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A ANTROPOÉTICA DE EDGAR MORIN

O século XIX é conhecido como o século do auge da autonomização das ciências, ou seja, da
compartimentação dos saberes. Isso deveu-se ao seguimento do princípio governador da época,
que é o paradigma mecanicista que objectiva as ciências, separando-as umas das outras, alegando
que essa é a melhor forma para estudá-las, ou ainda, reduzir o complexo ao mais simples
possível para depois estudá-lo. Da mesma forma, as sociedades ficaram fragmentadas,
separaram-se em grupos e isolaram-se. Assim, a cidadania terrestre encontra-se em crise,
obscurecida pela ética fechada.

Essa forma de compreender a ciência, levou-nos à crise ética que hoje assistimos. Isso porque ao
fragmentar as ciências, o homem abdicou-se da ética, o que contribuiu para a progressão
descontrolada da ciência. Com efeito, se a ética antiga obedecia ao paradigma da simplificação,
então a ética actual deve ser vista à lupa do paradigma da complexidade, uma vez que esta ética é
que se adequa a era planetária.

O filósofo Edgar Morin coloca-se a tarefa intelectual de apresentar uma ética capaz de se
adequar aos moldes da era planetária, que não é mutiladora, ou seja, que não separa a tríade:
“indivíduo-sociedade-espécie”, mas que toma em conta a unidade na multiplicidade e a
multiplicidade na unidade, dado que, actualmente, já não existem problemas isolados, pois
estamos num tempo de mundialização. Estamos numa era planetária. Portanto, precisamos de
uma ética que responda aos desafios dessa nossa época. A "nova ética", a ética planetária, vem
promover a solidariedade e a responsabilidade entre as sociedades, entre os saberes das
sociedades. Ou seja, pretende religar os saberes fragmentados com vista a termos uma
humanidade civilizada.

A modernidade separou o sujeito do objecto nas suas pesquisas e isso teve consequências
desastrosas, tais como: a I e II Guerras Mundiais, a explosão da bomba atómica, as experiências
dos regimes políticos totalitários, os desastres ecológicos, a submissão da ciência aos interesses
militares e económicos, entre outros. É notável que essas consequências nos levaram a crise ética
e a necessidade de uma ética capaz de civilizar a humanidade.

A necessidade de uma ética para regular a acção humana, ou seja, para civilizar a humanidade
não inicia com Morin. Outros pensadores preocuparam-se com as acções do homem e
propuseram-se a reflectir sobre a ética. Na antiguidade, por exemplo, encontramos Aristóteles
(2004: 154) que afirma que é por meio da acção que o homem transforma a si e a realidade por
onde passa, tendo em vista uma finalidade, que coincide com a busca pela felicidade. A
felicidade, segundo ele, se alcança por meio da excelência, que é concebida como qualidade
daquilo que mais se aproxima à perfeição. Por isso, todo o homem almeja a perfeição.

O homem enquanto ser racional, susceptível à falha intrínsecas a sua natureza humana, necessita
de um critério de orientação que tende à perfeição, à excelência. Aristóteles propõe um tipo de
critério de excelência no agir e no pensar humano, pois faz com que o homem desempenhe bem
a sua função, que é “… raciocinar de modo excelente, agindo na medida certa, no momento
certo, e da maneira certa” (ARISTÓTELES, 2004: 34).

À essa excelência no agir e no pensar do homem, Aristóteles dá o nome de virtude humana,


dividindo-a em moral e intelectual. Para que a disposição moral seja considerada como virtuosa,
necessita-se da experiência adquirida por meio do hábito, e que tal hábito mantém e actualiza a
experiência do agir virtuoso na vida daquele que a possui. Ou seja, o virtuoso só pode ser digno
de tal atributo por meio do hábito de praticar quotidianamente acções virtuosas. Deste modo,
contempla a dimensão excelente da vida: a felicidade enquanto recompensa da virtude.

A era planetária, aberta com os tempos modernos, suscita a partir do humanismo laico, uma
ética metacomunitária em favor de todo o ser humano, seja qual for a sua identidade étnica,
nacional, religiosa, política. A ética de Kant, ética do dever, que se faz sentir na sua máxima
“aja de modo que tu também possas querer que tua máxima se torne uma lei geral” (KANT,
1997: 23). O “que tu possas” refere-se a razão e sua concordância consigo mesma, isto é, a
acção individual deve existir de modo que possa ser concebida sem contradição: realiza a
promoção de uma ética universalizada que se pretende superior as éticas sociocêntricas
particulares. Liberdade, equidade, solidariedade, verdade e bondade tornam-se valores que
merecem por si a intervenção, até mesmo a ingerência, na vida social e na vida internacional.
Mas esses desenvolvimentos continuam minoritários e marginais.

Maquiavel (2009: 65) separou a política da ética ao propor que o príncipe (o governante) deve
obedecer a lógica de utilidade e da eficácia, não a moral. A economia comporta, principalmente
com Mill, uma ética dos negócios, exigências de respeitos aos contratos, mas obedece aos
imperativos do lucro, o que leva à instrumentalização e à exploração de outros seres humanos. A
ciência moderna alicerçou-se sobre a separação entre juízo de facto e juízo de valor, ou seja,
entre o conhecimento e a ética.

Os tempos modernos, na visão de Morin (2005b: 24) produziram deslocamentos e rupturas


éticas na relação trinitária indivíduo/sociedade/espécie. A ciência moderna alicerçou-se sobre a
separação entre juízo de facto e juízo de valor, ou seja, entre, de um lado, o conhecimento e, de
outro, a ética, estimulando o desenvolvimento de uma política, economia, ciência e arte
autónomas, levando a um deslocamento da ética global imposta pela teologia medieval.

Antes de falar da proposta da ética planetária, Morin (2005b: 61) afirma que a separação da
ciência reduz o carácter complexo do mundo a fragmentos desunidos que tornam impossível
imaginar um todo com elementos solidários, por isso tende a atrofiar o conhecimento da
responsabilidade e todas as outras fontes éticas. Ou seja, a incapacidade de perceber o todo, de
religar-se ao todo gera irresponsabilidade e falta de solidariedade.

Para Morin (2003: 13) a fragmentação da ciência torna invisíveis os conjuntos complexos, as
entidades multidimensionais, os problemas essenciais e as interações e retroacções entre as
partes e o todo, ou seja, a humanidade só estará civilizada quando tomar o planeta como um todo
sem esquecer as partes (os indivíduos) que são diversificadas e que fazem parte do todo que é o
planeta. Com isto, percebe-se que actualmente, os problemas planetários agem sobre os
processos locais e esses por sua vez retroagem sobre os processos mundiais.

A “nova ética” (antropoética), concebida à luz da complexidade, religa o todo com a parte,
distingue e religa, reconhece a multiplicidade na unidade e vice-versa. Essa complexidade
fundamenta-se nos seguintes princípios de religação: dialógico e hologramático. O primeiro
princípio, na colocação de Morin (2005b: 64), diz respeito ao facto de que a diversidade de ideias
que estão no planeta deve ser considerada: ela é que torna viva a complexidade. O segundo
princípio assume que a parte do holograma contém a totalidade da informação das figuras
representadas. Ou seja, o que está no todo do planeta, encontra-se em cada indivíduo do planeta
devido a mundialização.

É preciso um paradigma de complexidade que, ao mesmo tempo, separe e associe, que conceba
os níveis de emergência da realidade sem os reduzir às unidades elementares e às leis gerais.
Estamos na era planetária, portanto, precisamos de uma nova ética, capaz de responder aos
problemas actuais. A antropoética, que se fundamenta na tríade indivíduo-sociedade-espécie,
mostra-se como melhor proposta para a civilização da humanidade. Esta civilização da
humanidade significa que o planeta não será mais visto de modo fragmentado, mas sim de modo
uno e distinto.

BIBLIOGRAFIA

Principal:

MORIN, Edgar. (2003). A Cabeça Bem-Feita. Trad. Eloá Jacobina, 8. ed. Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil.

__________. (2005a) Ciência com Consciência. Trad. Maria De Alexandre, Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil.

__________. (2005b). O Método 6: ética. Trad. Juremir Machado da Silva, 3ª.ed., Porto-Alegre,
Sulina.

__________. (2007). Educação e Complexidade: os sete saberes e outros ensaios. 4.ed. São
Paulo, Cortez Editora.

Complementar:

ARISTÓTELES. (2004). Ética a Nicómaco. Trad. Pietro Nassetti, 4ª.ed., São Paulo, Martin
Claret.

KANT, Immanuel. (1997). Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela,
Lisboa, Edições 70.

MAQUIAVEL, Nicolau. (2009). O Príncipe. São Paulo, Nova Cultural.

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