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Karl Polanyi

A subsistência do homem
e ensaios correlatos

ORGANIZAÇÃO
Kari Polanyi Levitt

INTRODUÇÃO
Michele Cangiani

TRADUÇÃO
Vera Ribeiro

conTRAPomo
© Kari Polanyi Levitt, 2012
© do artigo de Michele Cangiani, Association for Evolutionary Economics, 2011

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Projeto gráfico: Regina Ferraz

I a edição, novembro de 2012


Tiragem: 2.000 exemplares

CIP-BRASIL CATALOGAÇÀO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

P816s Polanyi, Karl, 1886-1964


A subsistência do homem e ensaios correlatos / Karl Polanyi;
organização Kari Polanyi L evitt; introdução Michele Cangiani;
tradução Vera Ribeiro ; revisão César Benjamin. - Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012.
384 p . : 23 cm

ISBN 978-85-7866-076-5

1. História econômica. 2. Antropologia econômica. I. Polanyi


Levitt, Kari. II. Título.

CDD: 330.9
12-8085 CDU: 330(09)
Sumário

Nota da edição brasileira 7

A teoria institucional de Karl Polanyi: a sociedade


de mercado e sua economia “desenraizada”,
por Michele Cangiani 11

I. A subsistência do homem
A falácia economicista 47
Os dois significados de econômico 63
Formas de integração e estruturas de apoio 83
A economia enraizada na sociedade 95
A origem das transações econômicas 107
Equivalências nas sociedades arcaicas 115
A tríade catalática: comércio, dinheiro e mercados 127
Comerciantes e comércio 133
Objetos monetários e usos do dinheiro 153
Elementos de mercado e origens do mercado 183

II. Ensaios correlatos


Nossa obsoleta mentalidade de mercado 209
Aristóteles descobre a economia 229
O lugar das economias nas sociedades 269
A economia como processo instituído 293
A semântica dos usos do dinheiro 331
Interesse de classe e m udança social 361
Nota da edição brasileira

César Benjamin

É longa a tradição de cientistas sociais que buscaram interpreta­


ções abrangentes do fenômeno humano. O húngaro Karl Polanyi
(1886-1964) foi um dos mais originais. Estudou direito e econo­
mia política. Socialista desde jovem, não aderiu ao marxismo nem
militou em partidos, mas foi um fomentador de idéias e um orga­
nizador de pessoas. Em 1908 criou o Círculo Galileu, grupo de
ativistas que se opunha ao caráter retrógrado do ensino universi­
tário na Hungria, lutava por reformas democráticas e organizava
cursos para educação de adultos, contando com a participação,
entre outros, dos jovens Gyorgy Lukács, Karl M annheim, Sándor
Férenczi e Bela Bartók.
Obrigado a exilar-se em Viena em 1919, nos anos seguintes
manteve aguda polêmica com os economistas liberais da Escola
Austríaca, entre os quais Ludwig von Mises. Com a ascensão do
fascismo e do antissemitismo, emigrou para a Inglaterra em 1933,
tornando-se professor de história econômica. Publicou em 1944
sua obra mais conhecida, A grande transformação. Três anos de­
pois transferiu-se para a Universidade de Colúmbia, em Nova
York. Em torno de Polanyi formou-se um grupo de antropólogos,
historiadores, sociólogos, arqueólogos e economistas que decidi­
ram estudar os sistemas econômicos a partir das sociedades das
quais fazem parte, desvelando sua historicidade e não seguindo
categorias e modelos pretensamente gerais.
Ao longo desse trabalho, fizeram uma crítica à visão histórica
associada às posições liberais. Tal visão, sinteticamente, diz que a
atividade econômica é a resposta do homem à escassez de meios
disponíveis para satisfazer as suas necessidades; que tal atividade é
racional quando combina da melhor forma possível esses meios
escassos, tendo como referência fins alternativos; que o contexto
CÉSAR BENjAMIN

social mais favorável ao exercício dessa racionalidade econômica é


o mercado, com seu estímulo à divisão do trabalho e à troca; que,
associado ao comércio e ao dinheiro, ele existe desde tempos ime­
moriais e constitui um a tendência natural das sociedades; e que
as práticas e legislações restritivas a essa livre disposição dos bens
são intervenções artificiais que limitam a liberdade e o progresso
do homem.
Para Polanyi, essa formulação contém um a teia de erros. O uso
racional dos meios disponíveis não caracteriza a economia, mas a
ação hum ana em geral. Está presente “quando um general dispõe
suas tropas para a batalha, quando um jogador de xadrez sacrifica
um peão [...] ou quando um a dona de casa planeja as compras da
semana”. Portanto, é necessário escapar dessa definição meram en­
te formal — etnocêntrica e politicamente orientada, pois cons­
truída para fazer a apologia do mercado — e buscar uma “defini­
ção substantiva” de economia, que ressalte a interação do hom em
com seus meios natural e social, tendo em vista produzir os bens
de que necessita para viver. Assim entendida, a atividade econômi­
ca, inerente a todas as sociedades, pode assumir inúmeras formas
que não obedecem a um a só racionalidade nem necessariamente
decorrem de escassez ou da existência de fins alternativos.
Esse processo, é claro, só adquire unidade e estabilidade quan­
do se institucionaliza. Além disso, a interdependência das diferen­
tes atividades em um mesmo contexto social exige que existam
mecanismos de integração. Polanyi m ostra que três deles predo­
minaram ao longo da história: a reciprocidade, a redistribuição e
a troca. No prim eiro caso, a atividade econômica está embutida
no sistema de parentesco ou em instituições afins que relacionam
subgrupos simétricos. No segundo, parte dos recursos é recolhida
e redistribuída conforme o costume, a lei ou um a decisão central
ad hoc, o que indica a existência de uma ordem política estável. No
terceiro há um m ovim ento bidirecional de bens, ou de bens e
moeda, entre pessoas movidas pelo próprio interesse; sua institui­
ção mais característica é o comércio.

8
NOTA DA EDIÇÃO BRASILEIRA

“Onde se via comércio, presumia-se a existência de mercados;


onde se via dinheiro, presumia-se o comércio e, por conseguinte,
os mercados.” É um a cadeia de equívocos. Mercados locais — con­
siderados como lugares de encontro de compradores e vendedores
— existem há milhares de anos, bem como comércio e dinheiro.
Mas o sistema de oferta-demanda-preço, ou seja, o que chamamos
“mercado” em sentido moderno, só existe e passa a desempenhar
o papel de regulador da atividade econômica em tempos muito
recentes. Até então, as equivalências entre diferentes bens eram
estabelecidas pela tradição ou pela autoridade. A estabilidade, e
não a flutuação, era a norm a, e as atuais funções da moeda — pa­
drão de valor, meio de pagamento e reserva de riqueza — não es­
tavam unificadas nos mesmos objetos.
A produção e a distribuição de bens materiais sempre existi­
ram enraizadas em relações sociais de natureza não econômica,
como, por exemplo, as relações de parentesco. A ruptura só ocor­
reu no m undo moderno, quando os elementos mercantis em ex­
pansão se combinaram e tragaram para dentro de si a força de
trabalho e a terra — ou seja, o hom em e a natureza — , fato iné­
dito na história. A sociedade e seu ambiente tornaram -se aces­
sórios do mercado, agora um mecanismo autônomo. “Em vez de
a economia estar enraizada nas relações sociais”, como sempre
ocorrera, “as relações sociais passaram a se enraizar no sistema
econômico.”
A universalização do mercado não introduz apenas um a dife­
rença de grau em relação às situações anteriores. Trata-se de um a
nova sociedade. Desfeitos os laços de comunidade, o que m antém
a atividade econômica em funcionamento é o medo ‘da fome, en­
tre os que se apresentam para trabalhar, e a atração pelo lucro,
entre os que comandam o trabalho. Tal organização social, inédita,
não resultou de um processo natural, mas de um a pesada inter­
venção de poderes privados e estatais, que cobrou alto custo. As
tentativas de im por limites e restrições a esse “m oinho satânico”
foram um a autodefesa realista e legítima das sociedades.
CÉSAR BENJAMIN

Essa nova sociedade começou a se form ar na Europa no século


XVIII e desabrochou no século XIX. No ápice, organizou-se em
torno de quatro pilares: o mercado autorregulado, o padrão-ouro,
o Estado liberal e o balanço de poder entre as potências europeias.
Foi um curto período histórico. Desde o começo da década de
1920, Polanyi percebeu que assistia ao final dessa era, pois todos
esses pilares estavam ruindo. Em consequência, “a ideia de liber­
dade degenerou em uma pura e simples defesa da livre empresa, a
qual foi reduzida a um estado de ficção pela dura realidade dos
trustes gigantes e do poder dos monopólios”.
Polanyi manteve-se fiel às convicções socialistas que adquiriu
na juventude, defendendo a superioridade social e moral de uma
economia com planejamento e orientada pela demanda social, em
uma democracia ampliada, de modo a reinserir a economia, har-
monicamente, nas demais instituições sociais. Suas idéias estão
magnificamente resumidas no texto que abre este volume, “A teo­
ria institucional de Karl Polanyi: a sociedade de mercado e sua
economia ‘desenraizada’”, de Michele Cangiani.
Desvinculada de correntes políticas organizadas, a obra de Po­
lanyi vem despertando crescente interesse, graças, exclusivamente,
à força intrínseca das idéias que apresenta. Parte delas, bem como
dos resultados das suas extensas pesquisas empíricas, está nos en­
saios selecionados para este volume, que transitam pelas fronteiras
da economia, da história, da antropologia e da sociologia. Os dez
primeiros capítulos correspondem à tradução da prim eira parte
de The Livelihood o f M an, organizado por H arry H. Pearson de­
pois da m orte do autor, e a parte final do livro, como o título indi­
ca, traz “ensaios correlatos”, em que os mesmos temas são reapre-
sentados de m aneira m ais detalhada. O segundo volum e de
ensaios de Polanyi, em preparação, trará seus artigos mais relevan­
tes sobre os debates do século XX.
A publicação destes textos, inéditos em português, não teria
sido possível sem a preciosa ajuda de Kari Polanyi Levitt, filha do
mestre e continuadora de seu labor intelectual.
A teoria institucional de Karl Polanyi:
a sociedade de mercado
e sua economia “desenraizada”
Michele Cangiani*

As análises de Karl Polanyi sobre a ascensão, a queda e a “transfor­


mação” da “civilização oitocentista” e, num nível inferior de abs­
tração, dos eventos políticos e econômicos atuais1 são significati­
vas no contexto mais geral de sua teoria e de sua filosofia política.
Este texto procurará esclarecer a abordagem teórica de Polanyi,
cujos significado e importância continuam a ser objeto de debate
entre interpretações divergentes.
Polanyi interessa-se por um a teoria dos traços gerais da socieda­
de capitalista moderna que a acompanham ao longo de toda a sua
história, continuam presentes e a distinguem de qualquer outra so­
ciedade. Essa postura o üga à grande tradição do pensamento social
europeu da segunda metade do século XIX e do início do século XX.
Polanyi refere-se explicitamente, por exemplo, a Karl Bücher, Henry
Sumner Maine, Bronislaw Malinowski, Karl Marx, Ferdinand Tõn-
nies e Max Weber. Daniel Fusfeld (1977) inclui Polanyi entre esses e
outros estudiosos — em primeiro lugar, os institucionalistas norte-
-americanos2— que tentaram construir uma teoria comparada dos
sistemas econômicos e da mudança institucional. A estrutura insti-

* Professor de sociologia econômica na Università Ca’Foscari, Veneza. Título original:


“Karl PolanyTs Institutional Theory: Market Society and Its ‘Disembedded’ Economy”,
Journal ofEconomic Issues, 45, n° 1:177-198. Publicado aqui com a permissão de M. E.
Sharpe, Inc.
1 Ver seus 250 artigos para D er Õsterreichische Volkswirt (1924-1938), parcialmente re­
publicados em Polanyi 2002 e 2003.
2 Joseph Dorfman (1970) ilustra a ligação entre o pensamento econômico e social euro­
peu e o norte-americano nas últimas décadas do século XIX e dali em diante, e, em
particular, o vínculo entre a “escola histórica” alemã e Thorstein Veblen. A “conver­
gência” entre Polanyi e o institucionalismo norte-americano é destacada por Walter
Neale (1990).

11
MICHELE CANGIANI

tucional do capitalismo moderno, na opinião de Fusfeld, não pode


deixar de ser um a questão central nessa matéria.
O problema, porém, é que o institucionalismo tem um a histó­
ria longa e complexa e se divide em tendências variadas e até con­
trastantes. Recentemente, por exemplo, Rick Tilman (2008) opôs
a visão vebleniana radical-“norm ativa”, que ele compartilha, às
tendências neoinstitucionais. A “geração p ó s-1939” de institu-
cionalistas já fora dividida em quatro grupos por Allan Gruchy
(1982): os institucionalistas “da corrente dom inante”, os “gerais”,
os “radicais” e os “aplicados”. M inha exposição da teoria e do m é­
todo de Polanyi pressupõe sua afinidade com o grupo “da corren­
te dominante”, que inclui estudiosos como John K. Galbraith, Karl
W. Kapp, Adolf Lõwe, Gunnar Myrdal, François Perroux e J. Ron
Stanfield, mas também com o grupo “radical”, caracterizado pelo
interesse na teoria marxista. Na opinião de Gruchy, de fato, “há
muito em comum entre a economia institucional marxista e a da
corrente dominante, sobretudo em sua crítica da economia con­
vencional e sua análise do funcionamento do sistema capitalista”
(p. 235).
Desde 1982, quando foi publicado o ensaio de Gruchy, outros
desdobram entos das tendências “neoinstitucionais” deram o ri­
gem a brilhantes análises dos processos econômicos. Tanto essa
abordagem neoinstitucional quanto a sociologia econômica vão
além das categorias e deduções abstratas da economia neoclássica;
ambas consideram as escolhas e relações econômicas fenômenos
complexos, condicionados por fatores culturais, sociológicos, p o ­
líticos e psicológicos. Como o term o “enraizada” tem sido cada
vez mais usado para conotar a realidade econômica nesse sentido,
supôs-se, erroneamente, um a correspondência com a distinção de
Polanyi entre enraizado e desenraizado, que só faz sentido em sua
ampla análise comparativa dos sistemas econômicos. Esse mal-
-entendido tende a obscurecer suas principais realizações teóricas
e metodológicas. Na verdade, como procurarei mostrar, há uma
lacuna entre as formulações recentes da economia neoinstitucio-

12
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

nal e sociológica e a abordagem que Polanyi compartilha com a


economia institucional mais antiga, radical e da corrente dom i­
nante — que Gruchy (1947) chama de “economia holística”.

Análise comparativa de sistem as econômicos


Na atual sociologia econômica, organização social comumente sig­
nifica o conjunto de instituições sociais, restrições políticas e ou­
tras circunstâncias que constituem o contexto do comportamento
econômico individual.3 Assim, este último tende a ser concebido
como tal e, grosso modo, de acordo com a definição neoclássica
form al A teoria de Polanyi, ao contrário, concerne a sistemas eco­
nômicos e à atividade econômica, em si mesma, como social e
historicamente caracterizada. Nesse sentido, ele fala da organi­
zação social (ou “integração”) da economia, concebida como um
“processo estabelecido”. A pergunta que ele form ula é: de que
m odo a atividade econômica individual é valiosa e significativa,
ou, a rigor, definida e possível, num dado sistema social? E, inver­
samente, como podem os sistemas sociais reproduzir-se mediante
a reprodução de um a divisão do trabalho coerente e duradoura?
Diversas formas de organização social da economia são possí­
veis. Uma delas, o sistema de mercado, caracteriza-se pelo fato de
que, tornando-se a troca a “form a de integração” prevalente, o
mercado se transform a na instituição específica pela qual a econo­
mia se organiza socialmente.
A oposição enraizada/desenraizada, no tocante à economia em
sua relação com toda a sociedade, é significativa para Polanyi nes­
se nível conceituai sumamente abstrato, no qual a organização da
sociedade de mercado é definida em seus traços gerais e em com­
paração com outras formas sociais.
O trabalho e a terra — os “seres hum anos” e “o meio natural”
em que existe a sociedade — não são “produzidos para venda”;

3 A organização social da economia é, por exemplo, o subtítulo de um livro influente:


Structures o f Capital (Zukin e DiMaggio, 1990).

13
MICHELE CANGIANI

não são mercadorias, escreve Polanyi (2001, p. 75). Entretanto, na


sociedade de mercado, foram “organizados em mercados”, algo
que nunca havia acontecido. Dada a “importância vital” da ativi­
dade econômica, observa Polanyi, seu controle pelo mercado “sig­
nifica nada menos que a direção da sociedade como um acessório
do mercado. Em vez de a economia estar enraizada nas relações
sociais, as relações sociais estão enraizadas no sistema econômico”
(p. 60). A ruptura — “um a ruptura violenta” (Polanyi, 1977, p. 10)
— com as sociedades pré-modernas aparece como uma verdadei­
ra inversão. A maneira como a economia se estabelece a torna au­
tônoma, e sua autonomia lhe confere um a posição dominante na
sociedade. Assim, “a agregação hum ana emergente foi um a socie­
dade ‘econômica’, num grau do qual, anteriormente, nunca h o u ­
vera sequer um a aproximação” (Polanyi, 1947, p. 111).
Esse tipo de sistema social originou-se, em seus prim órdios e
em áreas limitadas, durante a Revolução Industrial. Só naquele
momento o mercado, como sistema, como instituição integradora
— que, na visão de Polanyi, é inseparável do capitalismo e se de­
senvolve com ele — , tornou-se a forma social geral da organização
econômica. Weber afirma, nesse sentido, que a satisfação das “ne­
cessidades cotidianas” pelos métodos capitalistas é típica apenas
do m undo ocidental, e somente a partir de meados do século XIX
tornou-se tão predom inante a ponto de caracterizar “um a era
como um todo” (Weber, 1961, p. 207).
Isso faz diferença do ponto de vista da análise institucional dos
sistemas sociais. Essa diferença permanece invisível para os histo­
riadores — mas tam bém para os economistas e sociólogos — da
longue durée, que adotam um m étodo “formalista”, baseado no
individualismo e em generalizações econômicas não institucio­
nais. Para eles, o estabelecimento de um sistema de mercado não
representa um a diferença que envolva a organização social como
um todo, mas apenas uma diferença no grau de expansão do m er­
cado como fenômeno universal. Isso explica, p or exemplo, por
que Fernand Braudel refutou o conceito polanyiano do sistema de
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

mercado, considerando-o decorrente de “um a predileção teológi­


ca por definições”, e não da evidência histórica (Braudel, 1979,
p. 195-196). Também Douglass N orth explicita sua oposição ao
método de Polanyi. No método da “nova história econômica” pro­
posto por North, não só o comportamento econômico é dotado
de norm as e motivações próprias invariáveis, como tam bém as
estruturas e mudanças institucionais pré-modernas se explicam,
basicamente, pela referência à sua função de perm itir menores
custos de transação e melhores oportunidades de desenvolvimen­
to econômico, na ausência do mercado e de “direitos de proprie­
dade bem definidos e implementados” (North, 1977, p. 711), o
que ele presume ser a solução mais eficiente.
Na realidade, Polanyi justifica sua explicação histórico-compa-
rativa não por princípios “teológicos”, mas por um a análise de fa ­
tos, no sentido vebleniano de um estudo empírico dos aspectos
institucionais da economia como processo social.
Os mercados locais, o comércio exterior e a moeda existiram
em quase todas as sociedades. Mas o sistema de mercado, como
forma de organização social, é bem diferente disso e coincide com
o capitalismo. Quando o uso dos recursos humanos e naturais —
sustenta Polanyi — foi organizado em “unidades industriais, sob
o comando de pessoas privadas, empenhadas sobretudo em com­
prar e vender para obter lucro”, “a ficção da mercadoria, aplicada
ao trabalho e à terra, transform ou a própria substância da socie­
dade hum ana” (Polanyi, 1977, p. 9). A peculiaridade da sociedade
m oderna é ressaltada de maneira semelhante por Marx: a grande
m aioria dos bens transform a-se em m ercadorias, escreve ele
([1867] 1979, p. 184), somente em um “m odo de produção abso­
lutamente específico, o capitalista”, que se caracteriza como “uma
era dos processos sociais de produção” pelo fato de que “o p ro ­
prietário dos meios de produção e subsistência encontra o traba­
lhador livre vendendo sua força de trabalho no mercado”.
Na opinião de Polanyi, a análise institucional é adequada para
estudar os sistemas econômicos do passado e a economia de mer-
MICHELE CANGIANI

cado, por ser capaz de m ostrar as diferenças específicas que distin­


guem os sistemas entre si e, em particular, o sistema de mercado
de qualquer outro. Isso seria impossível com a ferramenta da “de­
finição catalática”, que generaliza o significado e a união que ca­
racterizam o comércio, o dinheiro e o mercado, quando eles se
tornam elementos do sistema de mercado: anteriorm ente, eles
costumavam ter origens separadas e funções e sentidos diferentes,
conforme a maneira específica como se estabelecem.
Tais propostas teóricas e políticas implicam um a crítica tão
profunda da economia, que chega a exigir um a definição diferente
de “economia”. “O significado substantivo do econômico”, escreve
Polanyi (1957, p. 243), “decorre de a subsistência do hom em de­
pender da natureza e de seus semelhantes. Refere-se ao intercâm­
bio com seu meio natural e social, na medida em que isso resulta
em lhe prover os meios de satisfazer a necessidade material.” Uma
definição similar pode ser encontrada em M arx ([1953] 1974,
p. 9): “Todo processo de produção é um a apropriação da natureza
pelo indivíduo, dentro e por interm édio de determinada forma
social [ Gesellschaftsform] V e b l e n ([1898] 1994, p. 75), p o r sua
vez, fala dos “métodos da comunidade para tirar proveito das coi­
sas materiais”.
Polanyi opõe sua definição “substantiva” à definição “formal”,
pela qual “a ação econômica — ou, mais precisamente, a ação eco-
nomizadora, essência da racionalidade — é vista como um a for­
ma de destinar o tempo e a energia para que se atinja um máximo
de objetivos” (Polanyi, Arensberg e Pearson, 1957, p. 239). A abor­
dagem formalista postula “um tipo de ação [...] como ação eco­
nômica sui generis” (p. 240); com isso se estabelece um vínculo
imediato entre a questão geral da econom ia como relação ho-
mem-natureza e um a atitude tida como tipicamente econômica e
pertinente aos indivíduos humanos em geral, mas que, na reali­
dade, é peculiar a um dado arranjo institucional: a sociedade de
mercado. Polanyi chama isso de “falácia economicista”, o “erro ló­
gico” pelo qual “um fenômeno amplo e genérico [é] considerado,

16
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

de algum modo, idêntico a um a espécie com que estamos familia­


rizados” (Polanyi, 1977, p. 5-6). Essa falsa generalização resulta em
reprim ir a questão que é (ou deveria ser) o objeto prim ário da
análise institucional: a questão da organização sócio-histórica de
cada sistema econômico, considerado como um todo.

Uma sociedade "econômica”


O conceito marxista de organização social [Gesellschaftsform] da
economia pode ser considerado a origem do método institucional.
Marx o elabora ao analisar a “forma do valor”, no prim eiro capí­
tulo de O capital, no qual “o m undo das mercadorias” é “decifra­
do”, ou seja, explicado como um a organização social específica.
O desenvolvimento teórico ulterior de O capital e a crítica das teo­
rias econômicas fundamentam-se nessa análise. Para que o m odo
de produção capitalista seja plenamente definido e para que a crí­
tica seja implementada, a teoria das “formas” da moeda e do capi­
tal também é necessária. Todavia, é no nível inicial e mais abstrato
da análise, o da “circulação simples” das mercadorias, que o novo
paradigma “institucional” é adotado e explicitamente enunciado;
ali, Marx dem onstra a natureza “puram ente social” do valor de
troca, num a sociedade em que, na verdade, “a relação dos seres
humanos entre si como proprietários das mercadorias é a relação
social dominante” (Marx, 1955, p. 273-274). A análise da “forma
do valor” é o ponto de partida da explicação do m odo de produ­
ção capitalista como “um tipo específico de produção social”
(Marx, [1867] 1979, p. 95, nota 32; ver tam bém 1955), ou, nas
palavras de Polanyi, como uma organização social historicamente
dada, na qual os mercados formadores de preços são a instituição
dominante, ou, a rigor, típica.
Na sociedade de mercadorias, o “vínculo social” que liga o tra­
balho de diferentes pessoas — isto é, o reconhecimento social de
seu trabalho e o valor de seus produtos — consiste, de acordo com
Marx, no trabalho hum ano em geral (“trabalho abstrato”). Essa é
um a característica peculiar da estrutura institucional “cuja subs-
MlCHELE CANGIANI

tância é o ‘elo do dinheiro’”, no dizer de Polanyi.4 Marx e Polanyi


contrastam esse tipo de sociedade com os precedentes, nos quais
o reconhecimento e o valor sociais de qualquer ato de trabalho
não eram determinados por seu caráter abstrato, mas por serem
concretamente predefinidos nas culturas, que estipulavam regu­
larmente e em detalhe o que tinha de ser feito, p or quem, como e
p or quê.
Essa análise, que perm ite distinguir o capitalismo e todas as
sociedades precedentes, no nível mais geral de abstração, constitui
a proposição fundamental da “crítica” marxista; tem de ser m anti­
da como o alicerce indispensável da análise institucional e compa­
rativa dos sistemas econômicos e sociais. No nível dessa distinção,
e com referência a ela, deve-se encontrar o sentido da distinção de
Polanyi entre todos os sistemas anteriores, nos quais a economia
estava “enraizada” em relações sociais, políticas e religiosas, e o
sistema de mercado, no qual ela fica “desenraizada”. Na sociedade
capitalista de mercado, a economia é diferenciada e pode ser defi­
nida como tal porque tende a ser autônoma. Assim, como observa
Polanyi, dada a sua importância para a sobrevivência dos indiví­
duos e da sociedade, ela compõe a estrutura organizacional da
sociedade. Nas sociedades anteriores, em contraste, a economia
era um meio de existência e reprodução de um a organização so­
cial determ inada de outra maneira. A estrutura econômica não
era basicamente autônom a e, portanto, dominante; a função eco­
nôm ica era desem penhada por outras estruturas dom inantes,
como o parentesco, a hierarquia política ou a tradição religiosa
(ver Godelier, 1978; Neale, 1964). Por isso, como diria Polanyi, a
economia “m udou de lugar” na sociedade.
O paralelo entre a teoria de Polanyi e a análise m arxista do
“m undo das mercadorias” pode ser estendido a Veblen, para quem

4 “Liberale Sozialreformer in England”, D er Osterreichische Volkswirt, 25 de fevereiro de


1928, agora em Polanyi, 2002, p. 96. Polanyi refere-se aí à troca salários/força de traba­
lho e a Thomas Carlyle, que usa a expressão “elo do dinheiro” em seu Cartismo (1840).

18
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

o “sistema de preços” tem de ser entendido como um a situação


social, que se caracteriza como um a “situação de negócios”, com
suas “exigências pecuniárias” (Veblen, [1901] 1994, p. 286; [1909]
1994, p. 245). Similarmente, na visão de Polanyi, o que importa,
no tocante ao “mercado formador de preços”, não é a formação de
preços como tal, dentro de estruturas de mercado mais ou menos
competitivas, mas o fato de que um sistema social específico é de­
finido dessa maneira: um m odo específico de organizar as ativida­
des econômicas e toda a sociedade.
É num a dada forma de sociedade, num a dada situação institu­
cional, que o comportamento econômico do indivíduo adquire a
forma de um a escolha racional, do economizar, do almejar a maxi-
mização do resultado, entendido em termos monetários quantita­
tivos. Com efeito, o dinheiro torna-se o meio da vida do dia a dia e
o meio das relações sociais. Como medida de quão bem-sucedida
é uma atividade econômica, ele se transform a no objetivo dessa
atividade. Por um lado, torna-se possível empregá-lo para adquirir
mais dinheiro, como observa Polanyi, comprando “o uso do traba­
lho” no mercado de trabalho. Por outro lado, o sustento e a segu­
rança dos indivíduos não mais são garantidos por laços comuni­
tários; suas obrigações recíprocas e suas necessidades já não são
definidas tradicionalmente, por meio de instituições de parentesco,
religiosas e políticas. Por isso todos devem “economizar” e “maxi­
mizar”, seja seu objetivo aumentar o capital, seja ganhar a vida.
Quando a atividade econômica é orientada para o lucro m one­
tário, ela segue normas próprias, sua própria “racionalidade”; tor­
na-se diferenciada e relativamente autônoma em relação a outras
facetas da vida social, com isso conduzindo ao processo de “ra­
cionalização” e diferenciação das funções sociais que é típico da
modernidade, na visão de Weber. Polanyi (2001, p. 178) enfatiza a
ligação entre a existência de “um a esfera econômica separada” e
“o princípio do ganho e do lucro como força organizadora da so­
ciedade”. Onde prevalecem as instituições capitalistas e de mercado,
afirma Veblen ([1901] 1994, p. 286) similarmente, as atividades

19
MICHELE CANGIANI

econômicas são tipicamente “pecuniárias”, orientadas para obter


lucro pelas transações de mercado e organizadas como “negócios”;
essas conotações, prossegue, são tratadas pela economia convencio­
nal “como aspectos acidentais do processo de produção e consumo
sociais [...], em vez de serem abordadas como o fator controlador
em torno do qual gira o processo econômico moderno”.
A autonomia da economia também se revela — e se reproduz
— por meio das motivações do comportamento econômico indi­
vidual: “o medo da fome no trabalhador e a atração do lucro no
empregador manteriam o vasto mecanismo em funcionamento”
(Polanyi, 1977, p. 11). Essas motivações, observa Polanyi, são con­
sideradas as verdadeiras motivações econômicas em geral, ao passo
que, na verdade, são determinadas por um a situação institucional
específica, na qual a economia é “economicamente” organizada. Há
outra referência a Weber, que diz que a fome e o lucro tornam-se
“o incentivo decisivo da conduta econômica” (Weber, 1978, p. 110).
Polanyi insiste no fato de que o trabalho foi separado “de ou­
tras atividades da vida” para ser submetido às “leis do mercado”;
assim, “todas as formas orgânicas de vida” foram aniquiladas e
substituídas “por um tipo diferente de organização, um tipo ato-
mista e individualista” (Polanyi, 2001, p. 171). A instituição do
mercado de trabalho implica “o despedaçamento das estruturas
sociais, a fim de extrair delas o elemento do trabalho” (p. 172) e
usá-lo como um fator em um a atividade econômica desenraizada.
Marx escreve que o trabalho assalariado pressupõe “a separação
entre o trabalho livre e as condições objetivas de sua realização”;
“postular o indivíduo como trabalhador”, continua, “dessa forma
crua [...], é um produto da história” (Marx, [1953] 1974, p. 375).
Anteriormente, ao contrário, o trabalhador tinha “um a vida obje­
tiva, independentem ente de trabalhar”, no sentido de que tanto
seu sustento quanto sua participação na produção social lhe eram
assegurados de antemão por sua cultura e pela organização social,
da qual ele era membro. Os indivíduos podiam dispor de meios de
produção e efetivamente trabalhar “como membros de um a co-

20
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

munidade” (p. 385). Ao contrário, na sociedade moderna, a inte­


gração social das pessoas depende de sua atividade produtiva, que
consiste em sua capacidade de fornecer um a mercadoria ao m er­
cado — seja ela o produto de seu trabalho, seja o uso de sua força
de trabalho. Claramente, a oposição enraizado/desenraizado, no
sentido que lhe confere Polanyi, pode ser originalmente encon­
trada em Marx.

Continuidade e transform ações na sociedade de mercado


Dois níveis de abstração conceituai entrelaçam-se em A grande
transformação (Polanyi, [1944] 2001). No mais geral deles, no qual
é relevante a comparação abrangente com as sociedades primitivas
e arcaicas, a questão é a sociedade moderna e, em particular, sua
forma capitalista de mercado, como vimos nas seções anteriores.
Além disso, é nesse nível que os princípios básicos da economia
podem ser questionados. Um nível menos geral concerne à trans­
formação da sociedade capitalista; nele, o conceito de sistema de
mercado deve ser compreendido em seu sentido mais estrito, deno­
tando o “mecanismo institucional” do capitalismo liberal, que Po­
lanyi também chama de capitalismo “oitocentista” ou “vitoriano”.
Na prim eira página de seu livro, Polanyi aponta as quatro ins­
tituições fundamentais desse “mecanismo”: o “sistema de equilí­
brio de poder” entre as nações europeias, “o padrão-ouro interna­
cional”, “o mercado autorregulador” e “o Estado liberal” (p. 3).
A crise dessas instituições, iniciada nas últimas décadas do sé­
culo XIX e que culm inou na Primeira Guerra Mundial, levou ao
fim o capitalismo liberal. O “mercado autorregulador” — “fonte e
matriz do sistema” (p. 3), pelo menos como utopia normativa —
foi demolido pela concentração capitalista e pela representação
organizada do trabalho, pela inevitável defesa social contra o m e­
canismo do mercado, pelo protecionismo e pelo imperialismo.
A guerra foi o resultado do fim do “sistema de equilíbrio de po­
der”. A tentativa de restabelecer um padrão-ouro reformado, de­
pois da guerra, foi ilusória; na verdade, preparou o terreno para a
MICHELE CANGIANI

grande crise da década de 1930. O destino do “Estado liberal” e,


em particular, da separação institucional formal entre as esferas
econômica e política ligou-se ao do mercado autorregulador. Ade­
mais, a democracia liberal, estrutura constitucional típica do Esta­
do liberal, não sobreviveu à ampliação do sufrágio conquistada
pelo movimento dos trabalhadores; o medo de um “governo p o ­
pular” despertou o “vírus fascista”.5
A crise do capitalismo liberal deixou claro que a economia já
não podia funcionar sem um controle consciente. O próprio de­
senvolvimento tecnológico implicou a necessidade de um a orga­
nização nova e deliberada, como sustenta Veblen. Muitos projetos
foram propostos, desde a “nova economia” de Walther Rathenau,
planejada por industriais esclarecidos, até a “economia natural” de
Otto Neurath, na qual as transações de mercado e o próprio di­
nheiro deveríam ser substituídos por um a gestão social direta dos
recursos naturais, técnicos e sociais. Os economistas institucionais
norte-americanos defenderam a “engenharia social”. Weber con­
fiou num a alimentação recíproca, constante e fecunda entre o co­
nhecimento sociológico e as escolhas políticas. Em sua opinião, é
típico da sociedade m oderna que os problemas tenham um “cará­
ter social político”, no sentido de que sua solução não é dada pela
tradição nem é meramente técnica, sendo sempre necessário le­
vantar outros problemas e formular repetidamente a questão dos
fins (Weber, 1968, p. 153).
Polanyi inclinava-se para tendências socialistas derivadas da
ideia da “democracia industrial”, como no socialismo das guildas,
na Inglaterra, e no “socialismo funcional” de Otto Bauer, na Áus­
tria. Algumas semelhanças interessantes, principalmente acerca da
democracia socialista e do desenvolvimento de um a sociedade cor­
porativa, após a crise do capitalismo liberal, tam bém podem ser
encontradas entre Polanyi e Antonio Gramsci (ver Burawoy, 2003).

5 “O vírus fascista” é o título de dois manuscritos redigidos por Polanyi, presumivelmen­


te, no fim da década de 1930 (Karl Polanyi Archive, p. 18-28). Traduzidos para o ale­
mão, eles foram publicados em Polanyi, 2005.
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

Em seu artigo de 1922 sobre a organização de um a economia


socialista não centralizada, Polanyi escreveu que o m odo de pro­
dução capitalista não pode, “por natureza”, ser guiado para a “uti­
lidade social”; com efeito, falta-lhe “o órgão sensorial” para perce­
ber as necessidades sociais. Não só isso, mas a atividade produtiva
tem um “efeito retroativo na com unidade”. As necessidades in ­
dividuais podem ser corrompidas ou artificialmente criadas, en­
quanto indivíduos e organizações parecem sempre carentes de
meios para buscar fins culturais e morais mais elevados, como a
educação ou a solidariedade internacional.6 Nem é preciso dizer
que o questionamento da eficiência social do sistema de mercado
é um traço permanente na visão institucional, a começar pela aná­
lise vebleniana da divergência entre “lucratividade” e “utilidade
para a sociedade em geral”. Essa divergência não foi um a peculia­
ridade do capitalismo liberal oitocentista; na verdade, continuou
a se ampliar, até nossa época de m aior autonomia do sistema eco­
nômico, em consequência do avanço tecnológico, do crescimento
drástico e da m udança qualitativa dos negócios financeiros, e ain­
da das estratégias mundiais de empresas gigantescas, que influen­
ciam não apenas os mercados, mas também os governos e as orga­
nizações internacionais.
Na opinião de Polanyi, a eficiência social de qualquer organiza­
ção — um a fábrica ou um partido, ou o sistema econômico como
um todo — é proporcional ao seu grau de “democracia viva” (Po­
lanyi, [1925] 2005, p. 124). Na atualidade, temos de adm itir que
não apenas a democracia não se tornou “substantiva”, com um a
participação generalizada, esclarecida e responsável dos cidadãos
nas escolhas públicas, como até as instituições democráticas for-

6 Polanyi, [1922] 2005, p. 83-84. Pode-se encontrar uma crítica similar ao funcionamen­
to do mercado, quando predominam o “cálculo do capital” e a meta da “lucratividade”,
em Economia e sociedade, de Weber, publicado no mesmo ano de 1922 (ver, em parti­
cular, Weber, 1978, p. 99). Weber e Polanyi basearam seus conhecimentos econômicos
nas obras de Carl Menger e Friedrich Wieser, nas quais já é possível encontrar essa
crítica (ver Cangiani, 2010).

23
MICHELE CANGIANI

mais tendem a ser contornadas, se não solapadas, pela pressão


do poder empresarial e das lideranças populistas. Colin Crouch
(2000) cham ou de “pós-democracia” esse modelo “minimalista”
de democracia.
Na época em que Polanyi escreveu A grande transformação, a
situação política e cultural era diferente da que ele tinha vivencia-
do na Viena Vermelha do após-guerra. A crise institucional não
dera origem a um a economia “socializada”, mas ao fascismo e à
guerra. O objetivo de Polanyi, ao escrever o livro, foi explicar a
origem desses resultados pavorosos e tornar a levantar a questão
da política moderna, entendida como a tendência para o controle
democrático dos processos sociais — e do processo econômico,
em primeiro lugar. Desse modo, a liberdade dos indivíduos pode­
ría realizar-se plenamente através de sua responsabilidade política.
Polanyi sempre se manteve fiel a esses ideais, e a continuidade de
seu trabalho teórico está ligada à continuidade de sua filosofia
política. Isso tam bém é claramente demonstrado pelas pesquisas
antropológicas e históricas que ele realizou depois de ser nomeado
para a Universidade Columbia, em 1947. Seu propósito era de­
m onstrar a singularidade e a contingência da sociedade capitalista,
a fim de refutar tanto a economia neoclássica quanto as tentativas
neoliberais de confirmar o sistema de mercado como a única so­
lução para o problema de “como organizar a vida hum ana num a
sociedade de máquinas” (Polanyi, 1947, p. 109).
Essa continuidade não entra em conflito com a capacidade de
Polanyi de analisar de forma realista a m udança econômica e p o­
lítica. Ao contrário. No começo da década de 1920, ele estava cons­
ciente de que o equilíbrio de poder tinha novamente pendido para
as classes dominantes, sob cuja liderança as instituições econômi­
cas e políticas seriam reformadas. Por exemplo, com respeito a
isso, ele compreendeu prontam ente a im portância das reformas
propostas no relatório de 1928 da Liberal Industrial Enquiry, inti­
tulado Britairís Industrial Future [O futuro industrial da Grã-Bre­
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

tanha], para o qual John M. Keynes contribuiu.7 Na década de


1930, seus artigos analisaram a transformação empresarial do Rei­
no Unido e dos Estados Unidos; as principais questões abordadas
foram o planejamento econômico, a intervenção governamental,
a reorganização da indústria e a nova postura de colaboração nas
relações industriais. O propósito da racionalização industrial en­
volvia o da paz social.8A crise do arranjo institucional do capita­
lismo liberal não podia ser remediada, observou Polanyi; deve­
ríam ser feitas reformas de peso, mas o capitalismo continuou a
levar “sua vida incólume, sob um novo pseudônim o”, “em suas
formas não liberais, isto é, corporativas” (1935, p. 367).
Essa consciência era rara entre os observadores da época. Basta
pensarmos em Joseph Schumpeter, que, apesar de seus interesses
sociológicos e históricos e de suas contribuições para o estudo da
dinâmica econômica, não apreendeu a questão da transformação.
Diferentemente de Polanyi, não entrou na questão das várias es­
truturas institucionais assumidas pela sociedade capitalista, pas­
sando por crises que não eram redutíveis ao efeito de ciclos eco­
nômicos de periodicidade diferente. Mesmo depois da Segunda
Guerra Mundial, Schumpeter expressou o temor de que “o sistema
da iniciativa privada” não fosse capaz de resistir. Em sua opinião,
a decadência do sistema era consequência de intervenções políti­
cas como as medidas de estabilização, a redistribuição da renda, a
regulação dos preços e as medidas antitruste, o controle público
dos mercados de trabalho e monetário, e a criação de empresas
públicas para satisfazer necessidades sociais, além da legislação da
previdência social (Schumpeter, 1950, p. 448-450).
Ao contrário, em bora se mantivesse fiel aos ideais da Viena
Vermelha, Polanyi, diversamente de Schumpeter, sabia que a dis-

7 Ver “Liberale Wirtschaftsreformen in England” e “Liberale Sozialreformen in England”,


Der Õsterreichische Volkswirt, 11 e 25 de fevereiro de 1928, agora reproduzidos em
Polanyi, 2002, p. 90-103.
8 É possível encontrar uma seleção desses artigos nas seções V e VI de Polanyi, 2002.
Sobre os artigos de Polanyi no período entre guerras, ver Cangiani, 1994.
MICHELE CANGIANI

seminação do capitalismo organizado e gerencial e as formas de


intervenção política na economia adotadas pelo New Deal não
estavam destruindo o “sistema da iniciativa privada”. Apenas o
sistema de mercado, no sentido mais estreito do capitalismo com­
petitivo liberal, estava chegando ao fim junto com a democracia
liberal. Polanyi endossou plenamente, por exemplo, a opinião do
ministro da Agricultura, Henry Wallace, de que a política de Roo-
sevelt e até o princípio de que “a indústria é um assunto público”
permitiam ao capitalismo perdurar, reforçar-se e se desenvolver.9
Schumpeter, ao contrário, foi hostil ao New Deal, justamente por
não conseguir compreender a importância que ele tinha.

Os lim ites da democracia


Depois da Segunda Guerra Mundial, iniciou-se um a nova fase do
desenvolvimento capitalista, sob o nome de “liberdade de m er­
cado”, ainda que ela fosse contida pelas reformas efetuadas pelo
governo trabalhista da Inglaterra e por diversos arranjos neocor-
porativos na Europa Ocidental continental. Os Estados Unidos
assumiram conscientemente a liderança dessa tendência renovada
do livre mercado. O New Deal estava esquecido; as políticas inter­
nas e internacionais passaram a ser dominadas pela ideologia do
“universalismo liberal” e pela realidade do “capitalismo universal”
(Polanyi, 1945), que trouxeram consigo consequências não libe­
rais, como o complexo industrial-militar, a Guerra Fria e o macar-
thismo. De fato, o ideal de liberdade, como explicitado por Polanyi
nas últimas páginas de A grande transformação, “degenera num a
mera defesa da livre iniciativa — que é hoje reduzida a um a ficção
pela dura realidade de trustes gigantescos e monopólios principes­
cos” (2001, p. 265).
Num artigo posterior, Polanyi torna a propor sua concepção de
“um a sociedade verdadeiramente democrática”, na qual a econo­

9 “Arbeitsrecht in U.S.A.”, Der õsterreichische Volkswirt, 13 de fevereiro de 1937 (Polanyi,


2002, p. 290).

26
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

mia se organize “com a intervenção planejada dos próprios pro­


dutores e consumidores” (1947, p. 117). Mas ele tem e que pre­
valeça a tendência oposta, em direção a um a sociedade “mais
intimamente adaptada ao sistema econômico”: mais enraizada em
sua própria economia desenraizada. Essa tendência é apoiada, diz
ele, pelos que querem manter o sistema econômico “inalterado”
em seus traços fundamentais — aqueles que “confiam em elites e
aristocracias, no gerencialismo e na empresa”.
A “separação institucional” oitocentista entre as esferas econô­
mica e política term inou num período de crise e “equilíbrio de
poder” entre as classes, que acabou levando, com o fortalecimento
da classe dominante, ao solapamento da democracia, mesmo onde
o fascismo não prevalecia. Polanyi analisa nesse sentido a transfor­
mação da década de 1930 no Reino Unido, num a série de artigos
para Der Õsterreichische Volkswirt,10 nos quais claramente com­
partilha a crítica da esquerda trabalhista aos sindicatos e ao Par­
tido Trabalhista. Considera a linha política seguida por essas or­
ganizações como “democrático-corporativa”: um a boa base para
encontrar a meio caminho os teóricos e políticos burgueses e para
tom ar distância da linha socialista-democrática.
Depois da guerra, as classes trabalhadoras recuperaram algum
poder em muitos países, como observa Crawford B. Macpherson,
mas a sociedade democrático-corporativa pediu ao povo que “re­
nunciasse a qualquer medida mais plena [...] de controle dem o­
crático”. Permitiu-se que interesses de grupos organizados p ro­
curassem “conservar sua fatia do bolo”, mas não “questionar os
métodos da confeitaria” (Macpherson, 1987, p. 52,128). Mais tar­
de, na década de 1970, como em qualquer período de crise sistê­
mica que impede transformações institucionais, tornou a haver
duas alternativas. O prim eiro resultado, diz M acpherson, seria

10 Ver, por exemplo, “Demokratie und Wãhrung in England”, 19 de setembro de 1931;


“Labour und Eisenindustrie”, 25 de agosto de 1934; “Gewerkschaftstagung in Wey-
mouth”, 22 de setembro de 1934 (agora publicados em Polanyi, 2002, p. 120-128,
251-252,253-255).
MICHELE CANGIANI

“um sistema participativo genuinamente democrático”; o segun­


do, um enfraquecimento ainda m aior e até a destruição da de­
mocracia “por um a espécie de Estado corporativo plebiscitário”
(p. 127). De fato, na era neoliberal, os aspectos gerenciais, elitistas
e autoritários do corporativismo substituíram cada vez mais os
aspectos pluralistas, cooperativos e de bem-estar social. Essa era
poderia ser entendida, em termos polanyianos, como um novo
“arranjo institucional” que permite que o sistema de mercado per­
sista em seu sentido mais amplo, à custa de uma deterioração adi­
cional da democracia.11
Uma tese conhecida de Polanyi é que o sistema de mercado foi
politicamente instituído, e que o alcance e a relevância da inter­
venção política cresceram com o capitalismo, assumindo diversas
formas históricas. Mas a democracia é necessariamente limitada;
o simples risco de que possa rom per as restrições impostas por
uma economia desenraizada desencadeia reações mais ou menos
dramáticas — da fuga de capitais ao fascismo, da “desregulamen-
tação” à guerra.
O fracasso da tentativa oitocentista de m anter institucional­
mente separadas as esferas econômica e política não implicou o
fim da tendência da economia a ser autônoma. Na verdade, essa
tendência foi inerente ao sistema de m ercado (em seu sentido
mais amplo) ao longo de sua história. Desde o corporativismo
fascista, ou das reform as corporativas democráticas da década
de 1930 no Reino Unido e nos Estados Unidos, até a democracia
neocorporativa do segundo período pós-guerra na Europa Oci­
dental, até o neoliberalismo e a perspectiva de evolução para um
“capitalismo mafioso — e um sistema político mafioso” (Stiglitz,

11 O livro ReadingKarl Polanyi fo r the Twenty-Pirst Century, organizado por Ayse Bugra
e Kaan Agartan (2007), contém análises esclarecedoras sobre a história recente de
nossa sociedade e, em particular, como escreve Bugra em sua “Introdução”, sobre a
“dinâmica contemporânea” do “processo de mercantilização” (p. 2). Os autores do
livro consideram o conceito de “desenraizamento” uma base importante para suas
investigações.

28
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

2001, p. xv), a economia, inalterada nos aspectos mais gerais de


sua organização, continuou desenraizada. De fato, a sociedade pa­
rece cada vez mais enraizada em sua economia. As elites econômi­
cas revelam-se capazes de condicionar diretamente e até de ocupar
as instituições políticas, bem como de “fabricar o consentimento”.12

Liberdade em uma sociedade complexa


A teoria polanyiana da transformação mostra que a concepção da
economia capitalista de mercado como “desenraizada” pode ser
relevante para se compreender a evolução institucional da socie­
dade de mercado. Esse resultado é possível, precisamente, porque
tal concepção é elaborada no nível mais abstrato, no qual se de­
finem os traços gerais da sociedade de mercado. Nesse nível con­
ceituai, a condição de desenraizamento significa que o sistema
econômico, fundam entado nas instituições do mercado e da pro­
dução capitalista, é “economicamente” organizado. Por conse­
guinte, o sistema econômico tende a ser autorreflexivo, ou seja,
aberto a informações provenientes de seu meio unicamente se p u ­
der reconhecê-las e elaborá-las de acordo com os aspectos mais
gerais de sua própria organização, no intuito de preservá-los.
Também é im portante nos atermos a esse sentido geral da dis­
tinção enraizado/desenraizado porque ele está relacionado com
outras características gerais do desenvolvimento m oderno da so­
ciedade, tais como a racionalização weberiana e o processo pelo
qual os sujeitos sociais tornam-se indivíduos. Além disso, esse sig­
nificado esclarece a peculiaridade do moderno “lugar” da econo­
mia, não só no sentido de ela se tornar autônom a e dominante,
mas também em relação à articulação complexa das diferentes fun­
ções e dinâmicas sociais. Tipicamente, na sociedade m oderna, a
estrutura fundamentalmente “econômica” e a dinâmica da organi-

12 A referência é a Edward S. Herman e Noam Chomsky (1988). Chomsky continuou a


analisar a fabricação da opinião pública como um aspecto fundamental da democra­
cia contemporânea, que é cada vez mais condicionada pelos meios de comunicação
de massa e por profissionais de relações públicas.

29
MICHELE CANGIANI

zação social não determinam todos os aspectos da vida social e sua


evolução, mas os restringem, deixando-lhes um a liberdade relativa.
Na teoria weberiana da sociedade capitalista moderna, o p ro ­
cesso de “racionalização” e diferenciação dos diversos aspectos e
funções sociais consiste, primordialmente, na racionalização e di­
ferenciação da economia. Esse processo é a base do m oderno p ro ­
blema de dar “sentido” a um m undo “desencantado”. Weber, assim
como Richard Tawney, sem dúvida influenciou Polanyi, que, por
sua vez, discorre sobre a necessidade m oderna de levantar explici­
tamente o problema da economia e da própria sociedade. É o que
ele chama de “a descoberta da sociedade”. Entretanto, num a socie­
dade que viria a ser caracterizada por um a economia desenraiza-
da, essa descoberta assumiu sobretudo a forma da descoberta da
“sociedade econômica”, a qual, paradoxalmente, parecia “sujeita
a leis que não eram leis hum anas” (Polanyi, 2001, p. 131). Uma
abordagem não fetichista daria à hum anidade, ao contrário, a
oportunidade de lutar pela “realização [da liberdade] na socie­
dade”. Essa realização tornou-se possível como resultado da vida
num a “sociedade [industrial] complexa” que levou à humanidade
o “conhecimento da sociedade” (p. 267-268)13 e, com ele, o reco­
nhecimento da “realidade da sociedade”. Isso significa que, por um
lado, os com portam entos e atitudes de cada indivíduo exercem
influência na sociedade, e, por outro, que a organização social
constitui um a restrição inevitável, em bora mutável, aos indiví­
duos, e, ao mesmo tempo, o meio de eles realizarem suas poten­
cialidades, inclusive a capacidade de participar, como indivíduos
livres, de escolhas concernentes ao funcionamento e à organização
de sua sociedade (cf. o “indivíduo social” de Marx).

13 Ver também Polanyi, [1927] 2005. Polanyi estudou a teoria marxista do fetichismo e
a interpretou, corretamente, como uma crítica à incapacidade de ver a forma sócio-
-histórica, a “relação entre homem e homem”, por trás da troca de mercadorias e do
uso dos meios de produção no processo produtivo. Ver o manuscrito “Christianity
and Economic Life”, s.d. (provavelmente, 1937), Karl Polanyi Archive, p. 19-22 (pu­
blicado em alemão em Polanyi, 2005, p. 252-264, e em francês em Polanyi, 2008,
p. 447-456).

30
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

Neste ponto podemos captar melhor o sentido da insistência


de Polanyi na “ruptura” radical representada pela m oderna “socie­
dade de mercado”. Na opinião dele, a irreversibilidade desse limiar
histórico implica que a economia deveria voltar a ser controlada
pela sociedade, mas num a forma moderna: não dentro de um a
totalidade cultural tradicional, mas com base na vida social m o­
derna, racional, diferenciada, aberta e dinâmica, e, prim ordial­
mente, por meio de instituições políticas que perm itam a liberda­
de dos indivíduos, na medida em que sejam democraticamente
instituídas.
A necessidade de ir além da economia desenraizada não pode
ser compreendida como um retorno a um a economia enraizada
propriamente dita.14 É provável que seja essa a razão por que Po­
lanyi raramente fala em “reenraizar” a economia na sociedade e
por que, quando o faz, dá a essa expressão um significado claro:
o de um controle social dos processos econômicos, capaz de pre­
servar e desenvolver as liberdades modernas e de questionar a li­
mitação institucional imposta pelo sistema de mercado.15Hoje, os
movimentos alternativos no m undo inteiro, assim como as con­
tribuições teóricas, buscam um a saída das consequências desas­
trosas, para o ambiente hum ano, social e natural, da atual fase
neoliberal e, em termos mais gerais, da economia capitalista de
mercado. Algumas propostas convincentes fazem referência às
idéias polanyianas de “reenraizam ento” e de democracia como
condição da eficiência. Por exemplo, Fikret Adaman, Pat Devine e
Begum Ozkaynak afirmam que o “planejamento participativo”,

14 Ver o comentário de Polanyi sobre o “ideal de Tõnnies” de uma “restauração da co­


munidade” (1977, p. 49). Para uma análise da relação entre o pensamento de Polanyi
e o de Tõnnies, ver Gareth Dale (2008).
15 Em “Notes on the Draft Program o f the CPSU” (manuscrito, 1961, Karl Polanyi Archi-
ve, 38-1), Polanyi interpreta esse documento como um possível sinal na direção do
“reenraizamento da economia na sociedade” no sistema soviético. Para isso, o Estado
deveria dar margem a “novas entidades sociais complexas, resultantes de atividades
conscientes de produção, distribuição, verificação, controle e contabilidade de grupos
e até indivíduos”.
M1CHELE CANGIANI

organizado como um “processo decisório dem ocrático” (2007,


p. 106), seria mais eficiente que outras soluções (capitalistas ou
socialistas), caso se pretenda materializar o bem-estar, a justiça
social e a sustentabilidade ambiental.
Dois problemas podem ser levantados neste ponto. O prim eiro
é que a necessidade de “reenraizar” a economia também pode ser
encarada de maneiras ilusórias, passíveis até de surtir o efeito in­
verso. Nas últim as páginas de A grande transformação, Polanyi
alude à “solução fascista”, nesse sentido, como um a suposta fuga
regressiva e perversa do mecanismo de mercado:16 a crise do capi­
talismo liberal superada ao preço da liberdade. Nos regimes fascis­
tas, diz, não só o capitalismo é preservado, como também, tendo
sido abolida a esfera política democrática, “o capitalismo, tal como
organizado nos diferentes ramos da indústria, torna-se a sociedade
inteira”; “os seres hum anos são vistos como produtores, apenas
como produtores” (Polanyi, 1935, p. 392-393). Desse modo, a eco­
nom ia pode ser vista como ainda mais desenraizada, ainda que
isso pareça paradoxal num regime político totalitário.
Na opinião de Polanyi, o “vírus fascista” constitui um a ameaça
permanente à liberdade e à democracia e, portanto, à “vida políti­
ca moderna”, em toda a história do capitalismo. Podemos acres­
centar que a tentativa de um “reenraizamento” perverso da econo­
mia não pertence exclusivamente ao fascismo em suas formas
históricas; também pode ser encontrada, em nossa época, em di­
versas formas de “fundam entalism o” e, sobretudo e em termos
mais gerais, nas formas de poder mais brandas, porém não menos
perniciosas, que solapam ou contornam as instituições democrá­
ticas e são apoiadas pelos meios de comunicação e pela ignorância
das massas. É verdade que, no capitalismo corporativo do sécu­
lo XX, im plem entaram -se instrum entos novos e eficientes para

16 Louis D um ont (1983) interpreta Polanyi corretamente nesse ponto, mas dentro
de uma concepção geral da modernidade como ilusória e até regressiva, a qual é o
oposto da de Polanyi.

32
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

que a sociedade se defendesse dos mecanismos de mercado, mas a


função dominante da transformação corporativa tem sido colocar
a organização cada vez mais complexa da vida social e a opinião
pública a serviço dos interesses econômicos dominantes do siste­
ma de mercado de um a economia desenraizada.
Em conclusão, nos escritos de Polanyi há provas de que sua
teoria geral comparativa e sua análise da “transformação” impli­
cam a impossibilidade de reenraizar a economia enquanto ela
mantiver sua organização capitalista de mercado, que é capaz de
se reproduzir por meio de um a renovação contínua de suas insti­
tuições econômicas, políticas e culturais.
O segundo problema é, precisamente, que tam bém temos de
analisar as estruturas complexas e mutáveis das sociedades de
mercado num nível ainda menos abstrato que o nível intermediá­
rio da “transformação”.
O próprio Polanyi em penhou-se nesse tipo de análise. Por
exemplo, em 1934, dedicou alguns artigos à indústria algodoeira
de Lancashire,17 que estava em crise, depois de ter sido a força
propulsora da Revolução Industrial, da supremacia britânica e da
ideologia liberal. Esses artigos examinaram as causas da crise e
algumas medidas propostas para enfrentá-la. Entre as primeiras,
Polanyi incluiu técnicas obsoletas de fabricação e de venda, difi­
culdades financeiras e a pequena dimensão das firmas; entre as
últimas, acordos salariais, medidas para limitar a concorrência e
intervenções governamentais. Além disso, ele analisou os fatores
organizacionais técnicos, comerciais, financeiros e também políti­
cos e culturais da vitoriosa concorrência japonesa. Por exemplo,
comparou a classe operária urbana de Lancashire, predom inante­
mente composta de hom ens qualificados, responsáveis pelo ga­
nha-pão, com as mulheres jovens que constituíam o grosso da
mão de obra dos cotonifícios japoneses. A persistência da cultura

17 Ver, em particular, “Lancashire ais Menschheitsfrage”, Der Osterreichische Volkswirt,


23 e 30 de junho de 1934, agora reproduzido em Polanyi, 2002, p. 236-248.
MICHELE CANGIANI

rural tradicional, e em particular das relações hierárquicas de fa­


mília, observou Polanyi, dava aos empresários japoneses a oportu­
nidade de confiar na mentalidade corporativa e autoritária que os
industriais e os políticos vinham tentando reintroduzir na Europa.
É evidente que Polanyi presta atenção a aspectos variados e
complexos do caso em observação. Além disso, notam os um a es-
tratificação de conceitos mais ou menos abstratos. O caso parti­
cular da crise da indústria algodoeira inglesa é examinado não
apenas como um problema multifacetado, mas também no arca­
bouço da crise mundial, para além do qual discernimos uma pers­
pectiva maior e mais profunda sobre a passagem de um a estrutura
institucional do capitalismo para outra, e sobre a ligação histo­
ricamente variável entre o capitalismo e os ideais m odernos de
liberdade e democracia. Polanyi pergunta a si mesmo se um ana­
lista da atividade industrial está autorizado a lidar com essas ques­
tões gerais. Sua resposta afirmativa implica um nível ainda mais
alto de abstração conceituai a respeito da sociedade capitalista e de
sua economia desenraizada: sim, diz ele, o economista não pode
ignorar essas questões, num a “era que elevou a economia a um
destino” (Polanyi, 2002, p. 236).
A abordagem de Polanyi nos convida a reconhecer que os p ro­
blemas gerais desse tipo não são alheios ao institucionalismo, ou,
pelo menos, a suas origens e tendências radicais veblenianas. Esse
tipo de institucionalismo — como teoria das características gerais
e das transformações do sistema capitalista de mercado, e não ape­
nas como um a “economia aplicada” que procure incluir fenôme­
nos sociais e políticos “contextuais” na análise — constitui, com
efeito, um a alternativa teórica à economia convencional. Essa qua­
lidade é negada ao institucionalismo pelos que o consideram “an-
titeórico” (ver Coase, 1984, p. 230) e é subestimada quando iden­
tificamos um a ciência apenas com base em ela ser “capaz de
estimativas e testagens empíricas” (Rutherford, 2000, p. 299), e
não a partir dos problemas que ela é capaz de levantar.

34
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

A falácia sociologista
O termo “enraizado” tem sido usado com frequência por sociólo­
gos econômicos contemporâneos e por economistas “neoinstitu-
cionais” em suas análises do funcionamento efetivo do capitalis­
mo contem porâneo. John Ruggie (1982) introduziu a ideia do
“liberalismo enraizado”, M ark Granovetter (1985), a do “enraiza­
mento” da ação econômica. Sharon Zukin e Paul DiMaggio ofe­
recem-nos um a definição sintética, mas abrangente, da nova onda
sociológica: a crise da economia neoclássica, dizem, “cria um a la­
cuna a ser preenchida pela sociologia econômica”; na verdade,
“a ação econômica se caracteriza por quatro tipos d e ‘enraizamen­
to’ — cognitivo, cultural, social e político — que a economia neo­
clássica tende a ignorar” (1990, p. 3). Como m ostra a economia
comportamental, a racionalidade neoclássica nunca pode captar
plenamente a conduta real humana. Além disso, o mercado não
podería funcionar sem uma estrutura institucional complexa; e a
vida econômica cotidiana é condicionada por remanescências cul­
turais, interesses particulares, redes sociais, relações pessoais e pre­
disposições psicológicas e cognitivas. Diversas formas de gestão de
organizações, estratégias de poder e vários tipos de intervenções
públicas interferem realmente no funcionamento do mercado.
Polanyi é m encionado com frequência na discussão dessas
questões, principalmente por ter elaborado a distinção entre eco­
nomias enraizadas e desenraizadas e por tê-la usado como um
instrum ento de sua crítica à economia neoclássica. Mas a refe­
rência a Polanyi me parece imprópria, nesse caso. Se é correta a
minha interpretação da teoria polanyiana, tal como exposta, nas
seções anteriores, deve estar claro que sua concepção de “enraiza­
mento” tem um significado diferente do encontrado na sociologia
econômica contem porânea e na economia neoinstitucional, ou
em como quer que a economia seja revisada.
Obviamente, não é possível banir o uso do term o “enraizado”
das análises socioeconômicas. O problema está em distinguir dife-
MICHELE CANGIANI

rentes sentidos, a fim de evitar um a referência im própria a Po-


lanyi, que resulte no emaranhamento de sua distinção enraizado/
desenraizado com o conceito “sociológico” de “enraizam ento”.
A consequência desse emaranhamento é que a teoria geral de Po-
lanyi sobre a sociedade capitalista de mercado desaparece e sua
teoria da “transformação” fica empobrecida.
Para evitar confusões, um a premissa óbvia é que o conceito de
“economia desenraizada” não coincide com a “economia pura”
dos modelos neoclássicos abstratos. Ser “desenraizada” constitui
um aspecto geral e permanente da economia de mercado. Isso não
se choca com o fato de que um mercado perfeitamente autorre-
gulador e perfeitamente competitivo nunca existiu nem poderia
existir. Polanyi explica que a tendência para influir proposital­
mente no funcionamento do mercado pode ser identificada desde
o começo, principalmente graças (1) à necessidade de “proteção”
e ao “contram ovim ento” que ela originou, e (2) à dinâmica do
capitalismo, que envolve mudanças na estrutura do mercado e
condiciona a evolução de todas as instituições sociais. É precisa­
mente a característica geral de a economia ser desenraizada que,
por um lado, torna inevitáveis a regulação e a intervenção social
do Estado, e, por outro, dá ao sistema social seu dinamismo e sua
complexidade típicos. De qualquer m odo, apesar do controle li­
mitado que a sociedade é capaz de exercer, o trabalho, a terra e o
dinheiro continuam a ser tratados como mercadorias; aliás, o co­
nhecimento foi acrescentado a eles como um a quarta “mercado­
ria fictícia”.18
Fred Block, em sua “Introdução” à edição de 2001 de A grande
transformação, opõe a necessidade de “instituições reguladoras
fortes” à “visão utópica dos neoliberais”, ou seja, ao projeto de
uma “economia de mercado desenraizada, plenamente autorregu-
ladora” (Block, 2001, p. xxxiv, xxxv e xxiv). A intenção de Block é

18 Ver, por exemplo, as contribuições de Virgínia Brown-Keyder, Gürol Irzik e Bob Jes-
sop, em Bugra e Agartan (orgs.), 2007.

36
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

louvável, mas sua confusão entre “desenraizada” e “autorregulado-


ra” enfraquece a argumentação.
Sua polêmica contra as tendências neoliberais antiestatais o
leva a generalizar o conceito de “movimento duplo” como o traço
característico e decisivo das “sociedades de mercado”. A prevalên­
cia alternativa da regulação pelo mercado ou pelo Estado determi­
na, a seu ver, a passagem de um a fase a outra e pode ser concebida
como uma oscilação entre um a economia mais enraizada e outra
menos enraizada. O “desenraizamento”, afirma Block, nunca pode
ter sucesso absoluto, por causa das tensões que gera: num dado
momento, “a economia retorna a um a posição mais enraizada”
(Block, 2001, p. xxv). A consequência da confusão entre os dife­
rentes significados da oposição enraizado/desenraizado, que se
evidencia aqui, é que a teoria geral polanyiana da sociedade de
mercado e sua economia desenraizada passa despercebida. Block
alude a essa teoria como um a ideologia marxista primitiva, dei­
xada de lado no processo de redação de A grande transformação,
quando Polanyi teria passado para “o conceito da economia sem­
pre enraizada” (Block, 2003, p. 297).
Várias objeções podem ser feitas à tese de Block. (1) A con­
tinuidade do pensam ento de Polanyi evidencia-se não só em
A grande transformação, mas também em sua análise comparativa
posterior dos sistemas econômicos, na qual é central a oposição
enraizado/desenraizado. (2) Na sociedade contemporânea, a alter­
nativa não é simplesmente entre mercado e Estado. A intervenção
pelo Estado e por outros órgãos sociais pode contrariar, até certo
ponto, a autorreflexividade do sistema econômico e sua tendência
a “externalizar” os “custos sociais” (Kapp, [1963] 1978). Todavia,
a função real das intervenções pode também, ou principalmente,
ser a de regular os processos econômicos e sociais para evitar
grandes colapsos e reforçar a hegemonia da classe (econômica)
dominante. Como vimos, Polanyi interpreta nesse sentido a crise
do capitalismo liberal e a transformação corporativa. (3) A histó­
ria do capitalismo não pode ser reduzida a um a oscilação mecâni-

37
MICHELE CANGIANI

ca de um a economia mais enraizada para outra menos enraizada,


e vice-versa. Por exemplo, as semelhanças entre a atual fase neoli-
beral e o liberalismo do século XIX são menos interessantes que as
diferenças (que concernem ao desenvolvimento tecnológico, à es­
trutura do mercado, ao papel do Estado, à representação dos inte­
resses de grupos, à qualidade e às perspectivas da democracia, e
assim por diante). Por exemplo, por que um a nova regulamen­
tação das finanças comparável à realizada pela Lei Bancária de
Glass-Steagall, de 1933 (cuja revogação teve início em 1980 e, ape­
sar da crise posterior da poupança e do empréstimo, foi consegui­
da em 1999), parece improvável, nos Estados Unidos ou noutros
locais, embora a crise atual e, em termos mais gerais, as atividades
financeiras em contínua renovação e imensamente aumentadas a
tornem mais necessária que nunca? A história de nossa sociedade
deve ser considerada como um processo irreversível de mudanças
institucionais, que é complexo e indeterminado, porém cerceado
pela necessidade de reproduzir seus traços institucionais mais ge­
rais, ou seja, as relações de mercado e capitalistas e, portanto, um a
economia desenraizada.
É provável, porém, que a responsabilidade por deslocar Polanyi
“para a corrente dom inante do discurso socioeconômico” (Po-
lanyi-Levitt, 2006, p. 387) deva ser menos im putada a Block do
que a outros.
“Há um lugar para os sociólogos no estudo da vida econômi­
ca”, escreve Granovetter (1985, p. 507), concluindo sua ilustração
da “abordagem do enraizamento”. Ele considera o com portam en­
to econômico pelo prism a de “um a formulação mais ampla da
escolha racional” (p. 505), capaz de levar em conta não apenas
objetivos estritamente econômicos, mas também motivações m o ­
rais e sociais (como a aprovação social ou o poder). Os indivíduos
não são átomos utilitaristas nem meros atores que desempenham
um papel culturalmente predeterminado. Em vez .disso, sua con­
duta pode ser explicada mediante a análise de “sistemas concretos
e contínuos de relações sociais”, de “relações pessoais e estruturas
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

(ou redes’)” em que ela está enraizada (p. 487,490). Por exemplo,
a confiança ou a violação de normas nas transações de mercado e
“a eficácia do poder hierárquico” nas organizações (p. 499) são
influenciadas por esse “enraizamento”.
Essa breve alusão à teoria de Granovetter talvez seja suficien­
te para deixar claro qual é o seu objeto e quanto ele difere do de
Polanyi. Recentemente, o próprio G ranovetter observou que
seu artigo de 1985 “concentrou-se num leque um tanto estreito
de problemas”, nas “redes sociais como um nível interm ediário”
(Krippner et al., 2004, p. 114-115) entre o comportamento indivi­
dual e os fenômenos macroeconômicos. Com efeito, tam bém nas
últimas páginas do citado artigo, Granovetter (1985, p. 506) sus­
tenta que sua análise não diz respeito a “questões de larga escala
sobre a natureza da sociedade moderna ou as origens da mudança
econômica e política”. Portanto, o caso poderia ter sido resolvido.
Entretanto, nos anos seguintes, a moeda boa da distinção que Gra­
novetter fez das questões conforme sua escala ou seu nível de
generalidade foi repelida pela moeda ruim da prim eira parte de
seu artigo, na qual ele incluiu Polanyi e a antropologia econômica
“substantivista” nas “concepções excessivamente socializadas da
ação humana”, que ele critica. Nesse ponto, colocando-se no nível
de uma análise comparativa em larga escala, Granovetter menos­
prezou a diferença entre as sociedades mercantis e não mercantis,
afirmando, em particular, que a oposição enraizada/desenraizada,
de Polanyi, é grandemente exagerada. A argumentação desenvol­
vida no restante do artigo tem sido considerada, em geral, capaz
de corroborar essa tese. Mas trata-se de uma opinião incoerente,
pois, na realidade, Granovetter volta sua análise para questões
concretas e “de pequena escala” como a moral e o oportunismo no
comportamento econômico, os custos de transação, as redes so­
ciais e as relações pessoais originadas em faculdades ou clubes
campestres, e assim por diante. Nesse nível microssociológico, o
com portam ento individual não pode deixar de ser considerado
em seu “enraizamento”.
MICHELE CANGIAN

Em vez disso, como vimos, a oposição polanyiana enraizado/


desenraizado concerne ao capitalismo como um sistema social
historicamente específico, cuja dinâmica constitui um a restrição
ao desenvolvimento da sociedade inteira e a sua “transformação”
de uma “estrutura institucional” em outra. Contornar e/ou elimi­
nar esse tipo de questão, nesse nível de abstração conceituai, pare­
ce ser um a grande preocupação das ciências sociais contem porâ­
neas. Um baluarte dessa tendência é a tentativa de solapar a teoria
de Polanyi, por parte de cientistas sociais e historiadores que afir­
mam que a economia sempre foi e continua a ser enraizada. Essa
tentativa costuma seguir um a de três vias, que tam bém podem
superpor-se parcialmente.
A primeira via consiste em confundir dois conjuntos de n a­
turezas diferentes — o das economias enraizadas e o das econo­
mias estabelecidas, que inclui o prim eiro. O interessante artigo
de Kurtulus Gemici sobre “as antinomias do enraizamento”, por
exemplo, começa pela afirmação de que “ [tjodas as economias são
enraizadas, um a vez que a vida econômica é um processo social­
mente estabelecido e organizado” (Gemici, 2008, p. 9). Polanyi, ao
contrário, faz um a clara distinção entre enraizado e estabelecido.
A sociedade de mercado é estabelecida como desenraizada.
A segunda via consiste, simplesmente, em evitar a análise do
sistema social como tal. Bernard Barber critica com acerto, nesse
sentido, os sociólogos — em particular os “novos” sociólogos eco­
nômicos — que se restringem “a temas especiais” e “não são re­
ceptivos à análise do sistema social” (Barber, 1995, p. 405-406).
O trabalho deles, continua Barber (p. 407), “limita-se a fragmen­
tos soltos do sistema econômico vigente”.
O próprio Barber é um bom exemplo da terceira via. “Todas as
economias se enraizam em sistemas sociais complexos e maiores”,
escreve (Barber, 1995, p. 408), num a clara referência à teoria de
Talcott Parsons. O comportamento mercantil também só existe no
contexto de “um conjunto definido de arranjos estruturais e cul­
turais do sistema social” (p. 399). Além disso, as trocas recíprocas

40
A TEORIA INSTITUCIONAL DE KARL POLANYI

e redistributivas também florescem no m undo m oderno (p. 397).


Assim, Barber declara sua oposição à “absolutização” do mercado
e à distinção geral e nítida de Polanyi entre a sociedade de merca­
do, com sua economia desenraizada, e as sociedades anteriores.
Procurei m ostrar que a distinção enraizado/desenraizado, tal
como estabelecida por Polanyi, é inerente à sua explicação compa­
rativa dos traços históricos gerais do sistema (capitalista) de mer­
cado; que é um elemento fundamental de um a teoria que permite
compreender melhor esse sistema, ao mesmo tem po que conti­
nua fundamentada em dados e perfeitamente refutável (no senti­
do popperiano). Portanto, Polanyi segue o princípio de C. Wright
Mills: “ [o] problema geral de uma teoria da história não pode ser
separado do problema geral de um a teoria da estrutura social”
(Mills, [1959] 2000, p. 47). A “teoria mestra”, um a teoria geral e ge­
nérica do sistema social, tende a permanecer como a noite em que
todos os sistemas sociais são pardos. Além disso, o raciocínio de
Barber sobre as economias “inescapavelmente enraizadas” e a coe­
xistência de todas as “formas de integração” em qualquer sistema
social resulta em respaldar a abordagem sociológica que ele critica.
Vimos que a “falácia economicista” consiste na falsa generali­
zação de categorias econômicas extraídas do funcionam ento da
economia de mercado. Assim, torna-se difícil compreender as ca­
racterísticas específicas que diferenciam os sistemas econômicos
entre si. Em particular, desaparece a própria concepção de “socie­
dade de mercado” como arranjo histórico-institucional singular.
O mesmo resultado é obtido pela “falácia sociologista”, que
consiste na tese da “economia sempre enraizada”. Com isso, mais
um a vez, a “diferença específica” que caracteriza os sistemas de
mercado — e, portanto, os traços institucionais mais gerais de
nossa sociedade e sua dinâmica — tende a ser excluída do hori­
zonte das ciências sociais. Será que os futuros historiadores consi­
derarão que essa atitude esquiva, assim como o m al-entendido
acerca das realizações teóricas de Polanyi, foi um aspecto revela­
dor da nossa era de consenso neoliberal?
MICHELE CANGIANI

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44
I. A subsistência do homem
A falácia economicista

Os esforços da nossa geração para chegar a um a visão mais realis­


ta do problema geral da subsistência do homem deparam com um
portentoso obstáculo — um hábito de pensamento arraigado, pe­
culiar às condições de vida no tipo de economia que o século XIX
criou nas sociedades industrializadas. Esse m odo de pensar é per­
sonificado na mentalidade de mercado.
Pretendemos assinalar, em caráter preliminar, as falácias que
essa mentalidade tornou correntes e, secundariamente, expor al­
gumas razões por que essas falácias influenciaram de maneira tão
disseminada o pensamento das pessoas.
Primeiro definiremos a natureza desse anacronism o concei­
tuai, depois descreveremos o desenvolvimento institucional de
onde ele brotou e tratarem os da sua influência em nossa visão
moral e filosófica. Levantaremos os reflexos dessa atitude m en­
tal nas áreas de conhecimento que compõem as ciências sociais,
como a teoria econômica, a história econômica, a antropologia,
a sociologia, a psicologia e a epistemologia.
Tal levantamento não deverá deixar dúvidas sobre o impacto
do pensam ento economicista em quase todos os aspectos das
questões que enfrentamos, em especial no que diz respeito à natu­
reza das instituições econômicas, com suas políticas e princípios,
tal como elas se revelaram nas maneiras de organizar os meios de
subsistência no passado.
Quase nunca é pertinente resumir a ilusão central de um a era
em termos de um erro lógico, mas, em termos conceituais, é im ­
possível descrever de outra maneira a falácia economicista. O erro
lógico foi algo comum e inofensivo: um fenômeno genérico foi
considerado idêntico a outro, já familiar. Nesses termos, o erro
consistiu em igualar a economia hum ana em geral com sua for­
ma de mercado (erro talvez facilitado pela ambiguidade básica do
KARl POLANYI

termo econômico, à qual voltaremos adiante). A falácia é evidente:


o aspecto físico das necessidades do hom em faz parte da condição
humana; não pode existir sociedade que não possua algum tipo de
economia substantiva. Por outro lado, o mecanismo de oferta-
-procura-preço (que chamamos mercado, em linguagem popular)
é uma instituição relativamente moderna e possui um a estrutura
específica; não é fácil estabelecê-la nem m antê-la em funciona­
mento. Reduzir o âmbito do econômico especificamente aos fenô­
menos de mercado é eliminar a maior parte da história humana.
Em contrapartida, ampliar o conceito de mercado para fazê-lo
abarcar todos os fenômenos econômicos é atribuir a todas as
questões econômicas as características peculiares que acom pa­
nham um fenômeno específico. É inevitável que a clareza de pen­
samento fique prejudicada.
Os pensadores realistas explicitaram a distinção entre a econo­
mia em geral e suas formas de mercado; foi em vão, pois essa dis­
tinção sempre foi obliterada pelo clima intelectual [Zeitgeist] eco-
nomicista. Esses pensadores enfatizaram o significado substantivo
do termo econômico. Identificaram a economia com a indústria,
não com os negócios; com a tecnologia, não com o cerimonia-
lismo; com os meios de produção, não com os títulos de proprie­
dade; com o capital produtivo, não com as finanças; com os bens
de capital, não com o capital — em suma, com a substância eco­
nômica, não com sua forma e terminologia de mercado. Mas as
circunstâncias foram mais fortes que a lógica. Forças históricas
esmagadoras entraram em ação para fundir esses conceitos dís­
pares num só.

A economia e o mercado
O conceito de economia nasceu com os fisiocratas franceses, si­
m ultaneam ente à emergência da instituição do mercado como
mecanismo de oferta-procura-preço. O fenômeno, até então des­
conhecido, da interdependência de preços flutuantes afetou dire­
tamente multidões de homens. Esse nascente m undo dos preços

48
A FALÁCIA EC0N0MIC1STA

resultou da expansão do comércio — instituição m uito mais an­


tiga que os mercados e independente deles — nas articulações da
vida cotidiana.
Os preços, é claro, existiam antes, mas não constituíam um sis­
tema próprio. Restringiam-se ao comércio e às finanças, pois ape­
nas mercadores e banqueiros usavam dinheiro regularmente; uma
parte muito maior da economia era rural e praticamente despro­
vida de comércio, que só trazia um fino gotejamento de bens na
vasta massa inerte da vida de vizinhança, no senhorio feudal e na
família. Os mercados urbanos conheciam dinheiro e preços, mas
a lógica de manejo desses preços era mantê-los estáveis. Não a
flutuação ocasional, mas a estabilidade predom inante fazia deles
um fator cada vez mais im portante para determinar os lucros do
comércio. Tais lucros decorriam de diferenciais de preço relativa­
mente estáveis entre pontos distantes, não de oscilações anômalas
dos preços em mercados locais.
Contudo, a mera infiltração do comércio na vida cotidiana não
criou por si mesma um a economia, no sentido novo e distintivo
do termo; para isso, foram necessários inúmeros desenvolvimen­
tos institucionais posteriores. O primeiro deles foi a penetração
do comércio exterior nos mercados, transformando-os gradativa­
mente de mercados locais estritamente controlados em mercados
com um a flutuação mais ou menos livre dos preços. Com o tempo,
seguiu-se um a inovação revolucionária: mercados com preços flu­
tuantes para os fatores de produção, o trabalho e a terra. Essa m u ­
dança foi a mais radical de todas, por sua natureza e sua im portân­
cia. Só depois de algum tempo diferentes preços — incluindo-se
agora salários, alimentos e rendas — começaram a m ostrar uma
interdependência digna de nota, criando as condições que levaram
os homens a aceitar a presença de um a realidade substantiva até
então não reconhecida. Esse campo emergente da experiência foi
a economia. Sua descoberta — um a das experiências emocionais e
intelectuais que formaram o m undo m oderno — veio para os fi-
siocratas como um a iluminação, fazendo deles um a seita filosófica.

49
KARL POLANYI

Adam Smith conheceu com eles a “mão invisível”, mas não seguiu
o caminho místico de Quesnay. Enquanto o mestre francês só vis­
lum brou a interdependência de certas receitas e sua dependência
geral em relação aos preços dos cereais, seu discípulo maior, que
vivia na economia menos feudal e mais monetizada da Inglaterra,
pôde incluir os salários e a renda no grupo dos “preços”, vislum­
brando pela prim eira vez a riqueza das nações como resultante de
uma integração das diversas manifestações de um sistema subja­
cente de mercados. Adam Smith tornou-se o fundador da econo­
mia política por ter reconhecido, ainda que de forma tênue, a ten­
dência para a interdependência desses diferentes tipos de preços,
quando eles eram formados em mercados competitivos.
Na origem, essa explicitação da economia em termos do m er­
cado foi apenas um a forma sensata de relacionar novos conceitos
e novos fatos. Para nós, talvez seja difícil entender p or que fo­
ram necessárias gerações para que se reconhecesse que Quesnay
e Smith haviam descoberto fenômenos essencialmente indepen­
dentes da instituição do mercado que se manifestava na época.
Mas nem Quesnay nem Smith almejavam estabelecer a economia
como um a esfera da existência social que transcende o mercado, o
dinheiro ou os preços — e, na medida em que tentaram fazê-lo,
falharam. Eles visavam m enos à universalidade da econom ia e
mais à especificidade do mercado. Aliás, a tradicional unidade de
todos os assuntos humanos, que ainda impregnava seu pensamen­
to, tornava-os avessos à ideia de um a esfera econômica separada
da sociedade, embora não os impedisse de atribuir à economia as
características do mercado. Adam Smith introduziu métodos em­
presariais nas cavernas do homem primitivo, estendendo sua fa­
mosa propensão ao comércio e à troca até os jardins do Paraíso.
A abordagem da economia p o r Quesnay foi não menos catalá-
tica.* A sua era um a economia do produit net [produto líquido],

* Aportuguesamento de catallactics. Refere-se ao ramo da economia que trata do inter­


câmbio. [N.T.]

50
A FALÁCIA ECONOMICISTA

uma quantidade realista na contabilidade do senhor de terras, po­


rém um mero fantasma no processo que se estabelece entre h o ­
mem e natureza, do qual a economia é um aspecto. O suposto
“excedente”, cuja criação ele atribuiu ao solo e às forças da nature­
za, não passou de um a transferência, para a “ordem da natureza”,
da disparidade que se espera encontrar entre o preço de venda e o
custo. A agricultura ocupou o centro do palco porque estava em
questão a renda da classe feudal dom inante. Mas, desde então,
a ideia do excedente passou a frequentar os escritos dos economis­
tas clássicos. O produit net foi o pai da mais-valia de Marx e seus
derivados. Assim, a economia foi impregnada de um a noção estra­
nha ao processo geral de que faz parte, um processo que não co­
nhece custo nem lucro e não é um a cadeia de atos geradores de
excedentes; tam pouco as forças fisiológicas e psicológicas são m o ­
vidas pela ânsia de assegurar um excedente para si mesmas. Nem
os lírios do campo nem os pássaros no ar, tampouco os homens
nos pastos, campos ou fábricas — criando gado, cultivando a ter­
ra ou m ontando peças em uma esteira rolante — produzem exce­
dente a partir de sua própria existência. O trabalho, assim como o
lazer e o repouso, é um a fase no transcurso da vida do homem.
0 constructo da ideia de excedente foi, simplesmente, a proje­
ção do modelo de mercado sobre um aspecto mais amplo da exis­
tência — a economia.1
No início, a identificação falaciosa dos “fenômenos econômi­
cos” com os “fenômenos de mercado” foi compreensível. Mais tar­
de ela se tornou quase um a necessidade prática da nova sociedade
e do estilo de vida que nasceram das dores da Revolução Indus­
trial. O mecanismo de oferta-procura-preço, cujo aparecimento
produziu o conceito profético de “lei econômica”, converteu-se
rapidamente num a das forças mais poderosas que já entraram no
cenário humano. Em uma geração — digamos, de 1815 a 1845,

1 Ver Harry W. Pearson, “The Economy Has No Surplus: Critique o f a Theory o f Deve-
lopment”, em K. Polanyi, C. Arensberg e H. Pearson (orgs.), Trade and M arket in the
Early Empires. Glencoe, Illinois: Free Press e Falcons Wing Press, 1957.
KARL POLANYI

durante a “Paz de Trinta Anos” de Harriet M artineau — , o merca­


do formador de preços, que antes existira apenas em amostras, em
alguns portos comerciais e poucas bolsas de valores, m ostrou sua
espantosa capacidade de organizar os seres hum anos como se fos­
sem simples quantidades de matéria-prima e de combiná-los -—
junto com a superfície da m ãe-terra, que agora podia ser livre­
m ente comercializada — em unidades industriais comandadas
p or pessoas privadas, que se dedicavam sobretudo a com pra e
venda com fins lucrativos. Num período extremamente curto, a
ficção mercantil aplicada ao trabalho e à terra transform ou a so­
ciedade humana. A identificação da econom ia com o mercado foi
colocada em prática. A dependência essencial do ser hum ano em
relação à natureza e a seus semelhantes, para obter meios de sub­
sistência, foi posta sob o controle dessa m oderna criação insti­
tucional de poder superlativo, o mercado, que se desenvolveu da
noite para o dia a partir de um começo modesto. Essa engenhoca
institucional, que se tornou a força dom inante da economia —
agora justificadamente descrita como economia de mercado — ,
originou um fenômeno ainda mais extremo: u m a sociedade intei­
ra inserida no mecanismo de sua própria econom ia— a sociedade
de mercado.
Desse ponto de vista, não é difícil discernir que aquilo que cha­
mamos aqui de falácia economicista foi, antes de tudo, um erro
teórico. Na prática, a economia passou a consistir em mercados,
e o mercado envolveu a sociedade.
Por esta linha de argumentação, fica claro que a importância
da visão economicista residiu precisamente em sua capacidade de
gerar um a unidade de motivações e valorações que criariam na
prática o que ela preconcebia como um ideal, a saber, a identidade
entre mercado e sociedade. Só quando um estilo de vida passa a
cobrir todos os aspectos relevantes, incluindo-se imagens sobre o
homem e a natureza da sociedade — com um a filosofia da vida
cotidiana que contém critérios de conduta sensata, riscos razoá­
veis e um a m oral viável — , passamos a ter esse com pêndio de

52
A FALÁCIA ECONOMICISTA

doutrinas teóricas e práticas que conseguem produzir um a so­


ciedade, ou, o que dá no mesmo, transform ar um a sociedade du­
rante o tempo de vida de um a ou duas gerações. Essa transform a­
ção foi alcançada, para o bem ou para o mal, pelos pioneiros do
economicismo. A mentalidade mercantil continha as sementes de
toda uma cultura, com suas possibilidades e limitações. A imagem
do hom em e da sociedade, transformada em economia de m er­
cado, foi um a decorrência necessária da estrutura essencial de
uma comunidade hum ana organizada pelo mercado.

A transformação econom icista


Essa estrutura representou um a ruptura violenta com as condi­
ções que a precederam. O que antes era apenas um a ligeira expan­
são de mercados isolados transmudou-se num sistema autorregu-
lado de mercado.
O passo crucial foi a transformação do trabalho e da terra em
mercadorias, como se tivessem sido produzidos para venda. Ê claro
que eles não eram mercadorias de fato, pois ou não haviam sido
produzidos (como a terra) ou, se haviam (como o trabalho), não
visavam à venda.
Nunca se concebeu um a ficção mais eficaz. Como o trabalho e
a terra passaram a ser livremente comprados e vendidos, o meca­
nismo de mercado os absorveu. Passou a existir oferta e procura
de trabalho, assim como oferta e procura de terra. Passou a existir
um preço de mercado para o uso da força de trabalho, chamado
salário, e um preço de mercado para o uso da terra, chamado ren­
da. O trabalho e a terra passaram a ser oferecidos em mercados
próprios, semelhantes aos das mercadorias propriam ente ditas,
que eles produziam.
O verdadeiro alcance desse passo pode ser estimado se lem ­
brarmos que trabalho é apenas outro nome para o ser humano, e
terra, outro nome para a natureza. A ficção mercantil pôs o desti­
no do ser hum ano e da natureza nas mãos de um autôm ato que
operava em seus próprios circuitos e era regido p o r suas próprias

53
KARl POLANYI

leis. Esse instrum ento do bem-estar material era controlado tão


somente pelos incentivos da fome e dos ganhos — para ser mais
exato, pelo medo de carecer das necessidades da vida e pela expec­
tativa de lucro. Desde que os despossuídos pudessem satisfazer a
necessidade de alimentos vendendo seu trabalho no mercado, e
desde que os proprietários pudessem com prar por preços mais
baratos e vender mais caro, o moinho cego produzia cada vez mais
mercadorias em benefício da espécie humana. O medo da fome
no trabalhador e a atração do lucro no empregador m antinham o
vasto mecanismo em funcionamento.
A imposição dessa prática utilitarista deturpou fatalmente a
compreensão que o hom em ocidental tinha de si mesmo e de sua
sociedade.
No que concerne ao homem, fomos levados a aceitar a ideia
de que suas motivações podem ser descritas como “materiais” ou
“ideais”, mas os incentivos sobre os quais se organiza a vida coti­
diana brotam necessariamente das motivações materiais. É fácil
perceber que, nessas condições, o m undo hum ano devia realmen­
te parecer determ inado p o r motivações materiais. Sempre que
destacarmos um a motivação qualquer e organizarmos a produção
de m odo a fazer dessa motivação o incentivo do indivíduo para
produzir, criaremos um a imagem do hom em como totalm ente
absorvido nessa motivação. Ela pode ser religiosa, política ou es­
tética, pode ser movida por orgulho, preconceito, am or ou inveja;
em cada caso, o hom em parecerá essencialmente religioso, políti­
co, estético, orgulhoso, preconceituoso, apaixonado ou invejoso.
As outras motivações, em contraste, parecerão distantes e obscu­
ras — ideais — , já que não se pode confiar em que impulsionem
a atividade vital da produção. A motivação selecionada represen­
tará o hom em “real”.
Na verdade, os seres hum anos trabalham por muitas razões,
desde que vivam em um grupo social definido. Os monges comer­
ciavam por razões religiosas, e os mosteiros tornaram -se os m aio­
res estabelecimentos comerciais da Europa. O kula dos nativos das

54
A FALÁCIA ECONOMICISTA

ilhas Trobriand, um dos mais intricados sistemas de trocas que o


ser hum ano já conheceu, é sobretudo uma busca estética. A eco­
nom ia feudal dependia largamente dos costumes e da tradição.
Entre os kwakiutl, o objetivo principal da indústria parece ser sa­
tisfazer um a questão de honra. No despotismo mercantilista, a
indústria éra concebida para servir ao poder e à glória. Por conse­
guinte, tendemos a pensar que os monges, os habitantes da Mela-
nésia ocidental, os vassalos, os kwakiutl ou os homens de Estado
do século XVII eram conduzidos, respectivamente, pela religião, a
estética, os costumes, a honra ou a política de poder. A sociedade
do século XIX organizou-se de um m odo que fazia com que ape­
nas a fome e o lucro fossem motivações eficazes para o indivíduo
participar da vida econômica. A imagem resultante, do hom em
regido só por incentivos materialistas, era inteiramente arbitrária.
No tocante à sociedade, propôs-se a doutrina análoga de que
suas instituições eram “determinadas” pelo sistema econômico.
O mecanismo de mercado criou a ilusão de que o determinismo
econômico é um a lei geral de toda sociedade humana. É claro que
essa lei é válida num a economia de mercado. Nesse caso, aliás, o
funcionamento do sistema econômico não só “influencia” o resto
da sociedade, mas efetivamente o determ ina — tal como, num
triângulo, os lados não se limitam a influenciar, mas determinam
os ângulos.
Na estratificação das classes, oferta e demanda no mercado de
trabalho eram idênticas às classes dos trabalhadores e empresários,
respectivamente. As classes sociais dos capitalistas, latifundiários,
arrendatários, intermediários, comerciantes, profissionais liberais
etc. foram delimitadas pelos mercados da terra, da m oeda e do
capital, com seus usos ou serviços respectivos. A renda dessas clas­
ses sociais era fixada pelo mercado; a posição e o prestígio delas,
por sua renda.
Enquanto as classes sociais eram diretam ente determ inadas
pelo mecanismo do mercado, outras instituições eram indireta­
mente afetadas p o r ele. O Estado e o governo, o casamento e a

55
KARL POLANYI

criação dos filhos, a organização da ciência e da educação, a reli­


gião e as artes, a escolha da profissão, os tipos de habitação, as
formas dos aglomerados humanos e a própria estética da vida p ri­
vada, tudo tinha de se ajustar ao modelo utilitarista, ou, pelo m e­
nos, não interferir no funcionamento do mecanismo de mercado.
Mas, como pouquíssimas atividades humanas podem ser realiza­
das no vácuo (até os santos precisam de um pilar), os efeitos indi­
retos do sistema de mercado acabaram por determinar o conjunto
da sociedade. Tornou-se quase impossível evitar a conclusão errô­
nea de que, tal como o “homem econômico” era o hom em “real”,
o sistema econômico era a sociedade “real”.

Racionalism o econômico
À primeira vista, a visão de m undo [ Weltanschauung] economicis-
ta, com seus postulados gêmeos do racionalismo e do atomismo,
parecia conter tudo o que era necessário para lançar as bases de
uma sociedade de mercado. O termo operacional era racionalismo.
Que outra coisa poderia ser tal sociedade senão um aglomerado
de átomos humanos, comportando-se de acordo com as regras de
um tipo definido de racionalidade? A ação racional, em si, consis­
te na relação de meios e fins; a racionalidade econômica, em par­
ticular, pressupõe que os meios sejam escassos. Mas a sociedade
hum ana envolve muito mais do que isso. Qual seria a finalidade
do hom em e de que m odo ele escolhería seus meios? O racionalis­
mo econômico não tem resposta a essas perguntas, pois elas im ­
plicam motivações e valorações de ordem moral e prática que vão
além da exortação logicamente irresistível —- mas vazia, noutros
aspectos — de um ser “econômico”. O vazio foi camuflado por
uma fraseologia filosófica ambígua.
Para m anter a unidade aparente, foram introduzidos dois ou­
tros significados para a palavra racional. Q uanto aos fins, pos­
tulou-se como racional um a escala utilitarista de valores; quanto
aos meios, usou-se um a escala, supostamente científica, de renda.
A prim eira escala fez da racionalidade a antítese da estética, da

56
A FALÁCIA EC0N0M1CISTA

ética e da filosofia; a segunda se apresentou como um a antítese da


magia, da superstição ou da simples ignorância. No primeiro caso,
é racional preferir pão com manteiga a ideais heroicos; no segun­
do, parece racional que um doente consulte o médico em vez de
buscar um vidente. N enhum desses dois sentidos de racional é
relevante para o princípio do racionalismo, embora, em si, um
possa ser mais válido que o outro. O utilitarismo rígido, com seu
equilíbrio pseudofilosófico entre dor e prazer, perdeu influência
na mente das pessoas instruídas, mas a escala científica de valores
permanece suprema dentro de seus limites. Assim, o utilitarismo,
que ainda é o ópio das massas mercantilizadas, foi destronado
como ética, enquanto o método científico ainda se sustenta.
No entanto, quando se usa racional não como um term o elo­
gioso de louvor, mas no sentido estrito de pertinente à razão, vali­
dar a comprovação científica dos meios como algo racional não
é menos arbitrário do que tentar justificar os fins utilitaristas. Em
resumo: a variante econômica do racionalismo introduz o elemen­
to escassez em todas as relações meios-fins; além disso, postula
como racionais, no tocante aos próprios meios e fins, duas escalas
de valores diferentes, que se adaptam peculiarmente às situações
de mercado, mas, afora isso, não têm um alcance universal que lhes
permita se considerar racionais. Afirma-se, assim, que as escolhas
dos fins e dos meios estão sob a autoridade suprema da racionali­
dade. O racionalismo econômico parece lograr ambas as coisas:
a limitação sistemática da razão às situações de escassez e a exten­
são disso a todos os meios e fins humanos, validando um a cultura
economicista que tem a aparência de uma lógica irresistível.
A filosofia social erigida sobre esses alicerces foi tão radical
quanto fantasiosa. Em certo sentido, atomizar a sociedade e fazer
de cada indivíduo um átomo que se comporta de acordo com os
princípios do racionalismo econômico situa toda a vida hum ana,
com toda a sua profundidade e sua riqueza, no quadro de refe­
rência do mercado. É claro que isso não pode ser alcançado — os
indivíduos têm personalidade, e a sociedade tem história. A per­

57
KARL POLANYI

sonalidade viceja na experiência e na educação; a ação implica


paixão e risco; a vida exige fé e convicção; a história é luta e derro­
ta, vitória e redenção. Para preencher essa lacuna, o racionalismo
econômico introduziu a harm onia e o conflito como as modalida­
des de relações entre indivíduos. Os conflitos e as alianças desses
átomos egoístas, que formaram nações e classes, passaram então a
responder pela história social e universal.
N enhum autor isolado jamais propôs a doutrina completa.
Bentham ainda confiava no governo e não se sentia seguro com a
economia; Spencer amaldiçoava o Estado e o governo, mas tam ­
bém conhecia pouco de economia; a von Mises, um economista,
faltava o saber enciclopédico dos outros dois. Não obstante, esses
homens criaram um mito que foi o devaneio da massa educada
durante a Paz de Cem Anos, de 1815 até a Primeira Guerra M un­
dial, e mesmo depois dela, até a guerra de Hitler. No plano intelec­
tual, esse mito representou o triunfo do racionalismo econômico
e, inevitavelmente, o eclipse do pensamento político.
O racionalismo econômico do século XIX foi o descendente
direto do racionalismo político do século XVIII. Foi tão irrealista
quanto o seu predecessor, se não mais. Ambos perm aneceram
alheios aos fatos da história e à natureza das instituições políticas.
Os utopistas políticos ignoravam a economia, enquanto os utopis-
tas do mercado não tomavam conhecimento da política. No com­
puto geral, se os pensadores do Iluminismo foram notoriamente
desatentos a algumas realidades econômicas, seus sucessores do
século XIX foram totalm ente cegos para a esfera do Estado, da
nação e do poder, a ponto de duvidar de sua existência.

0 solipsism o econômico
Esse solipsismo econômico, como bem poderiamos chamá-lo, foi
um a saliente característica da mentalidade de mercado. A ação
econômica foi tida como “natural” nos homens e, por conseguin­
te, autoexplicativa. Os homens fariam permutas, a menos que fos­
sem contidos, e com isso os mercados surgiríam, a menos que se

58
A FALÁCIA ECONOMICISTA

fizesse algo para impedi-lo. O comércio começaria a fluir, como


que induzido pela força da gravidade, e criaria fontes de bens, or­
ganizadas em mercados, a menos que os governos conspirassem
para deter os fluxos e drenar os recursos. Com a aceleração do
escambo, surgiria o dinheiro. Tudo seria arrastado para o rede­
m oinho das trocas, a menos que moralistas arcaicos iniciassem
uma grita contra o lucro, ou que déspotas não esclarecidos dilapi­
dassem a moeda.
Esse eclipse do pensamento político foi a deficiência intelectual
da época. Originou-se na esfera econômica, mas acabou destruin­
do qualquer abordagem objetiva da própria economia se ela esti­
vesse inserida em outro contexto institucional que não o meca­
nismo de oferta-procura-preço. Os economistas sentiram-se tão
seguros nos confins desse sistema de mercado, puram ente teórico,
que só a contragosto reconheceram nas nações algo mais que um
pequeno inconveniente. Considerou-se que um autor político in­
glês da década de 1910 tinha encerrado a discussão sobre a neces­
sidade das guerras ao demonstrar que, como negócio, a guerra não
compensava; e em Genebra, até sua última hora de vida, a Liga das
Nações permaneceu cega para as realidades políticas que transfor­
maram o padrão-ouro em um anacronismo. A desconsideração da
política difundiu-se das ilusões com o livre comércio de Cobden e
Bright até a sociologia spenceriana, com sua oposição entre “siste­
mas industriais versus sistemas militares”, então m uito em voga.
Na década de 1930, entre as pessoas instruídas, quase nada restava
da cultura política de David Hume ou de Adam Smith.
O eclipse da política surtiu um efeito sumamente perturbador
nos aspectos morais da filosofia da história. A economia caiu no
vazio. Instaurou-se um a postura hipercrítica a respeito da justifi­
cação m oral dos atos políticos. Isso resultou num a depreciação
radical de todas as forças, exceto a econômica, no campo da his­
toriografia. A psicologia mercantil, que só considera reais as m oti­
vações “materiais”, relegando as motivações “ideais” ao limbo da
ineficácia, estendeu-se não só às sociedades que não eram de mer­

59
KARL POLANYI

cado, mas também a toda a história pregressa. Quase toda a his­


tória antiga passou a ser vista eomo um am ontoado de consignas
sobre justiça e direito, alardeado por faraós e monarcas divinos,
com o único intuito de enganar súditos desamparados que se cur­
vavam sob o açoite. Era um a atitude contraditória. Por que se ha­
vería de adular um a população de escravos? Se tal adulação era
necessária, será que poderia ser feita com promessas que nada sig­
nificavam para os adulados? Se as promessas tinha algum signifi­
cado, a justiça e o direito deviam ser mais do que meras palavras.
O aparato crítico de um público hipercrítico deixou escapar que
uma verdadeira população de escravos não precisava ser bajulada,
e que a justiça e a liberdade deviam ser reconhecidas por todos
como ideais válidos, para que pudessem ser usadas como isca pela
minoria. Sob a influência da m oderna democracia de massas, as
consignas tornaram -se um a espécie de força política organiza­
dora, algo que nunca poderiam ter sido no Egito ou Babilônia
antigos. Por outro lado, a justiça e o direito, que se encarnavam
na estrutura institucional das sociedades mais antigas, perde­
ram força quando a sociedade se organizou de maneira mercantil.
Os bens, a riqueza e a renda de um homem, assim como o preço
de seus produtos, passaram a ser considerados “justos” somente
quando nasciam no mercado; quanto ao direito, nenhum a lei ti­
nha importância, na verdade, exceto as referentes à propriedade e
aos contratos. Deixaram de ter substância as diversas instituições
antigas de propriedade e as leis substantivas que responderam
pela constituição da pólis ideal.
O solipsismo econômico gerou um conceito insubstancial de
justiça, direito e liberdade, em nome do qual a historiografia m o­
derna recusou qualquer mérito aos incontáveis textos antigos em
que se declarava que a finalidade do Estado era estabelecer a h on­
radez, insistir na lei e m anter uma economia central sem opressão
burocrática.
A verdadeira situação é tão diferente daquela que a m entali­
dade de mercado aponta, que não é fácil expô-la em termos sim-

60
A FALÁCIA ECONOMICISTA

pies. Na verdade, a justiça, a lei e a liberdade, como valores insti­


tucionalizados, surgiram pela prim eira vez na esfera econômica
como resultado da ação estatal. Nas condições tribais, a solida­
riedade era protegida pelos costumes e as tradições; a vida econô­
mica estava inserida na organização social e política da sociedade;
não havia lugar para transações econômicas; os atos ocasionais
de troca eram desestimulados como um perigo para a solidarieda­
de tribal. Ao despontar a dominação territorial, o rei-deus substi­
tuiu o centro da vida comunitária, ameaçada com o enfraqueci­
mento do clã. Ao mesmo tempo, um enorme avanço econômico
tornou-se possível, e foi efetivamente obtido, com a ajuda do Es­
tado; o rei-deus, fonte de justiça, legalizou as transações econômi­
cas, antes proibidas como gananciosas e antissociais. Essa justiça
foi institucionalizada mediante equivalências, proclamada em leis
e praticada, em dezenas de milhares de casos, pelos órgãos do pa­
lácio e do templo que cuidavam do aparelho tributário e redistri-
butivo do Estado territorial. Normas legais se institucionalizaram
na vida econômica, com administrações que regulavam o com­
portamento dos m embros das guildas em suas transações comer­
ciais. A liberdade lhes chegava por meio da lei; não havia senhor a
quem devessem obediência. Desde que cumprissem seu juram en­
to ao rei-deus e se mantivessem fiéis à guilda, eram livres para agir
de acordo com seus interesses comerciais, sendo responsáveis por
suas ações. Cada um desses passos para introduzir o hom em no
âmbito da justiça, do direito e da liberdade resultou, originalmen­
te, da ação organizadora do Estado no campo econômico. Mas o
solipsismo econômico barrou o reconhecimento do papel pionei­
ro do Estado. Assim, a mentalidade de mercado veio a predom i­
nar. A absorção da economia pelos conceitos de mercado foi tão
completa, que nenhum a das disciplinas sociais pôde escapar de
seus efeitos. Imperceptivelmente, elas foram transform adas em
redutos de m odos de pensamento economicistas.

61
Os dois significados de econômico

A definição formal e a substantiva


Toda tentativa de esclarecer o lugar que a economia ocupa na so­
ciedade deve partir do fato de que o termo econômico, tal como
habitualmente usado para descrever um tipo de atividade hum a­
na, contém dois significados, com raízes distintas e independentes
uma da outra. Não é difícil identificá-las. O prim eiro significado,
o formal, provém do caráter lógico da relação meios-fins, como
em economizar ou conseguir algo a baixo preço; desse significado
provém a definição de econômico pela escassez. O segundo, o sig­
nificado substantivo, aponta para a realidade elementar de que os
seres hum anos, como quaisquer outros seres vivos, não podem
existir sem um meio físico que os sustente; eis a origem da defini­
ção substantiva de econômico. Os dois significados, o formal e o
substantivo, nada têm em comum.
O conceito atual de econômico é, portanto, um a composição
de dois significados. Embora dificilmente alguém possa contestar
isso, suas implicações para as ciências sociais (excetuando-se sem­
pre a economia) raras vezes são abordadas. O termo econômico é
presumido sempre que a sociologia, a antropologia ou a história
lidam com assuntos pertinentes à subsistência hum ana. Mas é
usado de maneira imprecisa: dependendo do quadro de referên­
cia, ora aparece com a conotação de escassez, ora com a conotação
substantiva. Assim, oscila entre dois polos de significação não re­
lacionados entre si.
O significado substantivo provém da flagrante dependência do
homem em relação à natureza e aos seus semelhantes para sobre­
viver. Ele sobrevive graças a um a interação institucionalizada com
o meio natural; isso é a economia, que lhe fornece os meios de
satisfazer suas necessidades materiais. Esta frase não deve ser in­

63
KARL POtANYI

terpretada no sentido de que as necessidades sejam exdusivamen-


te corporais, como alimento e abrigo, por mais que estas sejam
essenciais à subsistência. Tal restrição lim itaria absurdamente o
campo da economia. Os meios, não as necessidades, é que são m a­
teriais. É irrelevante se os objetos úteis são necessários para evitar
a fome o u são usados com fins educacionais, militares ou religio­
sos. Se a satisfação das necessidades depende de objetos materiais,
a referência é a economia. Aqui, econômico se refere simplesmente
ao processo de satisfazer necessidades materiais. Estudar a subsis­
tência hum ana é estudar a economia nesse sentido substantivo do
term o, e é nesse sentido que econômico será usado ao longo de
todo este livro.
O significado formal tem um a origem inteiram ente diversa.
Vem da relação meios-fins. É um conceito universal que não se
restringe a nenhum campo específico do interesse hum ano. Os
termos lógicos ou matemáticos dessa natureza são chamados for­
mais, em contraste com as áreas específicas a que se aplicam. Tal
significado é subjacente ao verbo maximizar ou — com um cará­
ter menos técnico, porém talvez mais preciso — “obter o máximo
a partir dos recursos de que se dispõe”.
A fusão dos dois significados num conceito único é irrepreensí­
vel, desde que permaneçamos conscientes das limitações do con­
ceito assim constituído. Ligar a satisfação das necessidades m ate­
riais à escassez e ao ato de economizar e fundi-los num conceito
único pode ser justificado e razoável num sistema de mercado,
onde e quando ele prevalece. Entretanto, aceitar que o conceito
composto a partir de meios materiais escassos e de economia tem
validade geral aumenta a dificuldade de deslocar a falácia economi-
cista da posição estratégica que ela ocupa em nosso pensamento.
As razões são óbvias. A falácia economicista, como a chama­
mos, consiste num a tendência a identificar a economia hum ana
com sua forma de mercado. Para eliminar esse viés, é necessário
esclarecer radicalm ente o sentido da palavra econômico. Mais

64
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO

um a vez, não se pode consegui-lo sem que toda a ambiguidade


seja eliminada e os significados formal e substantivo sejam estabe­
lecidos separadamente. Condensá-los num term o de uso comum,
como no conceito composto, reforça o duplo sentido e torna qua­
se inexpugnável aquela falácia.
Pode-se inferir a solidez com que os dois significados foram
unidos observando-se o destino irônico dessa que é a mais con­
trovertida das figuras mitológicas modernas — o hom em econô­
mico. Os postulados subjacentes a essa criação do saber científico
foram contestados por todas as razões concebíveis — psicológicas,
morais e metodológicas — , mas nunca se pôs seriamente em dú­
vida o significado do adjetivo econômico. Os argumentos entraram
em choque quanto ao conceito de homem, não quanto ao term o
econômico. Ninguém perguntou a qual das duas séries de atributos
o adjetivo se aplicava — se a um a entidade da natureza cuja exis­
tência depende das condições ambientais, como os animais e as
plantas, ou a um a entidade da mente, como anjos ou demônios,
bebês ou filósofos, sujeita à norm a do máximo resultado com o
mínimo de custos, o que lhe garante o atributo da racionalidade.
Ao contrário, presumiu-se que o homem econômico, esse autên­
tico representante do racionalismo do século XIX, movia-se num
mundo em que a existência bruta e o princípio da maximização
combinavam-se misticamente. Nosso herói foi atacado e defendi­
do como símbolo de um a unidade ideal-material que, por essas
razões, seria apoiada ou descartada, conforme o caso. Em nenhum
momento o debate admitiu um exame de qual dos dois significa­
dos de econômico, o formal ou o substantivo, estava implícito na
expressão hom em econômico.

A distinção na economia neoclássica


O reconhecimento da dupla origem do term o econômico não é
novo, evidentemente. Pode-se dizer que a teoria econômica neo­
clássica foi formada, por volta de 1870, a partir da distinção entre

65
KARL POLANYI

a definição pela escassez e a definição substantiva do termo. A eco­


nomia neoclássica estabeleceu-se sobre a premissa de Carl Menger
( Grundsãtze [Princípios], 1871) de que a economia cuidava da alo­
cação de meios insuficientes para prover o sustento do homem.
Foi a prim eira enunciação do postulado da escassez ou da maxi-
mização. Como formulação sucinta da ação racional na economia,
tal afirmação ocupa um lugar elevado entre as realizações da m en­
te humana. Sua importância foi realçada pela relação com as ins­
tituições de mercado, as quais, por seus efeitos maximizadores nas
atividades do dia a dia, permitiam essa abordagem.
Mais tarde, Menger quis suplementar seus Princípios, para não
dar a impressão de que desconhecia as sociedades prim itivas e
arcaicas, ou outras sociedades anteriores, que começavam a ser
estudadas pelas ciências sociais. A antropologia cultural revelou
que o ser hum ano produzia a partir de um a variedade de motiva­
ções sem objetivo de lucro; a sociologia refutou o m ito de um a
tendência utilitarista que tudo permeasse; a história da Antiguida­
de exibiu culturas superiores, dotadas de grande riqueza, que não
tinham sistemas de mercado. O próprio Menger afirmou que as
atitudes economizadoras restringiam-se a escalas de valores utili-
taristas, afirmação que hoje veriamos como um a limitação indevi­
da à lógica da relação meios-fins. Essa talvez tenha sido um a das
razões pelas quais ele hesitou em teorizar sobre países não “avan­
çados”, pois só nestes era possível presumir tais escalas de valores.
Menger fez o possível para limitar a aplicação de seus Princípios
à m oderna economia da troca [ Verkehrswirtschaft]. Recusou-se a
perm itir a reedição ou a tradução da prim eira edição, que consi­
derava incompleta. Pediu demissão de sua cátedra na Universi­
dade de Viena para se dedicar a essa tarefa. Após um esforço de
cinquenta anos, durante os quais parece haver retornado repetidas
vezes a ela, deixou um m anuscrito revisado, que foi publicado
postumamente em Viena em 1923. Essa segunda edição está reple­
ta de referências à distinção entre a economia de troca ou de m er­
cado a que se destinavam os Princípios, de um lado, e as economias

66
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO

sem mercado ou “atrasadas”, de outro. Menger usou diversas pala­


vras para designar essas economias “atrasadas”: zurückgeblieben
[retardatárias], unzivilisiert [incivilizadas], unentwickelt [subde­
senvolvidas].
A edição póstum a dos Grundsãtze incluiu quatro novos capítu­
los. Pelo menos um deles é de suprema importância teórica para
os problemas de definição e método que preocupam os estudiosos
contemporâneos desse assunto. Como explicou Menger, a econo­
mia tinha duas “vertentes elementares”, uma das quais era a ver­
tente economizadora proveniente da insuficiência de meios, en­
quanto a outra era a orientação “tecnoeconômica”, como ele a
chamou, decorrente dos requisitos físicos da produção, indepen­
dentemente da suficiência ou insuficiência de meios:
Designarei por elementares as duas vertentes que se podem dis­
tinguir na economia humana — a técnica e a economizadora —
pela razão que se segue. Embora, na economia real, essas verten­
tes, conforme apresentadas nas duas seções anteriores, em geral
[grifo meu] ocorram juntas e, a rigor, quase [grifo meu] nunca
sejam encontradas separadamente, elas provêm de fontes essen­
cialmente diferentes e independentes uma da outra [grifo de Men­
ger]. Em alguns campos da atividade econômica as duas ocorrem
separadamente. Em alguns tipos não inconcebíveis de economias
qualquer delas, na verdade, pode surgir regularmente sem a ou­
tra. [...] As duas vertentes que podem predominar na economia
humana não são mutuamente dependentes; ambas são primárias
e elementares. O fato de que ocorram simultaneamente na eco­
nomia real resulta, meramente, da circunstância de que os fatores
causais que dão origem a cada uma coincidem quase [grifo meu]
sem exceção.1

A discussão desses fatos elementares por Menger foi esquecida.


A edição póstum a, na qual foi estabelecida a distinção entre as
duas vertentes da economia, nunca foi traduzida para o inglês.
Nenhuma exposição da economia neoclássica (nem mesmo o En-1

1 Carl Menger, Grundsãtze der Volkswirtschaftslehre, org. Karl Menger. Viena, 1923, p. 77.

67
KARL POLANYI

saio de Lionel Robbins, de 1935)2 discorre sobre as “duas verten­


tes”. A Escola de Economia e Ciência Política de Londres, em sua
série de livros raros (1933), optou por traduzir a prim eira edição
dos Princípios (1871). F. A. Hayek, num prefácio a essa edição, em
forma de “réplica”, ajudou a retirar o Menger póstum o da cons­
ciência dos economistas, descartando o manuscrito tardio como
“fragmentado e desordenado”. “Por ora, pelo menos”, concluiu o
professor Hayek, “os resultados do trabalho dos últimos anos de
Menger devem ser considerados perdidos.” Cerca de dezessete
anos depois, quando os Princípios foram traduzidos de novo para
o inglês (1950), com prefácio de F. H. Knight, a prim eira edição
— que tinha a metade do tam anho da segunda — foi ainda mais
resumida. Além disso, ao longo do livro, a tradução transform ou
o termo wirtschaftend (literalmente, engajado na atividade econô­
mica) em economizador.3 No entanto, segundo o próprio Menger,
economizador não era equivalente a wirtschaftend, mas a sparend,
term o que ele introduziu na edição póstuma, precisamente para
distinguir a alocação de meios insuficientes e a outra vertente da
economia, que não necessariamente implica essa insuficiência.
Graças às brilhantes e portentosas realizações da teoria dos
preços inaugurada por Menger, o novo significado economizador
ou formal do econômico tornou-se o sentido, enquanto o signifi­
cado mais tradicional, porém aparentemente prosaico, de mate­
rialidade, que não estava necessariamente ligado à escassez, per­
deu status acadêmico e acabou esquecido. A economia neoclássica
baseou-se no novo significado, enquanto o significado antigo, m a­
terial ou substantivo, desapareceu aos poucos da consciência e
perdeu sua identidade no pensamento econômico.

2 Lionel Robbins, A n Essay on the N ature and Significance ofEconom ic Science. 2a ed.
Londres: Macmillan and Co., 1935.
3 Carl Menger, Principies o f Economics, trad. e org. James Dingwall e Bert F. Hoselitz,
introd. Frank H. Knight. Glencoe, Illinois: The Free Press, 1950. Cf. Karl Polanyi, “Carl
Menger’s Two Meanings o f ‘Economic’”, em G. Dalton (org.), Studies in Economic
Anthropology. Washington: American Anthropological Association, 1971.

68
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO

A falácia da escolha relativa e da escassez


Com isso, a análise teórica descurou dos requisitos de outras dis­
ciplinas econômicas, como a sociologia das instituições econômi­
cas, a economia primitiva ou a história econômica, que também
estavam empenhadas no estudo da subsistência do homem. Mal
se descobriu a distinção irredutível entre os dois significados, o
significado substantivo foi descartado em favor do formal, dando
lugar à insistência em que as disciplinas que versam sobre a eco­
nom ia não devem ter como objeto a satisfação de necessidades
materiais, mas as escolhas entre os usos alternativos de meios es­
cassos. O conceito compósito foi admitido por condescendência,
na suposição de que seria possível esquecer seus ingredientes subs­
tantivos, reduzindo-o aos elementos formais da escolha e da escas­
sez, os únicos considerados importantes.
Agora se evidencia a dificuldade da nossa tarefa. N ão basta
esclarecer de que m odo o conceito compósito abriga dois sig­
nificados independentes, pois tão logo nos aproximamos desse
objetivo, mostrando a ambiguidade do conceito compósito usado
por leigos e estudiosos, ele se revela uma simples fachada para a
definição calcada na escassez, enquanto o aspecto substantivo da
economia, no qual queríamos concentrar nossa atenção, é relega­
do ao esquecimento.
Examinemos, pois, as razões pelas quais o monopólio semân­
tico do term o econômico é tão confiantemente reivindicado pela
definição baseada na escassez. Depois tentaremos desenvolver a
definição substantiva. Começaremos por definir escassez da m a­
neira mais ampla possível, porém suficientemente articulada em
sua aplicabilidade para que possamos submetê-la a um teste ope­
racional.
Tirar o máximo proveito dos recursos disponíveis — que é a
norm a implícita no significado formal de econômico — refere-se
a situações em que a escolha é induzida por uma insuficiência de
meios, estado de coisas que é justificadamente descrito como uma

69
KARL POLANYI

situação de escassez. Nesse contexto, os termos escolha, insuficiên­


cia e escassez devem ser cuidadosamente examinados em sua rela­
ção m útua, pois as afirmações dos analistas econômicos assumem
formas variadas. O ra nos dizem que a economia tem por objeto
os atos de escolha, ora que a escolha pressupõe a insuficiência de
meios, ora que a insuficiência de meios pressupõe a escolha, ora,
ainda, que os meios insuficientes são meios escassos ou que os
meios escassos são econômicos.
Tais afirmações pretendem estabelecer que as variações do sig­
nificado formal abarcam todas as manifestações da economia, a
qual, como quer que fosse instituída, consistiría então em meios
insuficientes e em condições indutoras de atos de escolha entre os
diferentes usos dos recursos escassos; logo, podería ser descrita
nos termos formais da definição de escassez. Nesse caso, com justa
razão se poderia afirmar que a definição substantiva de econômi­
co seria supérflua, ou, no mínimo, de pouca importância, já que
todas as formas concebíveis de economia se incluiríam na defi­
nição de escassez. Estritamente falando, porém, nenhum a dessas
afirmações é válida.
Comecemos nossa análise pelo term o mais geral, escolha, que
pode ocorrer com meios suficientes ou insuficientes. Uma escolha
moral revela a intenção do agente de atuar corretamente; essa en­
cruzilhada entre o bem e o mal é objeto da ética. Uma encruzilha­
da puram ente operacional, por outro lado, seria assim: ao percor­
rer um a estrada, um hom em chega ao sopé de um a m ontanha
onde duas vias se bifurcam, ambas conduzindo ao seu destino por
caminhos diferentes. Presumindo-se que não haja nada a escolher
entre elas — ambas têm a mesma extensão, as mesmas comodida­
des, a mesma inclinação — , ainda assim o viajante é chamado a
decidir por um a ou por outra, ou a desistir de seu objetivo. Nem
sob o aspecto moral nem sob o operacional, ao que parece, postu­
la-se um a insuficiência de recursos. Na verdade, recursos abun­
dantes podem tornar a escolha bem mais difícil, se bem que não
menos necessária. Muitas vezes, escolher é um a atividade compli­

70
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO

cada ou até dolorosa, mas isso pode decorrer tanto da abundância


de meios quanto da sua insuficiência.
Logo, a escolha não implica necessariamente insuficiência de
meios, assim como esta última tampouco implica escolha ou es­
cassez. Comecemos pelo último caso: para que surja um a situação
de escassez, deve existir não só um a insuficiência de meios, mas
também um a escolha induzida por essa insuficiência. Ora, a insu­
ficiência de meios não induz a escolha, a menos que, no mínimo,
outras duas condições se deem: mais de um uso para os meios
(caso contrário não haveria coisas entre as quais escolher) e vários
fins hierarquizados (ou não haveria razões para escolher). Logo,
para que surja uma situação de escassez, várias condições têm de
estar presentes, além da insuficiência de meios.
No entanto — este ponto é crucial — , mesmo que tais condi­
ções fossem atendidas, seguiria existindo somente um a conexão
acidental entre um a situação de escassez e a economia. As regras
da escolha, como vimos, aplicam-se a todos os campos das rela­
ções meios-fins, factuais ou convencionais, reais ou imaginários.
Os meios são tudo o que é aproveitável, quer em virtude de quali­
dades naturais, como carvão para o aquecimento, quer em virtude
das regras convencionais, como notas de dólar para pagar dívidas.
Também não im porta se os graus de preferência em relação aos
fins baseiam-se em escalas tecnológicas, morais, científicas, su­
persticiosas ou puram ente arbitrárias.
Portanto, a tarefa de alcançar o máximo de satisfação pelo uso
racional de meios insuficientes não se restringe à economia hum a­
na. Ela se instaura quando um general dispõe suas tropas para a
batalha, quando um jogador de xadrez planeja sacrificar um peão,
quando um advogado reúne provas para defender um cliente,
quando um pintor busca os efeitos que deseja expressar, quando
um fiel oferece preces e boas obras para alcançar a salvação ou,
para nos aproximar mais do ponto em questão, quando um a dona
de casa planeja as compras da semana. Quer se trate de tropas,
peões, provas, destaques artísticos, atos de devoção ou do salário
KARl POLANYI

semanal, os meios insuficientes podem ser empregados de dife­


rentes maneiras, mas, uma vez usados de um modo, não podem
ser usados de outro; além disso, quem escolhe tem mais de um
objetivo em vista e é solicitado a usar os meios para atingir os fins
preferidos.
Os exemplos poderíam multiplicar-se indefinidamente. Q uan­
to maior o núm ero de situações, mais se evidencia que as situa­
ções de escassez existem num sem -núm ero de campos e que,
na verdade, o significado formal de econômico só implica um a
referência acidental ao significado substantivo. O caráter “m ate­
rial” da satisfação da necessidade é dado, havendo ou não maximi-
zação; e a maximização ocorre, quer os meios e os fins sejam m a­
teriais, quer não.
Também as regras de comportamento têm validade universal.
Ao todo, existem duas. Uma, “relacionar os meios com os fins”,
abarca toda a lógica da ação racional. A segunda regra resume a
economia formal, isto é, a parte da lógica da ação racional que diz
respeito às situações de escassez. Diz ela: “D estinar os recursos
escassos de tal m odo que nenhum a finalidade de ordem inferior
na escala de preferências seja suprida enquanto um objetivo de
ordem superior permanecer sem recursos.” Em linguagem sim ­
ples, “não aja como um tolo”. Eis o conteúdo da economia formal.
Os dois significados que estão na raiz de econômico form am
dois mundos; o significado formal não pode substituir o substan­
tivo. Econômico, no sentido de economizar ou conseguir algo a bai­
xo preço, refere-se à escolha entre usos alternativos de meios insu­
ficientes. O significado substantivo, por outro lado, não implica
nem escolha nem insuficiência. A subsistência do hom em pode ou
não envolver a necessidade de escolha. Em geral, o costume e a
tradição eliminam a escolha e, quando esta existe, não precisa ser
induzida pelos efeitos limitantes de nenhum a “escassez” de recur­
sos. Algumas das mais importantes condições naturais e sociais da
vida, como a disponibilidade de ar e de água ou a dedicação de
um a mãe amorosa ao bebê, não têm tais limites. A vontade que

72
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO

atua num caso difere da que atua no outro, assim como a força do
silogismo difere da força da gravidade; as leis do primeiro são as
da mente, enquanto as do outro são as da natureza.

Escassez e insuficiência
Então, quando a economia formal se aplica a situações empíricas?
Se os meios não são intrinsecamente insuficientes, como é possível
comprovar sua insuficiência? E, já que se m ostrou que “escassez”
difere de insuficiência de meios, como é possível determinar a pre­
sença da escassez?
Os meios são insuficientes quando o seguinte teste dá resultado
negativo: disponham-se os fins num a sequência e cubra-se cada
fim com um a unidade de recursos; se estes acabarem antes de se
chegar ao último fim, os meios são insuficientes. Caso a realização
desse teste seja inconveniente ou fisicamente impossível, um a “alo­
cação” também serve — faça mentalmente a mesma operação e
“destine” cada unidade de meios a um fim. Se os recursos term ina­
rem antes de ser atingido o último fim, os meios são insuficientes.
Falar de meios escassos neste caso, em vez de meramente insu­
ficientes — o que hoje constitui um a prática geral — , carece de
precisão e torna as coisas confusas. A alocação dos meios julgados
insuficientes tem de coincidir com a alocação que seria adotada se
eles fossem considerados suficientes, tendo em vista um determi­
nado fim. Chamá-los de escassos implica que a insuficiência de
meios induziu um a escolha, o que não é o caso. Ignorar esse crité­
rio operacional é perder por completo o sentido da definição de
escassez, criando a ilusão de que existe um modo peculiar — um
modo “mais econômico”, digamos — de alocar meios insuficien­
tes. Mas a insuficiência de meios não cria, por si só, um a situação
de escassez. Se você não tem o suficiente, precisa se arranjar sem
isso. Para que se instaure um a escolha, os meios, além de serem
insuficientes, também precisam ter usos alternativos; além disso,
deve haver mais de um fim, bem como uma escala de preferências
ligada a eles.

73
1
KARL POLANYI

Cada um a dessas condições — meios insuficientes e passíveis


de usos alternativos, fins múltiplos e escalas de preferência — está
sujeita a testes empíricos. Se o termo “escasso” se aplica ou não aos
meios num a dada situação, essa é um a questão empírica, que es­
tabelece o limite da aplicabilidade da definição formal ou do pos­
tulado da escassez do econômico em qualquer campo, inclusive na
economia.
O atual conceito compósito de economia, ao fundir a satisfação
de necessidades materiais e a escassez, postula nada menos que a *
escassez de todas as coisas materiais. A prim eira formulação disso
aparece no Leviatã, de Hobbes. Ele deduziu que o Estado precisa
dispor de um poder absoluto para impedir que os seres humanos
se dilacerem como um bando de lobos famintos. Sua m eta era
impedir as guerras religiosas mediante o braço forte de um gover­
no secular. Mas essa metáfora talvez tenha refletido um m undo
em que a comunidade medieval estava dando lugar às forças libe­
radas pela revolução comercial, e no qual a concorrência preda­
tória entre os ricos devorava pedaços das terras comunais das
aldeias. Um século depois, o mercado começou a organizar a eco­
nomia num a estrutura que realmente operava criando situações
de escassez. Hume repetiu a posição de Hobbes. Uma necessidade
onipresente de escolha brotou da insuficiência do meio universal­
mente usado, o dinheiro. Não havia interesse em comprovar se as
coisas que o dinheiro podia comprar eram insuficientes. Dadas as
necessidades culturalmente determinadas de cada indivíduo e o
alcance do dinheiro, esses meios eram insuficientes para satisfazer
todas as necessidades. Na verdade, isso era apenas um aspecto da
organização de nossa economia.
Assim, ganhou força a crença universal em que nada existe em
quantidade suficiente para todos, seja como um a proposição do
senso comum sobre a natureza limitada da oferta, seja como um
postulado filosoficamente tem erário sobre a natureza ilimitada
dos desejos e das necessidades individuais. N um ou noutro caso,

74
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO

porém, embora essa afirmação se proclamasse empírica, não pas­


sava de um a asserção dogmática, que encobria um a definição ar­
bitrária e um a circunstância histórica específica. Depois que o ser
humano foi circunscrito como um “indivíduo no mercado” tor-
nou-se fácil justificar essa proposição. Dentre todas as suas carên­
cias e necessidades, o hom em só podia satisfazer aquelas relacio­
nadas ao dinheiro m ediante a compra de coisas oferecidas nos
mercados; as próprias carências e necessidades restringiram-se
àquelas de indivíduos isolados. Assim, por definição, só eram re­
conhecidas as carências e necessidades supridas pelo mercado, e o
ser hum ano passou a ser confundido com o indivíduo isolado.
É fácil perceber que o que se estava testando aí não era a natureza
das carências e necessidades humanas, mas apenas a descrição de
uma situação de mercado como uma situação de escassez. Em ou­
tras palavras, visto que as situações de mercado, em princípio, só
conhecem carências e necessidades expressas p or indivíduos, e
visto que as carências e necessidades restringiam-se aí a coisas que
podiam ser fornecidas num mercado, qualquer discussão sobre a
natureza das carências e necessidades humanas em geral ficou sem
substância. Ao tratar de carências e necessidades, consideraram-se
apenas as escalas de valores utilitaristas de indivíduos isolados
operando em mercados.
Já nos referimos a um a famosa discussão que, examinada mais
de perto, revelou-se um a simples verbalização de questões indefi­
nidas: o hom em econômico era o homem real? Como não se deu
o devido valor ao significado de econômico, ficou excluída a pos­
sibilidade de qualquer resposta relevante.
No entanto, já no alvorecer do pensamento sobre esse assunto,
Aristóteles rejeitou a definição calcada na escassez. Parte de sua
argumentação, como suas idéias sobre a origem dos lucros no co­
mércio, parece deslocada ou distorcida pelo contexto; noutros
pontos, como a propósito da escravidão, seu pensamento destoa
das convicções atuais. Isso torna ainda mais espantoso o seu discer­
nimento de um problema que até hoje desconcerta os pensadores.
KARL POLANYI

Aristóteles começa a Política negando que a subsistência do


homem, como tal, suponha um problema de escassez A O verso de
Sólon proclamava falsamente, a propósito da ânsia de riqueza, que
“não há limite [para essa ânsia] entre os homens”. Ao contrário,
escreveu Aristóteles, a verdadeira riqueza de um a família ou de
um Estado são as necessidades da vida que podem ser armazena­
das e que duram. E elas nada mais são que meios para um fim;
como todos os meios, são intrinsecamente limitadas e determina­
das por seus fins. Na família, são meios de vida; na pólis, meios
para a boa vida. Portanto, as carências e necessidades hum anas
não são ilimitadas, como implicava a frase de Sólon. Essa falácia
foi o alvo principal de Aristóteles. Acaso os animais, desde o nas­
cimento, não encontram o sustento natural no meio ambiente?
E porventura os homens também não encontram sustento no lei­
te m aterno e, mais tarde, no meio ambiente, como caçadores, pas­
tores ou lavradores? Até o comércio se enquadra nesse padrão n a­
tural, desde que seja praticado como troca em espécie. A única
necessidade considerada natural é a do sustento. Quando a escas­
sez parece brotar “do lado da demanda”, Aristóteles atribui isso
a um a ideia equivocada da vida boa, distorcida por um desejo
de cada vez mais bens e prazeres físicos. O elixir da vida boa —
a emoção e o êxtase do teatro, a participação em júris populares,
as campanhas eleitorais e a ocupação de cargos públicos, os gran­
des festejos e tam bém as batalhas e os combates navais — não
pode nem ser acumulado nem ser fisicamente possuído. Ê verdade
que a vida boa exige, “como em geral se admite”, que o cidadão
disponha de tem po ocioso para se dedicar ao trabalho da pólis.
Como vimos, atender a essa exigência acarreta, em parte, a escra­
vidão e, em parte, o pagamento de cidadãos pelo desempenho de
seus deveres públicos (artesãos não deveríam ser cidadãos). Con­
tudo, há mais um a razão para que Aristóteles não reconheça o*

* Esse tópico reaparece, de maneira mais desenvolvida, no ensaio “Aristóteles descobre a


economia”, reproduzido neste volume. [N.E.]

76
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO

problem a da escassez. A economia — em prim eiro lugar, um a


questão de administração doméstica — diz respeito à relação en­
tre as pessoas que compõem instituições, como a família, ou outras
unidades “naturais”, como a pólis. Portanto, o conceito aristotélico
de economia denota um processo institucionalizado que assegura
o sustento. Assim, ele pôde atribuir a duas circunstâncias a con­
cepção errônea que afirmava o caráter ilimitado das carências e
necessidades humanas: prim eiro, a aquisição de alimentos por
mercadores comerciais, que com isso relacionavam a ilimitada ati­
vidade de ganhar dinheiro aos requisitos limitados da família e da
pólis; segundo, a interpretação equivocada de que a vida boa seria
uma acumulação utilitária de prazer físico. Dadas as instituições
corretas, como o oikos e a polis, e a compreensão tradicional da
vida boa, Aristóteles não via lugar para a escassez na economia
humana. Não se equivocou ao relacionar isso às instituições da
escravidão e do infanticídio, bem como à sua própria aversão às
comodidades da vida. Não fosse esse fato realista, sua negação da
escassez poderia ter sido tão dogmática e tão desfavorável à pes­
quisa empírica quanto o formalismo econômico de nossa época.
Nessas circunstâncias, o primeiro dos pensadores realistas foi tam ­
bém o primeiro a reconhecer que um estudo do papel da escassez
na economia hum ana pressupunha reconhecer o significado subs­
tantivo de econômico.4

A economia substantiva: interação e instituições


A ideia de que a definição de escassez é a única que pode represen­
tar legitimamente o significado de econômico não resiste ao escru­
tínio. Deixa o sociólogo, o antropólogo e o historiador econômico
impossibilitados de penetrar na economia de qualquer época ou
lugar. Para realizar essa tarefa, as ciências sociais devem se voltar
para o significado substantivo de econômico.

4 Cf. M. I. Finley, “Aristotle and Economic Analysis”, Past and Present n° 47, maio de
1970, p. 3-25.

77
KARL POLAMYI

A economia, entendida como processo instituído de interações


que servem para satisfazer necessidades materiais, é parte vital de
toda comunidade humana. Sem um a economia nesse sentido, ne­
nhum a sociedade poderia existir e perdurar.
A econom ia substantiva constitui-se em dois níveis: um é a
interação entre o hom em e o meio, outro é a institucionalização
desse processo. Os dois são inseparáveis, mas vamos tratá-los se­
paradamente.
A interação responde pelo resultado m aterial em term os de
sobrevivência. Pode ser decomposta em duas espécies de trocas:
de localização e de apropriação, que podem ou não caminhar ju n ­
tas. A prim eira consiste num a troca de lugares; a segunda, num a
troca de “mãos”.
Num movimento de localização, como implica o termo, as coi­
sas se movem espacialmente; num m ovim ento de apropriação,
m uda a pessoa (ou pessoas) à disposição da qual as coisas estão,
ou m uda o grau em que elas têm o direito de dispor das coisas.
O movimento de localização compreende a produção e o trans­
porte; o de apropriação, as transações e as disposições.
Os seres hum anos desempenham um papel prim ordial: des­
pendem esforços no trabalho; eles próprios se deslocam e dispõem
de suas posses e atividades num processo que acaba por servir ao
propósito de sua subsistência. A produção talvez seja o feito eco­
nômico mais espetacular, propiciando o avanço ordenado de to ­
dos os meios materiais para a etapa de consum o dos meios de
subsistência. Juntos, os dois tipos de m ovim ento com pletam o
processo da economia.
Os movimentos de localização abrangem caçadas, expedições e
invasões, derrubada de árvores para obter madeira, extração de
água, o sistema internacional de navegação, ferrovias e transporte
aéreo. Em tempos arcaicos, o transporte talvez fosse mais im por­
tante que a produção e, mesmo depois, continuou a desempenhar
um papel preponderante na própria produção. Já foi dito que a
produção pode ser reduzida a movimentos de localização de obje­
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO

tos, grandes e pequenos, dos maiores às mais diminutas partículas


de matéria. O crescimento do grão a partir da semente é um m o­
vimento da m atéria no espaço, assim como o é a construção de
arranha-céus num surto de expansão econômica. Todavia, como
veremos, o caráter econômico da produção decorre do fato de que
o movimento de localização envolve trabalho combinado de m a­
neira específica com outros bens. Voltaremos a isso adiante.
Max Weber ampliou o significado de apropriação.5 O sentido
original, o de aquisição legal de propriedade, estendeu-se para in­
cluir a destinação efetiva de qualquer coisa digna de ser possuída,
no todo ou em parte, quer se trate de um objeto físico, de um di­
reito, de prestígio ou da simples oportunidade de explorar situa­
ções vantajosas. A m udança de apropriação pode ocorrer como
que entre “mãos”, onde “mão” designa qualquer pessoa ou grupo
de pessoas capazes de possuir algo. Isso expõe as mudanças, na
esfera da propriedade, que acompanham o processo de interação.
Coisas e pessoas passam, em parte ou no todo, de um a esfera de
apropriação para outra. O gerenciamento e a administração, a cir­
culação de mercadorias, a distribuição da renda, os tributos e im ­
postos, todos pertencem ao domínio da apropriação. Aquilo que
muda de “mãos” não precisa ser um objeto como um todo; pode
ser somente seu uso parcial.
Os movimentos de apropriação diferem não apenas em relação
ao que é movido, mas também ao caráter do movimento. Os m o­
vimentos transacionais são bilaterais e ocorrem como que entre
“mãos”; os movimentos de disposição são atos unilaterais de um a
“mão” à qual o costume ou o direito conferem efeitos legais defi­
nidos. Antigamente, essa distinção podia relacionar-se sobretudo
com o tipo de “m ão” em causa: considerava-se que pessoas ou

5 Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, Tübingen, 1922, capítulo 1, parte 10, p. 73 ss
[Economia e sociedade, trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, 2 v. 4 a ed. São
Paulo: Imprensa Oficial; Brasília: Ed. UnB, 2004]; The Theory o f Social and Economic
Organization, trad. A. M. Henderson e Talcott Parsons, org. Talcott Parsons. Nova York:
Free Press, 1947, p. 139 ss.

79
KARL POLANYI

empresas privadas faziam apropriações por meio de transações,


ao passo que se atribuía à “mão” pública a característica de fazer
disposições. Essa distinção tende a ser ignorada em nossa época,
tanto por empresas quanto por governos: o Estado compra e ven­
de, enquanto empresas privadas administram e dão destinações.
Combinação de bens parece um a denom inação inadequada
para descrever essa parte da interação que é comumente chamada
de produção. No entanto, um a realidade básica da economia subs­
tantiva é que as coisas são úteis por servirem a um a necessidade,
direta ou indiretamente, mediante suas combinações. A distinção
entre bens de categoria “inferior” e “superior”, introduzida por
Carl Menger, encontra-se na raiz da produção.6 Mesmo em situa­
ção de escassez geral, nenhum a produção se dá na ausência de
bens de ordem “superior”, principalmente o trabalho. Por outro
lado, se o “trabalho” está presente, a produção ocorre, seja esse
trabalho abundante ou não, desde que não haja bens de ordem
“inferior” disponíveis para satisfazer as necessidades. Assim, é en­
ganoso, como ficou manifesto na obra póstum a de Menger, atri­
buir o fenômeno da produção a um a escassez geral de bens; a pro­
dução vem, antes, da diferença entre bens de ordem “inferior” e
outros de ordem “superior” — um a realidade tecnológica da eco­
nomia substantiva. Nessa linha de pensamento, a preeminência do
trabalho como fator de produção deve-se à circunstância de que
ele é o agente mais geral entre todos os bens de “ordem superior”.
N um nível interativo, portanto, a economia abrange o hom em
como coletor, cultivador, transportador e criador de coisas úteis,
e abrange a natureza, às vezes como silencioso obstáculo, outras
como facilitadora, assim como abrange a inter-relação dos dois
num a sequência de eventos físicos, químicos, fisiológicos, psicoló­
gicos e sociais que ocorrem em escala menor ou maior. O proces­
so é empírico. Suas partes são passíveis de definição operacional e
observação direta.

6 Carl Menger, Principies o f Economics, p. 58-59.

80
OS DOIS SIGNIFICADOS DE ECONÔMICO

Contudo, tal processo não tem existência independente. A tra ­


m a da interação pode ramificar-se, entrelaçar-se, form ar um a
rede, mas, seja simples ou complexa a rede de causa e efeito, ela
tem pouca possibilidade de se separar fisicamente do tecido eco­
lógico, tecnológico e societário que forma seu pano de fundo, as-
. sim como o processo da vida não pode se separar do organismo
animal.
Para atingir a coerência múltipla da economia real, o processo
simples de interação tem que adquirir um conjunto adicional de
propriedades, sem o qual dificilmente se poderia afirmar a exis­
tência da economia. Se a subsistência material do hom em resul­
tasse de um a m era e fugaz cadeia causai — sem possuir locali­
zação definida no tem po ou no espaço (isto é, sem unidade e
estabilidade), sem pontos de referência permanentes (isto é, sem
estrutura), sem m odos de ação definidos em relação ao todo (isto
é, sem função) e sem maneiras de ser influenciada pelas metas da
sociedade (isto é, sem relevância política) — , nunca poderia ter
atingido a dignidade e a im portância da economia hum ana. As
propriedades de unidade e estabilidade, estrutura e função, histó­
ria e política combinam-se na economia por meio de sua roupa­
gem institucional.
Isso estabelece a base do conceito de economia hum ana como
um processo institucionalizado de interação cuja função é suprir
a sociedade de recursos materiais.

81
Formas de integração e estruturas de apoio

Introdução
Há várias maneiras de classificar empiricamente as economias.
Entre elas, deve-se dar preferência àquela que evite prejulgar as
questões relacionadas com o lugar ocupado pela economia na so­
ciedade como um todo, ou seja, as relações do processo econô­
mico com as esferas política e cultural da sociedade em geral. As
economias devem ser agrupadas de acordo com a forma de inte­
gração dom inante em cada uma. A integração está presente no
processo econômico na m edida em que se institucionalizam os
movimentos de bens e pessoas para superar o efeito dos diferen­
ciais de espaço, tempo e ocupação, criando um a interdependência
entre os movimentos. Assim, por exemplo, as diferenças regionais
num território, o intervalo temporal entre o plantio e a colheita
ou a especialização do trabalho são superados por movimentos
das colheitas, das manufaturas ou do trabalho, de m odo a tornar
mais eficaz a sua distribuição. As formas de integração designam
os movimentos institucionalizados pelos quais se conectam os
componentes do processo econômico, desde os recursos materiais
e o trabalho até o transporte, o armazenamento e a distribuição
dos produtos.
As principais formas de integração da economia hum ana são a
reciprocidade, a redistribuição e a troca. Usamos esses termos de
maneira descritiva, ou seja, tanto quanto possível, sem sugerir in­
tenções ou valores. É claro que as formas de integração também se
diferenciam pelo m odo como a economia se relaciona, em cada
caso, com os domínios político e cultural da sociedade. Mas o que
im porta aqui é que essas formas são relativamente independentes
dos fins e do caráter dos governos, bem como dos ideais e costu­
mes das culturas em questão. Uma atitude neutra em relação às

83
KARL POLANYI

implicações morais e filosóficas das políticas de governo e dos va­


lores culturais é um requisito imprescindível para qualquer inves­
tigação objetiva das cambiantes relações do processo econômico
com os domínios político e cultural da sociedade como um todo.
Se nossa classificação das economias empíricas não estiver razoa­
velmente livre de ilações sobre intenções e valores, nossas conclu­
sões poderão ser corrompidas pela conjectura inconsciente daqui­
lo que, supostamente, se pode deduzir dos dados.
Poderiamos pensar nas formas de integração como diagramas
que representam a movimentação de bens e pessoas na economia,
quer essa movimentação consista em mudanças de localização, de
apropriação ou de ambas. Vista como forma de integração, a reci­
procidade descreve o movimento de bens e serviços (ou a maneira
de dispor deles) entre pontos correspondentes de um agrupamen­
to simétrico; a redistribuição representa um movimento para um
centro e, depois, para fora dele, quer os objetos sejam fisicamente
deslocados, quer se altere apenas a maneira de dispor deles; e a
troca representa um movimento semelhante, mas, nesse caso, en­
tre dois pontos dispersos ou aleatórios do sistema. Num diagrama,
a reciprocidade poderia ser indicada por setas que ligam pontos
simetricamente dispostos em relação a um ou mais eixos; a redis­
tribuição requerería um diagrama em forma de estrela, com algu­
mas setas apontando para o centro, outras para longe dele; e a
troca poderia ser apresentada como setas que ligam pontos alea­
tórios, cada um a delas orientada nas duas direções.
É claro que tais diagramas só podem servir a um propósito
formal. Eles não explicam como o movimento que representam
pode acontecer na sociedade nem como esse movimento, um a vez
ocorrido, realiza seu efeito integrador. Para surtir esse efeito e, a
rigor, até mesmo para surgir, esse movimento exige a presença de
estruturas definidas na sociedade.
Neste ponto, é im portante distinguir entre formas de integra­
ção, estruturas de sustentação e atitudes pessoais. A dificuldade

84
FORMAS DE INTEGRAÇÃO E ESTRUTURAS DE APOIO

está no uso coloquial dos term os reciprocidade, redistribuição e


troca, que são amiúde empregados tanto para descrever diferentes
tipos de atitudes pessoais quanto as formas de integração aqui
sugeridas — duas coisas m uito diferentes. O funcionamento efe­
tivo das formas de integração depende da presença de estruturas
institucionais bem definidas. H á quem considere que tais estrutu­
ras resultam de atitudes pessoais. A “propensão para comerciar,
perm utar e trocar”, de Adam Smith, talvez seja o exemplo mais
famoso. Mas não é verdade que atitudes individuais se somem
para criar as estruturas institucionais que sustentam as formas de
integração.
As estruturas de apoio, sua organização básica e sua validação
provêm da esfera social. No caso da redistribuição, como veremos,
o movimento não pode ocorrer sem um centro estabelecido. Não
é um padrão individual de comportamento; mesmo nos casos em
que ocorre em pequena escala, depende da existência prévia de
um centro reconhecido. A situação é essencialmente a mesma
nos casos da reciprocidade e da troca. Elas, decerto, tam bém indi­
cam tipos definidos de atitudes e ações pessoais, da mutualidade
e da permuta, mas faltam a esses atos individuais difusos os tra­
ços essenciais de efetividade e continuidade no plano societário.
Nem a reciprocidade nem a troca são possíveis, nesse plano, sem
a existência prévia de um padrão estrutural, que não resulta nem
pode resultar de atos individuais. Q uanto à reciprocidade, ela
envolve a presença de dois ou mais grupos sim etricam ente si­
tuados, cujos membros possam se comportar de maneira seme­
lhante, uns com os outros, nos assuntos econômicos. Visto que tal
simetria não se restringe a um a dualidade, os grupos em recipro­
cidade, como tais, tampouco precisam resultar de atitudes de m u ­
tualidade. No que diz respeito à troca, os atos aleatórios de per­
muta entre indivíduos, se é que chegam a ocorrer, são incapazes de
produzir o elemento integrador, o preço. Aqui, tal como na reci­
procidade, o elemento validador e organizador não provém do

85
KARL POLANYI

indivíduo, mas de ações coletivas de pessoas em situações estrutu­


radas. A troca, como forma de integração, depende da presença de
um sistema de mercado, um modelo institucional que, ao contrá­
rio das suposições comuns, não nasce de atos aleatórios de troca.
Alguns autores preocupados com a sociologia das instituições
econômicas — em especial Durkheim, Weber e Pareto — fixaram
a atenção, em linhas gerais, nas precondições sociais dos diferentes
tipos de ação individual. Ao que saibamos, porém, o prim eiro a
observar um a ligação empírica entre as atitudes pessoais de reci­
procidade e a presença independente de instituições simétricas foi
Richard Thurnwald, em 1916, em seu estudo sobre o sistema m a­
trimonial dos banaros da Nova Guiné.1Bronislaw Malinowski re­
conheceu a importância das observações de Thurnwald e previu
que, se examinadas de perto, as situações de reciprocação na socie­
dade hum ana sempre revelariam apoiar-se em formas básicas de
organização simétrica. Sua própria descrição do sistema familiar
e das trocas da kula das ilhas Trobriand deixou claro esse ponto.
Daí foi necessário apenas um passo para generalizar a reciproci­
dade como um a dentre diversas formas de integração, e a simetria
como um a dentre várias estruturas de sustentação. Isso foi feito
acrescentando-se a redistribuição e a troca à prim eira dessas ca­
tegorias, e a centralidade e o mercado à segunda. Essas observa­
ções contribuem para esclarecer como e por que as atitudes pes­
soais individuais, com m uita frequência, não conseguem surtir
efeitos sociais, na falta de determinadas condições societárias. So­
mente num meio simetricamente organizado as atitudes recípro­
cas resultam em instituições econômicas de alguma importância;
somente onde centros se estabeleceram previamente a atitude co­
operativa dos indivíduos pode produzir um a economia redistri-
butiva; e somente na presença de mercados instituídos para esse

1 Richard Thurnwald, “Banaro Society: Social Organization and Kinship System o f a


Tribe in the Interior of New Guinea”, Memoirs o f the American Anthropological Associa-
tion, v. 3, n° 4,1916.

86
FORMAS DE INTEGRAÇÃO E ESTRUTURAS DE APOIO

fim a atitude de perm uta dos indivíduos resulta em preços que


integram as atividades econômicas da comunidade.

Reciprocidade e sim etria


Um grupo que decidisse organizar suas relações com base na reci­
procidade só conseguiria realizar seu objetivo ao se dividir em
subgrupos simétricos cujos membros pudessem identificar uns
aos outros como tais. Assim, os membros do grupo A poderiam
estabelecer relações de mutualidade com seus correspondentes do
grupo B, e vice-versa; ou então, três, quatro ou mais grupos pode­
riam ser simétricos em relação a dois ou mais eixos, e os membros
desses grupos não precisariam agir de forma recíproca entre si,
mas sim com os mem bros correspondentes de terceiros grupos
com os quais mantivessem relações análogas. Por exemplo, algu­
mas famílias, m orando em cabanas que formassem um círculo,
poderiam ajudar os vizinhos da direita e ser ajudadas pelos vizi­
nhos da esquerda, num a cadeia infindável de reciprocidade, sem
qualquer mutualidade entre elas.
O sistema de reciprocidade mais bem comprovado foi descrito
por Malinowski em seu trabalho sobre os ilhéus trobriandeses.
O homem das ilhas Trobriand tem obrigações com a família de
sua irmã, mas não é auxiliado pelo marido da irmã. Se for casado,
será ajudado pelo irmão de sua mulher — membro de um a tercei­
ra família em posição análoga. Ali, não só a agricultura de subsis­
tência baseia-se em relações recíprocas; também as trocas de peixe
por inhame entre as aldeias costeiras e as do interior são feitas
com base na reciprocidade. O peixe chega num momento, o inha­
me em outro, e os parceiros da troca, nesse caso, não são grupos
de parentes, mas aldeias inteiras. A kula é, de longe, a maior insti­
tuição desse tipo nas ilhas Trobriand. Nela também há um a par­
ceria na troca, mas os atos de troca são descasados. A dádiva e a
contradádiva ocorrem em ocasiões diferentes e têm um caráter
cerimonial que elimina qualquer ideia de equivalência. Ademais,

87
KARL POLANYI <

o comércio de objetos úteis, além de separado da kula, é nitida­


mente contrastado com as transações desta.
Seja qual for a origem do sentimento de satisfação que o ser
hum ano experimenta diante de um a reação adequada, as conota­
ções do que se considera adequado são m uito diferentes, depen­
dendo da situação a que se refiram. Enquanto o nosso senso de
justiça se expressa em termos de punição e recompensa, os m ovi­
mentos recíprocos de bens se expressam em term os de dádiva e
contradádiva: a adequação significa que a pessoa certa, n a ocasião
certa, deve retribuir o tipo certo de objeto. A pessoa certa, é claro,
é a que está colocada em posição simétrica. Aliás, não fosse essa
simetria, o complexo tom a-lá-dá-cá envolvido n u m sistem a de
reciprocidade não poderia funcionar. O com portam ento adequa­
do é, muitas vezes, o de equidade e consideração, ou pelo m enos a
aparência dele — e não a atitude strictijuris da lei antiga, com o na
insistência de Shylock em sua libra de carne. É raro que em algum
lugar o hábito de ofertar presentes recíprocos seja acom panhado
por práticas de negociação. Seja qual for a razão dessa elasticidade,
que dá preferência à equidade em relação ao rigor, ela tende clara­
mente a desestimular qualquer manifestação de interesse econô­
mico pessoal nas relações de reciprocidade.

Redistribuição e centralidade
A redistribuição prevalece nu m grupo na m edida em que, na alo­
cação de bens (incluindo-se a terra e os recursos naturais), estes
são recolhidos e distribuídos conforme o costume, a lei o u um a
decisão central ad hoc. Com isso se logra concentrar o resultado
do trabalho dividido. Às vezes, o sistema corresponde sim ples­
mente ao armazenamento e à redistribuição; outras vezes, a “cole­
ta” só diz respeito à disposição, ou seja, há um a troca dos direitos
de apropriação sem qualquer troca na localização efetiva dos bens.
A redistribuição ocorre por muitas razões e em diferentes socieda­
des, desde tribos primitivas de caçadores até os vastos sistemas de

88
FORMAS DE INTEGRAÇÃO E ESTRUTURAS DE APOIO

armazenamento do Egito, da Suméria, da Babilônia ou do Peru,


na Antiguidade. Em grupos de caçadores, qualquer outro método
de distribuição levaria à desintegração: como só a divisão do tra­
balho entre os caçadores pode garantir resultados, então a caça
deve ser distribuída. Nos grandes territórios, as diferenças no solo
e no clima podem tornar necessário organizar o trabalho; em ou­
tros casos, a distribuição se organiza por causa de variações tem ­
porais, como as existentes entre a colheita e o consumo.
Os métodos de coleta num sistema redistributivo podem ser
muito diferentes, variando da simples reunião para caçar até siste­
mas complexos de tributação em espécie. O chefe trobriandês ti­
nha o privilégio da poligamia. Podia ter até quarenta mulheres,
escolhidas nos quarenta subclãs das ilhas. Os irmãos das mulheres,
em todas as aldeias, garantiam o suprimento de um a grande quan­
tidade da produção de inhame para o estoque do chefe, que exer­
cia a liderança política a partir dos costumes matrimoniais da tri­
bo, conectados pelo privilégio da poligamia.
Em alguns povos primitivos, a vida pública é muito mais de­
senvolvida do que em nossas atuais sociedades ocidentais. As fes­
tas, a distribuição cerimonial de alimentos, as solenidades religio­
sas, os banquetes fúnebres, as visitas de Estado, a colheita e outras
celebrações oferecem um sem-número de ocasiões para a distri­
buição de alimentos em larga escala e, às vezes, até de produtos
manufaturados. Um a função mais im portante do chefe é reco­
lher e repartir tal riqueza nessas ocasiões cerimoniais, o que equi­
vale a redistribuir os produtos que recebe e armazena. Não faz
diferença se o que autoriza a coleta é o parentesco ou se são laços
feudais, vínculos políticos ou a tributação direta. O resultado é
sempre o mesmo: armazenagem e redistribuição. O que ocorre
em alguns reinos africanos nativos e amiúde parece, aos olhos do
Ocidente, um a tributação despótica ou uma exploração impiedo­
sa dos súditos é, mais comumente, só uma fase desse processo re­
distributivo.

89
KARL POLANYI

A redistribuição — física ou meramente dispositiva — só pode


ocorrer quando há canais pelos quais o movimento para o centro
e o movimento posterior a partir dele podem se dar. É imperativo
que haja certo grau de centralização. A organização central é vital,
não apenas em termos políticos, mas também econômicos. Entre
os trobriandeses, o Estado incipiente é um a instância redistributi-
va, mais que um órgão de defesa ou de dominação de classe.
O sistema tributário dos Estados m odernos é outra forma de
redistribuição. Tal redistribuição do poder aquisitivo pode ser va­
lorizada por seus objetivos sociais, mas o princípio de integração
é o mesmo — recolher e redistribuir a partir de um centro.
A redistribuição também pode se aplicar a um grupo m enor
que a sociedade, como um a família ou um feudo. Os exemplos
mais conhecidos de “economia doméstica” são o kraal da região
central da África, as kasbas do noroeste africano, a casa patriarcal
dos hebreus, o Estado grego da época de Aristóteles, a família ro­
mana, o feudo medieval e a casa típica dos camponeses do m undo
inteiro, antes da mercantilização geral de seus produtos.
Em grego antigo e em germânico, economia doméstica é a ex­
pressão usada para designar a produção para o próprio grupo.
Oikonomia [administração/direção da casa], em grego, deu ori­
gem à palavra economia; Haushaltung, em alemão, corresponde
exatamente a isso. O princípio de “prover para si mesm o” per­
manece idêntico, seja o “si mesmo” um a família, um a cidade ou
um senhorio feudal. Tradicionalmente, essa foi considerada a for­
ma original da vida econômica. Até Karl Bücher, o primeiro a cha­
m ar atenção para o caráter radicalmente diferente da sociedade
primitiva, incorreu no erro de propor a regra da “busca individual
do alimento” como o estágio pré-econômico da história hum ana.2
Mas a economia doméstica não constitui um a forma primitiva
de vida econômica. A ideia de que o hom em começou por cuidar

2 Karl Bücher, Die Entstehung der Volkswirtschaft. Tübingen, 1893; Industrial Evolution.
Toronto: Universityof Toronto Press, 1901, cap. 3.

90
FORMAS DE INTEGRAÇÃO E ESTRUTURAS DE APOIO

de si e de sua família deve ser descartada. Quanto mais recuamos


na história da sociedade humana, menos encontramos o hom em
agindo em benefício próprio em assuntos econômicos, cuidando
de seu interesse pessoal. Somente num a form a relativam ente
avançada de sociedade agrícola é que a economia doméstica tor­
na-se viável e se generaliza. Antes disso, a instituição amplamente
difundida da “família nuclear” não era economicamente institu­
cionalizada, exceto, às vezes, na preparação dos alimentos.

Troca e mercados
A troca é um movimento bidirecional de bens entre pessoas orien­
tadas para o ganho que cada um a delas obtém dos termos resul­
tantes. Dito de maneira mais simples, o escambo ou perm uta é o
comportamento de pessoas que trocam bens para obter o máximo
proveito. Pechinchar e regatear são essenciais nessa prática; nesse
caso, tais procedimentos não resultam de um a fraqueza hum ana,
mas de um padrão comportamental logicamente exigido pelo m e­
canismo do mercado.
Atos aleatórios de perm uta, por si sós, não produzem preços,
a menos que exista um padrão de mercado que oriente a intenção
de perm uta das pessoas. Nesse sentido, o escambo é muito pareci­
do com a reciprocidade e a redistribuição. O princípio de conduta,
para se tom ar eficaz, requer a presença de um a estm tura institu­
cional. O padrão de mercado não nasce do mero desejo dos indi­
víduos de “comerciar, perm utar e trocar”. Suas origens, como ve­
remos, vêm de outras direções.

Formas de integração e estágios de desenvolvimento


As formas de integração não representam “estágios de desenvol­
vimento” necessários. Várias formas subordinadas podem estar
presentes ao lado da forma dominante, a qual, por sua vez, pode
reaparecer após um eclipse temporário. As sociedades tribais pra­
ticam a reciprocidade e a redistribuição, enquanto as sociedades

91
KARL POLANYI

arcaicas são predominantemente redistributivas, embora também


deixem espaço para a troca. A reciprocidade, que desempenha um
papel dominante na maioria das comunidades tribais, sobreviveu
como um traço im portante, em bora subalterno, nos impérios
arcaicos redistributivos, nos quais o comércio exterior ainda se
organizava, em larga medida, com base nesse princípio. Em si­
tuações excepcionais, ela voltou a ser introduzida em larga escala
no século XX, sob o nome de empréstimo e arrendam ento [ lenã-
-lease],em sociedades em que o mercado e as trocas normalmente
eram dominantes. A redistribuição, m étodo predom inante nas
sociedades tribais e arcaicas nas quais a troca desempenhava um
papel menor, assumiu enorm e im portância no fim do Império
Romano e hoje ganha terreno nos modernos Estados industriais.
Inversamente, seria um erro identificar rigidamente o predomínio
da troca com a economia ocidental do século XIX. Ao longo da
história humana, mais de um a vez os mercados desempenharam
um papel significativo na integração da economia, embora nunca
em escala territorial e institucional remotamente comparável à do
Ocidente no século XIX. Também nesse aspecto observa-se um a
mudança no século XX, com um declínio da concorrência e dos
mercados em relação a seu pico no século XIX.
Ainda assim, é pertinente classificar as economias de acordo
com as formas dominantes de integração. O que os historiadores
costumam chamar, mais ou menos tradicionalmente, de “sistemas
econômicos” — isto é, economias empíricas de um tipo definido,
como o feudalismo ou o capitalismo — enquadra-se nesse padrão.
Basta concentrarmos a atenção no papel da terra e do trabalho, os
dois elementos que definem essencialmente o predomínio de uma
ou outra forma de integração. A comunidade tribal caracteriza-se
pela integração da terra e do trabalho na economia por meio de
laços de parentesco. Na sociedade feudal, os laços de vassalagem
determinam o destino da terra e do trabalho que os acompanham.
Nos impérios hidráulicos, a terra e o trabalho, pelo menos em sua
FORMAS DE INTEGRAÇÃO E ESTRUTURAS DE APOIO

forma dependente, eram predominantemente distribuídos (e re­


distribuídos, às vezes) pelo templo ou o palácio. Podemos rastrear
a m oderna ascensão do mercado à condição de força dominante
na economia ao observarmos até que ponto a terra e o alimento
foram capturados pelo intercâmbio e o trabalho foi transformado
em mercadoria a ser comprada no mercado. Talvez isso ajude a
explicar a importância da classificação (dificilmente sustentável,
de outro m odo) dos sistemas econômicos em escravidão, servidão
e trabalho assalariado, tradicional no marxismo — classificação
que nasce da convicção de que o caráter da economia é determi­
nado, acima de tudo, pelo status do trabalho. É claro, porém , que
a integração da terra na economia também deve ser vista como
algo de grande importância.

93
A economia enraizada na sociedade

Introdução
A característica fundamental do sistema econômico do século XIX
foi sua separação institucional do resto da sociedade. Num a eco­
nomia de mercado, a produção e a distribuição de bens materiais
são efetuadas por meio de um sistema autorregulador de merca­
dos, regido por leis próprias — as chamadas leis da oferta e da
procura — e motivado, em última instância, por dois incentivos
simples: o medo da fome e a esperança do lucro. Esse arranjo ins­
titucional separa-se das instituições não econômicas da sociedade,
como a organização do parentesco e os sistemas políticos e religio­
sos. Doravante, laços de sangue, obrigação legal, m andam entos
religiosos, vassalagem ou magia não criam situações sociologica­
mente definidas que garantam a participação dos indivíduos no
sistema. Instituições como a propriedade privada dos meios de
produção e o sistema salarial funcionam com base em incentivos
puramente econômicos.
Estamos acostumados, é claro, a que as coisas sejam assim —
a subsistência é assegurada, prim ordialm ente, por instituições
econômicas que são acionadas por motivações econômicas e re­
gidas por leis econômicas. Instituições, motivos e leis são especi­
ficamente econômicos. Pode-se imaginar todo o sistema funcio­
nando sem a intervenção consciente da autoridade hum ana, do
Estado ou do governo. N enhum a motivação, senão prevenir a
fome e obter lucro, precisa ser invocada; nenhum requisito legal,
senão a proteção da propriedade e o cum prim ento dos contra­
tos, é necessário. No entanto, dada a distribuição dos recursos e
do poder aquisitivo, bem como as escalas individuais de p re­
ferências, presume-se que o resultado seja ótim o em term os de
satisfação das necessidades. Tal foi a “separação” estabelecida no

95
KARL P0LANY1

século XIX. Agora, passemos à alternativa menos familiar do “en­


raizamento”, na qual deparamos com diversas questões que preci­
sam ser esclarecidas.
Exporemos um a breve história do problema, primeiro em ter­
mos de status e contrato, depois nos termos mais recentes da an­
tropologia cultural.

S ta tu s e contractus
Começamos pela descoberta, revelada por Sir Henry Sumner Mai-
ne em Direito antigo (1861), de que muitas instituições da socie­
dade m oderna se estabeleceram com base em contratos, ao passo
que a sociedade antiga baseava-se no status. O status, adquirido
por nascimento — pela posição da e na família — , determina os
direitos e deveres da pessoa, os quais, por sua vez, decorrem do
parentesco, do totem e de outras fontes. Esse sistema de status per­
sistiu durante o feudalismo e, com algumas ressalvas, chegou até
mesmo à era da igualdade cidadã estabelecida no século XIX. Aos
poucos, foi substituído pelo contractus, ou seja, por direitos e de­
veres estipulados por transações consensuais, ou contratos. Esses
fatos foram assinalados inicialmente por Maine em sua investi­
gação do direito rom ano e desenvolvidos em seu livro sobre as
comunidades aldeãs do leste da índia, cujas economias não m er­
cantis também chamaram a atenção de Marx.
A influência de Maine no continente europeu foi sustentada
por Ferdinand Tõnnies, um sociólogo alemão cuja concepção
foi sintetizada no título de seu livro Comunidade e sociedade
[Gemeinschaft und Gesellschaft], de 1888. A terminologia talvez
pareça confusa, mas não é. Comunidade corresponde a “sociedade
de status” e sociedade, a “sociedade de contrato”.
Maine, Tõnnies e M arx exerceram profunda influência na so­
ciologia p o r interm édio de M ax Weber, que usou os term os
Gemeinschaft e Gesellschaft no mesmo sentido de Tõnnies. Entre
Maine e Tõnnies, a conotação emocional de status ou comuni-

96
A ECONOMIA ENRAIZADA NA SOCIEDADE

dade, de um lado, e de contractus ou sociedade, de outro, foi m ui­


to diferente. Maine pensava na condição pré-contratual do h o ­
mem como sendo a era de trevas do tribalismo; a introdução do
contrato, a seu ver, emancipara o indivíduo da submissão à tribo.
As simpatias de Tõnnies, ao contrário, recaíam sobre o calor da
comunidade, contrastado com os laços comerciais e impessoais
da sociedade. Ele idealizava a “comunidade” como uma situação
em que os seres humanos são ligados pelo tecido da experiência
comum, enquanto a “sociedade” nunca fica m uito longe da im ­
pessoalidade do mercado e do “elo do dinheiro”, como Thomas
Carlyle denom inou a relação entre pessoas ligadas apenas por
laços de mercado.
O ideal de Tõnnies era a restauração da comunidade — não
por um retorno ao estágio pré-industrial da sociedade, mas pelo
avanço para um a forma superior de comunidade, que aperfeiçoa­
ria a nossa civilização atual. Seria um a espécie de fase cooperativa
da civilização, que conservaria os benefícios do progresso tecnoló­
gico e da liberdade individual, recuperando ao mesmo tem po a
inteireza da vida. Em certa medida, sua postura assemelhava-se à
de Robert Owen, ou, entre os pensadores modernos, à de Lewis
Mumford. Em Paisagens democráticas, de Walt W hitm an (1871),
podemos descobrir analogias proféticas com essa visão.
As idéias de Maine e Tõnnies sobre a evolução da civilização
hum ana foram amplamente aceitas por muitos estudiosos como
chaves para se compreender a história da sociedade moderna. En­
tretanto, durante m uito tempo não houve qualquer avanço na tri­
lha que eles abriram. Maine discorreu sobre o assunto como um
tema da história do direito, incluindo nele as formas comunitárias
que ainda sobreviviam nas aldeias da índia. Tõnnies reconstruiu
os contornos da civilização antiga e medieval com a ajuda da di-
cotomia “comunidade-sociedade”. Nenhum dos dois tentou apli­
car essa distinção à história real de instituições econômicas como
o comércio, o dinheiro e os mercados.

97
KARL POLANYI

A contribuição da antropologia
Os primeiros sinais importantes de desenvolvimento teórico nessa
linha encontram-se nas descobertas antropológicas de Franz Boas,
Bronislaw Malinowski e Richard Thurnwald. As idéias desses estu­
diosos implicaram um a crítica ao chamado “hom em econômico”
da teoria clássica e estabeleceram o estudo das economias prim iti­
vas como um ram o da antropologia cultural.
Por um capricho da história, o antropólogo Bronislaw Mali­
nowski ficou ilhado em seu próprio “campo” durante a Primeira
Guerra Mundial. Ele era cidadão austríaco e, portanto, tecnica­
mente, um inimigo estrangeiro entre os selvagens da ponta su­
doeste da Nova Guiné. Durante dois anos, as autoridades britâni­
cas lhe recusaram permissão para partir. Quando finalmente pôde
voltar das ilhas Trobriand, havia reunido material suficiente para
escrever A economia primitiva dos ilhéus trohriandeses (1921), Ar-
gonautas do Pacífico Ocidental (1922), Crime e costume na socieda­
de selvagem (1926), A vida sexual dos selvagens (1929) e Os jardins
de coral e sua magia (1935). Faleceu nos Estados Unidos em 1942.
Seus livros influenciaram não apenas o estudo da antropologia,
mas também os pontos de vista e métodos da história econômica.
Richard Thurnwald, de Berlim, cujo campo era a Nova Guiné, p u ­
blicou sua exposição sobre os banaros em 1916, na revista Ameri­
can Anth ropologist. Exerceu influência sobre o m undo anglo-saxão
principalmente por seu impacto em Malinowski. (Embora conhe­
cido como antropólogo, Thurnwald foi discípulo de Max Weber.)
A exposição de Malinowski dem onstrou que os membros de
comunidades sem escrita comportavam-se, grosso modo, de forma
bem razoável. Seu comportamento, aparentemente exótico, podia
ser explicado em termos de instituições que estimulavam motiva­
ções diferentes das nossas em alguns aspectos, mas não em outros.
A subsistência estava ligada à difundida prática da reciprocidade:
os membros de um grupo se portavam em relação aos de outro tal
como se esperava que os membros desse grupo, ou de um terceiro,

98
A ECONOMIA ENRAIZADA NA SOCIEDADE

se portassem em relação a eles. Por exemplo, um hom em de um


subclã de um a aldeia supria a família de sua irm ã de produtos
agrícolas, embora a irm ã geralmente morasse na aldeia do marido,
às vezes a uma grande distância da habitação do irmão — um ar­
ranjo que resultava num a perambulação antieconômica por parte
do irmão diligente. Se o irmão fosse casado, um serviço semelhan­
te seria prestado à sua família pelos irmãos varões de sua mulher.
À parte essa contribuição substancial para as casas dos parentes
matrilineares, desenvolveu-se um sistema de presentes e contra-
presentes recíprocos que só indiretamente apelavam ao interesse
pessoal econômico; suas motivações eram não econômicas — por
exemplo, o orgulho pelo reconhecimento público das virtudes cí­
vicas, na condição de irmão ou de lavrador. O mecanismo da reci­
procidade, eficiente no tocante à questão relativamente simples
da oferta de alimentos, também respondia pela instituição suma­
mente complexa da kula, uma variante estética do comércio inter­
nacional. As transações kula entre os habitantes do arquipélago
estendiam-se por vários anos, ao longo de dezenas de milhas de
mares inseguros, envolvendo milhares de objetos, trocados como
presentes entre parceiros individuais residentes em ilhas distantes.
Toda essa instituição funcionava para minimizar a rivalidade e o
conflito, maximizando a alegria de dar e receber presentes.
N enhum desses registros de Malinowski era especialmente
novo; fatos semelhantes tinham sido observados em outros locais.
Apesar de contrastar no tom e na coloração com o potlatch dos
índios kwakiutl, a kula não era mais peculiar que a exibição ultra-
-arrogante de destruição proposital, descoberta e exaustivamente
descrita pelo antropólogo Franz Boas em The Social Organization
ofthe Secret Societies ofthe Kwakiutl “Potlatch” (1895).
No entanto, o brilhante ataque de Malinowski ao conceito de
“homem econômico”, que estava subjacente à abordagem tradi­
cional de etnógrafos e antropólogos, transform ou as economias
primitivas em um novo ram o da antropologia social, de grande
interesse para os historiadores econômicos.
KARL POLANYi

O m ito do “selvagem individualista” já estava m orto e enter­


rado, assim como seu antípoda, o do “selvagem comunista”. Evi-
denciou-se que não era tanto a mente dos selvagens que diferia
da nossa, mas sim suas instituições. No microscópio dos antro­
pólogos, até mesmo a proclamada propriedade comunitária reve-
lou-se diferente do que se supunha ser. Embora a terra realmente
pertencesse à tribo ou ao grupo de parentes consanguíneos, cons-
tatou-se que tam bém existia uma rede de direitos individuais que
retirava da expressão “propriedade comunal” a maior parte do seu
conteúdo. Margaret Mead descreveu isso, dizendo que o hom em
“pertencia” ao seu pedaço de terra, em vez de a terra pertencer ao
homem. O comportamento não era regido pelos direitos dos indi­
víduos de dispor da terra, mas pelo compromisso desses indiví­
duos de cultivar pedaços definidos de terra. Falar de propriedade
individual ou comunal da terra parece algo fora de lugar onde a
própria ideia de propriedade não é aplicável. Entre os trobriande-
ses, a distribuição ocorria principalmente por meio de dádivas e
contradádivas.
Como conclusão geral, pode-se afirmar que a produção e a dis­
tribuição de bens materiais estavam enraizadas em relações sociais
de natureza não econômica. Não existia um sistema econômico
institucionalmente separado, tampouco um a rede de instituições
econômicas. Nem o trabalho, nem a maneira de dispor dos obje­
tos, tampouco a distribuição deles realizavam-se por motivos eco­
nômicos, por desejo de ganho ou de receber pagamento, ou ainda
por medo de passar fome como indivíduo. Se considerarmos que
sistema econômico significa o conjunto de traços comportamentais
inspirados em motivações individuais da fome e do lucro, diremos
que não existia um sistema econômico. Entretanto, se entender­
mos, como convém, que essa expressão abarca os traços compor­
tamentais relacionados com a produção e a distribuição de bens
materiais — o único significado relevante para a história econô­
mica — , então somos obrigados a dizer que existia um sistema
econômico, mas ele não era institucionalmente separado. Na ver­

100
A ECONOMIA ENRAIZADA NA SOCIEDADE

dade, era um mero subproduto do funcionamento de outras ins­


tituições não econômicas.
Poderemos entender isso com mais facilidade se nos concen­
trarmos no papel da organização social básica na orientação das
motivações individuais. Ao estudar o sistema de parentesco dos
banaros da Nova Guiné, Richard Thurnwald descobriu um com­
plexo sistema de trocas matrimoniais. Nada menos que quatro
casais diferentes tinham de se unir por m atrim ônio na mesma
ocasião, cada parceiro tendo um a relação clara com alguma outra
pessoa do grupo recíproco. Para que tal sistema funcionasse,
o grupo já tinha de existir, dividindo artificialmente os parentes
consanguíneos em subgrupos. Para isso, a casa dos homens (ou
salão dos espectros) era habitualmente dividida; os que residiam à
direita (Bem) e os que residiam à esquerda ( Tan) formavam subse­
ções para efeito do sistema de trocas matrimoniais. Thurnwald
escreveu:
A simetria da disposição da casa dos homens expressa o princípio
de reciprocidade — o princípio de dar “igual por igual” —, de
retaliação ou retribuição. Isso parece resultar do que se conhece
psicologicamente como “reação adequada”, que tem raízes pro­
fundas no ser humano. De fato, esse princípio permeia o pensa­
mento dos povos primitivos e se expressa com frequência na or­
ganização social.1

Essa observação foi retomada por Malinowski em Crime e cos­


tume na sociedade selvagem. Ele sugeriu que as subdivisões simé­
tricas da sociedade, como as encontradas por Thurnwald na casa
dos homens, deviam existir em toda parte como base da recipro­
cidade entre os povos primitivos. A reciprocidade, como forma de
integração, e a organização simétrica andavam juntas. Essa talvez
seja a verdadeira explicação para a famosa dualidade da organiza­
ção social. Aliás, no tocante a sociedades sem escrita — portanto,
sem contabilidade — , podemos indagar como a reciprocidade po-

1 Thurnwald, “Banaro Society”.

101
KARL POLANYI

deria ser praticada por longos períodos e por grande número de


pessoas das mais variadas posições se a organização social não
satisfizesse essa necessidade, fornecendo grupos simétricos já for­
mados, cujos m em bros pudessem portar-se sim ilarm ente uns
com os outros. Essa sugestão teve implicações importantes para o
estudo da organização social. Entre outras coisas, ela explica o pa­
pel das complexas relações de parentesco frequentemente encon­
tradas nas sociedades primitivas, onde funcionam como suportes
da organização social.
Visto que não existe organização econômica separada e que, ao
contrário, o sistema econômico está inserido nas relações sociais,
tem de haver um a organização social elaborada para cuidar de
aspectos da vida econômica, como a divisão do trabalho, a m anei­
ra de dispor da terra, a organização do trabalho, a herança e assim
por diante. As relações de parentesco tendem a ser complicadas
porque têm de fornecer a base de um a organização social que
substitui um a organização econômica separada. (A propósito,
Thurnwald observou que as relações de parentesco tendem a se
simplificar assim que se desenvolvem organizações político-eco­
nômicas separadas, pois aí “não há mais necessidade de relações
complexas de parentesco”.)2
Temos em nossa sociedade um sistema econômico institucio­
nalmente separado. Nela, um im portante conceito integrador é
o da agregação de unidades econômicas intercambiáveis. Daí o
aspecto quantitativo da vida econômica. Q uando possuímos dez
dólares, não pensamos neles como dez dólares individuais, especí­
ficos, mas como unidades que podem substituir umas às outras.
Sem esse conceito quantitativo, a noção de economia mal chega
a fazer sentido.
É im portante reconhecer que conceitos quantitativos dessa na­
tureza não são aplicáveis a sociedades primitivas. A economia de
Trobriand, por exemplo, organiza-se sobre um a base contínua de

2 Ibid.

102
A ECONOMIA ENRAIZADA NA SOCIEDADE

dar e receber, mas não há possibilidade de fazer balanços nem de


usar o conceito de reservas. As múltiplas “transações” não podem
ser classificadas a partir do ponto de vista econômico, isto é, pela
maneira como afetam a satisfação das necessidades materiais.
Embora a importância das “transações” possa ser grande, não há
como avaliar essa importância quantitativamente.
Uma das realizações teóricas de Malinowski foi dem onstrar
isso de forma conclusiva. Primeiro, ele listou os diferentes tipos
economicamente significativos do dar e do receber, desde os pre­
sentes gratuitos (como os descreveriamos), num extremo, até a
simples perm uta comercial (de novo, tal como a descreveriamos),
no outro. Depois, reuniu as relações sociologicamente definidas
em que ocorrem todas as diferentes relações do dar e do receber.
Em seguida, relacionou os diferentes tipos de presentes, pagamen­
tos e transações com essas relações.3
Malinowski constatou que a categoria dos “presentes gratuitos”
era excepcional e até mesmo anômala. A caridade não era neces­
sária nem incentivada, e a ideia de dádiva estava sempre associada
à da contradádiva. Por conseguinte, até os presentes obviamente
“gratuitos” costumavam ser interpretados como contradádivas
por algum serviço prestado por seus destinatários. Mais im por­
tante ainda, ele constatou que “os nativos não pensariam que os
presentes gratuitos formam um a classe, ou seja, são todos da mes­
ma natureza”.4 Essa atitude impossibilita que o indivíduo conside­
re que tais presentes pertencem a um a esfera de atividade econô­
mica, no sentido de m anter ou aum entar reservas.
No grupo de transações em que a dádiva tinha de ser retribuí­
da sob um a forma equivalente, Malinowski deparou com um fato
surpreendente. Esse é o grupo que, de acordo com nossas idéias,

3 Bronislaw Malinowski, Argonauts o fth e Western Pacific. Nova York: E. P. Dutton, 1961,
p. 176 ss [Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura
dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia, trad. Anton P. Carr e Ligia
A. C. Mendonça. 3a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984].
4 Bronislaw Malinowski, Argonauts o f the Western Pacific, op. cit., p. 178.

103
KARL POLANYI

mais se aproximaria da troca de equivalentes e deveria ser pratica­


mente indistinguível do comércio. Longe disso! Com m uita fre­
quência, um mesmo objeto era trocado de um lado para outro
entre os parceiros, eliminando qualquer sentido ou significado
econômico imaginável das transações. Na verdade, esse m eca­
nismo simples, a equivalência, longe de representar um passo em
direção à racionalidade econômica, tornava-se um a salvaguarda
contra a intromissão de elementos utilitários na transação. Se o
objetivo da troca era fortalecer as relações e os laços entre os par­
ceiros, esse objetivo não seria atingido se os parentes consanguí-
neos questionassem o valor dos alimentos oferecidos.
O escambo e o comércio reais entre os trobriandeses distin-
guem-se de qualquer outro tipo de oferta de presentes. Na troca
cerimonial de peixe e inham e prevalece um sentido m útuo de
equivalência entre os dois lados, mas no escambo entre peixe e
inhame há regateio. Essa perm uta de artigos úteis caracteriza-se
pela ausência de form as cerim oniais e de parceiros especiais.
Q uanto aos produtos m anufaturados, a perm uta se restringe a
objetos novos, ficando excluídos os artigos de segunda mão, que
podem ter um valor pessoal.
Em geral, em todas as formas de troca, exceto o escambo, as
quantidades e os tipos de coisas oferecidas e recebidas em contra­
partida relacionam-se especificamente com o tipo de relação social
implicada, seja de família, clã, subclã, comunidade aldeã, distrito
ou tribo. Cada um a é distinta e separada na terminologia e no pen­
samento dos nativos. Nessas condições, os conceitos agregativos de
reserva, balanço, prejuízo e lucro são obviamente inaplicáveis.
O resultado dessas características das sociedades primitivas é a
impossibilidade de organizar a economia, mesmo em pensamen­
to, como um a entidade distinta das relações sociais em que seus
elementos estão enraizados. Mas também não há necessidade de
organizá-la assim, pois as relações sociais integradas às institui­
ções não econômicas da sociedade cuidam automaticamente do
sistema econômico. Na sociedade tribal, o processo econômico se

104
A ECONOMIA ENRAIZADA NA SOCIEDADE

enraiza nas relações de parentesco, as quais definem as situações


que dão origem às atividades econômicas organizadas. O que exis­
te de produção e distribuição de bens, assim como de organização
dos serviços produtivos, é instituído em termos de parentesco. Os
diversos grupos dispõem de terras para caçar, pescar, m ontar ar­
madilhas e colher, bem como de pastagens e de solo arável. A acu­
mulação de produtos essenciais faz parte das atividades coletivas
do grupo familiar, esteja ele engajado em conflitos com outros
grupos ou em festas cerimoniais. A riqueza circula em virtude
do status ou de exigências religiosas ou militares. A apropriação
parcial das mesmas unidades físicas de terra, árvores ou madeira
por vários grupos de parentes fragmenta a noção de propriedade.
A satisfação das necessidades utilitárias amiúde não depende da
posse de coisas, mas do direito de solicitar serviços. Na inexistên­
cia de preços, faltam aos atos de troca as características operacio­
nais essenciais a um a abordagem quantitativa; em vez disso, o im ­
pacto qualitativo e de prestígio dos “bens valiosos” rouba a cena.
Nesse estilo de vida cujos pontos de referência situam-se fora da
esfera econômica, a orientação prática do hom em mais seria pre­
judicada que auxiliada se ele adotasse um foco “econômico”.
Assim, a solidariedade da tribo era cimentada p o r um a orga­
nização da economia que agia para neutralizar os efeitos de dis-
rupção da fome e da busca de ganho, ao mesmo tempo que explo­
rava plenamente as forças socializadoras inerentes a um destino
econômico comum. As relações sociais em que a economia estava
enraizada protegiam a distribuição da terra e do trabalho dos efei­
tos corrosivos de emoções antagônicas. A integração do hom em
e da natureza à economia dependia fundamentalmente do fun­
cionamento da organização básica da sociedade, que cuidava das
necessidades econômicas do grupo, se é que elas podiam ser cha­
madas assim.
Tudo isso, é claro, concerne apenas a uma consciência subjetiva
da economia. O processo objetivo, tal como efetivamente se de­
senrola, tem lugar fora de qualquer consciência conceituai p or

105
KARL P0LANY1

parte dos participantes, pois a sequência causai a que devemos a


disponibilidade dos bens de prim eira necessidade está presente,
independentemente de como os homens conceituem a sua exis­
tência. As estações do ano trazem o tem po da colheita, com suas
tensões e seu relaxamento; o comércio da guerra tem o ritm o da
preparação e da congregação, bem como da solenidade no retom o
dos vencedores; toda sorte de artefatos, seja canoas ou adornos,
é produzida e eventualmente usada por vários grupos de pessoas;
o alimento é preparado todos os dias na fogueira da família. Ape­
sar disso tudo, a unidade e a coerência dessas atividades econômi­
cas podem permanecer inconscientes na mente dos participantes.
É que a série de interações entre os homens e seu ambiente natu­
ral, seja ela centrada na movimentação física dos objetos, seja em
mudanças de apropriação, transmite significados e reflete depen­
dências múltiplas, um a das quais é aquela que denominamos eco­
nomia. Mesmo que o econômico se destaque, podem existir forças
contrárias que atuem no sentido de im pedir que os movimentos
institucionalizados formem um todo coerente. Essas forças con­
trárias são largamente responsáveis pela ausência de um conceito
de economia na sociedade primitiva.

106
A origem das transações econômicas

Das sociedades tribais às arcaicas


Para estudar a origem das transações econômicas, escolhemos o
período da história hum ana que começa na época tribal e chega às
condições arcaicas de vida nos primórdios da sociedade civilizada.
Em termos absolutos, é claro, diferentes sociedades atingiram
o estágio civilizado em diferentes momentos, quando os laços do
clã começaram a afrouxar e os grupos chegaram ao limiar da his­
tória. Observe-se, porém , a civilização do Extremo O riente, da
Europa Ocidental, da Babilônia ou do México; em qualquer socie­
dade é nítida a separação entre as instituições tribais e as institui­
ções arcaicas, mesmo naquelas em que há continuidade em outros
aspectos.
O principal obstáculo ao estudo da origem das transações eco­
nômicas nos prim órdios é a dificuldade de identificar o processo
econômico em situações em que nem sua unidade nem sua coe­
rência estavam salvaguardadas por instituições especificamente
econômicas. Nas sociedades primitivas, o processo econômico se
relacionava especialmente com o grupo familiar, o Estado, a magia
e a religião. Esses domínios também geravam os sistemas de status,
dos quais as transações econômicas tenderam a se “desprender”.
A formação do Estado oferece uma explicação para o salto apa­
rente que separa o nível da tribo ou do clã, de um lado, e a socie­
dade arcaica, de outro. A guerra e o comércio — atividades que
com muita frequência obrigam os clãs ou as tribos a instituir um
poder maior que lhes sirva de proteção -— exigem recursos, em
termos de homens, gado e material, cuja acumulação e o manejo
têm desdobramentos que resultam em instituições inteiramente
novas. Todavia, por mais novas que elas sejam no nível institucio­
nal, a terra, o povo, os bens e os serviços já estavam presentes no

107
KARL P0LANY1

contexto do clã ou da tribo, sendo reconfigurados sob um a forma


mais avançada na época arcaica. A maneira pela qual a terra e o
trabalho se enraizaram nas instituições não econômicas da vida
do clã exerceu certa influência na forma pela qual, posteriorm en­
te, tais instituições emergiram nas condições arcaicas.
Uma breve comparação das condições tribais com as arcaicas
elucidará a natureza do problema. Em essência, trata-se da grada­
tiva emergência do econômico a partir de seu enraizamento no
tecido da sociedade. Os termos gerais “estilo de vida”, “status” ou
“bens de fortuna” ainda não dão margem ao econômico como um
aspecto distinto da unidade social mais ampla. Desse “estilo de
vida”, entretanto, tende a surgir gradativamente a “ocupação” do
homem, ou seja, seu papel econômico. As chamadas transações
“econômicas”, que envolvem os movimentos de apropriação da
terra, do gado e dos escravos, dissociam-se e emergem das transa­
ções abrangentes de status. Das partes distinguíveis dos três “bens
da fortuna” — a vida, a honra e a posição social — , um processo
institucionalizado tende a separar duas necessidades: garantir a
vida e reter a riqueza. O u seja, o aspecto econômico das coisas
só pode se afirmar se as atividades econômicas se diferenciarem
do processo geral de viver, se a terra puder m udar de mãos, alte­
rando a posição da pessoa que a detém, se a honra já não for iden­
tificada com a riqueza nem a riqueza com a honra, e se nenhum a
delas for um mero corolário do poder que um a pessoa ostenta,
enquanto os pobres e os indefesos estão condenados por falta de
meios ou recursos.
Em algumas sociedades arcaicas — não em todas — , vemos o
novo estado de coisas em desenvolvimento. De um m odo ou de
outro, surgem interesses em transações de novo tipo. Paralelamen­
te às transações de status praticadas pela tribo, aparecem transa­
ções que se referem menos ao status dos homens do que à im por­
tância dos bens como tais. À adoção, ao casamento, à emancipação
ou ao vínculo da aprendizagem acrescentam-se transações que

108
A ORIGEM DAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS

concernem unicamente à maneira de dispor da terra ou do gado.


Embora, durante longo período, as transações de status e as tran ­
sações econômicas ainda tenham permanecido tão solidamente
vinculadas que seria difícil separá-las, o resultado desse fenômeno
não deixou dúvida: o surgimento de transações econômicas pro­
priamente ditas perm itiria aos indivíduos usar com mais liberda­
de os recursos econômicos disponíveis e, desse modo, abrir a pos­
sibilidade de um progresso material quase ilimitado.
Essa, como sugerimos, não foi a única linha do progresso arcai­
co. Nas cidades-estado sumérias e em sua réplica enormemente
ampliada — o império faraônico — , as transações econômicas
continuaram inteiramente subordinadas. As realizações econômi­
cas do Novo Im pério e até as do Egito ptolemaico deveram-se,
primordialmente, a um aperfeiçoamento dos métodos de direção
da economia redistributiva.
Mas, apesar de sua economia redistributiva, a M esopotâmia
introduziu métodos de transação e de disposição muito im portan­
tes economicamente. Aparentemente, eles se assemelhavam a al­
guns métodos de mercado empregados nas antigas cidades-estado
da Grécia, pois, tanto na Babilônia não mercantil quanto na ágora
de Atenas, ainda que de maneiras muito diferentes, as transações
de status eram complementadas por transações econômicas.
Como se instaurou essa transformação crucial? Por que O rien­
te e Ocidente tom aram direções diferentes? Eis as questões.

A solidariedade comunal nas sociedades arcaicas


De todos os princípios básicos que regeram o desenvolvimento
das primeiras instituições econômicas, a necessidade de m anter a
solidariedade comunal merece o lugar de honra. As relações inter­
nas e externas tinham um contraste marcante: solidariedade aqui,
inimizade ali — essa era a regra. “Eles” eram objeto de hostilidade,
degradação e escravização; “nós” éramos unidos e tínhamos um a
vida comunitária regida pelos princípios de reciprocidade, redis-
tribuição e troca de bens equivalentes.

109
KARL POLANYI

Os princípios do comportamento do “nós” e do “eles” conver­


giram e se fundiram de muitas maneiras, mas, longe de apagar as
diferenças, esses processos tenderam a enfatizá-las. O casamento e
o comércio — subprodutos mais ou menos pacíficos da invasão e
da guerra — levaram a um a penetração de costumes estrangeiros
na cultura do “nós”, e a aculturação pôde decorrer desses contatos
contínuos e íntimos. Mas a unidade interna precisava ser mantida
de maneira ainda mais decisiva na economia da tribo. Para isso,
empregaram-se métodos de integração que evitavam a discórdia e
o antagonismo dentro do grupo e, no lugar deles, fomentavam as
artes da solidariedade. A reciprocidade desloca a ênfase do com­
ponente utilitário, da vantagem egoísta, para a experiência amável
e gratificante que flui dos contatos de vizinhança m utuam ente
honoríficos com aqueles a quem nos ligamos em relações especí­
ficas de status objetivo e amizade pessoal. A redistribuição fortale­
ce os laços comunais internos por todos os meios psicológicos à
disposição do ser humano. A identificação pessoal com o poder e
a autoridade, a afeição e a admiração mescladas com o medo em
relação ao poder do centro, o prazer decorrente da exibição da
riqueza comum, o desfrute de direitos iguais de status e posição, a
participação num a variedade de celebrações ligadas à “repartição”
dos alimentos festivos, tudo isso revigorava as emoções sociais e
estreitava os laços da comunidade.
Isso é hostil a um a atmosfera em que vicejem as transações
econômicas. A solidariedade tribal e o enraizamento da economia
dependem de relações de reciprocidade, assim como da prática de
acumular víveres perecíveis em um centro, de m odo que os m an­
timentos armazenados voltem a fluir para os membros da comu­
nidade. A solidariedade no campo econômico é m antida por ins­
tituições que garantem um manejo não conflituoso do alimento.
Como resultado lógico, emerge quase um tabu, semelhante aos
que regem a violação das leis sexuais ou o desrespeito à autoridade
do chefe e do sacerdote, que são encarnações das funções prote­
toras e redistributivas na sociedade. Esse tabu proíbe transações

no
A ORIGEM DAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS

lucrativas com alimentos. Visto que a própria existência da co­


munidade depende da ação ininterrupta de forças extremas que
impulsionem a solidariedade, respaldada por sanções ritualísti-
cas, mágicas e religiosas, qualquer conduta que contrarie essa di­
retriz suprema de sobrevivência é intolerável. E continuaria sendo,
mesmo que surgisse um a forte pressão de interesses econômicos
egoístas, o que é duvidoso. Uma vez que se reconheça o valor do
status, então o orgulho, a honra e a vaidade são pelo menos tão
eficazes para nortear o egoísmo hum ano quanto as motivações
econômicas do lucro.
Por isso torna-se ainda mais im portante explicar p o r que as
transações econômicas surgiram em algumas sociedades arcaicas.
A mentalidade economicista tem uma resposta pronta: assim que
as superstições da magia se enfraqueceram o bastante para perm i­
tir que as idéias esclarecidas prevalecessem, o domínio dos tabus
tribais se enfraqueceu e os instintos aquisitivos naturais do ser
humano se afirmaram; o indivíduo, livre dos grilhões dos medos
irracionais, seguiu o caminho natural do interesse pessoal e ini­
ciou as permutas lucrativas. O cervo e o castor de David Ricardo
contam o resto da história.1 Os filósofos que fazem a apologia do
elo do dinheiro não pararam para fazer a pergunta óbvia: o que
impediu que essa comunidade emocionalmente atomizada se dis­
solvesse nas partículas que a compunham?
A resposta à questão de como surgiram as transações econô­
micas deve levar em consideração que nem a solidariedade tribal
nem seu mecanismo redistributivo desapareceram na sociedade
arcaica. Ao contrário, foi dessas mesmas fontes que as novas civi­
lizações extraíram seu poder superlativo de permanência. As san­
ções religiosas, cruciais para o governo territorial nos prim órdios
da Assíria e na Babilônia de Hamurábi, aliadas, em ambos os ca-

1 David Ricardo, The Principies o f Political Economy and Taxation. Londres: J. M. Dent &
Sons Ltd., 1991, p. 6 [Princípios de economia política e tributação, intr. Piero Sraffia,
trad. Paulo Henrique Ribeiro Sandroni. São Paulo: Abril Cultural, 1982].
KARL POLANYI

sos, a um novo aumento das atividades redistributivas em relação


às da etapa tribal, são suficientes para comprová-lo.
A verdadeira explicação encontra-se num a direção diametral­
mente oposta à sugerida pelo racionalismo econômico do sécu­
lo XIX: o intercâmbio, o mais precário dos vínculos humanos, di­
fundiu-se na economia nas situações em que foi legitimado pela
comunidade. Com efeito, as transações econômicas tornaram-se
viáveis quando não eram lucrativas. O perigo que a busca de lu­
cros egoístas, buscados à custa do alimento de um irmão, trazia
para a solidariedade precisou ser afastado, em primeiro lugar, eli­
minando-se o componente de inveja inerente a essas trocas. Isso
foi conseguido mediante a declaração de equivalências feita pelo
próprio representante da divindade. Os habitantes da Mesopotâ-
mia sempre qualificaram o Estado como fonte da justiça, e o com­
portam ento de troca foi legitimado pelo estabelecimento de equi­
valências entre o que devia ser trocado.
Uma solução inteiramente diferente do conflito entre a soli­
dariedade comunal e os perigos antissociais das transações econô­
micas foi alcançada pelo desenvolvimento do tipo camponês em
pequenas cidades-estado como Atenas e (em parte) a antiga Israel.
A maldição de Hesíodo contra a “Idade do Ferro” e o clamor de
Amós contra os m ercadores de alimentos nos apresentam civi­
lizações que perm itiam transações lucrativas com os meios de
subsistência do hom em , transações que logo viriam a ser feitas
abertamente na praça do mercado. Heródoto centrou seu estudo
m onum ental sobre a guerra entre a Europa e a Ásia no choque
entre dois estilos de vida: a liberdade e a mobilidade do mercado
contra a obediência cega num império de justiça sem mercado.
No entanto, a ágora ateniense não conheceu a liberdade de m er­
cado no sentido m oderno; a cidade-estado continuou a exercer
todas as prerrogativas da instituição tribal sobre seus membros.
Não obstante, o princípio da troca lucrativa entre m embros da
comunidade tinha sido admitido, de m odo que um a salvaguarda
contra a discórdia havia desaparecido de suas fileiras. Não raro,

112
A ORIGEM DAS TRANSAÇÕES ECONÔMICAS

assim se introduziu e se perpetuou um a divisão na pólis entre a


cidade dos ricos e a cidade dos pobres. Além disso, as fronteiras do
mercado vizinho impuseram limites rigorosos à expansão do Es­
tado. A pólis grega, que deveu muito de sua liberdade radiosa e
revigorante ao uso precoce de moedinhas num mercado popular
de alimentos, nunca logrou superar a limitação territorial ineren­
te à ágora nem a destrutiva luta de classes que parece tê-la acom­
panhado sempre.2
Esse esboço extremamente rudim entar dos modos pelos quais
as transações econômicas entraram no tecido social das primeiras
sociedades indica os diferentes caminhos de seu desenvolvimento
político e econômico. Em toda parte evoluíram instituições eco­
nômicas arcaicas a partir das economias enraizadas na sociedade,
típicas do estágio tribal, mas esse desdobramento sempre manteve
alguma relação com as exigências transcendentais de solidarieda­
de social.

2 Cf. Karl Polanyi, “On the Comparative Treatment of Economic Institutions in Antiqui-
ty with IHustrations from Athens, Mycenae, and Alalakh”, em C. H. Kraeling e R. M.
Adams (orgs.), City Invincible: A Symposiunt on Urbanization and Cultural Develop-
m en tin theA ncientN earE ast. Chicago: University o f Chicago Press, 1960, p. 333-340.

113
Equivalências nas sociedades arcaicas

Das diferentes maneiras de distribuir alimentos, conhecemos bem


a redistribuição a p artir de um centro e a reciprocidade entre
membros da comunidade, mas os prim órdios da troca ainda são
obscuros. Paradoxalmente, essa situação provém sobretudo da
nossa própria tendência para a troca, que nos parece “natural”,
tornando desnecessárias as explicações: a instituição do mercado,
considerada universal, parece explicar por si mesma a onipresença
da troca. A partir de 1776, nossa suposta propensão para comer­
ciar, perm utar e trocar foi vista como a m elhor explicação para
esse comportamento. Só mais de um século depois Karl Bücher
observou que, longe de ter um a inclinação para o comércio, o ho­
mem primitivo era avesso a ele. Além disso, podemos acrescentar,
sua aversão inata à troca de alimentos não foi superada pelo hábi­
to do mercado, como supuseram nossos antecessores, mas graças
à ação de diferentes instituições geradoras de equivalências.
As equivalências, como tais, são mecanismos simples que es­
tabelecem relações quantitativas entre bens de diferentes tipos,
como um a medida de trigo e um jarro de vinho (na proporção de
um para um ), ou gado de grande e de pequeno porte (na propor­
ção de um para dez). A apresentação dessas relações como “preço”
é enganosa, pois restringe o conceito de equivalência às trocas fei­
tas no mercado. Na verdade, o âmbito das equivalências não se
limitava de m odo algum a situações de troca mercantil. Esses m e­
canismos simples dependiam de um a série de instituições que or­
ganizavam o movimento dos gêneros de primeira necessidade e de
objetos similares nas sociedades primitivas.
Uma definição útil de equivalência teria de centrar-se no fato
de que o term o indica o núm ero de unidades de um tipo de obje­
to que, ao ser substituído por um núm ero de unidades de outro

115
KARL POLANYI

tipo, deixa o resultado inalterado em relação a um a operação de­


finida como de reciprocidade, redistribuição ou troca.
Q uando se retribui um a dádiva, a contradádiva adequada cos­
tum a ser indicada em termos convencionais: os legumes de um a
aldeia do interior pelos peixes de um a aldeia à beira-mar; as pro­
priedades do noivo pelo dote da noiva; a dádiva modesta do h o ­
mem comum pela contradádiva mais rica do chefe tribal; os tribu­
tos feudais do vassalo pelo reconhecimento do príncipe.

Equivalências substitutivas
As equivalências desempenham um papel igualmente im portante
no processo redistributivo. Sejam os bens recolhidos ou redistri­
buídos pelo centro, sejam os objetos classificados como impostos,
tributos feudais ou até presentes voluntários, muitas vezes é inevi­
tável que um tipo de bem seja substituído por outro.
O m undo antigo fornece um a série de exemplos de equiva­
lências substitutivas que seguem o princípio das transações em
espécie. Quer se paguem impostos, reivindiquem-se rações ou se
resgate um voto de servidão ao templo (Levítico 27), os itens se
equilibram, dívidas são quitadas ou se estrutura um sistema de
troca de bens entre o governo central e os cidadãos. Em todos es­
ses casos é necessário lidar com produtos de tipos diferentes, subs­
tituir uns pelos outros, ou, como diz o provérbio, “comparar alhos
com bugalhos”. As proporções e as medidas estabelecidas são o
único instrum ento para realizar essas operações.
Os sistemas tributários dos impérios hidráulicos do O riente
Médio, por exemplo, estabeleciam o pagamento de um valor fixo
por unidade de terra, mas ele podia ser feito em cevada, azeite,
vinho ou lã; por sua vez, as exigências de rações, seja de trabalha­
dores ou de soldados, previam vários tipos de produtos. No tocan­
te aos impostos, seria inviável insistir rigidamente no pagamento
em determinados bens, pois inexistiam mercados e moeda. O go­
verno central era indiferente às escolhas dos bens, pois elas se anu­
lavam entre as diversas regiões do país. Assim, encontram os na

116
EQUIVALÊNCIAS NAS SOCIEDADES ARCAICAS

base das finanças estatais um sistema de equivalências que perm i­


tia recolher os complexos tributos do dízimo e fixar rações por
meio de um a tabela de pontos.
Na Babilônia, por exemplo, praticava-se um a troca de bens en­
tre os agricultores e o palácio. Um documento referente ao can­
celamento de dívidas no reinado de Ham urábi evidencia que os
lavradores podiam trocar o excedente de produtos agrícolas por
produtos do palácio, que incluíam importações do exterior, bens
tributados de outras regiões ou até artigos manufaturados no p ró­
prio palácio. Havia, é claro, m uita incerteza em torno das transa­
ções até que elas fossem concretizadas. Mas o valor total dos bens
oferecidos pelo lavrador e o dos bens oferecidos em troca pelo
palácio deviam ser iguais. Talvez o palácio não possuísse um a
quantidade suficiente dos produtos desejados pelos agricultores.
O funcionário intermediário tinha a complexa tarefa de ajustar os
produtos do palácio aos desejados pelo lavrador (os funcionários
deviam reunir informações prévias antes de decidir em que p ro­
porções seriam atendidos os desejos dos lavradores). No computo
geral, portanto, quando havia essa troca entre o governo e os la­
vradores, a substituição dos itens da lista de cada lado era regulada
por meio de equivalências. Ambos os lados precisavam comparar
“alhos com bugalhos” para que fosse possível equiparar os totais.
O comércio em espécie também estava muito ligado às equiva­
lências substitutivas, para calcular a remuneração dos comercian­
tes e estabelecer o método de compensação de pagamentos entre
eles. Os lucros obtidos com a movimentação eram calculados com
base nos equivalentes, independentem ente dos bens específicos
envolvidos. Na falta de tais equivalências seria impossível registrar
as obrigações com as autoridades contábeis — seja a guilda de
comerciantes, o tesouro governamental ou, ainda (em alguns ca­
sos, como nas vendas de escravos), os funcionários do palácio — ,
de m odo a possibilitar que o credor apresentasse suas reivindica­
ções em um processo de compensação que era debitado na conta
do devedor. O pagam ento m ediante compensação era regular­

117
KARL POLANYI

mente praticado no comércio m etropolitano e na Capadócia, o


que pode explicar o grande núm ero de decisões arbitrais, de exe­
cução automática, que estipulavam a soma a ser paga pelo réu ao
queixoso quando este vencia a causa. Não há registro de órgãos
executivos, mas tampouco há um único registro de algum caso em
que o reclamante tenha protestado por não haver recebido do de­
vedor a soma que lhe era devida.1
Nem os métodos comerciais nem as práticas de pagamento por
compensação, existentes nessas economias desprovidas de merca­
dos, são compreensíveis sem referência a equivalências substituti­
vas, validadas pelos costumes ou pela lei.

Rações
A im portância das rações para as economias com transações em
espécie é amplamente confirmada pelas tábuas sumérias e babilô-
nicas que estipulam as quantidades de cevada devidas a pessoas de
idades variáveis, bem como as destinadas à alimentação de ani­
mais domésticos. A operação com rações representa um a com­
binação de qualidade e quantidade das provisões, tal como se de­
preende do duplo sentido da palavra “necessidade”. Esta pode
significar os tipos de alimentos necessários à sobrevivência e as
quantidades efetivamente requeridas deles para sustentar a vida.
É nesse sentido que Aristóteles se refere à perm uta compulsória
de bens que ainda era praticada por certos povos “bárbaros” de
sua época.12
O mesmo significado se aplica ao termo correspondente à ra­
ção de pão usado no Padre-Nosso, “o pão nosso de cada dia nos
dai hoje”. As referências de Lucas 11:3 e de Mateus 6:11, no Novo
Testamento, indicam que isso significava um a quantidade definida
de pão, a saber, um a porção norm al [ton arton], nem mais nem

1 Karl Polanyi, “Marketless Trading in Hammurabis’ Time”, em K. Polanyi, C. M. Arens-


berg e H. W. Pearson (orgs.), Trade and M arket in the Early Empires. Glencoe, Illinois:
Free Press e Falcoris Wing Press, 1957, p. 12-26.
2 Aristóteles, Política, Livro I, cap. 9.
EQUIVALÊNCIAS NAS SOCIEDADES ARCAICAS

menos. Diz o texto dos Provérbios 30:7-9: “Duas [coisas] te peço,


não [me as] negues antes da m inha morte: afasta de m im a falsi­
dade e a mentira, e não me dês pobreza nem riqueza; dá-me o pão
que me for conveniente, para não suceder que, estando eu saciado,
te renegue e diga: Quem é o Senhor? Ou que, empobrecido, venha
a furtar e profane o nome do meu Deus.” O Oxford English Dic-
tionary dá o significado arcaico de conveniente como “adequado,
condizente, apropriado”. A tradução de Lutero diz “mein beschei-
ãen Theil Speise”.
Bescheiden, nesse caso, significa “porção”. A tradução de Schla-
chter traz “tnein zugemessenes Brot’\ o que significa um a porção
que tenha sido pesada (cf. Levítico 26:26, adiante). O Zugemessen,
de Schlachter, é o term o usado por Schwenzner para traduzir Nig.
Ba: “Ba: ração, porção.”3 O Documento de Damasco, contem po­
râneo de Os Manuscritos do M ar Morto, refere-se a rações.4 Em
termos cronológicos, ele se situa entre o Levítico e o Novo Tes­
tamento. Uma oração do Talmude, muito posterior, refere-se ao
“alimento necessário”.
A ração escassa é designada no Velho Testamento como aquela
que foi pesada, mas cuja quantidade “não sacia”, conforme a praga
de Jeová (Levítico 26:26): “Quando eu tirar o pão do vosso susten­
to, dez mulheres o cozerão num só forno e vo-lo entregarão por
peso; vós o comereis, mas não ficareis saciados.” Elias Bickerman
mostrou que o escravo hebraico do Egito ptolemaico tinha direito
a uma ração.5 Pesquisas adicionais m ostraram que o conceito de
ração tinha um a significação precisa.
A ração, compreendida como um volume delimitado em ter­
mos de quantidade e qualidade, parece ter sido um direito econô­
mico fundamental do hom em na sociedade arcaica.

3 Walter Schwenzner, Das geschãftliche Leben in M ten Babylonien. Leipzig: J. C. Hinrichs,


1916.
4 TheDead Sea Scriptures, trad. e org. Theodor H. Gaster. Garden City, Nova York: Dou-
bleday, 1956, p. 83.
5 Elias Bickerman, Die Makkabãer. Berlim: Schocken Verlag, 1935.
KARL POLANYI

A justiça era assegurada em toda a comunidade, desde que os


pagamentos, obrigações, reivindicações ou rações fossem respei­
tados nos termos das alternativas explicitadas na equivalência. Em
outro aspecto não menos im portante da redistribuição, as equiva-
lências possibilitaram os orçamentos e o planejamento, bem como
as verificações e os controles necessários a um desempenho eficaz.
Nesse caso, a equivalência servia m enos como padrão de valor
(para empregar a denominação moderna) do que como meio de
“contabilidade”.

Equivalências de troca
Quando as trocas se tornam frequentes, as equivalências podem
desempenhar o papel dos preços, se houver um a troca indireta
sem moeda. Mas a variedade de equivalências, nesse caso, não
fica lim itada a m ercadorias como alim entos, m etais preciosos
ou matérias-primas. Qualquer transação na esfera da economia
substantiva enquadra-se na lei da equivalência. Só equivalentes
são intercambiáveis, quer essa ideia se refira a terra ou trabalho, a
mercadorias ou dinheiro, ou a qualquer combinação deles, quer
envolva apenas a posse ou o uso, ou até fatores condicionais, como
excedentes a serem ainda obtidos.
Para ser mais específico (acrescentando um a tradução m oder­
na entre parênteses), há registros de equivalências concernentes a
bens (preços), serviços (salários), uso de m oeda ou outros bens
fungíveis (juros), uso de um barco com o barqueiro (aluguel), uso
da terra ou da casa (arrendamento) e outros. No m undo mesopo-
tâmico as equivalências abrangiam quase todas as negociações,
como venda e aluguel de terra, casas, hom ens e gado, além de em­
barcações, sem excluir transações concernentes a bens fungíveis,
como prata, cevada, azeite, vinho, tijolos, cobre e chum bo. Em
contraste marcante com as idéias m odernas, não se fazia distinção
entre as diferentes fontes de renda, como salários, aluguéis, juros e
lucros. A única condição para a validade das transações ou das
EQUIVALÊNCIAS NAS SOCIEDADES ARCAICAS

disposições era que elas não envolvessem a exploração de um a das


partes, ou seja, que mantivessem a equivalência.
As equivalências nas trocas eram especialmente im portantes
para o camponês independente, pois ajudavam a tirá-lo de dificul­
dades num a emergência, quer o vizinho aceitasse lhe emprestar as
“necessidades” de que ele precisava, quer ele aceitasse trocar seus
bens por algo equivalente (Deuteronômio 15:7-8).
O argumento de Aristóteles na Política sobre o “comércio natu­
ral”, por exemplo, apoia-se na premissa de que, diferentemente das
outras formas de troca, o comércio surge da necessidade de autos-
suficiência. A autossuficiência anterior fica prejudicada quando a
família aumenta e seus membros são obrigados a se instalar sepa­
radamente. As famílias individuais, que antes “usavam em comum
os bens que possuíam em comum”, são então forçadas a partilhar
seus excedentes. A troca resultante, decorrente desse compartilha­
mento, restabelece a autossuficiência. O comércio natural é essa
troca sem lucro. Para corroborar sua tese, Aristóteles apela para
os seguintes fatos contemporâneos:
Alguns bárbaros ainda praticam esse comércio, pois esperam in-
tercambiar o necessário para viver, mas não mais do que isso,
trocando, por exemplo, vinho por grãos, entregando um e rece­
bendo o outro, e o mesmo com todos os demais gêneros essen­
ciais. A prática desse tipo de comércio, portanto, não é contrária
à natureza, nem é uma forma de acumular riqueza, pois foi insti­
tuída para restabelecer a autossuficiência natural do homem.6

No caso de m á colheita ou de outra emergência, o dono da casa


podia contar com o vizinho para lhe suprir o m ínimo de suas ne­
cessidades, embora não mais. A transação implicava (1) todos os
bens de prim eira necessidade, (2) somente a quantidade necessá­
ria, dadas as circunstâncias, (3) um a quantidade equivalente de
outros bens essenciais e (4) a exclusão do crédito. Para o chefe de
família que porventura possuísse os bens necessários, a troca era

6 Aristóteles, Política, Livro I, cap. 9, trad. Karl Polanyi.


KARL POLANYI

obrigatória dentro desses limites. Todavia, caso o chefe de família


necessitado não possuísse bens suficientes para entregar em troca
como equivalente, ele ou sua família teriam de “sujeitar-se como
servos” para pagar a dívida (Neemias 5:5).
As leis do Velho Testamento sobre o assunto eram mais articu­
ladas. Decretavam um tratam ento preferencial aos membros da
tribo necessitada. Também nesse caso, a regra era (1) auxílio em
espécie, (2) na medida necessária, e não mais, (3) sendo as quan­
tidades creditadas (“emprestadas”), (4) com um tratam ento aten­
cioso e hum ano ao devedor e (5) com um a rigorosa proibição de
se obter vantagem com o empréstimo. Não havia troca compulsó­
ria, mas se exigia um empréstimo de um a quantidade mínima por
um prazo curto, em geral recebendo um a caução. No caso de não
pagamento, ao que parece, a caução era perdida, ou, como alter­
nativa, o devedor (ou seus filhos) tinham o compromisso de pagar
a dívida com trabalho.
Raramente se mencionam equivalentes no Velho Testamento.
Mesmo assim, devemos presumir sua presença, pois não encon­
tram os sinal de dúvidas a respeito da quantidade devida; além
disso, a proibição rigorosa de qualquer forma de juros ou lucro
seria, então, descabida.
A referência aristotélica a alguns “bárbaros” contemporâneos,
como vimos, difere da obrigação do Velho Testamento por insistir
explicitamente num a transação in rem (sem crédito). Contudo,
surge um a semelhança notável entre os israelitas e esses “bárba­
ros”, na medida em que os produtos essenciais, trocados ou em­
prestados, são chamados de “necessários” no tocante à qualidade
e à quantidade. Em term os m odernos, isso significa algo como
rações. Segundo Bickerman, como mencionamos acima, o termo
hebraico peras usado nos documentos de Tebtunis (46 d.C.) signi­
fica ração ou auxílio alimentar (por exemplo, “homologia trophi-
mou doulikou”, ou seja, um acordo sobre as rações dos escravos).
Westermann, na versão póstum a de seu verbete “Escravidão” na
enciclopédia Pauly-Wissowa, conclui que no Egito ptolemaico, e

122
EQUIVALÊNCIAS NAS SOCIEDADES ARCAICAS

possivelmente tam bém em Roma, o escravo tinha direito a um a


ração (“tantas necessidades quantas forem precisas para sustentar
a vida”). O term o “necessidades” implicava um a quantidade res­
trita. Combinadas com as equivalências, as rações talvez tenham
proporcionado um instrum ento quantitativo flexível da economia
substantiva arcaica, considerada de m odo geral.
A M ishná é im pregnada do horror do Velho Testamento ao
lucro ou proveito decorrente de qualquer transação entre m em ­
bros da tribo. Seus preceitos m ostram um a obsessão com o perigo
m oral da exploração, mesmo involuntária ou inadvertida. Os
equivalentes são deliberadamente usados como salvaguarda con­
tra esse perigo.

A sociologia das equivalências


Vamos examinar agora como se formularam e se estabeleceram
as equivalências. Na sociedade primitiva, a equivalência — a Uta
dos nativos de Tikopia, por exemplo — é sobretudo um a questão
de costume e tradição.7 Uma determinada concha pode ser tro ­
cada por porcos; a equivalência é satisfeita se a fileira de conchas
vai do focinho à ponta da cauda do porco. Nas leis de Eshnunna,
unidades de medida de azeite e de vinho são equiparadas a outras
unidades de medida. O Código de Hamurábi estipula o “custo”
equivalente à contratação de um barqueiro. Na capital centro-
-sudanesa de Kuka, equivalências entre fieiras de cauris e táleres
Maria Teresa** eram proclamadas todas as quartas-feiras na praça
do mercado.
Mas o problema das origens é ainda mais complexo, pois inclui
os tipos de transações que pressupõem a equivalência e a maneira

7 Cf. Richard Thurnwald, Economics in Primitive Communities. Nova York: Oxford Uni-
versity Press, 1932, p. 252 ss; Marcei Mauss, The Gift, trad. Ian Cunnison. Nova York:
W. W. Norton, 1967, p. 8 ss.
* O táler Maria Teresa era uma moeda de prata cunhada em Viena a partir de 1741 e
usada no comércio mundial. A referência é à imperatriz Maria Teresa (1717-1780), da
casa real dos Habsburgos, mãe de Maria Antonieta, que reinou na França e foi conde­
nada à morte depois da revolução. [N.T.]

123
KARl POLANYI

pela qual esta se institucionalizou. Na sociedade de Nuzi do século


V a.C., um a das principais transações, designada como ditennutu,
pode ser descrita como a livre troca do uso da terra, de pessoas,
gado, dinheiro, veículos ou outros bens por qualquer desses bens,
supondo-se que o uso que as duas partes fizessem poderia ser con­
siderado igual. A posse não era transferida, apenas o uso. N enhu­
ma das duas partes podia auferir lucros. Por se referir apenas ao
uso, a troca, em princípio, era limitada no tempo. É claro que os
usos abarcados pela ditennutu, em termos modernos, seriam des­
critos como usufruto, arrendamento, aluguel, salário, juro ou lu­
cro, mas essas distinções eram ignoradas. A única condição de
validade era a ausência de ganho obtido à custa de terceiros. Talvez
fosse mais exato dizer que isso implicava um lucro ou ganho igual
para ambas as partes, em vez de dizer que excluía inteiramente õ
ganho, mas o princípio é o mais im portante aqui. A ditennutu,
anterior à Mishná em um milênio, oferece a mais clara indicação
que possuímos do significado da casuística contida nesse livro de
leis sobre a proibição de um judeu obter lucro de outro judeu.
O que nos interessa aqui é a referência da ditennutu ao ganho
ou lucro. Se a ditennutu abarca o uso da mão de obra, o uso de um
barqueiro junto com seu barco, o uso de terras, casas ou gado, e
ainda o uso do dinheiro, isso prova que assegurar renda era um
dos “usos” dos bens dados ou recebidos. Assim, ela “igualava” não
apenas o ganho subjetivo para ambas as partes, implícito em todas
as trocas voluntárias, mas também o ganho “objetivo”, calculado
por métodos de contabilidade; o ganho de ambas as partes era
legítimo por ser justo e era justo por form ar um a equivalência.
As implicações desse pensam ento arcaico são cruciais para
com preenderm os o desenvolvimento inicial da instituição do
“preço justo” — precursor do preço.
As equivalências entre unidades de diferentes bens pretendiam
expressar proporções que resultavam das condições já existentes
na sociedade e contribuir para m p iter essas condições. A “justiça”
expressa na equivalência é um reflexo da “justiça” da sociedade,
EQUIVALÊNCIAS NAS SOCIEDADES ARCAICAS

que ela espelhava. Como podería ser diferente, se as rendas decor­


rentes de status e os padrões de vida que prevaleciam na sociedade
eram necessariamente refletidos nas equivalências? Por conse­
guinte, o que costumamos chamar de ganho, lucro, salários, renda
ou outras receitas tinha de estar contido na equivalência, já que se
exigia que essas receitas mantivessem as relações e os valores so­
ciais existentes. Era essa a lógica do “preço justo”, tal como postu­
lada pelos escolásticos. Longe de expressar um a esperança pia ou
um pensamento elevado, alheio às realidades econômicas, como a
economia clássica ortodoxa difundiu, o “preço justo” era um a
equivalência determinada pela autoridade local ou pelos atos dos
membros das guildas no mercado, sempre de acordo com os fato­
res determinantes da situação social concreta. O membro das guil­
das que se recusava a vender abaixo de um preço considerado o
padrão m ínimo de seus colegas, e se recusava igualmente a aceitar
um preço que lhe trouxesse um a receita superior à aprovada por
seus colegas, cooperava para criar o “preço justo” com tanta eficá­
cia quanto a autoridade local que podia fixar diretamente o preço
a fim de defender esses mesmos princípios.

Equivalências e mercados
Expusemos sucintam ente, sob o nom e de “equivalências”, um a
característica crucial de algumas economias antigas. Agora co­
mentaremos seu efeito presumível no desenvolvimento de p a­
drões de troca, sobretudo dos mercados e do dinheiro como meio
de troca.
O uso do dinheiro como meio de troca — e apenas esse uso
está em questão aqui — é desnecessário quando as transações po­
dem se realizar por equivalências. O uso do dinheiro como padrão
de valor, por outro lado, m uitas vezes torna-se mais eficaz com
o mecanismo da equivalência, que permite somar e equiparar as
ofertas, com a diferença remanescente sendo paga em moeda.
O efeito do uso generalizado de equivalentes no desenvolvi­
mento dos mercados é ambíguo. Como eles favorecem transações
KARL POLANYI

com preços fixos, seu uso reforça as formas adm inistradas de


comércio, o que poderia eliminar completamente os mercados.
O mercado m oderno, com suas flutuações que reagem aos m o­
vimentos da oferta e da procura, poderia não ter surgido, é claro,
já que sua função prim ordial é formar preços. O que se pode di­
zer com segurança é que o comércio e o dinheiro, em sociedades
complexas que não possuíam mercados, seriam incompreensíveis
na ausência de equivalências estabelecidas. O colapso das equiva-
lências, onde elas sabidamente existiram, pode ter induzido, em
alguns casos, o desenvolvimento dos mercados formadores de
preços. Mas, na falta de informações suficientes, tais considerações
são conjecturas.

126
A tríade catalática: comércio, dinheiro e mercados

Na sociedade primitiva, as transações com alimentos são evitadas


como antissociais, pois perturbam a solidariedade da com unida­
de. Todavia, enquanto outros tabus (como os ligados ao sexo, por
exemplo) são explícitos, a proibição da manipulação lucrativa dos
alimentos fica implícita na constituição da sociedade tribal.
Na sociedade arcaica começa a desaparecer a proibição das
transações com alimentos e outras, abrindo caminho para um dos
avanços mais notáveis na história da subsistência hum ana. O in­
tercâmbio de bens e serviços — venda/compra, locação/contra-
tação, concessão/tomada de empréstimos — perm ite um a flexi­
bilidade dos elem entos da econom ia que causa u m aum ento
acentuado do seu uso, tanto na produção quanto no consumo.
Essa mudança tão significativa acontece com a dissolução da so­
ciedade tribal, principalmente de duas maneiras: ou pela aceitação
limitada e estritamente controlada de certos tipos de transações
ou pela eliminação do princípio do lucro nessas transações. A pri­
meira é típica de algumas pequenas sociedades de camponeses,
como a Grécia de Hesíodo ou partes de Israel na época de Amós;
a outra é o método seguido pelos impérios hidráulicos da Babilô­
nia e da Assíria. Enquanto as sociedades camponesas caminham
para formar mercados, os impérios baseados em terras irrigadas
seguem uma via diferente, não menos im portante para o futuro
da humanidade. A partir desse desdobramento, a justiça, o direito
e a liberdade individual, como criações do Estado, assumem pela
primeira vez um papel decisivo na história da economia humana.
Nos impérios arcaicos, o papel econômico da justiça consiste
em suspender a proibição tribal das transações, eliminando o es­
tigma do lucro e suas implicações diruptivas. Com isso, libera-se
uma força econômica que multiplica a produtividade do trabalho
numa agricultura de inundações controladas. A proclamação de
KARL POLANYI

equivalências era um a das principais funções do rei arcaico. Ela


oferecia um a sanção semirreligiosa às transações, que se ajusta­
vam à “taxa” ou “proporção” aprovada pelo representante da di­
vindade. Desde as primeiras colônias comerciais assírias, das leis
de Eshnunna e do Código de Hamurábi até a Mishná e o Talmude
babilônico, uns 2.500 anos depois, ou, a rigor, até a época de Santo
Tomás de Aquino, senão consideravelmente depois, o “preço jus­
to” continuou a ser o único padrão que legitimava as transações.
Mas os impérios hidráulicos conseguiram muito mais. Ao san­
cionar as transações não lucrativas e abrir caminho para o aperfei­
çoamento delas, sobretudo na agricultura, eles evitaram o desen­
volvimento dos mercados, inaugurando negociações econômicas
não transacionais, às quais denominamos disposicionais, ou seja,
baseadas em normas legais que definiam como deviam funcionar
as atividades comerciais. A m aior parte do comércio fluiu por es­
ses canais disposicionais, enquanto um a parte m uito m enor con­
tinuou a ser feita em moldes transacionais. Numerosas medidas
asseguraram que as duas não se fundissem.
Essas duas equivalências — as que possibilitaram as transações
não lucrativas e as reguladas pelas norm as da lei, que organizaram
disposições sem risco num sistema comercial — resultaram do
predom ínio das formas de integração redistributivas. Elas não
funcionaram sob o controle de um a burocracia adm inistrativa
tirânica, como presumiram os historiadores do passado. A ausên­
cia ou, pelo menos, o papel muito subalterno dos mercados não
implicavam métodos administrativos complicados, firmemente
controlados por um a burocracia central. Ao contrário, as transa­
ções não lucrativas e as disposições reguladas, legitimadas por lei,
inauguraram um a esfera de liberdade pessoal até então desconhe­
cida na vida econômica do homem.
Uma névoa metodológica obscurece o estudo do comércio, do
dinheiro e das instituições de mercado. O sociólogo, o antropólo­
go e o historiador econômico amiúde têm dificuldade para avaliar

128
A TRÍADE CATALÁTICA: COMÉRCIO, DINHEIRO E MERCADOS

o significado e, mais ainda, julgar a adequação dos termos catalá-


ticos* oferecidos pelo economista, termos para lá de inúteis. Apre­
sentaremos aqui três proposições sobre comércio, dinheiro e m er­
cados. Elas serão discutidas nos próximos capítulos.

As origens independentes do comércio,


do dinheiro e dos mercados
De Aristóteles a Karl Marx, a especialização econômica, ou cres­
cente divisão do trabalho, foi tradicionalmente identificada com o
desenvolvimento do comércio, do dinheiro e dos mercados. Essas
instituições pareciam ser aspectos diferentes do mesmo processo
econômico. O comércio parecia ser a movimentação de bens no
mercado; o dinheiro, o meio de troca que facilitava essa movimen­
tação. À luz das descobertas atuais, esse ponto de vista já não é
sustentável. Como sugerimos na introdução, antes dos mercados,
e independentemente deles, algumas formas de comércio e vários
usos do dinheiro já haviam assumido grande importância na vida
econômica. Mesmo quando estão presentes elementos do merca­
do, eles não necessariamente implicam um mecanismo de preços
baseado na oferta e na procura. Originalmente, os preços (ou m e­
lhor, as equivalências) eram definidos pela tradição ou pela au­
toridade. Esses meios institucionais, não os métodos mercantis,
também determinavam eventuais alterações. Para o estudioso da
Antiguidade, o problema a estudar são as flutuações dos preços,
não a sua estabilidade. Tudo isso exige uma reformulação de nos­
sas idéias sobre a organização inicial do comércio, o papel do pes­
soal dedicado a essa atividade, as características dos vários tipos de
mercado, os métodos convencionais do comércio em larga escala
com base em termos ou preços convencionais, a função da inter­
mediação na sociedade primitiva, as origens institucionais dos di­
ferentes usos do dinheiro, o papel da mudança dos pesos e medi­
das na estabilização dos preços relativos, o papel exercido pelo

Ver nota na p. 50 desta edição. [N.T.]


KARL POLANYI

entesouramento (e pelos gêneros essenciais armazenados) no fun­


cionamento do sistema m onetário em condições arcaicas e outras
questões concernentes às primeiras formas da vida econômica.

Desenvolvimento interno e externo separados


Em seu memorável trabalho sobre a origem de algumas institui­
ções econômicas, Max Weber sugeriu as seguintes idéias: o comér­
cio exterior precedeu o comércio interno, o uso do dinheiro como
meio de troca originou-se na esfera externa e os mercados organi­
zados se desenvolveram prim eiro no comércio exterior. Richard
Thurnwald fortaleceu esse ponto de vista com fatos extraídos da
vida econômica de comunidades primitivas. Agora podemos afir­
mar, com certa segurança, que a prioridade do desenvolvimento
externo em relação ao desenvolvimento interno do comércio, do
dinheiro e dos mercados é um fenômeno geral. Seguindo essas li­
nhas de pesquisa, confirmaram-se diversos fatos, como a nítida
separação entre os mercados externo e interno em Atenas, nas ci­
dades persas do século XVII e nas cidades daomeanas dos séculos
XVIII e XIX; o papel largamente difundido da corretagem na liga­
ção entre os mercados interno e externo; os sistemas administra­
tivos dos “portos comerciais”, desde a Antiguidade até os tempos
modernos; o uso do monopólio das exportações de cereais do Egi­
to ptolemaico para estabelecer um “mercado internacional de ce­
reais” no leste do M editerrâneo; o papel das moedas internas e
externas na Grécia do século IV a.C., como m ostrado p or alguns
exemplos do Livro II da Oeconomica pseudoaristotélica, uso que se
revelou menos excepcional do que antes se presumia; a preponde­
rância do comércio exterior sobre o comércio interno na Babilô­
nia de Ham urábi; a existência de “portos comerciais” altamente
organizados na Síria do segundo milênio a.C., quando a Babilônia
não possuía mercados; a coexistência do empório mediterrâneo
de Tiro com o interior palestino, èm cujas cidades, de m odo geral,
não havia mercados.

130
A TRÍADE CATALÂT1CA: COMÉRCIO, DINHEIRO E MERCADOS

A integração nas economias não mercantis


O terceiro grupo de proposições refere-se à forma de integração
do comércio, do dinheiro e dos elementos mercantis na ausência
de um sistema de mercado. As pesquisas mais específicas contor­
naram essa questão problemática, aceitando a suposição tradicio­
nal de que comércio, dinheiro e mercados estavam indissoluvel-
mente unidos. Onde se via comércio, presumia-se a existência de
mercados; onde se via dinheiro, presumia-se o comércio e, por
conseguinte, os mercados. Na verdade, porém , durante a m aior
parte da história econômica, o comércio, os usos do dinheiro e os
elementos do mercado foram ocorrências separadas. Como fun­
ciona uma economia assim? Como podem, p or exemplo, objetos
monetários ser usados para pagamento, outros ser usados como
“padrão de valor” e não haver nenhum a troca em quantidade
apreciável? O papel do entesouramento e dos estoques de gêneros
essenciais na sociedade arcaica talvez forneça parte da resposta.
Surgem perguntas similares sobre o funcionamento em larga es­
cala do comércio e do dinheiro em economias sem mercados, per­
guntas que dificilmente poderiam ser formuladas enquanto a exis­
tência de tais condições fosse negada ou ignorada.
Os dados desta seção sobre comércio, dinheiro e mercados vi­
sam principalmente a estudar essas instituições econômicas, tais
como elas ocorrem nas economias não mercantis. Isso envolve
correlacionar duas séries de fenômenos empíricos: prim eiro, o
registro dos historiadores sobre os padrões de integração não ba­
seados na troca, tal como os encontramos nas sociedades de status
— reciprocidade, redistribuição e economia doméstica; segundo,
as distintas variantes das instituições de comércio, dinheiro e m er­
cado que ocorrem nas sociedades de status.
A expectativa de que os resultados obtidos tam bém possam
contribuir para um maior conhecimento das economias sem m er­
cado apoia-se, aqui, num a consideração formal. Neste ponto, o
argumento recai sobre um traço pouco apreciado pela ciência eco­

131
KARL POLANYt

nômica tradicional; não, é claro, sobre um a proposição específica


da teoria do sistema de mercado, mas sobre seus objetivos gerais.
O que ela fez com sucesso no caso da sociedade ordenada pelo
mercado ainda está por ser tentado, em termos analíticos e histó­
ricos, no caso das sociedades mais antigas, nas quais prevaleciam
padrões de integração diferentes da troca.
Comerciantes e comércio

Definições operacionais e institucionais


Definido em termos operacionais, o comércio é um m étodo de
aquisição de bens não disponíveis in loco.1 É algo externo ao gru­
po, semelhante a atividades que tendemos a associar com práticas
muito diferentes, como caçadas, expedições e incursões de piratas.
Em cada um desses casos, a ideia é apropriar-se de bens que estão
em um local distante. O que distingue o comércio dessas outras
atividades é a bilateralidade, que tam bém garante sua natureza
pacífica, sem saques ou butins.
Em condições primitivas não perturbadas, o comércio é como
uma caçada, expedição ou invasão — uma atividade grupai orga­
nizada. Baseia-se no encontro de grupos pertencentes a diferentes
comunidades. Um dos propósitos desses encontros é a troca de
bens. Tais reuniões não produzem padrões de troca; ao contrário,
os pressupõem. Não há nem comerciantes individuais nem m oti­
vações individuais de lucro, quer o chefe ou rei aja em nom e do
grupo, depois de coletar os produtos “exportáveis”, quer num ero­
sos indivíduos se encontrem para realizar as operações. Em ambos
os casos, há elementos cerimoniais e ritualísticos entrelaçados
com os procedimentos comerciais, aos quais nunca falta um a co­
notação social ou política.
Nas sociedades primitivas, evidencia-se prontam ente qual co­
munidade tem um engajamento ativo no comércio e qual é a par­
ceira passiva. Exceto quando o comércio ocorre num local neu­
tro, uma das duas partes é visitante, enquanto a outra é anfitriã.
A prim eira terá transportado os bens e arcado com os ônus do

1 Uma versão ligeiramente diferente deste capítulo, editada por George Dalton, aparece
em J. Sabloff e C. C. Hamberg-Karlovsky (orgs.), Ancient Civilization and Trade. Albu­
querque: University o f New México Press, 1975, cap. 3.

133
KARL POLANYI

risco e da iniciativa; a outra terá meramente respondido à ocasião.


Em geral os parceiros se alternam nesses papéis. Mais tarde, nas
condições da sociedade arcaica, essa distinção pode se transformar
num a nítida diferença entre comércio ativo e passivo, o que envol­
ve toda a organização do comércio.
Se parecemos haver enfatizado indevidamente a “aquisição de
bens de um local distante” como o fator crucial do comércio, isso
foi feito, entre outras coisas, para elaborar com mais clareza o pa­
pel determinante exercido pelo interesse aquisitivo (ou de im por­
tação) na história do comércio. Ele envolve, como vimos, as al­
ternativas dos métodos pacíficos versus os métodos violentos de
satisfazer esse interesse, alternativas que podem afetar toda a es­
trutura do Estado e seus modos de agir na história.
As diferentes fases da história das civilizações nômades, como
os mongóis e os árabes, ilustram esse aspecto. Neste ponto, deve­
mos distinguir entre a combinação em pequena escala de invasões
e comércio, como ocorria com alguns gregos e fenícios da época
de Homero ou com beduínos do Velho Testamento, de um lado, e
a maneira menos óbvia, porém muito mais significativa, pela qual
o interesse dos grandes impérios era atendido, ora por métodos
müitares, ora por métodos transacionais de aquisição de bens em
terras distantes. As diferentes exigências de cada um a dessas al­
ternativas m oldaram decisivamente a política interna e externa
desses impérios. O fator de fundo, permanente, era seu interesse
em adquirir ou im portar os produtos de seus vizinhos — melhor,
a dependência que eles tinham desses vizinhos para obter certas
“necessidades” e, mais ainda, alguns “luxos”. Tecidos e artigos do­
mésticos faziam parte do primeiro grupo, enquanto ouro e escra­
vos, pedras preciosas, artigos finos de seda e couro, cosméticos e
adornos pertenciam ao segundo. A distinção, é claro, era mais tê­
nue do que às vezes se supõe, pois o que estamos habituados a
chamar de artigos de luxo não era nada mais que as necessidades
dos ricos e poderosos, cujo interesse pelas importações determi­
nava a política econômica externa.

134
COMERCIANTES E COMÉRCIO

A aquisição dos bens pelos impérios nômades podia ocorrer


de diversas maneiras: (1) realizando-se incursões predatórias, que
iam de invasões ocasionais à conquista permanente; (2) fomentan­
do-se o comércio passivo; (3) combinando-se guerras predatórias
com o comércio passivo; (4) desenvolvendo-se o comércio ativo.
O caráter do “império” tendia a ser diferente em cada caso. As
simples expedições de saqueadores, em qualquer escala, não re­
queriam mais que um pseudoimpério, como o dos hunos de Átila
ou o dos avaros. Mas um império desenvolvido de clãs nômades,
como o de Gêngis Khan e seus sucessores, que abrangia extensas
rotas comerciais, baseava suas importações no comércio passivo
organizado em enorme escala. Nesse caso, o poderio militar servia
como mero auxiliar do comércio, vigiando as rotas das caravanas,
garantindo a travessia das passagens e obrigando os povos seden­
tários a abrir seus territórios a todos os que comerciavam a serviço
do império. Uma rede de albergues para mercadores estrangeiros
e um serviço postal transcontinental, m antido nas mãos do im pé­
rio, foram concebidos para promover a riqueza, garantindo im ­
portações cada vez maiores. Como resultado, as extensíssimas ro­
tas comerciais do império passaram a servir a um a multidão de
comerciantes de todas as nacionalidades, que realizavam grande
volume de comércio, atividade da qual nenhum mongol partici­
pava. Quando da queda da dinastia Yuan (mongol) na China, os
chefes dos clãs mongóis foram forçados a voltar para seus redutos
nativos, e o florescente comércio passivo do império de Gêngis
Khan cessou para sempre. Essa situação oferece um exemplo sig­
nificativo das alternativas em questão. Os fragmentos do império
engajaram-se num a guerra civil que durou muito tempo, envol­
vendo senhores feudais do Ocidente e príncipes orientais da di­
nastia de Gêngis Khan. Estes saíram vencedores e estabeleceram
seu domínio sobre todos os canatos, por um a razão: só eles esta­
vam aptos a oferecer a perspectiva de um poder central capaz de
exercer a dupla tarefa de organizar incursões predatórias nos ter­
ritórios vizinhos e, alternadamente, m anter relações comerciais
KARL POLANYI

regulares com eles. Vladimirtsov enfatizou que, para ter sucesso,


qualquer dessas empreitadas — os ataques ou o comércio — exi­
gia não só um governo central, mas também um a “partilha” cen­
tral do butim , num caso, e dos produtos importados, no outro.2
Embora os mongóis nunca se dedicassem ao comércio ativo, os
impérios árabes, mesmo tendo partido de condições estreitamen­
te semelhantes, na condição de clãs nômades, acabaram desenvol­
vendo, graças a suas tendências mais democráticas, um a ampla
camada comercial que assegurou grandes importações por meio
de seu comércio ativo, sem recurso a métodos predatórios. Nessa
capacidade de comércio ativo residiu a decisiva superioridade his­
tórica dos impérios islâmicos sobre os canatos mongóis mais tran­
sitórios, com seu sistema de comércio passivo.

Aspectos institucionais do comércio


Visto que, nas atividades comerciais, alguém precisa transportar
algo por um a distância, e esse movimento se realiza em duas di­
reções, tem de haver: (1) pessoal, (2) mercadorias, (3) transporte
e (4) bilateralidade. Todos esses aspectos institucionais do co­
mércio podem ser classificados de acordo com critérios socio­
lógicos ou tecnológicos, ou ambos. Decorre daí a pertinência de
analisar a enorme variedade de formas e organizações do comér­
cio na história.

a. Pessoal

1. O factor e o mercator: motivação de status e motivação de lucro


A “aquisição de bens distantes” pode ser praticada por um comer­
ciante por motivações relacionadas à sua posição na sociedade,
que em geral abrangem elementos de dever ou de serviço público
(motivação de status), ou pode ser praticada com vistas ao lucro
que se possa obter em transações de compra e venda (motivação

2 Boris Vladimirtsov, The Life ofGhengis Khan, trad. D. S. Mirsky. Boston e Nova York:
Houghton, Mifflin, 1930.

136
COMERCIANTES E COMÉRCIO

de liicro). O representante típico (mas de modo algum o único) da


primeira espécie de comerciante é o factor [agente comercial]; o
representante do segundo tipo é o mercator [mercador].
Apesar das muitas combinações dos dois tipos, o dever e o lu­
cro destacam-se como motivações primárias nitidamente distin­
tas. Se a “motivação de status” é reforçada pela do benefício mate­
rial, este último não costuma assumir a forma de lucro obtido na
troca, mas sim a de presentes entesourados ou de renda da terra
recebida pelo comerciante do soberano ou senhor a título de re­
compensa, Os ganhos transacionais, se é que merecem esse nome,
costumam ser somas insignificantes que não podem ser compara­
das com a riqueza ofertada pelo soberano ao comerciante ousado,
engenhoso e bem-sucedido. Assim, quem comercia em nom e do
dever e da honra enriquece, enquanto quem o faz pelo lucro vil
permanece pobre — mais um a razão para as motivações lucrati­
vas serem ofuscadas na sociedade arcaica.
A distinção entre motivação “de status” e motivação “de lucro”
poderia parecer irrelevante para o historiador, pois quase todas
as sociedades anteriores à nossa, em termos gerais, eram socie­
dades de status, nas quais não parecia haver espaço para o co­
merciante pobre, motivado pelo lucro. Mas isso seria confundir
duas funções diferentes do status, conforme se faça referência à
origem ou ao conteúdo dos direitos e deveres. Enquanto, num a
sociedade de status, os direitos e deveres de todos os grupos são
determinados pelo nascimento, nem por isso os direitos e deveres
em si precisam ser de caráter honorífico. Em geral, espera-se que
os grupos de status superior ajam por motivações honoríficas de
dever, obrigação e am or-próprio, enquanto os de status inferior
sejam incentivados a se dedicar a ocupações lucrativas, considera­
das inferiores, que mal chegam a garantir o sustento. Na Grécia
antiga, por exemplo, a condição do comerciante meteco ilustra
esse ponto. Inversamente, nossas modernas sociedades não basea­
das no status conheceram durante séculos a figura do comerciante
sem fins lucrativos, do agente ou feitor que comerciava para sua
KARL POLANYI

companhia, não para si mesmo, e cujo sucesso não lhe trazia lucro,
mas ascensão.
Nada disso, entretanto, afeta a distinção básica entre o feitor,
ou agente comercial, e o mercador. Este último pratica o comércio
visando ao lucro que espera obter com a transação, enquanto o
primeiro comercia como parte de seus deveres e obrigações gerais.

2. Classes alta, baixa e “média”: níveis de vida


O lugar ocupado pelo comerciante na escala de níveis de vida tem
sido m uito diferente nas diferentes sociedades, ou, a rigor, até
num a mesma sociedade em épocas diferentes. Em alguns casos,
essa situação se complica pela existência simultânea de mais de
um grupo social que exerce o comércio.
Na sociedade arcaica, o chefe (ou rei) e seu círculo imediato
eram os únicos aptos a comerciar, isto é, a iniciar as empreitadas
mais ou menos bélicas e diplomáticas que levam à “aquisição de
bens distantes”. O comércio por pirataria e o comércio por trata­
dos, praticados separadamente ou em conjunto, pertenciam à es­
fera governamental. O rei podia chefiar pessoalmente a emprei­
tada, como Mentes, o lendário governante dos táfios, ou apenas
supervisionar sua execução, como parece ter feito Argesilau, rei
autêntico dos cirenaicos. Mas o comércio feito pelo chefe (ou rei)
não implicava, em absoluto, um a intervenção pessoal do sobe­
rano, que na prática tinha de empregar centenas ou até milhares
de pessoas como feitores ou “mercadores do rei”. Alguns podem
pertencer à própria família real, outros figuram como príncipes
e governantes, senhores de fortalezas, castelos e vastas proprie­
dades senhoriais; outros podem figurar apenas como pessoas ilus­
tres da corte, que desfrutam de doações da realeza ou, com m uito
mais frequência, do privilégio de participar dos lucros comerciais
do sindicato real. Em todos esses casos, os “mercadores do rei”
equiparam-se a generais do Exército, governadores civis e outras
altas autoridades entre as figuras ilustres do país.

138
COMERCIANTES E COMÉRCIO

Nas sociedades camponesas típicas, como a Grécia antiga de­


pois do século VII a.C. ou Roma depois da monarquia, cessa o co­
mércio real. O comércio exterior é descontínuo, como em Roma,
ou reduzido a um comércio passivo. Na Grécia do século VI a.C.,
Sólon é mencionado como mercador, e decerto devemos presumir
que os pisistrátidas, assim como os alcmeônidas, engajavam-se,
pelo menos ocasionalmente, em empreitadas de larga escala no
comércio exterior. Eles foram exceções. O próprio Sólon admitia
que Atenas dependia de mercadores estrangeiros de cereais para se
abastecer de alimentos. Em Israel, no reinado de Davi as regiões
do interior desenvolveram um comércio real que atingiu um nível
considerável com Salomão; porém, depois que o império unido se
desfez, elas se tornaram inteiramente dependentes do comércio
passivo. Dentre esses três povos, somente os gregos tiveram m er­
cadores de classe baixa, sob a forma dos kapeloi, varejistas locais
de alimentos, e da classe meteca dos naukleroi, comerciantes que
eram donos de embarcações. Nenhum deles jamais evoluiu para
uma classe média. Esta classe, muito idealizada por Aristóteles com
tal denominação, era formada por proprietários de terras; não era
uma classe comercial.
A classe média comercial do século XIX foi um produto tardio
do desenvolvimento do Ocidente. A sociedade urbana medieval
consistia, tipicamente, em um a classe alta privilegiada, de merca­
dores burgueses, e um a ampla camada de artesãos e comerciantes
que com punham o povo. Juntas, elas formavam a com unidade
urbana, acima da qual ficava a aristocracia rural do interior, divi­
dida em grandes fazendas. Mesmo na Inglaterra do século XVIII,
a mais avançada sociedade comercial do Ocidente na época, os
mercadores burgueses bem-sucedidos elevaram-se ao nível da
classe fundiária, deixando para trás os “comerciantes” nas fileiras
inferiores da sociedade. Só depois da Lei da Reforma, de 1832, é
que uma classe média comercial ganhou posição na Inglaterra.
A Antiguidade só conhecia comerciantes na classe alta ou na
classe baixa. A prim eira estava ligada ao poder e ao governo, a

139
KARL POLANYI

outra dependia do trabalho braçal para sobreviver. Isso é muito


im portante para compreendermos as formas de organização do
comércio em épocas antigas.

3. Tamkarum, meteco e estrangeiro:


tipos de comerciantes do mundo arcaico
Os comerciantes típicos da Antiguidade eram os tamkarum, os
metecos e os estrangeiros. Os primeiros dom inaram a região me-
sopotâmica desde os primórdios dos sumérios até a ascensão do
islamismo, isto é, por cerca de 3 mil anos. O vale do Nilo também
só conhecia esse tipo de mercador, assim como o reino africano de
Daomé. O comerciante meteco tornou-se visível pela primeira vez
em Atenas e cresceu com o helenismo, vindo a se tornar o protó­
tipo do mercador de classe baixa desde o vale do Indo até as Colu­
nas de Hércules [estreito de Gibraltar]. De fato, foi de um a popu­
lação flutuante similar de pequenos mercadores — não do mar,
dessa vez, mas da terra -— que surgiu a classe mercantil burguesa
da Europa Ocidental. O terceiro tipo de comerciante, o estrangei­
ro, encontra-se em toda parte, é claro. Trata-se do forasteiro, do
praticante do “comércio passivo”, que não “pertence” à com uni­
dade nem sequer goza do status parcial de residente estrangeiro;
integra um a comunidade totalmente diversa. Nas grandes civiliza­
ções do Oriente e da África, a principal figura da vida comercial
era o tamkarum; na civilização helênica, era o meteco; porém, os
dois tipos de civilização abrigavam um punhado de estrangeiros.
C ontra esse pano de fundo, propositalm ente simplificado, que
precisa de muitas ressalvas para espelhar a enorme variedade de
configurações, pode-se traçar com clareza a verdadeira imagem do
comércio na Antiguidade.
O tamkarum pertencia ao tipo feitor ou agente comercial; tor­
nava-se tamkarum por hereditariedade ou ao ser nomeado pelo
rei, pelo templo ou pela “grande divindade” Em sua condição de
tamkarum, tinha um status que implicava privilégios e deveres.
Seus deveres incluíam as tarefas de transportar mercadorias, seja
COMERCIANTES E COMÉRCIO

como carregador, seja como organizador de caravanas ou de fro­


tas, além de toda a negociação, coleta de informações, diplomacia,
providências, barganha e conclusão das transações relacionadas
com o comércio de longa distância. Ele também podia funcionar
como corretor, leiloeiro, guardador de depósitos, agente de p a­
gamentos, empréstimos e adiantam entos oficiais, além de p ro ­
curador de justiça. Sua subsistência não dependia das transações
comerciais em andam ento; era assegurada pela renda do status,
principalmente por bens de raiz, ou, pelo menos, pelo direito ao
sustento pelo armazém do rei ou do templo, conforme sua posi­
ção. Quando, como em D aom é,sua renda vinha de um privilégio
comercial especial, as transações mediante as quais ele transfor­
mava esse privilégio em riqueza eram institucionalmente separa­
das das transações que ele realizava na sua condição de tamkarum.
Onde existiam guildas às quais os mercadores ou comerciantes
pertenciam por status, tudo isso era institucionalizado.
O meteco era um residente estrangeiro. Podia vir de um a p o ­
pulação flutuante de pessoas deslocadas — remanescentes de po­
vos desmembrados, refugiados políticos, exilados criminosos em
fuga, escravos fugitivos ou mercenários dispensados. Sua ocupa­
ção era a de pequeno comerciante ou de comandante de um a pe­
quena embarcação; podia funcionar como cambista ou prestamis-
ta, com uma barraca na praça do mercado.
Os metecos atenienses, um a população portuária, às vezes
eram artesãos ou artífices. Porém, com m uito mais frequência,
dedicavam-se ao comércio e procuravam ganhar a vida com os
lucros que obtinham com a com pra e a venda de mercadorias.
Além de ser comandante de barcos e mercador, o meteco também
experimentava trabalhar como “banqueiro” — um a ocupação su­
balterna de testar e trocar moedas atrás de uma bancada na praça
do mercado. Sua comissão como cambista era regulada pela auto­
ridade pública; como negociante de cereais, ele ficava sob rigorosa
supervisão; e como comandante de embarcação, era obrigado a
obedecer a num erosas restrições comerciais que limitavam os
KARL POLANYI

lucros. Em geral tinha liberdade para buscar o lucro, motivação


considerada própria de seu status inferior. Sua vida era uma labu­
ta penosa — o esforço físico agravado pela exposição às detestadas
agruras do mar. No entanto, ele não podia esperar recompensas
sob a forma de riqueza. Não podia possuir terras ou imóveis; não !
podia contrair hipotecas; por conseguinte, não podia possuir pro­
priedades que fossem vistas como riqueza. Um ou outro meteco
excepcional podia acumular um volume considerável de dinheiro,
mas isso fazia pouca diferença em seu padrão de vida. Como ho­
m em proibido de possuir terras e casas, não podia, por exemplo,
criar cavalos, oferecer banquetes nem construir um a mansão. Até
os poucos metecos ricos levavam um a vida sem encantos.

4. Povos comerciantes
Nem todas as comunidades praticantes do comércio contam com
comerciantes profissionais. Uma pode comerciar coletivamente;
outra talvez possua comerciantes profissionais e os considere inte­
grantes de um a classe social específica. Outras sociedades, na ver­
dade poucas, fazem do comércio ativo a principal ocupação da
maioria da população; a estas daremos aqui o nom e de povos co­
merciantes.
É evidente que a existência do comércio não pressupõe comer­
ciantes. Até mesmo onde eles estão presentes, sua relação com a
comunidade em geral pode ser muito diferente nos diferentes ti­
pos de sociedades. j-
Nas sociedades primitivas, como vimos, o comércio costuma
ser um empreendimento coletivo, praticado pelo líder ou com a
participação geral dos membros. Neste último caso, seu objetivo
pode ser igualmente alcançado por meio de encontros cheios de
gente, com parceiros comerciais na praia, ou pelo hábito popular
de transportar alimentos ou artigos m anufaturados locais para
um a ilha vizinha. Em geral, nas sociedades primitivas não encon­
tram os ninguém que se especialize nas profissões de mercador ou
comerciante.
COMERCIANTES E COMÉRCIO

O comerciante surge nas sociedades arcaicas. Nesse contexto, já


distinguimos entre as sociedades camponesas típicas e os im pé­
rios, e, no que diz respeito a estes últimos, entre os de caráter n ô ­
made e os de terras irrigadas (hidráulicos). Nas sociedades cam­
ponesas, a casa real pode em pregar mercadores, que em geral
desaparecem com a queda da m onarquia, como provavelmente
ocorreu na Roma prim itiva e após o fim das tiranias na Grécia
antiga. Nos impérios de agricultura irrigada, o tamkarum adquire
o direito de status. No império nômade dos mongóis, o comércio
era exclusivamente passivo; não surgiu nenhum a classe de comer­
ciantes ou mercadores, como tampouco surgiu nos antigos im pé­
rios nômades dos berberes e dos antigos árabes na África.
Os povos comerciantes diferem nitidamente de todos esses; ne­
les, o comércio é um a fonte de subsistência coletiva. Tais povos di­
ferem entre si num aspecto importante: os povos comerciantes pro­
priamente ditos, como podem os chamá-los, dependem de um
comércio no qual toda a população está engajada, direta ou indire­
tamente. Para os outros — um grupo muito mais numeroso — , o
comércio é apenas uma das ocupações a que uma parcela conside­
rável da população se dedica de tempos em tempos, viajando ao
exterior com mercadorias por períodos mais curtos ou mais longos.
Exemplos de povos comerciantes propriam ente ditos são os
fenícios, os rodienses e os vikings ocidentais, que se dedicavam
todos ao comércio marítimo; os beduínos e tuaregues do deserto;
os vikings orientais e os kedes do rio Niger, que usavam rotas flu­
viais. Os que comerciavam apenas periodicam ente eram povos
como os hauçás, os dualas, os mandingas e outros, na África oci­
dental, e o povo malásio. Além desses, existem os povos desloca­
dos, como os armênios e os judeus.

b. Mercadorias
A decisão de comprar mercadorias e transportá-las de um local
distante depende, obviamente, da necessidade dos bens e da difi­
culdade de comprá-los e transportá-los. Além disso, a necessidade

143
KARL POLANYI

tem de ser sentida pelos que possuem os meios políticos e técnicos


para organizar com eficiência a empreitada comercial. A decisão
de adquirir um tipo de bem em um a dada distância e região é to ­
mada, necessariamente, em circunstâncias diferentes daquelas que
levam à decisão de adquirir outros tipos de bens em outros luga­
res. Por essa razão, o comércio arcaico é sobretudo um trabalho
descontínuo, restrito a iniciativas específicas, que não criam em­
preendimentos privados permanentes. A societas romana e a com-
menda posterior, por exemplo, eram parcerias comerciais lim i­
tadas a um a em preitada. Antes dos tem pos m odernos, não se
conhecem associações comerciais permanentes. As iniciativas co­
merciais arcaicas diferem, portanto, de acordo com o tipo de m er­
cadorias a serem adquiridas e transportadas. Formam ramos sepa­
rados de comércio, cada qual com seus métodos operacionais e
sua organização característicos.
Tudo isso talvez pareça óbvio demais para merecer menção,
mas é útil recordar esses fatos se quisermos interpretar correta­
mente as características do comércio sem mercado. Nele não exis­
te o que se possa chamar de “comércio em geral”, pois todo comér­
cio é originalmente específico, dependendo dos bens envolvidos.
Uma coisa é transportar escravos e gado, que, p o r assim dizer,
deslocam-se com sua própria energia; outra, bem diferente, é car­
regar imensos pedregulhos ou enormes troncos de árvores, talvez
por centenas de quilômetros de terreno sem estradas. Em alguns
casos, compram-se mulas, cavalos ou ovelhas junto com seus ca­
valeiros ou pastores, o que cria um problema social de considerá­
vel complexidade.
A especificidade do comércio arcaico aumenta, no curso usual
das coisas, pela necessidade de adquirir bens im portados em troca
daqueles que é possível exportar, pois, na ausência de mercados,
importações e exportações tam bém tendem a ficar sob regimes
administrativos diferentes. O modo de reunir os bens a serem ex­
portados costum a ser m uito distinto daquele pelo qual se faz a
“partilha” dos bens importados. O primeiro é um a questão de tri­

144
COMERCIANTES E COMÉRCIO

butos, impostos, presentes feudais ou seja qual for a denominação


sob a qual os bens fluem para o centro, ao passo que a “partilha”
pode descer num a cascata hierárquica por linhas m uito diferentes.
Os russos de Kiev exportavam peles, fibra de linho e mel, reco­
lhidos pelo príncipe e pelos boiardos como tributos dos súditos,
e importavam os preciosos tecidos, sedas, joias e artigos refina­
dos de Bizâncio. No Império Romano, os víveres e outros artigos
necessários que fluíam das províncias para a capital como anona
representavam um a “importação” não retribuída, de caráter p u ­
ramente político. Nesse caso, primeiro as importações tinham de
ser recolhidas nas próprias províncias para que fossem enviadas a
Roma. Quinhentos anos depois, o comércio africano e das índias
Orientais e Ocidentais das companhias de comércio e navegação
europeias era feito, acima de tudo, em arranjos determinados pe­
las maneiras como os bens que serviam de tributos eram arreca­
dados dos nativos, quer p o r seus príncipes, quer pelos próprios
europeus, a fim de serem exportados para a Europa.

c. Transporte
No tocante ao transporte, assim como no tocante aos bens, o m er­
cado é um nivelador. Oblitera as diferenças: aquilo que a natureza
distinguiu o mercado homogeneiza. Até a diferença entre as m er­
cadorias e seu transporte desaparece, pois ambos podem ser com­
prados e vendidos — um no mercado de produtos, outro no m er­
cado de fretes. Em ambos existem a oferta e a procura, e os preços
são formados da mesma maneira. Os diversos tipos de serviços de
transporte têm um denom inador comum para as várias mercado­
rias em termos de custos, o caputmortuum da alquimia mercantil.
Ora, essa homogeneidade contribui para produzir um a boa
teoria econômica, mas um a história econômica ruim . As distin­
ções substantivas, que desaparecem no mercado, são a própria
matéria da história. Os diferentes tipos de bens, como vimos, cria­
ram ramos distintos de comércio nos tempos arcaicos. Os bens
intercambiados podem ser necessários para pessoas de posições
KARL POLANYI

diferentes, cujos interesses se expressam por canais diferentes, que


dispõem de meios diferentes para atingir seus fins e que, portanto,
impulsionam tipos de comércio que não têm praticamente nada
em comum em termos de organização. Ignorar a diferença entre
bens que podem se mover, como escravos e gado, e bens que não
podem fazê-lo, como pedras e m adeira, tornaria ininteligível a
história primitiva do comércio.
No caso do transporte, isto é, de bens carregados por um a dis­
tância, as rotas percorridas e as formas de transporte não são me­
nos relevantes. Nisso, tal como nas mercadorias, os dados geo­
gráficos e tecnológicos se entrelaçam com a estru tu ra social.
A organização do comércio deve ser tal que possa lidar com os
perigos e as obstruções causados pela natureza e pelo ser humano.
Na navegação marítima, por exemplo, usava-se o mesmo tipo de
embarcação para enfrentar os riscos da natureza e os da guerra.
O desenvolvimento dos navios de guerra de m odo independente
dos navios mercantes que serviam a fins pacíficos e bélicos veio
relativamente tarde. Vista por este prisma, a tripulação dos navios
de guerra foi apenas uma variação da tripulação “mercante”. Seu
recrutamento, portanto, não era primariamente um a proposta co­
mercial — outro indicador para a história do comércio.
Quanto aos perigos de piratas e ladrões, as rotas terrestres e o
comércio costeiro ficavam quase igualmente expostos. Só em alto
m ar o ataque de piratas se tornava improvável. (Isso, é claro, é
menos aplicável a épocas posteriores, com suas rotas marítimas
mais frequentadas.) O policiamento das rotas terrestres foi a razão
de ser de todos os impérios, exceto os mais antigos, aqueles que
nasceram das exigências políticas da irrigação. Nem a Babilônia
nem o Egito ou a China se ampliaram p o r rotas terrestres; seu
transporte era predom inantem ente fluvial (o term o acádio para
designar um local de comércio era “porto”). Mas os impérios n ô ­
mades dos povos turcos, mongóis, árabes e berberes espalharam-
-se como um a rede por rotas transcontinentais de caravanas. Seu
objetivo era “possuir” as rotas que garantiam um fluxo de impor-

146
COMERCIANTES E COMÉRCIO

1
I táções — em parte sob a forma de pedágios e impostos, como
Ül
I pagamento em espécie por salvo-condutos, em parte em troca de
Éjf! matérias-primas arrecadadas como tributos dos povos conquista­
dos pelos construtores de impérios.
fc
As caravanas, portanto, precederam os impérios. Sua organi­
zação era ditada pelos requisitos do trânsito por áreas não poli­
ciadas. As prim eiras caravanas, sem dúvida, foram preparadas e
armadas para suas tarefas pelos poderes públicos, tanto no arca­
bouço do comércio dos reis quanto no do comércio dos guerrei­
ros. Em qualquer desses casos, o mercador seria do tipo do tamka-
rum. Todavia, mesmo a caravana independente posterior, amiúde
composta por mercadores burgueses que frequentavam as rotas
terrestres tradicionais, continuou a ser um a espécie de pequeno
Estado itinerante, que traçava seu caminho por entre incontáveis
assentamentos, menores ou maiores, de povos de natureza mais
ou menos predatória. Essa caravana extraterritorial devia manter-
-se estritamente na trilha conhecida, sem olhar para a esquerda
nem para a direita ao atravessar o interior. Não raro, seus partici­
pantes aprendiam tão pouco sobre as regiões que atravessavam
quanto o turista m oderno em sua excursão guiada, pulando de
um hotel para outro de avião. A maior parte do antigo tráfico de
escravos era feita nesse tipo de caravana. Só raram ente alguns
mercadores individuais, sem o acompanhamento armado de uma
caravana, conduziam lotes inteiros de escravos pelas fronteiras
políticas, pagando tarifas aos soberanos locais em cada fronteira.
É provável que nesse últim o tipo de viagem em etapas residisse o
segredo das muitas centenas de quilômetros ao longo dos quais se
vendiam multidões de escravos, “descendo o rio” pela costa oci­
dental da África equatorial, especialmente depois da chegada dos
portugueses ao delta do Congo, no século XVIII. No Niger, os co­
lonos kedes, ainda no século XIX, atendiam aos objetivos desse
comércio fluvial sem caravanas, que passava por toda a extensão
dos meandros do rio em canoas fretadas, como um a jibóia dige­
rindo sua presa.

147
KARL POLANYI

Em certos aspectos, a caravana foi também fonte de um im por­


tante fenômeno militar. Rostovtzeff assinalou que o exército helê-
nico foi um a das criações mais originais da sua época, sendo im ­
possível exagerar sua importância econômica.3 Referia-se, é claro,
à enorme reunião de homens e animais, num total de dezenas de
milhares de mercadores e artífices, que com punha o capital itine­
rante do império. Era um labirinto de mercados, entremeado no
tecido de um quartel m ilitar m onstruosam ente ampliado. Esse
exército nada mais era que um a caravana glorificada, a prim eira
formação armada a tentar tornar autossuficientes enormes agru­
pam entos de pessoas em deslocamento. No entanto, esse skeue
[aparato] dos selêucidas, que impressionou Rostovtzeff, era relati­
vamente modesto em comparação com o trajeto de verão do grão-
-mogol, que ia de sua poeirenta capital indiana até as montanhas
elevadas, cerca de 2 mil anos depois. Conforme a descrição de Ta-
vernier, esse trajeto anual era, na verdade, um a cidade improvisa­
da, de proporções fantásticas, com quase meio milhão de seguido­
res; incluía toda a população do bazar de Déli, marchando pelo
país como um gigantesco monstro e acampando noite após noite
num novo local.4

d. Bilateralidade
Adquirir, para a comunidade, objetos não disponíveis in loco obri­
ga o grupo a m anter relações externas. As formas pré-mercantis
dessa aquisição são a caçada, a expedição e a incursão de assalto,
nas quais a movimentação dos bens é unilateral. Capturar, extrair
pedras, derrubar árvores, roubar ou qualquer outra form a de
apropriação dos bens constituem uma parte da ação; carregar, p u ­
xar ou transportar as aquisições constituem a outra. Mas o comér­
cio, como vimos, é um a atividade bilateral pacífica, que requer
uma forma específica de organização para assegurar essas qualida­

3 M. Rostovtzeff, The Social and Economic History o f the Hellenistic World. Oxford: Cla-
rendon Press, 1941, v. I, p. 144 ss.
4 Jean-Baptiste Tavernier, The Six Voyages ofjean Baptiste Tavernier. Londres, 1678.

148
COMERCIANTES E COMÉRCIO

des. De acordo com a lógica da bilateralidade, deparamos com três


tipos principais de comércio: a troca de presentes, o comércio
administrado ou de tratados e o comércio mercantil.
O comércio de presentes liga os parceiros em relações de re­
ciprocidade, como as de amigos hóspedes, parceiros do kula ou
mercadores visitantes. A organização do comércio, nesse caso, cos­
tum a ser cerimonial, envolvendo apresentações mútuas, embaixa­
das e negociações políticas entre chefes ou reis, Os bens costumam
ser objetos de circulação na elite, como escravos, ouro, cavalos,
marfim, roupas ou incenso; no caso limítrofe de parceiros visi­
tantes, porém, os bens podem ser de caráter mais “democrático”.
A troca de presentes é disseminada nas sociedades tribais em que
não há outras sanções para evitar as medidas hostis de retaliação,
mas, ao longo de milênios, o comércio entre impérios realizou-se
como uma troca de presentes — nenhum a outra lógica de bila­
teralidade atenderia tão bem às necessidades da situação. Os im ­
périos podiam obter vantagens dos “bárbaros” por meio de pre­
sentes, ou a parte mais fraca podia destacar-se na oferta desses
presentes a fim de cair nas graças da mais forte e, desse modo,
evitar o pagamento de tributos.
O comércio adm inistrado ou por tratados pressupõe órgãos
políticos ou semipolíticos organizados e relativamente estáveis,
como as companhias de comércio. Fundamenta-se em relações
mais ou menos formais, estabelecidas por tratados. O acordo pode
ser tácito, como no caso das relações tradicionais ou costumeiras.
Porém, entre órgãos soberanos, o comércio em maior escala pres­
supõe a existência de tratados explícitos, mesmo em épocas rela­
tivamente remotas (como entre os etruscos e Cartago no século
VI a.C.). No comércio por tratados, o interesse nas importações é
determinante de ambos os lados e, por essa razão, o comércio se
organiza por meio de canais governamentais ou controlados pelos
governos. Em geral, essa organização envolve a coleta dos bens de
exportação e a distribuição dos im portados — que se incluem
ambas na esfera redistributiva da economia doméstica. Por con­

149
KARL POLANYI

seguinte, todo o comércio é controlado por métodos administra­


tivos, que englobam a maneira pela qual se dá a transação comer­
cial: arranjos concernentes às “taxas” ou proporções das unidades
comerciadas; pesagem; verificação da qualidade; troca física dos
bens; armazenagem; custódia; regulamentação dos “pagamentos”;
créditos; e diferenciais de “preço”, bem como o controle do pessoal
envolvido no comércio. Os bens comerciados são padronizados
quanto à qualidade, à embalagem, ao peso ou a outros critérios de
fácil verificação. Só é possível trocar esses “bens comerciais”. Os
equivalentes são estipulados em relações de unidades simples —
em princípio, o comércio é feito de um para um .5
A barganha não faz parte dos procedimentos. Porém, dado que
diante de circunstâncias mutáveis frequentemente é impossível
evitá-la, ela pode ser praticada em aspectos que não o “preço”, tais
como medidas, qualidade, meios de pagamento e lucro. A lógica
do processo, é claro, consiste em manter inalterados os equivalen­
tes; quando é preciso adaptá-los a situações efetivas de forneci­
mento, como num a emergência, isso é enunciado como comércio
de dois para um, ou de dois e meio para um, ou, como diriamos,
com lucro de 100% ou 150%. Esse método de barganha dos lucros
com “preços” estáveis, que pode ter sido bastante geral na socieda­
de arcaica, foi bem conhecido na região central do Sudão ainda no
século XIX.6
Uma vez estabelecidas num a região, as formas administrativas
de comércio podem ser praticadas sem nenhum tratado anterior.
A instituição específica e local de todo o comércio exterior adm i­
nistrado é o “porto comercial”.7 Trata-se de um órgão específico
do comércio exterior em economias não mercantis, em geral si­

5 Cf. Karl Polanyi, em colaboração com Abraham Rotstein, Dahomey and the Slave Tra-
de. Seattle e Londres: University o f Washington Press, 1966, p. 146-154.
6 Ibid., p. 148.
7 Cf. Karl Polanyi, “Ports o f Trade in Early Societies”, The Journal o f Economic History 23,
1963, p. 30-45; reproduzido em G. Dalton (org.), Primitive, Archaic, and M odem Eco-
nomics: Essays o f Karl Polanyi. Garden City, Nova York: Doubleday, 1968, cap. 10.

150
COMERCIANTES E COMÉRCIO

tuado na costa, na fronteira de desertos, na nascente de um rio ou


no ponto em que a planície e as montanhas se encontram. Os m é­
todos diplomáticos e administrativos usados nos contatos entre o
governo e os representantes das partes — quase sempre compa­
nhias de comércio e governos — são tais que excluem a concor­
rência. A função do “porto comercial” é oferecer segurança militar
ao anfitrião, proteção aos mercadores estrangeiros, instalações de
ancoragem, desembarque e armazenagem, autoridades judiciais,
acordos sobre os bens a serem comerciados e acordos quanto às
“proporções” dos diferentes bens.
O comércio mercantil é a terceira forma típica de intercâmbio
comercial. Nesse caso, a troca é a forma de integração que relacio­
na os parceiros entre si. Essa é a forma relativamente m oderna do
comércio, que liberou uma torrente de riqueza material na Europa
Ocidental e na América do Norte. Hoje é, de longe, a mais im por­
tante de todas. O leque de bens comercializáveis — as mercadorias
— é praticamente ilimitado. A organização segue as linhas traça­
das pelo mecanismo de oferta-procura-preço. O mecanismo de
mercado é adaptável ao manejo não apenas de mercadorias, mas
de todos os elementos do próprio comércio — armazenamento,
transporte, risco, crédito, pagamentos etc. — , formando mercados
especiais de frete, seguros, crédito a curto prazo, capital, espaço
nos armazéns, serviços bancários e assim por diante.
O comércio mercantil pressupõe, é claro, o comércio e os m er­
cados. Quanto ao comércio, sua origem independente foi m ostra­
da acima. Os mercados, por outro lado, não provêm necessaria­
mente do comércio. Os mercados locais decerto têm suas próprias
origens independentes. Está errada a ideia catalática* de que os
mercados e o comércio são, de algum modo, as formas estática e
dinâmica de um a mesma energia econômica.
Para o historiador da economia, o problema reside exatamente
nisto: quando e como o comércio se une aos mercados? Em que

Ver nota na p. 50 desta edição. [N.T.]


KARL POLANYI

circunstâncias os mercados tornam-se um veículo dos movim en­


tos comerciais? Em que épocas e lugares encontram os pela p ri­
meira vez o resultado, ou seja, o comércio mercantil?
Essas perguntas serão abordadas separadamente adiante, com
respeito aos mercados externo e interno. O problema do mercado
externo é apenas mais um aspecto do porto comercial e das cir­
cunstâncias que levaram à evolução para mercados internacionais
regulares; o problema do mercado interno, por sua vez, refere-se
ao processo pelo qual a ágora da pólis, estritamente controlada e
limitada, e o bazar do m undo oriental, muito diferente dela, trans­
formaram-se em livres pontos de encontro de mercadores estran­
geiros. Como veremos, o comércio só apresenta um a característica
que é geral no desenvolvimento das instituições econômicas, a
saber, a polaridade das linhas externa e interna de desenvolvimen­
to. Com o comércio, a prioridade da linha externa se evidencia
claramente.
Objetos m onetários e usos do dinheiro

0 dinheiro como sistem a semântico


Em termos antropológicos, o dinheiro deveria ser definido como
um sistema semântico, semelhante, em linhas gerais, à linguagem,
à escrita ou aos pesos e medidas.1Tais sistemas diferem sobretudo
nos propósitos a que servem e nos sinais que usam. A linguagem e
a escrita comunicam idéias; pesos e medidas expressam relações
físicas quantitativas. Q uanto aos sinais, a linguagem falada usa
sons orais; a escrita usa ideogramas ou caracteres visuais; os pesos
e medidas usam objetos físicos como base de símbolos.
O dinheiro se assemelha a cada um destes, mas também se di­
ferencia deles. Serve a diversos propósitos, tradicionalmente des­
critos como meio de pagamento, padrão de valor (ou unidade de
conta), reserva de riqueza e meio de troca. Adiante forneceremos
o significado exato desses termos. Eles são listados aqui apenas
para assinalar que esses típicos “usos” representam o “propósito”
do dinheiro como sistema semântico. Embora tais usos tenham
origem na teoria da economia de mercado, demonstraremos que
eles são independentes nas condições das sociedades primitivas.
Assim definido, o dinheiro se assemelha a um sistema de m e­
didas cujos símbolos estivessem unidos a objetos físicos, mas di­
fere dele quanto ao objetivo. Embora, em alguns sentidos, o di­
nheiro funcione como sistema de medidas, no caso dele não se
avaliam o comprimento, o tam anho ou o peso de um objeto, mas
sua importância para nós num a situação definida. Nesse caso, o
uso prim ário a que nos referimos é o de padrão de valor ou u n i­
dade de conta.

1 Karl Polanyi, “The Semantics o f Money Uses”, Explorations, outubro de 1957; reprodu­
zido em G. Dalton (org.), Primitive, Archaic, anã Modern Ecotiomics: Essays ofK arl
Polanyi. Garden City, Nova York; Doubleday, 1968, com um apêndice “Notes on Pri­
mitive Money”.
KARL POLANYI

O dinheiro difere dos sistemas da linguagem falada e escrita


porque, em geral, seus símbolos não se ligam a sons, como na fala,
nem a caracteres visuais, como na escrita, mas a objetos físicos,
como peças de metal, conchas ou papel impresso. Mas os símbolos
abstratos, tais como as “unidades ideais” representadas por uma
palavra ou um a cifra, também podem ser usados como dinheiro
— fato que não devemos perder de vista, já que ocorre com fre­
quência na sociedade primitiva.
Visto de um ângulo meramente formal, o dinheiro proporcio­
na um paralelo notável com a fala ou a escrita. Os três são sistemas
semânticos complexos, organizados por um código de regras que
estipula a m aneira correta de usar sons, caracteres ou objetos
como elementos dos respectivos sistemas. Cada um deles emprega
um núm ero limitado de símbolos “para todos os fins”, de acordo
com regras definidas, tendo em vista abarcar usos diferentes. No
caso do dinheiro, isso só é verdade nas sociedades modernas; as
peculiaridades do dinheiro nas sociedades primitivas e arcaicas
têm sido deixadas de lado.
As sociedades primitivas não conhecem o dinheiro “para todos
os fins”. Os diferentes usos dele costumam se distribuir entre ob­
jetos simbólicos diferentes. Portanto, nessas sociedades nenhum
tipo isolado de objeto merece o nom e de dinheiro; o term o se
aplica a um grupo de objetos, pois trata-se de “dinheiro” para fins
específicos. Enquanto a distinção entre os vários usos do dinheiro
na sociedade m oderna é mais ou menos acadêmica — pois, em
geral, o dinheiro que serve de meio de troca também executa todas
as outras funções — , a situação é radicalmente diferente na socie­
dade primitiva. Nela podemos encontrar escravos usados como
padrão de valor (ou unidade de conta) para m edir grandes rique­
zas, enquanto as conchas de cauri só são usadas para medir peque­
nas quantidades, em situações diferentes. (A propósito, a unidade
“escravo” pode servir como um valor convencional, representando
uma unidade de conta, enquanto os escravos reais são vendidos
por preços variáveis.) Enquanto os escravos são um meio de paga­
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

mento de tributos a um suserano estrangeiro, as conchas de cauri


funcionam como um meio de pagamento local. Isso não exclui o
uso de metais preciosos para entesourar riqueza, ainda que eles
possam não servir como dinheiro corrente ou sejam usados ape­
nas no comércio exterior. Quando o hábito do mercado é suficien­
temente difundido, o dinheiro pode servir como meio de troca no
comércio exterior; para esse fim, podem-se usar diversos bens que,
em outras situações, não são usados como dinheiro. Tais variações
admitem numerosas combinações. Nenhum a regra é universal­
mente aplicável, a não ser a regra geral de que os usos do dinheiro
se dispersam num a multiplicidade de objetos. Nessas condições, a
distinção entre esses vários usos tem grande importância prática
para a compreensão das instituições da sociedade primitiva.
O contraste com a organização moderna do dinheiro não po­
dería ser mais acentuado. Podemos vê-lo em um a analogia com
outros sistemas semânticos. Na fala, todos os sons orais articula­
dos e, na escrita, todas as letras do alfabeto estão aptos a ser usados
em todos os tipos de palavras. Mas o dinheiro primitivo, em casos
extremos, pode usar um tipo de objeto como meio de pagamento,
outro como padrão de valor, um terceiro para acumular riqueza e
um quarto para efeito de troca. Tal tipo de dinheiro seria como
uma língua em que os verbos estivessem formados por um grupo
de letras, os substantivos por outro, os adjetivos por um terceiro
e os advérbios por um quarto grupo.
Há mais um contraste significativo em nossa descrição provi­
sória desse sistema m onetário “primitivo”. Nas sociedades de ou-
trora, o uso fundamental do dinheiro não é como meio de troca.
Se há um uso mais básico que outro, este será um dos demais usos,
pois qualquer um deles pode ser encontrado em comunidades nas
quais o dinheiro não é usado como meio de troca. Enquanto na
sociedade m oderna os vários usos do dinheiro se unificaram a
partir de seu uso como meio de troca, nas comunidades prim iti­
vas esses diferentes usos permaneceram institucionalmente sepa­
rados e independentes uns dos outros. Na verdade, os usos para a
KARL POLANYI

realização de pagamentos, como unidade de conta ou para ente-


sourar riqueza têm precedência sobre o uso como meio de troca.
Pode-se argum entar que o dinheiro primitivo não deveria ser
descrito como um sistema semântico, já que não era suficiente­
mente “sistemático” para ser chamado de sistema. Contudo, deve­
mos lembrar que, originalmente, o material que conduziu à for­
mação dos sistemas da fala e da escrita tam bém foi retirado de
fontes díspares. Consideremos o papel exercido pelos sons orais
articulados, em usos tão diferentes quanto os encantamentos má­
gicos, os gritos dos caçadores para im itar animais selvagens ou a
“enumeração” de rimas praticada pelas crianças em suas brinca­
deiras. Embora se saiba que os sons relacionados com esses usos
contribuíram para a matéria-prim a da linguagem falada, nem to­
dos foram incorporados nela, e alguns só o foram reduzindo-se
sua efetividade na comunicação de idéias. Do mesmo modo, al­
guns usos primitivos do dinheiro, como a magia ou a ornam enta­
ção, desapareceram nas formas m odernas da moeda, enquanto
todos os demais usos foram subordinados ao uso dominante, o de
meio de troca.
Assim, o dinheiro m oderno, ao empregar os símbolos da troca
em todos os seus diferentes usos, apresenta um paralelo quase
completo em relação à fala e à escrita. Em termos gerais, essa ana­
logia tam bém se aplica ao dinheiro prim itivo e arcaico, que só
difere de seu correspondente m oderno no grau de unificação dos
sistemas simbólicos.

Análise institucional do dinheiro


O estudioso das instituições econômicas prim itivas deve fazer
um a abordagem mais prosaica, mas nem por isso menos criterio­
sa, do dinheiro. A menos que se atenha aos meios físicos em si —
como conchas, plumas ou pedaços de metal — , ele corre o risco
de se perder. Apesar disso, tal como o filósofo, deve buscar uma
definição funcional, pois nenhum objeto material é dinheiro em
si; ao contrário, qualquer objeto, na situação apropriada, pode

156
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

funcionar como dinheiro. Para determinar os usos que são dados


às coisas físicas, ele precisa indicar a situação em que os objetos
são usados e com que fim. A definição funcional do dinheiro surge
a partir dos objetos quantificáveis comumente designados como
dinheiro e das operações observáveis efetuadas com eles. Adiante
nos estenderemos sobre as situações em que as operações são efe­
tuadas e se os efeitos desejados ocorrem ou não. Aqui, queremos
chamar atenção para os objetos em si e o que se faz com eles, ou,
em termos mais técnicos, para os aspectos físicos dos objetos e os
aspectos operacionais das práticas. Em ambos os casos — objetos
e operações —-, a origem dos usos básicos do dinheiro nos faz re­
montar às sociedades sem escrita. Logo, a economia levanta pro­
blemas cuja solução requer mecanismos técnicos para quantificar
objetos.
Antes de inventar a escrita e aprender a usar símbolos matemá­
ticos, o hom em concebeu meios pelos quais algumas operações
manuais simples produziam resultados numéricos complexos que
ainda estavam fora do alcance de sua técnica intelectual. Trata-se
de atalhos manipulativos de cálculo, como o ábaço, a manutenção
de registros estatísticos mediante a colocação de contas coloridas
em múltiplas caixas e inúmeras outras engenhosas maneiras de
lidar com problemas numéricos de m odo fácil e simples, com a
ajuda desses dispositivos ou arranjos, evitando cálculos compli­
cados ou que consumissem m uito tempo. Um exemplo claro é o
complexo sistema dual da administração militar e civil de Daomé,
no qual a simetria servia de recurso operacional para verificar e
controlar quase todos os níveis burocráticos. O utro sistema é o
método daom eano de fazer o recenseamento anual, colocando
pedrinhas nas caixas apropriadas.2
Nem o governo nem a economia podiam funcionar sem esses
dispositivos. Eles não eram aparelhos no sentido tecnológico,

2 Karl Polanyi, em colaboração com Abraham Rotstein, Dahomey and the Slave Trade.
Seatüe e Londres: University o f Washington Press, 1966, p. 41-43,53 ss.
KARL POtANYI

como os usados nos tempos modernos, mas sim no sentido se­


mântico. Acionavam os poderes da mente sem esforço conceituai.
O que os sistemas semânticos conseguem alcançar com a ajuda de
símbolos o dispositivo operacional consegue ao empregar opera­
ções manuais.
Entretanto, nem o paralelo nem o contraste entre símbolo e
aparelho devem ser exagerados. Os recursos operacionais, como
as réguas de cálculo, podem usar símbolos, do mesmo m odo que
os sistemas semânticos, como a matemática, usam recursos opera­
cionais, como os determinantes.
Mas é verdade, em linhas gerais, que os sistemas semânticos
ocupam um nível superior ao dos recursos operacionais. A lingua­
gem vocal e gestual, a escrita, os pesos e medidas, a matemática e
as artes, mais ou menos, esgotam a lista dos sistemas semânticos
familiares ao ser humano. O núm ero de recursos operacionais é
muito maior, embora apenas alguns atinjam o nível de sistemas
complexos. Praticamente nenhum deles sobreviveu nas condições
civilizadas, isto é, depois de se desenvolverem a escrita, a m ate­
mática e os sistemas de pesos e medidas. Uma vez alcançado esse
estágio, os recursos operacionais parecem substitutos toscos da
escrita e do cálculo, mesmo que tenham sido m uito importantes
nas condições prim itivas e arcaicas. Eles são a chave de muitos
feitos da política e da economia arcaicas que deixaram o m undo a
se perguntar, eternamente, como se alcançou tam anha perfeição
organizacional sem o uso da escrita e dos cálculos numéricos.
Quanto ao problema da origem e do desenvolvimento dos usos
do dinheiro, é crucial a ligação entre os objetos físicos e as opera­
ções efetuadas com eles. A característica vital dos objetos m onetá­
rios é que eles são quantificáveis, o que lhes perm ite funcionar
como dispositivos em cada um dos usos do dinheiro, os quais de­
pendem de critérios definidos: a situação, social ou culturalmente
determinada, em que surge a necessidade, o manejo operacional­
mente definido dos objetos e, por último, o efeito sobre a situação.

158
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

A “situação” é um fato da sociologia geral, o “manejo” é operacio­


nalmente prescrito e o “efeito” é tal que a necessidade é atendida.
Falaremos em dinheiro quando forem encontradas unidades
físicas intercambiáveis (fungíveis) em qualquer dos usos descritos
abaixo. A resfungibile era definida no direito medieval, de manei­
ra realmente operacional, como res quae numero, pondere ac men­
sura consistunt. Conchas, moedas, plumas, m edidas de cevada,
cédulas bancárias ou inúmeras outras coisas intercambiáveis p o ­
dem ser vistas como dinheiro, desde que sejam usadas de alguma
destas maneiras:

a) Pagamento
O pagamento é o cancelamento de uma obrigação mediante a en­
trega de objetos quantificáveis (fungíveis). “Entrega” é a operação,
“cancelamento da obrigação” é o efeito desejado. Para que falemos
de dinheiro, a situação de “ter uma obrigação” precisa do seguinte
requisito: que outra situação, diferente quanto à natureza da obri­
gação, possa ser satisfeita com os mesmos meios. Caso contrário,
o “cancelamento” por meio da entrega de objetos quantificáveis
não constitui pagamento em dinheiro (como quando é preciso
cancelar um a obrigação “em espécie”).

b) Padrão de valor
O uso do dinheiro como padrão de valor é o emprego de uma
determinada unidade física como referência em situações em que
se necessita de operações aritméticas para com parar objetos de
tipos diferentes, como quando se mistura “alhos com bugalhos”.
O “manejo” da unidade consiste na operação de “etiquetar” com
um valor numérico pelo menos um a das unidades, o que faz com
que “alhos e bugalhos” possam ser somados de maneira significa­
tiva ao serem relacionados com o “padrão”. O efeito é facilitar a
troca, já que itens de ambos os lados podem ser avaliados, som an­
do-se seu valor; as finanças tam bém exigem, em geral, somas e
KARl POLANYI

subtrações de diferentes produtos essenciais, como alhos e buga­


lhos; portanto, exigem um “padrão”

c) Entesouramento de riqueza
O entesouramento de riqueza é a acumulação de objetos quan-
tificáveis (1) para uso futuro ou (2) simplesmente como tesouro.
A “situação sociológica” é tal que as pessoas (1) preferem não con­
sum ir nem destruir de outra maneira esses objetos no presente,
mas adiar essa ação para um m om ento futuro, ou (2) preferem as
vantagens da simples posse, especialmente o poder, o prestígio è
a influência que decorrem dela. A “operação” envolvida consiste
em guardar, armazenar ou conservar os objetos para uso futuro,
ou para que sua posse e, de preferência, sua exibição ostensiva
possam resultar em prestígio para o possuidor e para aqueles que
ele possa representar.

d) Meio de troca
O uso do dinheiro como meio de troca consiste em empregar ob­
jetos quantificáveis em situações de troca indireta. A operação en­
volve duas trocas consecutivas, com os objetos monetários ocu­
pando a posição de termo intermediário. Entretanto, depois que a
troca indireta passa a ser aceita, a sequência pode começar pelo
dinheiro e term inar com mais dinheiro.

Excepcionalmente, o term o dinheiro também se aplica a algo dife­


rente de unidades físicas. Essas “unidades ideais” são sinais escri­
tos, palavras faladas ou atos registrados, empregados nos usos do
dinheiro. Assim, a “operação” consiste em m anipular dívidas for­
madas por essas unidades, com um efeito semelhante ao do uso de
unidades físicas. Na sociedade arcaica, às vezes se entregam “uni­
dades ideais” na compensação de contas, como nas finanças liga­
das aos produtos essenciais dos prim órdios do reino assírio e do
fim do império egípcio.

160
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

Uma aparente exceção de tipo inverso pode ser vista quando


unidades físicas que também são dinheiro funcionam em usos não
m onetários, como quando se empregam moedas para ensinar
aritmética a crianças. Essas unidades são dinheiro porque já têm
uso monetário, mas tam bém podem servir a outros propósitos
meramente operacionais, sejam eles estatísticos ou como simples
pesos, marcadores ou contas.

Dinheiro como meio de troca


A abordagem tradicional considera o dinheiro como, basicamente,
um meio de troca. Adota-se como ponto de partida um a situação
de troca e admite-se um a operação adequada para facilitá-la: tra­
ta-se de adquirir objetos monetários a fim de trocá-los pelos bens
desejados. Essa é a “troca indireta” do economista. Em um a eco­
nomia de mercado, como a nossa, o dinheiro é identificado p rin­
cipalmente com esse uso, e todos os demais usos subordinam-se
a ele, Este é um dos pressupostos mais poderosos do pensamento
econômico moderno.
Além de Smith e Ricardo, sociólogos como Spencer, Durkheim,
Mauss e Simmel tam bém foram vítimas da falácia catalática* de
que a divisão do trabalho implicava a troca. Daí o erro fatídico de
definir o dinheiro como meio de troca, o que depois foi estendido
pelos antropólogos até mesmo às sociedades sem escrita. Como
escreveu Raymond Firth, “em qualquer sistema econômico, por
mais primitivo que seja, um artigo só pode ser visto como dinhei­
ro quando funciona como um meio definido e comum de troca,
quando é o intermediário indispensável para se obter u m tipo de
mercadoria em troca de outro”.*3 Posteriormente, o professor Firth
atenuou sua posição, mas seu conceito estreito distorceu a imagem
da natureza do dinheiro e, com isso, criou um obstáculo quase
insuperável para a análise das economias sem mercado.

* Ver nota na p. 50 desta edição. [N.T.]


3 Raymond Firth, “Currency, Primitive”, Encyclopaedia Britannica, 14a edição.

161
KARL POLANYI

Segundo essa visão tão representativa, o critério essencial é o


uso do dinheiro como meio de troca, não apenas na sociedade
moderna, mas também na primitiva. Mesmo em condições prim i­
tivas, afirma-se que os quatro usos do dinheiro são inseparáveis.
Segundo essa concepção, só os objetos quantificáveis que servem
como meios de troca podem ser vistos como dinheiro. A função
deles como meio de pagamento, padrão de valor ou meio de acu­
mular riqueza não define sua condição de dinheiro, a menos que
sejam usados também como meios de troca. Afirma-se que esse
uso unifica logicamente o sistema ao perm itir um a vinculação
coerente das diversas funções do dinheiro. Sem ele, não poderia
haver dinheiro verdadeiro.
Essa definição é distorcida por um a abordagem modernizante
do problema, a qual responde, em parte, pela obscuridade em
que ainda se encontram as características do dinheiro primitivo.
O ponto de vista que considera o dinheiro sobretudo como meio
de troca não encontra apoio na história prim itiva dos usos do
dinheiro. É um erro acreditar que o problema seja de mera defi­
nição e que os obstáculos à sua solução sejam meramente concei­
tuais. A institucionalização separada e independente dos vários
usos do dinheiro suscita questões de fato que envolvem grande
parte do m ecanismo e da estrutura das sociedades prim itivas,
como se evidenciará em nosso exame dos outros usos do dinheiro
nessas sociedades.

0 uso do dinheiro como meio de pagamento


O pagamento, no sentido moderno do termo, é o cumprimento de
uma obrigação mediante a entrega de unidades quantificadas. Nos
parece evidente a ligação do pagamento com o dinheiro e a da
obrigação com as transações econômicas. No entanto, as origens
do pagamento rem ontam a um a época anterior à do uso de obje­
tos quantificados para cum prir obrigações relacionadas a essas
transações. Para lidar com a variedade de formas em que o paga­
m ento e a obrigação aparecem no curso da história econômica,

162
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

precisaremos traçar um a evolução que parte dos prim órdios pré-


-econômicos e pré-judiciais.
Existia pagamento na época em que não existia distinção entre
direito civil, direito penal e direito sagrado. Isso responde, em par­
te, pela estreita relação entre pagamento e castigo, de um lado, e
obrigação e crime, do outro. Mas não se deve presumir um a evo­
lução linear. A obrigação também pode ter um a origem diferente
da do crime, a punição pode provir de outras fontes que não as
sagradas e o pagamento pode incluir um componente operacional
separado da punição em si. Todavia, em termos históricos e de
modo geral, o direito civil seguiu-se ao direito penal e este, ao
direito sagrado. Portanto, o pagamento era igualmente devido pe­
los culpados, os impuros, os fracos e os inferiores; e era algo que
se devia aos deuses e aos sacerdotes, aos honrados e aos fortes.
A punição, como o crime, aplicava-se em termos sacros ou sociais.
Resultava na diminuição da santidade, do prestígio e do status do
pagante, sem se deter nem mesmo em sua destruição física.
A obrigação pode ganhar forma com a explicitação dos as­
pectos legais do delito. M uitas obrigações, porém , provêm dos
costumes e só dão margem ao delito se forem descumpridas. Em
nenhum desses casos o restabelecimento do equilíbrio precisa en­
volver um pagamento. É que as obrigações, de m odo geral, são
específicas. Seu cum prim ento não é um a questão quantitativa,
mas puramente qualitativa, à qual falta, portanto, um a caracterís­
tica essencial do pagamento. A infração de obrigações sagradas e
sociais, seja ela perante o deus, a tribo, a família, o totem, a aldeia,
o grupo etário, a casta ou a guilda, é reparada não pelo pagamen­
to, mas ao se fazer a coisa certa, da maneira certa, na ocasião certa.
Atividades como cortejar, casar, abster-se, dançar, cantar, vestir-se,
banquetear-se, lam entar-se, lacerar-se ou até m atar-se podem
constituir modos de cum prir obrigações, mas não são pagamentos
no sentido m onetário do termo.
Aqui entra um dos elementos do uso do dinheiro como paga­
mento: a quantificação. A punição aproxima-se do pagam ento
KARL POLANYI

quando o processo de livrar-se da culpa é quantificado, como


quando as chibatadas, o núm ero de voltas em torno do templo ou
os dias de jejum redim em o delito. Em bora a punição tenha-se
então transform ado num a “obrigação de pagar”, o delito continua
a ser perdoado não pela entrega de objetos quantificados, mas pela
perda de valores vitais qualitativos, com rebaixamento de status
sagrado ou social.
O uso pleno do dinheiro como pagam ento se dá quando ás
unidades entregues pela pessoa que tem a obrigação passam a ser
objetos físicos, como animais sacrificiais, escravos, conchas orna­
mentais ou quantidades de alimentos. Mesmo assim, a mudança
só afeta a operação de pagamento, mas não precisa afetar a natu­
reza da obrigação cumprida. As obrigações podem continuar a ser
predominantemente não econômicas, como pagar uma multa, um
imposto ou um tributo; oferecer dádivas e contradádivas; honrar
os deuses, os ancestrais ou os mortos. Contudo, há uma diferença
significativa. Ê que o recebedor ganha aquilo que o pagante perde
— a operação se encaixa com precisão no conceito jurídico de
obrigação de pagar.
Mesmo assim, o principal efeito do pagamento pode continuar
a ser o de antes, isto é, a diminuição do poder e do status do pa­
gante. Na sociedade arcaica, um a m ulta exorbitante podia não le­
var à falência, mas destruía politicamente a vítima. Durante muito
tempo, o poder e o status conservaram assim sua precedência so­
bre a posse econômica como tal. A importância política e social da
riqueza acumulada estava na capacidade de o hom em rico fazer
pagamentos sem que isso minasse seu status. Era esse o estado de
coisas quando teve início a civilização arcaica. O tesouro assumiu,
subitamente, um a enorme importância política. A riqueza trans-
mudou-se diretamente em poder, tornando-se, durante um breve
período da história, uma instituição autossuficiente. Por ser pode­
roso e honrado, o hom em rico recebia pagamentos, dádivas e tri­
butos sem que lhe fosse preciso usar seu poder para to rtu rar e

164
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

■ matar. Sua riqueza, usada como um a reserva de dádivas, lhe con­


feria poder suficiente.
Depois que o dinheiro se estabeleceu como meio de troca, a
prática dos pagamentos monetários disseminou-se naturalm ente
il por toda parte. Com a introdução do sistema de mercado, passou
fl
li a existir um novo tipo de obrigação, como resíduo legal de uma
transação econômica. O pagamento passou a ser o equivalente de
uma vantagem obtida num a transação. O dinheiro tornou-se
meio de pagamento por ser meio de troca. A ideia da origem inde­
pendente do pagamento se perdeu. Foram esquecidos os milênios
de civilização hum ana em que o pagamento provinha não de tran­
sações econômicas, mas diretamente de obrigações religiosas, so­
ciais ou políticas.

0 uso do dinheiro como reserva


Outro uso do dinheiro — para acumular riqueza — originou-se^

em parte, na necessidade de pagamento. Como vimos, pagamento
1 não é, inicialmente, um termo econômico. Tampouco a riqueza,
que, na sociedade primitiva, consiste sobretudo em tesouro. Tal
como o pagamento, ela é, originalmente, um a categoria mais so­
cial que de subsistência. A conotação de subsistência da riqueza
(tal como a do pagamento) nasce, antes, da frequência com que a
riqueza é acumulada (e o pagamento é feito) sob a forma de gado,
escravos e bens não perecíveis de consumo geral. Tanto o que au­
menta a reserva de riqueza quanto o que é desembolsado dessa
reserva têm um a significação de subsistência, mas isso só é válido
em certos limites, pois os pagamentos continuam a ser feitos, em
geral, por razões não econômicas. Esse é o caso dos ricos que pos­
suem a reserva de riqueza e dos súditos que alimentam essa reser­
va com seus pagamentos. Q uem possui a riqueza fica apto a pagar
Bi
multas, acordos e impostos por motivos sagrados, políticos e so­
ciais. Os pagamentos que recebe de seus súditos, altos ou baixos,
são efetuados sob a forma de impostos, rendas ou dádivas, não

165

I
KARL POLANYI

por razões econômicas, mas por razões sociais e políticas, que vão
desde a pura gratidão pela proteção e da admiração pelos dotes
superiores até ao medo da escravidão ou da morte.
Q uando o dinheiro está presente como meio de troca, é claro
que ele se presta prontam ente a funcionar como reserva de rique­
za. Mas, tal como no caso do pagamento, a precondição é estabe­
lecer objetos quantificados como meios de troca.

O dinheiro como padrão de valor ou unidade de conta


Como padrão de valor, o dinheiro parece mais ligado ao uso como
meio de troca do que ao pagamento ou ao entesouramento. A tro­
ca é um a das duas fontes das quais brota a necessidade de um pa­
drão de valor. A outra é o governo. A prim eira implica o escambo,
a segunda, o armazenamento. À prim eira vista, as duas têm pouco
em comum. A prim eira é um ato de troca individual; a segunda,
de adm inistração central. H á um contraste m arcante entre as
duas. Mas nem os atos de troca nem o armazenamento podem ser
praticados de m aneira eficaz se não houver um padrão de valor ou
um a unidade de conta. Sem a ajuda dos cálculos auxiliados pela
unidade de conta, como seria possível, p o r exemplo, trocar um
pedaço de terra p o r um a carroça, arreios para cavalo, asnos, bois,
azeite, roupas e outros artigos menores? Na falta de um meio de
troca, a contabilidade de um caso célebre de escambo na antiga
Babilônia configurou-se assim: a terra foi avaliada em 816 siclos
de prata, enquanto os artigos oferecidos em troca foram avaliados
em siclos de p ra ta da seguinte maneira: carroça, 100 siclos; seis
arreios para cavalos, 300; um asno, 130; arreios para asno, 50; um
boi, 30; o restante foi distribuído entre itens menores.
O mesmo princípio se aplicava à adm inistração dos imensos
armazéns do palácio e do templo quando faltava um meio de troca.
Seu guardião cuidava dos bens de subsistência em condições que
exigiam imperativamente avaliar a im portância relativa desses bens.
A famosa regra contábil babilônica de “um a unidade de prata é

166
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

igual a uma unidade de cevada”, na esteia de Manistusu, assim como


no título do segundo artigo das Leis de Eshnunna, ilustra isso.
A análise dos dados fornecidos pelas sociedades primitivas e
arcaicas revela que não se pode assegurar que o uso do dinheiro
como meio de troca deu origem a seus outros usos. Ao contrário,
os usos como pagamento, reserva de valor e unidade de conta ti­
veram origens separadas e foram institucionalizados independen­
temente uns dos outros.

0 tesouro e os produtos básicos nos usos do dinheiro


Parece contraditório imaginar que fosse possível fazer pagamentos
com um dinheiro que não se podia usar para fazer compras, mas
é este, precisamente, o significado da nossa afirmação de que o
dinheiro não era usado como meio de troca, mas como meio de
pagamento. Duas instituições da sociedade prim itiva oferecem
uma explicação parcial: o tesouro e os bens essenciais.
Deve-se distinguir o tesouro de outras formas de riqueza ar­
mazenada. A diferença encontra-se sobretudo em sua relação com
a subsistência. O tesouro, no sentido próprio do termò, é formado
por bens de prestígio, inclusive “valores” e objetos cerimoniais
cuja simples posse confere peso social, poder e influência a seu
detentor. Uma peculiaridade dos bens do tesouro é que dá-los ou
recebê-los aumenta o prestígio. O tesouro circula principalmente
em rotação. Mesmo quando são “entesourados”, os alimentos ten­
dem a circular entre as partes, por mais absurdo que isso pareça
do ponto de vista da subsistência. Mas os alimentos raram ente
funcionam como tesouro, pois os mais interessantes (como porcos
abatidos) não se conservam, e os que se conservam (como a ceva­
da e o azeite) não são tão especiais. Os metais preciosos, por outro
lado, quase universalmente valorizados como tesouro, não podem
ser prontamente trocados pela subsistência, já que, excetuadas al­
gumas regiões excepcionalmente auríferas, como a Costa do Ouro,
na África, ou a Lídia, na Ásia Menor, a exibição de ouro pelas pes­
soas comuns é vergonhosa.

167
KARL POLANYI

Apesar disso, o tesouro, como outras fontes de poder, pode ter


grande importância econômica, já que deuses, reis e chefes podem
obrigar os súditos a fazer serviços para aquele que doa, com isso
assegurando a este, indiretamente, alimento, m atérias-prim as e
mão de obra em larga escala. Em última instância, esse poder de
disposição indireta, que abrange o im portante poder da tributa­
ção, provém, é claro, da grande influência do receptor do tesouro
sobre sua tribo ou seu povo.

Tesouro e poder na Grécia antiga


Na Grécia antiga, o tesouro, o bem de prestígio chamado kat’
exochên, era um a forma de riqueza que só circulava entre a m ino­
ria. Assumiu a forma de dinheiro como utensílios de ouro ou pra­
ta — tripés e tigelas. Dispunha-se deles em troca de outros tesou­
ros ou artigos de prestígio, como acesso aos deuses e seus oráculos,
a reis, chefes e potentados locais. Quando se recebiam em troca
bens de prestígio diferentes do ouro, como cavalos, marfim, escra­
vos qualificados, obras de arte ou tecidos finos, a contrapartida
também tinha de ser um bem de prestígio. Em algumas regiões do
mundo, não era possível adquirir um escravo ou um cavalo por
nenhum a quantidade de painço, nem se podia subornar um gene­
ral com prata; isso exigia ouro. Havia circulação de bens de pres­
tígio nas elites em muitas sociedades arcaicas, mas a Grécia apre­
senta um exemplo notável.
Na Antiguidade helênica, o tesouro funcionava como um a for­
m a portátil de poder. Os efeitos de sua posse eram imediatos.
Q uem possuía um tesouro era autom aticam ente poderoso, ou
seja, honrado e temido. Sem dúvida, o poder conferido pelo pres­
tígio era, muitas vezes, um a antecipação de vantagens econômicas
de amplo alcance. Mas seria artificial traçar um a distinção clara
entre o poder político e o econômico; a diferença pouco significa­
va num m undo em que serviços pessoais eram o principal recurso
econômico. Relações de caráter não econômico, como o parentes­
co, a clientela ou a dependência, organizavam a disposição desse

168
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

recurso específico. As vantagens políticas e econômicas concomi­


tantes à posse da terra só se separaram nitidamente com o pleno
desenvolvimento do feudalismo, por meio de um a diferenciação
institucional dos dois tipos de serviços envolvidos. Antes dessa
época, as vantagens econômicas conferidas pela posse do tesouro
costumavam encarnar-se no poder político. No entanto, algumas
formas de riqueza, como a terra ou o gado, eram mais imediata­
mente econômicas do que outras. Mesmo no caso dessas posses
claramente econômicas, todavia, os benefícios econômicos e polí­
ticos ainda eram m uito estreitamente entrelaçados para adm itir
uma separação nítida.
Apesar dessa fusão de motivos honoríficos e utilitários, os efeitos
econômicos dos movimentos do tesouro são visíveis: na sociedade
arcaica, a chave do desempenho de tarefas econômicas importantes,
especialmente as que envolviam a concentração dos esforços do
trabalho, tinha de ser buscada no funcionamento do tesouro.
Um exemplo perfeito dos usos do tesouro na m ovim entada
história da Grécia do século VI a.C. foi a ascensão da casa real dos
alcmeônidas, sua expulsão pelos pisistrátidas e, depois, sua volta
triunfal sob a liderança de Clístenes — ao todo, um a questão de
duas gerações. Durante todo esse período, o curso dos aconteci­
mentos foi marcado por notáveis conquistas econômicas.

a) Os alcmeônidas
O destino da casa dos alcmeônidas, que foi lendário no m undo
grego, decorreu do seguinte:
Já em tempos remotos, os alcmeônidas eram uma família ilustre
de Atenas, mas ascenderam a uma eminência especial a partir da
época de Alcméon e, posteriormente, de Mégades. A primeira
dessas duas pessoas, Alcméon, quando os lídios enviados por
Creso vieram de Sardes para consultar o oráculo de Delfos, pres­
tou-lhes uma ajuda solícita para que realizassem sua tarefa.4

4 Heródoto, The Persian War$, VI, 125.

169
KARL POLANYI

Os alcmeônidas negociaram sua influência política com os


deuses e não saíram decepcionados:
Creso, informado dos bons préstimos de Alcméon aos lídios que
de tempos em tempos iam transmitir suas mensagens ao deus,
mandou chamá-lo a Sardes e, à sua chegada, presenteou-o com
todo o ouro que ele fosse capaz de carregar no próprio corpo de
uma só vez. Ao ver a dádiva que assim lhe era destinada, Alcméon
tomou providências e se preparou da seguinte maneira para re­
cebê-la: vestiu uma túnica larga, de cuja cintura pendia um enor­
me bolso, calçou as maiores botas de cano alto que pôde encon­
trar, e assim entrou na casa do tesouro, seguindo seus guias. Ali,
avançou para um monte de ouro em pó e, em primeiro lugar,
encheu as botas, ao longo das pernas, com todo ouro que elas
podiam comportar; depois, encheu completamente de ouro o
amplo bolso da túnica, salpicou pó de ouro nos cabelos, pôs tam­
bém um pouco na boca e saiu do local onde ficava o tesouro, mal
conseguindo arrastar as pernas, com a boca estufada e o corpo
todo aumentado. Ao vê-lo assim, Creso teve um acesso de riso e
não só o deixou ficar com tudo o que havia apanhado, como lhe
ofereceu outros presentes de valor equivalente.5

Assim, conclui Heródoto, essa se tornou um a casa de enorme ri­


queza. Alcméon pôde pagar ao deus de Delfos mais do que devia
pelo contrato de construção e ainda gratificou a pitonisa, obtendo
uma influência divina junto aos espartanos, criando cavalos para
corridas de quadrigas e conquistando o prêmio em Olímpia, o que
era, tradicionalmente, a porta para a suprema influência, sobretu­
do quando se tinha um exército estrangeiro de prim eira classe
para servir de respaldo, como era o espartano.
Foi essa, em suma, a história de seu retorno triunfal. Os alcmeô­
nidas haviam fugido de Atenas quando Pisístrato retomou o po­
der. Fizeram diversas tentativas inúteis de reconquistar sua pátria.
Q uando sua fortaleza de Lipsydrium, na Ática, foi tom ada por
Pisístrato, eles

5 Ibid., VI, 125.

170
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

[...] resolveram não recuar de nenhum plano que pudesse lhes


trazer sucesso. Assim, contrataram com os anfictiões a constru­
ção do templo que hoje se ergue em Delfos, mas que ainda não
existia. Feito isso, sendo homens de vasta riqueza e membros de
uma antiga e ilustre família, trataram de construir o templo com
muito maior magnificência do que o projeto os obrigava a fazer.
Além de outras melhoras, em vez da pedra tosca com que por
contrato o templo deveria ser construído, fizeram as fachadas em
mármore de Paros.6

Nós diriamos que usaram seu dinheiro no ram o da construção


civil, mas, em vez de almejarem o máximo lucro monetário, pre­
feriram investir na melhora das relações públicas. Esse ato ponde­
rado de generosidade viria a lhes granjear aclamação no m undo
helênico e, com isso, aum entar sua influência política. Heródoto
faz desse gesto um passo crucial na luta épica dos alcmeônidas
para recuperar o poder em Atenas. Nesse caso, o tesouro influiu de
maneira ainda mais direta em um a mudança no poder.
Durante sua estada em Delfos, a acreditarmos nos atenienses,
esses mesmos homens usaram de suborno para convencer a sa­
cerdotisa a dizer aos espartanos, toda vez que um deles fosse con­
sultar o oráculo, por assuntos privados ou a serviço do Estado,
que eles deviam libertar Atenas. Os lacedemônios, ao verem que
jamais lhes era dada outra resposta senão essa, finalmente man­
daram Anquémolo, filho de Áster — homem destacado entre
seus cidadãos — , comandar um exército contra Atenas, com or­
dens de expulsar os pisistrátidas.7

Aristóteles, que em geral reluta em repetir floreios anedóticos,


confirma a essência da história da restauração dos alcmeônidas
pelo exército espartano:
Havendo pois falhado em todos os outros métodos, eles [os alc­
meônidas] aceitaram o contrato de reconstrução do templo de
Delfos, usando para esse fim a considerável fortuna que pos­

6 Ibid., V, 62.
7 Ibid., V, 63.

171
KARL POLANYI

suíam, no intuito de garantir a ajuda dos lacedemônios. Por isso


a pitonisa ordenava continuamente aos lacedemônios que iam
consultar o oráculo que libertassem Atenas, até que finalmente
logrou fazer os espartanos se voltarem nessa direção.8

Mas isso seria desconsiderar o papel de Creso no circuito do


ouro, da honra e da segurança. O deus de Delfos pagou aos alc-
meônidas, nos termos do contrato de construção, a enorme soma
de trezentos talentos, grande parte da qual veio do tesouro de Cre­
so. Não há dúvida de que Alcméon agiu como um corretor ho­
nesto entre Apoio e o rei da Lídia. Todavia, Creso entendeu mal
a infausta alusão da pitonisa às consequências de sua travessia do
rio Hális. H eródoto viu com os próprios olhos as estupendas doa­
ções de ouro que Creso enviara a ela, as quais ainda estavam ex­
postas no recinto do tem plo quando ele o visitou. Mas, quem
quer que tenha sido o responsável pelo erro, a destruição de Creso,
nas mãos do persa Ciro, não pôs fim à transação. O deus honrou
seus compromissos. Já estava acesa a pira em que Ciro condenara
Creso, seu prisioneiro, a ser queim ado vivo quando Apoio en­
viou um a chuva dos céus para extinguir as chamas — recordando
“o talento e a generosidade” de Creso — , como diz a lenda que
inspirou a ode de Píndaro em louvor da pitonisa.
Era assim que o tesouro circulava entre a minoria.

b) Os pisistrátidas
A origem e o uso do tesouro no caso de Pisístrato mostram carac­
terísticas similares. Os pisistrátidas, que eram de origem eupátri-
da, gozavam de relações de reciprocidade com a elite, embora não
pudessem, como seus rivais alcmeônidas, gabar-se das graças de
Apoio. Realizou-se uma conferência familiar, pouco depois da se­
gunda expulsão de Pisístrato, na qual ficou decidido tentar recu­
perar a soberania.

Aristóteles, A constituição de Atenas, 19.

172
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

O primeiro passo foi obter adiantamentos em dinheiro dos Esta­


dos que tinham obrigações para com eles. Eles recolheram assim
grandes somas de diversas regiões, especialmente dos tebanos,
que lhes deram muito mais que quaisquer outros.9

As obrigações de Estado devidas aos pisistrátidas implicam re­


lações recíprocas, talvez por causa de presentes anteriores ofereci­
dos por Pisístrato aos diversos Estados. Numa cena m uito mais
primitiva da Odisséia, Atena, disfarçada como o m ortal Mentor,
rejeita a oferta de hospitalidade de Nestor, proclamando: “Partirei
para a terra dos magnânim os caucônios, que têm para comigo
uma dívida não desprezível nem nova.”10
Somente as dívidas antigas, de preferência grandes, eram con­
sideradas “boas”. Nem as dívidas pequenas nem as recentes de­
viam ser consideradas vencidas. Por conseguinte, os laços da xênia
entre os pisistrátidas e os espartanos, validados pela oferta de pre­
sentes, fizeram estes últimos hesitar muito em obedecer à ordem
do oráculo de Delfos de guerrear contra os pisistrátidas.
A riqueza de Pisístrato consistia sobretudo em tesouro. A pro­
priedade da família ficava em Brauron, na Ática, perto do distrito
de Laurion. Se ele extraía ou não prata das minas de Laurion —
ou seja, se as minas eram ou não exploradas nesse período —
é discutível. Mas não há dúvida de que comprou propriedades no
rico distrito mineiro da região do Pangeu, na Trácia, em alguma
fase de seu longo exílio.
A maneira como Pisístrato adquiriu essas propriedades pode
ser conjecturada a partir de um incidente comparável na mesma
região. Dario estava ansioso por recompensar Histieu, o gover­
nante de Mileto, por ter salvo o exército persa ao impedir a des­
truição da ponte do Danúbio em sua retaguarda. Histieu pediu
— e recebeu — a cidade de Mircino, à margem do rio Estrimon,

9 Heródoto, The Persian Wars, 1,61.


10 Homero, The Odyssey, III, 366-368 [Odisséia, trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Ja­
neiro: Ediouro, 2001].

173
KARL POLANY!

na costa da Trácia. Essa era a região das minas do Pangeu. O gene­


ral persa na Trácia, Mogabazus, ao saber que Histieu estava cer­
cando a cidade, recriminou Dario:
Que loucura é essa que cometestes, senhor, deixando um grego
sábio e arguto apoderar-se de uma cidade da Trácia, ainda por
cima um lugar com abundância de madeira própria para cons­
truir navios e incontáveis remos, e com minas de prata, e no qual
há muitos moradores, gregos e bárbaros, prontos a tomá-lo como
chefe e a fazer dia e noite o que ele mandar!11

Isso nos lembra a análise de Tucídides sobre o papel crucial da


riqueza na Grécia arcaica. “Originalmente, Pélops adquiriu seu
poder pela grande fortuna que trouxe consigo da Ásia para uma
região pobre.”112 Ao que parece, um hom em de grande riqueza e
engenho podia conquistar facilmente seguidores dentre um povo
mais pobre ou mais atrasado, com prando seus chefes e deuses
como aliados e fazendo-os cum prir suas ordens. Sobre a estada de
Pisístrato na Trácia, Aristóteles observa, num a frase sucinta: “Ali
ele adquiriu riqueza e contratou mercenários.”
Em um a economia de subsistência, a acumulação de riqueza
começa pela coleta e o armazenamento de bens essenciais. Embo­
ra o tesouro e as finanças entesouradas, em geral, não façam parte
desse tipo de economia, armazenar gêneros essenciais representa
acumular produtos de subsistência, o que costuma envolver seu
uso como meio de pagamento. Uma vez que os bens essenciais
sejam armazenados em larga escala pelo templo, palácio ou feudo,
esse ato deve ser acompanhado por tal uso. Assim, as finanças de
tesouro são substituídas pelas finanças em gênero ou bens essen­
ciais, ou seja, por um a forma rudim entar de dinheiro e financia­
mento de crédito.
A maioria das sociedades arcaicas possuía algum tipo de finan­
ça em gêneros essenciais. No contexto da transferência e do inves­

11 Heródoto, ThePersian Wars, V, 23.


12 Tucídides, The Peloponnesian War, 1,9.

174
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

timento planejados de bens essenciais, armazenados em escala


gigantesca, desenvolveram-se os dispositivos contábeis que carac­
terizaram as economias redistributivas dos antigos impérios du­
rante longos períodos. Só bem depois da introdução da moeda
cunhada na Grécia, uns cinco ou seis séculos antes da nossa era, as
finanças em dinheiro começaram a superar as finanças em gêne­
ros ou bens essenciais nesses impérios, mas especialmente na re­
pública rom ana. O Egito ptolemaico, por exemplo, manteve as
tradições das finanças em gêneros essenciais, elevando-as a níveis
ímpares de eficiência.
A redistribuição, como forma de integração na sociedade p ri­
mitiva, envolve o armazenamento de bens num centro, a partir do
qual eles são distribuídos. Os bens entregues como pagamento ao
centro são novamente transferidos para fora dele, tam bém como
pagamento, e saem de circulação. Proveem a subsistência do exér­
cito, da burocracia e da mão de obra, sejam eles remunerados com
salários, soidos ou de outras formas. O pessoal dos templos con­
some grande parte dos pagamentos feitos em espécie. São neces­
sárias matérias-primas para equipar o exército, para realizar obras
públicas e para as exportações do governo: cevada, azeite, vinho,
lã, tâmaras, alho etc. são distribuídos e consumidos. Com isso, os
meios de pagamento são destruídos. Talvez alguns acabem sendo
trocados, no âmbito privado, pelas pessoas que os recebem. Nessa
medida inicia-se um a “circulação secundária” que pode se tornar
uma mola mestra de mercados locais.
Eis a im portância do tesouro e dos bens essenciais para a ques­
tão dos usos do dinheiro: eles explicam o funcionamento dos vá­
rios usos do dinheiro na ausência de um sistema de mercado. Os
bens de tesouro podem ser usados como pagamento. Servem ape­
nas para aum entar a acumulação de tesouro, embora não entrem
necessariamente na cadeia de trocas econômicas. Numa economia
não mercantil, a m aior parte dos pagamentos concerne, é claro,
aos bens de subsistência. Tais objetos quantificáveis, quando usa­
dos para pagar obrigações, são incluídos nos pagamentos do cen­
KARL P0LANY1

tro encarregado da redistribuição. Juntos, portanto, o tesouro e os


bens essenciais oferecem, em linhas gerais, a resposta ao problema
criado pelas condições da sociedade primitiva, na qual os meios de
pagam ento podem independer do uso do dinheiro como meio
de troca.
A ausência do dinheiro como meio de troca nos impérios ba­
seados na irrigação tam bém estimulou o uso da unidade de conta
e ajudou a desenvolver um a espécie de empresa bancária — na
verdade, a adm inistração de grandes propriedades que contro­
lavam as finanças de gêneros essenciais — para facilitar a trans­
ferência e a compensação em espécie. M étodos similares foram
usados pela administração dos templos maiores. Com isso, desen­
volveram-se pela prim eira vez a compensação, a transferência
contábil e os cheques não transferíveis, não como expedientes
num a economia de troca, mas como recursos adm inistrativos des­
tinados a tornar mais eficiente a redistribuição e, portanto, desne­
cessário o desenvolvimento de métodos de mercado.

Dinheiro e sta tu s
O reforço m útuo das situações de status e dos padrões de integra­
ção foi um a fonte do vigor das primeiras estruturas sociais. O sta­
tus era reforçado pelas instituições que sustentavam os padrões.
O dinheiro, o preço e o comércio, por exemplo, contribuíam para
a estratificação de classes. O dinheiro arcaico criava e m antinha a
extensão do prestígio, separando a riqueza e a pobreza pela circu­
lação de um dinheiro na elite e pelo dinheiro dos pobres. Não só a
estratificação foi reforçada, mas os índices de intercâmbio ganha­
ram estabilidade a partir da resistência da estrutural geral.
Devemos distinguir dois grupos de instituições ligadas ao di­
nheiro. Primeiro, como vimos, existem os usos “que convertem
fungíveis em dinheiro” e os tipos de dinheiro que diferem precisa­
mente em relação a esses usos, ou seja, o dinheiro para todos os
fins, que, tal como o dinheiro m oderno, é empregado nos três
usos, e os tipos de dinheiro para fins específicos, que só são usados

176
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

num ou noutro desses usos. Segundo, existem as instituições liga­


das ao dinheiro que são concebidas deliberadamente para regular
o status.
Na Babilônia antiga, o dinheiro era comum, mas era dinheiro
para fins específicos: os cereais eram o fungível mais amplamente
usado para pagar, por exemplo, salários, aluguéis e impostos; a
prata era universalmente empregada como padrão, tanto na per-
muta direta quanto nas finanças de bens essenciais; a maioria dos
gêneros essenciais, com equivalentes fixos, era usada nos casos de
troca, sem que se desse preferência à prata.
As relações entre as instituições ligadas ao dinheiro e o status já
existiam, de maneiras diferenciadas, num estágio primitivo da so­
ciedade. Paul Bohannan descreveu um a classificação de tipos de
dinheiro entre os tivs do vale do rio Benue.13 Pode-se dizer que
os diferentes tipos de fungíveis usados ali como moeda têm um
efeito no status, na medida em que são avaliados de acordo com
sua categoria. Os víveres e produtos artesanais figuram na classe
mais baixa; gado, escravos e bastões de latão vêm a seguir; as m u­
lheres a serem possuídas como esposas, tendo o hom em direito
sobre a prole, têm a classificação mais alta. Emergem daí duas ca­
tegorias morais distintas de transação: as transações em que os
bens são trocados por bens da mesma categoria (“transm issão”
[conveyance]) e aquelas em que são trocados por bens de categoria
superior (“conversão”). O prim eiro tipo de “uso do dinheiro” é
moralmente neutro; o segundo prova a força do caráter de um
homem e eleva seu status. As trocas no sentido inverso, obviamen­
te inevitáveis, são racionalizadas como o cum prim ento de obriga­
ções para com os parentes a quem se deve dar o sustento. Isso é
moralmente correto, mas não aumenta o prestígio pessoal. Tendo
como referência os círculos de trocas, a sociedade dos tiv pode ser
considerada multicêntrica.

13 Paul Bohannan, “Some Principies o í Exchange and Investment Among the Tiv”, A m e­
rican Anthropologist 57,1955, p. 50-70. Ver também Paul e Laura Bohannan, Tiv Eco-
nomy. Evanston: Northwestern University Press, 1968.

177
KARl POLANYI

A ideia do dinheiro separado por classes tam bém pode encon­


trar aplicação num nível mais avançado de desenvolvimento so­
cial. Seis séculos antes da nossa época, Ibn Batutah relatou que
tipos de arame de cobre fino e grosso, de peso definido, funciona­
vam lado a lado como moedas no Niger Médio, em Gogo, uma
cidade do império negro de Mali (1352). O arame fino era o di­
nheiro dos pobres, podendo ser trocado por lenha e painço co­
mum. O arame grosso comprava qualquer coisa, inclusive cavalos,
escravos ou ouro — os bens da elite, que indicavam posição. Na
Grécia hom érica havia na elite um a troca convencional de pre­
sentes não relacionados com dinheiro. Em sua forma criadora de
status, a circulação na elite era um a característica do comércio
arcaico: cavalos velozes, metais preciosos, joias, objetos de tesouro,
escravos qualificados ou relíquias de família só podiam ser adqui­
ridos por bens de natureza similar. Na índia do século XVII só se
obtinham diamantes em troca de ouro, não de prata. Na África
ocidental, só era possível adquirir cavalos em troca de escravos.
Mais perto do âmbito do dinheiro ficava a prática mesopotâmica
dos empréstimos do templo, concedidos em cevada aos campone­
ses, enquanto o cidadão livre recebia prata. Aliás, isso talvez solu­
cione o mistério da dupla taxa de juros, que, paga em prata, cor­
respondia a 20%, e, paga em cevada, era de 33,3%. A resposta para
esse enigma econômico talvez esteja em que os devedores eram de
status diferentes e não se podia com prar prata com cevada. Na
cidade-estado de Alakah, o camponês e o artesão pareciam receber
pequenos empréstimos de valor convencional, enquanto as pes­
soas “de família” aspiravam a empréstimos de valor situado num a
faixa nitidamente superior. No Daomé, o status de nobre habilita­
va o indivíduo a usar números redondos mais um, um privilégio
também presente entre os poderosos da Babilônia. O rei ioruba de
Oyó impôs ao derrotado rei de Daomé um tributo anual de 41
caixas, cada qual com 41 mosquetes. Ao ascender ao trono, o rei de
Daomé “com prou” a terra do povo, simbolicamente, pela soma

178
OBJETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

tradicional de 201 cauris. Outrossim, os empréstimos concedidos


aos lavradores de Alakah pelo palácio equivaliam a 10 ou 20 siclos,
ao passo que um fidalgo podia contar com 41,51 ou 61 siclos. Esse
costume do “mais um ” estendeu-se por vários milênios e grandes
distâncias, indo de Alakah a Abomé. Talvez tenha sido um a das
muitas curiosidades culturais das estruturas sociais primitivas que
explicam a maravilhosa estabilidade dos índices de intercâmbio de
dinheiro. Uma onça de ouro custava 32 mil cauris no Daomé até
onde nossos registros conseguiram alcançar, ou seja, durante toda
a dinastia, que foi de aproximadamente três séculos. Hoje, a intro­
dução do dinheiro na economia é associada a um a tendência para
a fluidez e a instabilidade; na sociedade arcaica, ao contrário, era
uma fonte de estabilidade que não precisava se apoiar em nenhum
controle burocrático.
Outras insuspeitadas instituições ligadas ao dinheiro emergem
em qualquer discussão sobre preço e comércio, sempre revelando
novos aspectos da formação de índices de dinheiro, lucros em bu­
tidos, unidades “ideais” para ligar padrões básicos a um a limitada
variedade de moedas a fim de reduzir a distância entre as unidades
regionais fundamentais e inalteráveis e os meios de troca locais.
A maior parte disso permanece invisível na formulação “dinheiro,
um meio de troca”.

Resumo
Os significados independentes de pagamento, padrão de valor, re­
serva de riqueza e troca são corroborados, portanto, por suas ori­
gens institucionais distintas e pelos objetivos atendidos. Temos
agora um conhecimento bastante sólido de todos.
No contexto de algumas instituições das sociedades primitivas,
o pagamento ocorre principalmente pelo preço da noiva, pela in­
denização por assassinato [o “preço do sangue”, Wergeld] e por
multas. Uma pessoa pode ficar submetida à obrigação de entregar
objetos quantificáveis, quase todos de natureza utilitária (em ge­
ral, também usados no pagamento de alguma outra obrigação).

179
’!8S
■i
KARL POLANYI

Nos livros de direito arcaicos, os acordos, indenizações e multas í

bois, ovelhas ou prata. Essas três principais fontes de obrigação J


.3
sobrevivem na sociedade arcaica e, além disso, são imensamente 3
ampliadas pela introdução de impostos, aluguéis e tributos, que
trazem muitos outros ensejos de pagamentos para quitar obriga- 3
ções e, portanto, usos — sociais e políticos — do dinheiro para J
entesourar riqueza.
O uso do dinheiro como padrão de valor é vital para as finan- 3■
ças em gêneros essenciais que acompanham as economias de ar- ■
m azenam ento em larga escala. Sem a existência de um padrão 3
;'.3'
torna-se impossível avaliar e cobrar impostos, preparar orçamen- 3j
tos e balanços de casas senhoriais ou realizar um a contabilidade 3
racional, abarcando uma variedade de bens. Já que não é o núm e- |
ro das coisas, e sim o seu valor, que é submetido à aritmética, essa 11
operação requer estabelecer proporções que relacionem entre si os J
diversos bens essenciais. Essas cifras, que representam índices ou
proporções, encontram-se disponíveis na maioria das sociedades 31
arcaicas. Seja em virtude de costumes, de leis ou p o r proclamação, 3
as equivalências fixas designam por qual índice as necessidades da
vida podem ser m utuam ente substituídas. Só quando se desenvol­
vem os preços nos mercados (ou seja, em época relativamente re­
cente) é que o dinheiro como padrão de valor pode ser presumido ;
33
como um fato, como acontece hoje.
A troca se desenvolve, em regra, num contexto de comércio
organizado, fora do qual só se encontra ocasionalmente a troca
:'3 :

indireta. Por isso o uso do dinheiro como meio de troca tem p o u ­


ca im portância nas condições primitivas. Mesmo em sociedades
arcaicas altamente estratificadas, como a Suméria, a Babilônia, a
Assíria, o reino dos hititas ou o Egito, predominavam as econo­
mias de armazenamento. Apesar de o dinheiro ser usado em larga
escala como padrão, seu uso nas trocas indiretas era desprezível.
A propósito, isso talvez explique a completa ausência de moedas
nas grandes civilizações da Babilônia ou do Egito, num a época em

180
OBIETOS MONETÁRIOS E USOS DO DINHEIRO

que o m undo grego, pobre e semibárbaro, comprazia-se com um a


multiplicidade de moedas artísticas.
O estudo comparativo das instituições primitivas ligadas ao
dinheiro deve partir do fato de que, enquanto o dinheiro m oder­
no serve “para todos os fins”, ou seja, enquanto o meio de troca
também é empregado nos outros usos da moeda, as formas prim i­
tivas e arcaicas do dinheiro tendem a existir “para fins limitados”,
pois se empregam objetos diferentes nos diferentes usos do di­
nheiro. Daí os papéis extremamente díspares das instituições m o­
netárias nas sociedades ocidentais modernas, por um lado, e nas
sociedades primitivas não ocidentais, por outro. O dinheiro para
todos os fins corresponde a formas mais homogêneas de organi­
zação social; em contraste, as moedas de uso limitado, apesar de
um grau m uito inferior de monetarização, tendem a enriquecer
a articulação da sociedade, sobretudo a diferenciação de sua es­
trutura de parentesco e de classe. O dinheiro primitivo, portanto,
pode exibir formas institucionais mais especializadas que o di­
nheiro em nossa sociedade. Um estudo evolutivo corrobora isso.
Nem a reciprocidade nem a redistribuição são viáveis sem al­
gum tipo de “medida proporcional” que seja válido entre os di­
ferentes bens. Nesse nível, as “proporções” são um a necessidade
operacional. Nem mesmo a carne obtida num a só caçada pode ser
distribuída sem algum tipo de índice que relacione as diferentes
partes do corpo dos animais a serem divididos. Isso é válido quer
se pretenda que a distribuição seja estritamente igualitária (1:1),
quer não haja essa pretensão (por exemplo, 3:1). Ao mesmo tem ­
po, as proporções entre os bens da elite m antêm automaticamente
um status superior quando a circulação se limita ao intercâmbio
desses bens (circulação na elite); também o status da classe baixa é
m antido mediante a restrição dos padrões de vida ao alimento
grosseiro e às necessidades básicas que o dinheiro nativo (dinheiro
do pobre) pode comprar. O mesmo sistema pode servir para dis­
tribuir rações de alimento aos pobres, a taxas oficiais, durante os
períodos de fome. Nesse caso, as equivalências são um a necessi-

181
KARL P0LANY1

dade absoluta, já que o uso do dinheiro como padrão é impossí­


vel sem elas. Portanto, a variedade e a detalhada articulação das
instituições ligadas ao dinheiro ajudam-nos a chegar à integração
e a estabilizar o privilégio de status sem recorrer ao uso da força
bruta, a fazer provisões contra a fome e a ampliar o alcance dos
recursos operacionais que substituem a escrita. Por sua vez, isso
possibilita as finanças em gêneros essenciais, juntam ente com a
tributação em larga escala. Nas sociedades civilizadas nas quais
o dinheiro se transform a em meio de troca, a maioria desses re­
cursos torna-se obsoleta e cai no esquecimento, junto com as m úl­
tiplas moedas e práticas monetárias das comunidades primitivas
e arcaicas.

182
Elementos de mercado e origens do mercado

Introdução
A origem das instituições de mercado é um assunto intricado e
obscuro, ainda que os mercados não sejam antigos como a hum a­
nidade e tenham começos específicos na história. Os mercados
diferem do ínfimo comércio e do pequeno núm ero de usos do
dinheiro encontrados até nas comunidades mais simples e prim i­
tivas. Alguma aquisição bidirecional de bens a distância — isto é,
comércio — é inseparável da tentativa de obter bens como pre­
sente ou por dotes, que são acompanhamentos da exogamia uni­
versal. O dinheiro do sangue e as multas, p o r sua vez, também
envolvem o emprego de objetos quantificáveis, ou seja, de unida­
des monetárias usadas como pagamento ou como equivalências.
O comércio e o dinheiro sempre estiveram entre nós. Mas não
o mercado, que é um fenômeno m uito posterior. Apesar disso,
como veremos, é difícil determinar seus primórdios.
Esta observação se aplica ao mercado em seus dois sentidos
atuais, por mais diferentes que sejam. O prim eiro é o de um lugar
— tipicamente, um local aberto, onde as necessidades da vida, em
especial alimentos frescos ou preparados, podem ser compradas
em pequenas quantidades, em geral por valores predeterminados;
o segundo é o de um mecanismo de oferta-procura-preço por meio
do qual se realiza o comércio, embora esse mecanismo não esteja
necessariamente preso a um local definido nem se restrinja à co­
mercialização de alimentos.1
Para o historiador da organização econômica, esses dois con­
juntos de fatos são m uito distintos. Num caso, o fenômeno empí-

1 Cf. Walter Neale, “The Market in Theory and History”, em K. Polanyi, C. M. Arensberg
e H. W. Pearson (orgs.), Trade and M arket in the Early Empires. Glencoe, Illinois: Free
Press e Falcorfs Wing Press, 1957, cap. 17.

183
KARL POLANYI

rico é um local físico onde se encontraram grupos de pessoas para


fazer trocas; no outro, trata-se de um a variante do comércio que
funciona com um mecanismo específico. Este último tam bém é
um fato empírico, mas é intangível demais para se prestar com
facilidade à investigação histórica; tem a natureza de um mero
evento estatístico. Um mercado ou feira está ao alcance do arqueó­
logo, porém um mecanismo de mercado escapa da mais ágil das
pás. Pode ser comparativamente fácil localizar um espaço aberto
em que, em algum momento do passado, as pessoas costumavam
aglomerar-se e trocar mercadorias, mas é m uito menos simples
determinar se, em decorrência do seu comportamento, as taxas de
intercâmbio flutuavam e se, em caso afirmativo, a oferta de m er­
cadorias mudava em resposta ao movimento relativo ou absoluto
de subida ou descida dessas taxas.
Obviamente, o mercado como lugar precedeu qualquer meca­
nismo competitivo do tipo oferta-procura. Só 2 mil anos depois
do prim eiro mercado, considerado aqui como mecanismo facili-
tador da distribuição de cereais, no leste do Mediterrâneo, o siste­
ma autorregulador de mercados formadores de preço evoluiu na
Europa Ocidental e se espalhou por grande parte do globo. Cabe
enfatizar vivamente que esse sistema — usamos aqui esse termo
para designar o capitalismo liberal — é m uito mais que um a sim­
ples variante do comércio. O princípio de troca implicado no co­
mércio submete-se, no capitalismo, a um uso totalmente diferente
para a aquisição de mercadorias a distância. Um sistema pleno de
mercado abarca a sociedade. Nele, a terra e a m ão de obra são
alocadas pelo mecanismo de oferta-procura-preço; arcar com os
riscos torna-se um a função do mercado; os mercados passam a
ofertar dinheiro e crédito, assim como todos os complexos servi­
ços típicos da atividade bancária. Pelo menos por algum tempo o
mercado acabou por se tornar a instituição fundamental da socie­
dade ocidental.
Em nossa época, naturalm ente, o interesse se volta para esse
sistema autorregulador de mercados que dom inou o século XIX.

184
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO

Ainda assim, a nossa investigação aqui cessa m uito aquém da


emergência de um a economia de mercado. Quando muito, chega­
mos a um ângulo de observação em que se descortina um a nova
vista desse sistema. Historicamente, essa economia está tão à fren­
te do simples comércio de mercado quanto o próprio comércio de
mercado estava à frente de suas formas primitivas.
Cabe fazer um a advertência sobre o método. Em nossa época, é
fortíssima a tentação de ver a economia de mercado como o obje­
tivo natural de uns 3 mil anos de desenvolvimento do Ocidente.
No que concerne a instituições como os mercados locais de ali­
mentos ou o comércio de mercado, o pensam ento ocidental só
consegue concebê-los como os primórdios modestos que acaba­
ram crescendo e se transformando na economia da era moderna,
que abarca o m undo inteiro. Isso é um imenso equívoco. O comér­
cio de mercado e, mais tarde, a moderna economia de mercado
resultaram não de um processo de crescimento iniciado em p ri­
mórdios modestos, mas das convergências de fenômenos original­
mente separados e independentes, que não podem ser entendidos
fora de um a análise dos elementos institucionais que entraram em
sua formação. Para evitar essa armadilha teleológica, como nos
casos do comércio e do dinheiro que discutimos antes, um a abor­
dagem institucional e operacional parece sumamente apropriada.
No sentido institucional, o term o mercado não presume, neces­
sariamente, um mecanismo de oferta-procura-preço. Ele é uma
conjunção de traços institucionais definidos, que chamaremos de
elementos de mercado. São eles: um local fisicamente existente,
mercadorias disponíveis, um grupo ofertante, um grupo deman­
dante, costumes ou leis e equivalências. Portanto, em termos ins­
titucionais, o mercado só postula um a situação de troca; aqui,
entende-se “troca” não no sentido catalático, mas no sentido p u ­
ramente operacional do termo. Implica um simples movimento
de ida e volta de mercadorias entre “mãos”, conforme índices que
podem ser determinados pelos costumes, pelo governo, pela lei ou
pela própria instituição do mercado. Sempre que os elementos de

185
KARl POLANYI

mercado se combinam para formar um mecanismo de oferta-pro-


cura-preço, falamos em mercados formadores de preços. Se isso
não ocorrer, o encontro dos grupos ofertante e demandante, efe­
tuando trocas por meio de equivalências fixas, estabelece um mer­
cado não form ador de preços. Abaixo disso, não devemos falar em
mercados, mas apenas nas várias combinações dos elementos de
mercado presentes em um a situação de troca. No caso dos leilões,
por exemplo, temos um grupo demandante sem um grupo ofer­
tante; no caso dos mercadores que abastecem exércitos em cam­
panha surge um a situação diferente, com m uitos elementos de
mercado; o mesmo se dá na operação de portos comerciais, no
“abastecimento nos portões” em algumas economias orientais re-
distributivas e na instituição do bazar. Todos têm elementos de
mercado, mas nenhum deles é um mercado propriamente dito.
A instituição do mercado teve origem em dois conjuntos de
fenômenos, um externo à comunidade, outro interno. O externo
liga-se intimamente à aquisição de bens vindos de fora; o interno,
à distribuição local de alimentos. Este último assumiu duas for­
mas muito diferentes: a prim eira era geral, nos impérios hidráuli­
cos, de culturas irrigadas, e se centrava no armazenamento e na
distribuição de gêneros essenciais; a segunda, encontrada desde os
tempos mais remotos nas comunidades camponesas, é centrada
na venda locai de víveres frescos e alimentos preparados. Essas
origens variadas contribuíram com elementos diversos para a ins­
tituição do mercado.

Mercados locais
Um exemplo de mercado local era a maneira como a venda a va­
rejo de alimentos frescos ou preparados era praticada nas socieda­
des da Grécia e da Roma antigas. Clíamaremos esse local comer­
cial de ágora, para contrastá-lo com as instituições gêmeas do
porto e do bazar nos impérios hidráulicos.
O mercado da ágora era, prim ordialm ente, um local onde a
população se alimentava. Leite e ovos, legumes frescos, peixe e

186
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO

carne eram oferecidos à venda; muitas vezes, a comida já estava


pronta. Em princípio, isso excluía produtos vindos de grandes dis­
tâncias, que teriam de ser transportados para chegar ao mercado.
Em geral, os artigos colocados à venda eram produtos de locais
vizinhos, muitas vezes comunidades de camponeses, fornecidos
por mulheres que os carregavam na cabeça até o mercado. O fre­
guês que ia procurar alimento no mercado era o trabalhador po­
bre ou a pessoa em trânsito que não tinha sua própria casa. Nem
o mercador que vinha de longe nem o residente abastado frequen­
tavam os antigos mercados locais, que atendiam às necessidades
da gente comum.
A batalha contra e a favor da distribuição de alim entos por
meio de um mercado foi travada em Atenas, sobretudo, em ter­
mos de política partidária. A máquina democrática ficava em des­
vantagem, pois os proprietários de grandes casas senhoriais ado­
tavam a prática de convidar vizinhos e amigos para refeições
gratuitas. Címon, o líder aristocrático, era famoso por esse tipo de
hospitalidade política. Péricles, seu adversário democrático, para
equilibrar a balança, fomentava o hábito do mercado e fazia todos
os cidadãos receberem um a pequena soma diária em troca de
serviços públicos, para mantê-los em atividade, desde que com­
prassem uma refeição no mercado. Não conhecemos m anobras
partidárias semelhantes, envolvendo o mercado de alimentos, em
outras cidades. No caso de Atenas, a manobra é bem autenticada,
como veremos.

a. Mercados para mercenários


Fora da Ática, sobretudo nas regiões de língua grega da Ásia Me­
nor, os principais promotores dos mercados eram os exércitos gre­
gos, em especial as tropas de mercenários, já então empregadas
com frequência cada vez maior em empreendimentos comerciais.
Na virada do século V a.C., na fase final da Guerra do Peloponeso
e logo em seguida, o exército autoequipado dos hoplitas, que tra­
dicionalmente se engajava em campanhas curtas, nas quais os ho-
KARL POLANYI

mens se m antinham com um saco de farinha integral de cevada i


trazido de casa, começou a se transform ar em um a força expe- |
dicionária. Nela, só o quadro de oficiais era com posto p o r es- 4
partanos ou atenienses propriam ente ditos, enquanto o grosso do 1
efetivo era recrutado entre mercenários. O emprego dessa força, f
principalmente se ela tivesse que cruzar territórios aliados, criou vf
problemas inéditos de logística. y
Essa questão — a relação entre os exércitos e os mercados — 1
tem sido surpreendentemente negligenciada pelos historiadores |
da Antiguidade. Um exame exploratório de Tucídides e Xenofonte |
sugere que um trem endo im pulso para o desenvolvimento de ,!
mercados veio dos exércitos. Esse estudo trouxe dados significati- i
vos em relação à operação e ao caráter geral dos mercados antigos. '*
O im pacto econômico do exército grego pode ser analisado i
por dois ângulos distintos: a destinação do butim capturado e o |
abastecimento do exército. A prim eira contribuiu m uito para de­
senvolver um grupo demandante; o segundo, para desenvolver um
grupo ofertante.
Com entam os em outro texto a im portância quantitativa do
butim de guerra. Aqui, basta assinalar que ele talvez tenha sido o
m aior meio isolado de enriquecim ento durante todo o período
clássico. No início desse período, Címon elevou-se de uma pobre­
za refinada para um a riqueza imensa por meio de suas façanhas
militares; quase um século depois, o serviço mercenário tornou-se
lugar-comum como maneira de fazer fortuna.
O butim , nos períodos homérico e arcaico, consistia em bens
de valor, gado e escravos, que a elite usava ou fazia circular. Houve
pouca ou nenhum a alteração nos artigos levados como butim du­
rante o período clássico, exceto pelo fato de que a importância dos
escravos talvez tenha aumentado. Mas houve um a mudança subs­
tancial na maneira de lhes dar destinação. Os problemas adminis­
trativos representados pela guarda, o transporte e a distribuição
de escravos, gado e bens preciosos deviam ser enormes; os riscos
de perda por fuga ou doença eram igualmente grandes; ainda mais

188
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO

prementes eram os problemas táticos e, a rigor, amiúde também


estratégicos, criados pela guarda e o transporte do butim . O cres­
cimento do comércio exterior e dos elementos de mercado ofere­
ceu uma alternativa ao manejo direto: o butim podia ser vendido,
distribuindo-se dinheiro no lugar dele. Na história escrita por Tu-
ícídides, o número de incidentes em que um a população capturada
foi vendida como escrava sugere que esse era o m étodo-padrão de
destinação das populações cativas.2 Essa prática parece ter provo­
cado certa aversão no final da Guerra do Peloponeso. Em 411 a.C.
encontramos um caso em que apenas os antigos escravos (e os
bens) foram capturados, deixando-se em paz a população livre.3
A partir de então e até a batalha de Mantineia, em 223 a.C., essa
norma parece ter sido geralmente observada.4 Com toda a proba­
bilidade, a escravização de populações gregas continuou a ser le­
galmente possível em tempos de guerra, e sua proibição era essen­
cialmente moral: a escravização de gregos era um a grave violação
do bom gosto. Quando acontecia, oferecia-se à guisa de explicação
o fato de as pessoas em causa serem “de linhagem mestiça, helêni-
ca e bárbara”.5 No fim do século V a.C. parece que a decisão de
vender ou não os habitantes como escravos cabia ao general.6
As descrições de Xenofonte fornecem m uito mais detalhes que
as de Tucídides sobre as técnicas de venda do butim . Tucídides
relata que, ao tom arem Hícara, um a cidade do litoral norte da
Sicília, os atenienses transportaram a população escravizada para
a cidade de Catana, onde estava estacionada a principal frota ate­
niense, e ali venderam os escravos por 120 talentos.7 Transportar

2 Tucídides, The Peloponnesian War, I, 55; I, 98; IV, 48; V, 116; V, 31; VI, 62; VII, 85
[História da Guerra do Peloponeso, trad. Mário da Gama Kury, pref. Helio Jaguaribe.
Brasília: Ed. UnB / IPRI / Funag; São Paulo: Edições Imprensa Oficial de São Paulo,
1987],
J Ibid., VIII, 62.
4 Políbio, II, 56-58.
5 Xenofonte, Héllenica II, 1. O incidente é datado de 405 a.C.
6 Ibid., 1,6.
7 Tucídides, The Peloponnesian War, VI, 62.
KARl P0LANY1

os escravos ou outras formas de butim para um empório parece


ter sido o m étodo preferido. Assim, Xenofonte diz que, quando
o exército chegou ao em pório de Crisópolis, perto de um a das
extremidades do Bósforo, “parou sete dias, enquanto vendia seu
butim ”.8 Um pouco antes, eles se haviam detido por dez dias na
colônia sinopense de Ceraso, às margens do m ar Negro, onde,
além de examinarem e contarem os soldados, para determinar o
núm ero de baixas, “dividiram o dinheiro proveniente da venda
dos cativos”.9 Pelo contexto das passagens anteriores, parece muito
provável que os escravos tenham sido vendidos ah. Com efeito, o
rei e mercenário espartano Agesilau provocou um escândalo ao
seguir um método alternativo para enriquecer os amigos. Haven­
do capturado um a imensa fortuna num a campanha na Fígia, em
396 a.C., ele ordenou que o butim fosse vendido in loco, infor­
m ando aos amigos que, imediatamente após a venda, marcharia
para o litoral, onde o butim podería ser revendido por um preço
substancial. Os leiloeiros do exército receberam ordens de entre­
gar os bens em consignação, mantendo simplesmente um registro
do comprador; com isso, os amigos de Agesilau só tiveram que
pagar depois de revenderem os bens na costa. Por meio dessa
técnica, observa Xenofonte, “seus amigos fizeram um a imensa
colheita”.101Mas há indicações de que o leilão feito in loco era um
procedimento regular do exército espartano. A prática constitu­
cional de Esparta ditava que qualquer um que recolhesse um bu­
tim na guerra devia entregá-lo aos vendedores oficiais de butins
[laphyropolai],n que, ao que parece, anotavam o nom e da pessoa.
Que esse registro trazia uma honra considerável é indicado pelo
fato de que alguns dos principais aliados de Agesilau na Ásia Me­
nor desertaram por causa do insulto sofrido quando oficiais es­
partanos lhes retiraram o butim; eles mesmos queriam ter a honra

8 Xenofonte, Anabasis, VI, 6.


9 Ibid., V, 3.
10 Xenofonte, Agesilaus, 1 ,18 ss.
11 Xenofonte, Constitution o fth e Lacedaemonians, XIII, 11.

190
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO

de entregar um a grande quantidade aos leiloeiros.12 Muitas vezes,


o leiloeiro tinha que vender o butim ali mesmo, quer para os pró­
prios soldados, quer para os mercadores que os acompanhavam.
Foi esse o procedimento usado, por exemplo, quando o exército de
Xenofonte foi pago em espécie por seus serviços pregressos, rece­
bendo seiscentas cabeças de gado, 4 mil ovelhas e 120 escravos.13
O aumento da escala da guerra, abado ao crescimento do hábi­
to dos mercados, causou um a revisão completa dos métodos tra ­
dicionais de abastecimento do exército. No começo da Guerra do
Peloponeso, os espartanos levaram consigo suas provisões ao in­
vadirem a Ática e se retiraram quando elas acabaram; esse p ro ­
cedimento foi repetido no ano seguinte.14 Tal m étodo devia ser
insatisfatório. Na malfadada expedição siciliana encontramos os
atenienses apoiando-se em dois métodos: com prar comida em
mercados organizados pelos habitantes das regiões que eles atra­
vessassem ou comprá-la dos mercadores que acompanhavam o
exército. O prim eiro era o método preferido, mas não era inteira­
mente confiável: não se podia contar com a disponibilidade de
mercados em territórios neutros ou hostis, o que exigia complexas
negociações diplomáticas. Negociar a oferta em mercados era uma
responsabilidade fundam ental dos comandantes dos exércitos;
nossa imagem mais clara desse procedimento encontra-se no Aná-
base de Xenofonte. Após a m orte de Ciro, os mercenários gregos
que haviam servido sob o comando do rei quiseram regressar; ao
que parece, o próprio rei persa estava ansioso por hvrar o país de
um grupo que só poderia causar prejuízos, e por isso lhes conce­
deu um salvo-conduto para atravessarem seu território:
Aceitai agora o nosso compromisso de vos tornar amistosos os
nossos territórios pelos quais passardes, e de vos reconduzir sem
traição à Hélade, e de vos fornecer um mercado; e onde quer que
não vos seja possível comprar provisões, permitiremos que as

12 Xenofonte, Hellenica, IV, 1.


13 Xenofonte, Anabasis, VII, 7.
14 Tucídides, The Peloponnesian War, III, 1.
m

KARL POLANYI

retireis do distrito. Por vosso turno, deveis jurar que marchareis


como se atravessásseis um terreno amigo, sem causar danos —
levando meramente o de comer e beber onde não vos oferecer­
mos um mercado — , ou que, se custearmos um mercado, obte­
reis vossas provisões pagando por elas.15

Evidentemente, esse tipo de tratado estabelecia equivalências —


e, provavelmente, também medidas. Algum tempo depois, Xeno-
fonte defendeu a violação do tratado, indagando:
Será melhor comprarmos provisões num mercado que eles for­
neçam, em p a rc a m e d id a e p o r preços alto s, quando já nem temos
o dinheiro para pagar por elas, ou, por direito de conquista,
servirmo-nos à vontade, empregando as medidas que mais nos
aprouverem? 16

Q uando eles estavam chegando ao território dos macrões, nego­


ciou-se um a trégua em que os m ercenários gregos ofereceram
um a lança em sinal de compromisso para m ostrar que sua inten­
ção era apenas atravessar a região, a cam inho do mar. Os macrões
também ofereceram um a lança em testem unho de seu caráter pa­
cífico. Xenofonte relata:
Trocados os juramentos, os macrões lançaram-se com vigor à
derrubada de árvores e à construção de uma estrada para ajudá-
-los na travessia, misturando-se livremente aos helênicos e con­
fraternizando com eles, e lhes ofereceram o melhor mercado que
puderam, e por três dias os conduziram em sua marcha.17

A cidade de Trapezus [Trebisonda] tam bém custeou um a feira.


Xenofonte defendeu seu exército das acusações de pilhagem feitas
contra ele por Sinope:
Em Trapezus ofereceram-nos um mercado. Pagamos por nossas
provisões um preço justo no mercado. Em troca das honras que
eles nos fizeram, retribuímos com muita consideração. [...] Mas,

15 Xenofonte, Anabasis, II, 3.


16 Ibid., III, 2.
17 Ibid., IV, 8.

192
PT-1''■

ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO

onde quer que cheguemos, quer se trate de solo estrangeiro ou


helênico, se não encontramos um mercado para obter provisões,
é nosso costume nos servir, não por insolência, mas por necessi­
dade. Houve tribos, como os carducos, os taocos e os caldeus,
que, apesar de não serem súditas do grande rei, eram tão temíveis
quanto independentes. Estas, tivemos de subjugá-las com nossas
armas. A necessidade de obter provisões obrigou-nos a tanto,
pois eles se recusaram a nos oferecer um mercado. Outros povos,
como os macrões, apesar de bárbaros, nós os vimos como ami­
gos, simplesmente porque nos proporcionaram o melhor merca­
do que podiam. Nada tiramos deles à força. Quanto a esses cotio-
ritas que dizeis ser vosso povo, se lhes tiramos algo, a culpa foi
deles, pois não nos receberam como amigos, fechando-nos seus
portões. Não quiseram receber-nos do lado de dentro nem nos
ofereceram um mercado do lado de fora.18

Claramente, a localização do mercado também era um dado im ­


portante. Em geral, a cidade neutra ou hostil montava o mercado
na parte externa, para não admitir soldados dentro dos seus por­
tões. Certa vez, quando se aborreceu com as exigências dos merce­
nários, a cidade de Heracleia “desmontou o mercado do lado de
fora e o transferiu para dentro, fechando os portões”.19 Passar o
mercado para fora dos portões foi a regra geral durante a campa­
nha siciliana: Régio e Messina, por exemplo, proibiram os atenien­
ses de entrar nas cidades, mas ofereceram o mercado fora dos p o r­
tões.20 Às vezes o mercado podia deslocar-se para mais perto da
zona de combate. Assim é que a frota de Siracusa venceu um a im ­
portante batalha naval por atacar a frota ateniense antes que esta
tivesse a oportunidade de comer: os siracusanos ganharam tempo,
convencendo a cidade vizinha
[...] a deslocar o mercado de vendas até junto do mar, o mais rá­
pido que pudesse, e a obrigar todos a levar os comestíveis que
tivessem para vendê-los por lá, com isso permitindo aos coman­

18 Ibid., V, 5.
19 Ibid., VI, 2.
20 Tucídides, The Peloponnesian War, VI, 44.

193
K ARL POLANYI

dantes desembarcar as tripulações e fazer prontamente sua refei­


ção perto dos navios, e logo depois, no mesmo dia, atacar os ate­
nienses novamente, quando eles não esperavam.21

O tipo de mercado oferecido pelos residentes locais variava


muito: num extremo ficava o que deve ter sido o tosco mercado de
alimentos oferecido pelos macrões, que Xenofonte chama, signifi­
cativamente, de o melhor que os bárbaros puderam fazer; no ou­
tro extremo, a cidade-mercado proporcionada por Éfeso ao exer­
cito de Agesilau:
Foi então um deleite ver os ginásios abarrotados de guerreiros
fazendo seus exercícios, as casas de corridas repletas de soldados
em cavalos saltitantes, os arqueiros e lanceiros atirando em alvos.
E não só isso, mas a cidade inteira transformou-se num espetái u-
lo, a tal ponto o mercado transbordava de armas e armaduras de
toda sorte, além de cavalos, tudo à venda. Havia ali caldeireiros e
carpinteiros, ferreiros e sapateiros, pintores e decoradores — to­
dos empenhados em fabricar os instrumentos de guerra, de tal
sorte que um transeunte poderia supor que a cidade de Éfeso era
um gigantesco arsenal.22

Xenofonte deixa claro que a completa dependência de merca­


dos fornecidos no local pelos habitantes trazia riscos consideráveis
para o exército. Por isso, sempre que possível, era preciso usar ou­
tros métodos. O exército asiático de Ciro era acompanhado por
um mercado móvel de alimentos, que também abastecia de pro­
visões os mercenários gregos e era operado pelos lídios, os co­
merciantes por excelência da Ásia Menor.23 Mas Ciro levava ainda
quatrocentas carroças de cereais e de vinho para distribuir aos
mercenários, “caso a expedição seja tom ada p or extrema neces­
sidade”.24A distribuição direta de alimentos era m antida em reser­
va, como medida de emergência. Os mercados ambulantes, opera-

21 Ibid., VII, 39,40.


22 Xenofonte, Agesilaus, II, 25 ss.
23 Xenofonte, Anabasis, I, 5.
24 Ibid., 1 ,10.

194
d
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO

cios por comerciantes, deviam ser bastante comuns. Fica claro que,
nó incidente acima descrito, no qual Timóteo emitiu moedas de
bronze para seu exército, os mesmos comerciantes que com pra­
ram o butim foram tam bém os vendedores de comida.25
r A expedição ateniense contra Siracusa, em 415 a.C., a maior
expedição naval da Antiguidade até aquela data, confiou prim or­
dialmente em mercados fornecidos no local, o que representou
um grande problema tático.26 Mas a expedição incluiu trinta “na­
vios de carga carregados de cereais”, parcialmente tripulados por
padeiros e moleiros recrutados a soldo, “para que, se formos reti­
dos pelo m au tempo, não faltem provisões à nossa força militar, já
que nem toda cidade será capaz de receber um núm ero como o
nosso”.27 Pela descrição, parece provável que esses cereais e outros
alimentos tenham sido vendidos aos membros da expedição por
comissários do Estado, a preços fixos, e que os cereais tenham sido
moídos e transformados em pão pelos moleiros e padeiros, tam ­
bém recrutados por preços fixos.
As técnicas de abastecimento do exército oferecem outros in­
dícios notáveis da proliferação de mercados por toda a Grécia, a
Sicília e a Ásia M enor no fim do século V a.C. e no século IV a.C.
Dificilmente um exército podería depender de com prar seus ali­
mentos em mercados locais, pois não tinha a garantia de que eles
existiríam de fato. Ao mesmo tempo, o aumento da escala da guer­
ra deve ter impulsionado um desenvolvimento m aior dos merca­
dos, tanto do ponto de vista das provisões quanto, especialmente,
do ponto de vista da venda do butim.
Uma análise desse material em termos de causa e efeito só pode
ser especulativa. Mesmo assim, algumas de nossas suposições a
respeito do caráter dos mercados dessa época ficam reforçadas.
Pelos escritos de Tucídides e Xenofonte, parece claro que o termo
“mercado” [ágora] significava, sempre e em toda parte, mercado

25 Pseudo-Aristóteles, Oeconomica, II, 1.350 a.


26 Tucídides, The Peloponnesian War, VII, 14.
27 Ibid., VI, 44,23.

1 QS
KARL POLANYI

de alimentos. Sua especificidade quanto a terreno, local, autori­


dade e mercadorias é demonstrada com particular clareza: o mer­
cado era deslocado para dentro ou para fora dos portões, ou até
a beira-mar; um dado exército era admitido ou excluído do mer­
cado, e este era fornecido por períodos determinados. De especial
interesse são as negociações diplomáticas necessárias para que o
comércio pudesse ter início: era preciso estabelecer um tratado
marcando data e local, explicitando onde os compradores pode­
ríam e não poderíam ir e — temos forte suspeita — estabelecendo
também os termos de intercâmbio. Estes deviam figurar com des­
taque nas expedições à Ásia Menor, onde provavelmente existiam
diferentes sistemas de pesos e medidas, bem como de moedas.
Portanto, os mercados de alimentos oferecidos aos exércitos em
deslocamento assumiram algumas características dos portos co­
merciais da África ocidental, destinados a servir de local de troe a
para os estrangeiros e assim excluí-los tanto quanto possível do
território da cidade.

b. Portões
Outro ancestral mais distante, porém ainda local, liga o mercado
aos métodos de distribuição de alimentos praticados nos impérios
redistributivos. Neles, o mercado nasceu de um arranjo institucio­
nal essencialmente diverso, que depois passou por um a transfor­
mação quase completa. Referimo-nos aos métodos de armazena
m ento e distribuição praticados na antiga Suméria e em seus
sucessores mesopotâmicos. Nesses impérios de agricultura irriga­
da da Antiguidade, o governo central e o plantio de cereais em
larga escala respondiam por um complexo sistema de armazena­
mento nos portões, seja do templo, do palácio ou da cidade. A ne­
cessidade de armazenamento decorria do medo da fome, assim
como da pressão das exigências alimentares dos soldados ou de
turm as de trabalho organizadas pelo palácio ou pelo templo para
lidar com a água das inundações, a irrigação e a drenagem. Os
portões consistiam em torres altas para a proteção das entradas e
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO

saídas, imensos porões para armazenagem a seco, às vezes revesti­


dos por um a camada isolante de asfalto, um espaço ao ar livre em
frente aos portões externos, para encontros cerimoniais e sessões
dos tribunais e, às vezes, um a estreita passagem regular situada
atrás dos portões externos, com portões nas duas extremidades,
ligando duas paredes. Nos portões eram recebidos e entregues al­
guns produtos essenciais — gêneros duráveis de prim eira necessi­
dade — , amiúde em troca de um equivalente fixo (como a prata)
em cujos termos se podia fazer a contabilidade; os equivalentes
também podiam ser em espécie, como a correspondência entre
um gur de cereal e dez ka de azeite na Babilônia. Equivalências
quantitativas em cereais, azeite, vinho e lã perm itiam que os gê­
neros essenciais fossem substituídos uns pelos outros. Com isso se
cuidava dos pagamentos de impostos e de aluguéis, num a dire­
ção, e de rações para trabalhadores ou soldados, na outra. Embora
houvesse distribuição de alimentos, esse não era um mercado de
alimentos, pois não havia “encontro de grupos ofertantes e grupos
demandantes”.

c. Bazares
No bazar havia esse encontro. Entretanto, ele não era um mercado
de alimentos e sim de artigos m anufaturados produzidos pelos
artesãos. Era diferente de qualquer mercado moderno, ha medida
em que não havia um preço único para nenhum tipo de objeto e a
concorrência era excluída pela própria organização do bazar. As
vendas não ocorriam “ao ar livre”, mas nas lojas, onde o chefe da
família do artesão funcionava como vendedor. Em geral, os arte­
sãos eram estrangeiros — transplantados como parte de povos
conquistados ou estabelecidos nos termos de algum tratado. Fisi­
camente, o bazar era um lugar coberto. Na falta de outras acomo­
dações, as vielas da cidade m urada recebiam telhados que iam de
um lado a outro. Desde o começo, porém, o essencial é que faltava
ao bazar um elemento específico do mercado — o preço único,
fosse esse preço ou equivalência determinado pela lei, os costumes
KARLPOLANYI

e a autoridade ou pelos fornecedores e clientes em interação cole­


tiva, como no mercado formador de preços dos tempos modernos.
Ao longo de imensos períodos, nos berços orientais de nossa
civilização os portões e bazares formaram o aparelho institucional
que garantia a distribuição das necessidades da vida cotidiana.
Num período bem posterior da história houve um a mudança n o ­
tável na função do bazar. A intromissão da pólis em extensas áreas
costeiras, o estabelecimento de senhorios feudais nas regiões tur-
quizadas da Ásia continental e, por últim o, a emancipação das
“classes comerciais” pelo islamismo tenderam a dissolver o siste­
ma centralizado de armazenagem e a fundi-lo, em mais de um
sentido, com o bazar. De m odo quase imperceptível, o bazar dos
artesãos foi assumindo a função adicional de mercado local de
alimentos — predominando ora um, ora outro desses aspectos no
novo arranjo — , como podemos ver até hoje em mercados da re­
gião central da Ásia e do centro do Sudão. Por fim, quando os
portos comerciais saíram de moda, o bazar absorveu a venda de
produtos estrangeiros, por causa do desenvolvimento do mercado
mundial.

Comércio m ercantil: mercados externos


O sistema de oferta-procura-preço implica preços flutuantes que
controlam a oferta e até mesmo a própria produção. Onde se ori­
ginou esse sistema? Quando e como o comércio — uma institui­
ção milenar, de grande alcance e poder, que se desenvolvera intei­
ramente em bases expedicionárias, de presentes e contrapresentes
ou administrativas — ligou-se a ele? Quando e como o comércio
começou a usar métodos tão alheios a toda sua história?
Para tentar localizar a origem do mecanismo oferta-procura-
-preço, o historiador da Antiguidade precisa seguir a trilha do co­
mércio. Os vestígios dos mecanismos de mercado do passado nos
escapam. Os documentos nas bibliotecas são poucos e lhes falta
a precisão necessária. Mesmo em nossos dias, às vezes é difícil de­
term inar a presença ou a ausência de mercado para um dado pro-

198
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO

duto, como sabem os homens de negócios; no passado distante,


isso seria um esforço quase infrutífero. O comércio é um a história
inteiramente diversa: pessoal, mercadorias, rotas, veículos, tudo
isso é manifesto. Em todas as situações em que o comércio seguiu
seu curso podemos ter a expectativa de encontrar um a confluên­
cia de mercadorias — a nascente e o sentido do fluxo, por assim
dizer. Se então puderm os encontrar um comércio determ inado
pelo diferencial de preço entre as mercadorias, poderemos falar
em comércio mercantil. A
Ê o que basta dizer quanto ao método para buscarmos os pri-
mórdios dos mercados formadores de preços. Contudo, mesmo
presumindo que estes tenham sido muito mais dispersos do que
os dados parecem indicar, resta saber como o comércio, antes or­
ganizado de maneira tão diferente, foi maciçamente reorganizado
nessa nova forma.
Devemos evitar novamente a tentação teleológica, a qual, em
retrospectiva, poderia ser fortíssima e impedir assim que se res­
ponda à m aior parte da questão. Porventura o curso do comércio
não estava fadado a ser apanhado nas malhas do mecanismo de
mercado? Uma vez estabelecida essa ligação decisiva, não era uma
simples questão de tempo que o tecido indestrutível do comércio
mercantil viesse a perpassar toda a economia?
A teleologia, como sempre, é um convite a um tipo de euforia
que leva o pesquisador a confiar na ação do tempo e das circuns­
tâncias para que se desenvolva o resultado inevitável. Entretanto,
presumir tal afinidade natural entre o mecanismo de mercado e o
comércio é uma simplificação arbitrária, que ignora a complexi­
dade de ambos. Quanto ao mercado, o cientista social mostra as
complexas implicações psicológicas desse mecanismo aparente­
mente óbvio. Quanto ao comércio — qualquer que seja a forma
de efetuá-lo — , ele representa, necessariamente, uma convergên­
cia de pessoal, mercadorias, equivalências e transações, cada um
dos quais se enraiza em condições social e tecnologicamente defi­
nidas, com um a história e um a lógica próprias. A conjunção do

199
KARL POLANYI

mecanismo de mercado e do comércio é um fenômeno sumamen­


te específico, que de modo algum deve ser inferido em termos es­
peculativos, e sim, ao contrário, deduzido de condições históricas
e institucionais que só podem ser apuradas pela pesquisa factual.
A emergência do comércio mercantil, apesar de historicamente
mais recente que a emergência dos mercados locais de alimentos,
é igualmente obscura. Deve ter acontecido antes num a região, em
vez de outra, envolvendo certos tipos de mercadorias e não outros
Além disso, deve ter ocorrido aos poucos, afetando este ou aquele
componente do comércio. Portanto, defrontamo-nos com a ima­
gem de um a evolução sumamente diversificada. Mas a análise ins
titucional m ostra que ela pode ser enunciada em termos relati­
vamente simples.
Se voltarmos a considerar o comércio como uma composição
de pessoal, mercadorias, equivalências e transações, a respeito de
cada um desses componentes podemos falar em um a transição
de formas de comércio administradas para formas de comércio de
mercado. Examinaremos separadamente esses componentes em
sua transição, sempre guardando em mente as inevitáveis distor­
ções inerentes ao uso de dados históricos e examinando os proble­
mas institucionais em seus aspectos comparativos e de desenvol­
vimento. Isso talvez sirva de aproximação grosseira aos problemas
institucionais encontrados na emergência do comércio mercantil.

Pessoal, equivalências e transações


Tamkarum, na Antiguidade mesopotâmica e no Oriente Médio
dos tempos da Suméria, era o nome de um a figura de status sin-
gularíssimo em torno da qual girava a organização do comércio e
das finanças. O term o é comum aos três principais grupos de fon­
tes documentais: o templo sumério de Baú, em Lagash, da época
de Urukagina; mais tarde, as tábulas de argila assírias conhecidas
como tábulas da Capadócia; e o Código de Hamurábi, da Babilô­
nia, mais ou menos contemporâneo delas. Podemos descrever as
atividades do tamkarum, conforme o contexto, como as de feitor,

200
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO

agente, corretor, leiloeiro, guardião, banqueiro, depositário, árbi­


tro, mercador viajante, negociante oficial de escravos, coletor de
impostos e bailio da casa real. O term o era usado indiscriminada­
mente para descrever todas essas atividades. Como se evidencia,
alguns deles com binariam igualmente bem com um sistema de
comércio do tipo convencional. Por isso o tamkarum poderia ser
facilmente confundido pelos estudiosos modernos com um m er­
cador privado, desde que se presumisse a presença de mercados.
Mas o reconhecimento da ausência de instituições de mercado
na civilização mesopotâmica força um a reavaliação da figura do
I tamkarum, com consequências importantes para a interpretação
dos dados.
Nesse aspecto, é vital saber como se deve interpretar o Código
de Hamurábi e as atividades ricamente documentadas da colônia
comercial “capadócia” da Anatólia Central.28 De acordo com a lei­
tura tradicional, o tamkarum do Código de Hamurábi é um m er­
cador. O assentamento da Capadócia consistia em mercadores ou
comerciantes assírios que obtinham lucro da maneira habitual,
como intermediários entre os nativos proto-hititas e a longínqua
cidade de Assur. No mais, em vista das diferenças de tempo, lugar,
condições e dialetos, não se podería postular nenhum a identifica­
ção do tamkarum do Código com o das tábulas capadócias.
Retornando a essas tábulas, a alternativa aqui sugerida baseia-
-se na suposição de um comércio sem mercado, que consistia em
comprar e vender por dinheiro, usando taxas de equivalência, e
com o comerciante obtendo sua receita das comissões que cobrava
do exportador assírio — talvez da própria cidade de Assur — so­
bre as mercadorias consignadas.
Para os não iniciados, há um dado gerador de confusão, que
deve ser brevemente examinado: os comerciantes da colônia da
Capadócia são chamados por seus nomes próprios e nunca desig­

28 Cf. Karl Polanyi, “Marketless Trading in Hammurabi’s Time”, em Trade and M arket in
the Early Empires, cap. 2.

201
KARL POLANYI

nados como tamkarum. Por outro lado, há também um “tamka­


rum” que presta uma assistência im portante a esses comerciantes
em seus negócios, mas permanece anônimo! Ê invariavelmente
mencionado apenas como “o tamkarum”. Até hoje não se ofereceu
nenhum a resposta satisfatória a esse enigma. O Código de Ha-
murábi, como dissemos, contém muitas referências ao tamkarum,
cuja função se dá no comércio, mas nunca esclarece a contento
as suas atividades. Surge a questão de saber se o tamkarum do
Código e o tamkarum anônim o das tábulas da Capadócia não
devem ser considerados figuras idênticas, a despeito das condi­
ções reconhecidamente especiais da colônia capadócia e do fato de
que, nela, os comerciantes nunca eram designados por esse nome.
A suposição de que a economia mesopotâmica era desprovida de
mercado pode ajudar a desatar a meada dos mistérios do tamka­
rum, tanto no Código quanto nas tábulas capadócias. Talvez esteja
aí a chave do status e das atividades do tamkarum nos termos do
Código e tam bém da organização da vida comercial babilônica,
que ainda é obscura.
De qualquer modo, e quaisquer que possam ter sido as ativi­
dades concretas do tamkarum em diversas circunstâncias, sua
principal característica costuma ser reconhecida como a de uma
figura de status cuja função estava ligada a deveres públicos no
comércio e na vida econômica. Isso fica muito longe do comer­
ciante moderno, que ganha a vida com as diferenças entre os pre­
ços de compra e de venda, arca com os riscos dos preços e das dí­
vidas incobráveis, e não é instruído a fazê-lo p o r um a autoridade
pública nem dotado de renda da terra ou de valores para arcar
com o fardo de sua tarefa.
Isso nos traz à questão de como um a situação evoluiu para a
outra. É certo que, em algum momento antes da nossa era, a figura
do tamkarum foi substituída por outra que se assemelha à do mer­
cador. Sugerem-se muitos caminhos para essa mudança. É possí­
vel que o tamkarum, mesmo conservando sua função principal,
tenha sido autorizado a comerciar em caráter privado, quer com

202
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO

um tipo definido de mercadorias, quer acima de um a quantidade


específica de bens negociados; ou talvez a m udança tenha vindo
de outra maneira que ainda salvaguardasse, no plano institucio­
nal, os interesses públicos envolvidos.
Podemos expor alguns exemplos extraídos da antropologia e
da história. Na África ocidental, até recentemente, o costume exi­
gia que o hom em axânti carregasse na cabeça quarenta nozes de
cola para o governo; qualquer quantidade acima dessa era para
seu lucro privado.29 Os chineses das caravanas da rota do Turques-
tão Oriental podiam participar de caravanas formadas por num e­
rosos mercadores que eram donos de camelos. Esperava-se que
um cameleiro cuidasse de até dezoito camelos, mas ele podia ser
dono de até seis deles e receber um valor por seu aluguel. Além
disso, podia recorrer ao soo-che, isto é, levar mercadorias de sua
propriedade, num total de até meia carga de um camelo na ida e
uma carga de camelo na volta. Quando possuía mais de seis came­
los, deixava de ser pago por seu trabalho. Se possuía mais que o
conjunto completo de dezoito camelos, o que constituía um pe­
nhor, tornava-se um sócio independente, contribuindo para as
despesas operacionais.30 H á quase 4 mil anos os mercadores da
Capadócia deixavam seus empregados mais jovens, os beulatum,
comerciar em consignação, em proveito próprio, um a soma li­
mitada de mercadorias que lhes eram confiadas sem juros, num
beneficio que servia de recompensa pelos serviços prestados em
viagem; assim, eles se elevavam a um a condição de certa inde­
pendência. O utros dados parecem apontar para um a distinção
çntre o comércio de mercadorias monopolizadas pelo governo
— entregues em consignação ao comerciante — e o comércio de
mercadorias livres, que ele podia fazer em seu próprio nome. Uma
prática semelhante apareceu no comércio exportador persa para a
Europa no século XVII da era cristã. A seda era m onopólio do

29 Robert S. Rattray, Ashanti Law and Constitution. Oxford: Clarendon Press, 1929.
30 Owen Lattimore, The D esertRoad to Turkestan. Boston: Little, Brown, 1929.

203
KARL POLANYI

governo, sendo vendida no exterior por comerciantes armênios,


os quais podiam comercializar outras mercadorias livremente em
terras estrangeiras.31
O utra via de surgimento teria sido a do comércio com inter­
mediário e as vendas em leilão. Ambas as atividades eram muito
difundidas nas sociedades arcaicas. O código do rei Bilalama, de
Eshnunna, anterior ao Código de H am urábi, exigia que alguns
dignitários religiosos, que eram proibidos de negociar, vendessem
cerveja por meio de corretores (artigo 45). Talvez isso servisse para
afastar os religiosos da corrupção associada ao comércio. O corre­
tor é intermediário por profissão. Em alguns dos maiores merca­
dos da região central sudanesa, quando a oferta exígua de gêneros
de prim eira necessidade ameaçava esgotar-se, sempre negociada
pela equivalência válida, competia ao corretor racionar as merca­
dorias em questão, sem maiores delongas. Isso garantia aos pobres
uma oferta m ínim a de alimentos, lenha e similares, que de outro
modo poderíam ser rapidamente levados pelos mais ricos.32 Cabia
ao corretor um a função semelhante em relação aos comerciantes
ilegais, capazes de esvaziar ou inundar o mercado e desorganizar a
oferta a longo prazo. Mas também era possível esperar que o cor­
retor cooperasse com o ajuste das equivalências de forma ordeira.
Nesse ponto entrava o princípio do leiloamento, ou seja, vender
para quem dá mais. No comércio pré-mercado, isso consistia na
exposição pública das mercadorias e em sua venda a quem fizesse
os lances mais altos, sem maiores formalidades. Pára garantir um
bom lance, o corretor podia complementar a venda usual baseada
na equivalência, no mercado de preço fixo, indagando sobre com­
pradores prováveis nos arredores do mercado. Por isso o leilão
muitas vezes fundia-se com a corretagem. Nas situações de troca
por equivalência, presum ia-se que as mercadorias não fossem
vendidas abaixo nem acima do “preço”. Até vender mais barato era

31 Jean-Baptiste Tavemier, The Six Voyages ofJean-Baptiste Tavernier. Londres, 1678.


32 Heinrich Barth, Traveis and Discoveriès in North and Central África. Nova York: Har-
per and Brothers, 1859.

204
ELEMENTOS DE MERCADO E ORIGENS DO MERCADO

proibido, considerando-se os interesses dos produtores, quer fos­


sem os irmãos da guilda, quer fossem, mais comumente, os forne­
cedores de matérias-primas. Basta recordar as exigências do “pre­
ço justo” na economia medieval para reconhecer o rigor dessas
regras. Não obstante, com o desaparecimento gradual desses p rin ­
cípios em favor dos preços de barganha, a corretagem, combinada
com o leilão, acabaria levando a formas mais ordenadas de comér­
cio mercantil.
Uma via diferente de ajuste pode ter sido aberta por meio dos
chamados banqueiros. A atividade bancária apareceu antes do
mercado. Quando a troca direta era geral, usando-se o dinheiro
somente para pagamento e como padrão, era necessário existir
um serviço especializado, prim eiro para efetuar os pagamentos,
segundo para lidar com as dívidas. Na troca direta, como transa­
ção do dia a dia, podia haver discrepâncias entre os dois lados em
relação às mercadorias a trocar, quer fosse por haver falta de equi­
valência, quer fosse por haver um a defasagem temporal a cobrir.
No prim eiro caso, cabia um pagamento que equilibrasse a si­
tuação; no segundo, contraía-se um a dívida. Quer o pagamento
fosse feito em espécie, em prata e por peso, quer, mais tarde, em
moedas diversas, com por a “diferença” e honrar a dívida envol­
viam, nas civilizações “orais”, um a testemunha profissional desse
ato. Na Atenas do século V a.C., o banqueiro pagava ao credor, na
presença do devedor, a soma que o devedor havia depositado pre­
viamente para esse fim. Num estilo ainda mais simples, o hom em
que testava o dinheiro ou o trocava, sentado em seu tam borete
(em geral, um escravo), era encarregado pela autoridade pública
da função em questão.
Nas sociedades primitivas, o crédito que formava a dívida era
oferecido, originalmente, pela reciprocidade praticada no clã e en­
tre os vizinhos. No Estado arcaico, o templo e o palácio eram os
principais fornecedores do crédito para a colheita. Na colônia co­
mercial da Capadócia, o crédito a longo prazo parecia ser assunto
do ummeanum, cuja sede provavelmente situava-se na própria

205
KARL POLANYI

cidade de Assur, enquanto os adiantamentos eram feitos, confor­


me as circunstâncias, pelo tamkarum. O Código de Hamurábi pa­
recia transform ar em dever do tamkarum fornecer ao agricultor-
-cidadão crédito hipotecário até o valor da colheita. Nos tempos
anteriores ao mercado, a testagem do dinheiro, o câmbio, o pa­
gamento e a concessão de créditos não diferiam dessas mesmas
atividades em ocasiões m uito posteriores, mas sua função, no to­
cante à questão em pauta, era totalmente diferente. Com o surgi­
mento dos mercados formadores de preços, o dinheiro passou a
ser primordialmente usado como meio de troca, enquanto o pa­
gamento e o crédito assumiram funções de outra natureza. O cré­
dito passou a ser um subproduto do processo de intercâmbio de
mercadorias e de sua produção; a defasagem temporal a ser cober­
ta já não se devia à discrepância no valor dos bens a serem troca­
dos, m uito menos o crédito era um a questão de reciprocidade
entre o grupo familiar e os membros da aldeia, ou de distribuição
pelo palácio e pelo templo. A m oderna atividade bancária, longe
de tornar desnecessários os mercados, como fizera sua correspon­
dente arcaica, foi um meio de expansão do sistema de mercado
além de qualquer troca simples das mercadorias à mão. Na Meso-
potâm ia, afinal, a atividade bancária revelou-se um a via para a
transição do comércio administrado para o comércio mercantil.
Os novos banqueiros mercantis babilônios lidavam diretamente
com o cultivo da terra. A atividade bancária rom ana mal chegou
ao nível ateniense. Só no fim da Idade Média é que o comércio por
atacado a longas distâncias proporcionou um a fonte de capital
que buscou emprego em canais mais especulativos, com isso aju­
dando a demolir os limites das economias urbanas protegidas.
II. Ensaios correlatos
p p - '■ • •
Nossa obsoleta mentalidade de mercado1

O primeiro século da Idade da M áquina vai chegando ao fim num


ambiente de medo e inquietação. Seu fabuloso sucesso material
deveu-se à subordinação pronta e até entusiástica do ser hum ano
às necessidades da máquina. O capitalismo liberal foi a resposta
inicial do hom em ao desafio da Revolução Industrial. Para dar
margem à utilização de um a m aquinaria complexa e poderosa,
transformamos a economia hum ana em um sistema autorregula-
dor de mercados e moldamos nossos pensamentos e valores com
base nessa inovação singular.
Hoje começamos a duvidar da verdade de algumas dessas
idéias e da validade de alguns desses valores. Fora dos Estados
Unidos, já mal se pode dizer que o capitalismo liberal continue
a existir. Como organizar a vida hum ana num a sociedade de m á­
quinas é uma questão que volta a nos confrontar. Por trás do te­
cido esgarçado do capitalismo competitivo avulta um a portento­
sa civilização industrial, com sua paralisante divisão do trabalho,
sua padronização da vida, bem como sua supremacia do meca­
nismo sobre o organismo e da organização sobre a espontanei­
dade. A própria ciência é assombrada pela insanidade. Aí está a
preocupação permanente.
O retorno aos ideais do século XIX não basta para nos indicar
o caminho. Temos que desafiar o futuro, embora isso nos possa
envolver num a tentativa de deslocar o lugar da indústria na socie­
dade, para que a realidade extrínseca da máquina possa ser absor­
vida. A busca da democracia industrial não é a mera procura de
uma solução para os problemas do capitalismo, como imagina
a maioria das pessoas. É a busca de um a resposta à própria in­
dústria. Nisso reside o problema da nossa civilização. Essa nova

1 De “Our Obsolete Market Mentality”, Commentary, v. 3, fevereiro de 1947, p. 109-117.

209
KARl POLANYI

ordem requer uma liberdade interior para a qual estamos mal pre­
parados. Descobrimo-nos embrutecidos pela herança de um a eco­
nom ia de mercado que nos legou idéias ultrassimplificadas sobre
a função e o papel do sistema econômico na sociedade. Para que a
crise seja superada, precisamos resgatar um a visão mais realista do
m undo hum ano e m oldar nossos objetivos comuns à luz desse
reconhecimento.
O industrialismo é um enxerto precariamente introduzido na
existência milenar do ser humano. O resultado da experiência ain­
da está na balança. Mas o hom em não é um ser simples e pode
m orrer de muitas maneiras. A questão da liberdade individual, tão
apaixonadamente levantada na nossa geração, é apenas um aspec­
to desse problema angustiante. Na verdade, faz parte de um a ne­
cessidade m uito mais vasta e profunda — a necessidade de uma
resposta nova ao desafio total da máquina.
A nossa situação pode ser descrita nos seguintes termos: a civi­
lização industrial ainda poderá aniquilar o homem. Mas, visto que
o empreendim ento de um meio progressivamente artificial não
pode ser, recusa-se a ser e, a rigor, não deve ser voluntariamente
descartado, a tarefa de adaptar a vida num tal contexto aos requi­
sitos da existência hum ana precisa ser resolvida, se o hom em qui­
ser continuar na Terra. Ninguém é capaz de predizer se essa adap­
tação será possível ou se o ser hum ano deverá m orrer tentando.
Daí o tom velado e sombrio de apreensão.
A prim eira fase da Idade da M áquina chegou ao fim. Envolveu
um a organização da sociedade que derivou seu nome de sua ins­
tituição central: o mercado. Esse sistema está em declínio. No en­
tanto, nossa filosofia prática foi maciçamente m oldada por esse
episódio espetacular. Novas concepções sobre o ser hum ano e a
sociedade tornaram -se correntes e adquiriram o estatuto de axio­
mas. Ei-las: no que concerne ao homem, fomos levados a aceitar a
heresia de que suas motivações podem ser descritas como “m ate­
riais” e “ideais”, e que os incentivos sobre os quais se organiza a
vida cotidiana provêm das motivações “materiais”. Tanto o libe-

210
NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO

ralismo utilitarista quanto o marxismo vulgar favoreceram essas


idéias. Em relação à sociedade, propôs-se a doutrina afim de que
suas instituições são “determinadas” pelo sistema econômico. Essa
opinião foi ainda mais popular entre os marxistas que entre os
liberais.
£? Num a econom ia de mercado, é claro, ambas as afirmações
eram verdadeiras. Mas apenas nesse tipo de economia. Em relação
5 ao passado, essa visão não ia além de um anacronismo. Em relação
ao futuro, era um simples preconceito. Contudo, sob a influência
das atuais escolas de pensamento, reforçada pela autoridade da
ciência e da religião, da política e dos negócios, esses fenômenos
estritamente delimitados no tem po passaram a ser vistos como
f atemporais, como algo que transcende a era do mercado. Superar
essas doutrinas, que nos cerceiam a mente e a alma e tornam m ui­
to mais difícil a adaptação necessária à nossa sobrevivência, talvez
requeira nada menos que um a reforma da nossa consciência.

A sociedade de mercado
O nascimento do laissez-faire provocou um choque na visão que o
homem civilizado tinha de si mesmo, e de seus efeitos ele nunca se
recuperou por completo. Só muito gradualmente nos damos conta
do que nos aconteceu há tão pouco tempo, apenas um século atrás.
A economia liberal, essa prim eira reação do hom em à m áqui­
na, foi um a ruptura violenta com as condições que a precederam.
Iniciou-se um a reação em cadeia: o que até então eram simples
mercados isolados converteu-se num sistema autorregulador de
mercados. E com a nova economia surgiu um a nova sociedade.
Foi este o passo crucial: o trabalho e a terra foram transformados
em mercadorias, isto é, tratados como se fossem produzidos para
venda. É claro que não eram mercadorias de fato, um a vez que
ou não eram produzidos (como a terra), ou, quando o eram, não
eram produzidos para venda (como o trabalho). Mas nunca se
concebeu um a ficção mais completamente eficaz. Com a compra
e a venda livres do trabalho e da terra, o mecanismo do mercado
KARL POLANYI

tornou-se aplicável a eles. Passou a haver oferta de trabalho e pro­


cura de trabalho; passou a haver oferta e procura de terra. Por
conseguinte, surgiu um preço de mercado para o uso da força de
trabalho, chamado salário, e um preço de mercado para o uso da
terra, chamado renda. O trabalho e a terra passaram a ter seus
próprios mercados, à semelhança das mercadorias propriamente
ditas, que eram produzidas com a ajuda deles. Podemos avaliar o
verdadeiro alcance desse passo se recordarmos que trabalho é ape­
nas outro nom e para homem, e terra, para a natureza. A ficção da
mercadoria confiou o destino do hom em e da natureza à ação de
um autôm ato que segue seus próprios rum os e é regido por suas
próprias leis.
Jamais se vira nada semelhante. No regime mercantil, embora
houvesse um a pressão deliberada pela criação de mercados, o
princípio oposto ainda vigorava. O trabalho e a terra não eram
confiados ao mercado; faziam parte da estrutura orgânica da so­
ciedade. Quando a terra era negociável, somente a determinação
do preço, de m odo geral, ficava por conta das partes; quando o
trabalho estava sujeito a contratos, os salários costumavam ser fi­
xados pelas autoridades. A terra obedecia ao costume da proprie­
dade feudal, do mosteiro ou do município, submetida às limita­
ções legais respeitantes aos direitos dos bens de raiz; o trabalho era
regulado por leis contra a indigência e a vagabundagem, por esta­
tutos de trabalhadores e artífices, leis sobre a pobreza e regula­
mentos corporativos [guildas] ou municipais. Todas as sociedades
conhecidas por antropólogos e historiadores restringiam os mer­
cados às mercadorias, no sentido estrito do termo.
A econom ia de mercado criou um novo tipo de sociedade.
Nela, o sistema econômico ou produtivo foi confiado a um meca­
nismo automático. Um mecanismo institucional passou a contro­
lar não só os seres hum anos em suas atividades cotidianas, como
também os recursos da natureza. Esse instrum ento do bem-estar
material ficou sob o controle exclusivo dos incentivos da fome
e do ganho — ou, mais precisamente, do medo de não atender
NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO

às necessidades vitais e da expectativa de lucro. Desde que nenhu­


ma pessoa sem posses pudesse satisfazer sua fome sem primeiro
vender seu trabalho no mercado, e desde que nenhum proprie­
tário fosse impedido de comprar no mercado mais barato e ven­
der no mais caro, o m oinho cego haveria de produzir quantidades
cada vez maiores de mercadorias em benefício da raça humana.
O medo da fome entre os trabalhadores e a atração do lucro entre
os patrões manteriam o vasto sistema em funcionamento.
Com isso passou a existir um a “esfera econômica”, bem des­
tacada de outras instituições da sociedade. Dado que nenhum
agregado hum ano pode sobreviver sem o funcionamento de um
aparelho produtivo, a sua incorporação num a esfera distinta e se­
parada da sociedade teve como efeito tornar o “resto” da sociedade
dependente dessa esfera. Essa zona autônom a, por sua vez, era
regulada por um mecanismo que controlava seu funcionamento.
Como resultado, o mecanismo de mercado tornou-se determ i­
nante para a vida do corpo social. Não adm ira que o agregado
humano assim surgido tenha sido um a sociedade “econômica”
num grau nunca antes alcançado. Os “motivos econômicos” rei­
naram supremos, num m undo próprio, e o indivíduo foi levado
a neles calcar os seus atos, sob pena de ser esmagado pelo mercado
avassalador. Essa conversão forçada a um a perspectiva utilitarista
distorceu fatalmente a compreensão do hom em ocidental sobre
si mesmo.
Esse novo m undo de “motivos econômicos” baseou-se num a
falácia. Na sua essência, a fome e o ganho não são mais “econômi­
cos” que o am or ou o ódio, o orgulho ou o preconceito. N enhum a
motivação hum ana é econômica em si. Não existe algo que se pos­
sa chamar de um a experiência econômica sui generis, no mesmo
sentido em que o ser hum ano pode ter um a experiência religiosa,
estética ou sexual. Estas últimas dão lugar a motivações que al­
mejam, em linhas gerais, evocar experiências similares. No que
tange à produção material, esses termos carecem de um significa­
do evidente.
KARL POLANYI

O fator econômico, que está subjacente a toda a vida social, dá


tão pouca origem a incentivos definidos quanto o faz a lei igual­
mente universal da gravidade. É certo que, se não comermos, esta­
remos fadados a morrer, exatamente como se fôssemos esmagados
sob o peso de um a pedra. Mas a fome não se traduz automatica­
mente num incentivo a produzir. A produção não é um a atividade
individual, mas coletiva. Se um indivíduo tem fome, não há nada
definido que lhe caiba fazer. Se levado ao desespero, talvez ele rou­
be ou furte, mas dificilmente se podería chamar esse ato de produ­
tivo. No homem, animal político, tudo é dado por circunstâncias
sociais, não pelas naturais. O que levou o século XIX a pensar na
fome e no ganho como “econômicos” foi simplesmente a organi­
zação da produção num a economia de mercado.
Nela, a fome e o ganho ligam-se à produção pela necessidade
de “obter um rendim ento”. Ê que, nesse sistema, para continuar
vivo, o H om em é obrigado a com prar bens no mercado com a
ajuda da receita decorrente da venda de outros bens no mercado.
O nome desses rendimentos — salários, renda, juros — varia de
acordo com o que é oferecido para venda: o uso da mão de obra,
da terra ou do dinheiro; o rendim ento designado p or lucro —
a remuneração do empresário — decorre da venda de bens que
atingem um preço superior ao daqueles usados na sua produção.
Assim, todos os rendimentos derivam de vendas, e todas as vendas
— direta ou indiretamente — contribuem para a produção. Esta,
com efeito, decorre da obtenção de um rendimento. Desde que o
indivíduo “obtenha um rendim ento”, ele está automaticamente
contribuindo para a produção. É claro que o sistema só funciona
enquanto os indivíduos têm alguma razão para se entregar à ativi­
dade de “obter um rendimento”. As motivações da fome e do ga­
nho — separadas e em conjunto — lhes fornecem essa razão. Por­
tanto, essas duas motivações orientam-se para a produção e, por
conseguinte, são chamadas “econômicas”. Tem-se a convicta im ­
pressão de que a fome e o ganho são os incentivos por excelência
sobre os quais assenta qualquer sistema econômico. Mas essa é

214
NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO

uma suposição infundada. Ao compararmos as sociedades hum a­


nas, vemos que não se recorre à fome e ao ganho como incentivos
à produção, e, quando isso ocorre, eles se fundem com outras m o­
tivações poderosas.
Aristóteles tinha razão: o H omem não é um ser econômico,
mas um ser social. Não almeja salvaguardar seu interesse indi­
vidual na aquisição de posses materiais, e sim garantir sua recep­
tividade social, seu status social e seus bens sociais. Valoriza suas
posses sobretudo com o um meio para atingir esses fins. Seus
incentivos têm aquele caráter “misto” que associamos ao esforço
para obter aprovação social — os esforços produtivos são meros
concomitantes dele. A economia do ser humano, como regra, está
mergulhada em suas relações sociais. A passagem disso para uma
sociedade que, ao contrário, estava mergulhada no sistema eco­
nômico foi um fenômeno inteiramente novo.
Penso que, neste ponto, convém aduzir algumas provas fac­
tuais. Em primeiro lugar, existem as descobertas da economia pri­
mitiva. Dois nomes sobressaem aqui: os de Bronislaw Malinowski
e Richard Thurnwald. Eles e alguns outros investigadores revo­
lucionaram as nossas concepções nesse campo e, ao fazê-lo, fun­
daram um a nova disciplina. Fazia m uito tem po que o m ito do
selvagem individualista fora descartado. Não se evidenciavam o
egoísmo cru nem a apócrifa “propensão para comerciar, perm utar
e trocar”, tampouco a tendência a cuidar apenas de si mesmo. Mas
estava igualmente desacreditada a lenda da psicologia comunista
do selvagem, de sua suposta despreocupação com seus interesses
pessoais. (Grosso modo, o hom em parecia ter sido basicamente o
mesmo em todas as eras. Considerando suas instituições não iso­
ladamente, mas inter-relacionadas, viu-se que ele quase sempre
parecia agir de um m odo que nos era compreensível em linhas
gerais.) O que se afigurava como “com unismo” era o fato de o
sistema produtivo ou econômico organizar-se, habitualmente, de
m odo a não ameaçar nenhum indivíduo com a fome. Seu lugar
junto à fogueira e sua participação nos recursos comuns lhe esta­

215
KARL POLANYI

vam garantidos, qualquer que fosse sua participação na caça, no


pastoreio, na lavoura ou na horticultura. Eis alguns exemplos:
no sistema de terra dividida em kraals dos caffes, “a indigência é
impossível; quem quer que precise de assistência obtém -na sem
questionam ento” (L. P. Mair, An African People in the Twentieth
Century, 1934). Nenhum kwakiutl “jamais correu o m enor risco
de passar fome” (E. M. Loeb, The Distribution and Function of
Money in Early Society, 1936). “Não há fome nas sociedades que
vivem na margem da subsistência” (M. J. Herskovits, The Eco-
nomic Life o f Primitive Peoples, 1940). Com efeito, o indivíduo não
corre o risco de passar fome, a menos que a comunidade como
um todo esteja em apuros similares. Essa ausência da ameaça de
miséria individual faz com que a sociedade primitiva, em certo
sentido, seja mais hum ana que a do século XIX e, ao mesmo tem ­
po, menos “econômica”.
O mesmo se aplica ao estímulo do ganho individual. Vejamos
mais algumas citações: “O traço característico da economia prim i­
tiva é a ausência de qualquer desejo de obter lucro por meio da
produção e da troca” (R. Thurnwald, Economics in Primitive Com-
munities, 1932). “O ganho, que muitas vezes é o estímulo para o
trabalho em comunidades mais civilizadas, nunca atua como um
impulso para o trabalho nas condições nativas originais” (B. Mar
linowski, Argonauts o f the Western Pacific, 1922). Se as chamadas
motivações econômicas fossem naturais, teríamos de julgar com­
pletamente antinaturais todas as sociedades antigas e primitivas.
Em segundo lugar, não há qualquer diferença entre um a socie­
dade prim itiva e um a sociedade civilizada, nesse aspecto. Quer
nos voltemos para a antiga cidade-estado, para os impérios despó­
ticos, o feudalismo, a vida urbana do século XIII, o regime mer­
cantilista do século XVI ou o regulamentarismo do século XVIII,
veremos que o sistema econômico funde-se invariavelmente com
q social. Os incentivos brotam de um a grande variedade de fontes,

como o costume, a tradição, o dever público e o compromisso


privado, a prática religiosa e a filiação política, a obrigação judicial

216
NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO

r e a regulamentação administrativa estabelecida pelo príncipe, pela


municipalidade ou pela corporação. Hierarquia e status, compul­
são legal e ameaça de punição, aprovação na vida pública e bom
nome na vida privada, tudo isso garante que o indivíduo contri­
bua com a parte que lhe compete para a produção. O medo de
privações ou o am or ao lucro não precisam estar inteiram ente
ausentes. Os mercados existem em todas as sociedades, e a figura
do mercador é conhecida em muitos tipos de civilizações. Mas os
mercados isolados não se interligam para formar um a economia.
A motivação do ganho era específica dos mercadores, como o
eram a coragem do cavaleiro, a devoção do sacerdote e o orgulho
do artesão. A ideia de universalizar a motivação do ganho nunca
passou pela cabeça dos nossos antepassados. Em nenhum a época
anterior ao segundo quartel do século XIX os m ercados foram
mais que um traço secundário na vida social.
Em terceiro lugar, a m udança foi assustadoramente abrupta.
A predominância dos mercados não surgiu como um a m udança
lis gradual, mas como um salto qualitativo. Os mercados através dos
quais os chefes de família autossuficientes escoam o seu excedente
não dirigem a produção nem fornecem ao produtor o seu rendi­
mento.2 Isso só acontece num a economia de mercado em que to­
dos os rendimentos decorrem de vendas e só se podem obter m er­
cadorias por meio de compra. Somente há aproximadamente um
século nasceu um mercado livre para a mão de obra na Inglaterra.
A Lei da Pobreza de 1834, de triste fama, aboliu na Grã-Bretanha
os dispositivos legais toscos, mas eficazes, criados para os pobres
pelos governos patriarcais. De refugio que eram para os desvali-
dos, os asilos para pobres transformaram-se em locais de vergo­
nha e tortura mental, aos quais até a fome e a miséria eram prefe­
ríveis. Morrer de fome ou trabalhar foi a alternativa que restou aos
pobres. Com isso criou-se um mercado de trabalho nacional e

2 Sobre esses mercados pequenos ou periféricos, tais como funcionam na África, ver
Paul Bohannan e George Dalton, “Introduction”, em M arkets in África. Nova York:
Natural History Press, 1965.

217
KARL POLANYI

competitivo. Em menos de um a década, a Lei dos Bancos (1844)


estabeleceu o princípio do padrão-ouro; a cunhagem da moeda
foi retirada das mãos do governo, qualquer que fosse o efeito disso
no nível de emprego. Simultaneamente, a reforma da legislação
fundiária e a revogação das Leis dos Cereais (1846) criaram um
cartel mundial dos cereais, o que deixou o desprotegido agricultor
camponês da Europa continental sujeito aos caprichos do merca­
do. Foi assim que se estabeleceram os três pilares do liberalismo
econômico, princípio que servira de base para a organização da
economia de mercado: o trabalho deveria encontrar o seu preço
no mercado; a moeda deveria ser fornecida por um mecanismo
autorregulador; e as mercadorias deveríam circular livremente de
um país para outro, quaisquer que fossem as consequências — em
suma, um mercado de trabalho, o padrão-ouro e o livre-comércio.
Induziu-se um processo incendiário, que realimentava a si mes­
mo, em decorrência do qual o padrão antes inofensivo do merca­
do expandiu-se num a monstruosidade sociológica.
Esses fatos esboçam em linhas gerais a genealogia de um a so­
ciedade “econômica”. Em tais condições, é fatal que o m undo h u ­
m ano pareça determinado por motivos “econômicos”. É fácil ver
por quê. Escolha-se uma motivação qualquer, organize-se a pro­
dução de maneira a fazer dessa motivação o incentivo para o in­
divíduo produzir e assim se haverá induzido um a imagem do ho­
mem como um ser inteiramente dominado por essa motivação.
Seja essa motivação religiosa, política ou estética, seja ela o orgu­
lho, o preconceito, o amor, ou a inveja, o hom em aparecerá como
essencialmente religioso, político, estético, orgulhoso, preconcei­
tuoso, movido pelo am or ou pela inveja. Outras motivações, em
contraste, parecerão distantes e nebulosas, já que não se pode con­
tar com sua atuação no processo vital da produção. A motivação
particular selecionada representará o homem “real”.
Acontece que os seres humanos são capazes de trabalhar por
um a grande variedade de razões, desde que as coisas estejam ar­
ranjadas em consonância com elas. Os monges comerciavam por

218
NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO

razões religiosas, e os mosteiros tornaram-se os maiores estabele­


cimentos comerciais da Europa. O kula dos habitantes das ilhas
Trobriand, um dos mais intricados sistemas de troca até hoje co­
nhecidos, é sobretudo um empreendimento estético. A economia
feudal era conduzida com base nos costumes. Entre os kwakiutl, o
principal objetivo da indústria parece ser a satisfação da honra. No
despotismo mercantilista, a indústria era muitas vezes planejada
para servir ao poder e à glória. Por conseguinte, tendemos a pen­
sar nos monges, nos vilões feudais, nos habitantes da Melanésia
ocidental, nos kwakiutl ou nos homens de Estado do século XVIII
como governados, respectivamente, pela religião, pelo costume,
pela estética, pela honra ou pela política.
No capitalismo, todo indivíduo tem que obter um rendimento.
Se é operário, tem que vender seu trabalho a preços correntes; se é
proprietário, tem que obter o m aior lucro possível, pois a posição
que ocupará perante seus semelhantes vai depender do seu nível
de renda. A fome e o ganho — ainda que vicariamente — os farão
arar e semear, fiar e tecer, minerar carvão e pilotar aviões. Em con­
sequência, os membros de tal sociedade verão a si mesmos como
regidos por essas duas motivações gêmeas. Mas, na realidade, o
homem nunca foi tão egoísta quanto exigia a teoria. Em bora o
mecanismo do mercado tenha trazido para o primeiro plano a sua
dependência de bens materiais, as motivações “econômicas” ja­
mais constituíram, para ele, o único incentivo ao trabalho. Em vão
os economistas e os filósofos utilitaristas o exortaram a ignorar,
nos negócios, todas as motivações que não fossem “materiais”.
A investigação mais detida continuou a descobri-lo agindo por
motivos incrivelmente “heterogêneos”, sem excluir os do dever
para consigo mesmo e para com os outros — e talvez até o de um
prazer secreto de trabalhar por trabalhar.
Contudo, aqui não nos preocupam as motivações reais, e sim
as presumidas; não a psicologia, mas a ideologia dos negócios.
É nestas últimas, não nas primeiras, que se baseiam as visões da na­
tureza humana. Quando a sociedade espera de seus membros um
KARL POLANYI

dado comportamento, e quando as instituições dominantes tor-


nam -se mais ou menos capazes de im por essa conduta, as opi­
niões sobre a natureza hum ana tendem a refletir esse ideal, quer
ele se assemelhe à realidade, quer não. Assim, a fome e o ganho
foram definidos como motivações econômicas e presumiu-se que
o hom em agiria de acordo com elas na vida cotidiana, enquanto
seus outros motivos pareceram mais etéreos e distantes da existên­
cia do dia a dia. A honra e o brio, a obrigação cívica e o dever
moral, até o am or-próprio e a simples decência passaram a ser
considerados irrelevantes para a produção, sendo significativa­
mente resumidos na palavra “ideais”. Passou-se, pois, a crer que o
homem se com punha de dois elementos, um mais ligado à fome e
ao ganho, o outro, à honra e ao poder. Um era “material”, o outro,
“ideal”; um era “econômico”, o outro, “não econômico”; um era
“racional”, o outro, “não racional”. Os utilitaristas chegaram ao
ponto de identificar os dois conjuntos de termos, com isso dotan­
do de um a aura de racionalidade o lado econômico do caráter
humano. Quem se recusasse a imaginar que agia tão somente com
vistas ao ganho, portanto, era considerado não só im oral, mas
também louco.

Determinismo econômico
Além disso, o mecanismo do mercado criou a ilusão do determi­
nismo econômico como lei geral para toda a sociedade humana.
Numa economia de mercado, é claro, essa lei é válida. Nela, com
efeito, o funcionamento do sistema econômico não só “influencia”
o resto da sociedade, como o determina — do mesmo m odo que,
num triângulo, os lados não se lim itam a influenciar, mas de­
term inam os ângulos. Consideremos a estratificação das classes.
Oferta e procura no mercado de trabalho foram identificadas, res­
pectivamente, com as classes dos trabalhadores e dos patrões. As
classes sociais de capitalistas, proprietários de terras, rendeiros,
corretores, comerciantes, profissionais liberais etc. foram delimi­
tadas pelos respectivos mercados da terra, moeda e capital e seus

220
NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO

usos, ou de vários outros serviços. A renda dessas classes sociais


foi fixada pelo mercado, e sua posição e seu prestígio, pelos seus
rendimentos. Isso representou uma inversão completa da praxe
secular. Segundo a famosa frase de Maine, o “contrato” substituiu
o “status”, ou, como preferia dizer Tõnnies, a “sociedade” sobre­
pôs-se à “comunidade”; ou ainda, nos termos do presente artigo,
em vez de o sistema econômico enraizar-se nas relações sociais, estas
passaram a se enraizar no sistema econômico.
Enquanto as classes sociais eram diretam ente determ inadas
pelo mecanismo do mercado, outras instituições o eram indireta­
mente. O Estado e o governo, o casamento e a .criação dos filhos,
a organização da ciência e da educação, da religião e das artes, a
escolha da profissão, as formas de habitação, as configurações dos
povoamentos, a própria estética da vida privada, tudo tinha de se
coadunar com o modelo utilitarista, ou, pelo menos, não interferir
no funcionamento do mecanismo do mercado. Entretanto, con­
siderando-se que pouquíssimas atividades hum anas podem ser
exercidas no vazio — até um santo precisa de um pedestal — ,
o efeito indireto do sistema de mercado foi quase vir a determinar
todo o conjunto da sociedade. Tornou-se quase impossível evitar
a conclusão errônea de que, tal como o hom em “econômico” era o
homem “real”, o sistema econômico era “realmente” a sociedade.
Entretanto, seria mais exato dizer que as instituições humanas
básicas detestam as motivações puras. Assim como o sustento do
indivíduo e da família não costuma depender da motivação da
fome, a instituição da família não se baseia na motivação sexual.
O sexo, como a fome, é um dos incentivos mais potentes que há,
quando livre do controle de outros incentivos. É provavelmente
por isso que a família, em todas as suas variadas formas, nunca
deve centrar-se no instinto sexual, com suas intermitências e seus
caprichos, e sim na combinação de várias motivações efetivas que
impedem o sexo de destruir um a instituição da qual depende tão
grande parte da felicidade humana. O sexo em si jamais produzirá
nada melhor que um bordel, e, mesmo assim, talvez tenha que
KARL POLANYI

extrair uns incentivos do mecanismo de mercado. Um sistema


econômico que realmente dependesse da fome como sua mola
mestra seria quase tão perverso quanto um sistema familiar basea­
do no m ero desejo sexual.
Tentar aplicar o determinismo econômico a todas as sociedades
humanas fica pouco abaixo do fantasioso. Nada é mais evidente,
para o estudioso de antropologia social, que a variedade de insti­
tuições que se revelam compatíveis com instrumentos de produção
praticamente idênticos. Só a partir do mom ento em que se permi­
tiu que o mercado triturasse o tecido social do homem, reduzindo-
-o à uniformidade insípida da erosão lunar, é que a criatividade
institucional do ser hum ano ficou em suspenso. Não é de admirar
que sua imaginação social dê sinais de fadiga. A situação talvez
chegue a um ponto em que ele já não consiga recuperar a elastici­
dade, a riqueza e o poder imaginativo da sua dotação selvagem.
N enhum protesto meu, reconheço, me poupará de ser tomado
por “idealista”. Isso porque quem deprecia a importância das mo- |
tivações “materiais” deve, ao que parece, estar confiando na força ^
das motivações “ideais”. No entanto, seria impossível um equívoco í
pior. A fome e o ganho, em si, nada têm de especificamente “ma- *j
terial”. O brio, a honra e o poder, por outro lado, não são necessa­
riamente motivações “superiores” às da fome e do ganho.
A própria dicotomia, afirmamos, é arbitrária. Consideremos
mais um a vez a analogia com o sexo. Nela, decerto podemos es­
tabelecer um a distinção significativa entre motivações “superio­
res” e “inferiores”. Mas, quer se trate da fome ou do sexo, é perni- |
cioso institucionalizar a separação dos componentes “materiais” *
e “ideais” do ser humano. Em relação ao sexo, esta verdade, tao
vital para a integridade essencial do Homem, sempre foi reconhe­
cida; está na base da instituição do casamento. Mas, no campo
igualmente estratégico da economia, ela tem sido negligenciada.
O econômico tem sido “desvinculado” da sociedade, sendo tratado
como o âmbito da fome e do ganho. A nossa dependência animal
da alimentação foi desnudada, e o medo puro da inanição teve li­
NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO

cença para correr solto. Nossa humilhante escravização ao “ma­


terial”, que toda a cultura hum ana destina-se a mitigar, foi deli-
beradamente tornada mais rigorosa. Isso se encontra na raiz da
“doença da sociedade aquisitiva” para a qual Tawney nos aler­
tou. E o gênio de Robert Owen manifestou-se no mais alto grau
quando, cem anos antes, ele descreveu a motivação do lucro como
“um princípio inteiram ente desfavorável à felicidade individual
e pública”.

A realidade da sociedade
Pleiteio a restauração da unidade de motivações que deve instru-
m entar o H omem na sua atividade cotidiana de produtor, a reab-
sorção do sistema econômico na sociedade e a adaptação criativa
de nossas maneiras de viver a um ambiente industrial.
Em todos esses pontos, a filosofia do laissez-faire, com seu co­
rolário de um a sociedade mercantil, cai por terra. Ela é respon­
sável pela cisão da unidade vital do ser hum ano entre o hom em
“real”, orientado para os valores materiais, e o seu eu “ideal” supe­
rior. Paralisa a nossa imaginação social, ao fomentar, mais ou me­
nos inconscientemente, o preconceito do determinismo econômi­
co. Prestou seus serviços na fase da civilização industrial que já
deixamos para trás. Ao preço de empobrecer o indivíduo, enrique­
ceu a sociedade. Hoje enfrentamos a tarefa crucial de devolver à
pessoa hum ana a integridade da vida, ainda que isso signifique
uma sociedade tecnologicamente menos eficiente. Em vários paí­
ses e de diferentes maneiras, o liberalismo clássico vem sendo pos­
to de lado. À direita, à esquerda e no centro exploram-se novos
caminhos. Os sociais-democratas ingleses, os norte-am ericanos
do New Deal e também os fascistas europeus e as várias tendências
“gerencialistas” norte-americanas que se opõem ao New Deal, to ­
dos rejeitam a utopia liberal. E o atual clima político de rejeição de
tudo o que vem da Rússia não nos deve cegar para as realizações
dos russos na adaptação criativa a alguns aspectos fundamentais
do meio industrial.
KARL POLANYI

!: ;<i
Em termos gerais, a expectativa comunista do “desaparecimen­
to do Estado” parece-me combinar elementos de utopismo liberal
com um a indiferença prática às liberdades institucionais. No to­
cante ao desaparecimento do Estado, é impossível negar que a
sociedade industrial é um a sociedade complexa, e nenhum a so­
ciedade complexa pode existir sem um poder organizado no cen­
tro. Mas isso não é desculpa para o m odo como os comunistas
desconsideram a questão das liberdades institucionais concretas.
É nesse nível de realismo que se deve enfrentar o problema da li­
berdade individual. Não há como existir um a sociedade humana
em que o poder e a coação estejam ausentes, assim como não exis­
te um m undo em que a força não tenha sua função. A filosofia li­
beral apontou um falso caminho para nossos ideais, ao parecer
que prom etia a realização dessas expectativas intrinsecam ente
utópicas.
Mas, no sistema de mercado, a sociedade como um todo per­
maneceu invisível. Qualquer um podia imaginar-se livre da res­
ponsabilidade pelos atos de coação do Estado que repudiasse
pessoalmente, ou pelo desemprego e a miséria dos quais não ex­
traísse nenhum benefício pessoal. Pessoalmente, ele não se enre­
daria nos males do poder e do valor econômico. Com a consciên­
cia tranquila, poderia negar a realidade destes, em nom e da sua
liberdade imaginária. O poder e o valor econômico são, com efei­
to, paradigmas da realidade social. Nem um nem outro provém da
volição hum ana e, em relação a eles, a não cooperação é impos­
sível. A função do poder é assegurar a medida de conformidade
necessária à sobrevivência do grupo: como m ostrou David Hume,
a sua origem últim a é a opinião — e quem pode deixar de ter opi­
niões deste ou daquele tipo? O valor econômico, em qualquer so
ciedade, assegura a utilidade dos bens produzidos; é um carimbo
aposto na divisão do trabalho. Sua fonte são as carências humanas
— e como é possível esperar que não prefiramos um a coisa a ou­
tra? Qualquer opinião ou desejo, não im porta em que sociedade
vivamos, nos faz participar da criação do poder e da constituição

224
NOSSA OBSOLETA MENTALIDADE DE MERCADO

de valores. Não há como conceber um a liberdade de ação que


seja diferente disso. Um ideal que pretenda banir da sociedade o
poder e a coação é intrinsecamente desprovido de validade. Ao
desconhecer essa limitação imposta aos desejos significativos do
homem, a visão mercantil da sociedade revela a sua própria ima­
turidade essencial.

Liberdade na sociedade industrial


A crise da economia de mercado põe em risco dois tipos de liber­
dades, umas boas, outras más.
Que a liberdade de explorar o semelhante, ou a liberdade de
auferir lucros descomunais, sem a prestação de serviços corres­
pondentes à comunidade, a liberdade de impedir que as invenções
tecnológicas sejam usadas em benefício de todos, ou a liberdade
de tirar proveito de calamidades públicas secretamente engendra­
das para benefício privado, que todas essas liberdades possam
desaparecer junto com o livre mercado, até aí, tudo bem. Mas a
economia de mercado, sob cuja égide vicejaram essas liberdades,
também produziu outras que prezamos imensamente. A liberdade
de consciência, a liberdade de expressão, a liberdade de reunião, a
liberdade de associação, a liberdade de escolher o próprio empre­
go, todas estas nós valorizamos por elas mesmas. No entanto, em
larga medida, elas foram subprodutos da mesma economia que
também foi responsável pelas liberdades perniciosas.
A existência de um a esfera econômica separada na sociedade
criou uma espécie de fosso entre a política e a economia, entre o
governo e a indústria, algo como um a terra de ninguém. Assim
como a divisão da soberania entre o papa e o im perador deixava
os príncipes medievais num a situação de liberdade que às vezes
beirava a anarquia, também a divisão da soberania entre o gover­
no e a indústria, no século XIX, perm itiu que até os pobres gozas­
sem de liberdades que compensavam, em parte, a sua situação
miserável. O atual ceticismo quanto ao futuro da liberdade apoia-
-se largamente nesse fato. H á quem afirme, como Hayek, que as
KA RL PO LAN YI

instituições livres foram produto da economia de mercado; elas


deverão dar lugar à servidão, quando essa economia desaparecer.
Outros, como Burnham, afirmam a inevitabilidade de uma nova
forma de servidão, chamada “gerencialismo”.
A rgum entos dessa natureza dem onstram a que ponto o pre­
conceito econom icista continua a campear. Esse determ inism o,
com o vim os, é apenas um n om e diferente para o m ecanism o de
mercado. Está longe de ser lógico determinar os efeitos da sua au­
sência com base num a necessidade econôm ica que decorre da sua
presença. E certam ente é contrário à experiência anglo-saxônica.
N em o congelam ento da m obilidade dos trabalhadores nem o re­
crutam ento m ilitar seletivo revogaram as liberdades essenciais
do povo norte-am ericano, com o poderá atestar qualquer um que
houver passado n os Estados U n idos os anos cruciais de 1940-
1943. A Grã-Bretanha introduziu durante a guerra um planeja­
m ento com pleto da econom ia, elim inando a separação entre go­
verno e indústria da qual havia brotado a liberdade do século XIX;
no entanto, nunca as liberdades públicas estiveram mais assegura­
das que no auge da em ergência. N a verdade, pod em os ter tanta
liberdade quanta desejem os criar e salvaguardar. N ão existe um
determ inante ú n ic o da sociedade hum ana. As garantias institu­
cionais da liberdade pessoal são compatíveis com qualquer siste­
ma econôm ico. Som ente na sociedade de m ercado é que o m eca­
nism o econôm ico veio a ditar a lei.
O que se afigura com o o problem a do capitalism o para nossa
geração é, na realidade, o problema m uito m aior de um a civiliza­
ção industrial. O liberal econôm ico fica cego para esse fato. Ao
defender o capitalism o com o sistema econôm ico, ele ignora o de­
safio da Idade da M áquina. Entretanto, os perigos que hoje fazem
estremecer os m ais fortes transcendem a econom ia. As preocupa­
ções idílicas com a luta contra os trustes e a taylorização foram
ultrapassadas por H iroshim a. O barbarism o científico segue de
perto os nossos passos. Os alemães estavam planejando um apa­
relho para provocar a emanação de raios solares m ortais. E real­

226
NO SSA O BSO LETA MENTALIDADE DE MERCADO

mente produzim os um a explosão de raios m ortais que conseguiu


apagar a luz do Sol. N o entanto, os alemães tinham um a filosofia
perversa, e nós, um a filosofia hum ana. Neste paradoxo devem os
aprender a ver o sím bolo do perigo que corremos.
Entre aqueles que, nos Estados U nidos, têm consciência das
dim ensões do problem a, duas tendências são discerníveis. uns
acreditam nas elites e aristocracias, no gerencialismo e na grande
empresa. Acham que o conjunto da sociedade deve adaptar-se
mais intim am ente ao sistema econôm ico, o qual eles gostariam de
manter inalterado. Esse é o ideal do Admirável M undo N ovo, em
que o indivíduo é condicionado a respaldar um a ordem que foi
concebida para ele pelos que sabem mais do que ele. O utros, ao
contrário, acreditam que, num a sociedade verdadeiram ente de­
mocrática, o problem a da indústria se resolveria pela intervenção
planejada dos próprios produtores e consum idores. Esse tipo de
ação consciente e responsável é, com efeito, um a das encarnações
da liberdade num a sociedade complexa. Mas, com o sugere o con ­
teúdo deste artigo, tal esforço só poderá ter êxito se for disciplina­
do por um a visão global do hom em e da sociedade que seja m uito
diferente da que herdam os da econom ia de mercado.
Aristóteles descobre a economia 1

É assombroso o descaso com que passou a ser tratada, em nossa


época, a Economia de Aristóteles. Nenhum pensador foi ouvido
sobre um a diversidade m aior de temas do que ele, ao longo de
muitos séculos. No entanto, num assunto a que ele dedicou um
esforço significativo e que tam bém está entre as questões vitais
para a nossa geração, a economia, seus ensinamentos são julgados
inadequados pelos principais espíritos da época, a ponto de serem
tidos como irrelevantes.12
A influência aristotélica na economia urbana medieval, exerci­
da por meio de Santo Tomás de Aquino, foi tão grande quanto a
de Adam Smith e David Ricardo, posteriormente, na economia
mundial do século XIX. Naturalmente, poderiamos dizer que, com
0 estabelecimento do sistema de mercado e a ascensão posterior
das escolas clássicas, as doutrinas aristotélicas sobre o assunto en­
traram em eclipse. Mas a questão não fica por aí. Os mais francos
dentre os economistas modernos parecem achar que quase tudo
que Aristóteles escreveu sobre as questões da subsistência do h o ­

1 Do capítulo 5, “Aristotle Discovers the Economy”, p. 64-94, de Karl Polanyi, Conrad M.


Arensberg e Harry W. Pearson (orgs.), Trade and M arket in the Early Empires. Glencoe:
The Free Press, 1957. [A seção deste capítulo intitulada “O anonimato da economia na
sociedade antiga” é uma exposição especialmente clara de algumas das principais
idéias de Polanyi e dos conceitos que ele usa para analisar as economias primitivas e
arcaicas. N.E.]
2 J. A. Schumpeter, History ofEconomicAnalysis (Nova York, 1954), p. 57: “O desempe­
nho de Aristóteles é [...] um senso comum decoroso, prosaico, ligeiramente medíocre
e mais do que um tantinho pomposo.” Schumpeter não tinha dúvida de que Aristóte­
les estava empenhado em “analisar mecanismos reais de mercado. Várias passagens
mostram [...] que Aristóteles tentou fazê-lo e não conseguiu” (p. 60). O mais recente
estudo detalhado é igualmente negativo quanto aos méritos do autor: cf. C. J. Soudek,
“Aristotle’s Theory o f Exchange”, Proceedings o f American Philosophical Society, V, 96,
NR, 1 (1952). O artigo de Joseph J. Spengler, “Aristotle on Economic Imputation and
Related Matters”, Southern Economics Journal XXI (abril de 1955), 386, n° 59, é a única
exceção: “Aristóteles não se interessou pelo m odo como os preços são formados no
mercado.”

229
KARL POLANYI

mem sofreu de um a fraqueza perniciosa. De seus dois temas gerais


— a natureza da economia e os problemas da troca comercial e
do preço justo — , nenhum foi conduzido a uma conclusão clara.
Ele apresentou o hom em como naturalm ente autossuficiente,
como qualquer outro animal. Portanto, a economia hum ana não
provinha da infinitude de necessidades e desejos hum anos, ou,
conforme a enunciação atual, da realidade da escassez. Quanto
às duas questões políticas citadas, a troca comercial proveio, se­
gundo Aristóteles, da ânsia antinatural de ganhar dinheiro, que
obviamente era ilimitada, ao passo que os preços deviam confor-
mar-se às regras da justiça (mantendo-se obscura a fórmula real).
Há tam bém suas observações sobre o dinheiro, esclarecedoras,
ainda que não totalmente coerentes, e sua intrigante imprecação
contra a cobrança de juros. Esse resultado minguado e fragmenta­
do foi atribuído sobretudo a uma tendenciosidade não científica
— a preferência pelo que deveria ser, no cotejo com aquilo que é.
Que os preços, por exemplo, dependessem da posição relativa dos
parceiros de troca na comunidade parecia, de fato, uma perspecti­
va quase absurda.
Essa nitidamente circunscrita ruptura com o corpo de pensa­
m ento herdado da Grécia clássica merece mais atenção do que
tem recebido até aqui. A estatura do pensador e a dignidade do
assunto deveríam fazer-nos hesitar em aceitar como definitivo o
esquecimento dos ensinamentos de Aristóteles sobre a economia.

Apresentaremos aqui um a avaliação muito diferente em relação


à posição do filósofo. Ele será visto como alguém que atacou o pro­
blema da subsistência do homem com um radicalismo sem parale­
lo com qualquer autor posterior que tenha escrito sobre o assunto
— nenhum penetrou mais fundo na organização material da vida
humana. Na verdade, Aristóteles enunciou em toda a sua amplitu­
de a questão do lugar ocupado pela economia na sociedade.
Teremos de recuar m uito para explicar p o r que ele pensou o
que pensou daquilo que chamamos “economia”, ou o que o impe­
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

liu a considerar o ganho de dinheiro no comércio e o preço justo


como as principais questões políticas. Além disso, concordamos
em que a teoria econômica não tem esperança de se beneficiar do
Livro I da Política nem do Livro V da Ética a Nicômaco. A análise
econômica, em últim a instância, almeja elucidar as funções do
mecanismo de mercado, um a instituição que ainda era desconhe­
cida por Aristóteles.
Tocando na raiz de nossa abordagem, a Antiguidade clássica foi
situada de maneira completamente equivocada pelos historiado­
res econômicos na escala temporal que levou ao comércio de mer­
cado. Apesar das intensas atividades de troca e dos usos bastante
avançados do dinheiro, na época de Aristóteles a vida comercial
grega ainda estava bem nos prim órdios do comércio mercantil.
Suas imprecisões e obscuridades ocasionais, para não falar de seu
pretenso alheamento filosófico da vida, devem ser atribuídas a
dificuldades sobre fenômenos recentes, não a um a suposta insu­
ficiência de discernimento quanto a práticas pretensamente cor­
rentes na Grécia contemporânea, alimentadas por um a tradição
milenar das civilizações do Oriente.
Por mais que alguns dos Estados gregos orientais já estivessem
avançando decididamente para o hábito de mercado, isso deixa a
Grécia clássica ainda consideravelmente abaixo do nível de trocas
comerciais que mais tarde lhe foi atribuído. Portanto, ao contrário
do que se presumiu com tanta confiança, é possível que os gregos
não tenham sido simples retardatários na adoção das práticas co­
merciais desenvolvidas pelos impérios do Oriente. Em vez disso,
eles chegaram tardiamente a um m undo civilizado e sem merca­
do, e foram obrigados pelas circunstâncias a se tornar pioneiros
nos novos métodos de troca que, quando muito, estavam come­
çando a se voltar para o comércio de mercado.
Longe de dim inuir a importância do pensamento aristotélico
sobre as questões econômicas, como seria a impressão superficial,
isso deve, ao contrário, aum entar muito o seu peso. Pois, se nossa
interpretação do cenário mesopotâmico como “não mercantil” é

231
KARL POLANYI

fiel à realidade — e temos motivos para acreditar que assim seja


— , temos todas as razões para crer que possuímos, nos textos de
Aristóteles, o testemunho ocular de alguns traços primitivos de
um comércio mercantil incipiente, em seu primeiríssimo aparech
m ento na história da civilização.

0 anonimato da economia na sociedade antiga


Aristóteles estava tentando dom inar no plano teórico os elemen­
tos de um novo fenômeno social complexo, in statu nascendi.
A economia, ao atrair pela prim eira vez a atenção consciente
do filósofo, sob a forma de trocas comerciais e diferenciais de pre­
ço, já estava destinada a seguir seu rum o difersificado em direção
à sua realização, cerca de vinte séculos depois. Aristóteles adivi­
nhou o espécimen plenamente amadurecido a partir do embrião.3
Para lidar com essa transição do anonimato para uma existên­
cia separada, o instrum ento conceituai que apresentamos é a dis­
tinção entre a condição enraizada ou desenraizada da economia
em relação à sociedade. A economia desenraizada do século XIX
situou-se fora do resto da sociedade, mais especialmente do sis­
tem a político e governamental. N um a econom ia de mercado,
a produção e a distribuição de bens materiais são efetuadas, em
princípio, por meio de um sistema autorregulador de mercados
formadores de preços. São regidas por leis próprias, as chamadas
leis da oferta e da procura, e motivadas pelo medo da fome e pela
esperança do ganho. Não são os laços consanguíneos, as imposi­
ções legais, a obrigação religiosa, a vassalagem ou a magia que
criam as situações sociológicas que fazem os indivíduos participar
da vida econômica, e sim, especificamente, instituições econômi­
cas como a iniciativa privada e o sistema salarial.
Estamos bastante familiarizados com essas situações, é claro.
Num sistema de mercado, a subsistência hum ana é assegurada por

3 Cf. Karl Polanyi, The Great Transformation, Nova York, 1944, p. 64 [A grande transfor­
mação: as origens da nossa época, trad. Fanny Wrobel, revisão técnica Ricardo Benza-
quen de Araújo. 2a ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000].

232
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

meio de instituições acionadas por motivações econômicas e regi­


das por leis especificamente econômicas. Pode-se imaginar o vasto
e abrangente mecanismo da economia funcionando sem a in ­
tervenção consciente da autoridade humana, do Estado ou do go­
verno; nenhum a outra motivação senão o pavor da miséria e o
desejo de lucros legítimos precisa ser invocada; nenhum a outra
exigência jurídica é imposta senão a proteção da propriedade e o
cumprimento dos contratos; dada a distribuição dos recursos, do
poder aquisitivo e das escalas individuais de preferência, o resulta­
do será um ótimo de satisfação das necessidades para todos.
Eis aí, portanto, a versão oitocentista de um a esfera econômi­
ca independente na sociedade. Ela se distingue em termos motiva-
cionais, pois recebe impulso da ânsia do ganho monetário. É ins­
titucionalm ente separada do centro político e governamental.
Alcança um a autonomia que a investe de leis próprias. Nela temos
o exemplo extremo de um a economia desenraizada, que tom a
como ponto de partida o uso disseminado do dinheiro como meio
de troca.
Como é natural, a transição das economias enraizadas para as
desenraizadas é um a questão de grau. Mas a distinção é funda­
mental para se compreender a sociedade moderna. Seus antece­
dentes sociológicos foram debatidos pela prim eira vez por Hegel,
na década de 1820, e desenvolvidos por Karl Marx na década de
1840. Sua descoberta empírica, em termos de história, foi feita por
Sir Henry Sumner Maine nas categorias de status e contractus do
direito romano, na década de 1860; por fim, a situação foi recolo­
cada, nos termos mais abrangentes da antropologia econômica,
por Bronislaw Malinowski na década de 1920.
Sir H enry Sumner Maine propôs-se provar que a sociedade
moderna se erigia sobre o contractus, enquanto a sociedade antiga
apoiava-se no status. O status era estabelecido pelo nascimento
— pela posição do indivíduo na família — e determinava os direi­
tos e deveres da pessoa. Derivava do parentesco e da adoção; per­
sistiu durante o feudalismo e, com algumas ressalvas, até a era de
KARL POLANYI

igualdade cidadã estabelecida no século XIX. Já no direito romano,


porém , o status fora aos poucos substituído pelo contractus, ou
seja, por direitos e deveres decorrentes de acordos bilaterais. Mais
tarde, Maine revelou a universalidade da organização por status
no caso das comunidades aldeãs da índia.
Na Alemanha, Maine encontrou um discípulo em Ferdinand
Tõnnies, cuja concepção foi resumida no título de um de seus li­
vros, Comunidade e sociedade [Gemeinschaft und Gesellschaft), de
1888. A “com unidade” correspondia ao status; a “sociedade”, ao
contractus. Max Weber usava com frequência o term o Gesellschaft
no sentido do grupo baseado no contrato, e Gemeinschaft no sen­
tido do grupo baseado no status. Portanto, sua análise do lugar da
economia na sociedade, em bora às vezes influenciada por Mises,
teve por modelo o pensamento de Marx, Maine e Tõnnies.
Entretanto, a conotação afetiva dada ao status e ao contractus,
assim como às correspondentes “com unidade” e “sociedade”, foi
muito diferente entre Maine e Tõnnies. Para Maine, a situação pré-
- contractus da humanidade representava a era obscurantista do tri-
balismo. A introdução do contrato, a seu ver, tinha emancipado o
indivíduo da servidão do status. As simpatias de Tõnnies ficaram
com a intimidade da comunidade, em contraste com a impessoali­
dade da sociedade organizada. A “comunidade” foi idealizada por
ele como um estado em que as vidas hum anas inseriam-se num
tecido da experiência comum, ao passo que, a seu ver, a “sociedade”
nunca ficou muito longe do elo do dinheiro, como chamou Thomas
Carlyle a relação das pessoas ligadas apenas pelos vínculos do m er­
cado. O ideal de política de Tõnnies era o restabelecimento da co­
munidade, se bem que não retornando ao estágio pré-sociedade
da autoridade e do paternalismo, porém avançando para um a for­
ma superior de comunidade de um estágio pós-sociedade, que se
seguiría a nossa civilização atual. Ele imaginou essa comunidade
como um a fase cooperativa da existência hum ana, que conservaria
as vantagens do progresso tecnológico e da liberdade individual, ao
mesmo tempo resgatando a integridade da vida.

234
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

Os tratam entos dados por Hegel e Marx, Maine e Tõnnies à


evolução da civilização hum ana foram aceitos por m uitos estu­
diosos do continente europeu como um resumo da história da
sociedade. Durante m uito tempo, não houve qualquer avanço nas
trilhas desbravadas por eles. Maine tinha lidado com o assunto
principalmente em sua pertinência à história do direito, incluindo
suas formas corporativas, como na índia rural; a sociologia de
Tõnnies reavivou os contornos da civilização medieval. Só depois
da postura fundamental de Malinowski sobre a natureza da so­
ciedade primitiva foi que essa antítese veio a se aplicar à econo­
mia. Tornou-se então possível dizer que o status, ou Gemeinschaft,
predominava quando a economia estava arraigada em institui­
ções não econômicas; o contractus, ou Gesellschaft, era caracterís­
tico da existência de um a economia motivacionalmente distinta
na sociedade.
Em termos de integração, é fácil vermos a razão disso. O con­
tractus é o aspecto legal da troca. Por isso não surpreende que uma
sociedade baseada no contractus possua um a esfera econômica de
troca institucionalmente separada e motivacionalmente distinta,
ou seja, a do mercado. O status, por outro lado, corresponde a
uma situação anterior, que mais ou menos acompanha a recipro­
cidade e a redistribuição. Enquanto prevalecem estas últimas for­
mas de integração, não há necessidade de surgir um conceito de
economia. Nesse caso, os elementos da economia estão enraizados
em instituições não econômicas, enquanto o processo econômico
em si é instituído por parentesco, casamento, grupos etários, so­
ciedades secretas, associações totêmicas e solenidades públicas.
Nesse contexto, a expressão “vida econômica” não teria um sen­
tido óbvio.
Esse estado de coisas, tão intrigante para a mente m oderna,
não raro é marcantemente exibido nas comunidades primitivas.
Muitas vezes, é quase impossível para o observador recolher e
m ontar os fragmentos do processo econômico. Para o indivíduo,
suas emoções não transmitem nenhuma experiência que ele possa

235
KARL POLANYI

identificar como “econômica”. Ele simplesmente não tem cons-


ciência de nenhum interesse dominante, ligado à sua subsistência, J
que lhe seja possível reconhecer como tal. Mas a falta desse concei- -J
to não parece atrapalhá-lo no desempenho de suas tarefas cotidia- |
nas. Antes, é duvidoso que a consciência de um a esfera econômica f
não tendesse a reduzir sua capacidade de responder espontânea- í
mente às necessidades da subsistência, organizadas que são, em $
especial, por outros canais que não os econômicos. f
Tudo isso é efeito da maneira como a economia se institucio- í
naliza nessas comunidades. As motivações do indivíduo, denomi- ’
nadas e articuladas, costumam provir de situações criadas por fa- i
tos de ordem não econômica — familiares, políticos ou religiosos;
o lugar da economia da família menor, nuclear, mal chega a passar
de um ponto de interseção entre linhas de atividades realizadas
por grupos de parentesco maiores, em várias localidades; a terra
é usada em com um como pasto, ou seus diversos usos podem
ser reservados a membros de grupos diferentes; o trabalho é uma
simples abstração do auxílio “solicitado” oferecido por diferentes
equipes de ajudantes em ocasiões definidas; como resultado, o
processo segue a rotina de estruturas diferentes.
Antes dos tempos modernos, as formas de subsistência desper­
tavam m uito menos a atenção consciente do hom em do que a
maioria dos outros aspectos de sua vida organizada. Em contraste
com o parentesco, a magia ou a etiqueta, com suas palavras-chave
poderosas, a economia continuava sem nome. Em geral, não existia
um term o para designar o conceito de economia. Até onde pode­
mos julgar, o conceito estava ausente. O clã e o totem, o sexo e o
grupo etário, o poder da mente e as práticas cerimoniais, o costume
e o ritual, todos eram instituídos por sistemas sumamente comple­
xos de símbolos, enquanto a economia não era designada por ne­
nhum a palavra que transmitisse a importância do abastecimento
de víveres para a sobrevivência animal do ser hum ano. Não por
acaso, até época muito recente, não existia nenhum nome que sin­
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

tetizasse a organização das condições materiais de vida, nem mes­


mo nas línguas dos povos civilizados. Faz apenas duzentos anos
que uma seita esotérica de pensadores franceses cunhou o termo
économistes, o qual passou a usar para designar seus próprios mem­
bros. Eles afirmavam que haviam descoberto a economia.
A razão prim ordial para a ausência de um conceito de econo­
mia é a dificuldade de identificar o processo econômico em situa­
ções em que ele está enraizado em instituições não econômicas.
Somente o conceito de economia, não a economia em si, é cla­
ro, fica em suspenso. A natureza e a sociedade têm um a abundân­
cia de movimentos de localização e de apropriação que formam
o corpo da subsistência do homem. As estações do ano trazem o
tempo da colheita, com sua tensão e seu relaxamento; o comércio
a longa distância tem seu ritm o de preparação e de confraterni­
zação, na solenidade concludente do retorno dos que se aventu­
raram; e toda sorte de artefatos, seja canoas ou adornos refinados,
é produzida e vem a ser usada por vários grupos de pessoas; todos
os dias da semana preparam -se alimentos no lume da família.
Cada evento contém em si, necessariamente, um conjunto de ele­
mentos econômicos. Apesar disso tudo, a unidade e a coerência
desses fatos não se reflete na consciência dos homens. É que a série
de interações entre o hom em e seu meio natural costuma abarcar
várias significações, das quais a dependência econômica é apenas
uma. Outras formas de dependência mais vividas, mais dram áti­
cas ou mais emocionais podem entrar em ação, impedindo que os
movimentos econômicos formem um todo significativo. Quando
essas outras forças encarnam-se em instituições permanentes, o
conceito de econômico torna-se mais confuso do que esclarecedor
para o indivíduo. A antropologia oferece muitos exemplos:1

1. Quando o local físico da vida de um homem não é identificável


com nenhum a parte ffancamente manifesta da economia, seu ha­
bitat— o lar e seu meio tangível — tem pouca pertinência econô­
mica. Isso ocorre, em geral, quando movimentos pertencentes a

237
KARl POLANYI

diferentes processos econômicos se entrecruzam num mesmo lu­


gar, enquanto movimentos que fazem parte de um mesmo proces­
so distribuem-se por diversos locais desvinculados.
Margaret Mead descreveu como um arapesh da Nova Guiné,
de língua papuá, veria seu meio físico:
O arapesh típico, portanto, vive pelo menos parte do tempo (pois
cada homem vive em duas ou mais aldeolas, bem como em caba­
nas da horta, cabanas próximas do bosque de caça e cabanas pró­
ximas de sua palmeira de sagu) numa terra que não lhe pertence.
Junto da casa há porcos que sua mulher alimenta, mas que per­
tencem a um dos parentes dela ou dele. Ao lado da casa há co­
queiros e arequeiras pertencentes também a outras pessoas, cujos
frutos ele jamais tocará sem a permissão do dono ou de alguém
que o dono tenha autorizado a dispor das frutas. Ele caça no bos­
que pertencente a um cunhado ou um primo, pelo menos duran­
te parte do tempo que dedica à caça; no resto do tempo, outros
vão juntar-se a ele em seu próprio bosque, caso possua algum.
Ele cultiva seu saguzeiro em saguzais de terceiros, bem como nos
seus. Das posses pessoais de sua casa, as que têm algum valor
permanente, como panelas grandes, pratos bem entalhados, boas
lanças, já foram destinadas a seus filhos varões, mesmo que estes
ainda sejam crianças pequenas. Seu porco ou porcos ficam muito
longe, em outras aldeolas; suas palmeiras espalham-se por cinco
quilômetros numa direção, três em outra; seus saguzeiros dis­
persam-se por distâncias ainda maiores, e seus canteiros de horta
ficam aqui e ali, quase sempre em terras alheias. Quando há carne
secando em seu fumeiro, ou é de caça morta por outra pessoa —
um irmão, um cunhado, o filho de uma irmã etc. — que lhe foi
dada, caso em que ele e seus familiares podem comê-la, ou é car­
ne que ele mesmo caçou e está defumando para dar a alguém,
pois comer a própria caça, nem que seja apenas uma avezinha, é
um crime a que só se rebaixariam os deficientes morais, o que,
entre os arapesh, geralmente significa deficientes mentais. Se a
casa em que ele está é nominalmente sua, terá sido ao menos par­
cialmente construída com estacas e tábuas de casas de outras pes­
soas, desmontadas ou temporariamente abandonadas, das quais
ele terá tomado madeira emprestada. Ele não corta os caibros
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

para adequá-los a sua casa, se forem muito compridos, porque


mais tarde eles podem vir a ser necessários para uma casa de ter­
ceiros que tenha forma ou tamanho diferentes. [...] É essa, pois, a
imagem das associações econômicas comuns de um homem .4

A complexidade das relações sociais que explicam esses dados


do cotidiano é assombrosa. Mas é somente à mercê dessas rela­
ções, que lhe são conhecidas, articuladas e dispostas de maneira
significativa no decorrer de sua experiência pessoal, que o arapesh
consegue se situar num a situação econômica cujos elementos se
dispersam, como peças de quebra-cabeça, em dezenas de relações
sociais diferentes, de caráter não econômico.
É o que basta dizermos sobre o aspecto de localização do p ro­
cesso econômico nas situações em que prevalece a reciprocidade.

2. Na sociedade primitiva, outra grande razão para a ausência de


um efeito integrador da economia é sua falta de quantitatividade.
Em geral, quem possui dez dólares não chama cada um p or um
nome separado, mas os concebe como unidades intercambiáveis
que podem substituir umas às outras, podem ser somadas ou sub­
traídas. Fora do recurso operacional de que dependem term os
como “reserva” ou “balanço de lucros e perdas” para ter sentido,
a ideia de economia seria praticamente desprovida de qualquer
objetivo prático. Não conseguiría disciplinar a conduta nem orga­
nizar e sustentar o esforço. Mas o processo econômico não forne­
ce naturalmente esse recurso; o fato de as questões de subsistência
ficarem sujeitas a cálculos é um mero resultado da maneira como
são institucionalizadas.
A economia de Trobriand, por exemplo, organiza-se como um
contínuo dar e receber, mas não há possibilidade de fazer um b a­
lanço nem de empregar o conceito de reserva. A reciprocidade exi­
ge adequação da resposta, não igualdade matemática. Por conse-

4 Margaret Mead, Cooperation and Competition among Primitive Peoples. Nova York e
Londres, 1937, p. 31.

239
KARL POLANYI

guinte, as transações e decisões não podem ser agrupadas com


nenhum a precisão do ponto de vista econômico, isto é, de acordo
com sua m aneira de afetar a satisfação de necessidades materiais.
Os números, quando existem, não correspondem aos fatos. Ainda
que a importância econômica de um ato possa ser grande, não há
como avaliar sua importância relativa.
Malinowski listou os diferentes tipos de dar e receber, desde
os presentes gratuitos, num extremo, até o franco escambo co­
mercial, no outro.5 Seu agrupamento de “presentes, pagamentos
e transações” foi feito com sete categorias, que ele correlacionou
com as relações sociológicas em que ocorria cada uma, que soma­
vam oito. Os resultados de sua análise foram reveladores:
a) A categoria dos “presentes gratuitos” era excepcional, já que
a caridade não era necessária nem incentivada, e a ideia de presen­
te estava sempre associada à de um contrapresente adequado (mas
não, é claro, à de equivalência). Até os “presentes gratuitos” eram
interpretados como contrapresentes, dados em troca de algum
serviço fictício prestado ao doador. Malinowski constatou que “os
nativos certamente não pensavam nos presentes gratuitos como
sendo todos da mesma natureza”. Quando falta a ideia de “perda
total”, não é viável fazer o balanço de um a reserva.
b) No grupo das transações, no qual se espera que o presente
seja retribuído de maneira economicamente equivalente, depara­
mos com outro fato gerador de confusão. Essa é a categoria que,
segundo nossas idéias, deveria ser praticamente indistinguível do
comércio. Longe disso. De vez em quando, um mesmíssimo obje­
to é trocado de um lado para outro entre os parceiros, com isso
privando a transação de qualquer propósito ou significado econô­
mico concebível! Pelo simples recurso de devolver um porco a seu
doador, ainda que por um circuito indireto, a troca de equiva-

5 B. Malinowski, Argonauts o fth e Western Pacific, cap. VI [Argonautas do Pacífico Ociden­


tal: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova
Guiné Melanésia, pref. Sir James Georgè Frazer, trad. Anton P. Carr e Ligia A. C. Men­
donça, rev. Eunice Ribeiro Durham. 3a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984], [N.E.] j

240
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

lências, em vez de ser um passo na direção da racionalidade eco­


nômica, revela-se um a salvaguarda contra a intromissão de con­
siderações utilitárias. O único propósito dessa troca é tornar as
relações mais próximas, reforçando os laços de reciprocidade.
c) O escambo utilitário [gimwali] distingue-se de qualquer ou­
tra forma de doação recíproca de presentes. Enquanto, na troca
cerimonial de peixes por inhame [wasi], existe em princípio uma
adequação entre os dois lados, de tal sorte que um a pescaria fraca
ou uma quebra da colheita, por exemplo, reduzem a quantidade
oferecida, na troca de peixe por inhame como escambo há pelo
menos um simulacro de barganha. Essa perm uta caracteriza-se
ainda pela ausência de parcerias especiais e, quando há artefatos
envolvidos, por um a restrição a artigos recém-manufaturados —
os de segunda mão teriam um valor pessoal ligado a eles.
d) Nas relações sociologicamente definidas — que existem em
grande número — , a troca costuma ser desigual, conforme conve­
nha à relação. Assim, os movimentos de apropriação de bens e
serviços são comumente instituídos de um m odo que torna cer­
tas transações irreversíveis e faz com que muitos bens não sejam
intercambiáveis.
Portanto, é difícil esperar que a quantitatividade funcione no
vasto domínio da subsistência incluído na categoria de “presentes,
pagamentos e transações”.

3. Outro conceito familiar que não é aplicável às condições prim i­


tivas é o de propriedade como direito de dispor de objetos defini­
dos. Por conseguinte, nenhum inventário direto das posses é viá­
vel. Temos aí um a variedade de direitos de pessoas diferentes em
relação a um mesmo objeto. Com essa fragmentação, a unidade
do objeto, como propriedade, é destruída. Em geral, o movimento
apropriativo não tem como referente o objeto completo — diga­
mos, um lote de terra — , mas apenas seus usos distintos, o que
priva o conceito de propriedade de sua eficácia em relação aos
objetos.

241
KARl POLANYI

4. As transações econômicas propriamente ditas praticamente não


aparecem nas comunidades organizadas por parentesco. Em tem ­
pos primitivos, as transações eram atos públicos, praticados com
respeito ao status das pessoas e de outras coisas dotadas de movi­
mento próprio: a noiva, a esposa, o filho, o escravo, o boi, o bárco.
Entre os povos assentados, as mudanças de situação de um pedaço
de terra também eram publicamente atestadas.
Naturalmente, essas transações de status tinham importantes
implicações econômicas. Namoro, noivado e casamento, adoção e
emancipação, todos eram acompanhados por movimentações de
bens, algumas imediatas, algumas vindo depois, a longo prazo. Por
maior que fosse a significação econômica dessas transações, ela
ficava em segundo lugar em relação à importância delas no esta­
belecimento da posição das pessoas no contexto social. Então,
como foi que as transações referentes aos bens vieram a se separar
das transações típicas de parentesco, relacionadas com as pessoas?
Enquanto apenas alguns bens de prestígio, como terras, gado e
escravos, eram alienáveis, não havia necessidade de transações eco­
nômicas separadas, já que a transferência desses bens acompanha­
va a mudança de status, ao passo que um a transferência de bens
sem essa m udança não seria aprovada pela coletividade. Aliás, não
se podia ligar facilmente uma valorização econômica a bens cujo
destino estava inseparavelmente ligado ao de seus donos.
Em tempos primitivos, as transações separadas, referentes aos
bens, restringiam-se aos dois bens mais importantes: a terra e o
trabalho. Portanto, o s ‘‘bens” que foram os últimos a se tornar li­
vremente alienáveis foram os primeiros a se tornar objeto de tran­
sações limitadas. Limitadas porque, durante muito tempo, a terra
e o trabalho continuaram a fazer parte do tecido social e não p o ­
diam ser arbitrariamente mobilizados sem destruí-lo. Nem a terra
nem os hom ens livres podiam ser diretam ente vendidos. Sua
transferência era condicional e tem porária. A alienação parava
antes da transferência irrestrita da posse. Entre as transações eco­
nômicas de Arafa, cidade tribal-feudal do século XIV a.C. às m ar­

242
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

gens do rio Tigre, as referentes à terra e ao trabalho ilustram esse


aspecto. Entre os habitantes de Nuzi, a propriedade, tanto de ter­
ras quanto de pessoas, pertencia a coletividades — clãs, famílias,
aldeias. Apenas o uso era transferido. Podemos ver como era ex­
cepcional a transferência da posse da terra, em tem pos tribais,
pelo cenário dramático do episódio em que Abraão compra dos
hititas uma caverna que serviria de túm ulo para sua família.
O peculiar é que a transferência “apenas do uso” é bem mais
“econômica” do que seria a da posse. Na troca da posse, as consi­
derações de prestígio e os fatores afetivos podem ter grande peso;
na alienação do uso, prevalece o componente utilitário. Em ter­
mos modernos, pode-se dizer que o juro, que é o preço do uso no
correr do tempo, foi um a das primeiras quantidades econômicas
a serem instituídas.
Com o tem po, a fina camada econômica pode “se soltar” da
transação de status cujo referencial é uma pessoa. O elemento eco­
nômico pode então m udar de mãos sozinho, sendo a transação
camuflada como um a transação de status, a qual, entretanto, tem
de ser fictícia. Como era proibida a venda de terras a pessoas que
não fossem m em bros do clã, os direitos residuais do clã de re­
clamar a terra do com prador podiam ser anulados p o r dispo­
sitivos legais. Um destes era a adoção fictícia do com prador ou,
alternativamente, o fictício consentimento dos m embros do clã
à venda.
O utra linha de desenvolvimento rum o a transações econômi­
cas separadas passou, como vimos, pela transferência “apenas do
uso”, com isso mantendo-se expressamente os direitos residuais de
propriedade do clã ou da família. O mesmo objetivo era atendido
pela troca recíproca de “usos” de objetos diferentes, enquanto se
assumia o compromisso de devolver os objetos em si.
A forma ateniense clássica de hipoteca [prasis epi lysei] era,
provavelmente, um a dessas transferências apenas do uso, mas que
(excepcionalmente) deixava o devedor in situ, com o com pro­
misso de dar ao credor um a parte da colheita a título de juros.

243
KARL POLANYI

O credor era salvaguardado pela colocação de um a pedra de de­


marcação na qual eram inscritos o seu nome e o m ontante da dí­
vida, embora não fossem mencionados a data da quitação final e
os juros. Se é válida esta interpretação do horos* usado na Ática, o
lote de terra era amistosamente hipotecado por um período inde­
finido, em troca de um a participação na colheita. A falta de paga­
mento e a subsequente penhora deviam ocorrer m uito raramente,
ou seja, por confisco das terras do devedor ou pela ruína de toda a
sua família.
Na quase totalidade dos casos, a transferência separada do
“uso” servia ao propósito de fortalecer os vínculos da família e do
clã com seus laços sociais, religiosos e políticos. Assim, a explora­
ção econômica do uso era compatibilizada com a reciprocidade
amistosa desses laços. M antinha o controle da coletividade sobre
os arranjos feitos por seus membros individuais. Ainda assim, o
fator econômico mal se registrava nas transações.

5. Os serviços, não os bens, constituíam a riqueza em muitas socie­


dades arcaicas. Eram executados por escravos, criados e contratados.
Todavia, fazer seres humanos se disporem a servir, em decorrência
do status, é um objetivo do poder político (em contraste com o
econômico). Com o aumento dos ingredientes materiais da rique­
za, em vez dos não materiais, o método político de controle recuou
e deu lugar ao chamado controle econômico. Hesíodo, o camponês,
falou de parcimônia e agricultura, séculos antes de os filósofos aris­
tocráticos, Platão e Aristóteles, conhecerem qualquer outra disci­
plina social além da política. Passados dois milênios, na Europa
Ocidental, um a nova classe média produziu uma profusão de mer­
cadorias e usou a “economia” para argumentar contra seus senho­
res feudais. Um século depois, a classe operária de um a era indus­
trial herdou dela essa categoria, como instrumento de sua própria
emancipação. A aristocracia continuou a monopolizar o governo e

* Assim era chamada a pedra indicativa da hipoteca. [N.T.]

244
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

a olhar com desdém para a produção de mercadorias. Por isso, en­


quanto o trabalho dependente predomina como elemento na ri­
queza, a economia tem apenas uma existência nebulosa.

6. Na filosofia de Aristóteles, os três bens da fortuna são: honra


e prestígio, segurança da vida e da integridade física, e riqueza.
O primeiro representa o privilégio e o respeito, a hierarquia e a
precedência; o segundo garante a segurança contra inimigos visí­
veis e secretos, contra a traição e a rebelião, a revolta do escravo, a
prepotência dos fortes e até a proteção contra o braço da lei; o
terceiro, a riqueza, é a bem-aventurança da posse, principalmente
de relíquias de família ou bens preciosos e afamados. Ê verdade
que, em geral, bens utilitários, alimentos e materiais são acumula­
dos por quem possui honra e segurança, mas a glória supera os
bens. A pobreza, por outro lado, acompanha o status inferior; en­
volve trabalhar pelo próprio sustento, amiúde obedecendo a or­
dens de terceiros. Quanto m enor a restrição às ordens, mais abjeta
é a condição. Não é tanto o trabalho braçal — como m ostra a
posição sempre respeitada do agricultor — , mas a dependência
dos caprichos pessoais e das ordens de outro hom em que leva o
servo a ser desprezado. Mais uma vez, a realidade econômica nua
da renda inferior fica ocultada da visão.

7. Os agatha [bens dignos] são os bens mais elevados da vida,


aquilo que há de mais desejável e também de mais raro. Esse é,
de fato, um contexto surpreendente para depararmos com a ca­
racterística dos bens que a teoria moderna passou a ver como o
critério do “econômico”, a saber, a escassez. É que a mente pers­
picaz, ao considerar esses valores da vida, há de se impressionar
com a profunda diferença de origem entre a “escassez” deles e
aquilo que o economista nos levaria a esperar. Para este último, a
escassez reflete a mesquinharia da natureza ou o fardo do trabalho
acarretado pela produção. No entanto, as supremas honrarias e as
distinções mais raras não são escassas por nenhum a dessas duas
KARL POLANYI

razões, mas pela razão óbvia de que não há espaço para se ficar de
pé no alto da pirâmide. A escassez dos agatha é inerente à posição
elevada, à im unidade e ao tesouro: eles não seriam o que são se
estivessem ao alcance de muitos. Daí a ausência, na sociedade ar­
caica, da “conotação econômica” da escassez, quer os bens utilitá­
rios também possam ou não escassear em algumas ocasiões. É que
os valores mais raros não são dessa ordem. No caso deles, a escas­
sez deriva da ordem não econômica das coisas.

8. A autossuficiência de um conjunto de seres humanos, esse pos­


tulado da vida nua e crua, é assegurada quando um suprimento
das “necessidades básicas” fica fisicamente disponível. As coisas a
que se faz referência aqui são aquelas que sustentam a vida e po­
dem ser armazenadas, ou seja, as que duram. Trigo, vinho e azeite
são chrêmata, como também o são a lã e alguns metais. Os cida­
dãos e os membros da família devem poder contar com eles nas
épocas de fome ou de guerra. A quantidade de que a família ou a
cidade “necessita” é um requisito objetivo. A família é a m enor
unidade de consumo, a pólis é a maior; em ambos os casos, o “ne­
cessário” é estabelecido pelas normas da comunidade. Daí a ideia
da quantidade intrinsecamente limitada das “necessidades”, sig­
nificado que m uito se aproxima do de “rações”. Visto que, por cos­
tum e ou por lei, só se estabeleciam equivalências para bens de
subsistência que serviam de unidades de pagamento ou de rem u­
neração, a ideia de “quantidade necessária” foi associada aos bens
essenciais comumente armazenados. O caráter ilimitado dos dese­
jos e necessidades hum anos — o correlato lógico da escassez —
era uma ideia totalmente alheia a essa abordagem.

Estas são algumas das principais razões que durante tanto tem ­
po bloquearam o nascimento de um âmbito de interesse caracte-
risticamente econômico. Nem mesmo para o pensador profissio­
nal o fato de que o ser hum ano tem de comer pareceu digno de
elaboração.

246
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

As indagações de Aristóteles
Talvez pareça paradoxal esperarmos que a últim a palavra sobre
a natureza da vida econômica tenha sido dada por um pensador
que mal viu os primórdios dela. No entanto, vivendo no limiar das
eras econômicas, como viveu, Aristóteles estava em um a posição
privilegiada para apreender os méritos da questão.
É possível, aliás, que isso explique por que, em nossa época,
diante de um a mudança do lugar da economia na sociedade cujo
alcance só é comparável ao daquela que prenunciou, no tem po de
Aristóteles, a chegada do comércio mercantil, podemos ver as per­
cepções aristotélicas sobre as ligações entre economia e sociedade
em seu realismo nu e cru. Temos todos os motivos para buscar em
seus textos formulações muito mais sólidas e significativas sobre
temas econômicos do que se reconheceu em Aristóteles no passa­
do. De fato, os disjecta membra da Ética e da Política transmitem
uma unidade m onum ental de pensamento.
Sempre que tocava num a questão da economia, Aristóteles vi­
sava a desenvolver a relação dela com a sociedade como um todo.
O quadro de referência era a comunidade como tal, que existe
em diferentes níveis em todos os grupos humanos em funciona­
mento. Em termos do nosso linguajar moderno, portanto, a abor­
dagem aristotélica das questões humanas era sociológica. Ao m a­
pear um a área de estudo, ele relacionava todas as questões de
origem e função institucionais com a totalidade da sociedade. Co­
munidade, autossuficiência e justiça eram os conceitos centrais.
O grupo, como interesse contínuo, forma um a comunidade [koi-
nonia] cujos membros são ligados por laços de am or ou afeição
[philia]. Quer se trate do oikos ou da polis, há um a espécie de phi-
lia específica dessa koinonia sem a qual o grupo não pode perdu­
rar. A philia se expressa num com portam ento de reciprocidade
[anti-peponthos],6 ou seja, num a disposição de aceitar alternada-
mente os ônus e de fazer partilhas mútuas. Tudo que é necessário

6 Aristóteles, Ética a Nicômaco [EN] 1.132 b 21,35.

247
KARl POLANYI

is s
para dar continuidade à comunidade e mantê-la, inclusive em sua
autossuficiência [autarkeia], é “natural” e intrinsecamente correto.
Pode-se dizer que a autarcia é a capacidade de subsistir sem de­
pendência de recursos externos. A justiça (ao contrário da nossa
visão) implica que os membros da comunidade tenham posições
desiguais. Aquilo que assegura a justiça, seja em relação à distri­
buição dos bens da vida, à adjudicação de conflitos ou à regulação
de serviços mútuos, é bom, pois é requerido para a continuidade
do grupo. A normatividade é inseparável da realidade.
Estas indicações resumidas do sistema total de Aristóteles de­
vem nos perm itir esboçar suas idéias sobre o comércio e os preços.
O comércio externo é natural quando serve à sobrevivência da
comunidade, m antendo a sua autossuficiência. Sua necessidade
surge assim que a família extensa torna-se m uito numerosa e seus
membros são forçados a se estabelecer em locais separados. Sua
autarcia ficaria então inteiramente prejudicada, não fosse a opera­
ção de doação de um a parte [metadosis] daquilo que se possui em
excesso. O grau em que são trocados os serviços compartilhados
(ou os bens, em algum m om ento) decorre da exigência da philia,
isto é, de que persista a afeição entre os membros. Sem ela, a pró­
pria comunidade perecería. O preço justo, portanto, decorre das
exigências da philia expressas na reciprocidade que está na essên­
cia de todas as comunidades humanas.
Desses princípios decorrem também as restrições aristotélicas
à troca comercial e as máximas para estabelecer equivalências de
troca a preço justo. O comércio, como vimos, é “natural”, desde
que seja u m requisito da autossuficiência. Os preços são estabele­
cidos com justiça quando se ajustam à posição dos participantes
da comunidade, com isso reforçando a afeição em que se funda­
m enta essa comunidade. A troca de bens é um a troca de serviços;
esse, por sua vez, é um postulado de autossuficiência, e é praticado
à guisa de um a partilha recíproca a preços justos. Nessa troca não
há lucro envolvido; os bens têm seus preços conhecidos, fixados de
antemão. Se, excepcionalmente, tiver que haver um a venda lucra­

248
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

tiva, em prol da distribuição conveniente dos bens na praça do


mercado, que ela seja feita por não cidadãos. A teoria do comércio
e do preço em Aristóteles nada mais é que um a simples elaboração
de seu teorema geral da comunidade humana.
Comunidade, autossuficiência e justiça: esses eixos de sua so­
ciologia eram o quadro de referência de seu pensam ento sobre
todos os assuntos econômicos, quer estivessem em jogo a natureza
da economia ou questões políticas.

A propensão sociológica
Quanto à natureza da economia, o ponto de partida de Aristóteles
é empírico, como sempre. Mas até a conceituação dos fatos mais
óbvios é profunda e original.
O desejo de riqueza, proclamara o verso de Sólon, não tinha
limites no homem. Não é verdade, diz Aristóteles, introduzindo o
assunto. A riqueza, com efeito, são as coisas necessárias para sus­
tentar a vida, quando armazenadas em segurança sob a guarda da
comunidade cujo sustento elas representam. As necessidades h u ­
manas, seja as da família ou as da cidade, não são ilimitadas, e
tampouco há escassez de subsistência na natureza. Esse argumen­
to, que soa bastante estranho aos ouvidos modernos, é enunciado
com vigor e cuidadosamente elaborado. Em todos os pontos, a
referência institucional é explícita. A psicologia é evitada, a socio­
logia se impõe.
A rejeição do postulado da escassez (como diriamos) é baseada
nas condições da vida animal, das quais é estendida às da vida
humana. Porventura os animais, desde o nascimento, não encon­
tram o sustento à sua espera em seu meio? E também os homens
não encontram sustento no seio m aterno e, mais tarde, no meio
ambiente, quer sejam caçadores, pastores ou lavradores do solo?
Dado que, para Aristóteles, a escravidão é “natural”, ele pode, sem
qualquer incoerência, descrever a captura de escravos como a caça
de um tipo peculiar de presa e, por conseguinte, representar o ócio
dos cidadãos que são senhores de escravos como suprido pelo

249
KARL POLANYI

meio. Afora isso, não é considerada, e muito menos aprovada, ne­


nhum a necessidade senão aquelas destinadas ao sustento. Portan­
to, se a escassez provém “do lado da demanda”, como diriamos,
Aristóteles a atribui a uma ideia equivocada da boa vida como um
desejo de m aior abundância de bens e prazeres físicos. O elixir da
boa vida — o júbilo do teatro ao longo do dia inteiro, a partici­
pação constante em júris, a ocupação alternativa de cargos, a an-
gariação de votos, as campanhas eleitorais, as grandes festivida­
des, até a emoção da batalha e do combate naval — não pode ser
acumulado nem fisicamente possuído. É verdade que a boa vida
exige, “como é genericamente aceito”, que o cidadão disponha de
tempo livre para se dedicar a servir à pólis. Nesse ponto, mais uma
vez, a escravidão é parte da resposta; outra parte, muito mais inci­
siva, está no pagamento de todos os cidadãos pelo desempenho de
deveres públicos, ou na não admissão de artesãos na cidadania,
medida que o próprio Aristóteles parecia aprovar.
Há mais uma razão pela qual o problema da escassez não surge
em Aristóteles. A economia — como mostra o radical da palavra,
ela é um a questão da vida doméstica ou familiar, o oikos — con­
cerne diretamente à relação das pessoas que compõem a institui­
ção natural da família. O que a constitui não são as posses, e sim
pais, filhos e escravos. Quanto às técnicas da agricultura, da cria­
ção de animais ou outras modalidades de produção, Aristóteles as
exclui do âmbito da economia. A ênfase é completamente institu­
cional e, apenas até certo ponto, ecológica, relegando a tecnologia
à esfera subalterna dos conhecimentos úteis. O conceito aristo-
télico de economia quase perm itiría que nos referíssemos a ela
como um processo institucionalizado pelo qual se garante o sus­
tento. Com liberdade semelhante de formulação, podemos dizer
que Aristóteles atribui a concepção errônea de desejos e necessi­
dades hum anos ilimitados, ou da escassez geral de bens, a duas
circunstâncias: primeiro, a aquisição de gêneros alimentícios atra­
vés de negociantes comerciais, o que introduz o ganho de dinheiro
na busca da subsistência; segundo, a falsa ideia da boa vida como
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

uma acumulação utilitarista de prazeres físicos. Dadas as insti­


tuições corretas de comércio e a compreensão correta da boa vida,
Aristóteles não via margem para o fator escassez na economia
humana. Ele não deixou de ligar isso à existência de instituições
como a escravidão, o infanticídio e um estilo de vida que descon­
sidera o conforto. Exceto por essa referência empírica, sua negação
da escassez poderia ter sido tão dogmática e tão desfavorável às
pesquisas factuais quanto o é o postulado da escassez em nossos
dias. Mas nele, de um a vez por todas, as necessidades hum anas
pressupunham instituições e costumes.
A adesão de Aristóteles ao significado substantivo do econômi­
co foi básica para sua argumentação total. Por que tinha ele de
investigar a economia, afinal de contas? E por que precisou acio­
nar um leque de argumentos contra a convicção popular de que
a importância desse campo obscuramente apreendido estava no
atrativo da riqueza, um a ânsia insaciável que seria comum à es­
pécie humana? Com que propósito ele desenvolveu um teorema
abrangendo as origens da família e do Estado, concebido só para
demonstrar que os desejos e necessidades humanos não são ilimi­
tados e que as coisas úteis não são intrinsecamente escassas? Qual
motivo havia por trás dessa orquestração de um tem a inerente­
mente paradoxal, que, além disso, devia parecer especulativo de­
mais para ser compatível com a inclinação aristotélica acentuada-
mente empirista?
A explicação é óbvia. Dois problemas de política — o comér­
cio e o preço — faziam pressão por uma resposta. A menos que a
questão da troca comercial e do estabelecimento de preços pudes­
se ser ligada aos requisitos da vida comunitária e à sua autossufi-
ciência, não haveria m aneira racional de julgar um a coisa nem
outra, quer na teoria, quer na prática. Se essa ligação efetivamente
se apresentasse, a resposta seria simples: primeiro, o comércio que
servia para restabelecer a autossuficiência estava “de acordo com a
natureza”; o que não tinha essa serventia era “contrário à nature­
za”. Segundo, os preços deveríam ser tais que reforçassem os vín­

251
KARL POLANYI

culos da comunidade; caso contrário, a troca não continuaria a


ocorrer e a comunidade deixaria de existir. O conceito interme­
diário, num caso ou no outro, era a autossuficiênda da comunida­
de. A economia, portanto, consistia nas necessidades da vida -
cereais, azeite, vinho e similares — com as quais a comunidade
subsistia. A conclusão era rigorosa, e nenhum a outra era possível.
Assim, ou a economia dizia respeito às coisas materiais, substanti­
vas, que sustentavam os seres humanos, ou não havia um a ligação
racional, empíricamente dada, entre questões como o comércio e
os preços, por um lado, e o postulado de um a comunidade autos-
suficiente, por outro. Portanto, a necessidade lógica da insistência
aristotélica no significado substantivo do econômico é evidente.
Daí tam bém aquele espantoso ataque ao poem a de Sólon na
abertura de um tratado sobre a economia.

Comércio natural e preço justo


A troca comercial, ou, em nossos termos, o comércio de mercado,
surgiu como um problema candente nas circunstâncias da época.
Era um a novidade perturbadora, que não podia ser situada, expli­
cada nem julgada com adequação. Havia cidadãos respeitáveis ga­
nhando dinheiro por meio do simples recurso de com prar e ven­
der. Isso era algo inédito, ou melhor, algo restrito a pessoas de
classe baixa, conhecidas como mascates, em geral metecos [resi­
dentes estrangeiros] que ganhavam a vida precariamente, venden­
do alimentos na praça do mercado. Tais indivíduos realmente ob­
tinham lucro, ao comprarem por um preço e venderem por outro.
Agora, ao que parecia, essa prática se havia espalhado entre os ci­
dadãos de boa posição, e grandes somas de dinheiro eram ganhas
por esse método, antes rotulado de desonroso. Como classificar o
fenômeno em si? Como deveria o lucro, sistematicamente obtido
dessa maneira, ser explicado em termos operacionais? E que juízo
se deveria form ar sobre essa atividade?
Em si mesma, a origem das instituições de mercado é um as­
sunto intricado e obscuro. É difícil levantar com precisão seus pri-

252
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

mórdios históricos e é ainda mais difícil acom panhar as etapas


mediante as quais as prim eiras formas de comércio evoluíram
para o comércio mercantil.
A análise de Aristóteles vai direto à raiz. Ao cham ar a troca
comercial de kapêtíkè — nenhum nome lhe fora dado até então
—, ele insinuou que não havia nela nada de novo, exceto pelas
proporções assumidas. Era a mascateação em ponto maior. O di­
nheiro era ganho pelas pessoas, umas “das” outras (ap'allêlõri),
pelos métodos de sobretaxa m uito comumente encontrados na
praça do mercado.
A posição de Aristóteles, por mais inadequada que fosse essa
ideia de sobretaxa m útua, refletiu um a fase crucial de transição na
história da economia humana: a conjuntura na qual a instituição
do mercado começou a se deslocar para a órbita do comércio.
Um dos primeiros mercados ou feiras urbanos, se não o p ri­
meiro de todos, não foi outro senão a ágora de Atenas. Nada in­
dica que ela tenha sido contem porânea da fundação da cidade.
O prim eiro registro autêntico da ágora data do século V a.C.,
quando ela já estava definitivamente estabelecida, em bora ainda
fosse controvertida. Ao longo de todo o curso de sua história ini­
cial, o uso de pequenas moedas e a venda de alimentos a varejo
caminharam juntos. Portanto, seus primórdios em Atenas devem
coincidir com a cunhagem de óbolos, em algum m om ento do iní­
cio do século VI a.C. No território asiático, é possível que ela tenha
tido uma precursora em Sardes, a capital da Lídia, que era, segun­
do consta, um tipo inteiramente grego de cidade. Também nesse
caso o pioneirismo no uso de moedas pequenas marcou o percur­
so, especialmente se incluirmos, como convém, o uso do pó de
ouro. Quanto a isso, Heródoto não deixa dúvidas. A lenda de Mi-
das data da presença de grande quantidade de ouro fluvial na Fri­
gia, por volta de 715 a.C., enquanto em Sardes a própria praça do
mercado era atravessada por um rio aurífero, o Pactolo. Na terra
natal de Heródoto, Halicarnasso, ficava o enorme m onum ento a
Aliates, para cujo custo havia contribuído muito generosamente o

253
KARL POLANYI

comércio sexual das moças da Lídia, enquanto Giges, fundador da


dinastia dos Mermnada, parece haver iniciado a cunhagem do ele-
tro. Creso, filho de Aliates, adornou Delfos com o esplendor de
seus presentes de ouro maciço. Não se conhece nenhum a conta ou
concha da Ásia Menor que possa ter sido usada como moeda; por
isso a menção ao pó de ouro é crucial. Há um a forte probabili­
dade de que essas inovações lídias irmãs — a cunhagem de moe­
das e a venda de alimentos no varejo — tenham sido introduzidas
juntas em Atenas. Elas ainda não eram inseparáveis, de modo al­
gum. O mesmo se aplicaria às moedas lídias, enquanto o pó de
ouro circulava nas feiras de alimentos e nas transações sexuais. Até
hoje dizem que, depois da meia-noite, o mercado de Bida, capital
de Nupe, na Nigéria, transforma-se num local de sociabilidade
mercenária, onde se presume que o pó de ouro circule como di­
nheiro. Também na Lídia, é possível que a presença do pó de ouro
tenha induzido a venda de comida a varejo no mercado. A Ática a
seguiu, mas substituiu as partículas de ouro por frações de óbolos
de prata.
De modo geral, as moedas espalharam-se muito mais depressa
que os mercados. Enquanto o comércio era abundante e o dinhei­
ro era comum, usado como padrão de troca, os mercados eram
poucos e distantes uns dos outros.
No fim do século IV a.C., Atenas era famosa p o r sua ágora co­
mercial, onde qualquer um podia com prar um a refeição por um
valor barato. A cunhagem se disseminara, mas, fora de Atenas, o
hábito do mercado não era particularmente popular. D urante a
Guerra do Peloponeso, frotas de mercadores acompanhavam os
navios da m arinha, pois só em caráter excepcional os soldados
podiam obter a subsistência em mercados locais. Ainda no início
do século IV a.C., o interior da Jônia não possuía mercados regu­
lares de alimentos. Os principais promotores dos mercados, nessa
época, eram os exércitos gregos, em especial as tropas de mercená­
rios, já então usadas, com frequência cada vez maior, como um a
empreitada comercial. O tradicional exército autoequipado dos

254
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

hoplitas só se engajara em breves campanhas, alimentando-se de


sacos de farinha de cevada levados de casa. Na virada do século
V a.C., formaram-se forças expedicionárias regulares, das quais
apenas o oficialato se com punha de cidadãos espartanos ou ate­
nienses, enquanto o grosso do contingente era recrutado no exte­
rior. O emprego dessa força, sobretudo quando se esperava que ela
atravessasse territórios amigos, criava problemas logísticos que os
generais eruditos gostavam de comentar.
Os tratados de Xenofonte fornecem muitos exemplos dos pa­
péis real e ideal atribuídos ao mercado na nova estratégia. O m er­
cado de alimentos, no qual os soldados podiam se abastecer com
o dinheiro recebido adiantado de seu oficial comandante (a m e­
nos que a requisição local fosse viável), fazia parte de um a questão
mais ampla — a venda do butím , especialmente escravos e gado, e
o abastecimento feito pelos mercadores que seguiam o exército na
esperança de lucros. Tudo se resumia nuns tantos ou quantos pro­
blemas de mercado. Com respeito a cada um, temos provas de
atividades organizacionais e financeiras iniciadas pelos reis, gene­
rais ou governos responsáveis pelas empreitadas militares. Muitas
vezes, a campanha em si não passava da racionalização de um ata­
que para efeito de pilhagem, quando não do aluguel de um exér­
cito para servir a algum governo estrangeiro, em benefício da pá­
tria que financiava a aventura como um negócio. A eficiência
militar, é claro, era o requisito fundamental. A venda do butim
pela expedição, nem que fosse por razões de tática militar, era par­
te integrante da eficiência assim como o abastecimento regular da
tropa, ao mesmo tem po que evitava, na medida do possível, anta-
gonizar regiões neutras amigas. Os generais empreendedores con­
cebiam métodos atualizados para estimular as atividades do m er­
cado local, financiar os mercadores, a fim de que eles servissem
à tropa, e contratar artesãos locais para o fornecimento de armas.
Incentivavam a oferta do mercado e os serviços do mercado por
todos os meios de que dispunham, por mais hesitante e provisória
que fosse a iniciativa local, em alguns casos. Com efeito, pouco se
KARL POLANYI

confiava no espírito empresarial espontâneo dos residentes. O go­


verno de Esparta mandava uma comissão civil de “vendedores d
butim ” acompanhar o rei que comandava o exército em campa­
nha. Sua tarefa era fazer com que os escravos e o gado capturados
fossem leiloados in loco. O rei Agesilau empenhava-se em fazer
com que fossem “preparados”, “m ontados” e “oferecidos” m er­
cados a suas tropas pelas cidades amigas, no itinerário previsto
do exército. Na utopia de Xenofonte, A educação de Ciro, o autor
descreveu que qualquer m ercador que quisesse acom panhar o
exército e precisasse de dinheiro para seus suprimentos procurava
o comandante e, depois de fornecer referências sobre sua confia­
bilidade, recebia dinheiro adiantado de um fundo m antido para
esse fim ( Ciropédia, VI ii 38 s). Mais ou menos nessa época, o ge­
neral ateniense Timóteo, atento às necessidades financeiras dos
mercadores, agiu em moldes semelhantes aos do romance edu­
cacional de Xenofonte. Na Guerra de Olinto (364 a.C.), depois
de substituir a prata por cobre no pagamento dos soldados, ele
convenceu os mercadores a aceitarem-no dos soldados pelo mes­
m o valor, mediante a firme promessa de que o aceitaria deles pelo
valor da prata na compra do butim e de que qualquer sobra que
restasse após essa com pra seria quitada em prata (Pseudo-Aris-
tóteles, Oecon. II 23 a). Tudo isso serve para m ostrar como ainda
era pequena a confiança nos mercados locais, quer como meio de
abastecimento, quer como escoadouro para o butim , a menos que
eles fossem fomentados pelos militares.
Na época de Aristóteles, portanto, os mercados locais eram
um fenômeno novo e delicado. Eram montados ocasionalmente,
num a emergência ou para alguma finalidade definida, e só quan­
do a conveniência política o recomendava. O mercado local de
alimentos tam bém não se apresentava, de m odo algum, como um
órgão do comércio de longa distância. A separação entre o comér­
cio [exterior] e o mercado era a norma.
A instituição que acabaria por ligar os dois, o mecanismo de
oferta-procura-preço, era desconhecida p or Aristóteles. Tradicio-
A R IS T Ó T E L E S D E SC O B R E A ECONOM IA

nalmente, o intercâmbio [exterior] não tinha qualquer mácula de


comércio. Ocupação semibélica em sua origem, ele nunca se des­
vinculava das associações governamentais, sem as quais pouco co­
mércio podia realizar-se, nas condições arcaicas. O ganho provi­
nha do butim e dos presentes (voluntários ou obtidos por meio de
chantagem), de honrarias e prêmios públicos, da coroa de ouro e
da concessão de terras oferecidas pelo príncipe ou pela cidade, de
armas e artigos de luxo adquiridos — o kerdos da Odisséia. Entre
tudo isso e o mercado local de alimentos da pólis não hàvia qual­
quer ligação física. O emporos fenício exibia seus tesouros e bugi­
gangas no palácio do príncipe ou na casa senhorial, enquanto a
tripulação se estabelecia para cultivar seu próprio alimento em
solo estrangeiro. As formas posteriores de comércio seguiram a
rotina administrativa, facilitadas pela urbanidade do oficialato dos
portos comerciais. Os preços costumeiros e de tratados predom i­
navam. O mercador, a menos que fosse rem unerado pelo paga­
mento de comissões, tirava seu “lucro” dos proventos das im por­
tações, que eram o troféu da empreitada.
Os preços estabelecidos por tratados eram um a questão de ne­
gociação, precedida por um grande regateio diplomático. Uma vez
firmado um tratado, terminava a barganha. É que o tratado signi­
ficava um preço fixo com base no qual as transações comerciais
seguiam seu curso. Como não havia intercâmbio sem tratados, a
existência de um tratado impedia as práticas de mercado. O co­
mércio e os mercados tinham não apenas locais, status e pessoal
diferentes, como diferiam também em termos de propósito, espí­
rito e organização.
Ainda não sabemos dizer ao certo quando e sob quais formas
o regateio e os lucros obtidos com os preços entraram no campo
do comércio, tal como aparece em Aristóteles. Mesmo na ausência
de mercados internacionais, o ganho obtido no comércio ultra­
marino era normal. Entretanto, não há dúvida de que o olho agu­
çado do teórico havia discernido as ligações entre as pequenas
trapaças do mascate na ágora e os novos tipos de lucros comerciais

2 57
KARL POLANYI

que eram o assunto do dia. Entretanto, o dispositivo que estabele­


ceu a relação entre eles — o mecanismo de oferta-procura-preço
— escapou a Aristóteles. Até então, a distribuição de alimentos no
mercado dava pouca margem para a atuação desse mecanismo, e
o comércio de longa distância não era orientado pela concorrên­
cia individual, mas por fatores institucionais. Os mercados locais
ou de longa distância também não eram marcados pela flutuação
dos preços. Só a partir do século III a.C. é que a atuação de um
mecanismo de oferta-procura-preço no comércio internacional se
fez notar. Isso aconteceu em relação aos cereais e, mais tarde, aos
escravos, no porto livre de Delos. A ágora ateniense, portanto, pre­
cedeu em cerca de dois séculos a instauração de um mercado, no
Egeu, que incorporasse um mecanismo de mercado. Aristóteles,
escrevendo na segunda metade desse período, reconheceu que os
primeiros exemplos de lucros obtidos com base em diferenças de
preço eram um fenômeno sintomático na organização do comér­
cio. Todavia, na ausência de mercados formadores de preços, ele
não deve ter visto nada senão perversidade na expectativa de que
a nova ânsia de ganhar dinheiro pudesse ser concebida como ser­
vindo a um propósito útil. Tal como em Hesíodo, seu famoso elo­
gio à disputa pacífica nunca havia transcendido os prêmios dados
à concorrência anterior ao mercado, no nível da casa senhorial
— um elogio para o oleiro, um quarto de carne para o lenli ulor,
um presente para o cantor vitorioso.

Troca de equivalências
Isso deve descartar a ideia de que Aristóteles ofereceu em sua Ética
um a teoria dos preços. Tal teoria, com efeito, é central na com­
preensão do mercado, cuja principal função é produzir um preço
que equilibre a oferta e a procura. Entretanto, nenhum desses con­
ceitos lhe era familiar.
O postulado da autossuficiência implicava que o comércio ne­
cessário para restabelecer a autonomia era natural e, por conse-

258
p
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

guinte, correto. O comércio era feito por atos de troca, os quais,


por sua vez, implicavam uma taxa ou proporção definida m edian­
te a qual a troca devia ter lugar. Entretanto, como enquadrar as
permutas num a estrutura de comunidade? E, havendo permuta,
com que taxa devia ela ser praticada?
Quanto à origem da permuta, nada poderia atrair menos o fi­
lósofo da Gemeinshaft que a propensão smithiana supostamente
inerente ao indivíduo. A troca, disse Aristóteles, brotava das neces­
sidades da família extensa, cujos membros, originalmente, usavam
em comum as coisas que possuíam em comum. Quando seu n ú ­
mero aumentava e eles eram obrigados a se instalar em locais se­
parados, passava a haver escassez de algumas coisas que antes usa­
vam em comum; por conseguinte, tinham de adquirir uns dos
outros as coisas necessárias.7 Isso equivalia a um compartilhar re­
cíproco. Em suma,8 a reciprocidade no compartilhamento se dava
por meio de atos de escambo.9 Daí a troca.
A proporção da troca devia ser tal que preservasse a com uni­
dade.101Também nesse caso, não os interesses dos indivíduos, mas
sim os da comunidade, constituíam o princípio dom inante. As
habilidades de pessoas de status diferentes tinham que ser trocadas
numa proporção correspondente ao status de cada uma: o tra ­
balho do construtor era trocado por tantas vezes o do sapateiro;
a menos que assim fosse, a reciprocidade seria violada e a comu­
nidade não se sustentaria.11
Aristóteles ofereceu um a fórmula para a determinação da pro­
porção (ou preço):12 ela era dada pelo ponto em que duas diago­
nais se cruzavam, cada qual representando o status de um a das
duas partes.13 Esse ponto era formalmente determinado por qua-

7 Aristóteles, Política, 1.257 a 24.


8 Ibid., 1.257 a 19.
9 Ibid., 1.257 a 25.
10 Aristóteles, E N 1.133 b 16,1.133 b 8.
11 Ibid., 1.133 b 29.
12 Ibid., 1.133 a 8.
13 Ibid., 1.133 a 10.

259
KARL P 0 LANY 1

tro quantidades — duas em cada diagonal. O método é obscuro e


o resultado, incorreto. A análise econômica representou com cor­
reção e exatidão as quatro quantidades determinantes, apontando
o par de índices na curva da demanda e o par de índices na curva
da oferta, que são determinantes do preço que equilibra o merca­
do. A diferença crucial é que o economista m oderno visa a uma
descrição da formação dos preços no mercado, ideia que estava lon­
ge do pensamento de Aristóteles. Este se ocupava com o problema
bem diferente e essencialmente prático de fornecer um a fórmula
pela qual o preço seria fixado.
Surpreendentemente, Aristóteles parece não ter visto outra di­
ferença entre o preço fixo e o preço negociado senão como mo-
mentos no tempo, estando o prim eiro presente antes de ocorrer
a transação, enquanto o segundo só emergiria depois.14 O preço
barganhado, insistiu, tendería a ser excessivo, p or ter sido acor­
dado quando a demanda ainda não fora atendida. Por si só, isso
deveria ser prova suficiente da ingenuidade de Aristóteles a res­
peito do funcionamento do mercado. Ao que parece, ele acredita­
va que o preço definido com justiça devia ser diferente do preço
negociado.
O preço fixo, além de sua justeza, oferecia também a vantagem
de separar o comércio natural e o comércio não natural. Dado que
o objetivo do prim eiro é exclusivamente restabelecer a autossufi-
ciência, o preço fixo garante isso por meio da exclusão do ganho.
As equivalências — como doravante chamaremos a proporção
fixa — servem, portanto, para salvaguardar o comércio “natural”.
O preço negociado pode gerar lucro para um a das partes à custa
da outra e, desse m odo, m inar a coesão da comunidade, em vez de
sustentá-la.
Para a m entalidade m oderna, adaptada ao mercado, a cadeia
de pensam ento aqui apresentada e atribuída a Aristóteles deve
parecer um a sucessão de paradoxos. Ela implica o desconheci­

14 Ibid., 1.133 b 15.

260
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

mento do mercado como veículo de comércio; o da formação de


preços como uma função do mercado; o de qualquer outra função
do comércio que não a de contribuir para a autossuficiência; o das
razões pelas quais o preço fixo pode diferir do preço formado pelo
mercado, e de por que se deve esperar que os preços de mercado
oscilem; e, por fim, o desconhecimento da concorrência como o
dispositivo que produz um preço singular, na medida em que ele
equilibra o mercado e, por isso, pode ser visto como a proporção
natural da troca.
Ao contrário, nessa visão o mercado e o comércio são pensados
como instituições separadas e distintas; o comércio lucrativo,
como “antinatural”; o preço fixo, como “natural”; a oscilação dos
preços, como indesejável; e o preço natural, longe de ser um a ava­
liação impessoal dos bens trocados, é pensado como aquilo que
expressa a avaliação m útua do status dos produtores.
Para a resolução dessas evidentes contradições, o conceito de
equivalências entra como um dado crucial.
Na passagem fundam ental sobre a origem da troca [allagê],
Aristóteles especifica perfeitamente essa instituição básica da so­
ciedade arcaica — a troca de equivalentes. O aum ento do tam a­
nho da família marcava o término de sua autossuficiência. Caren­
tes disto ou daquilo, os familiares tinham de contar uns com os
outros para se abastecer. Alguns povos bárbaros, disse Aristóteles,
ainda praticavam esse tipo de troca em espécie:
Dessas pessoas espera-se que troquem produtos que satisfa­
çam necessidades por outros produtos que satisfaçam necessida­
des, como vinho por grãos, por exemplo, apenas conforme o exi­
gido pelas circunstâncias, não mais, entregando um e recebendo
o outro em troca, e o mesmo com cada gênero essencial dessa
ordem. A prática do escambo, dessa maneira e desse tipo, não é
contrária à natureza, nem é um ramo da arte do enriquecimento,
pois foi instituída para a recuperação da autossuficiência natural
do homem .15

15 Aristóteles, Política, 1.257 a 24-31.

261
KARL POLANYI

A instituição da troca por equivalentes destinou-se a garantir


que todos os familiares tivessem o direito de compartilhar os gê­
neros básicos necessários em proporções fixas, em troca de produ­
tos que eles mesmos pudessem possuir. É que não se esperava que
ninguém desse seus bens de graça, sem receber nada em contra­
partida; aliás, o indigente que não possuía nenhum equivalente
para oferecer em retribuição tinha que pagar sua dívida com tra­
balho (donde a grande im portância social da instituição da es­
cravidão por endividamento). Portanto, o escambo decorreu do
compartilhamento das necessidades da vida; seu objetivo era su­
prir todos os membros da família de produtos que satisfizessem
suas necessidades básicas, até o nível da suficiência; ele foi institu­
cionalizado como uma obrigação de os familiares darem seu exce­
dente a qualquer outro membro da família a quem porventura
faltasse esse determinado tipo de necessidade básica, a pedido dele
e na medida de sua escassez, mas apenas nessa medida; a troca
era feita pela proporção estabelecida (equivalência) de outros gê­
neros básicos dos quais esse familiar tivesse um suprimento. Tanto
quanto é possível aplicar termos legais a condições tão primitivas,
a obrigação do familiar era dirigida para um a transação em espé­
cie, de extensão limitada à necessidade real daquele que a solicita­
va, executada em proporções equivalentes, com exclusão do crédi­
to e abarcando todos os produtos essenciais.
Na Ética, Aristóteles frisou que, apesar da equivalência dos
bens trocados, um a das partes se beneficiava, a saber, a que se sen­
tia forçada a sugerir a transação. Todavia, a longo prazo, o pro­
cedim ento correspondia a um com partilham ento recíproco,
pois, noutra ocasião, era a vez de o outro se beneficiar da situação
fortuita.
A própria existência do Estado depende desses atos de reciproci­
dade proporcional [...] sem os quais não há partilha, e é a partilha
que nos mantém unidos. É por isso que erguemos um templo das
Graças em praça pública, para lembrar aos homens a retribuição
das gentilezas; pois essa é uma característica especial da Graça, já

262
A R IS T Ó T E L E S D E S C O B R E A ECONOM IA

que é dever de cada um não apenas retribuir o serviço que lhe


foi prestado, mas também tomar a iniciativa, noutra ocasião, de
prestar um serviço, ele mesmo .16

Nada, a meu ver, poderia m ostrar melhor o sentido da reciproci­


dade do que essa formulação. Poderiamos chamá-la de recipro­
cidade na praça. A troca é vista aí como parte do comportamento
de retribuição, em contraste com a visão mercantil que investiu a
troca de qualidades, que são exatamente o inverso da generosidade
e da graça que acompanhavam a ideia de reciprocidade.
Não fosse por essas passagens estratégicas, ainda seríamos in ­
capazes de identificar essa instituição vital da sociedade arcaica,
apesar das pilhas de provas documentais descobertas por arqueó­
logos nas últimas duas ou três gerações. Os números que repre­
sentam proporções matemáticas entre unidades de bens de tipos
diferentes foram sistematicamente traduzidos pelos orientalistas
por “preços”, pois eles presumiam a existência de mercados como
um dado corriqueiro. Na verdade, esses números conotavam equi-
valências totalmente desvinculadas de mercados e preços de m er­
cado, com um a característica inata de fixidez que não implicava
nenhum a oscilação anterior, encerrada p or algum processo de-
“estipulação” ou “fixação”, como a expressão parece indicar. A pró­
pria linguagem nos trai nesse ponto.

Os textos
Este não é o lugar para nos estendermos sobre os numerosos pon­
tos em que nossa exposição difere das anteriores. Resumidamente,
porém, devemos rem ontar aos próprios textos. De m odo quase
inevitável, formou-se um a visão errônea desse assunto no discur­
so de Aristóteles. O intercâmbio comercial, que foi tom ado como
sendo esse tema, estava apenas começando a ser praticado na épo­
ca do filósofo, como agora se evidencia. Não foi a Babilônia de
Hamurábi, mas a orla de língua grega da Ásia ocidental, ju n ta­

16 Aristóteles, E N 1.133 a 3-6.

263
KARL POLANYI

mente com a própria Grécia, que foi responsável por esse fenô­
meno — bem mais de mil anos depois. Portanto, Aristóteles não
poderia estar descrevendo o funcionamento de um mecanismo
desenvolvido de mercado e discutindo seus efeitos sobre a ética do
comércio. Além disso, alguns de seus termos principais, em espe­
cial kapêlikê, metadosis e chrêmatistikê, foram mal interpretados
na tradução. Às vezes, o erro torna-se sutil. Kapêlikê foi traduzido
como arte do comércio a varejo, em vez de arte da “troca comer­
cial”, e chrêmatistikê, como arte de ganhar dinheiro, em vez de arte
do suprimento, isto é, de oferta em espécie das coisas necessárias à
vida. Num a outra situação, a distorção foi flagrante: metadosis foi
tom ado por troca ou escambo, quando significa patentemente o
inverso, ou seja, “dar ou contribuir com sua parte”.
Em resumo, na sequência:
Kapêlikê denota, gramaticalmente, a arte do kapêlos. O signifi­
cado de kapêlos, tal como usado por Heródoto em meados do sé­
culo V a.C., é estabelecido em termos gerais como uma espécie de
varejista, principalmente de alimentos, aquele que cuida de uma
loja de comida, o vendedor de gêneros alimentícios e pratos pre­
parados. A invenção do dinheiro cunhado em moedas foi associa­
da p o r H eródoto ao fato de os lídios terem-se tornado kapêloi.
H eródoto também conta que Dario tinha o apelido de kapêlos. No
reinado dele, com efeito, é possível que os armazéns militares te­
nham iniciado a prática de vender comida a varejo. Tempos de­
pois, kapêlos tornou-se sinônimo de “trapaceiro, charlatão, viga­
rista”. Seu sentido pejorativo era congênito.
Infelizmente, isso ainda deixa inteiramente em aberto o senti­
do aristotélico da palavra kapêlikê. O sufixo -ikê indica “arte de”;
kapêlikê significa, portanto, a arte do kapêlos. Na verdade, porém,
essa palavra não era usada; o dicionário menciona apenas um caso
(afora Aristóteles), e nesse caso ela designa, como se esperaria,
a “arte de vender a varejo”. Então, como veio Aristóteles a intro­
duzi-la como cabeçalho de um tema de prim eira grandeza, que de

26A
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

modo algum se restringia ao comércio varejista, a saber, a troca


comercial? Pois é esse, e não outro, sem a m enor sombra de dú­
vida, o tema do seu discurso.
Não é difícil achar a resposta. Em sua apaixonada diatribe con­
tra o comércio lucrativo, Aristóteles usou kapêlikê com u m toque
irônico. A troca comercial não era, evidentemente, a mascateação;
também não era o comércio varejista. O que quer que fosse, me­
recia ser chamada de um a forma ou variante de emporia, que era
a denominação usual do comércio marítimo, assim como de qual­
quer outra form a de comércio em larga escala ou a granel. Ao
se referir especificamente aos vários tipos de comércio marítimo,
Aristóteles recorreu ao emporia, no sentido habitual. Então, por
que não fez o mesm o na principal análise teórica do assunto,
usando, em vez dessa, um a palavra nova, de conotação pejorativa?
Aristóteles gostava de inventar palavras, jogando com certo
tipo de hum or. A figura do kapêlos era um sucesso infalível do
teatro de comédia. Aristófanes, em Os acarnenses, faz seu herói
tornar-se kapêlos e, com esse disfarce, receber os elogios solenes do
coro, que o enaltece como o filósofo do momento. Aristóteles que­
ria transm itir de maneira drástica quão pouco se impressionava
com os novos-ricos e com as fontes supostamente esotéricas de
sua riqueza. A troca comercial não era mistério. Pensando bem,
não passava de mascateação em ponto maior.
Ele usou Chrêmatistikê intencionalm ente, no sentido literal
de prover as necessidades da vida, em vez do sentido usual de
“ganhar dinheiro”. Laistner o traduziu corretamente como “a arte
do abastecimento”, e Ernest Barker, em seu comentário, recordou
o sentido original de chrêmata, que, segundo alertou, não deno­
tava dinheiro, mas as próprias necessidades, interpretação tam ­
bém sustentada por Defourny e por M. I. Finley num a palestra
inédita. Em Aristóteles, aliás, a ênfase no sentido não monetário
de chrêmata era um a inevitabilidade lógica, pois ele se atinha ao
postulado da autarquia, que não fazia sentido fora de um a inter­
pretação naturalista da riqueza.

265
KARL POLANYI

O erro marcante de traduzir metadosis por “troca”, nas três pas­


sagens cruciais da Política e da Ética, foi ainda mais grave.17 No
caso desse termo, Aristóteles ateve-se ao significado comum. Os
tradutores introduziram uma interpretação arbitrária. Numa so­
ciedade arcaica de banquetes comunais, expedições de pilhagem e
outros atos de ajuda m útua e reciprocidade prática, o term o me­
tadosis tinha uma conotação operacional específica — significava
“dar a sua parte”, especialmente para a reserva comum de alimen­
tos, quer se tratasse de um a festividade religiosa, um a refeição ce­
rimonial ou outro evento público.18É esse o significado dicionari-
zado de metadosis. Sua etimologia sublinha o caráter unilateral da
operação de dar, contribuir ou compartilhar. No entanto, vemo-
-nos diante do fato assombroso de que, na tradução dessas passa­
gens em que Aristóteles insistiu na derivação de troca como origi­
nária do term o metadosis, esse term o foi vertido para “troca” ou
“escambo”, o que o transform ou em seu inverso. Essa prática foi
sancionada pelo principal dicionário, que, no verbete metadosis,
registrou essas três passagens cruciais como exceções! Tal desvio
da clareza do texto só pode ser compreendido como um a expres­
são do viés mercadológico dos tradutores de épocas mais recentes,
os quais, nesse ponto, não foram capazes de acompanhar o senti­
do do texto. A troca, para eles, era um a propensão natural do ser
hum ano e não necessitava de explicação. Mas, mesmo supondo
que necessitasse, certamente ela não poderia ter brotado de me­
tadosis, em seu significado aceito de “dar a sua parte”. Por conse­
guinte, ao traduzirem metadosis por “troca”, eles transformaram a
afirmação aristotélica num truísm o vazio. Esse erro pôs em risco
todo o edifício do pensamento econômico de Aristóteles no seu
ponto crucial. Com sua derivação de troca como proveniente de
“dar a sua parte”, Aristóteles forneceu um elo lógico entre sua teo­
ria da economia em geral e as questões práticas em exame. Esta­

17 Pseudo-Aristóteles, Oec. II, 1.353 a 24-28.


18 Ibid., 1.133 a 2; Política, 1.257 a 24; 1.280 b 20.

266
ARISTÓTELES DESCOBRE A ECONOMIA

mos lembrados de que ele via a troca comercial como um a forma


antinatural de comércio; o comércio natural era desprovido de
lucro, pois só m antinha a autossuficiência. Para corroborar isso,
ele pôde efetivamente recorrer à circunstância de que, até a m edi­
da limitada que era necessária para m anter a autossuficiência, e
apenas nessa medida, a troca em espécie ainda era largamente pra­
ticada por alguns povos bárbaros, no tocante às necessidades da
vida, por equivalências fixas, ora beneficiando um, ora outro, con­
forme o acaso. Portanto, derivar a troca da contribuição da parcela
de cada um para a reserva comum de alimento era a espinha dorsal
que sustentava um a teoria da economia baseada no postulado da
autossuficiência da comunidade e na distinção entre o comércio
natural e o não natural. Mas tudo isso parecia tão estranho à m en­
talidade de mercado, que os tradutores se refugiaram em virar o
texto de cabeça para baixo e acabaram perdendo o sentido da ar­
gumentação. A tese talvez mais ousada de Aristóteles, que até hoje
deve estarrecer a mente pensante pela pura força de sua originali­
dade, foi assim reduzida a um a banalidade que, se tivesse o m enor
sentido claro, seria rejeitada por ele como uma visão superficial
das forças supremas em que se assenta a economia humana.

267
JP
0 lugar das economias nas sociedades1

Poucos cientistas sociais de hoje aceitam na íntegra a visão ilumi-


nista ingênua do hom em primitivo, que pactua suas liberdades e
permuta seus bens nas moitas e na selva, para formar sua socie­
dade e sua economia. As descobertas de Comte, Quetelet, Marx,
Maine, Weber, Malinowski, Durkheim e Freud garantem o nosso
conhecimento atual de que o processo social é um a tram a de rela­
ções entre o ser humano, como entidade biológica, e a estrutura
singular de símbolos e técnicas que resulta na manutenção de sua
existência. Embora, nesse sentido, tenhamos descoberto a realida­
de da sociedade, o novo saber não produziu uma visão da socieda­
de que seja comparável, em term os de popularidade, à imagem
tradicional do individualismo atomista. Em conjunturas im por­
tantes, recaímos nas antigas racionalizações do hom em com o áto­
mo utilitário. Em nenhum a parte essa recaída é mais evidente que
em nossas idéias referentes à economia. Ao abordar a economia,
em qualquer de seus aspectos amplamente variados, o cientista
social ainda é estorvado por um a herança intelectual do hom em
como um a entidade com um a propensão inata para comerciar,
perm utar e trocar um a coisa por outra. Isso se m antém apesar de
todos os protestos contra o “homem econômico” e das tentativas
intermitentes de prover a economia de uma estrutura social.
O racionalismo econômico de que somos herdeiros postula
um tipo de ação como economicamente sui generis. Nessa pers­
pectiva, um agente — um hom em sozinho, um a família, um a so­
ciedade inteira — é visto diante de um ambiente natural que de­
m ora a entregar o que é necessário à vida. A ação econômica
— ou, mais precisamente, o ato de economizar, essência da racio-

1 D o capítulo 12, “The Place o f Economies in Societies”, p. 239-242, de Karl Polanyi,


Conrad M. Arensberg e Harry W. Pearson (orgs.), Trade and M arket in the Early Em-
pires. Glencoe, Illinois: The Free Press, 1957.

269
KARL POLANYI

nalidade — é então vista como um m odo de dispor do tempo e da


energia para atingir um máximo de objetivos nessa relação ho-
mem-natureza. A economia torna-se o locus dessa ação. É claro
que se admite que, na realidade, o funcionamento dessa economia
pode ser influenciado de inúmeras maneiras por outros fatores de
caráter não econômico, seja políticos, militares, artísticos ou reli­
giosos. Mas o núcleo essencial da racionalidade utilitária perdura
como modelo da economia.
Essa visão da economia como o locus de unidades que distri­
buem, poupam , comercializam excedentes e formam preços nas­
ceu do Ocidente do século XVIII. É reconhecidamente relevante
no âmbito dos arranjos institucionais de um sistema de mercado,
já que nele as condições reais satisfazem aproximadamente as exi­
gências impostas pelo postulado economicista. Mas será que esse
postulado nos perm ite inferir a generalidade de um sistema de
mercado, no domínio da realidade empírica? A alegação da apli­
cabilidade historicamente universal da economia formal responde
afirmativamente. Com efeito, ela defende a presença virtual de um
sistema de mercado em todas as sociedades, esteja ou não empiri-
camente presente esse sistema. Toda a economia humana, portan­
to, podería ser encarada como um mecanismo potencial de oferta-
-procura-preço, e os processos reais, sejam quais forem, seriam
explicáveis em termos dessa hipóstase.
Para que em algum m om ento a pesquisa empírica amplie a
nossa compreensão do funcionam ento básico e da situação das
várias formas da economia em diferentes sociedades, precisamos
submeter esse postulado economicista ao teste da pertinência. Ao
abordarmos o processo econômico sob o ponto de vista dos novos
conhecimentos que adquirimos sobre a sociedade, devemos dizer
que não há relação necessária entre o ato de economizar e a eco­
nomia empírica. A estrutura institucional da economia não preci­
sa compelir, como no sistema de mercado, a atos economizadores.
As implicações dessa percepção, para todas as ciências sociais que
têm de lidar com a economia, dificilmente poderíam ter um al-

270
0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES

cance maior. O que se exige é nada menos que um ponto de par­


tida fundamentalmente diferente para a análise da economia h u ­
mana como processo social.
Na busca de um novo começo, voltamo-nos do economizador
■ para o significado substantivo do term o “econômico”, por mais
que ele esteja fora de moda. Isso não significa ignorar o uso popu­
lar de “econômico”, que combina o economizar com a m ateria­
lidade: equivale m eram ente a insistir na aplicabilidade restrita
dessa composição do senso comum. A menos que tenha alimento
para comer, o ser hum ano está fadado a passar fome, seja ele ra­
cional ou não; mas sua segurança e, a rigor, sua educação, sua arte
e sua religião tam bém exigem meios materiais, armas, escolas e
templos de madeira, pedra ou aço. Esse fato, é claro, nunca passou
despercebido. Insistiu-se reiteradas vezes em que a economia de­
veria englobar todas as esferas da satisfação das necessidades m a­
teriais humanas — as necessidades materiais do ser hum ano, de
um lado, e os meios para satisfazer suas necessidades, quer sejam
materiais ou não, de outro.
Como os especialistas são unânimes em reconhecer, todos os
esforços em busca dessa economia naturalista continuaram sem
sucesso. A razão é simples. Nenhum conceito meramente natura­
lista da economia pode competir, mesmo em termos aproxima­
dos, com a análise econômica ao explicar a mecanismo da sobre­
vivência num sistema de mercado. E, já que a economia em geral
foi equiparada ao sistema de mercado, as tentativas ingênuas de
substituir a análise econômica por um esquema naturalista foram
justificadamente desacreditadas.
Mas terá sido esse um argumento conclusivo contra o uso do
conceito substantivo da economia nas ciências sociais? De modo
algum. Desconsiderou-se o fato de que a teoria econômica, ou
análise econômica, ou simplesmente economia, é apenas uma das
diversas disciplinas que abordam a subsistência do hom em do
ponto de vista material, isto é, do ponto de vista da economia. Na
prática, ela não passa de um estudo de fenômenos de mercado;

271
KARL POLANYI

afora meras generalidades, sua importância para outros sistemas


que não o de mercado, como as economias planejadas, é desprezí­
vel. Que pode ela fazer, por exemplo, para que o antropólogo se­
pare a economia dos tecidos gerais da sociedade num sistema de
parentesco? Na falta de mercados e preços de mercado, o econo­
mista não tem como ser útil para o estudioso das economias pri­
mitivas; a rigor, pode atrapalhá-lo. Ou então consideremos o so­
ciólogo enfrentando a questão do lugar mutável ocupado pelas
economias nas sociedades em geral. A menos que nos atenhamos
a épocas e regiões em que existam mercados formadores de pre­
ços, a economia não poderá lhe fornecer nenhum a orientação de
valor. Isso se aplica ainda mais ao historiador econômico, fora des­
sa estreita faixa de alguns séculos em que os mercados formadóres
de preços e, consequentemente, o dinheiro como meio de troca
generalizaram-se. A pré-história, a história da Antiguidade e, a
rigor, como Karl Bücher foi o prim eiro a proclamar, toda a his­
tória, afora estes últimos séculos, tiveram economias cuja organi­
zação diferiu de tudo que tem sido presumido pelos economistas.
A diferença, começamos agora a inferir, pode ser reduzida a um
único ponto — elas não possuíam nenhum sistema de mercados
form adores de preços. Em toda a gama das disciplinas econô­
micas, o ponto de interesse comum é estabelecido pelo processo
m ediante o qual é proporcionada a satisfação das necessidades
materiais. A localização desse processo e o exame de seu funciona­
mento só podem ser conseguidos quando deslocamos a ênfase de
um tipo de ação racional para a configuração de movimentos de
bens e pessoas, o que efetivamente compõe a economia.
Passar de um arcabouço conceituai para outro nas ciências na­
turais é um a coisa. Fazê-lo nas ciências sociais é outra, bem dife­
rente. É como reconstruir um a casa — fundações, paredes, insta­
lações, acessórios e todo o resto — m orando nela. Devemos nos
livrar da ideia arraigada de que a economia é um campo da expe­
riência do qual os seres hum anos sempre estiveram necessaria­
mente conscientes. Para empregar um a metáfora, os fatos da eco-

272
0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES

noxnia enraizavam-se, originalmente, em situações que em si não


eram de natureza econômica, pois nem os seus fins nem os seus
meios eram primordialmente materiais. A cristalização do concei­
to de economia foi uma questão de tempo e história. Mas nem o
tempo nem a história nos forneceram os instrumentos conceituais
necessários para penetrarmos no labirinto de relações sociais em
que se enraizava a economia. É essa a tarefa do que aqui chamare­
mos de análise institucional.
Karl Polanyi, Conraá M. Arensbèrg e Harry W. Pearson

APÊNDICE2
Eis algumas indicações de por que é essencial restringir o uso do
termo “econômico” à referência à “provisão para satisfazer neces­
sidades materiais” e só usar o significado formal do vocábulo se
for expressamente necessário.
Nosso principal interesse, no tocante ao estudo da história eco­
nômica geral, é a questão do lugar do sistema econômico na socie­
dade. Surgem nesse contexto várias questões de peso e, a menos
que o significado do term o “econômico” usado seja neutro a res­
peito delas, corremos o risco de prejulgá-las.
Para a indagação quanto ao lugar das instituições econômicas
na sociedade, a resposta pode ser que tais instituições têm existên­
cia separada e distinta, como no sistema de mercado, ou, alterna­
tivamente, que em geral elas se enraizam em outras instituições,
não econômicas, ou algo entre essas duas opções.
Ora, se usarmos o termo “econômico” para denotar a maneira
como os homens se comportam no mercado quando almejam o
lucro, a conduta deles em relação aos assuntos econômicos nas
economias primitivas e arcaicas parecerá ser um a espécie de com­

2 Este Apêndice foi compilado a partir de memorandos inéditos que Polanyi escreveu
em 1947 e distribuiu como notas mimeografadas a seus alunos de história da econo­
mia, na Universidade Columbia. Esse material inédito é reproduzido aqui com permis­
são de Ilona Polanyi e Kari Polanyi Levitt. [N.E.]

273
KARL POLANYI

portam ento de mercado. Por exemplo, Mueller-Lyer, sociólogo e


autor de The History o f Social Development [A história do desen­
volvimento social] (1920), escreveu a propósito da economia pri­
mitiva: em muitas sociedades selvagens, o comércio assume a for­
ma da troca recíproca de prendas. Não se conhecem trocas de tipo
comercial. A isso ele acrescentou que “a prenda oferecida foi um
remanescente do escambo, depois que o verdadeiro significado
deste se perdeu” (p. 161). Temos aí um exemplo clássico de im po­
sição forçada das preconcepções pessoais à realidade. A realidade
é a instituição do oferecimento de prendas; a essa realidade é su­
perposto o padrão do mercado, m ediante o simples recurso de
presum ir que os homens primitivos partiram originalmente do
escambo, depois continuaram a perm utar por hábito, até perde­
rem qualquer lembrança de sua prática original. O resultado disso
é fazer com que os presentes recíprocos pareçam o inverso do que
são, isto é, atos de escambo [ou seja, trocas de mercadorias sem
o uso de dinheiro].
Outro exemplo vem do campo da análise econômica. A defini­
ção mercantil do econômico pode levar ao resultado de fazer toda
atividade econômica ser vista como escambo e troca. O arcebispo
Whately (1787-1863), um economista vitoriano, sugeriu que a
economia devia ser chamada de ciência da troca, ou ciência ca-
talática.* Essa sugestão foi retomada, em nossa época, por Joseph
Schumpeter e Ludwig von Mises. Com isso, a produção pode ser
proveitosamente interpretada como a troca de usos não preferen­
ciais por usos preferenciais de meios escassos. É óbvio que, para 0
historiador econômico, traduzir a produção em termos de troca
seria mais do que inútil, pois tornaria impossível descobrir em
que medida a instituição do mercado existiu ou não num a dada
sociedade. Veriamos mercados e trocas em toda parte. Foi exata­
mente o que aconteceu com alguns de nossos mais ilustres histo­
riadores econômicos.

Ver nota na p. 50 desta edição. [N.T.]


O LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES

O utro aspecto da questão é o dos reais motivos psicológicos


pelos quais o indivíduo participa de instituições econômicas, em
épocas e lugares diversos. Mais um a vez, a questão não tem senti­
do, a menos que o termo “econômico” seja usado de forma neutra.
Se ele for levado a significar “lucrativo”, então, por definição, as
instituições econômicas serão operadas por motivações de lucro.
A pergunta referente às motivações reais será respondida de ante­
mão, ou melhor, nem será levantada.
O utra questão, ainda, concerne às possíveis leis do desenvolvi­
mento em relação às instituições econômicas. Existirá algo como
uma lei do progresso econômico? Se assim for, em que medida ela
consistirá num a racionalidade econômica crescente, no sentido da
eficiência? Até que ponto consistirá num a melhor adaptação das
instituições econômicas a instituições não econômicas da socie­
dade, em determinadas condições tecnológicas? Trata-se de uma
pergunta difícil, para a qual não é possível nenhum a abordagem
simples.
Em suma: o problema do lugar do sistema econômico na so­
ciedade envolve diversas questões im portantes, como o caráter
separado ou enraizado dessas instituições, as motivações psicoló­
gicas reais pelas quais os indivíduos participam da direção dessas
instituições, ou as possíveis leis do progresso na evolução das ins­
tituições econômicas. Questões significativas como essas correm o
risco de ser prejulgadas, a menos que se considere que “econômi­
co” significa, simplesmente, “referente à provisão de meios mate­
riais de satisfação das necessidades”.

Concepções do lugar do sistem a econômico


na sociedade, de Montesquieu a Max Weber
Para estabelecer o estudo da história econômica com base no méto­
do adequado, é necessário nos precaver contra a influência incons­
ciente de definições elaboradas no campo da análise econômica.
Para isso, constataremos ser útil uma visão geral da história da
economia, desde Montesquieu e os fisiocratas até Marx, Menger
fS
KARL POLANYI

e Max Weber. Aqui tomamos o term o “econômico” em seu sen­


tido mais amplo, que abarca o estudo das instituições econômicas
e o das leis que regem o sistema de preços, de m odo que a dis­
tinção entre história econômica e teoria econômica funde-se nes­
se termo.
Esse breve levantamento propõe avaliar até que ponto foram
abordadas, no passado, as questões que acima consideramos im­
portantes no estudo da história geral da economia.
Devemos concentrar a atenção em dois pontos: (1) Em que
medida a suposição de um sistema econômico separado na socie­
dade é subjacente e em que medida, ao contrário, essa ideia indica
a abordagem da sociedade como um todo, sendo o econômico
meramente um aspecto? (2) Que suposições a respeito das m oti­
vações psicológicas reais subjazem às concepções dos autores? Até
onde eles presumem a existência de motivos especificamente eco­
nômicos?
Listaremos os principais pensadores, de acordo com nosso
ponto de vista central, num total de cinco grupos que se sucedem
mais ou menos cronologicamente:
1. Abordagem original social: M ontesquieu (1748), François
Quesnay (1758) e Adam Smith (1776).
2. Abordagem original economicista: Townsend (1786), Mal-
thus (1798) e Ricardo (1817).
3. Retorno à abordagem social: Carey (1837), List (1841) e
Marx (1859).
4. Retorno à abordagem economicista: Menger (1871).
5. Síntese de (3) e (4): Max Weber (1905).
Grosso modo, o m ovimento oscilou para a frente e para trás
entre as abordagens social e economicista, entre o sentido de
“econômico” como “provisão de bens materiais” e como “busca do
lucro” ou “postura comercial”, entre a visão ampla que se fixa na
sociedade como um todo e a visão mais estreita que se concentra
no sistema econômico como esfera institucionalmente separada e
distinta da sociedade.

2 76
0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES

1. O ponto de partida original foi social: Montesquieu, Ques-


nay e Adam Smith o compartilharam.
2. Com Malthus e Ricardo, a economia política desvinculou-se
de qualquer dependência da sociedade como um todo; tornou-se
autônoma, regida por leis próprias.
3. Instaurou-se um a reação mundial contra os clássicos, com
múltiplas direções, tipificadas por Henry Carey, List e Marx. Essa
oscilação de volta à abordagem social foi institucionalista e histo-
ricista. (Schmoller e sua escola, na Alemanha, assim como Veblen
e sua escola ainda mais im portante, nos Estados Unidos, fazem
parte desse contexto, é claro.)
4. Cedo, porém, na Alemanha de Marx e Schmoller, instaurou-
-se o ataque à escola neossocial. Os neoclássicos representaram
um retorno à abordagem economicista, num a forma logicamente
extrema; esse movimento também foi mundial.
5. Mais ou menos na virada do século, Max Weber iniciou um
movimento de síntese de enorme importância para o historiador
econômico, voltando à abordagem social, dessa vez com ênfase no
aspecto racionalista da economia propriamente dita. Isso repre­
sentou uma conciliação entre as perspectivas social e economicista,
a qual se revelou útil. Entretanto, Weber havia form ulado suas
idéias antes das significativas descobertas no domínio da economia
primitiva e antes que as implicações de suas próprias investigações
sobre a origem do capitalismo pudessem ser discernidas com cla­
reza. Além disso, o curso da história, depois da morte dele, tendeu
a refutar sua confiança dogmática no domínio necessariamente
crescente da “racionalidade intencional” no campo econômico.

Montesquieu (1748)
Em linguagem moderna, a tese de Montesquieu era que as insti­
tuições de um a sociedade refletem as necessidades dessa sociedade
no ambiente considerado. As instituições econômicas tam bém
seriam formadas de acordo com sua função na estrutura da socie­
dade em geral. Montesquieu definiu o comércio “como a exporta-

277
KARL POLANYI

ção e importação de mercadorias visando ao benefício do Estado”


(p. 348). “A restrição do comerciante”, escreveu, “não é a restrição
do comércio. É nos países mais livres que o comerciante encontra
inúmeros obstáculos. Os ingleses restringem o comerciante, mas o
fazem em favor do comércio.” Montesquieu declarou que abriría ,
mão do uso do dinheiro em prol de um a economia planejada, tal ,
como a realizada pelos jesuítas no Paraguai. Muitas de suas idéias
refletiram teorias e práticas mercantilistas. Disso se podería infe- ■
rir, entretanto, que algumas dessas práticas não poderiam ter sido
tão “absurdas” quanto afirmou W. Lippmann em The Good Society .
[A boa sociedade] (p. 10). Se os fisiocratas são considerados os
fundadores dessa ciência social, M ontesquieu foi o precursor da
escola institucionalista. Sua abordagem era sociológica, histórica, '
antropológica e institucional — com efeito, abrangia os traços da
abordagem moderna. ,

François Quesnay (1758)


Os fisiocratas ampliaram a abordagem social de Montesquieu em
relação à vida econômica. Todavia, enquanto a inspiração dele ti­
nha sido a unidade da sociedade, conforme expressa no conceito
orgânico da Idade Média, a concepção orgânica de Quesnay foi
essencialmente biológica. Ele iniciou a vida com o “veterinário”.
Seu Essai physique sur Véconomie animale [Ensaio físico sobre a
economia animal] (1736) foi um texto de fisiologia que refletiu
sobretudo duas idéias: a descoberta da circulação sanguínea por ■
Harvey (1628) e a postura hipocrática do autor perante a doença,
confiando nos poderes curativos da natureza. (E m sua fisiologia,
Quesnay havia usado a palavra “economia” no sentido de agricul­
tura ou de criação e reprodução do corpo anim al. As idéias gê­
meas da circulação natural e da confiança nos poderes curativos
da natureza expressaram-se n a sua contribuição mais original
para as ciências sociais, a saber, seu Tableau économique [Quadro
econômico] (1758). Nele, pela prim eira vez, a econom ia humana
(ou, pelo menos, um a aproximação dela) foi apresentada como

2 78
0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES

um processo cíclico. (Karl Marx ficou m uito impressionado com


esse feito e seguiu os passos de Quesnay em O capital, ao tentar
delinear um ciclo semelhante na economia capitalista.) O Tableau
de Quesnay m ostrou a circulação do produit net [produto líquido]
no corpo social. Esse produto líquido era o suposto excedente que
sobrava da safra anual, depois de subtraídos todos os adiantamen­
tos e investimentos (inclusive os lucros do arrendatário). Apenas a
natureza produzia esse excedente — esse era um princípio básico
dos fisiocratas. É claro que isso era falso, qualquer que fosse a in ­
terpretação dada.
A ciência fundada pelos fisiocratas foi a ciência da sociedade,
não a da economia. Eles eram um a seita baseada em dogmas filo­
sóficos sociais que acreditava nas leis da natureza e no dom ínio da
natureza (ou fisiocracia). Chamavam-se économistes porque, em
sua opinião, a saúde da comunidade e do Estado apoiava-se em
leis naturais parecidas com as que regem a produção doméstica do
corpo animal. Apesar do Tableau, sua filosofia referia-se menos à
vida econômica do que ao Estado e à sociedade como um todo.
A escola de Gournay, o “intendente” a quem se atribui o lema
do laissez-faire, distinguiu-se da dos fisiocratas. Esta última defen­
dia não apenas o “absolutismo jurídico” e a m anutenção do re­
gime feudal, como tam bém o “intervencionismo” sistemático e
científico. Assim como o médico que confia nas forças curativas
da natureza aplica o tratam ento de modo a auxiliá-la em seu tra ­
balho, os fisiocratas julgavam ter descoberto as leis segundo as
quais a natureza fazia seu trabalho na sociedade. Acreditavam que
as autoridades precisavam intervir de m aneira a eliminar os obs­
táculos às forças da natureza e a apoiar o trabalho destas.
É essa a explicação dos três documentos mais importantes da
fisiocracia, que representaram um a ideia rigorosamente moderna.
Eram eles: (1) o Tableau économique, (2) as Maximes [Máximas],
num total aproximado de 25, publicadas na Encyclopédie, e (3) os
Détails [Detalhes] ou levantamentos periódicos, de natureza des­
critiva e estatística. O Tableau indicava a circulação da riqueza no

279
KARL POLANYI

corpo social, de acordo com a ordem natural, e as Máximas expu­


nham os princípios de tratam ento ou de política. Os Detalhes, ou
levantamentos, deveríam fornecer os dados factuais ou quanti­
tativos para que a política pudesse ser cientificamente aplicada
O método continha elementos m uito valiosos, mas, infelizmente,
a suposta ciência em que a política deveria se basear não existia.
Do ponto de vista da política, os fisiocratas eram unilateral­
mente agrários. Criticavam os embargos à exportação de cereais,
que eram conservados para manter baixos os salários, e defendiam
o comércio de exportação. Insistiam em que a m eta devia ser o
honprix [preço correto] dos cereais, que m anteria ricos os senho­
res de terras (e, de passagem, fornecería ao Estado um imposto
único). O conceito de bonprix (parente próximo do “preço justo”)
indicava a que ponto os fisiocratas estavam distantes da ideia de
que o livre mercado era o melhor juiz do preço correto. É verdade
que eles também afirmavam vagamente que o interesse do indiví­
duo e o interesse da comunidade se harmonizavam na orãre natu-
rel [ordem natural], o que constituiu o princípio retomado depois
por Adam Smith. Mas a unidade a que a autorregulação na ordem
natural se referia não era o sistema econômico, e sim a sociedade
hum ana como um todo.

Adam Sm ith (1776)


Adam Smith, não Quesnay, tornou-se o fundador da economia
política, o que se deveu a avanços importantes para além da posi­
ção de seu predecessor, em especial pelos métodos mais realistas
do escocês. Mas Adam Smith ainda está entre o grupo de autores
sociais. Seu tema era a riqueza da sociedade, seu bem-estar ma­
terial. Para ele, a riqueza era um aspecto da vida nacional, nada
mais; relacionava-se especialmente com a produção. Por conse­
guinte, o interesse de Smith centrava-se no aumento da eficiência
produtiva, que dependia da habilidade do trabalhador e da orga­
nização do trabalho. A divisão do trabalho na oficina parecia-lhe
ser o paradigma da divisão do trabalho na sociedade. Foi assim

280
0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES

que ele fez sua grande descoberta de que a divisão do trabalho era
aplicável ao grau de desenvolvimento dos mercados. Convém n o ­
tar que tanto a divisão do trabalho quanto o mercado foram tra ­
tados, nesse caso, em termos institucionais.
Adam Smith definiu claramente o problema da riqueza, tanto
em relação à natureza quanto em relação à sociedade. No tocante
à natureza, ele se recusou a seguir os passos dos fisiocratas, que
haviam colocado os recursos naturais em primeiro plano. As ob­
servações iniciais de Smith excluíram a consideração dos recursos
naturais, já que eles deviam ser considerados dados. Com respeito
à situação da sociedade, sua postura foi a inversa. Sua abordagem
era regida pela distinção de três situações: a sociedade estava m e­
lhorando, em declínio ou estagnada. A vida econômica era apenas
uma faceta da vida nacional e, por conseguinte, devia refletir o
estado de saúde ou de doença da vida nacional. Até mesm o a
questão de a política do governo ser favorável à agricultura ou às
fábricas devia ser considerada vital, já que tal política dependia de
considerações gerais da arte de governar (e não, como hoje tende­
mos a supor, de considerações econômicas). Por fim, as exigências
políticas de segurança e proteção nacionais eram tidas como lí­
quidas e certas, e defendidas, por exemplo, em relação às Leis de
Navegação de 1649 e 1651.
A referência à “mão invisível”, que fazia com que o interesse
pessoal do açougueiro e do padeiro “me servisse uma refeição”, tem
sido exagerada de um m odo totalmente desproporcional. Adam
Smith queria desestimular a ideia de que o interesse pessoal do
comerciante beneficiava naturalmente a comunidade. Exigia, por
exemplo, que o governo inglês fosse o governante da índia, não
a Companhia das índias Orientais, cujos interesses, dizia, eram
contrários aos da população, ao passo que os interesses do governo
corriam em paralelo a estes últimos (por exemplo, em termos de
tributação). O interesse pessoal ainda não era diferenciado em
motivações econômicas de patrões e empregados. De ponta a pon­
ta, a abordagem ainda era institucional, histórica e social.

281
KARL POLANYI

Joseph Townsend (1786)


Depois de Adam Smith, os economistas clássicos basearam sua
abordagem na suposição de uma esfera econômica institucional­
mente separada na sociedade. Para usar uma analogia fisiológica,
a economia, entre os autores sociais, tinha sido da ordem da assi­
milação e da dissimilação, isto é, um a função do organismo social
como um todo. Agora, a economia torna-se algo mais definido,
mais parecido com os órgãos digestivos do corpo. Até certo ponto,
foi um a transição gradativa: Townsend captou meramente a auto­
nom ia do mercado de trabalho; Malthus, dada a sua visão conser­
vadora e o seu apego ao sistema tradicional de posse da terra, ain­
da foi impedido de abandonar por completo a abordagem social.
Isso só foi plenamente alcançado por Ricardo.
Townsend foi o precursor imediato de Malthus. Seu Observa-
tions on the Poor Laws [Observações sobre as Leis da Pobreza] fo­
ram escritas apenas dez anos após a publicação de Riqueza das na­
ções. (Como Mandeville e Quesnay, ele era formado em medicina.)
Interessou-se muito pelos efeitos das Leis da Pobreza, um remanes­
cente dos tempos elisabetanos. Fazia pouco tem po que as paró­
quias tinham recebido ordens de dar emprego aos pobres da região
que estivessem fisicamente aptos para o trabalho; caso contrário, a
assistência prestada fora das instituições asilares poderia ser admi­
nistrada nos termos da Lei de Gilbert, de 1782. Como muitos de
seus contemporâneos, Townsend propôs que as Leis da Pobreza
fossem abolidas e os pobres fossem obrigados a buscar trabalho
por qualquer remuneração que conseguissem obter. Argumentou
que o amparo oferecido pelas Leis da Pobreza aumentava artificial­
mente a taxa de natalidade, em detrimento de outras pessoas cujas
vidas eram correspondentemente encurtadas. Quando não ocor­
riam “intervenções” como as Leis da Pobreza, insistiu, havia um
equilíbrio natural entre a oferta de alimentos e a população.
Seu modelo foi extraído da ilha Robinson Crusoé, no arquipé­
lago de Juan Fernandez, no litoral do Chile. Havia um relato de que

282
0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES

piratas que infestavam a região costeira do Caribe usavam a ilha


como posto de abastecimento. Juan Fernandez, o descobridor da
ilha, pusera nela um casal de caprinos que se havia multiplicado
prodigiosamente. O governo espanhol decidiu destruir esse ninho
de piratas enviando um cão e um a cadela para a mesma ilha. Eles
também começaram a se multiplicar com vigor, já que encontra­
ram alimento em abundância. Passado algum tempo, as cabras ti­
veram que se refugiar nas partes rochosas da ilha, até que só os cães
mais rápidos e fortes conseguiam capturá-las e matá-las. O aumen­
to da população canina acabou sendo contido e se estabeleceu um
equilíbrio entre o número de cabras e o de cães. Essa situação de
paz e ordem foi alcançada sem a intervenção de qualquer magistra­
do, proclamou Townsend. À mais poderosa de todas as forças —
a dependência que todos os animais têm do alimento para sobre­
viver — se encarregara do assunto. Do mesmo modo, afirmou, a
simples abolição da assistência aos pobres resolvería automatica­
mente o problema do pauperismo. A fome conseguiría forçá-los a
trabalhar por qualquer salário que conseguissem obter, e seu n ú ­
mero seria regulado pela quantidade de alimento disponível. Nesse
aspecto, Townsend referiu-se explicitamente à motivação econô­
mica, isto é, ao motivo que, na falta das Leis da Pobreza, forçaria
todos a participarem da produção sem coação governamental.

Malthus (1798)
Malthus tornou m undialm ente famosas as idéias de Townsend.
Reagiu de forma categórica ao humanitarismo otimista de seu pai
e à admiração pela Justiça política de Godwin (1793). Os hum ani­
tários pareciam negar que a pobreza era inevitável e que era preci­
so mais do que boas intenções para aboli-la. O teorema de Town­
send sobre as cabras e os cães chegou a Malthus por intermédio de
Condorcet. Mas por que o alimento havería de ser sempre escasso
na sociedade humana? Malthus explicitou a resposta, que estava
implícita na história de Townsend. Havia na natureza um a força
que tinha o efeito de perpetuar a fome, a saber, o sexo, que fazia

283
KARL POLANYI

com que o núm ero de seres hum anos sempre forçasse os limites
da oferta de alimentos. Se nascessem mais crianças do que essa
oferta conseguisse alimentar, o núm ero excedente teria de ser
m orto p or guerras e pestes, vícios e fome.
Ora, a autonomia da esfera econômica era salvaguardada pela
sanção da própria natureza. Nada que o governo pudesse fazer
conseguiria alterar essas leis. O lugar do sistema econômico na
sociedade era determinado não pela força da sociedade e do go­
verno, mas pela força da própria natureza.

Ricardo (1817)
O principal interesse de Ricardo era determinar as leis que fixa­
vam como as diversas classes da população compartilhavam da
renda nacional. Ele combinou as motivações da fome e do ganho
com a motivação do lucro como incentivo geral determinante do
com portam ento hum ano. O interesse pessoal vagamente inter­
pelado por Adam Smith diferenciou-se, nesse momento, no medo
da fome, no trabalhador, e na esperança de lucro, no dono do ca­
pital. O mercado, que Adam Smith havia introduzido como de­
term inante do grau em que a divisão do trabalho era possível,
desenvolveu-se num sistema de oferta-procura-preço que incluía
o trabalho e a terra. A sociedade foi então enraizada no sistema
econômico, em vez do contrário. As classes sociais foram definidas
por seu papel no mercado, pois personificavam os fatores da ofer­
ta e da procura, respectivamente, nos vários mercados, como os de
mão de obra, terra, capital, serviços profissionais etc.
O lugar do sistema econômico na sociedade passou a ser de­
finido pelas “motivações econômicas” da fome e do lucro. Elas
respondiam pelas leis econômicas — como a lei férrea dos salá­
rios — , bem como pela lei da renda (em combinação com a lei
malthusiana e a lei dos retornos decrescentes, outra lei da natu­
reza). Os esforços ideológicos e políticos para alterar o curso dos
processos econômicos eram inúteis. A sociedade era regida pelas

284
0 LUGAR DAS ECO NO M IAS NAS S O C IE D A D E S

leis que governavam o mercado. Estas, por sua vez, eram determi­
nadas pela própria natureza.
Esse deslocamento teórico do lugar do sistema econômico na
sociedade foi acompanhado, é claro, por um grande desenvolvi­
mento de mercados reais, que ainda não existiam em grau seme­
lhante na época de Adam Smith. Juntos, os mercados com peti­
tivos, a economia m onetária e a motivação do lucro resultaram
numa compulsão para reduzir os custos. Isso implicou a aplicação
do princípio econômico, como ele começou á ser chamado. Town-
send, Malthus e Ricardo estabeleceram em conjunto o conceito
moderno de um sistema econômico autônom o e separado, regido
por motivações econômicas e sujeito ào princípio econômico da
racionalidade formal [isto é, do economizar].

Carey (1837)
A economia ricardiana foi atacada por todos os lados como abs­
trata, dogmática, dedutiva, distante da vida real e das instituições,
cosmopolita e desumana. A reação foi mundial. Na verdade, essa
economia adaptava-se às condições inglesas e expressava interes­
ses ingleses. A Revolução Industrial era um evento inglês. Os de­
fensores do livre-comércio da escola ricardiana sabiam das vanta­
gens da capacidade superior de fabricação da Inglaterra.
Henry Carey form ulou as necessidades protecionistas norte-
-americanas. Ao fazê-lo, apelou (a) para a história e (b) para a tese
institucionalista.
(a) Sua tentativa de refutar a teoria ricardiana da renda baseou-
-se na sequência histórica factual do povoamento da terra. Afir­
mou que o melhor solo não tinha sido o escolhido no princípio,
pois era pantanoso e inacessível. Isso se mostrava verdadeiro não
apenas para os Estados Unidos — vide o trabalho de Turner sobre
a “fronteira” da civilização — , mas também para a história antiga.
Na Inglaterra, o Caminho dos Peregrinos, que liga a Stonehenge
neolítica a Cantuária, corre pelas encostas dos morros.

285
KARL POLANYI

(b) Os argumentos de Carey sobre o desenvolvimento de re­


giões vizinhas foram de cunho sociológico e se anteciparam à lei
de Thünen. Equivaleram à tese de que a divisão do trabalho tinha
de ser modificada nas regiões agrícolas pelas necessidades dos cen­
tros urbanos e de que a agricultura intensiva dependia da presen­
ça de fazendas.

Frederick List (1840)


Frederick List foi m uito influenciado por Henry Carey e aplicou o
método deste em seu país, a Alemanha. Nas mãos de List, o méto­
do produziu o teorema dos estágios de desenvolvimento, o cha­
mado princípio da relatividade. Os estágios eram: (a) a vida pas­
toril, (b) a agricultura, (c) a agricultura unida à m anufatura e (d)
a etapa final: agricultura, manufatura e comércio. “A tarefa econô­
mica do Estado é fazer existirem, por meio da ação legislativa e
administrativa, as condições necessárias ao progresso da nação
por esses estágios.” Os países jovens, afirmou, precisavam de pro­
teção até atingirem um a etapa de industrialização semelhante à
dos países mais avançados. Os argumentos de List basearam-se na
antropologia social, na história da economia e nos aspectos insti­
tucionais das questões sociais. Hoje ele é visto como o precursor,
se não o fundador, da escola histórica alemã de economia.

Marx (1859)
O terceiro autor desse grupo distingue-se dos demais. A oposição
de Karl Marx à economia ricardiana não foi social em nom e de
um país, mas de um a classe. Malthus e Ricardo haviam condenado
os trabalhadores à indigência perpétua. Marx aceitou a análise ri­
cardiana como válida. Por conseguinte, sua única alternativa era
rejeitar todo o sistema institucional da economia de mercado. Ele
afirmou que o capitalismo industrial era um fenômeno histórico,
que desapareceria tal como havia surgido. Foi um a tese antropo­
lógica, institucional e histórica. Centrou-se num a visão da socie­

286
0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES

dade como um todo. Foi complementada por um a filosofia com­


pleta, o que distinguiu Marx nitidamente de autores como Carey
ou List, que aceitavam a ordem burguesa.
Marx figura enfaticamente como um representante do retorno
à abordagem social. Ao mesmo tempo, contudo, ele também re­
forçou involuntariam ente a postura econom icista. Havendo
aceitado a economia ricardiana, transform ou-a num argumento
contra a sociedade capitalista. Foi esse o sentido de Das Kapital.
A sociedade capitalista, argumentou, era a sodedade econômica e
por isso era governada pelas leis que regiam o sistema econômico,
isto é, as leis do mercado. Todavia, Marx deixou de enfatizar (para
dizer o mínimo) que esse estado de coisas só existia na sociedade
capitalista. A descoberta da importância do “econômico” na eco­
nomia de mercado induziu-o a exagerar a influência do fator eco­
nômico de m odo geral, em todas as épocas e regiões. Isso se re­
velou um grave erro. Embora o próprio Marx tenha insistido na
influência de fatores não econômicos na história, sobretudo na
história primitiva, os marxistas fizeram da interpretação econô­
mica da história um verdadeiro credo. Este equivaleu a um a afir­
mação não apenas do predomínio dos fatores econômicos, mas
também das motivações econômicas, o que fortaleceu im ensa­
mente os clássicos. A abordagem social personificada p o r Marx
foi solapada pelo elemento economicista herdado dos clássicos.

Menger (1871)
Menger foi o primeiro economista a fazer um a distinção delibera­
da entre a preocupação com a satisfação das necessidades mate­
riais e a preocupação com a alocação de recursos escassos. Ao re­
lacionar a teoria da escolha, ou “economia formal”, com a alocação
dos bens materiais, a escola neoclássica definiu a teoria econômica.
A partir daí, não mais ficou sujeita à crítica de confiar em leis da
natureza, como a lei malthusiana ou a lei dos retornos decrescen­
tes. Produziu-se um a teoria geral do preço, e a análise econômica

287
KARL POLANYI

adquiriu um a precisão que antes lhe havia faltado. Fórmulas de


equilíbrio perm itiram a introdução de teoremas ótimos, que tor­
naram supremo o “princípio econômico”.
Gustav Schmoller publicou uma crítica desfavorável ao traba­
lho de Menger. Travou-se então a “batalha dos métodos”, na qual
a abordagem social da escola histórica alemã foi subm etida ao
ataque de Menger,
Em essência, Menger estava certo em sua oposição à escola his­
tórica, mas exagerou em suas posições. Em consequência disso, a
“batalha dos métodos” tendeu a desacreditar as teorias neoclássi-
cas na Alemanha. Entretanto, passado um quarto de século, quan­
do já fizera grandes avanços, com as contribuições inglesas, fran­
cesas, italianas e norte-am ericanas, a teoria neoclássica obteve
aceitação na Alemanha. O Handwõrterbuch der Staatswissenschaf-
ten e o Grundriss der Sozialõkonomik convidaram os adeptos da
“escola austríaca” a contribuir com artigos que versassem sobre
temas teóricos básicos. Isso decorreu prim ordialm ente da inter­
venção de Max Weber.

Max Weber (1905)


Para Weber, a abordagem social era principalmente representada
pelo marxismo, e a econômica, por Menger, Mises e os outros
membros da escola neoclássica. A influência marxista não se res­
tringia ao marxismo ortodoxo. Refletia-se no trabalho de estudio­
sos não marxistas, como Ferdinand Tõnnies, Franz Oppenheimer,
Werner Sombart, Carl Lamprecht e Robert Michels.
Max Weber era um liberal em economia, dotado de sólida con­
fiança na vitalidade da economia capitalista. Em bora não fosse
adepto do laissez-faire, distanciava-se ainda mais de qualquer for­
m a de economia planejada. Assim, a influência marxista produziu
nele um resultado paradoxal: Weber aceitou a primazia do fator
econômico (ao menos heuristicamente), mas, estando convencido
da superioridade do sistema de mercado, tornou-se não propria­
mente marxista, porém “mercadista”.

288
0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES

Ele incluiu conscientemente o significado substantivo e o sig­


nificado formal na definição de “econômico” (em conformidade
com o uso comum). Afirmou que “econômico” significava a pro­
visão dos meios de satisfação das necessidades m ateriais, mas
insistiu também em que o comportamento intrinsecamente econô­
mico era “puramente racional” [zweckrational] e em que dele en­
contramos a mais típica forma nas bolsas de valores. Graças a essa
ambiguidade, os termos weberianos revelaram-se um instrum en­
to muito útil de investigação da economia capitalista, na qual pre­
valece a mesma conjunção de significados. Fora do capitalismo,
entretanto, a inclusão da racionalidade pura na definição de “com­
portamento econômico” tornou esse termo im próprio para a his­
tória econômica geral.
Observemos a definição weberiana de “bens econômicos”: um
conjunto de utilidades! As utilidades, por sua vez, são definidas
como um m onte de tensões e pressões, como, por exemplo, um
agregado de efeitos físicos singulares e isolados. Exemplo de Weber:
“O cavalo como tal não é um ponto de referência na vida econômi­
ca, a não ser meramente como serviços separados e distintos.”
No entanto, durante a maior parte da história humana, possuir
um cavalo foi algo cobiçado, não tanto pelos efeitos separados e
distintos de tração e repulsão, tensão e esforço [i.e., os serviços
prestados pelo cavalo], mas por causa do cavalo como tal, das dis­
tinções sociais que ele conferia etc.
Enquanto a teoria econômica precisa ser capaz de determinar
os fatores que influenciam o preço da força mecânica, havendo ou
não um cavalo preso a essa força, a história econômica versa, entre
outras coisas, sobre as motivações reais que levaram à domestica­
ção do cavalo, sobre seu papel na economia de prestígio e assim
por diante. Vista por esse ângulo, a medição em “cavalos-vapor”
teria pouca serventia.
Weber tam bém faz tuna distinção entre bens e serviços: “Os
serviços úteis, quando nos são prestados por coisas, serão sucinta­
mente chamados de ‘bens’; quando prestados por seres humanos,

289
KARL POLANYI

de ‘serviços’.” Assim, o ser hum ano é colocado num a analogia for­


mal com objetos. O hom em é tratado como um a coisa que presta
serviços. Somente assim a expressão “serviços úteis” pode ser efe­
tivamente desvinculada tanto de coisas quanto de pessoas. Tal se­
paração é necessária para efeito da teoria econômica que emprega
os “serviços úteis” como um a unidade, pois só assim se pode fazer
a análise econômica aplicar-se a todos os tipos de bens e su.is vá­
rias relações, como substituibilidade, complementaridade etc. To­
davia, do ponto de vista da história econômica, essa definição e
inútil. No campo das instituições econômicas, os serviços úteis das
coisas e os prestados por seres hum anos devem ser nitidamenle
distinguidos. Os primeiros estão ligados a objetos mortos, os últi­
mos, a pessoas vivas; portanto, do ponto de vista das instituições
econômicas, eles se encontram em categorias inteiramente dife­
rentes. A questão das motivações reais, por exemplo, surge de ma­
neira distinta em relação à produção ou transferência de objetos e
em relação à prestação de serviços pessoais. Equiparar as duas coi­
sas na categoria de serviços úteis seria um disparate. As motiva­
ções para a prestação de serviços encontram-se num a categoria
diferente das motivações para a transferência de bens. Uma é es­
sencialmente pessoal, a outra, essencialmente impessoal. Misturar
esses dois grupos de motivações fatalmente confundirá o aspecto
institucional da história econômica.
Max Weber, que fundiu os dois significados de “econômico”
em prol do uso comum, acabou por contradizer esse uso em um
ponto vital. O critério de racionalidade pressupõe que a pessoa
faça escolhas entre usos dos meios escassos de que ela dispõe.
Prossegue Weber: “Dispor abrange dispor da própria força de tra­
balho.” Isso é inevitável, pois de que outro modo se podería desen­
volver um a teoria do mercado de trabalho? No entanto, sucede
que a única atividade econômica do trabalhador é vender sua for­
ça de trabalho e talvez atividades em sua esfera doméstica.
Diz Weber: assim como o escravo que trabalha sob o açoite do
senhor não passa de um instrum ento e não exerce pessoalmente

290
0 LUGAR DAS ECONOMIAS NAS SOCIEDADES

uma “atividade econômica”, o operário da fábrica tam bém não


está engajado num a “atividade econômica” na fábrica (em bora
possa ser “economicamente ativo” em sua própria casa!).
Isso é inteiramente lógico. Visto que o trabalhador vendeu sua
força de trabalho, que agora já não lhe pertence, na fábrica ele não
se encontra escolhendo nem dispondo de qualquer tipo de recur­
sos escassos que lhe pertençam . Por conseguinte, seria absurdo
afirmar que ele é “economicamente ativo” ali. O uso comum, po­
rém, é muito diferente. Dizer que o operário da fábrica não está
engajado em nenhum tipo de atividade econômica não apenas
contraria o uso comum, como parece um paradoxo de gosto du­
vidoso. A exclusão das atividades cotidianas dos produtores do
âmbito das atividades econômicas é completamente inaceitável
para o estudioso das instituições econômicas. Dizer que a única
atividade econômica exercida num a mina ou num a fábrica é a do
acionista que vende suas ações constitui um a proposição inútil
para o estudioso da instituição da m ina ou fábrica. No entanto, a
definição de Weber nega até mesmo que um diretor exerça um a
“atividade econômica” no gigantesco estabelecimento cuja opera­
ção ele dirige, visto que não dispõe de recursos próprios.
Do ponto de vista da história econômica, a tentativa weberiana
de síntese entre as abordagens social e economicista é passível de
críticas. A incapacidade desse autor de se decidir a favor do signi­
ficado substantivo de “econômico” invalidou seus esforços para
esclarecer os problemas da história econômica geral.

291

ÍB8ÍBI
A economia como processo instituído1

Nosso principal objetivo neste capítulo é determinar o significado


que se pode atribuir ao term o “econômico”, com coerência, em
todas as ciências sociais.
Todas as tentativas desse tipo começam por reconhecer o fato
de que, ao nos referirmos às atividades humanas, o termo econômi­
co é um composto de dois sentidos que têm raízes independentes.
Vamos chamá-los de significado substantivo e significado formal.
O significado substantivo de econômico decorre da dependên­
cia que o ser hum ano tem da natureza e dos semelhantes para
sobreviver. Refere-se ao seu intercâm bio com o meio natural e
social, na medida em que isso resulta em lhe fornecer os méios
para satisfazer suas necessidades materiais.
O significado formal de econômico deriva do caráter lógico da
relação meios/fins, como se evidencia em palavras como “econô­
mico” [no sentido de frugal, parcimonioso] ou “economizador”.
Refere-se a um a situação definida de escolha, ou seja, a escolha
que se faz entre os diferentes usos dos recursos, induzida por um a
insuficiência desses mesmos recursos. Se chamarmos as norm as
que regem a escolha dos recursos de lógica da ação racional, pode-

1 D o capítulo 13, “The Economy as Instituted Process”, p. 243-270, de Karl Polanyi, Con-
rad M. Arensberg e Harry W. Pearson (orgs.), Trade and M arket in the Early Empires.
Glencoe, Iilinois: The Free Press, 1957. [Polanyi condensou neste único capítulo todas
as categorias conceituais importantes que concebeu para analisar as economias que
não são de mercado: os dois sentidos de “econômico”; reciprocidade, redistribuição e
troca (de mercado); formas de comércio (exterior), usos do dinheiro e mercados; re­
cursos operacionais etc. Trata-se, portanto, de um ensaio denso e difícil, no qual fiz
inserções editoriais com mais frequência que em outros textos. A Introdução deste
volume foi escrita com toda a sua extensão para esclarecer alguns dos importantes
conceitos analíticos aqui mencionados. Ver também George Dalton, “Economic Theo-
ry and Primitive Society”, American Anthropologist, fevereiro de 1961; “Traditional
Production in Primitive African Economies”, The Quarterly Journal ofEconomics, agos­
to de 1962; “Primitive Money”, American Anthropologist, fevereiro de 1965. N.E.]

293
KARL POLANYI

rem os denotar essa variante da lógica com um term o im provi­


sado: econom ia formal.
Os dois sentidos radicais de e c o n ô m ic o , o substantivo e o for­
m al, nada têm em com um . O prim eiro decorre da realidade; o
segundo, da lógica. O significado formal im plica um conjunto de
regras que se referem à escolha entre usos alternativos de recursos
insuficientes. O significado substantivo não im plica escolha nem
insuficiência de recursos; a subsistência hum ana pode envolvei- ou
não a necessidade de escolha e, quando há escolha, ela não precisa
ser induzida pelo efeito lim itante de um a “escassez” dos meios;
aliás, algumas das mais im portantes condições físicas e sociais de
subsistência, com o a disponibilidade de ar e de água, o u a dedica­
ção de um a m ãe amorosa a seu filho pequeno, em geral não são
tão lim itantes. A persuasividade que entra em ação num caso e no
outro difere tanto quanto a força do silogism o difere da força da
gravidade. As leis de um são da mente; as do outro, da natureza.
Os dois significados não poderíam ser mais distantes; em termos
sem ânticos, encontram -se em extrem os opostos.
Só o significado substantivo de e c o n ô m ic o é capaz de gerar os
conceitos exigidos pelas ciências sociais, tendo em vista uma in­
vestigação de todas as econom ias empíricas do passado e do pre­
sente. O quadro de referência geral que nos em p en ham os em
construir requer, portanto, que o assunto em exame seja tratado
em term os substantivos. O obstáculo im ediato a n osso avanço,
com o vim os, reside no conceito de e c o n ô m ic o , em que os dois sen­
tidos, o substantivo e o formal, são ingenuam ente agregados. Essa
fusão de significados é irrepreensível, é claro, desde que permane­
çam os conscientes de seus efeitos restritivos. Mas o conceito atual
de e c o n ô m ic o funde os sentidos de “subsistência” e “escassez” qu e
há no term o, sem que haja um a consciência suficiente dos riscos
inerentes a essa fusão para a clareza de pensam ento.
Essa com binação de term os surgiu de circunstâncias imprevis­
tas no plano da lógica. Os dois últim os séculos produziram , na
Europa O cidental e na Am érica do N orte, um a organização da

294
A ECONOMIA COMO P R O C E S S O IN STIT UÍD O

subsistência hum ana à qual, por acaso, as regras da escolha revela­


ram-se singularm ente aplicáveis. Essa forma da econom ia consis­
tiu num sistema de mercados formadores de preços. Visto que os
atos de troca, tal com o praticados nesse sistema, envolvem os par­
ticipantes em escolhas induzidas por um a insuficiência de recur­
sos, o sistema pôde ser reduzido a um padrão que se prestava à
aplicação de m étodos baseados no significado form al de e c o n ô m i­
co. Desde que a econom ia fosse controlada por tal sistema, os sig­
nificados formal e substantivo coincidiriam na prática. Os leigos
aceitaram esse conceito com pósito com o um dado corriqueiro;
autores com o Marshall, Pareto ou Durkheim aderiram igualm en­
te a ele. Apenas Menger, em sua obra póstum a, criticou o term o,
mas nem ele nem M ax Weber, nem Talcott Parsons depois deste,
captaram a im portância da distinção para a análise sociológica.
Com efeito, não parecia haver nenhum a razão válida para distin­
guir entre dois sentidos originários de um term o que, com o disse­
m os, estavam fadados a coincidir na prática (quando aplicados
à nossa econom ia).
Portanto, em bora fosse puro pedantism o diferenciar os dois
sentidos de e c o n ô m ic o no linguajar com um , sua fusão no m esm o
conceito revelou-se um veneno para um a m etodologia precisa nas
ciências sociais. A econom ia constituiu um a exceção, naturalm en­
te, já que, n o sistema de mercado, era fatal que esse term o fosse
bastante realista. Mas o antropólogo, o sociólogo ou o historiador,
cada qual em seu estudo do lugar ocupado pela econom ia na so­
ciedade hum ana, deparavam com um a enorm e variedade de ou ­
tras instituições que não os m ercados, nas quais se enraizava a
subsistência do hom em . Os problemas de seu estudo não podiam
ser atacados com a ajuda de um m étodo analítico concebido para
um a form a especial da econom ia que dependia da presença de
elem entos específicos de m ercado.2

2 O emprego acrítico do conceito compósito fomentou o que bem poderiamos chamar


de “falácia economicista”. Ela consistiu na identificação artificial da economia com sua
forma de mercado. De Hume e Spencer até Frank H. Rnight e Northrop, o pensamen-

295
KARL POLANYI

Isso resume a sequência aproximada da argumentação.


Começaremos por um exame mais detido dos conceitos deri­
vados dos dois sentidos de econômico, partindo do formal e pros­
seguindo para o significado substantivo. Deverá então ser possível
descrever as economias empíricas — tanto primitivas quanto ar­
caicas — de acordo com a maneira pela qual se institui o processo
econômico. Três instituições, comércio, dinheiro e mercado, pro­
porcionarão um exemplo paradigmático. Elas foram anterior- ■;
mente definidas apenas em termos formais, impedindo-se, assim,
qualquer outra abordagem que não a do mercado. Por isso seu
exame em termos substantivos deverá aproximar-nos mais do de­
sejado quadro de referência universal.

Os significados formal e substantivo de "econômico”


Examinemos os conceitos formais, partindo da maneira como a
lógica da ação racional produz a economia formal e esta, por sua
vez, dá origem à análise econômica.
Definimos aqui ação racional como um a escolha de meios
em relação aos fins. Os meios são qualquer coisa apropriada para
atingir um fim, seja em virtude das leis da natureza, seja em virtu­
de das regras do jogo. Portanto, “racional” não se refere aos fins nem
aos meios, mas à relação dos meios com os fins. Não se presume, por
exemplo, que seja mais racional querer viver do que querer mor­
rer, ou que, no primeiro caso, seja mais racional buscar um a vida
longa por meio da ciência que da superstição. Seja qual for o fim,
é racional escolher os meios em consonância com ele; quanto aos
meios, não seria racional agir com base em nenhum outro teste
senão aquele em que se confia. Logo, é racional que o suicida es­

to social sofreu com essa limitação, toda vez que tocava na economia. O ensaio de
Lionel Robbins intitulado The Nature and Significance ofEconomic Science [A natureza >
e a importância da ciência econômica] (1932), apesar de útil para os economistas,
distorceu fatalmente esse problema. No campo da antropologia, um trabalho recente *
de Melville Herskovits, Economic Anthropology [Antropologia econômica] (1952), re-
presenta uma recaída, após seu esforço pioneiro de 1940, The Economic Life o f Primi
tive Peoples [A vida econômica dos povos primitivos].

296 II
fj
&
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

colha meios que acarretem sua morte, e, se ele for adepto da magia
negra, que procure um feiticeiro para atingir esse objetivo.
A lógica da ação racional, portanto, aplica-se a todos os meios
e fins concebíveis, abarcando um a variedade quase infinita de in­
teresses humanos. No jogo de xadrez ou na tecnologia, na vida
religiosa ou na filosofia, os fins podem ir de questões corriqueiras
até as mais profundas e complexas. Similarmente, no campo da
economia, no qual os fins podem ir da saciação m om entânea da
sede à chegada a um a robusta idade avançada, os meios corres­
pondentes abrangem um copo de água e a confiança conjunta na
solicitude filial e na vida ao ar livre, respectivamente.
Supondo-se que a escolha seja induzida por um a insuficiência
de meios, a ação lógica ou racional transforma-se naquela varian­
te da teoria da escolha que chamamos de economia formal. Ela
continua sem relação lógica com o conceito de economia humana,
mas está um passo mais perto dele. A economia formal, como dis­
semos, refere-se a um a situação de escolha que brota da insufi­
ciência de recursos. Esse é o chamado postulado da escassez. Ele
requer, primeiro, um a insuficiência de meios, segundo, que a esco­
lha seja induzida por essa insuficiência. A insuficiência de meios
em relação aos fins é determinada com a ajuda da simples opera­
ção de “destinação” ou “reserva”, que demonstra se existe ou não o
suficiente de algo. Para que a insuficiência induza a escolha, deve
haver mais de um uso para os meios, bem como fins escalonados,
isto é, pelo menos dois objetivos ordenados num a sequência de
preferências. Essas duas condições são factuais. É irrelevante se a
razão pela qual os meios podem ser usados de determinada m a­
neira é convencional ou tecnológica; o mesmo se aplica ao escalo­
namento dos fins.
Havendo assim definido escolha, insuficiência e escassez em
termos operacionais, é fácil perceber que, tal como existe escolha
de meios sem insuficiência, existe insuficiência de meios sem es­
colha. A escolha pode ser induzida por uma preferência pelo certo
em vez do errado (escolha moral), ou por um a encruzilhada em
KARL POLANYI

que dois ou mais caminhos porventura levam ao nosso destino,


possuindo vantagens e desvantagens idênticas (escolha operacio­
nalmente induzida). Num caso ou noutro, a abundância de meios,
longe de reduzir as dificuldades da escolha, mais faria aumentá-
-las. É claro que a escassez pode ou não estar presente em quase
todos os campos da ação racional. Nem toda filosofia é pura cria­
tividade imaginativa: também pode ser uma questão de economi­
zar nas suposições. Ou, voltando à esfera da subsistência humana,
em algumas civilizações, as situações de escassez parecem ser ex­
cepcionais, e em outras, dolorosamente generalizadas. Em qual­
quer dos casos, a presença ou ausência da escassez é uma questão
de fato, quer a insuficiência se deva à natureza ou à lei.
Por último, porém não menos im portante, a análise econômi­
ca. Essa disciplina resulta da aplicação da economia formal a uma
economia de tipo definido, qual seja, um sistema de mercado.
Nesse caso, a economia encarna-se em instituições que fazem com
que as escolhas individuais deem origem a movimentos interde­
pendentes que constituem o processo econômico. Isso é alcançado
mediante a generalização dos mercados formadores de preços. To­
dos os bens e serviços, inclusive o uso do trabalho, da terra e do
capital, estão disponíveis para compra nos mercados e, por conse­
guinte, têm um preço; todas as formas de renda decorrem da ven­
da de bens e serviços — salários, renda e juros, respectivamente,
que aparecem como diferentes exemplos de preços, conforme os
artigos vendidos. A introdução geral do poder de compra como
meio de aquisição converte o processo de satisfazer os requisitos
num a alocação de recursos insuficientes que podem ter usos alter­
nativos, ou seja, de dinheiro. Decorre daí que tanto as condições
de escolha quanto suas consequências são quantificáveis na forma
dos preços. Podemos afirmar que, ao se concentrar no preço como
o dado econômico por excelência, o método formal de abordagem
oferece um a descrição completa da economia, tal como determi­
nada pelas escolhas induzidas por um a insuficiência de recursos.

298
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

Os instrumentos conceituais pelos quais isso é feito compõem a


disciplina da análise econômica.
Decorrem daí os limites dentro dos quais a análise econômica
pode revelar-se eficaz como método. O uso do significado formal
faz da economia um a sequência de atos de economizar, isto é, de
escolhas induzidas por situações de escassez. Embora as normas
que regem esses atos sejam universais, a extensão em que as regras
são aplicáveis a um a dada economia depende de essa economia
ser ou não, de fato, um a sequência de tais atos. Para produzir re­
sultados quantitativos, os movimentos de localização ou de apro­
priação, nos quais consiste o processo econômico, devem apre­
sentar-se aqui como funções de atos sociais relacionados com os
meios insuficientes e orientados com base nos preços resultantes.
Essa situação só prevalece nos sistemas de mercado.
A relação entre a economia formal e a economia hum ana é
contingente. Fora de um sistema de mercados formadores de pre­
ços, a análise econômica perde a maior parte de sua importância
como método de investigação do funcionamento da economia.
Uma economia de planejamento central, que dependa de preços
não formados no mercado, é um exemplo bem conhecido.
A fonte do conceito substantivo é a economia empírica. Ela
pode ser definida em termos sucintos (se bem que de forma não
muito atraente) como um processo instituído de interação entre
o hom em e seu meio que resulta num suprimento contínuo de
meios que satisfazem necessidades materiais. A satisfação das ne­
cessidades é “material” quando envolve o uso de meios materiais
para satisfazer os fins; no caso de um tipo definido de carências
fisiológicas, como as de alimento ou de abrigo, isso inclui somen­
te o uso dos chamados serviços.
A economia, portanto, é um processo instituído. Dois concei­
tos se destacam: o de “processo” e o da maneira como ele é “ins­
tituído”. Vejamos de que m odo eles contribuem para o nosso qua­
dro de referência.

299
KARL POLANYI

Processo sugere uma análise em termos de movimento. Os mo­


vimentos referem-se a mudanças de localização ou de apropria- *
ção, ou ambas. Em outras palavras, os elementos materiais podem \
alterar sua posição, quer m udando de lugar, quer m udando de \
“mãos”, e essas mudanças de posição, m uito diferentes noutros I
aspectos, podem ou não ocorrer juntas. Em conjunto, podemos
dizer que esses dois tipos de movim entos esgotam as possibili- ;
dades abarcadas no processo econômico como um fenômeno na- *>
tural e social. !
Os movimentos de localização incluem a produção e o trans-
'a

porte, para os quais o deslocamento espacial dos objetos é igual- .


mente essencial. Os bens são de ordem inferior ou superior, de 3
acordo com sua utilidade do ponto de vista do consumidor. Essa
famosa “ordem dos bens” coloca os bens de consumo contra os '
bens de produção, conforme eles satisfaçam as necessidades dire- •
tamente ou só indiretamente, por meio de um a combinação com •
outros bens. Esse tipo de movimentação dos elementos representa
um aspecto essencial da economia no sentido substantivo do ter- j
mo, ou seja, a produção. /
O movimento apropriativo rege aquilo a que costumamos nos
referir como circulação de bens e sua administração. No primeiro
caso, esse movimento resulta de transações; no segundo, de dispo­
sições. Por conseguinte, a transação é um movimento apropriativo
entre mãos, enquanto a disposição é um ato unilateral da mão ao
qual, por força do costume ou da lei, ligam-se efeitos apropriativos
definidos. O term o “mão” serve aqui para denotar órgãos e agên- .
cias públicos, bem como pessoas ou empresas privadas, sendo a
diferença entre eles sobretudo um a questão da organização inter­
na. Entretanto, convém notar que, no século XIX, as mãos priva­
das eram comumente associadas às transações, enquanto as mãos
públicas habitualmente ficavam com as disposições.
Nessa escolha de termos estão implicadas várias outras defi­
nições. As atividades sociais, na medida em que fazem parte do
processo, podem ser chamadas de econômicas; as instituições são

300
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

assim chamadas na medida em que contêm um a concentração


dessas atividades; qualquer componente do processo pode ser visto
como um elemento econômico. Esses elementos podem ser conve­
nientemente agrupados como ecológicos, tecnológicos ou sociais,
conforme pertençam primordialmente ao meio ambiente natural,
ao equipamento mecânico ou ao contexto humano. Assim, um a
série de conceitos, antigos e novos, soma-se ao nosso quadro de
referência, em virtude do aspecto processual da economia.
No entanto, reduzido a um a interação mecânica, biológica e
psicológica dós elementos, esse processo econômico não possuiría
uma realidade abrangente. Conteria não mais que o esqueleto dos
processos de produção e transporte, bem como das mudanças de
apropriação. Na falta de qualquer indicação das condições sociais
de que brotariam as motivações dos indivíduos, haveria pouco
ou nada para sustentar a interdependência dos movimentos e sua
recorrência, das quais dependem a unidade e a estabilidade do
processo. Os elementos interagentes da natureza e da humanidade
não formariam uma unidade coerente nem, a rigor, um a entidade
estrutural que se pudesse dizer dotada de um a função na socieda­
de ou um a história. Faltariam ao processo justamente as qualida­
des que fazem a reflexão do dia a dia e o saber erudito voltarem-se
para as questões da subsistência hum ana como um campo de emi­
nente interesse prático, bem como de dignidade teórica e moral.
Daí a importância transcendente da faceta institucional da eco­
nomia. O que ocorre no nível processual entre o hom em e o solo,
na capinação de um pedaço de terra, ou o que ocorre na esteira
rolante na montagem de um automóvel, é, à prim eira vista, um
simples vaivém de m ovim entos hum anos e não hum anos. Do
ponto de vista institucional, é um mero referente de termos como
trabalho e capital, ofício e sindicato, indolência e aceleração da
atividade, disseminação dos riscos e as outras unidades semânticas
do contexto social. A escolha entre capitalismo e socialismo, por
exemplo, refere-se a duas maneiras diferentes de inserir a tecnolo­
gia moderna no processo de produção. No nível político, do mes­

301
KARL POLANYI

mo modo, a industrialização de países subdesenvolvidos envolve,


por um lado, técnicas alternativas e, por outro, métodos alterna­
tivos de inseri-las. Nossa distinção conceituai é vital para qualquer
compreensão da interdependência da tecnologia e das institui­
ções, bem como de sua relativa independência.
A instituição do processo econômico dota esse processo de unidade
e estabilidade; produz um a estrutura com um a função definida na
sociedade; desloca o lugar da economia na sociedade, com isso
acrescentando im portância a sua história; centraliza o interesse
nos valores, nas motivações e nas medidas políticas. Unidade e
estabilidade, estrutura e função, história e política explicitam ope­
racionalmente o teor de nossa assertiva de que a economia h u ­
m ana é um processo instituído.
A economia hum ana se enraiza em instituições econômicas e
não econômicas e se entrelaça com elas. A inclusão do não eco­
nômico é vital, pois a religião ou o governo podem ser tão im por­
tantes para a estrutura e o funcionamento da economia quanto as
instituições monetárias ou a disponibilidade dos próprios instru­
mentos e máquinas que aliviam o fardo do trabalho.
O estudo do lugar mutável ocupado pela economia na socieda­
de, por conseguinte, não é outro senão o estudo da maneira pela
qual o processo econômico será instituído em diferentes épocas e
lugares.
Isso requer um a caixa de ferramentas especial.

Reciprocidade, redistribuição e troca [m ercantil]3


O estudo de como são instituídas as economias empíricas deve
partir da maneira pela qual a economia adquire unidade e estabi­
lidade, ou seja, da interdependência e da recorrência de suas par­
tes. Isso é alcançado pela combinação de um núm ero m uito pe­
queno de padrões, que podem ser chamados formas de integração.

3 Ao longo de todo o texto, o que Polanyi quer dizer com “troca” é a troca mercantil.
[N.E.]

302
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

Como eles ocorrem lado a lado, em diferentes níveis e em diferen­


tes setores da economia, muitas vezes é impossível selecionar um
deles como dominante, para que se possa usá-los num a classifica­
ção das economias empíricas em geral. Todavia, por fazerem um a
diferenciação entre setores e níveis da economia, essas formas pro­
porcionam um meio para se descrever o processo econômico em
termos relativamente simples, com isso introduzindo certa ordem
em suas variações intermináveis.
Empiricamente, constatamos que os padrões principais são a
reciprocidade, a redistribuição e a troca. A reciprocidade diz res­
peito a movimentos entre pontos correlatos de grupos simétricos;
a redistribuição designa movimentos de apropriação em direção a
um centro e partindo dele; a troca refere-se, aqui, a movimentos
m útuos que ocorrem entre “mãos” num sistema de mercado. Por­
tanto, a reciprocidade pressupõe como pano de fundo grupos si­
metricamente dispostos; a redistribuição depende da presença de
certa medida de centralidade no grupo; a troca, para produzir in­
tegração, requer um sistema de mercados formadores de preços.
É evidente que os diferentes padrões de integração exigem claros
respaldos institucionais.
Neste ponto, um pequeno esclarecimento talvez seja bem -vin­
do. Os termos reciprocidade, redistribuição e troca, com os quais
nos referimos às formas de integração, são empregados com fre­
quência para denotar inter-relações pessoais. N um a visão super­
ficial, portanto, as formas de integração pareceriam m eram ente
refletir agregados das respectivas formas de comportam ento indi­
vidual: se a m utualidade entre os indivíduos fosse frequente,
emergiría um a integração recíproca; quando o compartilhamento
entre os indivíduos fosse comum, estaria presente um a integração
redistributiva; similarmente, os atos frequentes de perm uta entre
indivíduos resultariam na troca como forma de integração. Se as­
sim fosse, nossos padrões de integração realm ente não seriam
mais do que simples agregados de formas correspondentes de
comportamento no nível pessoal. Houve, decerto, um a insistência

303
KARL POLANYI

nossa em que o efeito integrador era condicionado pela presença


de arranjos institucionais claros, como organizações simétricas,
pontos centrais e sistemas de mercado, respectivamente. Porém,
tais arranjos parecem representar um mero agregado dos mes­
mos padrões pessoais cujos eventuais efeitos eles supostamente
condicionam.
Eis o dado significativo: os meros agregados das condutas pes­
soais não produzem, por si sós, essas estruturas. O comportamen­
to de reciprocidade entre indivíduos só integra a economia quan­
do há estruturas simetricamente organizadas, como um sistema
simétrico de grupos de parentesco. Todavia, um sistema áeparen­
tesco nunca surge como resultado do mero comportamento de reci­
procidade no nível pessoal. O mesmo se dá com respeito à redis-
tribuição. Ela pressupõe a presença de um centro de alocação na
comunidade, mas a organização e a validação desse centro não
surgem como mera consequência de atos frequentes de comparti­
lhamento entre indivíduos. Por fim, o mesmo se aplica ao sistema
de mercado. Os atos de troca no plano pessoal só produzem pre­
ços quando ocorrem num sistema de mercados formadores de
preços, um arranjo institucional que nunca surge de simples atos
aleatórios de troca.
Não queremos dizer, é claro, que esses padrões de sustentação
sejam resultantes de forças misteriosas que atuem fora do âmbito
do comportamento pessoal ou individual. Mas insistimos em que,
se num dado caso, os efeitos sociais da conduta individual depen­
dem da presença de condições institucionais definidas, nem por
isso tais condições resultam do com portam ento pessoal em ques­
tão. Superficialmente, o padrão de apoio pode parecer resultar
do acúmulo de um tipo correspondente de comportamentos pes­
soais, mas os elementos vitais de organização e validação provêm,
necessariamente, da contribuição de um tipo totalmente diferente
de conduta.
Ao que saibamos, o primeiro autor a detectar um a ligação fac­
tual entre o comportamento de reciprocidade no nível interpes-

304

I

A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

soai, de um lado, e os grupos simétricos, de outro, foi o antropó­


logo Richard Thurnwald, em 1915, num estudo empírico sobre
o sistema m atrim onial dos bánaros da Nova Guiné. Bronislaw
Malinowski, uns dez anos depois, referindo-se a Thurnwald, pre­
viu que se constataria que a reciprocidade socialmente relevante
apoiava-se em formas simétricas de organização social básica. Sua
própria descrição do sistema de parentesco das ilhas Trobriand e
do comércio kula corroborou essa posição. Tal orientação foi se­
guida por esse autor, ao ver a simetria como apenas um dentre
diversos padrões de apoio. Ele acrescentou então a redistribuição
e a troca à reciprocidade, como outras formas de integração; si­
milarmente, acrescentou a centralidade e o mercado à simetria,
como outros exemplos de respaldo institucional. Daí as nossas
formas de integração e padrões estruturais de apoio.
Isso deve ajudar a explicar por que, na esfera econômica, é tão
frequente o com portam ento interpessoal não ter os efeitos sociais
esperados, na ausência de precondições institucionais definidas.
Só num ambiente simetricamente organizado é que o com por­
tamento de reciprocidade resulta em instituições econômicas de
peso; só quando se instalaram centros de alocação é que os atos
individuais de compartilhamento podem produzir um a economia
redistributiva; e só na presença de um sistema de mercados for­
madores de preço é que os atos de troca dos indivíduos resultam
em preços flutuantes que integram a economia. De outro modo,
tais atos de perm uta permanecem ineficazes e, com isso, tendem a
não ocorrer. Entretanto, ainda que aconteçam de maneira aleató­
ria, instaura-se um a violenta reação emocional, como a que se dá
contra atos obscenos ou atos de traição, pois o com portam ento
comercial nunca é emocionalmente indiferente e, portanto, não é
tolerado pela opinião pública fora dos canais aprovados.
Voltemos agora a nossas formas de integração.
Um grupo que se dedicasse propositalmente a organizar suas
relações econômicas com base na reciprocidade teria, para realizar
seu propósito, que se dividir em subgrupos cujos membros corres­

305
KARL POLANYI

pondentes pudessem identificar uns aos outros como tais. Assim, *


os membros do grupo A ficariam aptos a estabelecer relações de í
reciprocidade com seus equivalentes do grupo B, e vice-versa. Mas ;
a simetria não se restringe à dualidade. Três, quatro ou mais grupos |
podem ser simétricos em relação a dois ou mais eixos; ademais, os ,
membros dos grupos não precisam usar de reciprocidade uns com -
os outros, mas podem fazê-lo com os membros correspondentes
de um terceiro grupo com o qual mantenham relações análogas. 1
A responsabilidade de um homem de Trobriand é com a família de
sua irmã. Nem por isso, contudo, ele próprio é auxiliado pelo ma­
rido da irmã, e sim, se for casado, pelo irm ão de sua mulher —
membro de um a terceira família em posição correspondente.
Aristóteles ensinava que a todo tipo de comunidade [koinõnia]
correspondia um a espécie de afeição [philia] entre os membros, a
qual se expressava na reciprocidade [antipeponthos]. Isso se apli­
cava tanto às comunidades mais permanentes, como famílias, tri­
bos ou cidades-estado, quanto às menos permanentes, que po­
diam estar compreendidas nas primeiras e subordinadas a elas.
Em nossos termos, isso implica uma tendência, nas comunidades
maiores, para desenvolver uma simetria m últipla, em relação à
qual o com portam ento de reciprocidade pode desenvolver-se nas
comunidades subordinadas. Quanto mais os membros da comu­
nidade maior se sentem atraídos uns pelos outros, mais se genera­
liza entre eles a tendência a desenvolver atitudes de reciprocidade
com respeito a relações específicas, limitadas no espaço, no tempo
ou de outras maneiras. O parentesco, a vizinhança ou o totem fa- "
zem parte dos grupos mais permanentes e abrangentes; no âmbito
deles, as associações voluntárias e semivoluntárias de caráter mili­
tar, profissional, religioso ou social criam situações em que, pelo
menos transitoriamente, em relação a uma dada localidade ou a
uma situação típica, formam-se grupos simétricos cujos membros
praticam alguma forma de mutualidade.
A reciprocidade como forma de integração ganha enorme poder
por sua capacidade de usar a redistribuição e a troca como métodos
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

subalternos.4 A reciprocidade pode ser alcançada m ediante um


com partilham ento do fardo do trabalho, de acordo com regras
definidas de redistribuição, como quando as coisas são feitas “em
revezamento”. Do mesmo modo, às vezes se chega à reciprocidade
mediante a troca de equivalências fixas, em prol do parceiro que
porventura esteja carecendo de algum tipo de necessidade básica
— uma instituição fundamental nas antigas sociedades orientais.
Nas economias que não são de mercado, com efeito, essas duas
formas de integração —- reciprocidade e redistribuição — costu­
m am ocorrer juntas.
A redistribuição prevalece num grupo na m edida em que a
alocação de bens seja coletada com um a das mãos e ocorra em
virtude do costume, da lei ou de um a decisão central aâ hoc. Às
vezes, corresponde a um a coleta física, acompanhada de armaze­
nagem e redistribuição; noutras ocasiões, a “coleta” não é física,
mas meramente apropriativa, ou seja, é o direito de dispor dos
bens em sua localização física. A redistribuição ocorre por muitas
razões, em todos os níveis de civilização, desde a tribo caçadora
primitiva até os vastos sistemas de armazenamento do Egito, Su-
méria, Babilônia ou Peru antigos. Nos países grandes, as diferen­
ças do solo e do clima podem tornar necessária a redistribuição;
esta também pode ser causada por discrepâncias temporais, como
entre a colheita e o consumo. Na caça, qualquer outro método de
distribuição levaria à desintegração da horda ou do bando, já que,
nesse caso, somente a “divisão do trabalho” pode garantir os resul­
tados; a redistribuição do poder aquisitivo pode ser valorizada por
ela mesma, isto é, para os propósitos exigidos pelos ideais sociais,
como no moderno Estado de bem-estar. O princípio permanece o
mesmo — fazer a coleta para um centro e a distribuição a partir
dele. A redistribuição também pode se aplicar a grupos menores
que a sociedade, como o círculo familiar ou a casa senhorial, inde­

4 Acrescento o grifo para enfatizar que Polanyi falava com muita clareza ao situar a reci­
procidade, a redistribuição e a troca (mercantil) como modos de transação, não como
designações de economias inteiras ou de sistemas econômicos. [N.E.]

307
" 'r f !

KARLPOLANYi

pendentemente da maneira eomo a economia em geral se integre.


Os exemplos mais conhecidos são o kraal centro-africano, a famí­
lia patriarcal hebraica, o Estado grego da época de Aristóteles, a
família rom ana, a senhoria feudal da Idade M édia ou o círculo
familiar tipicamente grande do camponês, antes da comercializa­
ção geral dos cereais. Porém, somente em um a forma relativamen­
te avançada de sociedade agrícola a administração da economia
doméstica é viável, além de bastante geral. Antes disso, a “família
nuclear”, m uito disseminada, não é economicamente instituída,
exceto num a parte do preparo dos alimentos; o uso do pasto, da
terra ou do gado ainda é dominado por métodos redistributivos e
de reciprocidade em escala maior que a da família.
Também a redistribuição é capaz de integrar grupos de todos
os níveis e com todos os graus de permanência, desde o próprio
Estado até unidades de caráter transitório. Aqui, mais um a vez,
tal como se dá com a reciprocidade, quanto mais estreitamente
unido é o grupo abrangente, mais variadas serão as subdivisões
em que a redistribuição poderá operar. Platão ensinava que o
núm ero de cidadãos no Estado devia ser 5.040. Esse núm ero era
divisível de 59 maneiras diferentes, incluindo-se a divisão pelos
dez prim eiros numerais. O filósofo explicava que, para determinar
os impostos, form ar grupos para transações de negócios e arcar
“alternadam ente” com ônus militares e outros, ele perm itiría o
alcance mais amplo.
Para servir como forma de integração, a troca requer o apoio
de um sistema de mercados formadores de preços. Assim, convém
distinguir três tipos de troca: o movimento meramente locativo de
um a “m udança de lugar” entre mãos (troca operacional) e os m o­
vim entos apropriativos de troca com um a taxa fixa (troca decisó-
ria) ou com um a taxa negociada (troca integradora). Na medida
em que se trata da troca com taxa definida, a economia é integrada
pelos fatores que determ inam essa taxa, não pelo mecanismo de
mercado. Os próprios mercados formadores de preços só são in­
tegradores quando estão ligados em um sistema que tenda a disse­

308
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

m inar o efeito dos preços para outros mercados que não os dire­
tamente afetados.
O regateio foi corretamente reconhecido como sendo a essên­
cia do comportamento de negociação. Para que a troca seja inte-
gradora, o comportam ento dos parceiros deve ser orientado para
produzir um preço que seja tão favorável a cada um quanto possí­
vel. Esse com portam ento contrasta nitidamente com o da troca
por um preço definido. A ambiguidade do term o “ganho” tende a
encobrir essa diferença. A troca com base ertl preços fixos não en­
volve nada além do ganho implicado para cada parceiro na deci­
são de trocar; a troca com preços flutuantes visa a um ganho que
só pode ser obtido mediante um a atitude que envolve um a clara
relação de antagonismo entre os parceiros. O elemento de antago­
nismo que acompanha essa variante da troca, por mais que seja
diluído, é inerradicável. Nenhum a comunidade firmemente de­
cidida a proteger a fonte de solidariedade entre seus m em bros
pode perm itir que se desenvolva um a hostilidade latente em torno
de um a questão tão vital para a existência física — e, por conse­
guinte, capaz de despertar angústias tão desgastantes — quanto é
o alimento. Daí a proibição universal de transações de natureza
lucrativa com a comida e os gêneros alimentícios na sociedade
primitiva e arcaica. A proibição do regateio em torno de alimen­
tos, largamente difundida, retira automaticamente os mercados
formadores de preço do campo das instituições primitivas.
Os agrupam entos tradicionais de economias, que se apro­
ximam toscamente de uma classificação segundo as formas d o ­
minantes de integração, revelam-se esclarecedores. O que os his­
toriadores costum am cham ar de “sistemas econômicos” parece
enquadrar-se bastante bem nesse padrão. O predomínio ãe uma
forma de integração identifica-se aqui com o grau em que ela abarca
a terra e o trabalho na sociedade. A chamada sociedade selvagem
caracterizava-se pela integração da terra e do trabalho na econo­
mia por meio dos laços de parentesco. Na sociedade feudal, os la­
ços de vassalagem determinavam o destino da terra e do trabalho

309
KARL POLANYI

que a acompanhava. Nos impérios baseados nas cheias fluviais, a


terra era predominantemente distribuída e, às vezes, redistribuída
pelo templo ou pelo palácio, assim como o era o trabalho, ao me­
nos em sua forma dependente. Pode-se observar a ascensão do mer­
cado à condição de força dominante na economia, assinalando a que
ponto a terra e o alimento foram mobilizados pelas trocas [mercan­
tis] e o trabalho foi transformado em uma mercadoria a ser livre­
mente comprada no mercado. Talvez isso ajude a explicar a im por­
tância da teoria, historicam ente insustentável, dos estágios de
escravidão, servidão e trabalho assalariado que é tradicional no
marxismo — um a ideia que decorreu da convicção de que o cará­
ter da economia era instituído pelo status do trabalho. A integra­
ção da terra na economia, entretanto, deve ser encarada como não
menos vital.
Seja como for, as formas de integração não representam “está­
gios” de desenvolvimento. Não há nenhum a sequência temporal
implicada. Diversas formas subordinadas podem estar presentes
ao lado da forma dominante, a qual, por sua vez, pode repetir-se
após um eclipse tem porário. As sociedades tribais praticavam a
reciprocidade e a redistribuição, enquanto as sociedades arcaicas
eram predom inantem ente redistributivas, ainda que, em certa
medida, pudessem dar margem à troca. A reciprocidade, que de­
sempenha um papel dominante em algumas comunidades mela-
nésias, ocorria como um traço não sem importância, mas subal­
terno, nos impérios arcaicos redistributivos, nos quais o comércio
exterior (praticado sob a forma de presentes e contrapresentes)
ainda era largamente organizado segundo o princípio da recipro­
cidade. Com efeito, num a emergência de guerra, ele foi reintrodu-
zido em larga escala no século XX, sob o nom e de empréstimo-
-arrendamento, em sociedades em que, afora isso, as transações de
mercado e a troca eram dominantes. A redistribuição, método
predominante na sociedade tribal e arcaica, ao lado do qual a tro ­
ca desempenhava apenas um pequeno papel, assumiu grande im ­
portância no fim do Império Romano e, na verdade, vem ganhan­

310
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

do terreno em alguns Estados industriais m odernos. A União


Soviética é um exemplo extremo. Inversamente, em mais de um a
ocasião anterior, no decorrer da história hum ana, os mercados
desempenharam um papel na economia, embora nunca em escala
territorial nem com um a abrangência institucional comparável à
do século XIX. Todavia, tam bém nesse ponto evidencia-se um a
mudança. No século XX, com o declínio do padrão-ouro, o papel
mundial dos mercados dim inuiu em relação a seu pico oitocentis-
ta — uma inversão de tendência, aliás, que hos reconduz a nosso
ponto de partida, ou seja, à crescente insuficiência de nossas limi­
tadas definições de mercado para efeito de estudo do âmbito eco­
nômico pelos cientistas sociais.

Formas de comércio [exterior],5 usos do dinheiro


e elementos de mercado
A influência restritiva da abordagem do mercado na interpretação
das instituições de comércio e dinheiro é incisiva: invariavelmente,
o mercado aparece como o locus da troca, o comércio é a troca real
e o dinheiro é o meio de troca. Como o comércio é norteado pelos
preços e os preços são uma função do mercado, todo comércio é
comércio mercantil, assim como todo dinheiro é moeda de troca.
O mercado é a instituição geradora da qual o comércio e o dinhei­
ro são funções.
Tais idéias não são fiéis aos fatos da antropologia e da história.
O comércio, assim como alguns usos do dinheiro, é antigo como a
humanidade; embora possa ter havido reuniões de caráter econô­
mico já no Neolítico, os mercados só adquiriram importância em
época relativamente tardia da história. Segundo todos os depoi­
mentos, os mercados formadores de preços, os únicos constitu­
tivos de um sistema de mercado, inexistiam antes do primeiro m i­
lênio da Antiguidade e, mesmo assim, vieram a existir apenas para

5 Quase invariavelmente, Polanyi usa trade [comércio] para se referir ao comércio exte­
rior ou estrangeiro. [N.E.]

311
KARL POLANYI

ser eclipsados por outras formas de integração. Nem essas grandes


realidades, entretanto, puderam ser desvendadas enquanto se con­
siderou que o comércio e o dinheiro limitavam-se à forma de im
tegração via troca, como sua forma especificamente econômica.;
Os longos períodos da história em que a reciprocidade e a redistri- *
buição integraram a economia, e o âmbito considerável em que, ;'
mesmo nos tempos modernos, continuaram a fazê-lo, tudo isso
foi posto fora dos limites por um a terminologia restritiva.
Vistos como um sistema de troca, ou, em suma, por um prisma \
catalático,6 o comércio, o dinheiro e o mercado compõem um ,
todo indivisível. Seu arcabouço conceituai comum é o mercado.
O comércio aparece como um m ovimento bidirecional de bens
pelo mercado, e o dinheiro, como bens quantificáveis usados na
troca indireta para facilitar esse movimento. Essa abordagem está
fadada a induzir à aceitação mais ou menos tácita do princípio
heurístico de que onde há um a evidência de comércio deve-se
presumir a presença de mercados, e, quando o dinheiro está em
evidência, o comércio e, portanto, os mercados devem ser presu-1
midos. Isso leva a ver mercados onde eles não existem e a ignorar ’
o comércio e o dinheiro quando eles estão presentes, por estarem
ausentes os mercados. É fatal que o efeito cumulativo disso seja a
criação de um estereótipo das economias de épocas e lugares me­
nos conhecidos, algo assim como um a paisagem postiça que tem
pouca ou nenhum a semelhança com o original.
Torna-se oportuna, portanto, um a análise separada do comér­
cio, do dinheiro e dos mercados.

1. Formas de comércio
Do ponto de vista substantivo, o comércio é um método relativa­
mente pacífico de adquirir bens que não se encontram disponíveis
in loco. É externo ao grupo, semelhante a atividades que estamos

6 Com “catalático” Polanyi refere-se ao que é pertinente à troca via mercado. Ao longo
de todo este ensaio, usei as palavras “mercantil”, “economia formal” ou “economia de
mercado” para substituir “catalático(a)”. [N.E.]

312
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

habituados a associar com caçadas, expedições de captura de es­


cravos ou ataques de piratas. Em qualquer dos casos, o objetivo é
a aquisição e o transporte de bens de um local distante. O que
distingue o comércio e a busca de animais de caça, butins, saques,
madeiras raras ou animais exóticos é o caráter bidirecional do
movimento, que também garante sua natureza geralmente pacífi­
ca e bastante regular.
Do ponto de vista do mercado, [todo] comércio é a movimen­
tação de bens que passam pelo mercado. Todas as mercadorias
— bens produzidos para venda — são objetos potenciais de co­
mércio; umas se deslocam num a direção, outras na direção opos­
ta; o movimento é controlado pelos preços: o comércio e o merca­
do são coextensivos. Todo comércio é comércio mercantil.
Além disso, tal como a caça, as incursões ou as expedições em
condições nativas, o comércio [externo] menos constitui um a ati­
vidade individual que grupai, muito semelhante, nesse aspecto, à
organização da corte e do acasalamento,, que muitas vezes concer­
ne à aquisição de esposas de locais distantes por meios mais ou
menos pacíficos. Assim, o comércio centraliza-se no encontro de
comunidades diferentes, sendo um de seus propósitos a troca de
bens. Esses encontros não produzem, como os mercados forma­
dores de preços, proporções de troca, mas, ao contrário, pressu­
põem essas proporções. Nem a pessoa do comerciante individual
nem motivações de ganho individual estão envolvidas. Quer um
chefe ou rei aja em nome da comunidade, depois de recolher os
bens “de exportação” de seus membros, quer o grupo se encontre
fisicamente com seus equivalentes na praia para efetuar trocas,
o procedimento, em ambos os casos, é essencialmente coletivo.
A troca entre “parceiros comerciais” é frequente, mas tam bém é
frequente a parceria, é claro, na corte e no acasalamento. As ativi­
dades individuais e coletivas se entrelaçam.
A ênfase na “aquisição de bens de locais distantes”, como ele­
mento constitutivo do comércio, deve ressaltar o papel dominante
exercido pelo interesse nas importações, na história inicial do co­
KARL POLANYI

mércio. No século XIX, preponderava o interesse pelas exporta­


ções — um fenômeno típico de mercado.
Visto que uma coisa tem que ser carregada p or um a determi­
nada distância e em duas direções opostas, o comércio, por natu­
reza, tem alguns componentes, como pessoal, bens, transporte e
bilateralidade, que podem ser individualmente decompostos se­
gando critérios significativos em termos sociológicos ou tecnoló­
gicos. Ao examinar esses quatro fatores, podemos ter esperança de
aprender algo sobre o lugar mutável do comércio na sociedade.
Primeiro, as pessoas engajadas no intercâmbio.
A “aquisição de bens de locais distantes” pode ser praticada por
motivos ligados à posição do comerciante na sociedade, os quais,
em geral, abarcam elementos de dever ou de serviço público (mo­
tivação de status), ou pode ser efetuada em prol do ganho material
que ele aufere, pessoalmente, com a transação de compra e venda
em questão (motivação de lucro).
Apesar das muitas combinações possíveis desses incentivos, a
honra e o dever, de um lado, e o lucro, de outro, destacam-se como-
motivações primárias nitidamente distintas. Quando a “motivação
de status” é reforçada por benefícios materiais, como frequente-;
mente acontece, estes últimos não costumam assumir a forma de
ganhos obtidos com a troca, mas de bens preciosos ou dotes de
rendas fundiárias legados ao mercador pelo rei, pelo templo o u .
pelo senhor feudal, à guisa de recompensa. Nessas condições, os
ganhos obtidos com a troca não costumam corresponder a mais do.
que somas insignificantes, sem comparação com a riqueza conferi­
da ao mercador por seu amo, quando o primeiro é engenhoso e
bem-sucedido em suas empreitadas comerciais. Assim, aquele que
comercia por dever e honra enriquece, enquanto o que o faz pelo
reles lucro permanece pobre — mais um a razão pela qual as moti­
vações de lucro são vistas com maus olhos na sociedade arcaica.
Outra maneira de abordar a questão do pessoal é pelo ângulo ’
do padrão de vida considerado apropriado à posição dessas pes- ;
soas pela comunidade a que pertencem.
. A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

Em geral, a sociedade arcaica como um todo não conhece ou­


tro modelo de comerciante senão aquele que pertence ao topo ou
à base da escala social. O primeiro está ligado à autoridade e ao
governo, como é exigido pelas condições políticas e militares do
comércio, o outro depende do rude trabalho de transporte para
ganhar a vida. Esse é um fato de grande importância para com­
preendermos a organização do comércio na Antiguidade. Não po­
dia haver comerciante de classe média, pelo menos entre os cida­
dãos. Afora o Extremo Oriente, que devemos desconsiderar aqui,
existem registros de apenas três exemplos significativos de um a
ampla classe média comercial em tempos pré-modernos: o merca­
dor helênico, basicamente descendente de metecos [estrangeiros
residentes], nas cidades-estado do leste do Mediterrâneo; o ubí­
quo mercador islâmico, que enxertou as tradições marítimas helê-
nicas nos costumes do bazar; por fim, os descendentes do que Pi-
renne chamou de “escória flutuante” da Europa Ocidental, um a
espécie de metecos continentais do segundo terço da Idade Média.
A classe média da Grécia clássica, preconizada por Aristóteles, era
uma classe fundiária que nada tinha de comercial.
Uma terceira forma de abordagem é mais rigorosamente histó­
rica. Os tipos de mercadores da Antiguidade eram o tamkarum, o
meteco (residente estrangeiro) e o “estrangeiro”.
O tamkarum dom inou o cenário mesopotâmico desde os pri-
mórdios da Suméria até a ascensão do islamismo, ou seja, durante
cerca de 3 mil anos. Egito, índia, Palestina, a Mesoamérica anterior
à conquista e a África ocidental nativa não conheceram outro tipo
de comerciante. O meteco tornou-se historicamente visível, pela
prim eira vez, em Atenas e em algumas outras cidades gregas,
como um mercador de classe baixa, e ascendeu com o helenismo
até se tornar o protótipo de um a classe média comercial levantina
ou de língua grega, desde o vale do Indo até as Colunas de H ér­
cules. O estrangeiro, é claro, está em toda parte. Exerce o comér­
cio com tripulações estrangeiras em navios estrangeiros; não “per­
KARL POLANYI

tence” à comunidade nem goza da semicondição de residente es­


trangeiro; integra um a comunidade inteiramente diversa.
Uma quarta distinção é antropológica. Ela fornece a chave para
a figura peculiar do mercador estrangeiro. Embora o número de
“povos m ercantis” a que pertenciam esses “estrangeiros” fosse
comparativamente pequeno, eles respondiam pela instituição am­
plamente difundida do “comércio passivo”. Em conjunto, os povos
mercantis também diferiam em um aspecto importante: os povos
mercantis propriam ente ditos, como podemos chamá-los, depen­
diam exclusivamente do comércio para subsistir, direta ou indi­
retamente; toda a população se dedicava a essa atividade, como
acontecia com os fenícios, os rodienses, os habitantes de Gades
(a m oderna Cádiz) ou, em alguns períodos, os armênios e os ju­
deus; quanto aos outros — o grupo mais numeroso — , o comér­
cio era apenas uma das ocupações a que se dedicava, de tempos
em tempos, um a parte considerável da população, viajando pelo
exterior, às vezes com a família, por períodos mais curtos ou mais
longos. Os hauçás e os mandingas, no Sudão ocidental, são bons
exemplos. Estes últimos também eram conhecidos como dualas,
mas apenas quando comerciavam no exterior. Antes disso, eram
tidos como um povo separado por aqueles a quem visitavam ao
comerciar.
Ademais, a organização do comércio nos tempos primitivos
devia diferir conforme os bens transportados, a distância a ser
coberta, os obstáculos a serem superados pelos transportadores e
as condições políticas e ecológicas da empreitada. Por esta razão,
se não por outras, todo comércio era, originalmente, específico
[isto é, feito em expedições para adquirir artigos específicos]. Os
bens e seu transporte faziam com que fosse assim. Nessas condi­
ções, não podia haver algo como comércio “em geral”.
A menos que se dê todo o peso a esse fato, é impossível com­
preender o desenvolvimento inicial das instituições de comércio.
A decisão de adquirir certos tipos de bens de uma dada distância
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

e um determinado local de origem era tomada em circunstâncias


diferentes daquelas em que outros tipos de bens tinham que ser
adquiridos de outro lugar. As empreitadas comerciais eram um a
atividade descontínua. Restringiam-se a tarefas concretas, exe­
cutadas um a a um a e que não tendiam a se desenvolver em ini­
ciativas permanentes. A societas romana, tal como a comtnenda
posterior, era um a parceria comercial limitada a um a empreitada.
Somente a societas publicanorum, destinada à contratação e à co­
leta de impostos, era organizada como empresa — a única exceção
de peso. Não se conheceram sociedades comerciais permanentes
antes dos tempos modernos.
A especificidade do comércio foi favorecida, no curso natural
das coisas, pela necessidade de adquirir os bens importados com
bens exportados. É que, em condições outras que não as de mer­
cado, importações e exportações tendem a se incluir em regimes
diferentes. O processo pelo qual os bens são coletados para expor­
tação é predom inantem ente separado e relativamente indepen­
dente do processo pelo qual os bens importados são redistribuí­
dos. O primeiro pode ser uma questão de tributação, taxação ou
doações feudais, ou seja qual for a designação sob a qual os bens
fluem para o centro, ao passo que as importações podem escoar,
repartidas, por linhas diferentes. A “seisachtheia” de Hamurábi pa­
rece ter aberto um a exceção para os bens simu, que talvez tenham
sido, em alguns m om entos, im portações transferidas pelo rei,
através do tamkarum, a arrendatários que quisessem trocá-las por
seus produtos agrícolas. Parte do comércio a longa distância dos
pochteca anteriores à conquista, entre os astecas da Mesoamérica,
parece ter tido características similares.
O que a natureza distingue o mercado homogeneiza. Até a d i­
ferença entre os bens e seu transporte pode ser obliterada, já que,
no mercado, ambos podem ser comprados e vendidos — uns no
mercado de mercadorias, outro no de frete e seguros. Em qualquer
dos casos, existem oferta e procura, e os preços são formados da
KARL POLANYI

mesma maneira. O transporte e as mercadorias, esses componen­


tes do comércio, adquirem um denom inador comum em termos
de custo. Assim, a preocupação com o mercado e sua homogenei­
dade artificial compõe um a boa teoria econômica, mas não uma
boa história da economia. No fim das contas, descobrimos que
tam bém as rotas comerciais, assim como os meios de transporte,
podem ter um a importância não menos marcante para as formas
institucionais de comércio que os tipos de bens transportados. Em
todos esses casos, as condições geográficas e tecnológicas mistu-
ram-se com a estrutura social.
De acordo com a lógica da bilateralidade, deparamos com três
tipos principais de comércio: a troca de presentes, o comércio ad­
m inistrado e o comércio mercantil.
A troca ou comércio de presentes liga os parceiros em relações
de reciprocidade, como acontece na hospitalidade com os convi­
dados, entre os parceiros do circuito kula e com outros grupos
visitantes. D urante milênios, o comércio entre impérios foi efe­
tuado como um a troca de presentes — nenhum a outra lógica de
bilateralidade atenderia igualmente bem às necessidades da situa­
ção. Nesse caso, a organização do comércio costuma ser cerimo­
niosa, envolvendo apresentações mútuas, missões diplomáticas ou
negociações políticas entre chefes ou reis. Os bens são valores pre­
ciosos de tesouro, objetos de circulação na elite; no caso limítrofe
de grupos visitantes, eles podem ter um caráter mais “democráti­
co”. Mas os contatos são tênues e as trocas são poucas e espaçadas.
O comércio administrado tem um a base sólida nas relações de
tratados, que são mais ou menos formais. Visto que, em ambos os
lados, o interesse pela im portação costuma ser determ inante, a
troca ocorre por canais controlados pelo governo. O comércio de
exportação é geralmente organizado de forma similar. Em conse­
quência disso, todo o comércio se realiza por métodos administra­
tivos. Isso se estende à maneira como os negócios são transaciona­
dos, inclusive aos arranjos referentes às “taxas” ou proporções das

318
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

unidades trocadas, às instalações portuárias, à pesagem, à verifica­


ção da qualidade, à troca física dos bens, ao armazenamento, à
guarda, ao controle do pessoal envolvido, à regulamentação dos
“pagamentos”, aos créditos e aos diferenciais de preços. Natural­
mente, alguns desses aspectos seriam vinculados à coleta dos bens
de exportação e à repartição dos importados, ambas próprias da
esfera redistributiva da economia interna. Os bens m utuam ente
importados são padronizados em relação à qualidade e à embala­
gem, ao peso e a outros critérios fáceis de averiguar. Somente esses
“bens comerciais” podem ser trocados. As equivalências são insti­
tuídas em relações unitárias simples; em princípio, o comércio é
de um para um.
O regateio não faz parte dos procedimentos; as equivalências
são instituídas de um a vez por todas. Mas, visto que, para lidar
com circunstâncias mutáveis, é impossível evitar alguns ajustes, o
regateio é praticado apenas em relação a outros pontos que não o
preço, como as medidas, a qualidade ou os meios de pagamento.
Pode haver discussões intermináveis sobre a qualidade dos gêne­
ros alimentícios, a capacidade e o peso das unidades empregadas
ou as proporções das moedas, quando se usam ao mesmo tempo
moedas diferentes. Muitas vezes, até os “lucros” são “barganha­
dos”. A lógica desse procedimento, naturalmente, é manter os pre­
ços inalterados; quando tem de haver um a adaptação a situações
efetivas de suprimento, como num a emergência, isso é formulado
em termos de comércio de dois para um ou de dois e meio para
um, ou, como diriamos, com um lucro de 100% ou 150%. Esse
método de regatear os lucros, mantendo os preços estáveis, que
talvez tenha sido bastante geral na sociedade arcaica, é bem auten­
ticado na região central do Sudão até o fim do século XIX.
O comércio administrado pressupõe órgãos comerciais relativa­
mente permanentes, como governos ou, pelo menos, companhias
licenciadas por eles. O entendimento com os nativos pode ser táci­
to, como no caso das relações tradicionais ou costumeiras. Entre

319
KARL POLANYI

órgãos soberanos, porém, o comércio pressupõe tratados formais,


mesmo nos tempos antigos do segundo milênio antes de Cristo.
Uma vez estabelecidas num a região, sob a proteção solene dos
deuses, as formas administrativas de comércio podem ser pratica­
das sem tratados prévios. A instituição principal, como hoje co­
meçamos a perceber, é o porto comercial, nom e que damos aqui a
essa sede de todo o comércio exterior administrado. O porto co­
mercial oferece segurança militar ao poder situado em terra; pro­
teção civil aos mercadores estrangeiros; instalações de ancoragem,
desembarque e armazenamento; o benefício de autoridades ju ­
diciais; concordância quanto aos bens a serem trocados; acordo
quanto às “proporções” dos diferentes bens comerciais nos pacotes
mistos ou “seleções”.7
As trocas mercantis são a terceira form a típica de comércio.
Nesse caso, a troca é a forma de integração que relaciona os par­
ceiros entre si. Essa variante comparativamente moderna do co­
mércio liberou um a enxurrada de riquezas materiais na Europa
Ocidental e na América do Norte. Embora se encontre em reces­
são no momento, ela ainda é, de longe, a mais importante. A gama
de bens comerciáveis — as mercadorias — é praticamente ilimi­
tada, e a organização do comércio mercantil segue as linhas traça­
das pelo mecanismo de oferta-procura-preço. O mecanismo de
mercado mostra seu imenso leque de aplicações por ser adaptavel
ao manejo não apenas dos bens, mas de todos os elementos do
comércio em si — armazenagem, transporte, risco, crédito, paga­
mentos etc. — , com a formação de mercados especiais de frete,
seguros, crédito de curto prazo, capital, espaço em armazéns, faci­
lidades bancárias e assim por diante.
O principal interesse do historiador econômico de hoje volta-
-se para estas perguntas: quando e como o comércio [exterior]

7 Sobre “portos de comércio”, “seleções” e outras características do comércio administra­


do, ver os ensaios 9 ,1 0 e 11 de Primitive, Archaic and M odem Economies. Ver também
Rosemary Arnold, “A Port o f Trade: Whydah on the Guinea Coast”, em Trade and
M arket in the Early Empires. [N.E.]

320
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUtDO

ligou-se aos mercados? Em que época e lugar encontramos o re­


sultado geral conhecido como comércio mercantil?
A rigor, essas perguntas ficam impedidas sob o dom ínio da
lógica da economia de mercado, que tende a fundir comércio e
mercado de maneira inseparável.

2. Usos do dinheiro
A definição de dinheiro na economia de mercado é a de meio de
troca indireto. O dinheiro m oderno é usado nos pagamentos e
como “padrão” exatamente por ser um meio de troca [comercial].
Por isso nosso dinheiro existe “para todos os fins”. Os outros usos
são variantes sem importância de seu uso como moeda de troca, e
todos os usos do dinheiro dependem da existência de mercados.
A definição substantiva do dinheiro, como a do comércio, in­
depende dos mercados. Decorre dos usos definidos que são dados
a objetos quantificáveis. Esses usos são o pagamento, o padrão e a
troca. Por isso aqui definimos o dinheiro como os objetos quanti­
ficáveis empregados em um ou em vários desses usos. A questão
é se é possível fornecer definições independentes desses usos.
As definições dos diversos usos do dinheiro abrangem dois cri­
térios: a situação sociologicamente definida em que surge o uso e
a operação efetuada com os objetos monetários nessa situação.
O pagamento é o cum prim ento de obrigações em que os obje­
tos quantificáveis m udam de mãos. Essa situação refere-se aqui
não apenas a um tipo de obrigação, mas a vários, já que somente
quando um objeto é usado para cum prir mais de um a obrigação
podemos denominá-lo “meio de pagamento”, no sentido distinti­
vo do term o (caso contrário, só a obrigação a ser cum prida em
espécie é cumprida dessa maneira).
O uso do dinheiro como meio de pagamento faz parte de seus
usos mais comuns em épocas antigas. As obrigações, nesse caso,
não provêm comumente de transações [econômicas]. Na socieda­
de primitiva não estratificada, fazem-se pagamentos regulares li­
gados às instituições do preço da noiva, do preço do sangue e das
KARL POLANYI

multas.8 Na sociedade arcaica, esses pagamentos continuam, mas


são ofuscados por compromissos, impostos, rendas e tributos cos­
tumeiros, que dão origem a pagamentos em larguíssima escala. Jj
O uso do dinheiro como padrão ou unidade de conta é a equi- j
paração dos valores de tipos diferentes de bens para fins definidos.
A “situação” pode ser o escambo ou a armazenagem e o manejo de j
gêneros essenciais; a “operação” consiste em atribuir etiquetas nu- ,^
méricas aos vários objetos para facilitar sua manipulação. Assim, :
no caso do escambo, a soma dos objetos de ambos os lados pode V
vir a ser equiparada; no caso da gestão de gêneros essenciais, ob- J
tém-se a possibilidade de planejar, equilibrar, orçar e fazer a con- J
tabilidade geral. 1
O uso do dinheiro como padrão é essencial para a flexibilidade
de um sistema redistributivo. É vital equiparar gêneros essenciais,
como cevada, azeite e lã, sobre os quais é preciso pagar impostos
ou rendas, ou dos quais, alternativamente, podem-se reivindicar
rações ou salários. Tal operação assegura a possibilidade de esco- -M
lha entre os diferentes gêneros, por parte de quem paga e de quem .J
reivindica. Ao mesmo tempo, cria-se a precondição das finanças
“em espécie” em larga escala, o que pressupõe a ideia de reservas e
balanços, ou, em outras palavras, a possibilidade de intercâmbio
dos gêneros essenciais.
O uso do dinheiro como moeda de troca surge da necessidade
de haver objetos quantificáveis nas trocas indiretas. A “operarão”
consiste em adquirir unidades desses objetos pela troca direla, a
fim de adquirir os objetos desejados p o r meio de outro alo de '
troca. Às vezes, os objetos monetários encontram-se disponíveis
desde o começo e a troca dupla destina-se meramente a obter uma ,
quantidade m aior dos mesmos objetos. Tal uso de objetos quanti­
ficáveis não se desenvolve a partir de atos aleatórios de escambo
— uma fantasia predileta do racionalismo setecentista — , mas em

Ver também George Dalton, “Primitive Money”, American Anthropologist, fevereiro de


1965. [N.E.]
i
322
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

conexão com o comércio organizado, especialmente em merca­


dos. Na ausência de mercados, o uso do dinheiro como meio de
troca não passa de um traço cultural subalterno. A surpreendente
relutância dos grandes povos mercadores da Antiguidade, como
os de Tiro e Cartago, em adotar moedas — essa nova forma do
dinheiro que era eminentemente adequada às trocas — talvez se
tenha devido ao fato de que os portos de comércio dos im pé­
rios mercantis não eram organizados como mercados, mas como
“portos de intercâmbio”.
Convém assinalar duas extensões do significado do dinheiro.
Uma estende a definição do dinheiro a outros objetos que não os
físicos, ou seja, a unidades ideais [ou de conta]; a outra abrange,
ao lado dos três usos convencionais do dinheiro, também o uso de
objetos monetários como recursos operacionais.
As unidades ideais são meras verbalizações ou símbolos es­
critos, usados como se fossem unidades quantificáveis, princi­
palmente para pagamento ou como padrão. A “operação” consiste
em manipular contas devedoras de acordo com as regras do jogo.
Tais contas são realidades comuns da vida primitiva, e não, como
muitas vezes se acreditou, peculiares às economias monetizadas.
As mais antigas economias dos templos da Mesopotâmia, assim
como os primeiros mercadores assírios, compensavam as contas
sem a intervenção de objetos monetários.
No outro extremo, parecería aconselhável não om itir a menção
aos dispositivos operacionais entre os usos do dinheiro, por mais
excepcionais que eles fossem. Vez por outra, na sociedade arcaica
usavam-se objetos quantificáveis para fins aritméticos, estatísticos,
tributários e administrativos, ou outros fins não monetários liga­
dos à vida econômica. Na Uidá do século XVIII, o dinheiro em
forma de conchas de cauri era usado para objetivos estatísticos, e
as vagens de feijão damba, nunca usadas como dinheiro, eram in­
teligentemente usadas como um recurso contábil.9

9 Outros exemplos de “dispositivos operacionais” usados no recenseamento, na mensu-

323
KARL POLANYI

O dinheiro primitivo, como vimos, é dinheiro para fins especí­


ficos. Diferentes tipos de objetos são empregados em seus diferen­
1
tes usos; além disso, os usos são instituídos independentemente uns
dos outros. As implicações são as de maior alcance possível. Por
exemplo, não há contradição em fazer "pagamentos” com um meio
com o qual não se pode fazer compras, nem em empregar como
"padrão” objetos que não são usados como meios de troca. Na Ba­
bilônia de Hamurábi, o meio de pagamento era a cevada e o padrão
universal era a prata; nas trocas, que existiam em pequeníssimo
número, ambas eram usadas, ao lado de azeite, lã e outros gêneros
essenciais. Evidencia-se assim por que os usos do dinheiro — como
as atividades comerciais — podem atingir um nível quase ilimitado
de desenvolvimento, não apenas fora de economias dominadas por
mercados, mas também na própria ausência de mercados.

3. Elementos de mercado
Agora, o próprio mercado. Do ponto de vista da economia formal,
o mercado é o locus da troca; mercado e troca são coextensivos, e
a vida econômica é redutível a atos de troca que estão todos encar­
nados nos mercados. Por isso a troca é descrita como a relação
econômica, enquanto o mercado é a instituição econômica. A de­
finição do mercado deriva, logicamente, da premissa subjacente
de que toda “troca” pode ser vista como troca mercantil.
Mercado e troca têm características empíricas independentes.
Qual é então, aqui, o sentido de troca e mercado? Até que ponto :)tjl
m
eles estão necessariamente ligados?
A troca, definida substantivamente, é o movimento de apro­
priação m útua de bens entre agentes. Tal movimento, como vi­
mos, pode ocorrer com proporções ou taxas fixas, ou então com
taxas negociadas. Somente estas últimas resultam do regateio en­
tre os parceiros.

ração e na contabilidade são os quipos utilizados pelos incas e as pedrinhas empre­


gadas na enumeração estatística no Daomé do século XVIII. [N.E.]

324
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

Sempre que há um a troca, há uma taxa. Isso se mantém, quer a


taxa seja barganhada, quer seja fixa. Convém notar que a troca por
preços barganhados é idêntica à troca catalática, ou “troca como
forma de integração”. Apenas esse tipo de troca limita-se, tipica­
mente, a uma forma definida de instituição de mercado, os m er­
cados formadores de preços.
As instituições de mercado serão definidas como instituições
que abrangem grupos de oferta ou grupos de procura, ou ambos.
Por sua vez, os grupos de oferta e de procura serão definidos como
uma multiplicidade de agentes desejosos de adquirir, ou, alterna­
tivamente, de se desfazer de bens num a troca. Assim, embora as
instituições de mercado sejam instituições de troca, o mercado e a
troca não são coextensivos. A troca com taxas fixas ocorre nas for­
mas de integração por reciprocidade ou redistribuição; a troca
com taxas negociadas, como dissemos, limita-se aos mercados for­
madores de preços. Talvez pareça paradoxal que a troca com taxas
fixas seja compatível com qualquer forma de integração, exceto a
da troca [mercantil]; no entanto, isso é um a decorrência lógica,
pois só a troca negociada representa um a troca no sentido catalá-
tico do termo, no qual ela é um a forma de integração.10
A melhor m aneira de se abordar o m undo das instituições de
mercado parece ser em termos dos “elementos do mercado”. Isso
acabará não apenas por servir de guia na variedade de configura­
ções incluídas na denominação de mercados e instituições de tipo
mercantil, mas tam bém de ferramenta para dissecarmos alguns
conceitos convencionais que atrapalham nossa compreensão des­
sas instituições.
Dois elementos do mercado devem ser considerados especí­
ficos, a saber, os grupos ofertantes e os grupos dem andantes;
havendo um deles presente, falaremos de instituição de mercado

10 Quanto à distinção entre a pequena troca de mercado e o papel integrador das tran­
sações e preços de mercado em economias nacionais como a dos Estados Unidos, ver
Paul Bohannan e George Dalton, “Introduction”, em M arkets in África. Nova York:
Natural History Press, 1965. [N.E.]

325
KARL POLANYI

(se ambos estiverem presentes, daremos a isso o nom e de merca­


do; se houver apenas um, o de instituição de tipo mercantil). Pela
ordem de importância, o elemento seguinte é a equivalência, ou
seja, a proporção da troca; conforme ò caráter da equivalência, os
mercados serão de preço fixo ou formadores de preço.
A concorrência é outra característica de algumas instituições
mercantis, como os mercados formadores de preços e os leilões,
mas, em contraste com as equivalências, a concorrência econômi­
ca restringe-se aos mercados. Por fim, há elementos que podem
ser denominados funcionais. Eles ocorrem regularmente separa­
dos das instituições de mercado, mas, quando aparecem ao lado
dos grupos ofertantes ou dos grupos demandantes, moldam essas
instituições de um a forma que pode ser de enorme relevância prá­
tica. Entre esses elementos funcionais encontram-se a localização
física, os bens presentes, os costumes e a lei.
Essa diversidade das instituições de mercado foi obscurecida,
nos últim os tempos, em nom e do conceito formal de mecanis­
mo de oferta-procura-preço. Não é de admirar que seja com res­
peito a esses term os axiais — oferta, procura e preço — que a
abordagem substantiva leva a um alargamento significativo da
nossa visão.
Os grupos ofertantes e demandantes foram mencionados aci­
m a como elementos de mercado separados e distintos. No que
concerne ao mercado m oderno, isso seria inadmissível, é claro;
há nele um nível de preço em que o mercado em baixa vira mer­
cado em alta, e outro em que esse milagre se inverte, o que induziu
m uita gente a deixar escapar o fato de que compradores e ven­
dedores são separados em todos os outros tipos de mercado que
não o moderno. Isso deu respaldo a um duplo equívoco. Primeiro,
“oferta e procura” apareceram como forças elementares combina­
das, quando, na verdade, cada um a consistia em dois componen­
tes muito distintos, ou seja, um a quantidade de bens, por um lado,
e um número de pessoas, relacionadas como compradores e ven­
dedores desses bens, por outro. Segundo, “oferta e procura” pare­

326
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

ceram inseparáveis como gêmeos siameses, quando, a rigor, for­


mam grupos diferentes de pessoas, conforme disponham dos bens
como recursos ou os procurem como necessidades. Portanto, os
grupos ofertantes e dem andantes não precisam estar presentes
juntos. Por exemplo, quando o butim é leiloado pelo general vito­
rioso e arrematado pelo lance mais alto, apenas um grupo dem an­
dante se evidencia; similarmente, encontra-se apenas um grupo
ofertante quando se outorgam contratos a quem apresenta a pro­
posta de preço mais baixo. No entanto, os leilões e licitações eram
difundidos na sociedade arcaica; na antiga Grécia, os leilões figu­
raram entre os precursores dos mercados propriamente ditos. Esse
caráter distinto dos grupos ofertantes e demandantes m oldou a
organização de todas as instituições pré-modernas de mercado.
Quanto ao elemento de mercado comumente chamado “pre­
ço”, ele foi incluído aqui na categoria das equivalências. O uso des­
se termo geral deve ajudar a evitar mal-entendidos. Preço sugere
flutuação, associação que falta ao term o “equivalência”. As p ró ­
prias expressões “preço definido” ou “preço fixo” sugerem que,
antes de ser fixado ou definido, o preço tendia a mudar. Assim, a
própria língua dificulta a transmissão da situação verdadeira, ou
seja, a de que o preço é, originalmente, um a quantidade rigida­
mente fixada, na ausência da qual o comércio não pode começar.
Os preços mutáveis ou flutuantes, de caráter competitivo, são um
fenômeno relativamente recente, e seu surgimento constitui um
dos principais interesses da história econômica da Antiguidade.
Tradicionalmente, presumia-se que a sequência tivesse sido o in­
verso: o preço era concebido como o resultado do comércio e da
troca, não como sua precondição.
Preço é a designação de proporções quantitativas entre bens de
espécies diferentes, feita pelo escambo ou o regateio. Essa é a for­
ma de equivalência característica das economias integradas pela
troca. Mas as equivalências de m odo nenhum se restringem às
relações de troca. Elas também são comuns num a forma redistri-
butiva de integração. Designam a relação quantitativa entre bens

327
KARL POLANYI
1
, %.

de diferentes tipos que são aceitáveis para pagar impostos, rendas,


obrigações e multas, ou que denotam qualificações em um recen-
seamento de propriedades. Além disso, a equivalência pode esta- •
belecer a proporção em que é possível reivindicar salários ou ra- X
ções, à escolha do beneficiário. A elasticidade de um sistema de
finanças em gêneros essenciais— planejar, equilibrar, contabilizar -
— depende desse dispositivo. Nesse caso, a equivalência denota '
não o que deve ser dado por outro bem, mas o que pode ser plei­
teado em vez dele. Nas formas de integração por reciprocidade,
por outro lado, as equivalências determinam a quantidade “ade­
quada” em relação à parte que se encontra em situação simétrica.
Esse contexto com portam ental é claramente diferente da troca
direta ou da redistribuição.
Os sistemas de preços, ao se desenvolverem ao longo do tem ­
po, podem conter camadas de equivalências que se originaram,
historicam ente, em formas diferentes de integração. Os preços
de mercado helênicos dão amplos indícios de terem nascido de
equivalências redistributivas das civilizações cuneiformes que os
precederam. As trinta moedas de prata recebidas por Judas como
preço de um homem, por sua traição a Jesus, eram uma variante
próxim a da equivalência de um escravo, tal como estipulada no
Código de Hamurábi, uns 1.700 anos antes. As equivalências re­
distributivas soviéticas, por outro lado, ecoaram por m uito tempo
os preços do mercado m undial no século XIX. Também estes, por
sua vez, tiveram seus predecessores. Max Weber com entou que,
por falta de um a base de custos, o capitalismo ocidental não teria
sido possível não fosse a rede medieval de preços estatuídos e re­
gulados, rendas costumeiras etc. — um a herança da guilda e do
senhorio feudal. Assim, os sistemas de preços podem ter histórias
institucionais próprias em termos dos tipos de equivalências que
entraram em sua constituição.
É com a ajuda desse tipo de conceitos não cataláticos de co­
mércio, dinheiro e mercados que alguns problemas fundamentais
da história econômica e social, como a origem dos preços flutuan-

328
A ECONOMIA COMO PROCESSO INSTITUÍDO

tes e o desenvolvimento do comércio mercantil, podem ser mais


bem abordados e, esperamos, enfim resolvidos.
Concluindo: um levantam ento crítico das definições de co­
mércio, dinheiro e mercado deve contar com diversos conceitos
que compõem a m atéria-prim a das ciências sociais em seu aspec­
to econômico. A relevância desse reconhecimento para as questões
de teoria, política e perspectiva deve ser vista à luz da transform a­
ção institucional gradativa que vem ocorrendo desde a Primeira
Guerra Mundial. Mesmo em relação ao sistema de mercado em si,
o mercado como quadro de referência único está meio ultrapassa­
do. No entanto, como se deve perceber com mais clareza do que se
fez em algumas ocasiões passadas, o mercado não pode ser su­
plantado como quadro de referência geral a menos que as ciências
sociais consigam desenvolver um quadro mais amplo ao qual o
próprio mercado possa ser referido. É essa, aliás, a nossa principal
tarefa intelectual da atualidade no campo dos estudos econômi­
cos. Como tentamos mostrar, essa estrutura conceituai terá que se
fundamentar no significado substantivo do econômico.
A semântica dos usos do dinheiro1

Por causa do uso do dinheiro como meio de troca em nossa or­


ganização mercantil da vida econômica, tendemos a pensar nele
em term os m uito estreitos. N enhum objeto é dinheiro em si, e
qualquer objeto, num domínio apropriado, pode funcionar como
dinheiro. Na verdade, o dinheiro é um sistema de símbolos se­
melhante à fala, à escrita ou aos pesos e medidas. Estes diferem
entre si principalmente quanto ao propósito atendido, aos símbo­
los reais usados e ao grau em que eles exibem um único objetivo
unificado.

Pseudofilosofias do dinheiro
O dinheiro é um sistema incompletamente unificado, e a busca de
seu propósito único é um beco sem saída. Isso explica as muitas
tentativas infrutíferas de determ inar suas “natureza e essência”.
Devemos nos contentar em listar os propósitos a que servem os
objetos quantificáveis efetivamente chamados de dinheiro. Conse­
gue-se isso apontando a situação em que usamos esses objetos e
com que finalidade. Constataremos que eles são chamados de di­
nheiro quando usados de qualquer das seguintes maneiras: para
pagamento, como padrão de valor ou como meio de troca indire­
ta. O pagamento ocorre em situações de obrigação, e a entrega dos
objetos tem o efeito de extinguir essa obrigação. Usado como pa­
drão, o dinheiro é um a etiqueta quantitativa presa a unidades de
bens de diferentes tipos, seja para efeito de escambo (com o resul­
tado de, somando os números, podermos igualar prontam ente os
dois lados da troca), seja para orçar e equilibrar reservas de dife­
rentes gêneros essenciais (assim produzindo as finanças em bens

1 De Explorations, Universidade de Toronto, outubro de 1957.

331
KARL POLANYI

essenciais). Com isso, os objetos empregados na troca direta ad­


quirem o caráter de dinheiro. Tornam-se símbolos, por sua parti­
cipação num a situação hum ana definida.
Evitam-se aqui algumas considerações secundárias. Primeiro:
ignora-se a distinção entre os signos e o que eles “representam”.
Um e outro funcionam como objetos monetários e fazem parte
do sistema simbólico. Assim, não se estabelece nenhum a dife­
rença entre dinheiro sob a forma de cevada, de ouro ou de papel.
Confundir o problema fundamental do dinheiro com o da moe­
da fiduciária gera frequentes mal-entendidos. Os signos como tais
não são novidade — a ficção e a abstração fazem parte da dota­
ção original do ser hum ano. Na famosa história contada por
H eródoto sobre a prostituição obrigatória no templo, na Babi­
lônia, ele registra este detalhe: “A m oeda de prata podia ser de
qualquer tamanho; era impossível recusá-la, pois isso era proibi­
do por lei: um a vez lançada, ela se tornava sagrada.” Os meros
signos tam pouco são desconhecidos nas sociedades primitivas
estudadas pelos etnógrafos. Alguns povos do Congo empregam,
“simplesmente como um símbolo”, esteiras de palha ou rami, ori­
ginalmente de form ato quadrado, mas que acabam reduzidas a
um emaranhado de feno “praticamente sem nenhum valor”. Tiras
de tecido azul de largura padronizada, transformadas pelo tempo
em trapos inúteis, eram correntes como m oeda fiduciária em par­
tes do oeste do Sudão. Porém, depois que o papel-moeda se tor­
nou conhecido, os estudiosos sentiram-se induzidos a se concen­
trar nos signos, em vez dos próprios objetos físicos em si mesmos.
Essa m oda modernizante levou a melhor. O livro mais recente e
extraordinário de um a etnógrafa, a sra. Quiggin,2 tom a o signo
como dinheiro verdadeiro e, por conseguinte, chama de “substitu­
tos m onetários” os objetos monetários reais que o livro descreve
exaustivamente.

2 A. H. Quiggin, A S u r v e y o f Primitive Money. Londres: Metfauen and Co., 1949. [N.E.]

332
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

Os historiadores da Antiguidade revelaram-se pouco menos


susceptíveis à modernização em matéria de dinheiro. Como a Ba­
bilônia do terceiro milênio antes da era cristã não possuía papel-
-moeda, os metais foram considerados pelos historiadores como
o material m onetário ortodoxo. Na verdade, todos os pagamentos
eram feitos em cevada. O assiriologista Bruno Meissner expressou
isso em termos de que “o dinheiro, primariamente, foi substituído
por cereais”. Seu colega Lutz achou que a escassez de prata “exigiu
o uso de um substituto. Assim, muitas vezes os grãos tom aram o
lugar dos metais”. A moeda fiduciária é sempre classificada como
o dinheiro verdadeiro, já que é a mais abstrata e a menos útil; em
seguida vêm o ouro e a prata, como substitutos; na falta deles, até
os cereais servem. Isso é um a inversão sistemática da sequência em
que os objetos m onetários físicos constituem a prova empírica
primordial. Todavia, a existência de signos não deve causar com­
plicações: é corriqueira nos sistemas monetários. Se o papel-moe­
da, visto como um signo, “simboliza” as moedas, então, em nossos
termos, ele simboliza aquilo que já é um símbolo, ou seja, o di­
nheiro. Os símbolos não “representam” meramente alguma coisa.
São sinais materiais — orais, visuais ou puram ente imaginários
— que fazem parte da situação definida da qual participam, e por
isso ganham sentido.
Além disso, um a desconsideração semelhante da semântica da
teoria econômica nos é imposta à força na escolha dos termos, ao
nos referirmos aos vários usos do dinheiro. Pagamento, padrão de
valor e meio de troca são distinções originalmente desenvolvidas
pelos economistas clássicos. Daí a compreensível crença de alguns
antropólogos em que a aplicação delas ao dinheiro primitivo im ­
plica um viés economicista. O inverso seria mais verdadeiro. De
fato, a economia moderna não depende em absoluto dessas distin­
ções para suas teorias monetárias. No contexto institucional da
sociedade arcaica, por outro lado, é típico que objetos quantificá-
veis sejam usados dessas três maneiras.

333
KARL POLANYI

Dinheiro para todos os fins e dinheiro para fins específicos


Por um ângulo formal, o dinheiro m oderno, em contraste com o
dinheiro primitivo, exibe uma semelhança notável com a fala è a
escrita. Todos possuem uma gramática uniforme. Todos se orga­
nizam num código complexo de regras concernentes à maneira
correta de empregar os símbolos — e de regras gerais aplicáveis a
todos os símbolos. A sociedade arcaica não conhecia o dinheiro
“para todos os fins”. Nela, diferentes objetos monetários podiam
suprir os diferentes usos do dinheiro. Não havia um a gramática
que todos os usos do dinheiro devessem respeitar. Nenhum tipo
único de objeto merece o nome distintivo de dinheiro; o termo se
aplica, antes, a um pequeno grupo de objetos, cada um dos quais
pode servir de dinheiro de um modo diferente. Na sociedade m o­
derna, o dinheiro empregado como meio de troca é dotado da
capacidade de tam bém desem penhar todas as demais funções,
mas a situação é bem diferente na sociedade primitiva. Nela depa­
ramos com escravos, cavalos ou gado usados como padrão de va­
lor, quando se julga a riqueza que confere prestígio ou quando se
julgam grandes quantidades, ao passo que as conchas de cauri são
empregadas exclusivamente para quantidades pequenas. (O es­
cravo ou o cavalo, individualmente considerados, podem figurar
como um valor convencional que representa um a mera unidade
de conta, enquanto os escravos e cavalos reais são vendidos por
preços variáveis.) Os escravos reais são um meio de pagamento de
tributos a um chefe ou soberano estrangeiro, enquanto as conchas
de cauri funcionam como meio de pagamento doméstico ou até
como meio de troca. Isso pode não excluir o uso de metais precio­
sos para entesourar riqueza, embora esses metais possam não ter
outra serventia como dinheiro a não ser, talvez, como padrão de
valor e na troca por importações. Nos casos em que o hábito do
mercado é razoavelmente difundido, o dinheiro, além disso, pode
servir de meio de troca, sendo viável usar para esse fim vários bens
comerciais que de outro m odo não seriam empregados como di­

334
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

nheiro. Ocorrem numerosas combinações dessas variantes. Não


há uma regra única de validade universal, excetuada a regra muito
geral, porém não menos importante, de que os usos do dinheiro
distribuem-se por um a multiplicidade de objetos diferentes.
Não se tem conhecimento de um a fragmentação desse tipo no
uso dos sons de nenhum a língua. Na fala, todos os sons orais arti­
culados e, na escrita, todas as letras do alfabeto estão aptos a ser
usados em todos os tipos de palavras, ao passo que o dinheiro ar­
caico, nos casos extremos, usa um tipo de objeto como meio de
pagamento, outro como padrão de valor, um terceiro para acum u­
lar riqueza e um quarto objeto para efeito de trocas — como um a
língua em que os verbos consistissem em um grupo de letras, os
substantivos, em outro, os adjetivos, num terceiro grupo, e os ad­
vérbios, em mais um.
Além disso, na sociedade primitiva, a troca [comercial] não é o
uso fundamental do dinheiro. Se há um uso mais “básico” que ou­
tro, trata-se, antes, do uso como pagamento [não comercial] ou
como padrão. Estes são comuns mesmo quando não se adota o uso
do dinheiro como meio de troca. Enquanto, na sociedade moderna,
a unificação dos vários usos do dinheiro ocorreu com base em seu
emprego como meio de troca, nas comunidades primitivas encon­
tramos os diferentes usos institucionalizados separadamente. Na
medida em que há alguma interdependência entre eles, constata­
mos que o uso como pagamento, como padrão ou para acumular
riqueza tem preferência sobre o uso como meio de troca. Assim, o
dinheiro oitocentista, que empregava símbolos de troca para vários
outros usos, parece oferecer um paralelo quase completo com a lin­
guagem falada e a escrita, com seus sons e sinais para todos os fins.
Mas, em certa medida, essa analogia também se aplica ao dinheiro
primitivo e arcaico, que só difere de seu equivalente m oderno no
menor grau de unificação dos sistemas. Desde o segundo quarto
do século XX, entretanto, a partir da Alemanha nazista, o dinheiro
“moderno” começou a mostrar uma clara tendência para retornar

335
KARL POLANYI

à desunificação. Meia dúzia de “marcos” eram correntes no governo


de Hitler, cada qual restrito a esse ou àquele propósito especial.3

Dinheiro como meio de troca


“O dinheiro é um meio de troca.” Esta suposição está entre as mais
poderosas no pensam ento m oderno. Sua autoridade pode ser
aquilatada pela formulação axiomática em que foi enunciada,
abarcando todo o curso da história hum ana e sendo até estendida
pelos antropólogos à sociedade primitiva. Ela se expressa vigoro­
samente na seguinte citação do professor Raymond Firth: “Em
qualquer sistema econômico, por mais primitivo que seja, um ar­
tigo só pode ser visto como dinheiro verdadeiro quando age como
um meio comum e definido de troca, como um trampolim conve­
niente para se obter um tipo de bem em troca de outro. Ao fazê-lo,
todavia, ele serve de medida de valor, perm itindo que o valor de
todos os outros artigos seja expresso em termos dele mesmo. Além
disso, é um padrão de valor com referência a pagamentos passados
ou futuros. Como reserva de valor, permite que a riqueza seja con­
densada e guardada de reserva” (verbete “Currency, Primitive”
[Moeda primitiva], em Encyclopedia Britannica, 14a ed.).
De acordo com essa visão, ainda corrente, o uso que se pode
dar ao dinheiro como meio de troca é o critério essencial não ape­
nas na sociedade m oderna, mas também na primitiva. Mesmo em
condições primitivas, os vários usos do dinheiro são declarados
inseparáveis. Portanto, somente os objetos quantificáveis que ser­
vem de meios de troca podem ser vistos como dinheiro. Seu fun­
cionamento como meio de pagamento, padrão de valor ou meio
de acumular riqueza não é decisivo para seu caráter de dinheiro
a menos que implique sua utilização como meio de troca, pois é
essa utilização que confere unificação lógica ao sistema, por per-1

1 Sobre os papéis do dinheiro na economia soviética, ver Gregory Grossman, “Gold and
the Sword: Money in the Soviet Command Economy”, em H. Rosovsky (org.), Indits-
trialization in Two Systems: Essays in Honor ofAlexander Gershenkron. Nova York John
Wiley & Sons, Inc., 1966. [N.E.]
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

m itir um a vinculação coerente das várias funções do dinheiro.


Sem ela, não pode haver dinheiro de verdade. Essa abordagem
m odernizante do problem a, sugerimos, é a grande responsável
pela obscuridade em que ainda se acham as características do di­
nheiro primitivo.

0 uso do dinheiro como meio de pagamento


Pagamento é o cumprimento de uma obrigação mediante a entre­
ga de objetos quantificáveis, que então funcionam como dinheiro.
A ligação do pagamento com o dinheiro e das obrigações com as
transações econômicas é evidente à mentalidade moderna. Con­
tudo, a quantificação, que associamos ao pagamento, já funciona­
va num a época em que as obrigações cumpridas não tinham qual­
quer vinculação com transações econômicas. A história começa
com a proximidade entre pagamento e castigo, de um lado, obri­
gação e culpa, de outro. Mas daí não se deve inferir nenhum des­
dobram ento unilinear. As obrigações podem , antes, ter origens
diferentes da culpa e do crime, tais como a corte e o casamento; o
castigo pode provir de outras fontes que não as sagradas, como o
prestígio e a precedência; assim, o pagamento final, com sua cono­
tação quantitativa, pode incluir elementos operacionais não im ­
plicados no castigo como tal.
Só em linhas gerais é verdade que o direito civil seguiu-se ao
direito penal, e o direito penal, ao direito sagrado. O pagamento
era igualmente devido por culpados, desonrados, impuros, fracos
e vis; era devido aos deuses e seus sacerdotes, aos honrados, aos
puros e aos fortes. O castigo, portanto, visava a dim inuir o poder,
a santidade, o prestígio, a posição ou a riqueza do pagante, sem se
deter diante de sua destruição física.
As obrigações anteriores à lei brotam principalmente dos cos­
tum es e só dão origem à transgressão em caso de descum pri-
mento. Mesmo assim, restabelecer o equilíbrio não precisa envol­
ver um pagamento. As obrigações, em regra geral, são específicas,
e seu cum prim ento é um a questão qualitativa. Falta nela, portan­

337
KARL POLANYI

to, um traço essencial do pagamento — seu caráter quantitativo.


A infração de obrigações sagradas e sociais, sejam elas perante o
deus, a tribo, a parentela, o totem, a aldeia, o grupo etário, a casta
ou a guilda, é reparada não por meio de um pagamento, mas pela
ação da qualidade certa. Cortejar, casar, evitar, dançar, cantar, ves­
tir-se, regalar-se, lamentar, lacerar-se ou até matar-se podem ocor­
rer durante o cum prim ento de uma obrigação, mas nem por isso
constituem pagamentos.
A característica específica do uso do dinheiro como pagamento
é a quantificação. O castigo aproxima-se do pagamento quando o
processo de livrar-se da culpa é enumerável, como quando as chi­
cotadas, as voltas na roda de orações ou os dias de jejum eliminam
a transgressão. Embora esta se transforme então num a “obrigação
de pagar”, ela é expiada não pelo fato de o indivíduo se privar de
objetos quantificáveis, mas sobretudo por perder valores qualita­
tivos sagrados ou status sagrado e social.
O uso do dinheiro como pagam ento vincula-se à economia
quando as unidades entregues pela pessoa que cumpre a obriga­
ção vêm a ser objetos físicos, como animais sacrificiais, escravos,
conchas ornam entais ou porções m edidas de gêneros alim en­
tícios. As obrigações podem continuar a ser predom inantem en­
te não transacionais, como o pagam ento de um a m ulta, um a
composição,4 um imposto ou tributo, a oferta de presentes e con-
trapresentes, ou um a homenagem aos deuses, aos ancestrais ou
aos mortos. Mas passa a haver então um a diferença significativa.
É que o indivíduo a quem é feito o pagamento efetivamente ganha
aquilo que o pagador perde — o efeito da operação enquadra-se
no conceito legal de pagamento.
A intenção últim a da obrigação de pagar pode continuar a ser
a diminuição do poder e do status de quem paga. Na sociedade
arcaica, uma m ulta exorbitante não apenas levava a vítima à falên­

4 Nesse contexto, composição significa o pagamento como parte de um “acordo para


cessação das hostilidades”. Oxford Concise Dictionary. [N.E.]

338
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

cia, como a degradava em termos políticos. Assim, durante muito


tempo, o poder e a posição conservaram sua precedência em rela­
ção às posses econômicas como tais. Nessas circunstâncias, a im ­
portância política e social da riqueza acumulada estava na capaci­
dade de o hom em rico fazer grandes pagamentos sem solapar seu
status. (Era essa a situação nas democracias arcaicas em que o con­
fisco político assumia a forma de multas exorbitantes.) O tesouro
adquiriu enorme importância política, como atestam as passagens
memoráveis de Tucídides na Arqueologia, A riqueza, nesse caso,
transmutava-se diretamente em poder. Era um a instituição que
sustentava a si mesma. Por ser poderoso e honrado, o hom em rico
recebia pagamentos: choviam presentes e tributos sobre ele, sem
que lhe fosse preciso usar a força para torturar e matar. Mas sua
riqueza, usada como um fundo para doações, lhe proporcionaria
poder suficiente para fazê-lo.
Uma vez estabelecido o dinheiro como meio de troca na so­
ciedade, a prática do pagamento disseminou-se p o r toda parte.
Ê que, com a introdução dos mercados como o locus físico das
trocas diretas, um novo tipo de obrigação ganhou destaque como
resíduo legal das transações. O pagamento afigurou-se a contra­
partida de uma vantagem material obtida na transação. Anterior­
mente, o hom em tinha que pagar impostos, aluguéis, multas ou
dinheiro de sangue. Agora, pagava pelos bens que adquiria. O di­
nheiro tornou-se um meio de pagamento por ser um meio de tro­
ca. A ideia da origem independente do pagamento extinguiu-se
aos poucos, e os milênios durante os quais ele havia brotado não
de transações econômicas, mas diretamente de obrigações religio­
sas, sociais ou políticas foram esquecidos.

Uso do dinheiro como acumulação ou reserva


Um uso secundário do dinheiro — entesourar riqueza — teve sua
origem sobretudo na necessidade dos pagamentos. O pagamento
não é, primariamente, um fenômeno econômico. Tampouco o é a
riqueza. Na sociedade primitiva, esta consistia prmcipalmente no

339
KARL POLANYI

tesouro, o qual, por sua vez, mais era uma categoria social que de
subsistência. A conotação de subsistência da riqueza (bem como
do pagamento) derivou da frequência com que se acumulava ri­
queza sob a forma de gado, escravos e produtos não perecíveis de
consumo comum. Tanto o que alimentava a reserva de riqueza
quanto aquilo que era desembolsado dela adquiriu então um sig­
nificado de subsistência — mas apenas dentro de certos limites, já
que os pagamentos continuaram a ser feitos, como norm a geral,
por razões não transacionais. Isso se aplicava tanto aos ricos que
possuíam a reserva de riqueza quanto aos súditos que a alimenta­
vam com seus pagamentos. Assim, o possuidor de riqueza ficava
apto a pagar multas, composições, impostos etc. para fins sagra­
dos, políticos e sociais. Os pagamentos que ele recebia de seus sú­
ditos, altos ou baixos, eram-lhe feitos sob a forma de impostos,
rendas, presentes etc., não por razões transacionais, mas por ra­
zões sociais e políticas, que iam desde a pura gratidão pela prote­
ção, ou da admiração pelos dotes superiores, até o simples medo
da escravização e da morte. Por outro lado, isto não significa negar
que, um a vez estando presente o dinheiro como meio de troca, ele
se prestava prontam ente a servir de reserva de riqueza. Todavia,
como no caso do pagamento, a condição era o estabelecimento
prévio de objetos quantificáveis como meios de troca.

Uso do dinheiro como padrão


Como padrão de valor, o dinheiro parece ligar-se mais de perto a
seu uso como meio de troca do que como pagamento ou reserva.
É que o escambo e a armazenagem de gêneros essenciais foram as
duas fontes muito distintas das quais surgiu a necessidade de um
padrão. À prim eira vista, elas pouco tinham em comum. A pri­
m eira assemelhava-se a um a transação, a segunda, à adm inis­
tração e à distribuição. Contudo, nenhum a das duas podia ser
praticada de maneira eficaz na falta de um padrão. De que manei­
ra senão com a ajuda de cálculos se podería, por exemplo, trocar
um lote de terra por um sortim ento composto por um a carroça,

340
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

arreios para cavalos, asno, arreios para asno, boi, azeite, roupas
e outros artigos menores? Na ausência de um meio de troca, a
contabilidade de um famoso caso de escambo na antiga Babilônia
configurou-se assim: a terra foi avaliada em 816 siclos de prata,
enquanto os artigos oferecidos em troca foram avaliados, também
em siclos de prata, da seguinte maneira: carroça, 100; seis arreios
para cavalos, 300; um asno, 130; arreios para asno, 50; um boi, 30;
e o restante distribuído pelos itens menores.
O mesmo princípio se aplicava, na falta do meio de troca, à
administração das imensas reservas do palácio e do tem plo (fi­
nanças em gêneros essenciais). Seu curador lidava com os bens de
subsistência em condições que, vistas por mais de um ângulo, exi­
giam um a estimativa do valor relativo desses bens. Daí a famosa
regra contábil “um a unidade de prata = um a unidade de cevada”,
na esteia de M anistusu e na epígrafe das Leis de Eshnuna.
Os dados de pesquisas revelam que o uso do dinheiro como
meio de troca não pode ter dado origem a seus outros usos. Ao
contrário, suas utilizações como pagamento, reserva e unidade de
conta tiveram origens separadas e se institucionalizaram indepen­
dentemente umas das outras.

Circulação na elite e finanças em gêneros essenciais


Parece quase contraditório imaginar que fosse possível fazer pa­
gamentos com um dinheiro com o qual não era possível fazer
compras. Mas é exatamente isso que está implícito na afirmação
de que o dinheiro não era usado como meio de troca e ainda era
usado como meio de pagamento. Duas instituições da sociedade
primitiva oferecem um a explicação parcial para isso: o tesouro e
as finanças em gêneros essenciais.
O tesouro, como vimos, deve ser distinguido de outras formas
de riqueza armazenada. A diferença reside principalmente em sua
relação com a subsistência. No sentido estrito da palavra, o tesou­
ro é formado por bens de prestígio, inclusive “objetos de valor” e
objetos cerimoniais cuja mera posse conferia a seu detentor peso,

341
KARL POLANYI

poder e influência sociais. Uma peculiaridade do tesouro, portan­


to, era que tanto dá-lo quanto recebê-lo aumentavam o prestígio;
ele circulava basicamente pelo bem da movimentação, que era seu
uso apropriado. Até quando se “entesouravam” gêneros alimentí­
cios, eles tendiam a circular de um lado para outro entre as partes,
por mais absurdo que isso se afigure do ponto de vista da subsis­
tência. Todavia, os alimentos raram ente funcionavam como te­
souro, porque os que eram interessantes, como a carne de porco,
não se conservavam, e os que se conservavam, como a cevada ou
o azeite, não despertavam entusiasmo. Por outro lado, os metais
preciosos, quase universalmente valorizados como tesouro, não
podiam ser prontam ente trocados pela subsistência, já que, afora
algumas regiões excepcionalmente auríferas, como a Costa do
Ouro ou a Lídia, a exibição de ouro pelas pessoas comuns era con­
siderada vergonhosa.
No entanto, tal como outras fontes de poder, o tesouro podia
ser de grande importância econômica, já que deuses, reis e chefes
podiam ser levados a pôr os serviços de seus dependentes à dispo­
sição do doador, com isso lhe assegurando, de forma indireta, gê­
neros alimentícios, matérias-primas e serviços de mão de obra,
tudo em larga escala. Em última instância, essa capacidade de dis­
por indiretamente dos bens, que podia abarcar o im portante po­
der da tributação, surgiu, é claro, da maior influência exercida so­
bre sua tribo ou seu povo por aquele que recebia o tesouro.
Tudo isso se m antinha válido quer o tesouro consistisse em
unidades quantificáveis, quer não. No caso afirmativo, a m anipu­
lação do tesouro podia dar origem a algo da natureza das finanças.
Na Grécia arcaica, por exemplo, o possuidor de tesouro o empre­
gava para conquistar a graça de deuses e chefes, ou outros agentes
dotados de influência política, dando ao ouro e à prata a forma de
presentes convencionalmente aceitáveis, como trípodes ou vasos.
Mas isso não transformava os trípodes em dinheiro, pois somente
por um a interpretação artificial seria possível incluir esse uso
como presentes honoríficos nas categorias de pagamento ou meio
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

de troca. As transações das finanças em forma de tesouro restrin­


giam-se ao pequeno círculo dos deuses e chefes. Embora algumas
coisas pudessem ser pagas com bens de tesouro, inúmeras outras
não podiam ser compradas por eles.
A reserva de riqueza como instituição da economia de subsis­
tência começou pela coleta e a armazenagem de gêneros essenciais.
Embora o tesouro e as finanças em tesouro não costumassem fa­
zer parte da economia de subsistência, o armazenamento de gêne­
ros essenciais representava um a reserva de produtos de subsistên­
cia que costumava envolver seu uso como meio de pagamento.
É que, um a vez armazenados gêneros essenciais em larga escala
pelo templo, palácio ou senhorio feudal, isso tinha de ser acom­
panhado por tal uso. Desse modo, as finanças em tesouro foram
substituídas por finanças em gêneros essenciais.
A maioria das sociedades arcaicas possuía um ou outro tipo de
organização de finanças em gêneros essenciais. Foi no contexto da
transferência e do investimento planejados de bens essenciais, ar­
mazenados em escala gigantesca, que se desenvolveram pela pri­
meira vez os dispositivos contábeis que caracterizaram as econo­
mias redistributivas dos antigos impérios durante longos períodos.
É que só bem depois da introdução das moedas cunhadas na Gré­
cia, uns seis séculos antes da nossa era, as finanças em dinheiro
começaram a suplantar as finanças em gêneros essenciais nesses
impérios, especialmente na república romana. Entretanto, mesmo
mais tarde, o Egito ptolemaico persistiu nas tradições das finanças
em gêneros essenciais, as quais elevou a níveis ímpares de eficiência.
Como forma de integração, a redistribuição comumente en­
volve, nas condições primitivas, o armazenamento de mercadorias
num centro a partir do qual elas são distribuídas e saem de circu­
lação. Os bens transmitidos ao centro como pagamento são trans­
mitidos de lá para outros locais e consumidos. Provêm a subsis­
tência do exército, da burocracia e da força de trabalho, quer sejam
remunerados com salários, soidos ou de outras maneiras. O pes­
soal dos templos consome grande parte dos pagamentos feitos a

343
KARL POLANYI

eles em espécie. As matérias-primas são necessárias para equipar


o exército, para as obras públicas e as exportações do governo; lã e
tecidos tam bém são exportados; cevada, azeite, vinho, tâmaras,
alho e assim por diante são distribuídos e consumidos. Com isso,
destroem-se os meios de pagamento. Talvez alguns acabem sendo
trocados em caráter privado pelos que os recebem, sob a forma de
escambo. Nessa medida, inicia-se um a “circulação secundária” que
talvez possa até se tornar a mola mestra de mercados locais, sem
perturbar a economia redistributiva. Na realidade, até hoje não
apareceu nenhum a prova da existência de tais mercados. A im por­
tância do tesouro e dos gêneros essenciais para a questão dos usos
do dinheiro, portanto, está em que eles explicam o funcionamento
das várias formas de utilização do dinheiro, na falta do sistema
de mercado.
Os bens do tesouro, que aliás são quantificáveis, podem ser
usados para pagamento. Entretanto, esses produtos da elite nor­
malmente não são trocados nem podem ser usados para compras,
exceto nas esferas sagrada e da política externa. O setor muito
m aior dos pagamentos concerne, é claro, a bens de subsistência.
Tais objetos, quando usados para cum prir obrigações, isto é, para
pagamento, são armazenados no centro, de onde retornam através
do pagamento redistributivo e são consumidos.
Juntos, portanto, o tesouro e os bens essenciais fornecem, em
linhas gerais, a resposta para o problema institucional criado pelas
condições da sociedade primitiva, na qual os meios de pagamen­
to podem independer do uso do dinheiro como meio de troca.
A ausência do dinheiro como meio de troca nos impérios de agri­
cultura irrigada ajudou a desenvolver um a espécie de empresa
bancária — a rigor, a administração de grandes propriedades que
praticavam as finanças em gêneros essenciais — para facilitar as
transferências e compensações em espécie. Poderiamos acrescen­
tar que métodos semelhantes foram empregados pela administra­
ção dos templos maiores. Assim se desenvolveram pela primeira
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

vez a compensação, a transferência contábil e os cheques não


transferíveis, não como expedientes de um a economia monetária,
mas, ao contrário, como recursos administrativos destinados a
tornar o escambo mais eficiente e, por conseguinte, tornar desne­
cessário o desenvolvimento de métodos de mercado.

Babilônia e Daomé
Com respeito a sua organização monetária, a Babilônia de Ha-
murábi, apesar de sua complexa administração econômica e de
suas práticas operacionais sofisticadas, era tipicamente “prim iti­
va”, pois o princípio da diferenciação dos objetos monetários esta­
va firmemente estabelecido. Com muitas ressalvas im portantes
quanto aos detalhes, podemos fazer a seguinte generalização am ­
pla: rendas, salários e impostos eram pagos em cevada, enquanto
o padrão universal de valor era a prata. O sistema total era regido
pela norm a contábil que se fundamentava, de forma inabalável,
na equação “ 1 siclo de prata = 1 gurde cevada”. No caso de uma
melhora permanente na produção média do solo (que seria cau­
sada, por exemplo, por obras de irrigação em larga escala), o teor
de cevada do gur era elevado, mediante um a proclamação solene.
O uso geral da prata como moeda de conta facilitava enorm em en­
te o escambo; o emprego igualmente geral da cevada como meio
de pagamento doméstico tornava possível o sistema de armazena­
mento no qual se apoiava a economia redistributiva do país.
Parece que todos os gêneros essenciais importantes funciona­
vam como meios de troca, até certo ponto, sem que nenhum tives­
se permissão para atingir a condição de “dinheiro” (em oposição
a bens). Isso também pode ser formulado nos seguintes termos:
praticava-se um sistema complexo de escambo, que era baseado
na função da prata como moeda de conta, no uso da cevada como
meio de pagamento e no emprego simultâneo de diversos gêneros
essenciais, como azeite, lã, tâmaras, tijolos etc., como meios de
troca. Entre estes últimos devemos incluir a cevada e a prata, to ­
KARL POLANYI

m ando o cuidado de impedir que esses ou qualquer outro gênero


essencial sejam transformados num “meio preferencial de troca”,
ou, como diriamos, em dinheiro. Essas salvaguardas incluíam a
evitação de moedas cunhadas, o armazenamento de metais pre­
ciosos no tesouro do palácio e do templo e, mais eficaz do que
tudo, as rigorosas normas legais sobre a documentação das tran­
sações. O preceito mais destacado parece ter sido a restrição das
transações formais de “compra e venda” a bens específicos, como
um lote de terra, um a casa, cabeças de gado, escravos individuais
ou um barco, todos eles espécimens que podiam ser designados
por um nome. No tocante a gêneros essenciais ou bens fungíveis,
como cevada, azeite, lã ou tâmaras, não se evidenciou nenhuma
documentação de troca de uns por outros durante os milênios das
civilizações cuneiformes.
Numa escala m uito menor, o reino negro setecentista do Dao-
mé exibia condições monetárias não muito diferentes das obser­
vadas na Babilônia. As conchas de cauri eram empregadas como
moeda doméstica em todos os quatro usos citados, mas, como
padrão de valor, eram suplementadas por escravos, que serviam de
moeda de conta nas quantidades maiores. Por conseguinte, a for­
tuna dos ricos, os pagamentos alfandegários de navios estrangei­
ros ao rei, os tributos aos soberanos estrangeiros, tudo isso era
calculado (mas pago apenas neste último caso) em escravos. En­
tretanto, estes não serviam como meio de troca no Daomé, tal
como acontecia em algumas regiões dos hauçás. Neste último uso,
o cauri era complementado pelo pó de ouro, que era especialmen­
te empregado nos portos comerciais e noutros contatos com o
exterior. Q uanto à reserva de riqueza, usavam-se não apenas con­
chas de cauri, mas também escravos. Faz lembrar a Babilônia que
o papel da contabilidade na gestão desse sistema envolvia uma
equação entre escravos e conchas de cauri, a qual, ao que parece,
era uma questão de proclamação pública; o mesmo se dava com o
preço de exportação dos escravos, que era calculado em onças de
pó de ouro.

346
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

APÊNDICE: NOTAS SOBRE O DINHEIRO PRIMITIVO5

Proposições gerais sobre comércio, dinheiro e mercados

1) O comércio e o dinheiro originaram-se de forma separada e


independente dos mercados. Não provieram, como se pensava, do
escambo e da troca individuais. Comércio e dinheiro são institui­
ções m uito mais largamente disseminadas que os mercados. As
diversas formas de comércio e os diferentes usos do dinheiro, por­
tanto, devem ser considerados independentemente dos mercados
e dos elementos de mercado. Grande parte da história econômica
consiste exatamente na vinculação do comércio e dos usos do di­
nheiro a elementos de mercado, com isso levando ao comércio
mercantil e ao dinheiro como meio de troca. Tudo isso pode ser
incluído na tese da origem independente do comércio e do dinheiro
em relação aos mercados.

2) O desenvolvimento do comércio, do dinheiro e dos mercados


segue linhas diferentes, conforme essas instituições sejam p ri­
mordialmente externas ou internas à comunidade. Uma das ca­
racterísticas do tipo de economia do século XIX [o capitalismo do
laissez-faire] foi a obliteração quase completa dessa distinção. Po­
demos dar a isso o nome de tese das origens separadas do comércio,
dinheiro e mercados externos e internos.

3) Estamos familiarizados com a maneira pela qual o comércio, os


usos do dinheiro e os elementos de mercado se integram no siste­
m a mercantil. Entretanto, na falta de um sistema dom inante de
mercado, sua forma de integração é obscura. Propõe-se que ela se
explique pelo papel desempenhado nesse processo por institui­
ções não econômicas, mais especialmente pelos elementos de re­

5 Este Apêndice foi compilado a partir de memorandos inéditos que Polanyi escreveu
entre 1947 e 1950 e distribuiu como notas mimeografadas a seus alunos de história da
economia, na Universidade Columbia. Esse material inédito é reproduzido aqui com
permissão de Ilona Polanyi e Kari Polanyi Levitt. [N.E.]

347
KARL POLANYI

ciprocidade e redistribuição abrangidos (a) na organização social


básica e (b) na administração política. Esta última tem um papel
predom inante na sociedade arcaica. Podemos nos referir a isso
como a tese do papel integrador da reciprocidade e da redistribuição
nas sociedades que não são de mercado.

Proposições concernentes ao dinheiro primitivo


Usos do dinheiro

1) Na sociedade moderna, a distinção entre os vários usos do di­


nheiro mal chega a ter mais que um interesse histórico ou teórico,
porém raras vezes prático. A razão é que o dinheiro m oder­
no, pelo menos até recentemente, servia para todos os fins — isto
é, o meio de troca também era empregado nos outros usos do di­
nheiro. O dinheiro primitivo, ao contrário, é um dinheiro para
fins específicos, ou seja, diferentes objetos costum am ser empre­
gados em diferentes usos monetários. Os vários usos do dinheiro,
portanto, são separadamente institucionalizados e, em sua maio­
ria, independem uns dos outros. Aqui, por conseguinte, a distin­
ção entre os vários usos do dinheiro é de extrema im portância
prática para a compreensão do uso m onetário de objetos quan-
tificáveis.

2) A definição do dinheiro primitivo decorre de seus usos. Estes


são os de pagamento, padrão de valor, reserva e m eio de troca.
O dinheiro é definido como os objetos quantificáveis empregados
para qualquer dos usos citados.

3) Portanto, a ênfase desloca-se para a definição dos vários usos


do dinheiro. Eles devem conter (a) a situação sociológica em que
surge esse uso e (b) a operação praticada com os objetos nessa
situação.
a) O pagamento é o cum prim ento de obrigações mediante a
entrega de objetos quantificáveis, ou, no caso de “unidades ideais”,
da clara manipulação de contas devedoras. A “situação socioló­

348
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

gica” refere-se aí não a um uso isolado, mas a vários deles, pois


somente em relação a obrigações diferentes é que podemos falar
de “pagamento” no sentido distintivo do termo, isto é, como algo
que envolve um uso m onetário. Q uando há um único tipo de
obrigação envolvido, é bem possível que seu cum prim ento m e­
diante a entrega de objetos quantificáveis seja um a operação não
monetária, como quando um a obrigação é quitada “em espécie”.
b) O uso do dinheiro como padrão de valor é a equiparação de
quantidades de bens diferentes para efeito de escambo, ou em
qualquer outra situação que envolva a necessidade de contabilida­
de. A situação sociológica é a da troca direta, ou a do manejo ad­
ministrativo de objetos quantificáveis, como gêneros essenciais.
A “operação” consiste em atribuir valores numéricos aos diversos
objetos, para que suas somas possam vir a ser equiparadas.
c) O entesouramento é a acumulação de objetos quantificáveis
para dispor deles no futuro, ou simplesmente para guardá-los
como um tesouro. A situação sociológica é um dos num erosos
casos em que as pessoas preferem não consumir nem se desfazer
de outra maneira de objetos quantificáveis, e sim adiar seu uso
para o futuro, a menos que deem plena preferência às vantagens
da pura posse, especialmente ao poder, ao prestígio e à influência
que advêm dela. A operação envolvida consiste em guardar, arm a­
zenar e conservar os objetos, para que sua posse e, de preferência,
sua ostentação possam redundar em benefício do proprietário e
de todos os que ele possa representar.
d) O uso do dinheiro como meio de troca é o emprego de ob­
jetos quantificáveis em trocas indiretas. A situação sociológica
é a da posse de alguns objetos com o desejo de outros objetos.
A operação consiste em adquirir unidades de objetos quantificá­
veis mediante a troca direta, a fim de adquirir outros objetos por
meio de outro ato de troca. Entretanto, é possível que se possuam
objetos monetários e que a troca indireta se destine a obter uma
quantidade maior desses objetos.

349
KARL POLANYI

Definições do dinheiro na economia primitiva,


na antropologia cultural e na análise econômica

1) Esta definição do dinheiro é sumamente adequada ao propósi­


to da economia primitiva. Refere-se a objetos (físicos) quantificá-
veis, usados para fins específicos, sendo estes últimos, por sua vez,
definidos com a ajuda de situações sociológicas e operações pra­
ticadas nelas. Contudo, essa definição deve ser complementada
(a) com referência aos objetos monetários, por unidades ideais;
(b) com referência aos usos do dinheiro, por recursos operacio­
nais. As unidades ideais são objetos não físicos empregados nos
usos do dinheiro, como pagamento ou padrão, caso em que a ope­
ração não envolve primordialmente objetos físicos, mas é, antes, a
manipulação de contas devedoras. Os dispositivos operacionais,
isto é, as soluções prim ordialmente alcançadas pela manipulação
de objetos, não se limitam aos usos do dinheiro. Porém, os objetos
empregados num dado uso do dinheiro tam bém podem ser em­
pregados num dado recurso, como para objetivos aritméticos, es­
tatísticos, tributários, administrativos, ou outros objetivos ligados
à vida econômica. Exemplos: (i) a numeração dupla das conchas
de cauri, empregada na regulação automática do alcance do vare­
jo; cf. Mage, Baillaud, Binger, Bovill etc.; (ii) o relacionamento do
pó de ouro com o cauri e os preços de bens comerciais. O pó de
ouro é medido por peso, com a ajuda de sementes de cereais; o
cauri é contado por enumeração, e a unidade corrente contém um
número redondo definido dessas conchas (2000); os bens comer­
ciais recebem preços variáveis em ouro, em moedas de prata euro­
péias, em conchas de cauri, em barras de ferro ou em fios de cobre.
O nativo pode vender pó de ouro e ser pago em bens comerciais.
O mercador europeu (i) traduz o valor do ouro em libras esterli­
nas ou dólares de prata espanhóis e (ii) avalia os bens comerciais
em cauris. O nativo simplesmente conta o valor do pó de ouro
pelo núm ero de favas a que esse peso corresponde e depois equi­
para o núm ero de favas com as unidades de cauri que lhe são de­
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

vidas pelo comerciante. Ao retirar um a fava de um saco a cada


concha de cauri que lhe é paga, o número de favas restantes no
saco o informa acerca de quanto ele ainda tem para receber.

2) A antropologia cultural lida com o dinheiro como um sistema


semântico semelhante à escrita, à linguagem falada ou aos pesos e
medidas. O dinheiro como sistema semântico liga símbolos a ob­
jetos quantificáveis, mas o propósito a que serve o sistema como
um todo tem que ser inferido dos usos efetivos, e dificilmente se
pode dizer que seja tão claro quanto o da escrita ou o da fala.

3) A definição de dinheiro dos economistas clássicos e neoclássi-


cos, até recentemente, era a de meio de troca indireta. Os outros
usos do dinheiro seriam, nessa visão, meras variações sem im por­
tância desse uso.

Usos do dinheiro: origens institucionais independentes

1. Pagamento
a) Na sociedade prim itiva não estratificada, os pagam entos
costumam ser feitos, em geral, ligados às instituições do pre­
ço da noiva, do preço do sangue e das multas.
b) Na sociedade estratificada, especialmente a arcaica, institui­
ções como obrigações costumeiras, impostos, rendas e tribu­
tos dão origem a pagamentos, similarmente.

2. O uso do dinheiro como padrão ou unidade de conta é encon­


trado no contexto de
a) escambo complexo, isto é, com diferentes artigos somados
dos dois lados;
b) administração de bens essenciais (finanças em gêneros es­
senciais).

3. A reserva de riqueza pode servir para:


a) acumular tesouro;
b) prevenir a escassez futura;

351
KARL POLANYI

c) distribuição entre forças militares e de trabalho, fornecendo


a subsistência em espécie.

4. O dinheiro como meio de troca desenvolveu-se, em geral, não a


partir de atos aleatórios de escambo por parte dos indivíduos,
mas no contexto de mercados organizados de comércio exterior
e mercados internos.

Dinheiro: conceitos teóricos e institucionais

Economia clássica

O dinheiro é definido como um produto usado primordialmente


na troca. Portanto, é função do escambo e da troca direta. Os pro­
blemas monetários devem ser resolvidos sendo reduzidos a pro­
blemas de mercadorias. A moeda fiduciária (assim como o papel-
-moeda) não é dinheiro propriamente dito.
A derivação lógica do dinheiro identifica-se com sua evolução
histórica: a propensão para perm utar, comerciar e trocar leva a
atos individuais de escambo. Tais atos são limitados pela qualida­
de específica das mercadorias oferecidas com mais frequência que
outras. Por sua vez, isso leva a estabelecer um a delas como prefe­
rível a todas as demais para a finalidade de troca. Essa mercadoria
é adotada como “dinheiro” por sua adequação para a troca indire­
ta. Para aum entar sua fúngibilidade, a mercadoria pode ser quan­
tificada e dividida em partes, que são carimbadas pela autoridade
pública. A bem da conveniência, que rege todo o processo, essas
moedas podem ser substituídas por signos, como as cédulas, os
quais, no entanto, só constituem dinheiro na medida em que asse­
gurem a posse, da referida mercadoria; em tem pos m odernos,
trata-se de moedas feitas de metais preciosos.
A aparência de um “paralelo” entre a lógica e a história: o uso da
moeda, portanto, é logicamente precedido pelo uso do dinheiro
de metal, medido por peso; o monopólio do dinheiro de metal é
logicamente precedido pela concorrência entre as mercadorias

352
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

usadàs na troca indireta; esta, por sua vez, deve ter derivado do
uso preferencial não m onetário de diversos produtos — e tudo
isso se originou em atos individuais de troca, explicados pela pro­
pensão do ser hum ano para a permuta. De acordo com esse tipo
de tese racionalista, ao seguirmos o fio da dedução lógica até suas
fontes, supostamente também retraçamos os estágios de desenvol­
vimento incorporados na história.
Os vários usos do dinheiro aparecem nesse sistema como logi­
camente independentes. O caráter de mercadoria do dinheiro, isto
é, de ser um objeto que possui utilidade em si mesmo, é pressu­
posto. (1) “Meio de troca” é definido como o uso original; (2) se­
gue-se “meio de pagam ento”, pois como se poderia pagar com
um a coisa que não pudesse ser usada na troca? (3) Depois vem
“padrão de valor”, que abarca (1) e (2); e (4) “meio de acumular
riqueza ou tesouro” pressupõe os outros três. Os conceitos de
mercadoria e troca são pedras angulares do sistema.

Economia neoclássica

1) Sistema pré-keynesiano. Na maioria dos casos, algum tipo de


derivação da “troca” foi um legado dos clássicos. Schumpeter, por
exemplo, conservou a definição de “troca indireta” para o dinhei­
ro. Bõhm-Bawerk introduzira a troca, anteriormente, como um
tipo especial de uso para as mercadorias, e Wieser elaborou em
seguida a utilidade marginal do dinheiro. Nessa fase inicial, a teo­
ria neoclássica ainda não tinha consciência da dificuldade concei­
tuai de introduzir o dinheiro no esquema.

2) Sistema keynesiano. Aqui, o papel do dinheiro é puram ente


pragmático. Não há nenhum a tentativa de deduzir sua presença
da alocação de meios escassos. O próprio dinheiro é um dos meios
escassos aqui, porém um meio contrastado com as mercadorias.
O sistema clássico negava esse contraste (em consequência disso,
fora incapaz de explicar especificamente os fenômenos m onetá­
rios). A presença do dinheiro é corretamente presumida nesse sis-
KARL POLANYI

tema, já que ele só pode ser explicado em termos institucionais,


não conceitualmente deduzido. A expressão referente ao “véu de
dinheiro”, tal como usada pelos clássicos, foi um remanescente do
solecismo hum iano a respeito do valor supostamente convencio­
nal do dinheiro e da falácia ricardiana (oposta) sobre o caráter de
mercadoria do dinheiro. Na verdade, o valor do dinheiro não de­
corre da convenção, donde não é ilusório, mas também não decor­
re do “valor de uso”, como quer a teoria da mercadoria. Sua utili­
dade decorre do fato de que, com ele, é possível comprar coisas, e
seu valor provém de sua escassez. Mas isso não explica sua origem,
que reside nas instituições de governo e bancária.

Termos institucionais
Os vários usos do dinheiro foram originalmente institucionaliza­
dos em separado. As ligações entre esses quatro usos foram mais
ou menos acidentais. Abordaremos tais usos na seguinte sequên­
cia: (1) meio de pagamento; (2) meio de acumulação de riqueza
ou tesouro; (3) meio de troca; (4) padrão de valor.
Meio de pagamento:
Para que o dinheiro seja usado como meio de pagamento, é neces­
sário que haja (1) algum tipo de dívida ou obrigação pela qual
pagar e (2) algo com que pagar. Do ponto de vista tradicional, por­
tanto, o necessário é explicar (a) como surgem as dívidas ou obri­
gações na sociedade primitiva, fora das transações econômicas, e
(b) como pode haver um meio de pagamento quando o dinheiro
não é também usado como meio de troca.
Algo pelo qual pagar (Como surgem as dívidas?):
1) Que a sociedade primitiva se baseie no status significa que os
direitos e as obrigações decorram sobretudo do nascimento, seja o
parentesco real ou fictício. Isso é predominantemente válido em
relação às sociedades estratificadas. Pelo nascimento tam bém se
adquire o privilégio negativo. Os homens nascem com dívidas e
tendo de cum prir obrigações.
A SEM Â NTICA DO S U SO S DO DIN HEIR O

2) A instituição dominante é o parentesco, com suas extensões;


ele acarreta obrigações de vários tipos, sendo as principais as do
grupo das rixas de sangue. Por um lado, existe a obrigação da vin­
gança; por outro, a de pagar multas ou composições.6
3) Em muitas sociedades primitivas (os manus, por exemplo),
as obrigações costumeiras estão sob a sanção severa da magia.
4) O caráter sagrado da lei prim itiva (formal e ritualística).
Transações sancionadas pela religião. As obrigações contraídas
dessa maneira são de extremo rigor.
5) A grande importância do prestígio, da posição, das prerro­
gativas ligadas a atos honoríficos, nomes, títulos, relatos (de faça­
nhas), das transações cerimoniais, tudo isso explica p o r que se
contraem dívidas (até intencionais) pela infração de prerrogativas
reconhecidas, como entre os índios tolowa e os kwakiutl.
6) Outra rica fonte encontra-se no aumento da autoridade, que
cria a obrigação política.
Todos esses fatores contribuem para a capacidade de a socie­
dade primitiva produzir um endividamento de natureza não econô­
mica. A obrigação baseia-se em status, sangue, disputas, prestígio,
parentesco e noivado ou casamento, e envolve a quitação, o cum ­
prim ento ou a resolução da dívida, ficando todo o processo sob a
sanção da magia, da lei ritualística, da cerimônia sagrada. A dívida
é contraída não como resultado de uma transação econômica, mas
de eventos como casar, matar, chegar à maioridade, ser desafiado
para o potlatch, ingressar num a sociedade secreta etc. Enquanto,
na sociedade primitiva, os interesses econômicos e as obrigações
correspondentes carecem de rigor e tendem para a indulgência, a
elasticidade e o tratam ento equânime, os interesses econômicos
pessoais costum am incluir-se na categoria das motivações não
aprovadas. Observa-se o inverso no tocante às dívidas e obrigações
que têm fontes não econômicas, como a magia, a ordem sagrada,

6 Nesse contexto, composição significa o pagamento como parte de um “acordo para


cessação das hostilidades”. Oxford Concise Dictionary, [N.E.]

355
KARL POLANYI

o strictijuris negotis, as práticas de rituais, as questões de honra ou


prestígio e o direito formal, incluindo-se o jus talionis, o nexum ou
as formalidades ligadas à compra e venda de res mancipi. (Cf. tam ­
bém as “Doze tábuas” romanas que codificavam o “direito costu­
meiro” [aproximadamente em meados do século V a.C.] e as leis
hebraicas do Deuteronômio, atribuídas ao final do século VII a.C.,
mas que usaram um material muito anterior.) A respeito das taxas
de ingresso, graus e “maçonaria” da sociedade suque (arquipélago
de Banks), Daryll Forde escreveu: “Esse sistema dá um a feição
muito mais mercenária à sociedade nessas áreas, e o dinheiro ad­
quire maior importância que no restante da Melanésia.”7Os paga­
mentos são feitos em meios convencionais: por exemplo, as plu­
mas para danças são pagas com dentálios ou colares de conchas; as
canções para admissão na sociedade suque são pagas com corren­
tes de conchas à guisa de dinheiro. Empregam-se correntes inteiras
de conchas etc., não unidades isoladas. Tais pagamentos restrin­
gem-se a comunidades diferentes.

Como são pagas as dívidas, na falta de um meio de troca?


A riqueza consiste primordialmente em objetos de valor, aqueles
que são capazes de despertar emoção e são valorizados p o r eles
mesmos. O “uso” desses bens preciosos pode consistir meramente
em possuí-los — como no caso de joias da Coroa.
Dinheiro de Palau. A ilha de Palau (Pacífico Norte), também
chamada Pelew, faz parte do arquipélago das Carolinas. A mistura
de porcelana e vidro, de origem relativamente pré-histórica, é uma
realidade. Algumas das contas de vidro são encontradas em Yap,
mas não são usadas como dinheiro nesse local (em vez delas,
usam-se pedras de aragonita). Dinheiro amarelo e vermelho de
Palau: essas peças se parecem com conchas e são vítreas, mas opa­
cas. Diferentes tipos de dinheiro de Palau, de cor branca, servem

7 Daryll Forde, Habitat, Economy, and Society. 8a ed. Londres: Methuen, 1950, p. 203.
[N.E.]

356
A SE M ÂNTICA DOS U S O S DO DINHEIRO

de meio de troca específico; por exemplo, compram-se velas de


barcos pelo tipo mais valorizado. Os de valor mais alto são em­
prestados a juros! O preço da noiva coaduna-se com a posição; o
mais graduado paga mais!
O tipo mais valorizado de dinheiro é escondido pelos chefes tri­
bais. Poucas pessoas conhecem ao menos 1/6 dos tipos de moeda.
As multas são pagas em dinheiro de Palau. Alguns tipos são usados
na troca por preços fixos. As contas de vidro assemelham-se às da
África ocidental encontradas em tocas anglo-saxônicas. Os axântis
pagam “o peso em ouro” por essas “pérolas Aggry”.* O desenvolvi­
mento do dinheiro de Palau é sumamente específico. Cada tipo de
moeda tem seu uso próprio, um círculo dentro do qual se movi­
menta. Isso se harmoniza com a ideia da riqueza e do tesouro, mas
não com a de meio de troca. Embora também haja usos como meio
de troca, os principais são da natureza do pagamento, como no pre­
ço da noiva — um exemplo destacado do dinheiro como meio de
pagamento, baseado em seu uso como meio de acumular tesouro.
Afora isso, dispor do “objeto valioso” é seu “uso” principal,
como no sistema kula, no qual os parentes e dependentes do pro­
prietário têm permissão de usar os objetos. Servos, vassalos e alia­
dos de guerra são obtidos com a ajuda desses objetos preciosos.
O importante é que os destinatários os vejam como objetos pre­
ciosos, não por seu uso nas trocas [comerciais], cuja probabilidade
costuma ser nula; o valor está inextricavelmente ligado ao status.
(Alguns objetos do kula são braceletes grandes e gordurosos de
conchas brancas, que não têm nenhum valor, a não ser pelas asso­
ciações com seus donos anteriores.)
No entanto, o dinheiro como meio de pagamento nunca p o ­
dería ter-se desenvolvido em larga medida se sua utilidade se res­
tringisse ao entesouramento. Outro uso veio pelo desenvolvimento
da redistribuição como forma de integrar a atividade econômica.

* Também conhecidas com o contas Aggry ou Koli, Cori, Kor, Segi, Accori ou Ekeur.
[N.T.]
KARL POLANYI

Os prim órdios se deram com os caçadores, é claro. Em sociedades


estratificadas como as da Micronésia e da Polinésia, o chefe supre­
mo, como representante do clã superior, recebe a renda e depois a
distribui sob a forma de presentes generosos à população. O prin­
cípio da redistribuição é praticado em escala gigantesca nas des­
poticam ente governadas aristocracias de pastores e lavradores,
como as do México e do Peru. Os pagamentos de impostos dos
súditos e dos povos subjugados são guardados em armazéns enor­
mes e redistribuídos para os grupos internos e populações inter­
nas. Os mesmos princípios imperaram na Suméria, na Babilônia e
na Assíria, assim como na antiga China e no Novo Reino do Egito.
Tudo isso serve para explicar a relativa independência entre “pa­
gamento” e “troca”.

O dinheiro como meio de troca


Uso externo do dinheiro. As origens do dinheiro como meiò de
troca estão ligadas ao comércio exterior. Isso se harmoniza com a
realidade, igualmente estabelecida, do comércio e dos mercados
como instituições “externas”.
Alguns artigos destacam-se no comércio exterior, comõ ali­
mentos versus manufaturados. Os fatores geográficos se afirmam,
como nas regiões centro-leste e centro-oeste da África. Em algu­
mas comunidades mais simples, a tendência à especialização pro­
duz esse fenômeno, mesmo na ausência da determ inação geo­
gráfica, como na Melanésia. Mas o fato geral é a tendência do
comércio exterior a se especializar em alguns artigos principais.
Alguns destes, como o sal ou o ferro, são preferidos para a troca
indireta. Essa é um a das origens do dinheiro como meio de troca.
Ê raro vermos o dinheiro surgir primordialmente da necessi­
dade de um meio de troca indireta. Esse tipo de moeda externa é
deliberado, assim como o uso de conchas de cauri. Elas são pouco
usadas de outras maneiras, mas são extremamente populares com
todos os povos como moeda do comércio exterior.

358
A SEMÂNTICA DOS USOS DO DINHEIRO

Usos internos do dinheiro. Visto que o dinheiro como meio de


troca originou-se no comércio exterior, quando e como, se é que
isso aconteceu, ele se tornou um meio de troca internam ente?
Ainda que, em geral, o dinheiro como meio de troca tenha-se ori­
ginado no comércio exterior, é possível que seu uso interno ou
doméstico nas trocas tenha-se originado de forma independente.
Isso poderia ter ocorrido em decorrência de atos individuais de
escambo e troca e, mais tarde, de mercados locais. Mas não parece
ter sido esse o caso.
Na sociedade primitiva simples, ou seja, não estratificada, o di­
nheiro originou-se como meio de pagamento. Apesar de ter sido
usado como meio de troca na economia de prestígio, dentro de
certos limites, só em casos excepcionais foi usado na economia
de subsistência. O alimento sempre se manteve como um artigo de
comércio exterior e não era internamente trocado por dinheiro.
Na sociedade primitiva estratificada, é claro, o dinheiro é larga­
mente usado na redistribuição, isto é, como meio de pagamento.
Isso pode dar-se sob a forma de “objetos preciosos”, como o di­
nheiro de Palau ou o gado no leste da África. No entanto, não ve­
mos o dinheiro aparecér como meio de troca, pois os atos de troca
nos mercados locais (como na África) limitam-se à troca de tipos
específicos de mercadorias e, em princípio, o comércio é exclusi­
vamente o comércio exterior.
Mencionemos aqui o dinheiro “interno” e “externo” de Hein-
rich Schurtz ( Grundriss einer Entstehungsgeschichte des Geldes,
1898). Dois tipos diferentes de dinheiro, originários de fontes di­
ferentes. Isso parecia convir a alguns fatos im portantes frisados
por Schurtz. Mas esse autor tom ou por internos alguns usos do
dinheiro que eram de origem externa. (1) Preço da noiva: o ri­
ginalmente, o pagamento é um a instituição de exogamia e, em
princípio, é “externo”; (2) a composição das rixas de sangue é “ex­
terna”, já que não há rixas de sangue e, originalmente, não há com­
posições no interior do grupo.

359
KARL POLANYI

O uso interno do dinheiro nas trocas, nos antigos impérios


orientais do Egito, Suméria, Babilônia e China, foi m uito restrito,
no computo geral. No Egito, não se atribuiu nenhum a moeda a
datas anteriores a Alexandre, o Grande. O sofisticado sistema m o­
netário ptolemaico teve origem posterior, é claro. A arte altamente
desenvolvida dos ourives não os induziu a cunhar moedas de m e­
tal, o qual era usado por peso em anéis de prata e ouro. Grosso
modo, a economia era de redistribuição em imensa escala. O co­
mércio exterior ficava sobretudo nas mãos de estrangeiros. O co­
mércio interior era transacionado em espécie, às vezes em ouro e
prata, conforme o peso. A economia redistributiva, imensamente
desenvolvida, m antinha o sistema com o uso do dinheiro como
base de pagamento e desestimulava a formação de mercados in­
ternos de maior importância. Nesse aspecto, o Egito foi típico dos
antigos impérios orientais.

O dinheiro como padrão de valor


O dinheiro como padrão de valor atingiu seu desenvolvimento
máximo na sociedade moderna, com base num a economia de tro­
cas integrada ao mercado. Nela, o dinheiro assume a forma do
poder aquisitivo geral.
Mas o dinheiro era usado como padrão de valor em impérios
antigos, em decorrência das instituições redistributivas ampla­
mente disseminadas. Esse uso restringia-se aos bens econômicos
mais importantes, como terra, cereais e metais, e não era resultan­
te de funções de mercado, mas da fixação de preços pelas autori­
dades. Nesse contexto, é interessante assinalar que, na medida em
que se usavam metais (por peso) como meios de pagamento, não
há nenhum a prova, na história da Antiguidade, de tentativas de
“degradar a moeda”. O caráter “m onetário” das mercadorias de­
via-se, com mais frequência, à extensão do governo a áreas maio­
res do que à troca direta de mercadorias. Por esses meios, o comér­
cio exterior “interiorizou-se”.

360
Interesse de classe e mudança social*

O mito liberal da conspiração coletivista deve ser completamente


dissipado para que a verdadeira base das políticas do século XIX
possa ser exposta às claras. Diz essa lenda que o protecionismo foi
o mero resultado do interesse sinistro de senhores de terras, pro­
dutores fabris e sindicalistas, que destroçaram de forma egoísta a
maquinaria automática do mercado. Numa outra formulação, e,
é claro, com um a tendência política oposta, os partidos marxistas
argumentaram em termos igualmente faccionais. (O fato de a fi­
losofia essencial de Marx ter-se centrado na totalidade da socieda­
de e na natureza não econômica do homem é irrelevante aqui.)*1
0 próprio Marx seguiu Ricardo ao definir as classes em termos
econômicos, e não há dúvida de que a exploração econômica foi
um a característica da era burguesa.
No marxismo popular, isso levou a uma tosca teoria de classe
do desenvolvimento social. A pressão por mercados e zonas de
influência foi simplesmente atribuída à motivação do lucro de um
punhado de financistas. O imperialismo foi explicado como uma
conspiração capitalista para induzir os governos a desencadearem
guerras em nome dos interesses das grandes empresas. As guerras
teriam sido causadas por um a combinação desses interesses com
os das empresas de armamentos, as quais, milagrosamente, ganha­
ram a capacidade de impelir nações inteiras para políticas fatídi­
cas, contrárias a seus interesses vitais. Liberais e marxistas, com
efeito, concordaram em relacionar o m ovim ento protecionista
com a força dos interesses setoriais, em explicar as tarifas agrárias

* “Class Interest and Social Change”, capítulo 3 de Primitive, Archaic and M odem Econo-
mies: Essays ofK arl Polanyi, organizado por George Dalton. Boston: Beacon Press,
1968.
1 K. Marx, Nationalõkonom ie u n d Philosophie, em “Der Historische Materialismus”,
1932.

361
KARL POLANYI

pela influência política de latifundiários reacionários, em res­


ponsabilizar a sede de lucro dos magnatas da indústria pelo cres­
cimento das formas monopolistas de empreendimento e em apre­
sentar a guerra como resultado da ferocidade desenfreada no
m undo dos negócios.
Com isso, a visão econômica liberal encontrou poderoso res­
paldo num a estreita teoria de classe. Sustentando o ponto de vista
de classes opostas, liberais e marxistas defenderam propostas
idênticas. Defenderam que o protecionism o do século XIX re­
sultou da ação de classes, e que essa ação deve ter servido prim or­
dialmente aos interesses econômicos dos membros das classes em
questão. Juntos, eles obstruíram quase por completo a visão geral
da sociedade de m ercado e da função do protecionism o nessa
sociedade.
Na verdade, os interesses de classe oferecem apenas um a expli­
cação limitada para os movimentos de longo prazo na sociedade.
O destino das classes é determinado pelas necessidades da socie­
dade m uito mais que o destino da sociedade pelas necessidades
das classes. Dada um a estrutura definida da sociedade, a teoria de
classe funciona; mas se acaso essa própria estrutura passar por
mudanças? Uma classe que perdeu sua função pode desintegrar-se
e ser suplantada, da noite para o dia, por um a nova classe ou clas­
ses. Além disso, as chances das classes num a luta dependem de sua
capacidade de granjear apoio fora de seu próprio grupo de mem­
bros, o que, por sua vez, depende de que elas consigam realizar
tarefas ditadas por interesses mais amplos que os seus. Portanto,
nem o nascimento nem a m orte das classes, nem suas metas nem
o grau em que elas as atingem, nem seus atos de cooperação nem
seus antagonismos podem ser compreendidos fora da situação da
sociedade como um todo.
Essa situação, em geral, é criada por causas externas, como uma
m udança climática, um a alteração no volume das colheitas, um
novo inimigo, um a nova arm a usada por um velho inimigo, o sur­
gimento de novos objetivos comunitários ou até a descoberta de

362
INTERESSE DE CLASSE E MUDANÇA SOCIAL

novos métodos para alcançar os fins tradicionais. No fim das con­


tas, os interesses setoriais têm de se relacionar com essa situação
total para que sua função no desenvolvimento social se torne clara.
O papel essencial desempenhado pelos interesses de classe na
mudança social faz parte da natureza das coisas. Qualquer forma
ampla de m udança está fadada a afetar as várias partes da comu­
nidade de diferentes maneiras, que mais não seja, pelas diferenças
de localização geográfica e do equipamento econômico e cultural.
Os interesses setoriais, portanto, são o veículo natural da mudança
social e política. Sejam a fonte da mudança a guerra ou o comér­
cio, invenções assombrosas ou mudanças nas condições naturais,
os vários setores da sociedade defenderão m étodos diferentes
de adaptação (inclusive forçados) e adaptarão seus interesses de
m odo diferente dos de outros grupos, os quais talvez procurem
guiar; assim, só quando se pode apontar para o grupo ou grupos
que efetuaram um a mudança é que se explica como essa mudança
ocorreu. No entanto, a causa última é ditada por forças externas.
A sociedade só depende de forças internas no que diz respeito ao
mecanismo da mudança. O “desafio” é para a sociedade como um
todo; a “resposta” vem por meio de grupos, setores e classes.
Os meros interesses de classe, portanto, não podem oferecer
uma explicação satisfatória para nenhum processo social de longo
prazo. Primeiro, porque o processo em questão pode decidir sobre
a própria existência da classe; segundo, porque os interesses de tais
ou quais classes determinam apenas os objetivos e propósitos pe­
los quais elas lutam, não o sucesso ou o fracasso desses esforços.
Nos interesses de classe não há magia capaz de garantir aos m em ­
bros de uma classe o apoio dos membros de outras. No entanto,
esse apoio é um a ocorrência cotidiana. O protecionismo, aliás, é
um exemplo disso. O problema aqui não é por que os senhores de
terras, produtores fabris ou sindicalistas quiseram aum entar sua
renda com a ação protecionista, mas por que conseguiram fazê-lo;
não é por que empresários e trabalhadores quiseram estabelecer
monopólios para seus produtos, mas por que atingiram seu obje­

363
KARL POLANYI

tivo; não é por que alguns grupos quiseram agir de maneira pare­
cida em diversos países da Europa continental, mas por que tais
grupos existiam nesses países dessemelhantes e atingiram igual­
mente as suas metas em toda parte; não é por que os cultivadores
de cereais tentaram vender seus produtos por preço? altos, mas
por que lograram sistematicamente persuadir os compradores de
cereais a elevar os preços.
Segundo, existe a doutrina igualmente equivocada da natureza
essencialmente econômica dos interesses de classe. Embora a so­
ciedade hum ana seja naturalmente condicionada por fatores eco­
nômicos, só em casos excepcionais as motivações dos indivíduos
hum anos são determinadas pela satisfação de carências materiais.
O fato de a sociedade do século XIX ter-se organizado com base
no pressuposto de que essa motivação podería tornar-se universal
foi um a peculiaridade da época. Assim, era apropriado dar uma
margem relativamente ampla à ação das motivações econômicas
ao analisar essa sociedade. Mas devemos precaver-nos contra o
prejulgamento da questão, que é, precisamente, até que ponto essa
motivação tão incomum poderia tornar-se atuante.
Questões puram ente econômicas, como as que afetam a satis­
fação das necessidades, são incomparavelmente menos relevantes
para o comportamento de classe que as do reconhecimento social.
A satisfação das necessidades, é claro, pode resultar desse reco­
nhecimento, sobretudo como seu sinal ou recompensa externos;
Todavia, os interesses de classe referem-se mais diretamente à re­
putação e à posição, ao status e à segurança, ou seja, são prim or­
dialmente não econômicos, mas sociais.
As classes e os grupos que participaram em caráter interm iten­
te do movimento geral para o protecionismo, depois de 1870, não
o fizeram principalmente por seus interesses econômicos. As m e­
didas “coletivistas” promulgadas nos anos cruciais revelam que
apenas em casos excepcionais o interesse de um a classe isolada
esteve envolvido; mesmo assim, raras vezes se poderia descrever
esse interesse como econômico. Com certeza, não se satisfez ne­

364
INTERESSE DE CLASSE E MUDANÇA SOCIAL

nhum “interesse econômico míope” com uma lei que autorizou as


autoridades municipais a assumirem o controle de espaços negli­
genciados, ou com norm as que exigiram a limpeza das padarias
com água quente e sabão pelo menos de seis em seis meses, ou
com um a lei que tornou obrigatória a testagem de cabos e ân­
coras. Essas medidas simplesmente atenderam a necessidades de
uma civilização industrial, com as quais os métodos de mercado
não conseguiam lidar. A grande maioria dessas intervenções não
teve relação direta e mal passou de um a relação indireta com a
renda. Isso se aplicou a praticamente todas as leis ligadas à saúde
e à habitação, a amenidades e bibliotecas públicas, às condições
das fábricas e à seguridade social. E se aplicou igualmente aos ser­
viços de utilidade pública, à educação, aos transportes e inúmeros
outros assuntos. Mesmo quando houve valores monetários envol­
vidos, eles foram secundários em relação a outros interesses. Em
caráter quase invariável, o que esteve em questão foi o status pro­
fissional, a segurança e a proteção, a forma da vida de um homem,
a amplitude de sua existência, a estabilidade de seu meio. A im ­
portância monetária de certas intervenções típicas, como as tarifas
alfandegárias ou a remuneração dos trabalhadores, não deve ser
minimizada. Mesmo nesses casos, porém, os interesses não m one­
tários foram inseparáveis dos monetários. As tarifas aduaneiras,
que implicavam lucros para os capitalistas e salários para os tra­
balhadores, significavam, em últim a instância, a segurança contra
o desemprego, a estabilização das condições regionais, a garantia
contra a liquidação de indústrias e, o que talvez fosse mais im por­
tante, a evitação da dolorosa perda de status que inevitavelmente
acompanha a transferência para um emprego em que o hom em é
menos qualificado e experiente.
Depois de nos livrarmos da obsessão de que apenas os interes­
ses setoriais, nunca os gerais, podem surtir efeito, bem como do
preconceito gêmeo de restringir os interesses dos grupos humanos
a sua renda monetária, a amplitude e a abrangência do m ovimen­
to protecionista perdem seu mistério. Enquanto os interesses m o­

365
KARL POLANYI

netários só são necessariamente verbalizados pelas pessoas a quem


dizem respeito, outros interesses têm um público mais amplo.
Afetam os indivíduos de inúmeras maneiras, na condição de vizi­
nhos, profissionais, consumidores, pedestres, passageiros, despor­
tistas, excursionistas, jardineiros, pacientes, mães ou namorados
— e, por conseguinte, são passíveis de representação p o r quase
qualquer tipo de associação territorial ou funcional, como igrejas,
municípios, confrarias, clubes, sindicatos ou, mais comumente,
partidos políticos baseados em princípios gerais de adesão. Uma
concepção m uito estreita do interesse está fadada a levar a um a
visão deturpada da história social e política, e nenhum a definição
puramente m onetária dos interesses pode dar margem à necessi­
dade vital de proteção social cuja representação comumente recai
sobre as pessoas encarregadas dos interesses gerais da comunidade
— nas condições modernas, os governos do momento. Foi exata­
mente porque os interesses — não os econômicos, mas os sociais
— de diferentes segmentos da população foram ameaçados pelo
mercado que, inconscientemente, pessoas de diversas camadas
econômicas uniram forças para enfrentar o perigo.
Assim, a expansão do mercado foi promovida e obstruída pela
ação das forças de classe. Dada a necessidade da produção m e­
canizada para instituir um sistema de mercado, somente as classes
mercantis estavam em condições de assumir a liderança naquela
transform ação inicial. Surgiu um a nova classe de empresários,
saída dos remanescentes de classes anteriores, para se encarregar
de um desenvolvimento que era compatível com os interesses da
comunidade como um todo. Mas se a ascensão de industriais, em­
presários e capitalistas resultou de seu papel destacado no m o­
vimento expansionista, a defesa coube às classes fundiárias tra ­
dicionais e à nascente classe trabalhadora. E se, na comunidade
comercial, coube aos capitalistas representar os princípios estru­
turais do sistema de mercado, o papel de defensor ferrenho do
tecido social coube à aristocracia feudal, de um lado, e ao crescen­

366
INTERESSE DE CLASSE E MUDANÇA SOCIAL

te proletariado industrial, de outro. Mas enquanto era natural que


as classes fundiárias buscassem a solução de todos os males na
manutenção do passado, os trabalhadores, até certo ponto, esta­
vam em condições de transcender os limites da sociedade de mer­
cado e buscar soluções no futuro. Isso não implica que o retorno
ao feudalismo ou a proclamação do socialismo estivessem entre as
linhas de ação possíveis, mas indica, sim, as direções inteiramente
diferentes em que as forças agrárias e as da classe trabalhadora
urbana tendiam a buscar socorro num a emergência. Se a eco­
nomia de mercado entrasse em colapso, como ameaçou fazer em
todas as grandes crises, as classes fundiárias poderiam tentar um
retorno a um regime militar ou feudal de paternalismo, ao passo
que os operários das fábricas veríam a necessidade de estabelecer
um a comunidade cooperativa de trabalho. Numa crise, as “respos­
tas” podem apontar para soluções mutuamente excludentes. Um
mero choque de interesses, que de outro m odo encontraria um a
solução de compromisso, foi investido de um a im portância fatal.
Tudo isso deve nos alertar contra a confiança excessiva nos in­
teresses econômicos de tal ou qual classe na explicação da história.
Essa abordagem implicaria tacitamente a condição dessas classes
como um dado indubitável, num sentido que só seria possível
num a sociedade indestrutível. Ela deixa fora do seu alcance aque­
las fases cruciais da história em que um a civilização desmorona,
ou passa por um a transformação, nas quais em geral se formam
novas classes, às vezes em brevíssimo intervalo, a partir das ruínas
de classes anteriores ou até de elementos extrínsecos, como aven­
tureiros ou exilados estrangeiros. Numa conjuntura histórica, é
frequente surgirem novas classes, simplesmente em virtude das
exigências do momento. Em última análise, portanto, é a relação
da classe com a sociedade como um todo que mapeia seu papel no
drama, e seu sucesso é determinado pela amplitude e a variedade
dos interesses a que ela possa servir, afora ós seus. Na verdade,
nenhum a política de estrito interesse de classe é capaz de salva­
guardar sequer esse interesse — um a regra que admite poucas

367
KARL POLANYI

exceções. A menos que a alternativa para a conjuntura social seja


um mergulho na destruição completa, nenhum a classe brutal­
mente egoísta é capaz de se m anter na liderança.

Para im putar com segurança a culpa à suposta conspiração co-


letivista, os liberais econômicos têm que negar, em última instân­
cia, que tenha surgido qualquer necessidade de proteção da socie­
dade. Recentemente, eles aplaudiram as idéias de certos estudiosos
que rejeitaram a doutrina tradicional da Revolução Industrial, que
diz que uma catástrofe se abateu sobre as pobres classes trabalha­
doras da Inglaterra por volta da década de 1790. Segundo esses
autores, nada parecido com um a deterioração repentina dos pa­
drões jamais atingiu a população comum. Em média, esta se acha­
va em condições substancialmente melhores que antes da introdu­
ção do sistema fabril, e, quanto aos números, ninguém poderià
negar seu rápido aumento. Pelos parâmetros aceitos do bem-estar
econômico — salários reais e cifras populacionais — , afirmaram
que o inferno dos prim órdios do capitalismo jamais existiu; longe
de serem exploradas, as classes trabalhadoras saíram ganhando
em termos econômicos; defender a necessidade de proteção social
contra um sistema que beneficiava a todos era um a óbvia impos­
sibilidade.2
Os críticos do capitalismo liberal ficaram perplexos. Durante
cerca de setenta anos, estudiosos e comissões do governo britânico
haviam denunciado os horrores da Revolução Industrial, e uma
galáxia de poetas, pensadores e escritores havia estigmatizado suas
crueldades. Considerava-se um fato estabelecido que as massas
tinham sido extenuadas e deixadas à míngua pelos insensíveis ex­
ploradores do seu desamparo; que os cercamentos tinham privado
a população rural de suas casas e suas terras, lançando-a no mer­
cado de trabalho criado pela reforma da Lei da Pobreza; e que as

2 Ver F. A. Hayek (org.), Capitalism and the Historians. Chicago: University o f Chicago
Press, 1954. [N.E.]

368
INTERESSE DE CLASSE E MUDANÇA SOCIAL

tragédias comprovadas com crianças pequenas, que às vezes traba­


lhavam até m orrer em minas e fábricas, ofereciam um a prova as­
sustadora da indigência das massas. A explicação conhecida da
Revolução Industrial baseava-se no grau de exploração possibili­
tado pelos cercamentos do século XVIII, bem como nos baixos
salários oferecidos aos trabalhadores sem teto, que respondiam
pelos altos lucros da indústria algodoeira e pela rápida acumula­
ção de capital nas mãos dos primeiros donos de fábricas. E a acu­
sação contra estes era de exploração, um a exploração ilimitada de
seus concidadãos, que era a causa radical de miséria e aviltamento
profundos. Agora, tudo isso parecia refutado. Os historiadores
econômicos proclamaram a mensagem de que a sombra negra que
encobrira as primeiras décadas do sistema fabril tinha-se dissipa­
do. Afinal, como podia ter havido uma catástrofe social ali onde se
constatava, sem qualquer dúvida, um progresso econômico?
Na verdade, um a calamidade social é sobretudo um fenômeno
cultural, não um fenômeno econômico que se possa m edir por
cifras da renda ou estatísticas populacionais. As catástrofes cultu­
rais que envolvem amplas camadas da gente comum não podem
ser frequentes, é óbvio — tam pouco o são os eventos cataclís­
micos, como a Revolução Industrial, um terrem oto econômico
que, em menos de meio século, fez vastas massas de habitantes da
zona rural inglesa passarem de população estabelecida a m igran­
tes ineptos. Mas se essas avalanches destrutivas são excepcionais
na história das classes, elas constituem um a ocorrência comum na
esfera dos contatos culturais entre povos diferentes. Intrinseca-
mente, as condições são as mesmas. A diferença principal é que
a classe social faz parte de um a sociedade que habita a mesma
área geográfica, ao passo que o contato cultural costuma ocorrer
entre sociedades estabelecidas em diferentes regiões geográficas.
Em ambos os casos, o contato pode ter úm efeito devastador na
parte mais fraca. Não a exploração econômica, como amiúde se
supõe, mas a desintegração do meio cultural da vítima constitui
então a causa da degradação. O processo econômico pode forne­
KARL POLANYI

cer o veículo da destruição, e é quase invariável a inferioridade


econômica levar o mais fraco a ceder, mas nem p or isso a causa
imediata de sua ruína é econômica; ela reside, antes, no ferimento
letal infligido às instituições em que sua existência social se en­
carna. O resultado é a perda da autoestima e dos padrões, quer
a unidade seja um povo ou um a classe, quer o processo provenha
do chamado “conflito cultural” ou de um a mudança de posição de
uma classe dentro dos limites de um a sociedade.
Para o estudioso do capitalismo primitivo, o paralelo é muito
significativo. A situação de algumas tribos nativas da África atual
tem inequívoca semelhança com a das classes trabalhadoras in­
glesas durante os primeiros anos do século XIX. O cafre da África
do Sul, um nobre selvagem cuja segurança social não podería ser
maior em seu kraal nativo, foi transformado num a variedade h u ­
m ana de animal semidomesticado, que veste os “trapos desca­
sados, im undos e antiestéticos que nem o mais degenerado dos
brancos usaria”,3 um ser insignificante, sem am or-próprio nem
padrões, verdadeiro refugo humano. Essa descrição faz lembrar o
retrato que Robert Owen traçou de seus próprios trabalhadores,
ao discursar para eles em New Lanark, quando lhes disse na cara,
com a frieza e a objetividade com que um pesquisador social re­
gistraria os fatos, por que eles se haviam transform ado na ralé
degradada que eram.4 A verdadeira causa de sua degradação não
podería ser descrita de maneira mais oportuna do que pela afir­
mação de que eles viviam num “vazio cultural” — expressão usada
por um antropólogo5 para descrever a causa do envilecimento de
algumas das valentes tribos da África negra sob a influência do
contato com a civilização branca. Seus ofícios artesanais decaíram,

3 S. G. Millin, The South Africans, 1926.


4 Robert Owen, “An Address Delivered to the Inhabitants o f New Lanark on the lst o f
January, 1816, at the opening o f the Institution for the Formation o f Character”, em
A N ew View o f Society, and Other Essays. Nova York: E. R D utton & Co., 1927.
Everyman’s Library. [N.E.]
5 A. Goldenweiser, Anthropology, 1937.

370
INTERESSE DE CLASSE E MUDANÇA SOCIAL

as condições políticas e sociais de sua vida foram destruídas, e eles


estão morrendo de tédio, na famosa frase de Rivers, ou desperdi­
çando sua vida e sua essência na devassidão. Enquanto sua própria
cultura já não lhes oferece nenhum objetivo digno de esforço ou
sacrifício, o esnobismo e o preconceito raciais bloqueiam o acesso
a sua participação adequada na cultura dos intrusos brancos.6 Se
pusermos o bloqueio social no lugar do bloqueio da cor, veremos
emergirem as duas nações da década de 1840, e, em vez do cafre,
o favelado de passos hesitantes dos romances de Kingsley.
Alguns dos que concordariam prontam ente em que a vida
num vazio cultural não é vida parecem esperar, não obstante, que
as necessidades econômicas preencham automaticamente esse va­
zio e façam a vida parecer vivível, sejam quais forem as condições.
Essa suposição é nitidamente contestada pelo resultado das pes­
quisas antropológicas. “Os objetivos pelos quais os indivíduos
se dispõem a trabalhar são culturalmente determinados, não são
um a resposta do organismo a um a situação externa e não defi­
nida culturalm ente, como a simples escassez de com ida”, diz a
dra. Mead. “O processo pelo qual um grupo de selvagens é conver­
tido em mineradores de ouro, ou num a tripulação de navio, ou é
meramente despojado de qualquer incentivo ao esforço e largado
para perecer de um a m orte indolor à margem de rios ainda reple­
tos de peixes, talvez pareça tão bizarro, tão alheio à natureza da
sociedade e a seu funcionamento normal, que seria patológico”;
no entanto, acrescenta ela, “em geral, é exatamente isso que acon­
tece com uma população em meio a uma mudança violentamente
introduzida de fora para dentro, ou, pelo menos, externamente
produzida” Ela conclui: “Esse contato rude, esse desarraigamento
de povos simples dos seus mores, é por demais frequente para não
merecer séria atenção por parte do historiador social.”
Mas o historiador social não entende a deixa. Recusa-se ainda
a ver que a força básica do contato cultural, que hoje vem revolu­

6 Ibid.

371
KARL POLANYI

cionando o m undo colonial, é a mesm a que criou, um século


atrás, as cenas desoladoras do capitalismo primitivo. Um antropó­
logo7 fez um a inferência geral:
Apesar das numerosas divergências, há no fundo, entre os povos
exóticos de hoje, as mesmas agruras que havia entre nós há déca­
das ou séculos. Os novos engenhos técnicos, os novos conheci­
mentos, as novas formas de riqueza e poder aumentaram a m o­
bilidade social, isto é, a migração de indivíduos, a ascensão e a
queda de famílias, a diferenciação de grupos, novas formas de
liderança, novos modelos de vida, diferentes tipos de valorização.

A mente penetrante de Thurnwald reconheceu que a catástrofe


cultural da sociedade negra de hoje é estreitamente análoga à de
grande parte da sociedade branca nos primeiros tempos do capi­
talismo. Só o historiador social ainda deixa escapar essa analogia.
Nada obscurece de m odo tão eficaz a nossa visão social quanto
o preconceito economicista. A exploração tem sido colocada com
tam anha persistência no prim eiro plano do problem a colonial,
que este ponto merece especial atenção. Além disso, num sentido
humanam ente óbvio, a exploração tem sido perpetrada pelo h o ­
mem branco de m odo tão frequente, tão sistemático e tão impla­
cável contra os povos atrasados do mundo, que seria de extrema
insensibilidade não lhe atribuir o lugar de honra em qualquer dis­
cussão sobre o problem a colonial. Todavia, é precisamente essa
ênfase depositada na exploração que tende a nos ocultar da visão
o problema ainda maior da degeneração cultural. Se a exploração
é definida, em termos estritamente econômicos, como um a inade­
quação perm anente das proporções de intercâmbio, passa a ser
duvidoso se realmente existiu exploração. A catástrofe da comuni­
dade nativa é um resultado direto da rápida e violenta desarticu­
lação das instituições básicas da vítima (não parece relevante, no
cômputo geral, se a força é usada ou não nesse processo). Essas
instituições são desarticuladas pelo próprio fato de que a econo­

7 R. C. Thurnwald, Black and W hite in East África; The Fabric o fa N ew Civüization, 1935.

372
INTERESSE DE CLASSE E MUDANÇA SOCIAL

mia de mercado é impingida a uma comunidade organizada de


maneira inteiramente diversa; o trabalho e a terra são transform a­
dos em mercadorias, o que, por sua vez, é apenas um a fórmula
abreviada para a liquidação de toda e qualquer instituição cultural
num a sociedade orgânica. As mudanças na renda e nas cifras po­
pulacionais, evidentemente, são incomensuráveis com esse pro­
cesso. Quem, por exemplo, se daria ao trabalho de negar que um
povo antes livre, quando arrastado para a escravidão, é explorado,
ainda que seu padrão de vida, em algum sentido artificial, possa
melhorar no país para o qual ele foi vendido, comparado ao que
era em sua floresta nativa? No entanto, nada se alteraria se supu­
séssemos que os nativos conquistados foram libertados, e nem
sequer foram obrigados a pagar o preço abusivo dos algodões ba­
ratos impostos a eles, e que sua inanição foi “m eram ente” causada
pela destruição de suas instituições sociais.
Citemos o famoso exemplo da índia. As massas indianas da
segunda metade do século XIX não m orreram de fome p o r terem
sido exploradas por Lancashire; pereceram em grande núm ero
porque a comunidade aldeã indiana fora demolida. Não há dúvida
de que isso foi acarretado por forças de competição econômica, ou
seja, pelo barateamento permanente do chaddar, antes feito à mão,
com a introdução dos produtos têxteis feitos à máquina; mas isso
prova o oposto da exploração econômica, já que o dumping impli­
ca o inverso da sobretaxa. A verdadeira fonte dos períodos de fome
dos últimos cinquenta anos foi a livre comercialização dos cereais,
combinada com a baixa local das rendas. É claro que o fracasso
das colheitas fez parte do quadro, mas o envio de cereais p or trem
permitia que se mandasse alívio às áreas ameaçadas; o problema
foi que a população não conseguiu comprar os cereais pelos pre­
ços astronômicos que, num mercado livre, mas incompletamente
organizado, estavam fadados a constituir a reação à escassez. Em
épocas anteriores, m antinham-se pequenos depósitos locais para
o abastecimento, em caso de quebra da colheita, mas eles tinham
sido descontinuados ou lançados no mercado geral. Por isso a

373
KARL POLANYI

prevenção da fome passou comumente a assumir a forma de me­


didas públicas para perm itir que a população comprasse alimen­
tos a preços mais altos. As três ou quatro grandes fomes que dizi­
maram a Índia durante o governo britânico, desde a rebelião, não j
foram consequência das forças da natureza nem da exploração,
mas,, simplesmente, da nova organização de mercado do trabalho ' !
e da terra, que desarticulou a antiga aldeia, sem de fato resolver *?/;/’/
seus problemas. No regime do feudalismo e da comunidade aldeã, i
o espírito de noblesse oblige, a solidariedade do clã e a regulamen- j
tação do mercado de cereais impediam os períodos de fome; já j
sob o domínio do mercado, não se podia impedir que as pessoas
morressem de fome, de acordo com as regras do jogo. O term o
“exploração” descreve mal um a situação que só se tornou real­
mente grave depois que o implacável monopólio da Companhia I
das índias Orientais foi abolido e o livre-comércio foi introduzido
na Índia. Com os monopolistas, a situação ficara razoavelmente j
sob controle, com a ajuda da organização arcaica do campo, que
incluía a distribuição gratuita de cereais; com o comércio livre e
igual, os indianos pereceram aos milhões. Em termos econômicos,
a índia pode ter sido — e, a longo prazo, certamente foi — bene­
ficiada, mas, no plano social, foi desestruturada e se tornou presa
da miséria e da degradação.
Pelo menos em alguns casos, o oposto da exploração, por assim
dizer, deu início ao contato cultural desintegrador. A concessão
obrigatória de terras aos índios norte-americanos, em 1887, bene­
ficiou-os individualmente, segundo nossa escala financeira de cál­
culos. Mas essa medida praticamente os destruiu em sua existên- j
cia física — o caso mais destacado de degeneração cultural de que
se tem registro. O gênio moral de um hom em como John Collier
resgatou a situação, quase meio século depois, ao insistir na neces­
sidade de um retorno à posse tribal da terra: hoje, ao menos em
alguns lugares, os índios norte-am ericanos voltaram a ser um a
comunidade viva — e não foi a melhora econômica e sim o res­
gate social que realizou esse milagre. O choque de um contato cul-

374
INTERESSE DE CLASSE E MUDANÇA SOCIAL

tural devastador foi registrado pelo patético nascimento da famo­


sa “dança dos fantasmas”, versão religiosa dos jogos manuais dos
índios pawnee, por volta de 1890, exatamente na época em que a
melhora das condições econômicas tornava anacrônica a cultura
aborígine desses peles-vermelhas.8Além disso, o fato de que nem
mesmo o crescimento populacional — o outro indicador econô­
mico — exclui necessariamente a catástrofe cultural é tam bém
confirmado pelos estudos antropológicos. Çom efeito, as taxas
naturais de aumento da população podem indicar vitalidade cul­
tural ou degradação cultural. O significado original da palavra
“proletário”, que liga a fertilidade à mendicância,* é um a notável
expressão dessa ambivalência.
O preconceito economicista foi fonte da tosca teoria da explo­
ração dos primórdios do capitalismo, bem como do equívoco não
menos grosseiro, embora mais erudito, que negou posteriormente
a existência de um a catástrofe social. A implicação im portante
deste último, a interpretação mais recente da história, foi a rea­
bilitação da economia do laissez-faire. se a economia liberal não
causou o desastre, o protecionismo, que roubou do m undo os be­
nefícios dos livres mercados, foi um crime desumano. O próprio
term o “Revolução Industrial” passou a ser visto com maus olhos,
como se transmitisse um a ideia exagerada do que foi, essencial­
mente, um lento processo de mudança. Não aconteceu nada, in­
sistiram esses estudiosos, senão o fato de que um desdobramento
gradativo das forças do progresso tecnológico transform ou a vida
das pessoas; sem dúvida, muitas sofreram no decorrer da m udan­
ça, mas, de m odo geral, a história foi de um a melhora contínua.
Esse desfecho afortunado resultou da ação quase inconsciente de
forças econômicas que executaram seu trabalho benéfico, apesar
da interferência de elementos impacientes que exageraram as difi­

8 Ver a referência a Lesser no apêndice deste capítulo. Ver também James Mooney, The
Ghost-Dance Religion and the Sioux Outbreak o f 1890. Chicago: University o f Chicago
Press, 1965. [N.E.]
* O proletarius do latim é o miserável que só tem valor por sua prole. [N.T.]
KARL POLANYI

culdades inevitáveis da época. A inferência foi negar que um pe­


rigo havia ameaçado a sociedade a partir da nova economia. Se
a história revisada da Revolução Industrial fosse fiel aos fatos, o
movimento protecionista teria carecido de qualquer justificação
objetiva, e o laissezfaire seria legitimado. A falácia materialista a
respeito da natureza da catástrofe social e cultural, portanto, pro­
moveu a lenda de que todos os males daquela época foram causa­
dos por nosso desvio do liberalismo econômico.

Em suma, não foram grupos nem classes isolados a fonte do


chamado m ovimento coletivista, embora o desfecho tenha sido
decisivamente influenciado pelo caráter dos interesses de classe
envolvidos. Em últim a análise, o que fez as coisas acontecerem
foram os interesses da sociedade como um todo, embora a defesa
deles tenha recaído primórdialmente sobre um setor da popula­
ção de preferência a outros. Parece razoável agrupar nossa expli­
cação do m ovimento protecionista não em torno de interesses de
classe, mas em torno das substâncias sociais postas em perigo pelo
mercado.
Os pontos perigosos foram dados pelas direções principais do
ataque. O mercado de trabalho competitivo atingiu o portador da
força de trabalho, ou seja, o homem. O livre-comércio internacio­
nal foi um a ameaça, primordialmente, à maior indústria que de­
pende da natureza, a saber, a agricultura. O padrão-ouro pôs em
risco as organizações produtivas cujo funcionamento dependia do
movimento relativo dos preços. Em cada um desses campos de­
senvolveram-se mercados, o que implicou um a ameaça latente
para a sociedade em alguns aspectos vitais de sua existência.
É fácil distinguir os mercados de trabalho, terra e dinheiro, mas
não é muito fácil distinguir as partes de uma cultura cujo núcleo
é formado por seres humanos, seu ambiente natural e as organi­
zações produtivas, respectivamente. Homem e natureza são prati­
camente um só na esfera cultural, e o aspecto m onetário da inicia­

376
INTERESSE DE CLASSE E MUDANÇA SOCIAL

tiva produtiva entra em apenas um interesse socialmente vital,


qual seja, a unidade e a coesão da nação. Assim, embora os merca­
dos dessas mercadorias fictícias que são o trabalho, a terra e o di­
nheiro fossem distintos e separados, as ameaças à sociedade, que
eles envolviam, nem sempre podiam ser separadas rigorosamente.
Apesar disso, um resumo do desenvolvimento institucional da
sociedade ocidental, durante os oitenta anos cruciais (1834-1914),
talvez se referisse em termos similares a cada um desses pontos de
perigo. É que, quer se tratasse do homem, da natureza ou da or­
ganização produtiva, a organização do mercado transformou-se
num perigo, e grupos ou classes definidos pressionaram p or pro­
teção. Em cada um dos casos, a considerável defasagem temporal
entre o desenvolvimento da Inglaterra, da Europa continental e
dos Estados Unidos teve consequências importantes, mas, ainda
assim, na virada do século, o contramovimento protecionista ha­
via criado um a situação análoga em todos os países do Ocidente.
Por conseguinte, lidaremos em separado com a defesa do h o ­
mem, da natureza e da organização produtiva — um movimento
de autopreservação em decorrência do qual emergiu um tipo de
sociedade mais estreitamente unido, mas que corria o perigo de
um a desestruturação total.

APÊNDICE
Diversos autores insistiram na semelhança entre os problemas co­
loniais e os do início do capitalismo. Todavia, não examinaram a
analogia no sentido inverso, isto é, para esclarecer a situação das
classes pobres da Inglaterra, um século atrás, visualizando-as tal
como eram — os nativos destribalizados e degradados da época.
A razão de essa semelhança óbvia haver passado despercebi­
da reside em nossa confiança no preconceito liberal, que deu um
destaque indevido aos aspectos econômicos de processos que, em
essência, foram não econômicos. Pois nem a degradação racial
de algumas áreas coloniais de hoje nem a desumanização análoga

377
KARL POLANYI

do povo trabalhador de um século atrás tiveram um a essência


econômica.

a) O contato cultural destrutivo não é primordialmente um fenôme­


no econômico.
A maioria das sociedades nativas vem passando por um processo
de transformação rápida e forçada que só é comparável às m udan­
ças violentas de um a revolução, diz L. P. Mair. Embora os motivos
dos invasores sejam decididamente econômicos, e embora, muitas
vezes, o colapso da sociedade primitiva seja certamente causado
pela destruição de suas instituições econômicas, o fato evidente
é que as novas instituições econômicas não são assimiladas pela cul­
tura nativa, a qual, por conseguinte, desintegra-se sem ser substi­
tuída por outro sistema coerente de valores.
Entre as tendências destrutivas inerentes às instituições oci­
dentais situa-se em prim eiro lugar a “paz num a vasta área”, que
destroça “a vida dos clãs, a autoridade patriarcal [e] a formação
militar dos jovens; ela é quase proibitiva para a migração de clãs
ou tribos” (Thurnwald, Black and White in East África; The Fabric
o f a New Civilization, 1935, p. 394). “A guerra devia dar à vida na­
tiva um a contundência que falta deploravelmente nestes tempos
de paz.” A abolição das lutas reduz a população, um a vez que a
guerra resultava em muito poucas baixas, ao passo que sua ausên­
cia significa a perda de costumes e cerimônias revigorantes, e a
consequente m onotonia e apatia nocivas da vida na aldeia (F. E.
Williams, Depopulation ofthe Suan District, 1933, “Anthropology”
Report n.° 13, p. 43). Compare-se a isso a “vida robusta, animada
e empolgada” dos nativos em seu meio cultural tradicional (Gol-
denweiser, Loose Ends, p. 99).
O verdadeiro perigo, nas palavras de Goldenweiser, é o de um
“meio-termo cultural” (Goldenweiser, Anthropology, 1937, p. 429).
Q uanto a isso, há praticam ente um a unanim idade. “As antigas
barreiras vão sum indo e não se oferece nenhum tipo de novas
diretrizes” (Thurnwald, Black and White, p. 111). “M anter uma

378
INTERESSE DE CLASSE E MUDANÇA SOCIAL

comunidade em que a acumulação de bens é considerada antisso-


cial e integrá-la na cultura branca contemporânea é tentar harm o­
nizar dois sistemas institucionais incompatíveis” (Wissel, na In ­
trodução a M. Mead, The Changing Culture o f an Indian Tribe,
1932). “Os imigrantes podem lograr extinguir um a cultura aborí­
gine, mas sem conseguir extinguir nem assimilar seus portadores”
(Pitt-Rivers, “The Effect on Native Races of Contact with Europe-
an Civilization”, Man, v. XXVII, 1927). Ou, na pungente frase de
Lesser sobre mais um a vítima da civilização industrial: “Da m atu­
ridade cultural como índios pawnee eles foram reduzidos à p ri­
meira infância cultural como homens brancos” (The Pawnee Ghost
Dance Hand Game, p. 44).
Essa condição de m orte em vida não se deve à exploração eco­
nômica no sentido aceito, no qual “exploração” significa a vanta­
gem econômica de um parceiro à custa de outro, embora decerto
esteja intimamente relacionada com mudanças das condições eco­
nômicas ligadas à posse da terra, à guerra, ao casamento e assim
por diante, cada um a das quais afeta um vasto núm ero de hábitos,
costumes e tradições sociais de todos os tipos. Quando um a eco­
nomia monetária é introduzida à força em regiões escassamente
povoadas da África ocidental, não é a insuficiência dos salários
que resulta no fato de os nativos “não poderem comprar alimentos
para substituir o que não foi plantado, porque ninguém mais
plantou um excedente de alimento para lhes vender” (Mair, An
African People in the Twentieth Century, 1934, p. 5). Suas institui­
ções implicam um a escala de valores diferentes; eles são econômi­
cos e, ao mesmo tempo, não orientados para o mercado. “Quando
o mercado está com a oferta em abundância, eles pedem o mesmo
preço que vigorava quando havia um a grande escassez, mas são
capazes de percorrer longas distâncias, a um custo considerável de
tempo e energia, para economizar uma pequena soma em suas
compras” (Mary H. Kingsley, West African Studies, p. 339). A ele­
vação dos salários comumente leva ao absenteísmo. Afirmou-se
que os índios zapotecas de Tehuantepec trabalhavam por 50 cen-

379
KARL POLANYI

tavos diários a metade do que haviam trabalhado por 25. Esse pa­
radoxo foi bastante geral nos primeiros tempos da Revolução In­
dustrial na Inglaterra.
O indicador econômico das taxas populacionais não nos serve
melhor que os salários. Goldenweiser confirma a famosa obser­
vação feita por Rivers na Melanésia: a de que os nativos cultu­
ralmente empobrecidos podem estar “m orrendo de tédio”. F. E.
Williams, que também trabalhou como missionário nessa região,
escreveu que é fácil compreender a “influência do fator psicoló­
gico na taxa de m ortalidade”. “Muitos observadores chamaram
atenção para a notável facilidade ou presteza com que os nativos
podem morrer.” “A restrição dos interesses e atividades anteriores
parece fatal para seu estado de ânimo. O resultado é que a capaci­
dade de resistência do nativo fica prejudicada e ele sucumbe facil­
mente a qualquer tipo de doença” (op. cit., p. 43). Isso nada tem a
ver com a pressão da necessidade econômica. “Portanto, uma taxa
extremamente alta de aumento natural [da natalidade] pode ser
sintoma de vitalidade cultural ou de degradação cultural” (Frank
Lorimer, Observations on the Trend o fln d ia n Population in the
United States, p. 11).
A degradação cultural só pode ser sustada por medidas sociais
incompatíveis com os padrões econômicos de vida, como o resta­
belecimento da posse tribal da terra ou o isolamento da comuni­
dade da influência dos métodos capitalistas de mercado. “Separar
o índio de sua terra foi o golpe m o r t a fescreveu John Collier em
1942. A Lei Geral de Distribuição de Terras, de 1887, “individuali­
zou” as terras do índio; a desintegração daí resultante o fez perder
cerca de 3/4, ou 90 milhões de acres, de suas terras. A Lei de Reor­
ganização Indígena, de 1934, reintegrou as propriedades tribais e
salvou a comunidade indígena, por revitalizar sua cultura.
Da África vem a mesma história. As formas de posse da terra
ocupam o centro do interesse, porque delas depende mais direta­
mente a organização social. O que parece constituir conflitos eco­
nômicos — impostos e aluguéis elevados, salários baixos — re­

3 80
INTERESSE DE CLASSE E MUDANÇA SOCIAL

presenta, quase exclusivamente, formas veladas de pressão para


induzir os nativos a desistir de sua cultura tradicional, obrigan­
do-os a se adaptar aos métodos da economia de mercado, isto é,
a trabalhar para obter o salário e a adquirir seus bens no merca­
do. Nesse processo, algumas tribos nativas, como as dos cafres e
dos que haviam emigrado para a cidade, perderam suas virtudes
ancestrais e se tornaram um a m ultidão desqualificada de “ani­
mais semidomesticados”, entre eles vadios, ladrões e prostitutas
— ocupações antes desconhecidas pelos nativos — , muito pare­
cidos com a massa da população pauperizada da Inglaterra por
volta de 1795-1834.

b) A degradação humana das classes trabalhadoras nos primórdios


do capitalismo resultou de uma catástrofe social não mensurável em
termos econômicos.
Robert Owen observou sobre seus trabalhadores, já em 1816, que
“qualquer que fosse o salário que recebiam, a massa deles devia ser
desgraçada” (To the British Master Manufacturers, p. 146).9 Con­
vém lembrar que Adam Smith esperava que o trabalhador separa­
do da terra perdesse todo o interesse intelectual. E M ’Farlane es­
perava “que o conhecim ento da escrita e das contas torne-se a
cada dia menos frequente entre a gente comum” (Enquiries Con-
cerning the Poor, 1782, p. 249-250). Passada um a geração, Owen
atribuiu a degradação dos trabalhadores ao “descaso na prim eira
infância” e ao “excesso de trabalho”, o que os tornaria “incom ­
petentes, por ignorância, para fazer um bom uso dos salários ele­
vados, quando conseguem obtê-los”. Pessoalmente, ele lhes pagava
salários baixos e elevava seu status criando-lhes artificialmente
um meio cultural totalmente novo. Os vícios desenvolvidos pela
massa da população eram, grosso modo, os mesmos que caracteri­
zavam as populações negras envilecidas pelo contato cultural de-

9 Robert Owen, A New View ofSociety, and Other Essays. Londres: J. M. Dent & Sons,
Ltd.; Nova York: E. P. Dutton & Co., 1927. Everymans Library. [N.E.]

381
KARL POLANYI

sintegrador: promiscuidade, prostituição, furtos, falta de parcimô­


nia e previdência, relaxamento, falta de autoestima e de energia.
A disseminação da economia de mercado estava destruindo o te­
cido tradicional da sociedade rural, da comunidade aldeã, da fa­
mília, da antiga forma de posse da terra — costumes e normas que
sustentavam a vida dentro de um arcabouço cultural. A proteção
proporcionada pelo sistema da lei Speenhamland* só fizera piorar
a situação. Na década de 1830 a catástrofe social da população
comum era tão completa quanto é hoje a dos caíres. Ünico a fazê-
-lo, um eminente sociólogo negro, Charles S. Johnson, inverteu a
analogia entre o envilecimento racial e a degradação de classe, des­
sa vez aplicando-a a esta última: “Na Inglaterra, onde, aliás, a Re­
volução Industrial foi mais avançada do que no resto da Europa, o
caos social que se seguiu à drástica reorganização econômica con­
verteu as crianças empobrecidas nas ‘peças’ em que, tempos de­
pois, viriam a se transform ar os africanos. [...] As desculpas forne­
cidas pelo sistema de servidão infantil foram quase idênticas às
do tráfico de escravos” (“Race Relations and Social Change”, em
E. Thompson, Race Relations and the Race Problem, 1939, p. 274).

* Baseada no preço do pão e no número de filhos de cada família, essa lei, que alterou a
antiga Lei da Pobreza, garantia ao cidadão um mínimo de subsistência, qualquer que
fosse a sua contribuição em impostos. [N.T.]

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I a e d iç ã o , n o v e m b r o d e 2 0 1 2

Im p ressão : P ro l E d ito ra G ráfica, SP


P ap el d a capa: C a rtã o s u p re m o 2 5 0 g /m 2
P ap el d o m io lo : P ó le n b o ld 7 0 g /m 2

T ip o g rafia: M in io n , 12/15,5

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