamos com trechos de
entrevistas e trabalhos dos grupos, realizados ao longo da
pesquisa, discutindo e fazendo uma análise colaborativa do
campo, buscando respostas práticas acerca das questões
apresentadas e trazidas pelos/as colaboradoras/es da pesquisa
de maneira ampliada e pelas/os participantes do próprio curso.
Também procuramos facilitar o planejamento de ações
que movimentassem seus saberes e práticas, incentivando o
protagonismo das pessoas e acompanhando esses movimentos,
com o intuito de, a partir das nossas experiências de pesquisa,
somar às experiências profissionais e diárias de cada um/a.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 173


Deste modo, nos últimos dois encontros os/as participantes
tiveram a oportunidade de se debruçar sobre potencialidades e
desafios para a efetiva implantação do preservativo na unidade.
O trabalho foi desenvolvido em grupos, com a participação da
direção e dos jovens que puderam refletir sobre as melhores
estratégias e principais impasses para que o preservativo se
tornasse uma realidade no cotidiano institucional.
Ao longo do curso, a partir da demanda dos/as
profissionais que solicitavam leituras, informações, materiais
e métodos de trabalho com os jovens sobre os temas
que eram abordados, foram providenciados elementos de
forma sistematizada, objetivando que os/as participantes
se tornassem multiplicadores/as nessas temáticas, a partir
de uma proposta formativa e reconhecida academicamente.
Desse modo, exercitamos um pesquisar com e não sobre,
movimento que implica habitar um território existencial, para o
qual é necessário sair “da posição de protagonista que descreve
categorias psicológicas ou psicologizantes de um determinado
local para provocá-lo a estar engajado como mais um elemento
que irá compor e conjugar forças em um plano comum”
(BICALHO; ROSSOTTI; REISENHOFFER, 2016, p.92) e adotar
uma perspectiva ética de abertura a problemas e demandas. Como
compromisso com as demandas e a partir dos relatos de experiência
das/os profissionais, nosso intuito foi construir coletivamente
possibilidades de ação que, por um lado, levassem em conta
as dificuldades vividas por elas/es no cotidiano institucional,
e, por outro, produzissem alguns deslocamentos que tornassem
possível ver além destas dificuldades.
Ao tentar descentralizar as nossas aproximações, foi
importante não observar os segmentos de profissionais e os grupos
de jovens como homogêneos e, nesse sentido, criar coalizões,
comunicações e empatias com e entre eles/as. Assim, gerávamos
certas tensões, mas dissipávamos outras. Foi importante
compreender o que estávamos acionando e agenciando a partir
do nosso lugar: sendo pessoas de fora, numa referência a sermos

174 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


pesquisadoras e não profissionais da instituição, experienciamos
momentos de potência e de fragilidade, no sentido de que nossa
condição de de fora nos colocava, eventualmente, no lugar de
quem não sabe como é o dia a dia da unidade, entretanto, se
mostrava também muito potente para o estabelecimento de
parcerias com as/os profissionais.
Alguns/mas desses/as profissionais apontavam, desde
o início do campo da pesquisa, ser difícil resistir aqui dentro,
tem muito sofrimento, e relatavam suas percepções a respeito da
relação do gênero e da sexualidade com o resto das vivências
no estabelecimento, evidenciando que o debate sobre esses
temas já estava presente antes da nossa equipe chegar, apesar
de serem considerados secundários ou etéreos, enquanto
estavam borbulhando não só nos jovens mas no próprio cotidiano
institucional. Assim, nossa presença no campo possibilitou pensar
o gênero e a sexualidade sob outros contornos, potencializando
iniciativas que já estavam de alguma forma se desdobrando e
levantando discussões a respeito da relevância desta temática no
trabalho socioeducativo em perspectiva com a prevenção das
ISTs/HIV/Aids e disponibilização do preservativo na unidade.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

O processo do curso trouxe váriosdesafios interconectados.


O primeiro deles diz respeito ao próprio objetivo maior do
curso que seria a implantação de estratégias de acesso ao
preservativo masculino. Ao longo dos dois anos de atuação
na pesquisa-intervenção, rotineiramente ouvíamos queixas
por parte de profissionais das diferentes unidades, de que os
cursos ofertados costumavam ser muito teóricos, resultando
em pouca aplicabilidade no cotidiano das unidades. No
entanto, em nosso curso, no momento da sistematização de
estratégias de implementação do preservativo, momento justo
de se criar/produzir a prática possível, nossas provocações
tomavam uma nova dimensão. A aplicabilidade do curso,

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 175


refletida nos momentos de planejamento para implantação do
preservativo, evidenciaram que, para o êxito das ações, seria
necessária grande movimentação do campo, requerendo uma
articulação de pessoas e coletivos que não necessariamente
estavam dispostos ou disponíveis a se articular.
Isso precisa ser analisado em perspectiva com a
participação do grupo de jovens, que provocou diversas
movimentações/inquietações tanto por parte dos próprios
jovens quanto de profissionais e gestores. No momento que
propusemos que participassem, os jovens imediatamente
apontaram alguns entraves para a disponibilização ampla do
preservativo, tais como que o seu uso revelaria imediatamente
relações sexuais entre eles, o que é sistematicamente
velado, ou que usos não adequados do preservativo, tais como
fazer bolas iam provocar bagunça nos alojamentos.
Após apontarmos alguns contrapontos, os jovens
conseguiram vislumbrar o preservativo como uma
possibilidade para a unidade passando a fazer sugestões que
foram amadurecendo até o primeiro encontro estratégico
com profissionais. Eles apresentaram argumentos discutidos
conosco e fizeram sugestões não apenas de implantação do
preservativo, mas de trabalho do tema de DSDR. Os jovens
debateram entre eles, com profissionais da unidade e equipe
de pesquisa, desconstruindo a problemática do preservativo
enquanto instrumento lúdico, dizendo que “talvez no início
fizessem bola mesmo, mas qual o problema?”, que “logo vai deixar
de ser novidade e ia parar”. Eles fizeram um mapa dos
lugares onde poderiam ser colocados os dispensadores
de preservativos e os dispositivos de descarte, pensando na
logística de espaço, tempo e vigilância, propondo lugares onde
pudessem pegar os preservativos “no sapatinho”, sem serem
vigiados, expostos ou revistados. Eles inclusive apontaram que
a disponibilização dos preservativos e as ações educativas a ela
atreladas poderiam ultrapassar os muros da instituição, pois
quem não os soubesse usar poderia aprender e posteriormente

176 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


ensinar às parceiras sexuais, beneficiando não apenas a quem
os utilizaria estando privado de liberdade. Ou seja, a
implementação do preservativo poderia ser um dispositivo do
exercício de Socioeducação.
Durante o curso, percebemos que, apesar de ações
pontuais e localizadas de alguns/mas profissionais no campo
da sexualidade, gênero e dos DSDR, o machismo atua como um
modus operandi da instituição, estando inclusive arraigado em
vários/as profissionais. Entretanto, há movimentos por parte
deles/as que tendem a localizar este machismo nos jovens, que
trariam estas percepções das suas experiências e das regras do
tráfico. Deste modo, profissionais e gestores não se incluiriam e/
ou responsabilizariam pela reprodução de discursos machistas
e práticas cristalizadas associadas, pois que seriam os jovens
os reprodutores maiores. Tentamos trabalhar estas questões,
propondo a garantia dos DSDR atrelada à construção de
uma perspectiva crítica na pauta da Socioeducação, mas a
insistência em que as regras de convívio e do tráfico impediriam
a implementação do preservativo era enorme. Percepção
corroborada, inclusive, por alguns jovens que ponderaram que o
fato de ter acesso a preservativos ameaçaria a masculinidade do
coletivo, e que eles, enquanto responsáveis, deveriam responder ao
patrão, embora apontássemos que no presídio, onde as facções
também se constituem como forças importantes, os preservativos
estejam disponíveis. Nesse sentido, o discurso dos jovens
era muitas vezes usado por profissionais para engrenar e
legitimar os mecanismos de disciplina e controle sobre eles, o
que marcava uma postura adultocêntrica, através da qual,
pela desigualdade de poder entre adultas/os e jovens existente
em nossa sociedade, as demandas e propostas dos/as jovens
costumam não ser percebidas, sendo mesmo desvalorizadas.
Outro argumento utilizado para inviabilizar a
disponibilização do preservativo foi a falta de infraestrutura da
unidade devido ao superencarceramento que torna as condições
inviáveis e indignas. Apesar de concordarmos que as condições

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 177


dos alojamentos são precárias e a superlotação, decorrente da
política de superencarceramento, seja um problema importante
que se reflete inclusive na questão da privacidade, que também
foi levantada, acreditamos que essa postura desvia a atenção da
garantia dos direitos. Entendemos que o argumento baseado na
falta de estrutura e privacidade não é suficiente para barrar
a disponibilização do preservativo, até mesmo porque foi
possível ouvir de jovens estratégias construídas por eles para
lidar com a falta de privacidade e com outras questões,
como a do próprio descarte do preservativo.
O argumento contra a disponibilização do preservativo
baseado na falta de infraestrutura afirmava a existência
de direitos mais básicos sendo violados e a sexualidade
estaria longe das necessidades urgentes. Não podemos deixar
de pensar que nesses argumentos estão atravessadas
moralidades relacionadas ao fato de se tratar da admissão
de práticas afetivo- sexuais entre dois homens, ainda mais por
serem adolescentes, não apenas restritas à relação sexual, mas
a outro tipo de expressões eróticas e afetivas que, ao fugir da
heteronormatividade, são consideradas desrespeitosas.
Foi possível notar que, constantemente, falas de
profissionais e jovens pareciam indicar que era necessário que a
implementação dos preservativos se desse de maneira diferenciada
de acordo com cada alojamento. Acionava-se a diferença da
flexibilidade dos alojamentos – atrelada à performatividade
masculina (DE GARAY, 2018), sugerindo que nos alojamentos
coletivos, no ritmo frenético do Comando Vermelho, entre os
que poderiam ser considerados mais sujeito homem, a iniciativa
geraria retaliações violentas, inclusive incentivando a violência
sexual. Certamente, em muitas das performatividades que eles
apresentam para nós, observamos uma mimetização dos
modelos mais violentos de masculinidade e um patrulhamento
desses atributos (ALMEIDA, 1996), mas também observamos,
ao longo da pesquisa-intervenção e no curso, uma diversidade
de brechas nesses lugares tão cristalizados, invisibilizadas pela
narrativa única.

178 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


As tensões que apareceram constantemente no curso
apresentavam o desafio de não alimentar um distanciamento
entre conhecimento acadêmico do que acontece no campo, o que
não significa que não deva existir uma construção sistemática
que vá além da “consciência imediata”, aportando “armas
propriamente teóricas” (FOLLARI, 2001, p.39) e políticas que
de fato possuímos pela nossa experiência nessas áreas. Sem
dúvida estávamos em um lugar conflituoso, pois em um
espaço de disputa, os nossos conhecimentos eram uma
forma de entrada. Era, assim, fundamental que nós, como
“especialistas” de gênero, fôssemos colocadas em xeque, nos
questionando constantemente, em movimentos extremamente
importantes para a análise de implicação (COIMBRA;
NASCIMENTO, 2008).
Assim, consideramos que as preocupações sobre os
desafios da implantação do preservativo são legítimas. No
entanto, chama a atenção a dificuldade de um Sistema
Socioeducativo que se pretende transformador em enfrentar
esse tipo de regras que continuam perpetuando práticas e
discursos de reificação de desigualdade e violência, nos fazendo
pensar sobre o que torna tão naturalizadas determinadas
práticas. Diante do universo de códigos e mecanismos de
execução e comunicação destes, observamos de que forma as
noções mais cristalizadas de gênero e sexualidade continuam
estruturando as relações, espaços e tempos. Apesar das nossas
provocações, a interrogação sobre a autoria das regras
trazia discursos confusos que revelavam os esforços para se
adequar a elas, institucionalizando-as cada vez mais através do
discurso de segurança. Os códigos não se compõem em
uma articulação necessariamente harmônica, mas certamente
essa narrativa sobre uma harmonia dos códigos reforça muitas
práticas e discursos fixados.
No entanto, “basta compreender, e sobretudo ver e tocar
as montanhas a partir de seus dobramentos para que percam
sua dureza” (DELEUZE, 2008, p.194). Nesse sentido, cabe aqui

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 179


trazer efeitos potentes do curso, onde profissionais conseguiam
articular iniciativas para discutir gênero e sexualidade com os
jovens em diversos espaços, tais como fazer grupos com jovens
na recepção à unidade ou com os módulos das equipes
técnicas. A avaliação dessas/es profissionais foi positiva
em vários pontos, tais como: a oportunidade de que jovens
escutassem um posicionamento institucional de garantia dos
Direitos Sexuais; a importância de trabalhar essas temáticas
de forma contínua, diante dos avanços percebidos entre os
encontros com os jovens; a relevância de que percebessem a
diversidade de profissionais que atuam na unidade; a abertura
oferecida para conversar sobre questões pessoais; a
importância de desenvolver outros tipos de ações e relações
que escapassem à burocratização do exercício profissional; e os
benefícios de exercitar outro tipo de relações com os jovens, de
mais diálogo, sensibilidade e confiança – especialmente no que
tange aos agentes socioeducativos.
Parece-nos que isso gerou um espaço de interseção em
que podíamos compartilhar o que estávamos vivendo no campo
e de provocar aberturas, a partir dos territórios dessas pessoas
(BENET; MERHY; PLA, 2016), incluindo os jovens. Nesse
processo foi sempre importante desconfiar da homogeneidade,
fugir das representações, criando “possibilidades para a
emergência de outros modos de pensamento/ ação, de
pesquisa/criação” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2012, p.130).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo coletivo do curso, no exercício de debater a
implementação do preservativo, nos instigou muito a pensar na
importância de trabalhar os temas gênero e sexualidade neste
contexto, deixando nítido que gênero não é apenas relacionado
a mulheres, que sexualidade nos perpassa permanentemente
e que esta deve ser considerada um direito, que ambos
os dispositivos estão atrelados ao nosso exercício da cidadania
e que uma instituição que pretende fomentá-la deve encarar

180 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


esses desafios. Como apontado por algumas profissionais, o fato
do curso ter acontecido já fala alguma coisa, pois isso antes teria sido
inconcebível.
O interesse de uma parcela de profissionais foi visível nos
esforços para participar das ações, mesmo que as condições
não fossem propícias. Parece importante, assim, continuar
apostando na construção de autonomia e na desverticalização
do estabelecimento, lembrando tratar-se de um estabelecimento
onde a segurança joga um papel fundamental, garantindo que as
pessoas engajadas constituam um ou vários núcleos ou células
de trabalho, em redes de coalizão contínuas e sistemáticas,
fomentando uma dimensão cuidadora que se define como um
espaço relacional onde podem ser gerados processos de
acolhimento, vínculo e responsabilização. É uma dimensão não
capturada pelo saber disciplinar e se erige como um território
comum (BENET; MERHY; PLA, 2016 p.230, tradução livre).
Por fim, ressaltamos que a participação dos jovens foi um
elemento inovador capaz de colocar em pauta várias questões e
temáticas tais como o adultocentrismo que perpassa as relações
na instituição e os discursos e práticas machistas naturalizados,
percebidos institucionalmente como de fomento e responsabilidade
dos próprios jovens. Por outro lado, essa participação também
contribuiu em muito para a desconstrução do discurso sobre
a impossibilidade da disponibilização do preservativo na unidade,
indicando a importância de que essa prática de construção coletiva
com os jovens seja ampliada e continuada.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 181


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, M. Género, Masculinidade e Poder. Revendo um


caso do Sul de Portugal. Anuário Antropológico (Brasil), Rio de
Janeiro, v. 95, p. 161-190, 1996.
BARROS, L.; BARROS, M. O problema da análise em pesquisa
cartográfica. Fractal, Rev. Psicol.[online], [s.l], v. 25, n. 2, p. 373-
390, 2013.
BENET, M.; MERHY, E.; PLA, M. Devenir cartógrafa. Athenea
Digital, [s.l], v. 16, n. 3, p. 229-243, 2016.
BICALHO, P.; ROSSOTTI, B.; REISHOFFER, J. A pesquisa em
instituições de preservação da ordem. Rev. Polis e Psique., [s.l],
v. 6, n. 1, p. 85–97, 2016.
COIMBRA, C.; NASCIMENTO, M. Análise de implicações:
desafiando nossas práticas de saber/poder. In: GEISLER, A.;
Abrahão, A.; COIMBRA, C. (org.). Subjetividades, violência e
direitos humanos: produzindo novos dispositivos em saúde.
Niterói, RJ: EdUFF, 2008. p. 143-153.
COIMBRA, C.; NASCIMENTO, M. Implicar. In: FONSECA,
T.; NASCIMENTO, M.; MARASCHIN, C. (org.). Pesquisar na
diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 129-131.
D’ANGELO, L.; DE GARAY, J. Sexualidade, um direito
(secundário)? Atravessamentos entre sexualidade, socioeducação
e punição. Revista Plural, [s.l], v. 24, n. 1, p. 78-104, 2017.
DE GARAY HERNÁNDEZ, J. O Adolescente dobrado:
cartografia feminista de uma unidade masculina do Sistema
Socioeducativo do Rio de Janeiro. 2018. Tese (Doutorado) -
Psicologia Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2018.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart.
São Paulo: Editora 34, 2008. 234f.
FRANCO, M. H.; RACY V. L.; SIMONETTI, M. C. M.. Direitos
sexuais e reprodutivos de jovens e adolescentes. Rev. Bras.
Adolescência e Conflitualidade, [s.l], n. 7, p. 114-130, 2012.

182 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


FOLLARI, R. Para quem investigamos e escrevemos? In:
MOREIRA, A.; SOARES, M.; FOLLARI, R.; GARCIA, R. (org.).
Para quem pesquisamos, para quem escrevemos. O impasse
dos intelectuais. São Paulo: Cortez, 2001. p. 37-64.
LEITE, V. A sexualidade adolescente a partir de percepções
de formuladores de políticas públicas: refletindo o ideário dos
adolescentes sujeitos de direitos. Psicol. clin., Rio de Janeiro, v.
24, n. 1, p. 89-103, 2012.
PADOVANI, N. C. Sobre casos e casamentos: afetos e “amores”
através de penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona.
2015. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2015.
RODRIGUES, H.; SOUZA, V. A análise institucional e a
profissionalização do psicólogo. In: SAIDÓN, O.; KAMKHAGI,
V. Análise institucional no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 1991. p. 27-45.
SILVA, A. et al. “Eles não sabem o que se passa aqui
dentro”: problematizando o campo e o fazer da pesquisa com
adolescentes em conflito com a lei. In: ABDALLA, J.; PEREIRA,
M.; GONÇALVES, T. Ações socioeducativas: estudos e pesquisas.
Rio de Janeiro: Degase, 2016. p.23-41.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 183


RESSOCIALIZAÇÃO OU SOCIOEDUCAÇÃO?
PERSPECTIVAS AO ADOLESCENTE EM CUMPRIMENTO
DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

Vânia Morales Sierra

RESUMO
Este artigo tem o objetivo de analisar duas perspectivas
norteadoras do exercício profissional no Sistema Socioeducativo
que compreendem um conjunto de princípios, normas e
práticas com diferentes significados e objetivos. Primeiramente
apresenta questões fundamentais concernentes ao significado
da ressocialização e, em seguida, analisa, com base nos dois
modelos brasileiros de direito para crianças e adolescentes, as
suas características distintivas no que tange à ressocialização
e à Socioeducação. Por fim, considera que a Socioeducação
expressa o sentido do controle social democrático, fundado
sobre as normas dos Direitos Humanos, apresentando um
significado diferente do conferido à ressocialização, concebida
a partir do modelo de direito dos antigos códigos.

Palavras-chave: Ressocialização. Socioeducação. Direito.


Adolescente. SINASE.

1. INTRODUÇÃO
A origem da socialização dos jovens remonta ao século
XVII, período em que se espalham pela Europa as casas
correcionais, criadas com a finalidade de disciplinar os jovens,
preparando-os para responder às necessidades do mercado de
trabalho. (MELOSSI; PAVARINI, 2006). Era a preocupação com o
adestramento da força de trabalho que proporcionava a associação
entre a ideia de socialização e integração social.
Esta perspectiva torna-se mais nítida com a ressocialização
de jovens encarcerados. Segundo Foucault (1987), a ideia de
ressocialização tem origem no século XIX, com o surgimento das

184 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


prisões, período em que a reclusão passou a ter uma conotação
terapêutica, baseada em um trabalho normalizador, realizado por
um grupo de profissionais, como psicólogos, médicos e assistentes
sociais, preocupados em tratar da delinquência, tipificando
as condutas, classificando-os segundo uma avaliação de
periculosidade, submetendo-os a um processo disciplinar. Desse
modo, a ressocialização adquire o sentido de correção, visando “a
transformação técnica dos indivíduos” (FOUCAULT, 1987, p.209),
a partir da reunião de diferentes saberes, o que requer um conjunto
de conhecimentos voltados ao exercício da vigilância. Com isso,
uma série de instrumentos são empregados com a finalidade de
tornar os corpos dóceis a partir de técnicas criadas com objetivo da
correção dos comportamentos desviantes.
É a consideração da relação entre delinquência e desvio que
remete ao conceito de ressocialização. Ao definir o que é permitido
e proibido, o Estado reforça a ideia da legalidade com o bem e
o desejável, enquanto assinala o ilegal como um mal, resultado
de um comportamento a ser punido. Neste sentido, o Direito
estabelece as bases para a legitimidade da ordem, exercendo
o controle e a vigilância pela repressão aos comportamentos
que representem ameaça, com base num processo de produção
de tipificação de crime e delitos. Trata-se de uma racionalidade
fundada na observação, cálculo e previsão de comportamentos
individuais que podem surgir numa sociedade de mercado.
As formas de punição variam historicamente em razão da
dinâmica da economia de mercado, expressa basicamente na
necessidade ou não da força de trabalho e, portanto, no controle
da população excedente (RUSHE; KIRCHHEIMER, 2004). Nessa
perspectiva, o Estado vai empregar todo o seu aparato, visando
garantir a manutenção da ordem, ainda que seja uma ordem injusta
e incapaz de promover as condições de liberdade, igualdade e
dignidade a todos os cidadãos. Sendo assim, a ressocialização não
passa de um discurso ideológico, visto que não está centrada na
pessoa, mas na necessidade de reprodução do Sistema Capitalista.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 185


No caso da infância e adolescência, a ressocialização surge
como medida educativa e de assistência. Antony Platt (1982) estudou
a criação do primeiro tribunal de menores em 1899, na cidade de
Illinois, em Chicago, e percebeu como a ideia de ressocialização
estava relacionada à preocupação com a delinquência e a ordem,
tendo como objetivo principal não a proteção de “menores” contra
o abandono e a delinquência, mas a defesa da classe média que
requeria a institucionalização do “menor”, como uma forma de
exercício do controle sobre a pobreza.
É com a institucionalização de crianças e adolescentes que
o significado da ressocialização é reforçado de forma positiva.
De um modo geral, a especificidade do modelo de Direito para
crianças e adolescentes consiste na sobreposição da educação
à ideia de punição, sendo essa a sua principal característica
distintiva. O sujeito a ser formado, modificado, produzido é
aquele em quem a equipe de profissionais emprega técnicas, a
fim que possa responder adequadamente às exigências futuras
do mercado de trabalho.
A consciência desse processo resultou nas mobilizações
sociais contrárias à forma autoritária de exercício do controle
social. A defesa dos Direitos Humanos foi a base para se conferir
um novo sentido ao trabalho de recuperação do adolescente autor
de ato infracional. Menos associado à ideia de delinquência que
requeria “tratamento”, a Socioeducação apresenta o sentido da
instituição do adolescente “sujeito de direito”, o que significa
uma mudança no emprego de dispositivos e técnicas adotados no
cumprimento das medidas.
É nesta linha de raciocínio que vale a compreensão da
distinção entre ressocialização e Socioeducação, considerando que
tais concepções estão associadas a diferentes modelos de direitos
para crianças e adolescentes, tendo cada um deles conferido um
sentido específico ao exercício do controle social.

186 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


2 OS ANTIGOS CÓDIGOS E A RESSOCIALIZAÇÃO
DO MENOR
Os antigos códigos reforçaram a associação entre
delinquência e pobreza, atribuindo à Educação a missão de
reformar a criança e o adolescente, separando-os do convívio
social, principalmente de suas famílias. A identificação do
problema como “patologia social” gerou o entendimento da
delinquência como resultado do meio no qual estavam inseridos e
não da índole desses sujeitos. As ambiguidades na interpretação
da delinquência juvenil demonstravam oscilação na consideração
com o ambiente e a personalidade, o que influía sobre as técnicas
de ressocialização de crianças e adolescentes.
Outra perspectiva nos estudos da delinquência juvenil
surge com Matza (1964) que identificou duas formas de conceber
a delinquência: sendo uma concentrada sobre o sujeito, tido como
diferente dos outros; e outra voltada à existência de uma subcultura
da delinquência juvenil. Neste último caso, a delinquência é
interpretada como algo provisório, um problema de desvio, o que
remete a uma situação determinada, episódica, e não a um estado.
Tais considerações incidem diretamente sobre
os dispositivos e as técnicas de controle empregados na
ressocialização. No caso dos direitos para crianças e adolescentes,
a ideia da reforma (os reformatórios) é o que vai permitir a ênfase
sobre a formação educacional e profissional. Esta foi o sentido da
ressocialização incorporado à perspectiva correcional-repressiva e
assistencial dos antigos códigos (BAZON, 2002), que reforçaram o
controle sobre a pobreza e impuseram o afastamento de crianças e
adolescentes pobres do ambiente social e da família, submetendo-
os a uma modalidade de controle social exercido mediante a
institucionalização, fruto de uma política que compreendia a
obrigatoriedade da educação e da profissionalização.
No Brasil, antes da promulgação do primeiro Código de
Menor em 1927, a identificação do discernimento chegou a ter
relevância no direito para os mais jovens, sendo o procedimento
eliminado com a exclusão do adolescente do Código Penal. O

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 187


“menor” tido como sujeito incapaz era o indivíduo tutelado e,
por isso, submetido ao controle total das instituições estatais. A
categoria jurídica “menor”, criada a partir do referido Código, foi
elaborada com base na representação da infância tradicionalmente
marcada pela dependência, imaturidade, incapacidade, carência
e necessidade, o que serviu de justificativa à supressão de toda
possibilidade de consideração com a autonomia.
A expressão “menor infrator” remete à categoria jurídica de
infrator inserida no Código de Menor de 1979 que está associada
à doutrina da situação irregular, cuja ênfase se concentra sobre a
identificação da situação social, sem considerar o ato praticado
e a responsabilidade individual. O infrator era o adolescente
encaminhado para a institucionalização, porque apresentava
desvio de conduta ou era autor de infração penal. No processo de
avaliação do seu comportamento, a autoridade judiciária deveria
considerar a sua personalidade, seus antecedentes, as condições em
que se encontrava, além dos motivos e das circunstâncias da ação.
Este modelo se consolidou com a política de bem-estar do
menor, sendo uma responsabilidade exclusiva do Estado, para a
função do controle social, voltada a corrigir a sua personalidade
e o seu comportamento pela sua capacidade de “transformar” o
“menor”, considerado vítima do meio social inadequado e das
más condições de vida na família em decorrência da pobreza.
A ideologia conservadora dos antigos códigos se expressa
na atuação de juízes que vinculam o exercício da sua autoridade
com a de um bom pai de família. Como afirmou Méndez (2004,
p.9), “essa identificação é o que lhe permite ignorar as regras e
técnicas do direito”. De fato, as relações entre pais e filhos no
espaço doméstico compreendem uma lógica de justiça hierárquica
e pessoal, fundada na reciprocidade, diferente do sentido do
espaço público, que é o respeito à norma universal e abstrata, o
que explica o autoritarismo deste modelo.
Esse paradigma vigorou até a promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente que trouxe uma nova forma de exercício
do controle sobre as crianças e os adolescentes. As Medidas

188 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Socioeducativas foram definidas, mas deixaram lacunas quanto
aos aspectos operacionais que foram inseridos posteriormente na
lei e nas normas do SINASE.

3 A SOCIOEDUCAÇÃO NO SINASE: UM NOVO SENTIDO


AO CONTROLE SOCIAL E À REABILITAÇÃO DOS
ADOLESCENTES EM CUMPRIMENTO DE MEDIDAS
SOCIOEDUCATIVAS
A Socioeducação desenvolve outra proposta
correspondente ao modelo liberal e não ao modelo conservador.
Doravante, a ênfase não é mais sobre a família e o meio social,
mas nas oportunidades de vida e na capacidade de fazer
escolhas, sendo considerada, inclusive, a opção de cometer o ato
infracional. Contrastando com o antigo Código de Menor, na
Socioeducação, sobressai-se o Direito mais do que a Educação,
e a autonomia no lugar da dependência, o que implica em
considerar a relação capacidade-responsabilidade. A designação
do adolescente “sujeito de direito” faz com que seja resposto o
lugar da personalidade, retomando a relevância do ato cometido
no sistema penal juvenil.
Além disso, alguns aspectos relacionados à forma
de lidar com os adolescentes que respondem às Medidas
Socioeducativas são redimensionados, trazendo novas questões
relacionadas ao exercício do controle nas instituições em geral,
ou seja, se antes o controle do Estado remetia ao confinamento
dos jovens, na atualidade o controle Judiciário é muito mais
amplo, chegando a se exercer dentro das escolas, dos abrigos,
dos hospitais, clubes, enfim, é o controle também das infrações e
dos pequenos delitos, nos lugares onde a Justiça não alcançava.
Isso porque a Socioeducação requer dos adolescentes em geral
a institucionalidade legal pela lembrança da relação direito e
deveres, ainda mal trabalhada dentro das escolas, que exigem
mais deveres do que observam os direitos1 dos adolescentes.
1 É comum encontrar na mídia notícias sobre escolas que não oferecem merenda re-
gularmente, não possuem um quadro de professores suficiente, desrespeitam o direito
do adolescente de questionar as avaliações e ainda seguem uma metodologia de ensi-
no tradicional e autoritária.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 189


No novo modelo, a ideia de delinquência é suplantada
pela de ato infracional. O sujeito que se pretende desenvolver
não é o adolescente obediente, submetido completamente às
ordens e às normas institucionais, que nunca é considerado, mas
é o sujeito capaz de não romper o pacto e de cumprir o contrato
que firmou com o Estado, representado neste momento pelos
integrantes da equipe técnica.
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi aprovado
em um período de redemocratização e de desenvolvimento do
Estado Democrático de Direito. Ao incorporar a “Doutrina da
Proteção Integral”, reincorporou a cobrança da responsabilidade
sobre o ato praticado pelo adolescente na expectativa da
instituição do comportamento civilizado, baseado na correlação
direitos-deveres, base da cidadania.
A centralidade da personalidade e do ato praticado na
Socioeducação condiz com os fundamentos da ordem liberal,
centrada na ideia do sujeito de direito. O cidadão adolescente
como “sujeito de direito” é o sujeito que tem como punição algum
grau de restrição da sua liberdade, sendo, portanto, garantido
legalmente o exercício dos outros direitos.
Por ser considerado uma “pessoa em estado peculiar de
desenvolvimento”, conforme determina o ECA, o adolescente
que tenha cometido ato infracional tem direito a um regime
especial de punição que difere significativamente dos antigos
códigos, especialmente pelo direito a um devido processo legal e
à proposta da Socioeducação.
Enquanto no modelo dos antigos códigos a socialização
compreendia a ideia da introjeção das normas e valores sociais,
sendo a correção do comportamento desviante um objetivo a ser
alcançado, a Socioeducação incorpora outra lógica, bem mais
centrada sobre o sujeito, numa relação entre as suas expectativas e
o seu comportamento. A racionalidade que exprime é a do ajuste
racional e sistemático do comportamento individual ao próprio
projeto de vida. Nesse sentido, os direitos e deveres surgem como
referências da nova sociabilidade que compreende o acesso às

190 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


instituições como ampliação das oportunidades de vida, tidas
como um meio de fazer com que as individualidades floresçam.
A trajetória do adolescente, neste sentido, é tão importante
quanto a consideração com a sua personalidade, pois expressa os
processos de individualização/socialização, nos quais a família, a
religião, a escola e as organizações para as atividades de esporte,
lazer e cultura possibilitam o desenvolvimento pessoal e geram
ou reforçam as expectativas de realização pessoal e profissional.
O sentido, portanto, já não é o da internalização da norma social
objetiva, mas visa o desenvolvimento da capacidade individual
de lidar com as regras da instituição, inclusive, negociando e até
mesmo propondo alternativas.
Na Socioeducação, o autocontrole se sobressai à disciplina.
A vigilância sobre o comportamento do adolescente se realiza
na forma do monitoramento e da avaliação, na qual se destaca a
racionalidade da sua própria conduta, considerando a capacidade
do adolescente ajustar-se conforme os objetivos do projeto que
ele mesmo elaborou. Inclusive, a decisão judicial deve considerar
também o seu empenho na realização deste projeto. Portanto,
são ideias centrais da Socioeducação a responsabilidade sobre
o ato praticado e a possibilidade de desenvolvimento da
individualidade, na qual participa um conjunto de instituições.
Conforme o SINASE, o Estado tem o papel de fiscalizar as
instituições para que a proteção da individualidade do adolescente
seja garantida. Neste sentido, o trabalho das instituições
assistenciais e educativas precisa estar alinhado aos direitos das
crianças e dos adolescentes. Isso requer uma mudança na cultura
institucional, marcada pelo comando exercido conforme as
posições de autoridades que estabelecem as assimetrias de poder.
As unidades socioeducativas possuem critérios legais, devendo
orientar-se no sentido da execução do seu Plano Pedagógico
Institucional (PPI), no qual são definidos os objetivos e metas da
Socioeducação, podendo, portanto, ser avaliadas.
A tabela a seguir expressa algumas das diferenças entre os
modelos de direitos no que tange à proposta de ressocialização e
Socioeducação:

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 191


TABELA 1 – DIFERENÇAS ENTRE RESSOCIALIZAÇÃO E
SOCIOEDUCAÇÃO
Ressocialização Socioeducação
Código de Menor de 1927 e Estatuto da Criança e do
Código de Menor de 1970 Adolescente e SINASE
Restrição da liberdade
Confinamento conforme a gravidade do ato
praticado
Individualização/socialização
Ressocialização com base na – sujeito que sabe como lidar
introjeção das normas sociais (negociar) com as normas
institucionais.
Exige do adolescente a sua
Não cobra a responsabilidade
responsabilidade diante do
do adolescente
ato infracional
Ética expressa na relação
direitos e deveres, nas
Moral tradicional
consequências do ato e na
reparação a(s) vitima(s)
Considera as consequências
Não avalia as consequências
do ato infracional para a
do ato infracional
vítima e para a sociedade
Adolescente como sujeito Capacidade do adolescente de
incapaz de responder pelo ato ter consciência do ato, a partir
praticado da relação direitos e deveres
Desenvolvimento da
Supressão da individualidade
individualidade
Primazia do assistencial e Primazia do jurídico sobre o
educativa sobre o jurídico assistencial e educativo
Ênfase na Disciplina Ênfase no autocontrole
Integração Social Inclusão social
Objetivos institucionais Projeto individual

192 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Avaliação do comportamento
Correção do comportamento conforme os objetivos
desviante definidos no projeto
individual
Informalidade dos
Devido processo legal
procedimentos de justiça
FONTE: O autor

A Socioeducação não elimina de forma alguma a


consideração com a individualidade, pelo contrário acentua.
Todavia, procura adequar as normas institucionais a nova
modalidade de controle social, fundada no direito e no respeito
as regulamentações, elaboradas em consonância com os direitos
humanos, segundo um processo democrático de participação.

4 DESAFIOS AO SINASE NA SOCIOEDUCAÇÃO


A centralidade da Socioeducação no SINASE se justifica por
se tratar de uma função do sistema que ao mesmo tempo é a sua
missão e o seu objetivo. O que a proposta revela é o ideal de uma
sociedade liberal democrática que tem na formalidade das regras o
sentido do seu funcionamento. Significa que o direito e as normas,
ao mesmo tempo em que determinam limites para as ações, indicam
possibilidades, orientam comportamentos, definem as condições.
Desse modo, expressam o grau de consciência da sociedade com
relação à forma como deseja reprimir os atos contrários à lei. A
Socioeducação compreende o desenvolvimento de uma metodologia
de responsabilização dos adolescentes que requer a consideração
não somente com o ato infracional, mas, sobretudo, com o Estado.
Ou seja, o adolescente precisa compreender que rompeu a relação
direitos e deveres, a base do Estado Democrático de Direito. Neste
sentido, importa que a instituição também funcione conforme a lei.
Portanto, não apenas as ações do adolescente são puníveis, como
também de todos os responsáveis por não adequar a Socioeducação
ao Direito e às normas institucionais. Daí ser imprescindível avaliar

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 193


a Socioeducação também pelos seus procedimentos e técnicas e não
apenas pela reincidência, estrutura física e o número de adolescentes
inseridos no sistema. Isso requer a consideração com os objetivos
e metas definidos nos planos e projetos pedagógicos, bem como a
produção de indicadores para o seu monitoramento e avaliação.
A Socioeducação exprime o espírito democrático do
Estatuto da Criança e do Adolescente. É o outro lado da balança
da Justiça em que se posiciona a proteção integral. O seu
desequilíbrio expressa uma desproporção com relação ao peso
colocado em cada lado, de modo que se aumenta a cobertura
da proteção integral, reduz-se a necessidade de Socioeducação e
vice-versa.
O Sistema Socioeducativo se coaduna com a ideia de uma
ordem liberal que se firma não apenas na consideração de seus
valores, mas também de seus instrumentos e técnicas. O Plano
Individual de Atendimento representa uma nova forma de
controle social, requerendo uma abordagem centrada na ideia
do desenvolvimento da individualidade e da autonomia. O
sentido do trabalho profissional é o da instituição do sujeito de
direitos, o que só pode ser feito se tiver alinhada à compreensão
da relação direito-deveres, seja por parte deles, seja por parte
das instituições. Neste sentido, a Socioeducação ao mesmo
tempo em que fornece uma base para o desenvolvimento de uma
pedagogia cívica, também admite a judicialização em casos ou
situações de violação que remetem ao SINASE.
O Sistema Socioeducativo expressa a intenção de fazer
com que a estrutura física e o funcionamento das instituições
sigam as normas estabelecidas. Contudo, encontra-se diante
de duas forças contrárias das quais depende: a pressão social
e o corte no orçamento. Do lado da sociedade, a política é
questionada constantemente pelos que defendem a redução da
maioridade penal como solução para a contenção da violência.
Do lado do governo, mesmo sendo sua a responsabilidade com
o seu financiamento, não há interesse em investir numa política
que não é valorizada socialmente.

194 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Resta aos profissionais, apesar da avalanche de
contrariedades, fazer com que a política funcione de alguma
forma ou da melhor forma que conseguem diante das condições
que lhes são impostas. Condições que fazem com que se vejam
em situação de realizar estripulias para poder reduzir a distância
ente o real e o universo das normas.
Nos dias atuais, o SINASE encontra-se na contracorrente
do conservadorismo moral, vigentes na política e na sociedade.
O aumento da violência acentuou o sentimento de medo nas
classes médias que se recusam ao diálogo sobre a situação dos
jovens brasileiros e as possibilidades da Socioeducação. É essa
a mentalidade autoritária que permeia a (des)ordem social,
mostrando-se incapaz de adensar a comunicação e de criar
pontes entre as classes sociais, possibilitando a inserção social de
adolescentes residentes em periferias. A segregação territorial,
a pressão da violência sobre os bairros estigmatizados, o
paternalismo dos juízes e a discriminação que os adolescentes
sofrem nas instituições geram dificuldades no reconhecimento
dos seus direitos e do exercício da cidadania juvenil.
Nesse sentido, a identificação do crime como “desvio” não
se faz por uma lógica excludente que impede o reconhecimento
das condições formais de igualdade entre todos os adolescentes.
Aqui, o ato infracional não é identificado como ação pontual,
mas como estado. O jovem negro e pobre ao cometer um ato
infracional ingressa numa carreira criminosa que precisa ser
interrompida com a internação, a medida mais aplicada.
Do lado do governo, o orçamento minguado dificulta
o desenvolvimento de uma metodologia adequada para a
Socioeducação. No que tange à pratica profissional, a capacitação
fornecida é insuficiente para reduzir o autoritarismo e impedir
as diversas formas de violação de direitos. Parco orçamento e
repressão se reforçam viabilizando a reprodução da antiga cultura
institucional ainda predominante na internação de adolescentes.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 195


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo procurou elucidar as diferenças entre a
ressocialização, que orientava o exercício profissional nos
antigos códigos de menores, e a Socioeducação de adolescentes
no SINASE. Considerando a relação delinquência e socialização
presente nos antigos códigos de menores do Brasil, destacou
a ênfase sobre a assistência e a educação, como formas de
controle e de proteção da sociedade. Procurou mostrar que da
delinquência à infração, as concepções se alteram em função
da forma como as práticas dos adolescentes são identificadas,
seja como um problema da personalidade, do meio social ou
como uma questão transitória, relacionada ao ciclo de vida
da juventude. Neste sentido, o adolescente em cumprimento
de Medidas Socioeducativas não é o sujeito de má índole, que
possui transtornos de personalidade, mas uma pessoa que tem
possibilidade de deixar de praticar atos infracionais.
O SINASE incorpora a responsabilidade sobre a infração
e determina as Medidas Socioeducativas, definindo normas
operacionais e um instrumental aos profissionais do sistema
encarregados de atuar na Socioeducação. Em momento algum a
lei se refere à socialização de adolescentes, pois expõe claramente
a sua adequação com o novo paradigma. A Socioeducação, porque
pautada juridicamente, é individualizante em comparação à lei
anterior. No entanto, incorpora uma lógica condizente com as bases
do Estado Democrático de Direito e, por isso, o trabalho profissional
é cobrado de se adequar e de responder às normas e ao direito,
sendo vinculado aos juizados que passam a exercer um controle
sobre a instituição, os profissionais e os adolescentes, no que se
refere à adequação dos procedimentos aos resultados obtidos.
Na Socioeducação, a vigilância exercida pelo Poder
Judiciário é maior e requer um conjunto de informações
da instituição, da família e do adolescente. Vê-se, com isso,
a intenção de reforçar a institucionalidade do direito com
base na padronização de práticas, desenvolvidas a partir da
regulamentação e do monitoramento sobre os dispositivos e
técnicas empregados na Socioeducação.

196 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade


Os desafios do SINASE para desenvolver a Socioeducação
são inúmeros, inclusive porque o conservadorismo do antigo
modelo ainda vigora e impede o funcionamento do SINASE
conforme determina a lei. Por outro lado, esses adolescentes
tiveram apenas a experiência de uma cidadania escassa, em que
o acesso às instituições, quando ocorria, efetuava-se de maneira
a reproduzir a discriminação, a subordinação, a desqualificação.
A Sua trajetória nas instituições e serviços expressa o acúmulo
de experiências mediadas por um padrão de sociabilidade,
marcado pela força e pelo autoritarismo, em razão da sua cor,
classe social, condição de moradia, ou seja, sinais que informam
a sua identificação com o “perigo”. São tratados de tal forma que
o acesso aos seus direitos na saúde, na educação, na assistência,
dentre outros, não é reconhecido como uma prestação de serviço
ao usuário, mas como um favor, algo pelo qual ele sequer tem o
direito de reclamar.
Por fim, a crise econômica que assola a sociedade também
limita o potencial de execução do SINASE. Consequentemente, a
experiência dos adolescentes dentro do Sistema Socioeducativo
é reconhecida mais pelas situações de violação aos Direitos
Humanos do que pelas medidas de promoção. O fracasso
da Socioeducação, neste sentido, manifesta concretamente o
declínio do Estado Democrático de Direito e de todo esforço de
reordenamento institucional que requer para se tornar efetivo.

Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade 197


REFERÊNCIAS:

BAZON, M. R. Psicoeducação: teoria e prática para a intervenção


junto a crianças e adolescentes em situação de risco psicossocial.
Ribeirão Preto: Holos, 2002.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
MATZA, D. Delinquency and Drift. New York: John Wiley and
Sons, 1964.
MELOSSI, D.; PAVARINI, M. Cárcere e fábrica: as origens do
sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Revan,
2006. (Coleção Pensamento Criminológico).
MÉNDEZ, E. G. Infancia de los derechos y de la justicia. 2. ed.
atual. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004.
PLATT, A. Los Salvadores del Niño o la invención de la
delinquência. Bogotá: Siglo veinteuno de Colombia, 1982.
RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O. Punição e estrutura social. 2.
ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

198 Trajetória de Vida, Violência e Vulnerabilidade

Você também pode gostar