A subsistência do homem
e ensaios correlatos
ORGANIZAÇÃO
Kari Polanyi Levitt
INTRODUÇÃO
Michele Cangiani
TRADUÇÃO
Vera Ribeiro
conTRAPomo
© Kari Polanyi Levitt, 2012
© do artigo de Michele Cangiani, Association for Evolutionary Economics, 2011
CIP-BRASIL CATALOGAÇÀO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
ISBN 978-85-7866-076-5
CDD: 330.9
12-8085 CDU: 330(09)
Sumário
I. A subsistência do homem
A falácia economicista 47
Os dois significados de econômico 63
Formas de integração e estruturas de apoio 83
A economia enraizada na sociedade 95
A origem das transações econômicas 107
Equivalências nas sociedades arcaicas 115
A tríade catalática: comércio, dinheiro e mercados 127
Comerciantes e comércio 133
Objetos monetários e usos do dinheiro 153
Elementos de mercado e origens do mercado 183
César Benjamin
8
NOTA DA EDIÇÃO BRASILEIRA
11
MICHELE CANGIANI
12
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI
13
MICHELE CANGIANI
16
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI
18
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI
19
MICHELE CANGIANI
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A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI
6 Polanyi, [1922] 2005, p. 83-84. Pode-se encontrar uma crítica similar ao funcionamen
to do mercado, quando predominam o “cálculo do capital” e a meta da “lucratividade”,
em Economia e sociedade, de Weber, publicado no mesmo ano de 1922 (ver, em parti
cular, Weber, 1978, p. 99). Weber e Polanyi basearam seus conhecimentos econômicos
nas obras de Carl Menger e Friedrich Wieser, nas quais já é possível encontrar essa
crítica (ver Cangiani, 2010).
23
MICHELE CANGIANI
26
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI
11 O livro ReadingKarl Polanyi fo r the Twenty-Pirst Century, organizado por Ayse Bugra
e Kaan Agartan (2007), contém análises esclarecedoras sobre a história recente de
nossa sociedade e, em particular, como escreve Bugra em sua “Introdução”, sobre a
“dinâmica contemporânea” do “processo de mercantilização” (p. 2). Os autores do
livro consideram o conceito de “desenraizamento” uma base importante para suas
investigações.
28
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI
29
MICHELE CANGIANI
13 Ver também Polanyi, [1927] 2005. Polanyi estudou a teoria marxista do fetichismo e
a interpretou, corretamente, como uma crítica à incapacidade de ver a forma sócio-
-histórica, a “relação entre homem e homem”, por trás da troca de mercadorias e do
uso dos meios de produção no processo produtivo. Ver o manuscrito “Christianity
and Economic Life”, s.d. (provavelmente, 1937), Karl Polanyi Archive, p. 19-22 (pu
blicado em alemão em Polanyi, 2005, p. 252-264, e em francês em Polanyi, 2008,
p. 447-456).
30
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI
16 Louis D um ont (1983) interpreta Polanyi corretamente nesse ponto, mas dentro
de uma concepção geral da modernidade como ilusória e até regressiva, a qual é o
oposto da de Polanyi.
32
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI
34
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI
A falácia sociologista
O termo “enraizado” tem sido usado com frequência por sociólo
gos econômicos contemporâneos e por economistas “neoinstitu-
cionais” em suas análises do funcionamento efetivo do capitalis
mo contem porâneo. John Ruggie (1982) introduziu a ideia do
“liberalismo enraizado”, M ark Granovetter (1985), a do “enraiza
mento” da ação econômica. Sharon Zukin e Paul DiMaggio ofe
recem-nos um a definição sintética, mas abrangente, da nova onda
sociológica: a crise da economia neoclássica, dizem, “cria um a la
cuna a ser preenchida pela sociologia econômica”; na verdade,
“a ação econômica se caracteriza por quatro tipos d e ‘enraizamen
to’ — cognitivo, cultural, social e político — que a economia neo
clássica tende a ignorar” (1990, p. 3). Como m ostra a economia
comportamental, a racionalidade neoclássica nunca pode captar
plenamente a conduta real humana. Além disso, o mercado não
podería funcionar sem uma estrutura institucional complexa; e a
vida econômica cotidiana é condicionada por remanescências cul
turais, interesses particulares, redes sociais, relações pessoais e pre
disposições psicológicas e cognitivas. Diversas formas de gestão de
organizações, estratégias de poder e vários tipos de intervenções
públicas interferem realmente no funcionamento do mercado.
Polanyi é m encionado com frequência na discussão dessas
questões, principalmente por ter elaborado a distinção entre eco
nomias enraizadas e desenraizadas e por tê-la usado como um
instrum ento de sua crítica à economia neoclássica. Mas a refe
rência a Polanyi me parece imprópria, nesse caso. Se é correta a
minha interpretação da teoria polanyiana, tal como exposta, nas
seções anteriores, deve estar claro que sua concepção de “enraiza
mento” tem um significado diferente do encontrado na sociologia
econômica contem porânea e na economia neoinstitucional, ou
em como quer que a economia seja revisada.
Obviamente, não é possível banir o uso do term o “enraizado”
das análises socioeconômicas. O problema está em distinguir dife-
MICHELE CANGIANI
18 Ver, por exemplo, as contribuições de Virgínia Brown-Keyder, Gürol Irzik e Bob Jes-
sop, em Bugra e Agartan (orgs.), 2007.
36
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI
37
MICHELE CANGIANI
(ou redes’)” em que ela está enraizada (p. 487,490). Por exemplo,
a confiança ou a violação de normas nas transações de mercado e
“a eficácia do poder hierárquico” nas organizações (p. 499) são
influenciadas por esse “enraizamento”.
Essa breve alusão à teoria de Granovetter talvez seja suficien
te para deixar claro qual é o seu objeto e quanto ele difere do de
Polanyi. Recentemente, o próprio G ranovetter observou que
seu artigo de 1985 “concentrou-se num leque um tanto estreito
de problemas”, nas “redes sociais como um nível interm ediário”
(Krippner et al., 2004, p. 114-115) entre o comportamento indivi
dual e os fenômenos macroeconômicos. Com efeito, tam bém nas
últimas páginas do citado artigo, Granovetter (1985, p. 506) sus
tenta que sua análise não diz respeito a “questões de larga escala
sobre a natureza da sociedade moderna ou as origens da mudança
econômica e política”. Portanto, o caso poderia ter sido resolvido.
Entretanto, nos anos seguintes, a moeda boa da distinção que Gra
novetter fez das questões conforme sua escala ou seu nível de
generalidade foi repelida pela moeda ruim da prim eira parte de
seu artigo, na qual ele incluiu Polanyi e a antropologia econômica
“substantivista” nas “concepções excessivamente socializadas da
ação humana”, que ele critica. Nesse ponto, colocando-se no nível
de uma análise comparativa em larga escala, Granovetter menos
prezou a diferença entre as sociedades mercantis e não mercantis,
afirmando, em particular, que a oposição enraizada/desenraizada,
de Polanyi, é grandemente exagerada. A argumentação desenvol
vida no restante do artigo tem sido considerada, em geral, capaz
de corroborar essa tese. Mas trata-se de uma opinião incoerente,
pois, na realidade, Granovetter volta sua análise para questões
concretas e “de pequena escala” como a moral e o oportunismo no
comportamento econômico, os custos de transação, as redes so
ciais e as relações pessoais originadas em faculdades ou clubes
campestres, e assim por diante. Nesse nível microssociológico, o
com portam ento individual não pode deixar de ser considerado
em seu “enraizamento”.
MICHELE CANGIAN
40
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI
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44
I. A subsistência do homem
A falácia economicista
A economia e o mercado
O conceito de economia nasceu com os fisiocratas franceses, si
m ultaneam ente à emergência da instituição do mercado como
mecanismo de oferta-procura-preço. O fenômeno, até então des
conhecido, da interdependência de preços flutuantes afetou dire
tamente multidões de homens. Esse nascente m undo dos preços
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A FALÁCIA EC0N0MIC1STA
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KARL POLANYI
Adam Smith conheceu com eles a “mão invisível”, mas não seguiu
o caminho místico de Quesnay. Enquanto o mestre francês só vis
lum brou a interdependência de certas receitas e sua dependência
geral em relação aos preços dos cereais, seu discípulo maior, que
vivia na economia menos feudal e mais monetizada da Inglaterra,
pôde incluir os salários e a renda no grupo dos “preços”, vislum
brando pela prim eira vez a riqueza das nações como resultante de
uma integração das diversas manifestações de um sistema subja
cente de mercados. Adam Smith tornou-se o fundador da econo
mia política por ter reconhecido, ainda que de forma tênue, a ten
dência para a interdependência desses diferentes tipos de preços,
quando eles eram formados em mercados competitivos.
Na origem, essa explicitação da economia em termos do m er
cado foi apenas um a forma sensata de relacionar novos conceitos
e novos fatos. Para nós, talvez seja difícil entender p or que fo
ram necessárias gerações para que se reconhecesse que Quesnay
e Smith haviam descoberto fenômenos essencialmente indepen
dentes da instituição do mercado que se manifestava na época.
Mas nem Quesnay nem Smith almejavam estabelecer a economia
como um a esfera da existência social que transcende o mercado, o
dinheiro ou os preços — e, na medida em que tentaram fazê-lo,
falharam. Eles visavam m enos à universalidade da econom ia e
mais à especificidade do mercado. Aliás, a tradicional unidade de
todos os assuntos humanos, que ainda impregnava seu pensamen
to, tornava-os avessos à ideia de um a esfera econômica separada
da sociedade, embora não os impedisse de atribuir à economia as
características do mercado. Adam Smith introduziu métodos em
presariais nas cavernas do homem primitivo, estendendo sua fa
mosa propensão ao comércio e à troca até os jardins do Paraíso.
A abordagem da economia p o r Quesnay foi não menos catalá-
tica.* A sua era um a economia do produit net [produto líquido],
50
A FALÁCIA ECONOMICISTA
1 Ver Harry W. Pearson, “The Economy Has No Surplus: Critique o f a Theory o f Deve-
lopment”, em K. Polanyi, C. Arensberg e H. Pearson (orgs.), Trade and M arket in the
Early Empires. Glencoe, Illinois: Free Press e Falcons Wing Press, 1957.
KARL POLANYI
52
A FALÁCIA ECONOMICISTA
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KARl POLANYI
54
A FALÁCIA ECONOMICISTA
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KARL POLANYI
Racionalism o econômico
À primeira vista, a visão de m undo [ Weltanschauung] economicis-
ta, com seus postulados gêmeos do racionalismo e do atomismo,
parecia conter tudo o que era necessário para lançar as bases de
uma sociedade de mercado. O termo operacional era racionalismo.
Que outra coisa poderia ser tal sociedade senão um aglomerado
de átomos humanos, comportando-se de acordo com as regras de
um tipo definido de racionalidade? A ação racional, em si, consis
te na relação de meios e fins; a racionalidade econômica, em par
ticular, pressupõe que os meios sejam escassos. Mas a sociedade
hum ana envolve muito mais do que isso. Qual seria a finalidade
do hom em e de que m odo ele escolhería seus meios? O racionalis
mo econômico não tem resposta a essas perguntas, pois elas im
plicam motivações e valorações de ordem moral e prática que vão
além da exortação logicamente irresistível —- mas vazia, noutros
aspectos — de um ser “econômico”. O vazio foi camuflado por
uma fraseologia filosófica ambígua.
Para m anter a unidade aparente, foram introduzidos dois ou
tros significados para a palavra racional. Q uanto aos fins, pos
tulou-se como racional um a escala utilitarista de valores; quanto
aos meios, usou-se um a escala, supostamente científica, de renda.
A prim eira escala fez da racionalidade a antítese da estética, da
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A FALÁCIA EC0N0M1CISTA
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KARL POLANYI
0 solipsism o econômico
Esse solipsismo econômico, como bem poderiamos chamá-lo, foi
um a saliente característica da mentalidade de mercado. A ação
econômica foi tida como “natural” nos homens e, por conseguin
te, autoexplicativa. Os homens fariam permutas, a menos que fos
sem contidos, e com isso os mercados surgiríam, a menos que se
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A FALÁCIA ECONOMICISTA
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KARL POLANYI
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A FALÁCIA ECONOMICISTA
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Os dois significados de econômico
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KARL POtANYI
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OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO
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KARL POLANYI
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OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO
1 Carl Menger, Grundsãtze der Volkswirtschaftslehre, org. Karl Menger. Viena, 1923, p. 77.
67
KARL POLANYI
2 Lionel Robbins, A n Essay on the N ature and Significance ofEconom ic Science. 2a ed.
Londres: Macmillan and Co., 1935.
3 Carl Menger, Principies o f Economics, trad. e org. James Dingwall e Bert F. Hoselitz,
introd. Frank H. Knight. Glencoe, Illinois: The Free Press, 1950. Cf. Karl Polanyi, “Carl
Menger’s Two Meanings o f ‘Economic’”, em G. Dalton (org.), Studies in Economic
Anthropology. Washington: American Anthropological Association, 1971.
68
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO
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KARL POLANYI
70
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO
72
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO
atua num caso difere da que atua no outro, assim como a força do
silogismo difere da força da gravidade; as leis do primeiro são as
da mente, enquanto as do outro são as da natureza.
Escassez e insuficiência
Então, quando a economia formal se aplica a situações empíricas?
Se os meios não são intrinsecamente insuficientes, como é possível
comprovar sua insuficiência? E, já que se m ostrou que “escassez”
difere de insuficiência de meios, como é possível determinar a pre
sença da escassez?
Os meios são insuficientes quando o seguinte teste dá resultado
negativo: disponham-se os fins num a sequência e cubra-se cada
fim com um a unidade de recursos; se estes acabarem antes de se
chegar ao último fim, os meios são insuficientes. Caso a realização
desse teste seja inconveniente ou fisicamente impossível, um a “alo
cação” também serve — faça mentalmente a mesma operação e
“destine” cada unidade de meios a um fim. Se os recursos term ina
rem antes de ser atingido o último fim, os meios são insuficientes.
Falar de meios escassos neste caso, em vez de meramente insu
ficientes — o que hoje constitui um a prática geral — , carece de
precisão e torna as coisas confusas. A alocação dos meios julgados
insuficientes tem de coincidir com a alocação que seria adotada se
eles fossem considerados suficientes, tendo em vista um determi
nado fim. Chamá-los de escassos implica que a insuficiência de
meios induziu um a escolha, o que não é o caso. Ignorar esse crité
rio operacional é perder por completo o sentido da definição de
escassez, criando a ilusão de que existe um modo peculiar — um
modo “mais econômico”, digamos — de alocar meios insuficien
tes. Mas a insuficiência de meios não cria, por si só, um a situação
de escassez. Se você não tem o suficiente, precisa se arranjar sem
isso. Para que se instaure um a escolha, os meios, além de serem
insuficientes, também precisam ter usos alternativos; além disso,
deve haver mais de um fim, bem como uma escala de preferências
ligada a eles.
73
1
KARL POLANYI
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OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO
76
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO
4 Cf. M. I. Finley, “Aristotle and Economic Analysis”, Past and Present n° 47, maio de
1970, p. 3-25.
77
KARL POLAMYI
5 Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, Tübingen, 1922, capítulo 1, parte 10, p. 73 ss
[Economia e sociedade, trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 2 v. 4 a ed. São
Paulo: Imprensa Oficial; Brasília: Ed. UnB, 2004]; The Theory o f Social and Economic
Organization, trad. A. M. Henderson e Talcott Parsons, org. Talcott Parsons. Nova York:
Free Press, 1947, p. 139 ss.
79
KARL POLANYI
80
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO
81
Formas de integração e estruturas de apoio
Introdução
Há várias maneiras de classificar empiricamente as economias.
Entre elas, deve-se dar preferência àquela que evite prejulgar as
questões relacionadas com o lugar ocupado pela economia na so
ciedade como um todo, ou seja, as relações do processo econô
mico com as esferas política e cultural da sociedade em geral. As
economias devem ser agrupadas de acordo com a forma de inte
gração dom inante em cada uma. A integração está presente no
processo econômico na m edida em que se institucionalizam os
movimentos de bens e pessoas para superar o efeito dos diferen
ciais de espaço, tempo e ocupação, criando um a interdependência
entre os movimentos. Assim, por exemplo, as diferenças regionais
num território, o intervalo temporal entre o plantio e a colheita
ou a especialização do trabalho são superados por movimentos
das colheitas, das manufaturas ou do trabalho, de m odo a tornar
mais eficaz a sua distribuição. As formas de integração designam
os movimentos institucionalizados pelos quais se conectam os
componentes do processo econômico, desde os recursos materiais
e o trabalho até o transporte, o armazenamento e a distribuição
dos produtos.
As principais formas de integração da economia hum ana são a
reciprocidade, a redistribuição e a troca. Usamos esses termos de
maneira descritiva, ou seja, tanto quanto possível, sem sugerir in
tenções ou valores. É claro que as formas de integração também se
diferenciam pelo m odo como a economia se relaciona, em cada
caso, com os domínios político e cultural da sociedade. Mas o que
im porta aqui é que essas formas são relativamente independentes
dos fins e do caráter dos governos, bem como dos ideais e costu
mes das culturas em questão. Uma atitude neutra em relação às
83
KARL POLANYI
84
FORMAS DE INTEGRAÇÃO E ESTRUTURAS DE APOIO
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KARL POLANYI
86
FORMAS DE INTEGRAÇÃO E ESTRUTURAS DE APOIO
87
KARL POLANYI <
Redistribuição e centralidade
A redistribuição prevalece nu m grupo na m edida em que, na alo
cação de bens (incluindo-se a terra e os recursos naturais), estes
são recolhidos e distribuídos conforme o costume, a lei o u um a
decisão central ad hoc. Com isso se logra concentrar o resultado
do trabalho dividido. Às vezes, o sistema corresponde sim ples
mente ao armazenamento e à redistribuição; outras vezes, a “cole
ta” só diz respeito à disposição, ou seja, há um a troca dos direitos
de apropriação sem qualquer troca na localização efetiva dos bens.
A redistribuição ocorre por muitas razões e em diferentes socieda
des, desde tribos primitivas de caçadores até os vastos sistemas de
88
FORMAS DE INTEGRAÇÃO E ESTRUTURAS DE APOIO
89
KARL POLANYI
2 Karl Bücher, Die Entstehung der Volkswirtschaft. Tübingen, 1893; Industrial Evolution.
Toronto: Universityof Toronto Press, 1901, cap. 3.
90
FORMAS DE INTEGRAÇÃO E ESTRUTURAS DE APOIO
Troca e mercados
A troca é um movimento bidirecional de bens entre pessoas orien
tadas para o ganho que cada um a delas obtém dos termos resul
tantes. Dito de maneira mais simples, o escambo ou perm uta é o
comportamento de pessoas que trocam bens para obter o máximo
proveito. Pechinchar e regatear são essenciais nessa prática; nesse
caso, tais procedimentos não resultam de um a fraqueza hum ana,
mas de um padrão comportamental logicamente exigido pelo m e
canismo do mercado.
Atos aleatórios de perm uta, por si sós, não produzem preços,
a menos que exista um padrão de mercado que oriente a intenção
de perm uta das pessoas. Nesse sentido, o escambo é muito pareci
do com a reciprocidade e a redistribuição. O princípio de conduta,
para se tom ar eficaz, requer a presença de um a estm tura institu
cional. O padrão de mercado não nasce do mero desejo dos indi
víduos de “comerciar, perm utar e trocar”. Suas origens, como ve
remos, vêm de outras direções.
91
KARL POLANYI
93
A economia enraizada na sociedade
Introdução
A característica fundamental do sistema econômico do século XIX
foi sua separação institucional do resto da sociedade. Num a eco
nomia de mercado, a produção e a distribuição de bens materiais
são efetuadas por meio de um sistema autorregulador de merca
dos, regido por leis próprias — as chamadas leis da oferta e da
procura — e motivado, em última instância, por dois incentivos
simples: o medo da fome e a esperança do lucro. Esse arranjo ins
titucional separa-se das instituições não econômicas da sociedade,
como a organização do parentesco e os sistemas políticos e religio
sos. Doravante, laços de sangue, obrigação legal, m andam entos
religiosos, vassalagem ou magia não criam situações sociologica
mente definidas que garantam a participação dos indivíduos no
sistema. Instituições como a propriedade privada dos meios de
produção e o sistema salarial funcionam com base em incentivos
puramente econômicos.
Estamos acostumados, é claro, a que as coisas sejam assim —
a subsistência é assegurada, prim ordialm ente, por instituições
econômicas que são acionadas por motivações econômicas e re
gidas por leis econômicas. Instituições, motivos e leis são especi
ficamente econômicos. Pode-se imaginar todo o sistema funcio
nando sem a intervenção consciente da autoridade hum ana, do
Estado ou do governo. N enhum a motivação, senão prevenir a
fome e obter lucro, precisa ser invocada; nenhum requisito legal,
senão a proteção da propriedade e o cum prim ento dos contra
tos, é necessário. No entanto, dada a distribuição dos recursos e
do poder aquisitivo, bem como as escalas individuais de p re
ferências, presume-se que o resultado seja ótim o em term os de
satisfação das necessidades. Tal foi a “separação” estabelecida no
95
KARL P0LANY1
S ta tu s e contractus
Começamos pela descoberta, revelada por Sir Henry Sumner Mai-
ne em Direito antigo (1861), de que muitas instituições da socie
dade m oderna se estabeleceram com base em contratos, ao passo
que a sociedade antiga baseava-se no status. O status, adquirido
por nascimento — pela posição da e na família — , determina os
direitos e deveres da pessoa, os quais, por sua vez, decorrem do
parentesco, do totem e de outras fontes. Esse sistema de status per
sistiu durante o feudalismo e, com algumas ressalvas, chegou até
mesmo à era da igualdade cidadã estabelecida no século XIX. Aos
poucos, foi substituído pelo contractus, ou seja, por direitos e de
veres estipulados por transações consensuais, ou contratos. Esses
fatos foram assinalados inicialmente por Maine em sua investi
gação do direito rom ano e desenvolvidos em seu livro sobre as
comunidades aldeãs do leste da índia, cujas economias não m er
cantis também chamaram a atenção de Marx.
A influência de Maine no continente europeu foi sustentada
por Ferdinand Tõnnies, um sociólogo alemão cuja concepção
foi sintetizada no título de seu livro Comunidade e sociedade
[Gemeinschaft und Gesellschaft], de 1888. A terminologia talvez
pareça confusa, mas não é. Comunidade corresponde a “sociedade
de status” e sociedade, a “sociedade de contrato”.
Maine, Tõnnies e M arx exerceram profunda influência na so
ciologia p o r interm édio de M ax Weber, que usou os term os
Gemeinschaft e Gesellschaft no mesmo sentido de Tõnnies. Entre
Maine e Tõnnies, a conotação emocional de status ou comuni-
96
A ECONOMIA ENRAIZADA NA SOCIEDADE
97
KARL POLANYI
A contribuição da antropologia
Os primeiros sinais importantes de desenvolvimento teórico nessa
linha encontram-se nas descobertas antropológicas de Franz Boas,
Bronislaw Malinowski e Richard Thurnwald. As idéias desses estu
diosos implicaram um a crítica ao chamado “hom em econômico”
da teoria clássica e estabeleceram o estudo das economias prim iti
vas como um ram o da antropologia cultural.
Por um capricho da história, o antropólogo Bronislaw Mali
nowski ficou ilhado em seu próprio “campo” durante a Primeira
Guerra Mundial. Ele era cidadão austríaco e, portanto, tecnica
mente, um inimigo estrangeiro entre os selvagens da ponta su
doeste da Nova Guiné. Durante dois anos, as autoridades britâni
cas lhe recusaram permissão para partir. Quando finalmente pôde
voltar das ilhas Trobriand, havia reunido material suficiente para
escrever A economia primitiva dos ilhéus trohriandeses (1921), Ar-
gonautas do Pacífico Ocidental (1922), Crime e costume na socieda
de selvagem (1926), A vida sexual dos selvagens (1929) e Os jardins
de coral e sua magia (1935). Faleceu nos Estados Unidos em 1942.
Seus livros influenciaram não apenas o estudo da antropologia,
mas também os pontos de vista e métodos da história econômica.
Richard Thurnwald, de Berlim, cujo campo era a Nova Guiné, p u
blicou sua exposição sobre os banaros em 1916, na revista Ameri
can Anth ropologist. Exerceu influência sobre o m undo anglo-saxão
principalmente por seu impacto em Malinowski. (Embora conhe
cido como antropólogo, Thurnwald foi discípulo de Max Weber.)
A exposição de Malinowski dem onstrou que os membros de
comunidades sem escrita comportavam-se, grosso modo, de forma
bem razoável. Seu comportamento, aparentemente exótico, podia
ser explicado em termos de instituições que estimulavam motiva
ções diferentes das nossas em alguns aspectos, mas não em outros.
A subsistência estava ligada à difundida prática da reciprocidade:
os membros de um grupo se portavam em relação aos de outro tal
como se esperava que os membros desse grupo, ou de um terceiro,
98
A ECONOMIA ENRAIZADA NA SOCIEDADE
100
A ECONOMIA ENRAIZADA NA SOCIEDADE
101
KARL POLANYI
2 Ibid.
102
A ECONOMIA ENRAIZADA NA SOCIEDADE
3 Bronislaw Malinowski, Argonauts o fth e Western Pacific. Nova York: E. P. Dutton, 1961,
p. 176 ss [Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura
dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia, trad. Anton P. Carr e Ligia
A. C. Mendonça. 3a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984].
4 Bronislaw Malinowski, Argonauts o f the Western Pacific, op. cit., p. 178.
103
KARL POLANYI
104
A ECONOMIA ENRAIZADA NA SOCIEDADE
105
KARL P0LANY1
106
A origem das transações econômicas
107
KARL P0LANY1
108
A ORIGEM DAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS
109
KARL POLANYI
no
A ORIGEM DAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS
1 David Ricardo, The Principies o f Political Economy and Taxation. Londres: J. M. Dent &
Sons Ltd., 1991, p. 6 [Princípios de economia política e tributação, intr. Piero Sraffia,
trad. Paulo Henrique Ribeiro Sandroni. São Paulo: Abril Cultural, 1982].
KARL POLANYI
112
A ORIGEM DAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS
2 Cf. Karl Polanyi, “On the Comparative Treatment of Economic Institutions in Antiqui-
ty with IHustrations from Athens, Mycenae, and Alalakh”, em C. H. Kraeling e R. M.
Adams (orgs.), City Invincible: A Symposiunt on Urbanization and Cultural Develop-
m en tin theA ncientN earE ast. Chicago: University o f Chicago Press, 1960, p. 333-340.
113
Equivalências nas sociedades arcaicas
115
KARL POLANYI
Equivalências substitutivas
As equivalências desempenham um papel igualmente im portante
no processo redistributivo. Sejam os bens recolhidos ou redistri
buídos pelo centro, sejam os objetos classificados como impostos,
tributos feudais ou até presentes voluntários, muitas vezes é inevi
tável que um tipo de bem seja substituído por outro.
O m undo antigo fornece um a série de exemplos de equiva
lências substitutivas que seguem o princípio das transações em
espécie. Quer se paguem impostos, reivindiquem-se rações ou se
resgate um voto de servidão ao templo (Levítico 27), os itens se
equilibram, dívidas são quitadas ou se estrutura um sistema de
troca de bens entre o governo central e os cidadãos. Em todos es
ses casos é necessário lidar com produtos de tipos diferentes, subs
tituir uns pelos outros, ou, como diz o provérbio, “comparar alhos
com bugalhos”. As proporções e as medidas estabelecidas são o
único instrum ento para realizar essas operações.
Os sistemas tributários dos impérios hidráulicos do O riente
Médio, por exemplo, estabeleciam o pagamento de um valor fixo
por unidade de terra, mas ele podia ser feito em cevada, azeite,
vinho ou lã; por sua vez, as exigências de rações, seja de trabalha
dores ou de soldados, previam vários tipos de produtos. No tocan
te aos impostos, seria inviável insistir rigidamente no pagamento
em determinados bens, pois inexistiam mercados e moeda. O go
verno central era indiferente às escolhas dos bens, pois elas se anu
lavam entre as diversas regiões do país. Assim, encontram os na
116
EQUIVALÊNCIAS NAS SOCIEDADES ARCAICAS
117
KARL POLANYI
Rações
A im portância das rações para as economias com transações em
espécie é amplamente confirmada pelas tábuas sumérias e babilô-
nicas que estipulam as quantidades de cevada devidas a pessoas de
idades variáveis, bem como as destinadas à alimentação de ani
mais domésticos. A operação com rações representa um a com
binação de qualidade e quantidade das provisões, tal como se de
preende do duplo sentido da palavra “necessidade”. Esta pode
significar os tipos de alimentos necessários à sobrevivência e as
quantidades efetivamente requeridas deles para sustentar a vida.
É nesse sentido que Aristóteles se refere à perm uta compulsória
de bens que ainda era praticada por certos povos “bárbaros” de
sua época.12
O mesmo significado se aplica ao termo correspondente à ra
ção de pão usado no Padre-Nosso, “o pão nosso de cada dia nos
dai hoje”. As referências de Lucas 11:3 e de Mateus 6:11, no Novo
Testamento, indicam que isso significava um a quantidade definida
de pão, a saber, um a porção norm al [ton arton], nem mais nem
Equivalências de troca
Quando as trocas se tornam frequentes, as equivalências podem
desempenhar o papel dos preços, se houver um a troca indireta
sem moeda. Mas a variedade de equivalências, nesse caso, não
fica lim itada a m ercadorias como alim entos, m etais preciosos
ou matérias-primas. Qualquer transação na esfera da economia
substantiva enquadra-se na lei da equivalência. Só equivalentes
são intercambiáveis, quer essa ideia se refira a terra ou trabalho, a
mercadorias ou dinheiro, ou a qualquer combinação deles, quer
envolva apenas a posse ou o uso, ou até fatores condicionais, como
excedentes a serem ainda obtidos.
Para ser mais específico (acrescentando um a tradução m oder
na entre parênteses), há registros de equivalências concernentes a
bens (preços), serviços (salários), uso de m oeda ou outros bens
fungíveis (juros), uso de um barco com o barqueiro (aluguel), uso
da terra ou da casa (arrendamento) e outros. No m undo mesopo-
tâmico as equivalências abrangiam quase todas as negociações,
como venda e aluguel de terra, casas, hom ens e gado, além de em
barcações, sem excluir transações concernentes a bens fungíveis,
como prata, cevada, azeite, vinho, tijolos, cobre e chum bo. Em
contraste marcante com as idéias m odernas, não se fazia distinção
entre as diferentes fontes de renda, como salários, aluguéis, juros e
lucros. A única condição para a validade das transações ou das
EQUIVALÊNCIAS NAS SOCIEDADES ARCAICAS
122
EQUIVALÊNCIAS NAS SOCIEDADES ARCAICAS
7 Cf. Richard Thurnwald, Economics in Primitive Communities. Nova York: Oxford Uni-
versity Press, 1932, p. 252 ss; Marcei Mauss, The Gift, trad. Ian Cunnison. Nova York:
W. W. Norton, 1967, p. 8 ss.
* O táler Maria Teresa era uma moeda de prata cunhada em Viena a partir de 1741 e
usada no comércio mundial. A referência é à imperatriz Maria Teresa (1717-1780), da
casa real dos Habsburgos, mãe de Maria Antonieta, que reinou na França e foi conde
nada à morte depois da revolução. [N.T.]
123
KARl POLANYI
Equivalências e mercados
Expusemos sucintam ente, sob o nom e de “equivalências”, um a
característica crucial de algumas economias antigas. Agora co
mentaremos seu efeito presumível no desenvolvimento de p a
drões de troca, sobretudo dos mercados e do dinheiro como meio
de troca.
O uso do dinheiro como meio de troca — e apenas esse uso
está em questão aqui — é desnecessário quando as transações po
dem se realizar por equivalências. O uso do dinheiro como padrão
de valor, por outro lado, m uitas vezes torna-se mais eficaz com
o mecanismo da equivalência, que permite somar e equiparar as
ofertas, com a diferença remanescente sendo paga em moeda.
O efeito do uso generalizado de equivalentes no desenvolvi
mento dos mercados é ambíguo. Como eles favorecem transações
KARL POLANYI
126
A tríade catalática: comércio, dinheiro e mercados
128
A TRÍADE CATALÁTICA: COMÉRCIO, DINHEIRO E MERCADOS
130
A TRÍADE CATALÂT1CA: COMÉRCIO, DINHEIRO E MERCADOS
131
KARL POLANYt
1 Uma versão ligeiramente diferente deste capítulo, editada por George Dalton, aparece
em J. Sabloff e C. C. Hamberg-Karlovsky (orgs.), Ancient Civilization and Trade. Albu
querque: University o f New México Press, 1975, cap. 3.
133
KARL POLANYI
134
COMERCIANTES E COMÉRCIO
a. Pessoal
2 Boris Vladimirtsov, The Life ofGhengis Khan, trad. D. S. Mirsky. Boston e Nova York:
Houghton, Mifflin, 1930.
136
COMERCIANTES E COMÉRCIO
companhia, não para si mesmo, e cujo sucesso não lhe trazia lucro,
mas ascensão.
Nada disso, entretanto, afeta a distinção básica entre o feitor,
ou agente comercial, e o mercador. Este último pratica o comércio
visando ao lucro que espera obter com a transação, enquanto o
primeiro comercia como parte de seus deveres e obrigações gerais.
138
COMERCIANTES E COMÉRCIO
139
KARL POLANYI
4. Povos comerciantes
Nem todas as comunidades praticantes do comércio contam com
comerciantes profissionais. Uma pode comerciar coletivamente;
outra talvez possua comerciantes profissionais e os considere inte
grantes de um a classe social específica. Outras sociedades, na ver
dade poucas, fazem do comércio ativo a principal ocupação da
maioria da população; a estas daremos aqui o nom e de povos co
merciantes.
É evidente que a existência do comércio não pressupõe comer
ciantes. Até mesmo onde eles estão presentes, sua relação com a
comunidade em geral pode ser muito diferente nos diferentes ti
pos de sociedades. j-
Nas sociedades primitivas, como vimos, o comércio costuma
ser um empreendimento coletivo, praticado pelo líder ou com a
participação geral dos membros. Neste último caso, seu objetivo
pode ser igualmente alcançado por meio de encontros cheios de
gente, com parceiros comerciais na praia, ou pelo hábito popular
de transportar alimentos ou artigos m anufaturados locais para
um a ilha vizinha. Em geral, nas sociedades primitivas não encon
tram os ninguém que se especialize nas profissões de mercador ou
comerciante.
COMERCIANTES E COMÉRCIO
b. Mercadorias
A decisão de comprar mercadorias e transportá-las de um local
distante depende, obviamente, da necessidade dos bens e da difi
culdade de comprá-los e transportá-los. Além disso, a necessidade
143
KARL POLANYI
144
COMERCIANTES E COMÉRCIO
c. Transporte
No tocante ao transporte, assim como no tocante aos bens, o m er
cado é um nivelador. Oblitera as diferenças: aquilo que a natureza
distinguiu o mercado homogeneiza. Até a diferença entre as m er
cadorias e seu transporte desaparece, pois ambos podem ser com
prados e vendidos — um no mercado de produtos, outro no m er
cado de fretes. Em ambos existem a oferta e a procura, e os preços
são formados da mesma maneira. Os diversos tipos de serviços de
transporte têm um denom inador comum para as várias mercado
rias em termos de custos, o caputmortuum da alquimia mercantil.
Ora, essa homogeneidade contribui para produzir um a boa
teoria econômica, mas um a história econômica ruim . As distin
ções substantivas, que desaparecem no mercado, são a própria
matéria da história. Os diferentes tipos de bens, como vimos, cria
ram ramos distintos de comércio nos tempos arcaicos. Os bens
intercambiados podem ser necessários para pessoas de posições
KARL POLANYI
146
COMERCIANTES E COMÉRCIO
1
I táções — em parte sob a forma de pedágios e impostos, como
Ül
I pagamento em espécie por salvo-condutos, em parte em troca de
Éjf! matérias-primas arrecadadas como tributos dos povos conquista
dos pelos construtores de impérios.
fc
As caravanas, portanto, precederam os impérios. Sua organi
zação era ditada pelos requisitos do trânsito por áreas não poli
ciadas. As prim eiras caravanas, sem dúvida, foram preparadas e
armadas para suas tarefas pelos poderes públicos, tanto no arca
bouço do comércio dos reis quanto no do comércio dos guerrei
ros. Em qualquer desses casos, o mercador seria do tipo do tamka-
rum. Todavia, mesmo a caravana independente posterior, amiúde
composta por mercadores burgueses que frequentavam as rotas
terrestres tradicionais, continuou a ser um a espécie de pequeno
Estado itinerante, que traçava seu caminho por entre incontáveis
assentamentos, menores ou maiores, de povos de natureza mais
ou menos predatória. Essa caravana extraterritorial devia manter-
-se estritamente na trilha conhecida, sem olhar para a esquerda
nem para a direita ao atravessar o interior. Não raro, seus partici
pantes aprendiam tão pouco sobre as regiões que atravessavam
quanto o turista m oderno em sua excursão guiada, pulando de
um hotel para outro de avião. A maior parte do antigo tráfico de
escravos era feita nesse tipo de caravana. Só raram ente alguns
mercadores individuais, sem o acompanhamento armado de uma
caravana, conduziam lotes inteiros de escravos pelas fronteiras
políticas, pagando tarifas aos soberanos locais em cada fronteira.
É provável que nesse últim o tipo de viagem em etapas residisse o
segredo das muitas centenas de quilômetros ao longo dos quais se
vendiam multidões de escravos, “descendo o rio” pela costa oci
dental da África equatorial, especialmente depois da chegada dos
portugueses ao delta do Congo, no século XVIII. No Niger, os co
lonos kedes, ainda no século XIX, atendiam aos objetivos desse
comércio fluvial sem caravanas, que passava por toda a extensão
dos meandros do rio em canoas fretadas, como um a jibóia dige
rindo sua presa.
147
KARL POLANYI
d. Bilateralidade
Adquirir, para a comunidade, objetos não disponíveis in loco obri
ga o grupo a m anter relações externas. As formas pré-mercantis
dessa aquisição são a caçada, a expedição e a incursão de assalto,
nas quais a movimentação dos bens é unilateral. Capturar, extrair
pedras, derrubar árvores, roubar ou qualquer outra form a de
apropriação dos bens constituem uma parte da ação; carregar, p u
xar ou transportar as aquisições constituem a outra. Mas o comér
cio, como vimos, é um a atividade bilateral pacífica, que requer
uma forma específica de organização para assegurar essas qualida
3 M. Rostovtzeff, The Social and Economic History o f the Hellenistic World. Oxford: Cla-
rendon Press, 1941, v. I, p. 144 ss.
4 Jean-Baptiste Tavernier, The Six Voyages ofjean Baptiste Tavernier. Londres, 1678.
148
COMERCIANTES E COMÉRCIO
149
KARL POLANYI
5 Cf. Karl Polanyi, em colaboração com Abraham Rotstein, Dahomey and the Slave Tra-
de. Seattle e Londres: University o f Washington Press, 1966, p. 146-154.
6 Ibid., p. 148.
7 Cf. Karl Polanyi, “Ports o f Trade in Early Societies”, The Journal o f Economic History 23,
1963, p. 30-45; reproduzido em G. Dalton (org.), Primitive, Archaic, and M odem Eco-
nomics: Essays o f Karl Polanyi. Garden City, Nova York: Doubleday, 1968, cap. 10.
150
COMERCIANTES E COMÉRCIO
1 Karl Polanyi, “The Semantics o f Money Uses”, Explorations, outubro de 1957; reprodu
zido em G. Dalton (org.), Primitive, Archaic, anã Modern Ecotiomics: Essays ofK arl
Polanyi. Garden City, Nova York; Doubleday, 1968, com um apêndice “Notes on Pri
mitive Money”.
KARL POLANYI
156
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
2 Karl Polanyi, em colaboração com Abraham Rotstein, Dahomey and the Slave Trade.
Seatüe e Londres: University o f Washington Press, 1966, p. 41-43,53 ss.
KARL POtANYI
158
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
a) Pagamento
O pagamento é o cancelamento de uma obrigação mediante a en
trega de objetos quantificáveis (fungíveis). “Entrega” é a operação,
“cancelamento da obrigação” é o efeito desejado. Para que falemos
de dinheiro, a situação de “ter uma obrigação” precisa do seguinte
requisito: que outra situação, diferente quanto à natureza da obri
gação, possa ser satisfeita com os mesmos meios. Caso contrário,
o “cancelamento” por meio da entrega de objetos quantificáveis
não constitui pagamento em dinheiro (como quando é preciso
cancelar um a obrigação “em espécie”).
b) Padrão de valor
O uso do dinheiro como padrão de valor é o emprego de uma
determinada unidade física como referência em situações em que
se necessita de operações aritméticas para com parar objetos de
tipos diferentes, como quando se mistura “alhos com bugalhos”.
O “manejo” da unidade consiste na operação de “etiquetar” com
um valor numérico pelo menos um a das unidades, o que faz com
que “alhos e bugalhos” possam ser somados de maneira significa
tiva ao serem relacionados com o “padrão”. O efeito é facilitar a
troca, já que itens de ambos os lados podem ser avaliados, som an
do-se seu valor; as finanças tam bém exigem, em geral, somas e
KARl POLANYI
c) Entesouramento de riqueza
O entesouramento de riqueza é a acumulação de objetos quan-
tificáveis (1) para uso futuro ou (2) simplesmente como tesouro.
A “situação sociológica” é tal que as pessoas (1) preferem não con
sum ir nem destruir de outra maneira esses objetos no presente,
mas adiar essa ação para um m om ento futuro, ou (2) preferem as
vantagens da simples posse, especialmente o poder, o prestígio è
a influência que decorrem dela. A “operação” envolvida consiste
em guardar, armazenar ou conservar os objetos para uso futuro,
ou para que sua posse e, de preferência, sua exibição ostensiva
possam resultar em prestígio para o possuidor e para aqueles que
ele possa representar.
d) Meio de troca
O uso do dinheiro como meio de troca consiste em empregar ob
jetos quantificáveis em situações de troca indireta. A operação en
volve duas trocas consecutivas, com os objetos monetários ocu
pando a posição de termo intermediário. Entretanto, depois que a
troca indireta passa a ser aceita, a sequência pode começar pelo
dinheiro e term inar com mais dinheiro.
160
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
161
KARL POLANYI
162
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
164
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
165
I
KARL POLANYI
por razões econômicas, mas por razões sociais e políticas, que vão
desde a pura gratidão pela proteção e da admiração pelos dotes
superiores até ao medo da escravidão ou da morte.
Q uando o dinheiro está presente como meio de troca, é claro
que ele se presta prontam ente a funcionar como reserva de rique
za. Mas, tal como no caso do pagamento, a precondição é estabe
lecer objetos quantificados como meios de troca.
166
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
167
KARL POLANYI
168
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
a) Os alcmeônidas
O destino da casa dos alcmeônidas, que foi lendário no m undo
grego, decorreu do seguinte:
Já em tempos remotos, os alcmeônidas eram uma família ilustre
de Atenas, mas ascenderam a uma eminência especial a partir da
época de Alcméon e, posteriormente, de Mégades. A primeira
dessas duas pessoas, Alcméon, quando os lídios enviados por
Creso vieram de Sardes para consultar o oráculo de Delfos, pres
tou-lhes uma ajuda solícita para que realizassem sua tarefa.4
169
KARL POLANYI
170
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
6 Ibid., V, 62.
7 Ibid., V, 63.
171
KARL POLANYI
b) Os pisistrátidas
A origem e o uso do tesouro no caso de Pisístrato mostram carac
terísticas similares. Os pisistrátidas, que eram de origem eupátri-
da, gozavam de relações de reciprocidade com a elite, embora não
pudessem, como seus rivais alcmeônidas, gabar-se das graças de
Apoio. Realizou-se uma conferência familiar, pouco depois da se
gunda expulsão de Pisístrato, na qual ficou decidido tentar recu
perar a soberania.
172
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
173
KARL POLANY!
174
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
Dinheiro e sta tu s
O reforço m útuo das situações de status e dos padrões de integra
ção foi um a fonte do vigor das primeiras estruturas sociais. O sta
tus era reforçado pelas instituições que sustentavam os padrões.
O dinheiro, o preço e o comércio, por exemplo, contribuíam para
a estratificação de classes. O dinheiro arcaico criava e m antinha a
extensão do prestígio, separando a riqueza e a pobreza pela circu
lação de um dinheiro na elite e pelo dinheiro dos pobres. Não só a
estratificação foi reforçada, mas os índices de intercâmbio ganha
ram estabilidade a partir da resistência da estrutural geral.
Devemos distinguir dois grupos de instituições ligadas ao di
nheiro. Primeiro, como vimos, existem os usos “que convertem
fungíveis em dinheiro” e os tipos de dinheiro que diferem precisa
mente em relação a esses usos, ou seja, o dinheiro para todos os
fins, que, tal como o dinheiro m oderno, é empregado nos três
usos, e os tipos de dinheiro para fins específicos, que só são usados
176
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
13 Paul Bohannan, “Some Principies o í Exchange and Investment Among the Tiv”, A m e
rican Anthropologist 57,1955, p. 50-70. Ver também Paul e Laura Bohannan, Tiv Eco-
nomy. Evanston: Northwestern University Press, 1968.
177
KARl POLANYI
178
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
Resumo
Os significados independentes de pagamento, padrão de valor, re
serva de riqueza e troca são corroborados, portanto, por suas ori
gens institucionais distintas e pelos objetivos atendidos. Temos
agora um conhecimento bastante sólido de todos.
No contexto de algumas instituições das sociedades primitivas,
o pagamento ocorre principalmente pelo preço da noiva, pela in
denização por assassinato [o “preço do sangue”, Wergeld] e por
multas. Uma pessoa pode ficar submetida à obrigação de entregar
objetos quantificáveis, quase todos de natureza utilitária (em ge
ral, também usados no pagamento de alguma outra obrigação).
179
’!8S
■i
KARL POLANYI
180
OBIETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO
181
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182
Elementos de mercado e origens do mercado
Introdução
A origem das instituições de mercado é um assunto intricado e
obscuro, ainda que os mercados não sejam antigos como a hum a
nidade e tenham começos específicos na história. Os mercados
diferem do ínfimo comércio e do pequeno núm ero de usos do
dinheiro encontrados até nas comunidades mais simples e prim i
tivas. Alguma aquisição bidirecional de bens a distância — isto é,
comércio — é inseparável da tentativa de obter bens como pre
sente ou por dotes, que são acompanhamentos da exogamia uni
versal. O dinheiro do sangue e as multas, p o r sua vez, também
envolvem o emprego de objetos quantificáveis, ou seja, de unida
des monetárias usadas como pagamento ou como equivalências.
O comércio e o dinheiro sempre estiveram entre nós. Mas não
o mercado, que é um fenômeno m uito posterior. Apesar disso,
como veremos, é difícil determinar seus primórdios.
Esta observação se aplica ao mercado em seus dois sentidos
atuais, por mais diferentes que sejam. O prim eiro é o de um lugar
— tipicamente, um local aberto, onde as necessidades da vida, em
especial alimentos frescos ou preparados, podem ser compradas
em pequenas quantidades, em geral por valores predeterminados;
o segundo é o de um mecanismo de oferta-procura-preço por meio
do qual se realiza o comércio, embora esse mecanismo não esteja
necessariamente preso a um local definido nem se restrinja à co
mercialização de alimentos.1
Para o historiador da organização econômica, esses dois con
juntos de fatos são m uito distintos. Num caso, o fenômeno empí-
1 Cf. Walter Neale, “The Market in Theory and History”, em K. Polanyi, C. M. Arensberg
e H. W. Pearson (orgs.), Trade and M arket in the Early Empires. Glencoe, Illinois: Free
Press e Falcorfs Wing Press, 1957, cap. 17.
183
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Mercados locais
Um exemplo de mercado local era a maneira como a venda a va
rejo de alimentos frescos ou preparados era praticada nas socieda
des da Grécia e da Roma antigas. Clíamaremos esse local comer
cial de ágora, para contrastá-lo com as instituições gêmeas do
porto e do bazar nos impérios hidráulicos.
O mercado da ágora era, prim ordialm ente, um local onde a
população se alimentava. Leite e ovos, legumes frescos, peixe e
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ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO
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ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO
2 Tucídides, The Peloponnesian War, I, 55; I, 98; IV, 48; V, 116; V, 31; VI, 62; VII, 85
[História da Guerra do Peloponeso, trad. Mário da Gama Kury, pref. Helio Jaguaribe.
Brasília: Ed. UnB / IPRI / Funag; São Paulo: Edições Imprensa Oficial de São Paulo,
1987],
J Ibid., VIII, 62.
4 Políbio, II, 56-58.
5 Xenofonte, Héllenica II, 1. O incidente é datado de 405 a.C.
6 Ibid., 1,6.
7 Tucídides, The Peloponnesian War, VI, 62.
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PT-1''■
18 Ibid., V, 5.
19 Ibid., VI, 2.
20 Tucídides, The Peloponnesian War, VI, 44.
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d
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO
cios por comerciantes, deviam ser bastante comuns. Fica claro que,
nó incidente acima descrito, no qual Timóteo emitiu moedas de
bronze para seu exército, os mesmos comerciantes que com pra
ram o butim foram tam bém os vendedores de comida.25
r A expedição ateniense contra Siracusa, em 415 a.C., a maior
expedição naval da Antiguidade até aquela data, confiou prim or
dialmente em mercados fornecidos no local, o que representou
um grande problema tático.26 Mas a expedição incluiu trinta “na
vios de carga carregados de cereais”, parcialmente tripulados por
padeiros e moleiros recrutados a soldo, “para que, se formos reti
dos pelo m au tempo, não faltem provisões à nossa força militar, já
que nem toda cidade será capaz de receber um núm ero como o
nosso”.27 Pela descrição, parece provável que esses cereais e outros
alimentos tenham sido vendidos aos membros da expedição por
comissários do Estado, a preços fixos, e que os cereais tenham sido
moídos e transformados em pão pelos moleiros e padeiros, tam
bém recrutados por preços fixos.
As técnicas de abastecimento do exército oferecem outros in
dícios notáveis da proliferação de mercados por toda a Grécia, a
Sicília e a Ásia M enor no fim do século V a.C. e no século IV a.C.
Dificilmente um exército podería depender de com prar seus ali
mentos em mercados locais, pois não tinha a garantia de que eles
existiríam de fato. Ao mesmo tempo, o aumento da escala da guer
ra deve ter impulsionado um desenvolvimento m aior dos merca
dos, tanto do ponto de vista das provisões quanto, especialmente,
do ponto de vista da venda do butim.
Uma análise desse material em termos de causa e efeito só pode
ser especulativa. Mesmo assim, algumas de nossas suposições a
respeito do caráter dos mercados dessa época ficam reforçadas.
Pelos escritos de Tucídides e Xenofonte, parece claro que o termo
“mercado” [ágora] significava, sempre e em toda parte, mercado
1 QS
KARL POLANYI
b. Portões
Outro ancestral mais distante, porém ainda local, liga o mercado
aos métodos de distribuição de alimentos praticados nos impérios
redistributivos. Neles, o mercado nasceu de um arranjo institucio
nal essencialmente diverso, que depois passou por um a transfor
mação quase completa. Referimo-nos aos métodos de armazena
m ento e distribuição praticados na antiga Suméria e em seus
sucessores mesopotâmicos. Nesses impérios de agricultura irriga
da da Antiguidade, o governo central e o plantio de cereais em
larga escala respondiam por um complexo sistema de armazena
mento nos portões, seja do templo, do palácio ou da cidade. A ne
cessidade de armazenamento decorria do medo da fome, assim
como da pressão das exigências alimentares dos soldados ou de
turm as de trabalho organizadas pelo palácio ou pelo templo para
lidar com a água das inundações, a irrigação e a drenagem. Os
portões consistiam em torres altas para a proteção das entradas e
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO
c. Bazares
No bazar havia esse encontro. Entretanto, ele não era um mercado
de alimentos e sim de artigos m anufaturados produzidos pelos
artesãos. Era diferente de qualquer mercado moderno, ha medida
em que não havia um preço único para nenhum tipo de objeto e a
concorrência era excluída pela própria organização do bazar. As
vendas não ocorriam “ao ar livre”, mas nas lojas, onde o chefe da
família do artesão funcionava como vendedor. Em geral, os arte
sãos eram estrangeiros — transplantados como parte de povos
conquistados ou estabelecidos nos termos de algum tratado. Fisi
camente, o bazar era um lugar coberto. Na falta de outras acomo
dações, as vielas da cidade m urada recebiam telhados que iam de
um lado a outro. Desde o começo, porém, o essencial é que faltava
ao bazar um elemento específico do mercado — o preço único,
fosse esse preço ou equivalência determinado pela lei, os costumes
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28 Cf. Karl Polanyi, “Marketless Trading in Hammurabi’s Time”, em Trade and M arket in
the Early Empires, cap. 2.
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29 Robert S. Rattray, Ashanti Law and Constitution. Oxford: Clarendon Press, 1929.
30 Owen Lattimore, The D esertRoad to Turkestan. Boston: Little, Brown, 1929.
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ordem requer uma liberdade interior para a qual estamos mal pre
parados. Descobrimo-nos embrutecidos pela herança de um a eco
nom ia de mercado que nos legou idéias ultrassimplificadas sobre
a função e o papel do sistema econômico na sociedade. Para que a
crise seja superada, precisamos resgatar um a visão mais realista do
m undo hum ano e m oldar nossos objetivos comuns à luz desse
reconhecimento.
O industrialismo é um enxerto precariamente introduzido na
existência milenar do ser humano. O resultado da experiência ain
da está na balança. Mas o hom em não é um ser simples e pode
m orrer de muitas maneiras. A questão da liberdade individual, tão
apaixonadamente levantada na nossa geração, é apenas um aspec
to desse problema angustiante. Na verdade, faz parte de um a ne
cessidade m uito mais vasta e profunda — a necessidade de uma
resposta nova ao desafio total da máquina.
A nossa situação pode ser descrita nos seguintes termos: a civi
lização industrial ainda poderá aniquilar o homem. Mas, visto que
o empreendim ento de um meio progressivamente artificial não
pode ser, recusa-se a ser e, a rigor, não deve ser voluntariamente
descartado, a tarefa de adaptar a vida num tal contexto aos requi
sitos da existência hum ana precisa ser resolvida, se o hom em qui
ser continuar na Terra. Ninguém é capaz de predizer se essa adap
tação será possível ou se o ser hum ano deverá m orrer tentando.
Daí o tom velado e sombrio de apreensão.
A prim eira fase da Idade da M áquina chegou ao fim. Envolveu
um a organização da sociedade que derivou seu nome de sua ins
tituição central: o mercado. Esse sistema está em declínio. No en
tanto, nossa filosofia prática foi maciçamente m oldada por esse
episódio espetacular. Novas concepções sobre o ser hum ano e a
sociedade tornaram -se correntes e adquiriram o estatuto de axio
mas. Ei-las: no que concerne ao homem, fomos levados a aceitar a
heresia de que suas motivações podem ser descritas como “m ate
riais” e “ideais”, e que os incentivos sobre os quais se organiza a
vida cotidiana provêm das motivações “materiais”. Tanto o libe-
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NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO
A sociedade de mercado
O nascimento do laissez-faire provocou um choque na visão que o
homem civilizado tinha de si mesmo, e de seus efeitos ele nunca se
recuperou por completo. Só muito gradualmente nos damos conta
do que nos aconteceu há tão pouco tempo, apenas um século atrás.
A economia liberal, essa prim eira reação do hom em à m áqui
na, foi um a ruptura violenta com as condições que a precederam.
Iniciou-se um a reação em cadeia: o que até então eram simples
mercados isolados converteu-se num sistema autorregulador de
mercados. E com a nova economia surgiu um a nova sociedade.
Foi este o passo crucial: o trabalho e a terra foram transformados
em mercadorias, isto é, tratados como se fossem produzidos para
venda. É claro que não eram mercadorias de fato, um a vez que
ou não eram produzidos (como a terra), ou, quando o eram, não
eram produzidos para venda (como o trabalho). Mas nunca se
concebeu um a ficção mais completamente eficaz. Com a compra
e a venda livres do trabalho e da terra, o mecanismo do mercado
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NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO
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NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO
2 Sobre esses mercados pequenos ou periféricos, tais como funcionam na África, ver
Paul Bohannan e George Dalton, “Introduction”, em M arkets in África. Nova York:
Natural History Press, 1965.
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NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO
Determinismo econômico
Além disso, o mecanismo do mercado criou a ilusão do determi
nismo econômico como lei geral para toda a sociedade humana.
Numa economia de mercado, é claro, essa lei é válida. Nela, com
efeito, o funcionamento do sistema econômico não só “influencia”
o resto da sociedade, como o determina — do mesmo m odo que,
num triângulo, os lados não se lim itam a influenciar, mas de
term inam os ângulos. Consideremos a estratificação das classes.
Oferta e procura no mercado de trabalho foram identificadas, res
pectivamente, com as classes dos trabalhadores e dos patrões. As
classes sociais de capitalistas, proprietários de terras, rendeiros,
corretores, comerciantes, profissionais liberais etc. foram delimi
tadas pelos respectivos mercados da terra, moeda e capital e seus
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NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO
A realidade da sociedade
Pleiteio a restauração da unidade de motivações que deve instru-
m entar o H omem na sua atividade cotidiana de produtor, a reab-
sorção do sistema econômico na sociedade e a adaptação criativa
de nossas maneiras de viver a um ambiente industrial.
Em todos esses pontos, a filosofia do laissez-faire, com seu co
rolário de um a sociedade mercantil, cai por terra. Ela é respon
sável pela cisão da unidade vital do ser hum ano entre o hom em
“real”, orientado para os valores materiais, e o seu eu “ideal” supe
rior. Paralisa a nossa imaginação social, ao fomentar, mais ou me
nos inconscientemente, o preconceito do determinismo econômi
co. Prestou seus serviços na fase da civilização industrial que já
deixamos para trás. Ao preço de empobrecer o indivíduo, enrique
ceu a sociedade. Hoje enfrentamos a tarefa crucial de devolver à
pessoa hum ana a integridade da vida, ainda que isso signifique
uma sociedade tecnologicamente menos eficiente. Em vários paí
ses e de diferentes maneiras, o liberalismo clássico vem sendo pos
to de lado. À direita, à esquerda e no centro exploram-se novos
caminhos. Os sociais-democratas ingleses, os norte-am ericanos
do New Deal e também os fascistas europeus e as várias tendências
“gerencialistas” norte-americanas que se opõem ao New Deal, to
dos rejeitam a utopia liberal. E o atual clima político de rejeição de
tudo o que vem da Rússia não nos deve cegar para as realizações
dos russos na adaptação criativa a alguns aspectos fundamentais
do meio industrial.
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!: ;<i
Em termos gerais, a expectativa comunista do “desaparecimen
to do Estado” parece-me combinar elementos de utopismo liberal
com um a indiferença prática às liberdades institucionais. No to
cante ao desaparecimento do Estado, é impossível negar que a
sociedade industrial é um a sociedade complexa, e nenhum a so
ciedade complexa pode existir sem um poder organizado no cen
tro. Mas isso não é desculpa para o m odo como os comunistas
desconsideram a questão das liberdades institucionais concretas.
É nesse nível de realismo que se deve enfrentar o problema da li
berdade individual. Não há como existir um a sociedade humana
em que o poder e a coação estejam ausentes, assim como não exis
te um m undo em que a força não tenha sua função. A filosofia li
beral apontou um falso caminho para nossos ideais, ao parecer
que prom etia a realização dessas expectativas intrinsecam ente
utópicas.
Mas, no sistema de mercado, a sociedade como um todo per
maneceu invisível. Qualquer um podia imaginar-se livre da res
ponsabilidade pelos atos de coação do Estado que repudiasse
pessoalmente, ou pelo desemprego e a miséria dos quais não ex
traísse nenhum benefício pessoal. Pessoalmente, ele não se enre
daria nos males do poder e do valor econômico. Com a consciên
cia tranquila, poderia negar a realidade destes, em nom e da sua
liberdade imaginária. O poder e o valor econômico são, com efei
to, paradigmas da realidade social. Nem um nem outro provém da
volição hum ana e, em relação a eles, a não cooperação é impos
sível. A função do poder é assegurar a medida de conformidade
necessária à sobrevivência do grupo: como m ostrou David Hume,
a sua origem últim a é a opinião — e quem pode deixar de ter opi
niões deste ou daquele tipo? O valor econômico, em qualquer so
ciedade, assegura a utilidade dos bens produzidos; é um carimbo
aposto na divisão do trabalho. Sua fonte são as carências humanas
— e como é possível esperar que não prefiramos um a coisa a ou
tra? Qualquer opinião ou desejo, não im porta em que sociedade
vivamos, nos faz participar da criação do poder e da constituição
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NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO
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NO SSA O BSO LETA MENTALIDADE DE MERCADO
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3 Cf. Karl Polanyi, The Great Transformation, Nova York, 1944, p. 64 [A grande transfor
mação: as origens da nossa época, trad. Fanny Wrobel, revisão técnica Ricardo Benza-
quen de Araújo. 2a ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000].
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4 Margaret Mead, Cooperation and Competition among Primitive Peoples. Nova York e
Londres, 1937, p. 31.
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ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA
razões, mas pela razão óbvia de que não há espaço para se ficar de
pé no alto da pirâmide. A escassez dos agatha é inerente à posição
elevada, à im unidade e ao tesouro: eles não seriam o que são se
estivessem ao alcance de muitos. Daí a ausência, na sociedade ar
caica, da “conotação econômica” da escassez, quer os bens utilitá
rios também possam ou não escassear em algumas ocasiões. É que
os valores mais raros não são dessa ordem. No caso deles, a escas
sez deriva da ordem não econômica das coisas.
Estas são algumas das principais razões que durante tanto tem
po bloquearam o nascimento de um âmbito de interesse caracte-
risticamente econômico. Nem mesmo para o pensador profissio
nal o fato de que o ser hum ano tem de comer pareceu digno de
elaboração.
246
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA
As indagações de Aristóteles
Talvez pareça paradoxal esperarmos que a últim a palavra sobre
a natureza da vida econômica tenha sido dada por um pensador
que mal viu os primórdios dela. No entanto, vivendo no limiar das
eras econômicas, como viveu, Aristóteles estava em um a posição
privilegiada para apreender os méritos da questão.
É possível, aliás, que isso explique por que, em nossa época,
diante de um a mudança do lugar da economia na sociedade cujo
alcance só é comparável ao daquela que prenunciou, no tem po de
Aristóteles, a chegada do comércio mercantil, podemos ver as per
cepções aristotélicas sobre as ligações entre economia e sociedade
em seu realismo nu e cru. Temos todos os motivos para buscar em
seus textos formulações muito mais sólidas e significativas sobre
temas econômicos do que se reconheceu em Aristóteles no passa
do. De fato, os disjecta membra da Ética e da Política transmitem
uma unidade m onum ental de pensamento.
Sempre que tocava num a questão da economia, Aristóteles vi
sava a desenvolver a relação dela com a sociedade como um todo.
O quadro de referência era a comunidade como tal, que existe
em diferentes níveis em todos os grupos humanos em funciona
mento. Em termos do nosso linguajar moderno, portanto, a abor
dagem aristotélica das questões humanas era sociológica. Ao m a
pear um a área de estudo, ele relacionava todas as questões de
origem e função institucionais com a totalidade da sociedade. Co
munidade, autossuficiência e justiça eram os conceitos centrais.
O grupo, como interesse contínuo, forma um a comunidade [koi-
nonia] cujos membros são ligados por laços de am or ou afeição
[philia]. Quer se trate do oikos ou da polis, há um a espécie de phi-
lia específica dessa koinonia sem a qual o grupo não pode perdu
rar. A philia se expressa num com portam ento de reciprocidade
[anti-peponthos],6 ou seja, num a disposição de aceitar alternada-
mente os ônus e de fazer partilhas mútuas. Tudo que é necessário
247
KARl POLANYI
is s
para dar continuidade à comunidade e mantê-la, inclusive em sua
autossuficiência [autarkeia], é “natural” e intrinsecamente correto.
Pode-se dizer que a autarcia é a capacidade de subsistir sem de
pendência de recursos externos. A justiça (ao contrário da nossa
visão) implica que os membros da comunidade tenham posições
desiguais. Aquilo que assegura a justiça, seja em relação à distri
buição dos bens da vida, à adjudicação de conflitos ou à regulação
de serviços mútuos, é bom, pois é requerido para a continuidade
do grupo. A normatividade é inseparável da realidade.
Estas indicações resumidas do sistema total de Aristóteles de
vem nos perm itir esboçar suas idéias sobre o comércio e os preços.
O comércio externo é natural quando serve à sobrevivência da
comunidade, m antendo a sua autossuficiência. Sua necessidade
surge assim que a família extensa torna-se m uito numerosa e seus
membros são forçados a se estabelecer em locais separados. Sua
autarcia ficaria então inteiramente prejudicada, não fosse a opera
ção de doação de um a parte [metadosis] daquilo que se possui em
excesso. O grau em que são trocados os serviços compartilhados
(ou os bens, em algum m om ento) decorre da exigência da philia,
isto é, de que persista a afeição entre os membros. Sem ela, a pró
pria comunidade perecería. O preço justo, portanto, decorre das
exigências da philia expressas na reciprocidade que está na essên
cia de todas as comunidades humanas.
Desses princípios decorrem também as restrições aristotélicas
à troca comercial e as máximas para estabelecer equivalências de
troca a preço justo. O comércio, como vimos, é “natural”, desde
que seja u m requisito da autossuficiência. Os preços são estabele
cidos com justiça quando se ajustam à posição dos participantes
da comunidade, com isso reforçando a afeição em que se funda
m enta essa comunidade. A troca de bens é um a troca de serviços;
esse, por sua vez, é um postulado de autossuficiência, e é praticado
à guisa de um a partilha recíproca a preços justos. Nessa troca não
há lucro envolvido; os bens têm seus preços conhecidos, fixados de
antemão. Se, excepcionalmente, tiver que haver um a venda lucra
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ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA
A propensão sociológica
Quanto à natureza da economia, o ponto de partida de Aristóteles
é empírico, como sempre. Mas até a conceituação dos fatos mais
óbvios é profunda e original.
O desejo de riqueza, proclamara o verso de Sólon, não tinha
limites no homem. Não é verdade, diz Aristóteles, introduzindo o
assunto. A riqueza, com efeito, são as coisas necessárias para sus
tentar a vida, quando armazenadas em segurança sob a guarda da
comunidade cujo sustento elas representam. As necessidades h u
manas, seja as da família ou as da cidade, não são ilimitadas, e
tampouco há escassez de subsistência na natureza. Esse argumen
to, que soa bastante estranho aos ouvidos modernos, é enunciado
com vigor e cuidadosamente elaborado. Em todos os pontos, a
referência institucional é explícita. A psicologia é evitada, a socio
logia se impõe.
A rejeição do postulado da escassez (como diriamos) é baseada
nas condições da vida animal, das quais é estendida às da vida
humana. Porventura os animais, desde o nascimento, não encon
tram o sustento à sua espera em seu meio? E também os homens
não encontram sustento no seio m aterno e, mais tarde, no meio
ambiente, quer sejam caçadores, pastores ou lavradores do solo?
Dado que, para Aristóteles, a escravidão é “natural”, ele pode, sem
qualquer incoerência, descrever a captura de escravos como a caça
de um tipo peculiar de presa e, por conseguinte, representar o ócio
dos cidadãos que são senhores de escravos como suprido pelo
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Troca de equivalências
Isso deve descartar a ideia de que Aristóteles ofereceu em sua Ética
um a teoria dos preços. Tal teoria, com efeito, é central na com
preensão do mercado, cuja principal função é produzir um preço
que equilibre a oferta e a procura. Entretanto, nenhum desses con
ceitos lhe era familiar.
O postulado da autossuficiência implicava que o comércio ne
cessário para restabelecer a autonomia era natural e, por conse-
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Os textos
Este não é o lugar para nos estendermos sobre os numerosos pon
tos em que nossa exposição difere das anteriores. Resumidamente,
porém, devemos rem ontar aos próprios textos. De m odo quase
inevitável, formou-se um a visão errônea desse assunto no discur
so de Aristóteles. O intercâmbio comercial, que foi tom ado como
sendo esse tema, estava apenas começando a ser praticado na épo
ca do filósofo, como agora se evidencia. Não foi a Babilônia de
Hamurábi, mas a orla de língua grega da Ásia ocidental, ju n ta
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KARL POLANYI
mente com a própria Grécia, que foi responsável por esse fenô
meno — bem mais de mil anos depois. Portanto, Aristóteles não
poderia estar descrevendo o funcionamento de um mecanismo
desenvolvido de mercado e discutindo seus efeitos sobre a ética do
comércio. Além disso, alguns de seus termos principais, em espe
cial kapêlikê, metadosis e chrêmatistikê, foram mal interpretados
na tradução. Às vezes, o erro torna-se sutil. Kapêlikê foi traduzido
como arte do comércio a varejo, em vez de arte da “troca comer
cial”, e chrêmatistikê, como arte de ganhar dinheiro, em vez de arte
do suprimento, isto é, de oferta em espécie das coisas necessárias à
vida. Num a outra situação, a distorção foi flagrante: metadosis foi
tom ado por troca ou escambo, quando significa patentemente o
inverso, ou seja, “dar ou contribuir com sua parte”.
Em resumo, na sequência:
Kapêlikê denota, gramaticalmente, a arte do kapêlos. O signifi
cado de kapêlos, tal como usado por Heródoto em meados do sé
culo V a.C., é estabelecido em termos gerais como uma espécie de
varejista, principalmente de alimentos, aquele que cuida de uma
loja de comida, o vendedor de gêneros alimentícios e pratos pre
parados. A invenção do dinheiro cunhado em moedas foi associa
da p o r H eródoto ao fato de os lídios terem-se tornado kapêloi.
H eródoto também conta que Dario tinha o apelido de kapêlos. No
reinado dele, com efeito, é possível que os armazéns militares te
nham iniciado a prática de vender comida a varejo. Tempos de
pois, kapêlos tornou-se sinônimo de “trapaceiro, charlatão, viga
rista”. Seu sentido pejorativo era congênito.
Infelizmente, isso ainda deixa inteiramente em aberto o senti
do aristotélico da palavra kapêlikê. O sufixo -ikê indica “arte de”;
kapêlikê significa, portanto, a arte do kapêlos. Na verdade, porém,
essa palavra não era usada; o dicionário menciona apenas um caso
(afora Aristóteles), e nesse caso ela designa, como se esperaria,
a “arte de vender a varejo”. Então, como veio Aristóteles a intro
duzi-la como cabeçalho de um tema de prim eira grandeza, que de
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APÊNDICE2
Eis algumas indicações de por que é essencial restringir o uso do
termo “econômico” à referência à “provisão para satisfazer neces
sidades materiais” e só usar o significado formal do vocábulo se
for expressamente necessário.
Nosso principal interesse, no tocante ao estudo da história eco
nômica geral, é a questão do lugar do sistema econômico na socie
dade. Surgem nesse contexto várias questões de peso e, a menos
que o significado do term o “econômico” usado seja neutro a res
peito delas, corremos o risco de prejulgá-las.
Para a indagação quanto ao lugar das instituições econômicas
na sociedade, a resposta pode ser que tais instituições têm existên
cia separada e distinta, como no sistema de mercado, ou, alterna
tivamente, que em geral elas se enraizam em outras instituições,
não econômicas, ou algo entre essas duas opções.
Ora, se usarmos o termo “econômico” para denotar a maneira
como os homens se comportam no mercado quando almejam o
lucro, a conduta deles em relação aos assuntos econômicos nas
economias primitivas e arcaicas parecerá ser um a espécie de com
2 Este Apêndice foi compilado a partir de memorandos inéditos que Polanyi escreveu
em 1947 e distribuiu como notas mimeografadas a seus alunos de história da econo
mia, na Universidade Columbia. Esse material inédito é reproduzido aqui com permis
são de Ilona Polanyi e Kari Polanyi Levitt. [N.E.]
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0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES
Montesquieu (1748)
Em linguagem moderna, a tese de Montesquieu era que as insti
tuições de um a sociedade refletem as necessidades dessa sociedade
no ambiente considerado. As instituições econômicas tam bém
seriam formadas de acordo com sua função na estrutura da socie
dade em geral. Montesquieu definiu o comércio “como a exporta-
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0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES
que ele fez sua grande descoberta de que a divisão do trabalho era
aplicável ao grau de desenvolvimento dos mercados. Convém n o
tar que tanto a divisão do trabalho quanto o mercado foram tra
tados, nesse caso, em termos institucionais.
Adam Smith definiu claramente o problema da riqueza, tanto
em relação à natureza quanto em relação à sociedade. No tocante
à natureza, ele se recusou a seguir os passos dos fisiocratas, que
haviam colocado os recursos naturais em primeiro plano. As ob
servações iniciais de Smith excluíram a consideração dos recursos
naturais, já que eles deviam ser considerados dados. Com respeito
à situação da sociedade, sua postura foi a inversa. Sua abordagem
era regida pela distinção de três situações: a sociedade estava m e
lhorando, em declínio ou estagnada. A vida econômica era apenas
uma faceta da vida nacional e, por conseguinte, devia refletir o
estado de saúde ou de doença da vida nacional. Até mesm o a
questão de a política do governo ser favorável à agricultura ou às
fábricas devia ser considerada vital, já que tal política dependia de
considerações gerais da arte de governar (e não, como hoje tende
mos a supor, de considerações econômicas). Por fim, as exigências
políticas de segurança e proteção nacionais eram tidas como lí
quidas e certas, e defendidas, por exemplo, em relação às Leis de
Navegação de 1649 e 1651.
A referência à “mão invisível”, que fazia com que o interesse
pessoal do açougueiro e do padeiro “me servisse uma refeição”, tem
sido exagerada de um m odo totalmente desproporcional. Adam
Smith queria desestimular a ideia de que o interesse pessoal do
comerciante beneficiava naturalmente a comunidade. Exigia, por
exemplo, que o governo inglês fosse o governante da índia, não
a Companhia das índias Orientais, cujos interesses, dizia, eram
contrários aos da população, ao passo que os interesses do governo
corriam em paralelo a estes últimos (por exemplo, em termos de
tributação). O interesse pessoal ainda não era diferenciado em
motivações econômicas de patrões e empregados. De ponta a pon
ta, a abordagem ainda era institucional, histórica e social.
281
KARL POLANYI
282
0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES
Malthus (1798)
Malthus tornou m undialm ente famosas as idéias de Townsend.
Reagiu de forma categórica ao humanitarismo otimista de seu pai
e à admiração pela Justiça política de Godwin (1793). Os hum ani
tários pareciam negar que a pobreza era inevitável e que era preci
so mais do que boas intenções para aboli-la. O teorema de Town
send sobre as cabras e os cães chegou a Malthus por intermédio de
Condorcet. Mas por que o alimento havería de ser sempre escasso
na sociedade humana? Malthus explicitou a resposta, que estava
implícita na história de Townsend. Havia na natureza um a força
que tinha o efeito de perpetuar a fome, a saber, o sexo, que fazia
283
KARL POLANYI
com que o núm ero de seres hum anos sempre forçasse os limites
da oferta de alimentos. Se nascessem mais crianças do que essa
oferta conseguisse alimentar, o núm ero excedente teria de ser
m orto p or guerras e pestes, vícios e fome.
Ora, a autonomia da esfera econômica era salvaguardada pela
sanção da própria natureza. Nada que o governo pudesse fazer
conseguiria alterar essas leis. O lugar do sistema econômico na
sociedade era determinado não pela força da sociedade e do go
verno, mas pela força da própria natureza.
Ricardo (1817)
O principal interesse de Ricardo era determinar as leis que fixa
vam como as diversas classes da população compartilhavam da
renda nacional. Ele combinou as motivações da fome e do ganho
com a motivação do lucro como incentivo geral determinante do
com portam ento hum ano. O interesse pessoal vagamente inter
pelado por Adam Smith diferenciou-se, nesse momento, no medo
da fome, no trabalhador, e na esperança de lucro, no dono do ca
pital. O mercado, que Adam Smith havia introduzido como de
term inante do grau em que a divisão do trabalho era possível,
desenvolveu-se num sistema de oferta-procura-preço que incluía
o trabalho e a terra. A sociedade foi então enraizada no sistema
econômico, em vez do contrário. As classes sociais foram definidas
por seu papel no mercado, pois personificavam os fatores da ofer
ta e da procura, respectivamente, nos vários mercados, como os de
mão de obra, terra, capital, serviços profissionais etc.
O lugar do sistema econômico na sociedade passou a ser de
finido pelas “motivações econômicas” da fome e do lucro. Elas
respondiam pelas leis econômicas — como a lei férrea dos salá
rios — , bem como pela lei da renda (em combinação com a lei
malthusiana e a lei dos retornos decrescentes, outra lei da natu
reza). Os esforços ideológicos e políticos para alterar o curso dos
processos econômicos eram inúteis. A sociedade era regida pelas
284
0 LUGAR DAS ECO NO M IAS NAS S O C IE D A D E S
leis que governavam o mercado. Estas, por sua vez, eram determi
nadas pela própria natureza.
Esse deslocamento teórico do lugar do sistema econômico na
sociedade foi acompanhado, é claro, por um grande desenvolvi
mento de mercados reais, que ainda não existiam em grau seme
lhante na época de Adam Smith. Juntos, os mercados com peti
tivos, a economia m onetária e a motivação do lucro resultaram
numa compulsão para reduzir os custos. Isso implicou a aplicação
do princípio econômico, como ele começou á ser chamado. Town-
send, Malthus e Ricardo estabeleceram em conjunto o conceito
moderno de um sistema econômico autônom o e separado, regido
por motivações econômicas e sujeito ào princípio econômico da
racionalidade formal [isto é, do economizar].
Carey (1837)
A economia ricardiana foi atacada por todos os lados como abs
trata, dogmática, dedutiva, distante da vida real e das instituições,
cosmopolita e desumana. A reação foi mundial. Na verdade, essa
economia adaptava-se às condições inglesas e expressava interes
ses ingleses. A Revolução Industrial era um evento inglês. Os de
fensores do livre-comércio da escola ricardiana sabiam das vanta
gens da capacidade superior de fabricação da Inglaterra.
Henry Carey form ulou as necessidades protecionistas norte-
-americanas. Ao fazê-lo, apelou (a) para a história e (b) para a tese
institucionalista.
(a) Sua tentativa de refutar a teoria ricardiana da renda baseou-
-se na sequência histórica factual do povoamento da terra. Afir
mou que o melhor solo não tinha sido o escolhido no princípio,
pois era pantanoso e inacessível. Isso se mostrava verdadeiro não
apenas para os Estados Unidos — vide o trabalho de Turner sobre
a “fronteira” da civilização — , mas também para a história antiga.
Na Inglaterra, o Caminho dos Peregrinos, que liga a Stonehenge
neolítica a Cantuária, corre pelas encostas dos morros.
285
KARL POLANYI
Marx (1859)
O terceiro autor desse grupo distingue-se dos demais. A oposição
de Karl Marx à economia ricardiana não foi social em nom e de
um país, mas de um a classe. Malthus e Ricardo haviam condenado
os trabalhadores à indigência perpétua. Marx aceitou a análise ri
cardiana como válida. Por conseguinte, sua única alternativa era
rejeitar todo o sistema institucional da economia de mercado. Ele
afirmou que o capitalismo industrial era um fenômeno histórico,
que desapareceria tal como havia surgido. Foi um a tese antropo
lógica, institucional e histórica. Centrou-se num a visão da socie
286
0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES
Menger (1871)
Menger foi o primeiro economista a fazer um a distinção delibera
da entre a preocupação com a satisfação das necessidades mate
riais e a preocupação com a alocação de recursos escassos. Ao re
lacionar a teoria da escolha, ou “economia formal”, com a alocação
dos bens materiais, a escola neoclássica definiu a teoria econômica.
A partir daí, não mais ficou sujeita à crítica de confiar em leis da
natureza, como a lei malthusiana ou a lei dos retornos decrescen
tes. Produziu-se um a teoria geral do preço, e a análise econômica
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0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES
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■
ÍB8ÍBI
A economia como processo instituído1
1 D o capítulo 13, “The Economy as Instituted Process”, p. 243-270, de Karl Polanyi, Con-
rad M. Arensberg e Harry W. Pearson (orgs.), Trade and M arket in the Early Empires.
Glencoe, Iilinois: The Free Press, 1957. [Polanyi condensou neste único capítulo todas
as categorias conceituais importantes que concebeu para analisar as economias que
não são de mercado: os dois sentidos de “econômico”; reciprocidade, redistribuição e
troca (de mercado); formas de comércio (exterior), usos do dinheiro e mercados; re
cursos operacionais etc. Trata-se, portanto, de um ensaio denso e difícil, no qual fiz
inserções editoriais com mais frequência que em outros textos. A Introdução deste
volume foi escrita com toda a sua extensão para esclarecer alguns dos importantes
conceitos analíticos aqui mencionados. Ver também George Dalton, “Economic Theo-
ry and Primitive Society”, American Anthropologist, fevereiro de 1961; “Traditional
Production in Primitive African Economies”, The Quarterly Journal ofEconomics, agos
to de 1962; “Primitive Money”, American Anthropologist, fevereiro de 1965. N.E.]
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A ECONOMIA COMO P R O C E S S O IN STIT UÍD O
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KARL POLANYI
to social sofreu com essa limitação, toda vez que tocava na economia. O ensaio de
Lionel Robbins intitulado The Nature and Significance ofEconomic Science [A natureza >
e a importância da ciência econômica] (1932), apesar de útil para os economistas,
distorceu fatalmente esse problema. No campo da antropologia, um trabalho recente *
de Melville Herskovits, Economic Anthropology [Antropologia econômica] (1952), re-
presenta uma recaída, após seu esforço pioneiro de 1940, The Economic Life o f Primi
tive Peoples [A vida econômica dos povos primitivos].
296 II
fj
&
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO
colha meios que acarretem sua morte, e, se ele for adepto da magia
negra, que procure um feiticeiro para atingir esse objetivo.
A lógica da ação racional, portanto, aplica-se a todos os meios
e fins concebíveis, abarcando um a variedade quase infinita de in
teresses humanos. No jogo de xadrez ou na tecnologia, na vida
religiosa ou na filosofia, os fins podem ir de questões corriqueiras
até as mais profundas e complexas. Similarmente, no campo da
economia, no qual os fins podem ir da saciação m om entânea da
sede à chegada a um a robusta idade avançada, os meios corres
pondentes abrangem um copo de água e a confiança conjunta na
solicitude filial e na vida ao ar livre, respectivamente.
Supondo-se que a escolha seja induzida por um a insuficiência
de meios, a ação lógica ou racional transforma-se naquela varian
te da teoria da escolha que chamamos de economia formal. Ela
continua sem relação lógica com o conceito de economia humana,
mas está um passo mais perto dele. A economia formal, como dis
semos, refere-se a um a situação de escolha que brota da insufi
ciência de recursos. Esse é o chamado postulado da escassez. Ele
requer, primeiro, um a insuficiência de meios, segundo, que a esco
lha seja induzida por essa insuficiência. A insuficiência de meios
em relação aos fins é determinada com a ajuda da simples opera
ção de “destinação” ou “reserva”, que demonstra se existe ou não o
suficiente de algo. Para que a insuficiência induza a escolha, deve
haver mais de um uso para os meios, bem como fins escalonados,
isto é, pelo menos dois objetivos ordenados num a sequência de
preferências. Essas duas condições são factuais. É irrelevante se a
razão pela qual os meios podem ser usados de determinada m a
neira é convencional ou tecnológica; o mesmo se aplica ao escalo
namento dos fins.
Havendo assim definido escolha, insuficiência e escassez em
termos operacionais, é fácil perceber que, tal como existe escolha
de meios sem insuficiência, existe insuficiência de meios sem es
colha. A escolha pode ser induzida por uma preferência pelo certo
em vez do errado (escolha moral), ou por um a encruzilhada em
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A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO
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3 Ao longo de todo o texto, o que Polanyi quer dizer com “troca” é a troca mercantil.
[N.E.]
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I
■
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4 Acrescento o grifo para enfatizar que Polanyi falava com muita clareza ao situar a reci
procidade, a redistribuição e a troca (mercantil) como modos de transação, não como
designações de economias inteiras ou de sistemas econômicos. [N.E.]
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" 'r f !
KARLPOLANYi
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A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO
m inar o efeito dos preços para outros mercados que não os dire
tamente afetados.
O regateio foi corretamente reconhecido como sendo a essên
cia do comportamento de negociação. Para que a troca seja inte-
gradora, o comportam ento dos parceiros deve ser orientado para
produzir um preço que seja tão favorável a cada um quanto possí
vel. Esse com portam ento contrasta nitidamente com o da troca
por um preço definido. A ambiguidade do term o “ganho” tende a
encobrir essa diferença. A troca com base ertl preços fixos não en
volve nada além do ganho implicado para cada parceiro na deci
são de trocar; a troca com preços flutuantes visa a um ganho que
só pode ser obtido mediante um a atitude que envolve um a clara
relação de antagonismo entre os parceiros. O elemento de antago
nismo que acompanha essa variante da troca, por mais que seja
diluído, é inerradicável. Nenhum a comunidade firmemente de
cidida a proteger a fonte de solidariedade entre seus m em bros
pode perm itir que se desenvolva um a hostilidade latente em torno
de um a questão tão vital para a existência física — e, por conse
guinte, capaz de despertar angústias tão desgastantes — quanto é
o alimento. Daí a proibição universal de transações de natureza
lucrativa com a comida e os gêneros alimentícios na sociedade
primitiva e arcaica. A proibição do regateio em torno de alimen
tos, largamente difundida, retira automaticamente os mercados
formadores de preço do campo das instituições primitivas.
Os agrupam entos tradicionais de economias, que se apro
ximam toscamente de uma classificação segundo as formas d o
minantes de integração, revelam-se esclarecedores. O que os his
toriadores costum am cham ar de “sistemas econômicos” parece
enquadrar-se bastante bem nesse padrão. O predomínio ãe uma
forma de integração identifica-se aqui com o grau em que ela abarca
a terra e o trabalho na sociedade. A chamada sociedade selvagem
caracterizava-se pela integração da terra e do trabalho na econo
mia por meio dos laços de parentesco. Na sociedade feudal, os la
ços de vassalagem determinavam o destino da terra e do trabalho
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A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO
5 Quase invariavelmente, Polanyi usa trade [comércio] para se referir ao comércio exte
rior ou estrangeiro. [N.E.]
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1. Formas de comércio
Do ponto de vista substantivo, o comércio é um método relativa
mente pacífico de adquirir bens que não se encontram disponíveis
in loco. É externo ao grupo, semelhante a atividades que estamos
6 Com “catalático” Polanyi refere-se ao que é pertinente à troca via mercado. Ao longo
de todo este ensaio, usei as palavras “mercantil”, “economia formal” ou “economia de
mercado” para substituir “catalático(a)”. [N.E.]
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A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO
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A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUtDO
2. Usos do dinheiro
A definição de dinheiro na economia de mercado é a de meio de
troca indireto. O dinheiro m oderno é usado nos pagamentos e
como “padrão” exatamente por ser um meio de troca [comercial].
Por isso nosso dinheiro existe “para todos os fins”. Os outros usos
são variantes sem importância de seu uso como moeda de troca, e
todos os usos do dinheiro dependem da existência de mercados.
A definição substantiva do dinheiro, como a do comércio, in
depende dos mercados. Decorre dos usos definidos que são dados
a objetos quantificáveis. Esses usos são o pagamento, o padrão e a
troca. Por isso aqui definimos o dinheiro como os objetos quanti
ficáveis empregados em um ou em vários desses usos. A questão
é se é possível fornecer definições independentes desses usos.
As definições dos diversos usos do dinheiro abrangem dois cri
térios: a situação sociologicamente definida em que surge o uso e
a operação efetuada com os objetos monetários nessa situação.
O pagamento é o cum prim ento de obrigações em que os obje
tos quantificáveis m udam de mãos. Essa situação refere-se aqui
não apenas a um tipo de obrigação, mas a vários, já que somente
quando um objeto é usado para cum prir mais de um a obrigação
podemos denominá-lo “meio de pagamento”, no sentido distinti
vo do term o (caso contrário, só a obrigação a ser cum prida em
espécie é cumprida dessa maneira).
O uso do dinheiro como meio de pagamento faz parte de seus
usos mais comuns em épocas antigas. As obrigações, nesse caso,
não provêm comumente de transações [econômicas]. Na socieda
de primitiva não estratificada, fazem-se pagamentos regulares li
gados às instituições do preço da noiva, do preço do sangue e das
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KARL POLANYI
3. Elementos de mercado
Agora, o próprio mercado. Do ponto de vista da economia formal,
o mercado é o locus da troca; mercado e troca são coextensivos, e
a vida econômica é redutível a atos de troca que estão todos encar
nados nos mercados. Por isso a troca é descrita como a relação
econômica, enquanto o mercado é a instituição econômica. A de
finição do mercado deriva, logicamente, da premissa subjacente
de que toda “troca” pode ser vista como troca mercantil.
Mercado e troca têm características empíricas independentes.
Qual é então, aqui, o sentido de troca e mercado? Até que ponto :)tjl
m
eles estão necessariamente ligados?
A troca, definida substantivamente, é o movimento de apro
priação m útua de bens entre agentes. Tal movimento, como vi
mos, pode ocorrer com proporções ou taxas fixas, ou então com
taxas negociadas. Somente estas últimas resultam do regateio en
tre os parceiros.
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A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO
10 Quanto à distinção entre a pequena troca de mercado e o papel integrador das tran
sações e preços de mercado em economias nacionais como a dos Estados Unidos, ver
Paul Bohannan e George Dalton, “Introduction”, em M arkets in África. Nova York:
Natural History Press, 1965. [N.E.]
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1
, %.
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A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO
Pseudofilosofias do dinheiro
O dinheiro é um sistema incompletamente unificado, e a busca de
seu propósito único é um beco sem saída. Isso explica as muitas
tentativas infrutíferas de determ inar suas “natureza e essência”.
Devemos nos contentar em listar os propósitos a que servem os
objetos quantificáveis efetivamente chamados de dinheiro. Conse
gue-se isso apontando a situação em que usamos esses objetos e
com que finalidade. Constataremos que eles são chamados de di
nheiro quando usados de qualquer das seguintes maneiras: para
pagamento, como padrão de valor ou como meio de troca indire
ta. O pagamento ocorre em situações de obrigação, e a entrega dos
objetos tem o efeito de extinguir essa obrigação. Usado como pa
drão, o dinheiro é um a etiqueta quantitativa presa a unidades de
bens de diferentes tipos, seja para efeito de escambo (com o resul
tado de, somando os números, podermos igualar prontam ente os
dois lados da troca), seja para orçar e equilibrar reservas de dife
rentes gêneros essenciais (assim produzindo as finanças em bens
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A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO
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1 Sobre os papéis do dinheiro na economia soviética, ver Gregory Grossman, “Gold and
the Sword: Money in the Soviet Command Economy”, em H. Rosovsky (org.), Indits-
trialization in Two Systems: Essays in Honor ofAlexander Gershenkron. Nova York John
Wiley & Sons, Inc., 1966. [N.E.]
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tesouro, o qual, por sua vez, mais era uma categoria social que de
subsistência. A conotação de subsistência da riqueza (bem como
do pagamento) derivou da frequência com que se acumulava ri
queza sob a forma de gado, escravos e produtos não perecíveis de
consumo comum. Tanto o que alimentava a reserva de riqueza
quanto aquilo que era desembolsado dela adquiriu então um sig
nificado de subsistência — mas apenas dentro de certos limites, já
que os pagamentos continuaram a ser feitos, como norm a geral,
por razões não transacionais. Isso se aplicava tanto aos ricos que
possuíam a reserva de riqueza quanto aos súditos que a alimenta
vam com seus pagamentos. Assim, o possuidor de riqueza ficava
apto a pagar multas, composições, impostos etc. para fins sagra
dos, políticos e sociais. Os pagamentos que ele recebia de seus sú
ditos, altos ou baixos, eram-lhe feitos sob a forma de impostos,
rendas, presentes etc., não por razões transacionais, mas por ra
zões sociais e políticas, que iam desde a pura gratidão pela prote
ção, ou da admiração pelos dotes superiores, até o simples medo
da escravização e da morte. Por outro lado, isto não significa negar
que, um a vez estando presente o dinheiro como meio de troca, ele
se prestava prontam ente a servir de reserva de riqueza. Todavia,
como no caso do pagamento, a condição era o estabelecimento
prévio de objetos quantificáveis como meios de troca.
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A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO
arreios para cavalos, asno, arreios para asno, boi, azeite, roupas
e outros artigos menores? Na ausência de um meio de troca, a
contabilidade de um famoso caso de escambo na antiga Babilônia
configurou-se assim: a terra foi avaliada em 816 siclos de prata,
enquanto os artigos oferecidos em troca foram avaliados, também
em siclos de prata, da seguinte maneira: carroça, 100; seis arreios
para cavalos, 300; um asno, 130; arreios para asno, 50; um boi, 30;
e o restante distribuído pelos itens menores.
O mesmo princípio se aplicava, na falta do meio de troca, à
administração das imensas reservas do palácio e do tem plo (fi
nanças em gêneros essenciais). Seu curador lidava com os bens de
subsistência em condições que, vistas por mais de um ângulo, exi
giam um a estimativa do valor relativo desses bens. Daí a famosa
regra contábil “um a unidade de prata = um a unidade de cevada”,
na esteia de M anistusu e na epígrafe das Leis de Eshnuna.
Os dados de pesquisas revelam que o uso do dinheiro como
meio de troca não pode ter dado origem a seus outros usos. Ao
contrário, suas utilizações como pagamento, reserva e unidade de
conta tiveram origens separadas e se institucionalizaram indepen
dentemente umas das outras.
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Babilônia e Daomé
Com respeito a sua organização monetária, a Babilônia de Ha-
murábi, apesar de sua complexa administração econômica e de
suas práticas operacionais sofisticadas, era tipicamente “prim iti
va”, pois o princípio da diferenciação dos objetos monetários esta
va firmemente estabelecido. Com muitas ressalvas im portantes
quanto aos detalhes, podemos fazer a seguinte generalização am
pla: rendas, salários e impostos eram pagos em cevada, enquanto
o padrão universal de valor era a prata. O sistema total era regido
pela norm a contábil que se fundamentava, de forma inabalável,
na equação “ 1 siclo de prata = 1 gurde cevada”. No caso de uma
melhora permanente na produção média do solo (que seria cau
sada, por exemplo, por obras de irrigação em larga escala), o teor
de cevada do gur era elevado, mediante um a proclamação solene.
O uso geral da prata como moeda de conta facilitava enorm em en
te o escambo; o emprego igualmente geral da cevada como meio
de pagamento doméstico tornava possível o sistema de armazena
mento no qual se apoiava a economia redistributiva do país.
Parece que todos os gêneros essenciais importantes funciona
vam como meios de troca, até certo ponto, sem que nenhum tives
se permissão para atingir a condição de “dinheiro” (em oposição
a bens). Isso também pode ser formulado nos seguintes termos:
praticava-se um sistema complexo de escambo, que era baseado
na função da prata como moeda de conta, no uso da cevada como
meio de pagamento e no emprego simultâneo de diversos gêneros
essenciais, como azeite, lã, tâmaras, tijolos etc., como meios de
troca. Entre estes últimos devemos incluir a cevada e a prata, to
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A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO
5 Este Apêndice foi compilado a partir de memorandos inéditos que Polanyi escreveu
entre 1947 e 1950 e distribuiu como notas mimeografadas a seus alunos de história da
economia, na Universidade Columbia. Esse material inédito é reproduzido aqui com
permissão de Ilona Polanyi e Kari Polanyi Levitt. [N.E.]
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A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO
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1. Pagamento
a) Na sociedade prim itiva não estratificada, os pagam entos
costumam ser feitos, em geral, ligados às instituições do pre
ço da noiva, do preço do sangue e das multas.
b) Na sociedade estratificada, especialmente a arcaica, institui
ções como obrigações costumeiras, impostos, rendas e tribu
tos dão origem a pagamentos, similarmente.
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Economia clássica
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A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO
usadàs na troca indireta; esta, por sua vez, deve ter derivado do
uso preferencial não m onetário de diversos produtos — e tudo
isso se originou em atos individuais de troca, explicados pela pro
pensão do ser hum ano para a permuta. De acordo com esse tipo
de tese racionalista, ao seguirmos o fio da dedução lógica até suas
fontes, supostamente também retraçamos os estágios de desenvol
vimento incorporados na história.
Os vários usos do dinheiro aparecem nesse sistema como logi
camente independentes. O caráter de mercadoria do dinheiro, isto
é, de ser um objeto que possui utilidade em si mesmo, é pressu
posto. (1) “Meio de troca” é definido como o uso original; (2) se
gue-se “meio de pagam ento”, pois como se poderia pagar com
um a coisa que não pudesse ser usada na troca? (3) Depois vem
“padrão de valor”, que abarca (1) e (2); e (4) “meio de acumular
riqueza ou tesouro” pressupõe os outros três. Os conceitos de
mercadoria e troca são pedras angulares do sistema.
Economia neoclássica
Termos institucionais
Os vários usos do dinheiro foram originalmente institucionaliza
dos em separado. As ligações entre esses quatro usos foram mais
ou menos acidentais. Abordaremos tais usos na seguinte sequên
cia: (1) meio de pagamento; (2) meio de acumulação de riqueza
ou tesouro; (3) meio de troca; (4) padrão de valor.
Meio de pagamento:
Para que o dinheiro seja usado como meio de pagamento, é neces
sário que haja (1) algum tipo de dívida ou obrigação pela qual
pagar e (2) algo com que pagar. Do ponto de vista tradicional, por
tanto, o necessário é explicar (a) como surgem as dívidas ou obri
gações na sociedade primitiva, fora das transações econômicas, e
(b) como pode haver um meio de pagamento quando o dinheiro
não é também usado como meio de troca.
Algo pelo qual pagar (Como surgem as dívidas?):
1) Que a sociedade primitiva se baseie no status significa que os
direitos e as obrigações decorram sobretudo do nascimento, seja o
parentesco real ou fictício. Isso é predominantemente válido em
relação às sociedades estratificadas. Pelo nascimento tam bém se
adquire o privilégio negativo. Os homens nascem com dívidas e
tendo de cum prir obrigações.
A SEM Â NTICA DO S U SO S DO DIN HEIR O
355
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7 Daryll Forde, Habitat, Economy, and Society. 8a ed. Londres: Methuen, 1950, p. 203.
[N.E.]
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A SE M ÂNTICA DOS U S O S DO DINHEIRO
* Também conhecidas com o contas Aggry ou Koli, Cori, Kor, Segi, Accori ou Ekeur.
[N.T.]
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A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO
359
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Interesse de classe e mudança social*
* “Class Interest and Social Change”, capítulo 3 de Primitive, Archaic and M odem Econo-
mies: Essays ofK arl Polanyi, organizado por George Dalton. Boston: Beacon Press,
1968.
1 K. Marx, Nationalõkonom ie u n d Philosophie, em “Der Historische Materialismus”,
1932.
361
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362
INTERESSE DE CLASSE E MUDANÇA SOCIAL
363
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tivo; não é por que alguns grupos quiseram agir de maneira pare
cida em diversos países da Europa continental, mas por que tais
grupos existiam nesses países dessemelhantes e atingiram igual
mente as suas metas em toda parte; não é por que os cultivadores
de cereais tentaram vender seus produtos por preço? altos, mas
por que lograram sistematicamente persuadir os compradores de
cereais a elevar os preços.
Segundo, existe a doutrina igualmente equivocada da natureza
essencialmente econômica dos interesses de classe. Embora a so
ciedade hum ana seja naturalmente condicionada por fatores eco
nômicos, só em casos excepcionais as motivações dos indivíduos
hum anos são determinadas pela satisfação de carências materiais.
O fato de a sociedade do século XIX ter-se organizado com base
no pressuposto de que essa motivação podería tornar-se universal
foi um a peculiaridade da época. Assim, era apropriado dar uma
margem relativamente ampla à ação das motivações econômicas
ao analisar essa sociedade. Mas devemos precaver-nos contra o
prejulgamento da questão, que é, precisamente, até que ponto essa
motivação tão incomum poderia tornar-se atuante.
Questões puram ente econômicas, como as que afetam a satis
fação das necessidades, são incomparavelmente menos relevantes
para o comportamento de classe que as do reconhecimento social.
A satisfação das necessidades, é claro, pode resultar desse reco
nhecimento, sobretudo como seu sinal ou recompensa externos;
Todavia, os interesses de classe referem-se mais diretamente à re
putação e à posição, ao status e à segurança, ou seja, são prim or
dialmente não econômicos, mas sociais.
As classes e os grupos que participaram em caráter interm iten
te do movimento geral para o protecionismo, depois de 1870, não
o fizeram principalmente por seus interesses econômicos. As m e
didas “coletivistas” promulgadas nos anos cruciais revelam que
apenas em casos excepcionais o interesse de um a classe isolada
esteve envolvido; mesmo assim, raras vezes se poderia descrever
esse interesse como econômico. Com certeza, não se satisfez ne
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2 Ver F. A. Hayek (org.), Capitalism and the Historians. Chicago: University o f Chicago
Press, 1954. [N.E.]
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6 Ibid.
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7 R. C. Thurnwald, Black and W hite in East África; The Fabric o fa N ew Civüization, 1935.
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8 Ver a referência a Lesser no apêndice deste capítulo. Ver também James Mooney, The
Ghost-Dance Religion and the Sioux Outbreak o f 1890. Chicago: University o f Chicago
Press, 1965. [N.E.]
* O proletarius do latim é o miserável que só tem valor por sua prole. [N.T.]
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APÊNDICE
Diversos autores insistiram na semelhança entre os problemas co
loniais e os do início do capitalismo. Todavia, não examinaram a
analogia no sentido inverso, isto é, para esclarecer a situação das
classes pobres da Inglaterra, um século atrás, visualizando-as tal
como eram — os nativos destribalizados e degradados da época.
A razão de essa semelhança óbvia haver passado despercebi
da reside em nossa confiança no preconceito liberal, que deu um
destaque indevido aos aspectos econômicos de processos que, em
essência, foram não econômicos. Pois nem a degradação racial
de algumas áreas coloniais de hoje nem a desumanização análoga
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tavos diários a metade do que haviam trabalhado por 25. Esse pa
radoxo foi bastante geral nos primeiros tempos da Revolução In
dustrial na Inglaterra.
O indicador econômico das taxas populacionais não nos serve
melhor que os salários. Goldenweiser confirma a famosa obser
vação feita por Rivers na Melanésia: a de que os nativos cultu
ralmente empobrecidos podem estar “m orrendo de tédio”. F. E.
Williams, que também trabalhou como missionário nessa região,
escreveu que é fácil compreender a “influência do fator psicoló
gico na taxa de m ortalidade”. “Muitos observadores chamaram
atenção para a notável facilidade ou presteza com que os nativos
podem morrer.” “A restrição dos interesses e atividades anteriores
parece fatal para seu estado de ânimo. O resultado é que a capaci
dade de resistência do nativo fica prejudicada e ele sucumbe facil
mente a qualquer tipo de doença” (op. cit., p. 43). Isso nada tem a
ver com a pressão da necessidade econômica. “Portanto, uma taxa
extremamente alta de aumento natural [da natalidade] pode ser
sintoma de vitalidade cultural ou de degradação cultural” (Frank
Lorimer, Observations on the Trend o fln d ia n Population in the
United States, p. 11).
A degradação cultural só pode ser sustada por medidas sociais
incompatíveis com os padrões econômicos de vida, como o resta
belecimento da posse tribal da terra ou o isolamento da comuni
dade da influência dos métodos capitalistas de mercado. “Separar
o índio de sua terra foi o golpe m o r t a fescreveu John Collier em
1942. A Lei Geral de Distribuição de Terras, de 1887, “individuali
zou” as terras do índio; a desintegração daí resultante o fez perder
cerca de 3/4, ou 90 milhões de acres, de suas terras. A Lei de Reor
ganização Indígena, de 1934, reintegrou as propriedades tribais e
salvou a comunidade indígena, por revitalizar sua cultura.
Da África vem a mesma história. As formas de posse da terra
ocupam o centro do interesse, porque delas depende mais direta
mente a organização social. O que parece constituir conflitos eco
nômicos — impostos e aluguéis elevados, salários baixos — re
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9 Robert Owen, A New View ofSociety, and Other Essays. Londres: J. M. Dent & Sons,
Ltd.; Nova York: E. P. Dutton & Co., 1927. Everymans Library. [N.E.]
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* Baseada no preço do pão e no número de filhos de cada família, essa lei, que alterou a
antiga Lei da Pobreza, garantia ao cidadão um mínimo de subsistência, qualquer que
fosse a sua contribuição em impostos. [N.T.]
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T ip o g rafia: M in io n , 12/15,5