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FICHAMENTO

HOBBES, Thomas. Leviatã.

Nº DA ANO-
TAÇÃO E TRECHOS E EXCERTOS COMENTÁRIOS
PÁGINA
17. Sobre as causas, geração e definição de um Estado
O desígnio dos homens, causa final ou fim úl-
→ Desígnio último dos homens:
timo – que amam naturalmente a liberdade e
cuidado com sua própria con-
domínio sobre os outros – introduzindo restri-
servação e com seu bem-estar.
ções a si mesmos conforme os vemos viver
nos Estados, é o cuidado com sua própria con-
→ Condição natural dos homens:
servação e com uma vida mais satisfeita. En-
“condição de guerra” decorren-
fim, o desejo de sair daquela mísera condição
te de suas paixões.
127 de guerra que é a consequência necessária –
conforme demonstrado – das paixões naturais
→ O que é o Estado nesta pers-
dos homens, quando não há um poder visível
pectiva? “Um poder visível ca-
capaz de os manter em respeito, forçando-os,
paz de os manter em respeito”
por medo do castigo, ao cumprimento de seus
às leis pactuadas pelos indiví-
pactos e ao respeito àquelas leis naturais que
duos utilizando-se da coação
foram expostas nos capítulos décimo quarto e
física.
décimo quinto.
É indispensável que o Estado uti-
Os pactos, sem a força, não passam de pala-
lize da força (ainda que potencial-
127 vras sem substância para dar qualquer segu-
mente) para que sejam cumpridos
rança a ninguém.
os pactos sociais.
Assim como faziam as pequenas famílias,
também fazem hoje as cidades e os reinos,
que não são mais do que famílias maiores, Assim como em tempos primiti-
para sua própria segurança ampliando seus vos as pequenas famílias rouba-
domínios e, sob qualquer pretexto de perigo, vam e espoliavam seus vizinhos
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de medo de invasão ou assistência que pode para sua própria segurança, as ci-
ser prestada aos invasores, legitimamente pro- dades e os reinos o faziam naque-
curam subjugar ou enfraquecer seus vizinhos, la época.
por meio da força ostensiva e de artifícios se-
cretos, por falta de qualquer outra segurança.
O autor sustenta que é difícil uma
Se fosse lícito supor uma grande multidão ca-
grande multidão se estabelecer
paz de consentir na observância da justiça e
como sociedade em virtude da
das outras leis naturais, sem um poder comum
pluralidade de interesses particu-
que mantivesse a todos em respeito, igual-
129 lares, que, conflituosos, enfraque-
mente o seria supor a humanidade inteira ca-
cem o todo, seja do ponto de vista
paz disso. Não haveria, nem seria necessário,
do inimigo externo, seja do ponto
no caso, qualquer governo civil, ou qualquer
de vista dos conflitos internos. Do
Estado, pois haveria paz sem sujeição.
contrário fosse, pra que Estado?

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Hobbes começa a declinar os mo-
tivos pelos quais os homens não
conseguem, como as abelhas ou
Primeiro, porque a humanidade está constan-
as formigas, agir no sentido de um
temente envolvida numa competição pela
129 bem comum sem um Estado.
honra e pela dignidade, o que não ocorre com
essas criaturas.
→ O primeiro ponto é o conflito
pela honra, força motriz da inveja,
do ódio e da guerra.
Segundo, porque entre essas criaturas não há
→ O homem, pelo contrário, bus-
diferença entre o bem comum e o bem indivi-
ca sua felicidade na comparação
129 dual. Por natureza elas tendem para o bem in-
com outros homens e está sempre
dividual e acabam por promover o bem co-
em busca de prazeres imediatos.
mum.
Terceiro, porque, como essas criaturas não → Os homens, pelo contrário,
dispõem – diferentemente do homem – do uso veem e apontam os erros da con-
129 da razão, não veem nem julgar ver qualquer dução da sociedade, cada um de-
erro na administração de sua existência co- fendendo seus próprios pontos de
mum (…). vista, o que leva ao caos social.
Quarto, porque essas criaturas, mesmo dis-
pondo de certa capacidade de comunicação, → O homem tem capacidade de
para dar a conhecer umas às outras seus dese- usar a palavra como instrumento
jos e outras afecções, mesmo assim carecem de convencimento para o “bem” e
130
daquela arte das palavras mediante a qual al- para o “mal”, o que também é um
guns homens são capazes de apresentar aos elemento gerador de discórdia e
outros o que é bom sob a aparência do mal, e desordem.
o que é mau sob a aparência do bem.
Quinto, porque as criaturas irracionais são in-
→ Quanto mais satisfeito o ho-
capazes de distinguir entre injúria e dano.
mem, mais se sente em condições
130 Consequentemente, basta que estejam satisfei-
de “exibir sua sabedoria” e con-
tas para nunca se ofenderem com seus seme-
trolar o governo do Estado.
lhantes.
Por último, porque o acordo vigente entre → A estruturação da sociedade de
essas criaturas é natural, e o dos homens formigas e abelhas é natural, en-
130
surge por intermédio de um pacto, isto é, quanto para os homens decorre de
artificialmente. um pacto.
A única forma de constituir um poder comum
(…) é conferir toda a força e poder a um ho-
mem, ou a uma assembleia de homens, que
possa reduzir suas diversas vontades, por plu-
130
ralidade de votos, a uma só vontade. (…) To-
dos devem submeter suas vontades à vontade
do representante e suas decisões à sua deci-
são.
131 “Cedo e transfiro meu direito de governar Os termos do contrato original
a mim mesmo a este homem, ou a esta as- que dá origem ao Leviatã, o “deus
sembleia de homens, com a condição de que mortal”.
transfiras a ele teu direito, autorizando de
maneira semelhante todas as suas ações”.
Feito isso, à multidão assim unida numa só

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pessoa se chama Estado, em latim civitas.
“Uma grande multidão institui a uma pessoa,
mediante pactos recíprocos uns com os ou- O soberano, portanto, é o indiví-
tros, para em nome de cada um como autora, duo que representa a pessoa dota-
poder usar a força e os recursos de todos, da da dos poderes cedidos pelos súdi-
131 maneira que considerar conveniente, para as- tos.
segurar a paz e a defesa comum”.
Soberano é aquele que representa essa pessoa. → O soberano é como se fosse
Dele se diz que possui poder absoluto. Todos um cargo?
os outros são súditos.
Aquisição do poder soberano

O poder soberano pode ser adquirido de duas 1. Força natural


maneiras. Uma delas é a força natural (…). A → Pai sobre os filhos e sobre os
outra maneira é quando os homens concordam descendentes dos filhos
entre si em se submeterem a um homem, ou a → Os vitoriosos da guerra sobre
uma assembleia de homens, voluntariamente, os derrotados, exigindo submissão
131
com a esperança de serem protegidos por ele em troca de suas vidas
contra tudo. Este último pode ser chamado um
Estado Político, ou um Estado por instituição. 2. Força do pacto social
Ao primeiro pode chamar-se um Estado por → Os homens concordam entre si
aquisição. para se submeterem a outro indi-
víduo que os representará e os de-
fenderá
18. Sobre os direitos dos soberanos por instituição.
Estado instituído é quando uma multidão de
pessoas concordam e pactuam que a qualquer
homem ou assembleia de homens a quem seja
atribuído pela maioria o direito de representar
a pessoa de todos eles – ou seja, de ser seu re-
presentante –, todos, sem exceção, tanto os
132 que votaram a favor dele como os que vota-
ram contra ele, deverão autorizar todos os atos
e decisões desse homem ou assembleia de ho-
mens, tal como se fossem seus próprios atos e
decisões, a fim de viverem em paz uns com os
outros e serem protegidos dos restantes ho-
mens.
→ Originalidade do pacto
Em primeiro lugar, pactuando, deve entender-
se que não se encontram obrigados por um Uma vez que se tenha realizado o
132
pacto anterior a qualquer coisa que contradiga pacto, ele é o que vale; outros an-
o atual. teriormente firmados deixam de
vigorar.
133 Cada homem conferiu a soberania àquele que Os homens, uma vez sob um pac-
é portador de sua pessoa, portanto se o depu- to, não poderão submeter-se a ou-
serem estarão tirando dele um direito adquiri- tros pactos sem a autorização do
do, o que também constitui injustiça. soberano, nem mesmo com Deus,
uma vez que um pacto desta natu-
reza não prescinde de alguém que

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faça essa intermediação entre os
homens e Deus.
→ Soberano não é parte do pacto,
Em segundo lugar, posto que o direito de re-
não podendo quebrá-lo;
presentar a pessoa de todos é conferido ao que
é tornado soberano mediante um pacto cele-
Os pactuantes são os próprios
brado apenas entre os súditos e não entre o so-
133 súditos, de modo que o soberano,
berano e cada um dos outros, não pode haver
uma vez instituído, não pode
quebra do pacto da parte do soberano, portan-
quebrar o pacto, de modo que
to nenhum dos súditos pode se libertar da su-
este não é um motivo para insur-
jeição, sob qualquer pretexto de infração.
gência dos súditos.
(…) os pactos, não passando de palavras e
vento, não têm qualquer força para obrigar,
134/135
dominar, constranger ou proteger ninguém, a
não ser a que deriva da espada pública.
Em terceiro lugar, se a maioria, por voto de
→ Submissão ao pacto original:
consentimento, escolher um soberano, os que
tiverem discordado devem passar a consentir
O indivíduo que discordar da es-
juntamente com os restantes. Ou seja, devem
colha do soberano não tem o di-
aceitar reconhecer todos os atos que ele venha
reito de contra ele se rebelar, pois
a praticar, ou então serem justamente destruí-
134/135 a manifestação primordial de sua
dos pelos restantes. Aquele que voluntaria-
vontade foi respeitada, que é fazer
mente ingressu na congregação dos que cons-
parte da congregação. Do contrá-
tituíam a assembleia, declarou suficientemen-
rio, assumirá que está na posição
te com esse ato sua vontade (e, portanto, taci-
original pré-pacto – posição de
tamente fez um pacto) de se conformar ao que
guerra – e pode ser “destruído”.
a maioria decidir.
Em quarto lugar, dado que todo súdito é por → Legitimidade do soberano
instituição autor de todos os atos e decisões
do soberano instituído, segue-se que nada do O soberano é legítimo para tomar
que este faça pode ser considerado injúria as decisões, quaisquer que sejam,
para com qualquer de seus súditos, e que ne- sem que qualquer súdito tenha o
nhum deles pode acusá-lo de injustiça. (…) direito de se sentir ofendido por
134/135
Por esta instituição de um Estado, cada indiví- elas, porquanto a sua autoridade
duo é autor de tudo quanto o soberano fizer, [do soberano] provenha da autori-
por consequência aquele que se queixar de dade do próprio súdito. É como se
uma injúria feita por seu soberano estar-se-á o súdito pudesse agir contra si em
queixando daquilo de que ele próprio é autor razão do mal que se fez, o que não
(…). se admite.
Em quinto lugar, e em consequência do que
foi dito por último, aquele que detém o poder
134/135 soberano não pode justamente ser morto, bem
de qualquer outra maneira pode ser punido
por seus súditos.
134/135 Em sexto lugar, compete à soberania ser juiz → Controle sobre a expressão dos
de quais as opiniões e doutrinas que são con- súditos:
trárias à paz, e quais as que lhe são propícias.
(…) Pois as ações dos homens derivam de Considerando o fim último da ins-
suas opiniões, e é no bom governo das opini- tituição do Estado, ao soberano é
ões que consiste o bom governo das ações dos permitido discriminar o que deve

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ser permitido ou não em termos
homens, tendo em vista a paz e a concórdia de discurso, voltando suas deci-
entre eles. sões, claro, para a manutenção da
paz no seio da sociedade.
Os que se deixam ser displicentemente gover-
nados, que se negam a pegar em armas para
Os súditos que se “deixam ser go-
defender ou impor uma opinião, esses se en-
vernados” sem que busquem pela
contram ainda em condição de guerra. Sua si-
136 doutrina “verdadeira” – que, como
tuação não é a paz, mas apenas uma suspen-
tal, não pode ser contrária à paz –
são de hostilidades por medo uns dos outros.
não está em paz, mas em trégua.
É como se vivessem continuamente num pre-
lúdio de batalha.
Em sétimo lugar, compete ao soberano o po-
der de prescrever as regras para um homem
saber quais os bens de que pode gozar, e quais
as ações que pode praticar, sem ser molestado → Direito à propriedade privada
por qualquer de seus concidadãos. A isto os por parte dos súditos e dever de
136 homens chamam propriedade. (…) Esta pro- protegê-la por parte do soberano.
priedade, portanto, posto que necessária à paz
e dependente do poder soberano, é um ato → Leis civis
desse poder, tendo em vista a paz pública.
Tais regras da propriedade (…) são as leis ci-
vis.
Em oitavo lugar, cabe ao poder soberano a au-
toridade judicial. Quer dizer, o direito de ou-
136 vir e julgar todas as controvérsias relaciona- → Poder judicial/judiciário
das às leis, tanto civis quanto naturais, ou re-
ferente aos fatos.
Em nono lugar, compete ao soberano o direito
de fazer a guerra e a paz com outras nações e → Política externa: o poder de de-
Estados. Ou seja, decidir quando a guerra cor- cidir sobre guerras
responde ao bem comum, qual a quantidade
136-137
de forças que devem ser reunidas, armadas e Importante frisar que o exército
pagar para esse fim e providenciar recursos estará sempre sujeito ao soberano
entre os súditos para pagar as respectivas des- (o “generalíssimo”).
pesas (…).
→ Poder de escolha da burocracia
estatal
Em décimo lugar, cabe ao soberano a escolha
de todos os conselheiros, ministros, magistra- Já que o soberano está encarrega-
137
dos e funcionários, tanto na paz como na do dos fins – de promoção da paz
guerra. e da segurança – também ficará
sob seu encargo definir os funcio-
nários que farão isso.
Em décimo primeiro lugar, é dado ao sobera-
no o direito de recompensar com riquezas e
honras, e o direito de punir com castigos cor- → Poder de recompensar e casti-
137
porais ou pecuniários, ou com a ignomínia, a gar
qualquer súdito, de acordo com a lei que pre-
viamente estabeleceu.

5
Existem outros poderes que exer-
Esses são os direitos que constituem a essên-
ce o soberano que podem ser
cia da soberania. São as marcas pelas quais se
transferidos; todavia, a cessão de
pode distinguir em que homem, ou assembleia
137 qualquer um dos onze anteriores o
de homens, se localiza e reside o poder sobe-
fará perder a qualidade de sobera-
rano. Esses direitos são incomunicáveis e in-
no, se não a título formal, a título
separáveis.
material.
Posto que se trata de direitos essenciais e inse-
paráveis, deduz-se necessariamente que,
quaisquer que sejam as palavras em que qual-
Mesmo que o soberano outorgue
quer deles pareça ser alienado, mesmo assim,
alguns desses direitos, em se man-
se não se renunciar em termos expressos ao
tendo o mesmo soberano, a outor-
poder soberano, e o nome de soberano não
138 ga é nula, porquanto sejam direi-
mais for dado pelos outorgado àquele que a
tos inseparáveis e essenciais à
eles outorga, nesse caso a outorga é nula. Pois
própria existência de um poder so-
que, depois de ele ter outorgado tudo quanto
berano.
queira, se lhe outorgamos de volta a sobera-
nia, tudo fica assim restabelecido e insepara-
velmente atribuído a ele.
Tanto quanto o poder, também a honra do so-
berano deve ser maior do que a de qualquer
139
um, ou a de todos os seus súditos. É na sobe-
rania que está a fonte da honra.
(…) a condição do homem nunca pode deixar
de ter uma ou outra incomodidade, e que a
possibilidade de cair a maior sobre o povo em
geral, em qualquer regime de governo, é de
Ainda que a desgraça maior caia
pouca valia quando comparada com as misé-
139 sobre o povo, ainda é melhor do
rias e horríveis calamidades que acompanham
que viver sem soberano.
a guerra civil, ou aquela condição dissoluta de
homens sem senhor, sem sujeição às leis e a
um poder coercitivo capaz de atar suas mãos,
impedindo a rapina e a vingança.
Hobbes afirma que a população
tende a maximizar os defeitos e os
[os homens] São destituídos, todavia, daque- inconvenientes de se sujeitar ao
las lentes prospectivas – a saber, a ciência soberano, ignorando, todavia, os
140 moral e civil – que permitem ver de longe as benefícios que o Estado lhe pro-
misérias que os ameaçam, e que sem tais pa- porciona e que, muitas vezes, de-
gamentos não podem ser evitadas. pendem justamente destes incon-
venientes – como tributos, por
exemplo.
19. Sobre as diversas espécies de governo por instituição e sobre a sucessão do poder soberano
140 (…) só pode haver três espécies de governo. Para Hobbes, só existem três for-
Pois o representante é necessariamente um mas de governo; tirania e oligar-
homem ou mais de um. Caso seja mais de um quia estão dentro da monarquia e
a assembleia será de todos ou apenas de uma aristocracia – são as mesmas for-
parte. Quando o representante é um só ho- mas de governo, ganhando tal
mem, o governo chama-se monarquia. Quan- nome quando são “detestadas”.
do é uma assembleia de todos os que se uni- Não menciona a “demagogia”

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ram, é democracia ou governo popular. Quan- neste ponto, mas menciona a
do é uma assembleia apenas de uma parte, “anarquia” como uma democracia
chama-se-lhe aristocracia. detestada pelos “súditos”.
Comparando a monarquia com as outras duas,
impõem-se várias observações. Em primeiro
lugar, seja quem for que seja portador da pes-
soa do povo, ou membro da assembleia que
dela é portadora, é também portador de sua
própria pessoa natural. Mesmo tendo o cuida-
do, em sua pessoa política, de promover o in-
teresse comum, terá mais ainda, ou não terá o
cuidado de promover seu próprio bem pessoal Motivos para a superioridade da
142
(…), se por acaso houver conflito houver con- monarquia em relação às demais:
flito entre o interesse público e o interesse
pessoal, preferirá o interesse pessoal, já que → Identidade do interesse público
em geral as paixões humanas são mais fortes e do privado;
que a razão. Segue-se que, quanto mais inti- → Maior possibilidade de receber
mamente unidos estiverem o interesse público os melhores conselhos;
e o interesse pessoal, mais se beneficiará o in- → Apenas uma inconstância – a
teresse público. Ora, na monarquia o interesse da natureza humana, enquanto a
pessoal é o mesmo que o interesse público. assembleia também tem a do nú-
Em segundo lugar, um monarca recebe conse- mero;
lhos de quem lhe apraz, quando e onde lhe → Impossível um monarca dis-
apraz. Consequentemente, tem a possibilidade cordar de si mesmo;
de ouvir as pessoas versadas na matéria sobre → O monarca tem menos favori-
a qual está deliberando, seja qual for a catego- tos que uma assembleia;
ria ou a qualidade dessas pessoas, com a ante-
142-143 cedência que quiser em relação ao momento
da ação, assim como o segredo que quiser.
(…) O entendimento submetido à chama das
paixões, jamais é iluminado, mas sempre
ofuscado. Nunca há lugar nem tempo para que
uma assembleia possa receber conselhos em
sigilo, devido a sua própria multidão.
Em terceiro lugar, as resoluções domonarca
estão sujeitas a uma única inconstância, que é
143 a da natureza humana, ao passo que nas as-
sembleias, além desta da natureza, verifica-se
a inconstância do número.
Em quanto lugar, é impossível um monarca
Este tipo de dissensão pode che-
143 discordar de si mesmo, seja por inveja ou por
gar a provocar guerras civis.
interesse.
Enquanto os favoritos de um monarca são
poucos, e ele tem para favorecer apenas seus
Já pressupõe algum grau de “cor-
143 parentes, os favoritos de uma assembleia são
rupção”.
muitos, e os parentes são em muito maior nú-
mero que os de um monarca.
143-144 Em sexto lugar, há o inconveniente de, na mo- Neste caso, o inconveniente da
narquia, ser possível a soberania ser herdada monarquia não é da forma de go-
por uma criança ou por alguém incapaz de verno em si, mas dos súditos que

7
distinguir o bem do mal. (…) Os inconvenien-
tes que se poderão verificar não deverão ser
atribuídos à monarquia, nessa circunstância,
não são instruídos da forma corre-
mas à ambição e injustiça dos súditos, que são
ta a respeito do exercício da sobe-
as mesmas em todas as espécies de governo
rania.
em que o povo não é competentemente instru-
ído quanto a seus deveres e quanto aos direi-
tos da soberania.
→ Criança: não pode discordar de
seus tutores;
(…) não há qualquer grande Estado cuja sobe-
rania resida numa grande assembleia que não → Assembleia: não pode discor-
se encontre, quanto às consultas da paz e da dar da maioria de seus membros
144
guerra e quanto à feitura das leis, na mesma
situação de um governo pertencente a uma  Necessidade de um custodes li-
criança. bertatis, um “tutor” para proteger
a assembleia – ditadores proteto-
res de sua liberdade.
Os monarcas eletivos não são soberanos, mas
ministros do soberano. Os monarcas limitados
também não são soberanos, mas ministros dos
que têm o poder soberano. Aquelas províncias
145
que se encontram submetidas a uma democra-
cia ou aristocracia de um outro Estado não são
democrática ou aristocraticamente governadas
e, sim, monarquicamente.
Quando o povo é governado por uma assem-
bleia, escolhida por ele próprio em seu pró-
prio seio, o governo se chama uma democra-
cia ou aristocracia, quando o povo é governa-
146
do por uma assembleia que não é de sua pró-
pria escolha o governo é uma monarquia. E
não de um homem sobre outro homem, mas
de um povo sobre outro povo.
(…) é necessário para a conservação da paz
entre os homens que, do mesmo modo que fo-
ram tomadas medidas para a criação de um → Direito de sucessão = eternida-
146 homem artificial, também sejam tomadas me- de artificial do homem artificial
didas para uma eternidade artificial da vida. (soberano)
(…) Esta eternidade artificial é o que se cha-
ma direito de sucessão.
É impossível que uma assembleia inteira ve-
nha a faltar, numa democracia, a não ser que
falte também a multidão que deverá ser go-
147
vernada. Então, as questões relativas ao direi-
to de sucessão não podem ter lugar nessa for-
ma de governo.
147 No direito de sucessão, a maior dificuldade Se assim não fosse, argumenta
ocorre na monarquia. A dificuldade surge do Hobbes, significaria que a sobera-
fato de, à primeira vista, não ser evidente nia estaria dissolvida em favor de

8
quem deve designar o sucessor, nem muitas cada um dos súditos, os quais teri-
vezes quem foi que ele designou. am direito de ceder sua liberdade
a quem lhes aprouvesse, entrando
É evidente que, pela instituição de uma mo-
novamente em estado de guerra e
148 narquia, a escolha do sucessor é sempre dei-
indo de encontro à finalidade da
xada ao juízo e vontade do possessor atual.
instituição do Estado.
Com relação à dúvida de saber quem foi que o
atual monarca designou como herdeiro e su-
cessor de seu poder, este é determinado por
palavras expressas, num testamento, ou por
Em não havendo testamento ou
outros sinais tácitos considerados suficientes.
costume, a lei natural dispõe que:
(…)
A palavra “herdeiro” não significa por si mes-
 Priorize-se os filhos, o homem
ma os filhos ou parentes mais próximos de um
148 em primeiro lugar, depois a mu-
homem, mas seja quem for que de qualquer
lher;
modo este último declarar que deverá suce-
 Não havendo, os irmãos, priori-
der-lhe em suas propriedades.
zando-se os de sangue mais próxi-
(…)
mo em relação aos mais remotos.
Na ausência de testamento e palavras expres-
sas, todavia, é preciso guiar-se por outros si-
nais naturais da vontade, um dos quais é o
costume.
Principal inconveniente: sucessão
para um estrangeiro.
[não é injurioso ao povo] que um monarca de-
cida por testamento sua sucessão, apesar de
149  Como é tolerada em caso de
que, por culta de muitos príncipes, tal haja
casamento com estrangeiro, advo-
sido às vezes considerado inconveniente.
ga Hobbes que não se trata de hi-
pótese irrazoável.
20. Sobre o domínio paterno e despótico
→ Soberania por aquisição: os ho-
mens escolhem se submeter ao so-
Esta espécie de domínio ou soberania [por berano que tem o poder de impôr-
aquisição] difere da soberania por instituição lhes a morte ou o cativeiro; te-
apenas num aspecto: os homens que escolhem mendo tal destino, dobram os joe-
seu soberano fazem-no por medo uns dos ou- lhos.
tros e não daquele a quem escolhem. Nesse
caso, submetem-se àquele de quem têm medo. → Soberania por instituição: os
150
Fazem-no por medo, em ambos os casos, que homens escolhem se submeter ao
deve ser notado por todos aqueles que consi- soberano por temerem uns aos ou-
deram nulos os pactos conseguidos pelo medo tros.
da morte ou violência. Se isto fosse verdade,
ninguém poderia, em nenhuma espécie de Es- De toda forma, em ambos os ca-
tado, ser obrigado à obediência. sos a soberania é instituída em
virtude do medo, não havendo ile-
gitimidade na primeira.
Os direitos e consequências da soberania são
150
os mesmos em ambos os casos.
152-153 Domínio adquirido por conquista ou vitória Poder despótico  domínio ad-
militar é aquele que alguns autores chamam quirido por conquista ou vitória

9
despótico, de despótes, que significa senhor
ou amo, e é o domínio do senhor sobre seu
servo. O domínio é adquirido pelo vencedor
quando o vencido, para evitar o iminente gol-
pe de morte, promete por palavras expressas
ou por outros suficientes sinais de sua vonta- militar.
de, que, enquanto sua vida e a liberdade de
seu corpo lho permitirem, o vencedor terá di- O sujeito submetido a esse poder
reito ao seu uso, a seu bel-prazer. Após reali- é servo, mas não é escravo.
zado esse pacto, o vencido torna-se servo,
mas não antes. (…) Por servo, entende-se al- → Servidão ≠ escravidão:
guém a quem se permite a liberdade corpórea  O servo possui liberdade cor-
e que, após prometer não fugir nem praticar pórea, mas a submete voluntaria-
violência contra seu senhor, recebe a confian- mente ao seu senhor;
ça deste último.  O escravo é como um objeto,
Não é a vitória que confere o direito de domí- não possui qualquer liberdade.
nio sobre o vencido, mas o pacto celebrado Todavia, Hobbes entende não ha-
por este. ver lugar para escravidão, de
(…) não se entende um cativo, que é guarda- modo que o escravo pode até mes-
do na prisão ou a ferros, até que o proprietário mo “matar ou levar cativo o seu
daquele que o tomou ou comprou de alguém senhor”.
que o fez, decida o que vai fazer com ele. Es-
153
ses homens geralmente chamados escravos
não têm obrigação alguma e podem, sem in-
justiça, destruir suas cadeias ou prisão, e ma-
tar ou levar cativo o seu senhor.
(…) os direitos e consequências tanto do do-
mínio paterno quanto do despótico são exata-
153-154
mente os mesmos que os do soberano por ins-
tituição e pelas mesmas razões (…).
Hobbes passa a fazer uma longa
justificação do poder do soberano
Agora vamos ver o que as Escrituras ensinam
154 com base em passagens da Bíblia
relativamente às mesmas questões.
– sobretudo no Antigo Testamen-
to.
Fica claramente indicado embora alegorica-
mente – que os mandamentos daqueles que
156
têm o direito de mandar não devem ser censu-
rados nem discutidos por seus súditos.
(…) o poder soberano, quer resida num ho-
mem como numa monarquia, quer numa as-
sembleia como nos Estados populares e aris- → O poder soberano é o ápice do
tocráticos, é o maior que é possível imaginar poder criado pelo homem. Ainda
que os homens possam criar. Embora seja que tenha seus inconvenientes, é
156
possível imaginar muitas más consequências muito melhor do que a guerra infi-
de um poder tão ilimitado, apesar disso as nita do estado de natureza do ho-
consequências da falta dele, isto é, a guerra mem.
perpétua de todos os homens com seus vizi-
nhos, são muito piores.
157 O talento de fazer e conservar Estados consis- → As regras para criação e con-

10
te em certas regras, tal como a aritmética e a
servação do Estado são leis natu-
geometria, e não – como o jogo do tênis –
rais.
apenas na prática.
21. Sobre a liberdade dos súditos
Liberdade significa, em sentido próprio, a au-
Conceito ligado à ideia de liberda-
158 sência de oposição entendendo por oposição
de deambular.
os impedimentos externos do movimento.
(…) um homem livre é aquele que não é im-
158 pedido de fazer oque tem vontade de fazer,
naquilo que é capaz de fazer.
Sempre que as palavras livre e liberdade são
“caminho livre”, “doação livre”,
158 aplicadas a qualquer coisa que não é um cor-
“fala livre”, “livre arbítrio”.
po, há um abuso de linguagem.
→ Importante: compatibilidade
São compatíveis o medo e a liberdade. (…)
entre medo e liberdade. O fato de
De maneira geral todos os atos praticados pe-
o indivíduo ter medo das conse-
159 los homens no Estado, por medo da lei, são
quências de sua omissão não sig-
ações que seus autores têm a liberdade de não
nifica que não teve a liberdade de
praticar.
escolher qual atitude tomar.
São compatíveis a liberdade e a necessidade. Toda ação deriva de uma vontade;
(…) Posto que os atos da vontade de todo ho- toda vontade, deriva da liberdade.
mem, assim como todo desejo e inclinação Como há uma causa subjacente a
derivam de alguma causa, e essa de uma outra toda vontade, e uma causa subja-
159
causa, numa cadeia contínua, cujo primeiro cente a esta outra causa, o elo se
elo está na mão de Deus, a primeira de todas inicia a partir da necessidade.
as causas –, elas derivam também da necessi-
dade. (ver outra tradução)
Deus, portanto, que vê e dispõe de todas as
coisas, vê também que a liberdade que o ho-
159 mem tem de fazer o que quer é acompanhada
pela necessidade de fazer aquilo que Deus
quer, e nem mais nem menos do que isso.
Tendo em vista conseguir a paz e através dis-
so sua própria conservação, os homens cria-
→ Novamente, a ideia de Estado
ram um homem artificial, ao qual chamamos
como um “homem artificial”.
Estados, assim também criaram cadeias artifi-
159 ciais, chamadas leis civis, as quais eles mes-
→ As leis seriam correntes artifi-
mos, mediante pactos mútuos, prenderam uma
ciais para limitar a liberdade natu-
das pontas à boca daquele homem ou assem-
ral dos homens.
bleia a quem confiaram o poder soberano e a
outra ponta a seus próprios ouvidos.
(…) em todas as espécies de ações não previs-
tas pelas leis os homens têm liberdade de fa- É o famoso “o que não é proibido,
160
zer o que a razão de cada um sugerir como o é permitido”.
mais favorável a seu interesse.
160 (…) as leis não tem poder algum para pro- As leis são correntes que, para
tegê-los [os homens], se não houver uma arma funcionarem adequadamente, pre-
nas mãos de um homem ou homens encarre- cisam de um homem com armas
gados de pôr as leis em execução. A liberdade capaz de defendê-la.
dos súditos, portanto, está apenas naquelas

11
coisas que, ao regular suas ações, o soberano
permitiu.
Já foi mostrado que nada que o soberano re-
presentante faça a um súdito pode, sob qual-
→ O soberano não pode cometer
quer pretexto, ser propriamente chamado in-
injúria ou injustiça contra o súdi-
justiça ou injúria. Cada súdito é autor de todos
to, porquanto o súdito seja consti-
os atos praticados pelo soberano, de modo que
tuinte da pessoa artificial que é o
a este nunca falta o direito seja ao que for, a
soberano.
160-161 não ser na medida em que ele próprio é súdito
de Deus, e nesse sentido obrigado a respeitar
Caso o soberano haja de forma a
as leis naturais. (…) O ato embora seja con-
ferir alguma “lei natural”, como a
trário à lei natural, por ser contrário à equida-
justiça, estará desrespeitando a
de, como foi o caso de Davi ao matar Urias.
Deus e não ao súdito.
Contudo, não foi uma injúria feita a Urias, e
sim a Deus.
A liberdade na qual se encontram tantas e tão
honrosas referências nas obras de história e fi-
losofia dos antigos gregos e romanos, bem
como nos escritos e discursos dos que dele re-
161 ceberam todo o seu saber em matéria de po-
lítica, não é a liberdade dos indivíduos, porém
a liberdade do Estado. Esta é a mesma que
todo homem deveria ter, se não houvesse leis
civis nem qualquer espécie de Estado.
Por intermédio da leitura desses autores gre-
gos e latinos, os homens passaram desde a in-
fância a adquirir o hábito – sob uma falsa apa-
rência de liberdade – de fomentar tumultos e → Hobbes aponta na concepção
de exercer um licencioso controle a respeito de liberdade um “preço caro” que
162 dos atos de seus soberanos. Por sua vez, o de o Ocidente “pagou” por aprender
controlar esses controladores, com imensa as línguas grega e latina (e, assim,
efusão de sangue. Posso afirmar que jamais ter acesso aos seus escritos).
uma coisa foi paga tão caro como estas partes
ocidentais pagaram o aprendizado das línguas
gregas e latina.
(…) todo súdito tem liberdade em todas aque-
las coisas cujo direito não pode ser transferido
por um pacto. No cap. 14 mostrei que os pac-
tos, no sentido de cada um abster-se de defen-
→ Por exemplo: uma ordem de
der seu próprio corpo, são nulos.
suicídio é nula, assim como uma
163 (…)
ordem de abstenção de medica-
Caso alguém seja interrogado pelo soberano
mentos.
ou por sua autoridade, portanto, relativamente
a um crime que cometeu, não é obrigado – a
não ser que receba a garantia de perdão – a
confessá-lo.
164 (…) a obrigação que às vezes se pode ter, por → A desobediência está justifica-
ordem do soberano, de executar qualquer mis- da quando a ordem do soberano
são perigosa ou desonrosa, não depende das extrapola o fim pelo qual foi cria-
palavras de nossa submissão, mas da intenção, do.

12
a qual deve ser entendida como seu fim.
Não se tem liberdade de resistir à força do Es- Há, todavia, a liberdade para se
tado, em defesa de outrem, seja culpado ou autoproteger, ainda que a ameaça
164 inocente. Essa liberdade priva a soberania dos de punição do Estado decorra de
meios para proteger-nos, sendo portanto des- motivo justo (como a prática de
trutiva da própria essência do Estado. um crime).
Com respeito às outras liberdades, dependem
do silêncio da lei. Nos casos em que o sobera-
165 no não tenha estabelecido uma regra, o súdito
tem a liberdade de fazer ou de omitir, de acor-
do com seu entendimento.
Um monarca ou uma assembleia soberana que
outorguem uma liberdade a todos, ou a qual- → Qualquer concessão de direito
quer dos súditos, liberdade essa que lhe faz deve observar o fim da instituição
165 perder a capacidade de prover a sua seguran- do Estado e da soberania; não o
ça, faz com que essa outorga seja nula, a não fazendo, será nula de pleno direi-
ser que diretamente renuncie ou transfira a so- to.
berania para outrem.
A obrigação dos súditos para com o soberano
dura enquanto e apenas enquanto dura tam- → A obediência dos súditos (e,
bém o poder mediante o qual ele é capaz de portanto, a soberania) estará vin-
166
protegê-los. culada à capacidade do soberano
(…) de protegê-los.
A finalidade da obediência é a proteção.
Caso um monarca renunciar à soberania, tanto
para si mesmo como para seus herdeiros, os
súditos voltam à absoluta liberdade natural.
166 (…) se ele não tiver herdeiro, não haverá mais → Renúncia = fim da soberania
soberania nem sujeição. É o mesmo caso se
ele morrer sem parentes conhecidos e sem de-
clarar quem deverá ser o herdeiro.
Caso um monarca vencido na guerra se fizer
súdito do vencedor, seus súditos ficam livres
da obrigação anterior e passam a ter obrigação
para com o vencedor. Se ele for feito prisio-
neiro ou não dispuser da liberdade de seu pró-
167 prio corpo, não se entende que ele tenha re-
nunciado ao direito de soberania. Consequen-
temente seus súditos são obrigados a prestar
obediência aos magistrados que anteriormente
tiverem sido nomeados para governar, não em
nome deles mesmos, mas no do soberano.
26. A respeito das leis civis
Leis civis são aquelas que os homens são
obrigados a respeitar, não por serem membros
196
deste ou daquele Estado em particular, mas
por pertencerem a um Estado.
197 “A lei civil é, para todo súdito, constituída por → Lei como critério de distinção
aquelas regras que o Estado lhe impõe, oral- entre o bem e o mal
mente ou por escrito, ou por outro sinal sufici-

13
ente de sua vontade, para usar como critério
de distinção entre o bem e o mal, quer dizer,
do que é contrário ou não ao sistema”.
1. O único legislador é o soberano em todos
os Estados, seja este um homem, como numa
monarquia, ou uma assembleia, como numa
democracia ou aristocracia. (…) Só o Estado
prescreve e ordena a observância das regras a → Estado/soberano = único legis-
197-198
que chamamos leis, então o Estado é o único lador
legislador. (…) Daí ninguém pode revogar
uma lei feita a não ser o soberano, pois uma
lei só pode ser revogada por outra lei, que
proíba o cumprimento da anterior.
2. O soberano de um Estado não se encontra
sujeito às suas próprias leis civis, esteja repre-
→ O Estado não pode obrigar a si
sentado por um homem ou uma assembleia.
198 mesmo por meio das leis que pro-
(…) A ninguém é possível estar obrigado pe-
mulga, pois seria um contrassenso
rante si mesmo, pois quem pode obrigar pode
libertar.
3. Sempre que um costume de longa data ad-
quire autoridade de lei, não é a duração que
lhe dá autoridade, mas a vontade do soberano
expressa por seu silêncio – às vezes o silêncio
198 → Quem cala, consente
é um argumento de aquiescência. (…) A deci-
são sobre o que é razoável e o que deve ser
abolido pertence a quem faz a lei, que é a as-
sembleia soberana ou monarca.
4. A lei natural e a lei civil se contêm uma à
outra e são de idêntica importância. (…) A lei
civil e a lei natural não são gêneros diferentes,
→ A lei civil limita a lei natural;
mas diferentes partes da lei, uma das quais é
assim não fosse, seria impossível
escrita e se chama civil e a outra não é escrita
198-199 a paz entre os homens. Na verda-
e se chama natural. O direito natural, isto é, a
de, são ambas faces de uma mes-
liberdade natural do homem, pode ser limita-
ma moeda (a lei, que é uma só).
do e restringido pela lei civil. A finalidade das
leis não é outra senão essa restrição, sem a
qual não será possível haver paz.
As leis naturais, que consistem na equidade,
na justiça, na gratidão e outras virtudes morais
A característica dessas “leis” é sua
dependentes destas, na condição de simples
198 aptidão em predispor os homens
natureza (…), não são propriamente leis, mas
para a obediência.
qualidades que predispõem os homens para a
paz e obediência.
5. No caso de o soberano de um Estado subju-
gar um povo que tenha vivido sob outras leis → Porque é o Estado vencedor
escritas e os governar pelas mesmas leis que quem decide qual a lei que valerá
199
antes eram governados, essas leis serão, não no local, ainda que seja a mais an-
obstante, as leis civis do Estado vencedor e tiga.
não as do Estado vencido.
199 6. Escritas ou não, todas as leis recebem sua

14
força e autoridade da vontade do Estado, isto
é, da vontade do representante (…).
7. Nossos juristas concordam que a lei nunca
pode ser contrária à razão, como também não
ser a letra – quer dizer, cada uma de suas fra-
ses – a própria lei e, sim, aquilo que é confor-
→ A lei deve obedecer à razão;
me à intenção do legislador. Isso é verdade,
mas não a qualquer razão, mas a
mas subsiste a dúvida quanto àquele cuja ra-
razão do legislador  soberano 
zão deve ser aceita como lei. (…) O que faz a
Estado.
lei, portanto, não é aquela juris prudentia, ou
200
sabedoria dos juízes subordinados, mas a ra-
É com base nesse fundamento que
zão deste nosso homem artificial, o Estado, e
devem julgar os juízes, do contrá-
suas ordens. (…) Em todos os tribunais de
rio estarão usurpando a competên-
justiça quem julga é o soberano – que é a pes-
cia do soberano.
soa do Estado. O juiz subordinado deve levar
em conta o motivo que levou o soberano a fa-
zer determinada lei, para que sua sentença não
destoe dessa lei.
8. (…) a ordem do Estado só é lei para aque-
les que têm meios para dela tomarem conheci-
mento. (…) [isto porque as pessoas sem tal → Crianças, débeis naturais, lou-
200-201
capacidade] nunca puderam autorizar, portan- cos e animais
to, as ações do soberano, como é necessário
que se faça para criar um Estado.
Em primeiro lugar, trata-se de uma lei natural → Exemplo: “não faças aos ou-
se for uma lei obrigatória para todos os súdi- tros o que não achas razoável que
201 tos, sem exceção, e não estiver escrita ou de façam a ti mesmo”. Trata-se de
algum outro modo publicada em lugares em uma lei alcançável pela razão de
que possam informar-se. cada homem.
Toda lei que não seja escrita, ou de alguma
forma publicada por aquele que a faz, só pode
201 ser conhecida por intermédio da razão daquele
que lhe obedece, consequentemente é também
uma lei natural e não apenas civil.
[a razão do soberano] deve ser sempre enten-
201 dida como equidade e é obrigatória para ele → Razão do soberano: equidade
segundo a lei natural.
Exceção feia à lei natural, faz parte da essên-
cia de todas as outras leis serem dadas a co-
nhecer a todos os que são obrigados a obede- → Princípio da publicidade dos
202
cer-lhes, quer oralmente quer por escrito, ou atos
mediante qualquer outro ato que se saiba pro-
ceder da autoridade soberana.
202-203 Não é suficiente que a lei seja escrita e publi- → Ideia de “fé pública”
cada. É preciso também que haja sinais mani-
festos de que ela deriva da vontade do sobera-
no. (…) A dificuldade reside na evidência da
autoridade que dele deriva. A possibilidade de
eliminar essa dificuldade depende do conheci-
mento dos registros públicos, dos conselhos

15
públicos, dos ministros públicos e dos selos
públicos, pelos quais todas as leis são sufici-
entemente verificadas.
Caso o legislador seja conhecido, e as leis,
tanto por escrito como pela luz da natureza,
abundantemente publicadas, mesmo assim
fica faltando uma circunstância absolutamente
essencial para torná-las obrigatórias. Isso por-
que a natureza da lei não consiste na letra, → Mais importante do que o texto
204
mas na intenção ou significado, quer dizer, legal é a norma jurídica.
napura interpretação da lei – isto é, do que o
legislador quis dizer.
(…) Os intérpretes só podem ser aqueles que
o soberano – única pessoa a quem o súdito
deve obediência – venha a designar.
Escritas ou não, todas as leis têm necessidade
de interpretação. (…) Quanto às leis escritas,
facilmente serão mal interpretadas se forem
breves, devido à diversidade de significações
de uma ou duas palavras. Se forem longas, se-
rão ainda mais obscuras, devido à diversidade
204 de significações de muitas palavras. Deduz-se → Mens legislatoris
que nenhuma lei escrita, quer seja expressa
em poucas ou em muitas palavras, pode ser
bem compreendida sem uma perfeita com-
preensão das causas finais para as quais a lei
foi feita. O conhecimento dessas causas finais
está com o legislador.
(…) no ato de judicatura, portanto, o juiz não
faz mais do que examinar se o pedido de cada
uma das partes é compatível com a equidade e
a razão natural, sendo sua sentença uma inter-
pretação da lei natural. Interpretação essa que
205 → O “Estado-Juiz”.
não é autêntica por ser sua sentença pessoal,
mas por ser dada pela autoridade do soberano,
mediante a qual ela se torna uma sentença do
soberano, que para as partes em litígio se tor-
na lei.
Mas como todo juiz subordinado ou soberano
pode errar em seu julgamento da equidade, se
posteriormente, em outro caso semelhante,
considerar mais compatível coma equidade
proferir uma sentença contrária, tem obriga-
205
ção de fazê-lo. O erro de um homem nunca se
torna sua própria lei, nem o obriga a nele per-
sistir. Nem tampouco, pela mesma razão, se
torna lei para outros juízes, mesmo que te-
nham jurado segui-lo.
206/207 Mesmo que a sentença seja justa, os juízes → Crítica aos juízes que julgam
que condenam sem ouvir as provas apresenta- sem apreciar as provas apresenta-

16
das são juízes injustos, e sua presunção é ape-
nas preconceito – o que ninguém deve levar
consigo para a sede da justiça, sejam quais fo- das pelas partes.
rem os julgamentos ou exemplos precedentes
que ele pretenda estar seguindo.
(…) a não ser que haja um intérprete autoriza-
do pelo soberano, do qual os juízes subordina-
dos não podem divergir, os intérpretes não po- → Os intérpretes da lei são os juí-
206/207
dem ser outros senão os juízes comuns, do zes, não os “comentadores”.
mesmo modo que o são no caso da lei não es-
crita.
No caso das leis escritas, é costume estabele-
206/207 cer uma diferença entre a letra e a sentença da → Texto legal ≠ norma jurídica
lei.
(…) o inconveniente resultante das meras pa-
lavras de uma lei escrita pode remeter o juiz
→ Não há “inconveniente” na in-
para a intenção da lei, a fim de interpretá-la
terpretação de uma lei que justifi-
208 melhor; mas não há inconveniente que possa
que uma sentença contrária à lei, é
justificar uma sentença contrária à lei. Porque
dizer, à sua literalidade.
o juiz do certo e do errado não é juiz do que é
conveniente ou inconveniente para o Estado.
→ Aos juízes não é necessário o
Um juiz, assim como deve tomar conheci-
conhecimento jurídico que se exi-
mento dos fatos exclusivamente por intermé-
ge de um bom advogado, por
dio das testemunhas, da mesma forma não
exemplo; eles precisam conhecer
deve tomar conhecimento da lei a não ser pe-
208 apenas o direito alegado no litígio
los estatutos e constituições do soberano, ale-
e apenas por fontes “oficiais”, seja
gados no litígio, ou a ele declarados por al-
o soberano, sejam juristas nomea-
guém autorizado pelo poder soberano a de-
dos por este com esta finalidade
clará-los.
específica.
O que faz um bom juiz ou um bom intérprete
da lei é, em primeiro lugar, a correta com-
Características de um bom juiz:
preensão daquela lei natural principal que se
→ Correta compreensão da equi-
chama equidade. (…) Em segundo lugar, o
dade;
desprezo pelas riquezas desnecessárias e pelas
→ Desprezo pelas riquezas desne-
208-209 preferências. Em terceiro lugar, ser capaz, no
cessárias e preferências;
julgamento, de despir-se de todo medo, raiva,
→ Serenidade, imparcialidade;
ódio, amor e compaixão. Em quarto e último
→ Paciência e atenção ao ouvir o
lugar, paciência para ouvir, atenção diligente
que as partes têm a dizer.
ao ouvir e memória para reter, digerir e apli-
car o que foi dito.
Leis naturais e positivas consistem em outro
tipo de divisão. → Justiça, equidade e outros
210 Naturais são as que têm sido leis desde toda a “hábitos do espíritos” propícios à
eternidade. Não são apenas chamadas natu- paz e à caridade.
rais, mas também leis morais.
Positivas são as que não existem desde toda a
eternidade. Foram tornadas leis pela vontade
210
daqueles que tiveram o poder soberano sobre
outros.

17
→ Distributivas: determinam o di-
reito dos súditos
Das leis positivas umas são humanas e outras
210 são divinas. Das leis positivas humanas umas
→ Penais: declaram a penalidade
são distributivas e outras penais.
aplicável àqueles que infringem à
lei.
Leis positivas divinas – são todas elas divinas,
já que são leis naturais eternas e universais –
são as que, sendo os mandamentos de Deus –
não desde toda a eternidade, nem universal-
→ Distinguem-se das leis naturais
210-211 mente dirigidas a todos os homens, mas ape-
por não
nas a um determinado povo ou a determinadas
pessoas –, são declaradas como tais por aque-
les a quem Deus autorizou a assim declará-
las.
(…) é evidentemente impossível alguém ter
garantia da revelação feita a outrem sem rece-
ber uma revelação feita particularmente a si
próprio. (…) Ninguém pode infalivelmente
211
saber pela razão natural que alguém recebeu
uma revelação sobrenatural da vontade de
Deus. Pode, quando muito, ter uma crença
Como os indivíduos não tem
(…).
como ter certeza se as leis propa-
Se a lei declarada não for contrária à lei natu-
gadas por um outro indivíduo
ral – que é indubitavelmente a lei de Deus – e
211 qualquer que alegue ser algum
alguém se esforçar por obedecer-lhe, esse al-
tipo de profeta são, de fato, reve-
guém é obrigado por seu próprio ato.
lações divinas, deverão obedecer
(…) num Estado os súditos que não tenham
as leis promulgadas pelo Estado
recebido uma revelação segura e certa relati-
como se divinas fossem.
vamente à vontade de Deus, feita pessoalmen-
te a cada um deles, devem obedecer como tais
212 às ordens do Estado. (…) em tudo o que não
seja contrário à lei moral – quer dizer, à lei
natural –, todos os súditos são obrigados a
obedecer como lei divina o que for declarado
pelas leis do Estado como tal.
Se eliminada, lei fundamental é aquela em
que o Estado é destruído e irremediavelmente
dissolvido, como um edifício cujos alicerces
se arruínam. (…) Lei fundamental, portanto, é
aquela pela qual os súditos são obrigados a
→ Lei fundamental seria, portan-
sustentar qualquer poder que seja conferido ao
213 to, o que hoje conhecemos por
soberano, quer se trate de um monarca ou de
Constituição?
uma assembleia soberana, sem o qual o Esta-
do não poderia subsistir, como é o caso do po-
der da guerra e da paz, o da judicatura, o da
designação dos funcionários e o de fazer o
que considerar necessário para o bem público.
213 Lei não fundamental é aquela cuja revogação
não acarreta a dissolução do Estado, como é o

18
caso das leis relativas às controvérsias entre
súditos.
→ Direito civil ≠ lei civil
Direito é liberdade, nomeadamente a liberda-
Direito  liberdade permitida
de que a lei civil nos permite. A lei civil é
213 pela lei civil
uma obrigação, que nos priva da liberdade
que a lei natural nos deu.
Lei civil  obrigação que priva os
indivíduos de suas liberdades

19

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