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Jovens negros: representações das culturais juvenis,

relações de poder e masculinidades negras presentes na


escola
Miriam Gomes Alves1

Resumo: Este artigo é parte da minha proposta de pesquisa do Mestrado em andamento no Programa
de Pós Graduação em Educação, Conhecimento e Inclusão Social na Faculdade de Educação da
UFMG. Do qual busco analisar as relações entre as formas de socialização dos jovens negros no
ambiente escolar e sua importância intersubjetiva na construção das masculinades negras. Para isso,
utilizo como referencial teórico autores que vão abordar a relação entre o gênero masculino e trajetória
escolar de forma articulada com seus determinantes, ou seja, raça, classe, sexualidade e territorialidade
evidenciando as causas de maior exclusão entre meninos negros. O estudo será realizado a partir do
primeiro semestre de 2019, com estudantes da rede pública de ensino de Belo Horizonte, capital mineira.
Enquanto metodologia de pesquisa, farei uso dentro da abordagem qualitativa da pesquisa etnográfica.
Dos resultados obtidos a partir da produção dos dados, será feita sua análise, o que auxiliará na
confrontação junto as hipóteses, concluindo assim a dissertação.

Palavras-chave: masculinidades negras, trajetórias escolares e produção da exclusão.

1.Introdução

Este trabalho que ainda se encontra em fase de andamento, busca analisar as


relações entre gênero e raça na educação escolar, ao entender este como um
importante campo de estudo para desnudar as desigualdades intra-gênero apontadas
por vários estudiosos do qual irei dialogar ao longo do texto. Sabendo que as
normatizações de gênero, raça e sexualidade não são alheias ao universo escolar e
torna-se importante evidenciá-las como aspectos de uma heteronormatividade
compulsório que limita a relação do sujeito com seu corpo e seu desenvolvimento
psíquico. Ao colaborar com a construção de identidades subalternizadas das quais
jovens negros tem sido os mais afetados, nos deparamos com trajetórias escolares
marcadas por mecanismos que utilizam de estigmas e estereótipos para construir
uma realidade imagética sobre os negros, podendo acarretar em baixa auto-estima e
exclusão.
Embora recente em nossa literatura, os estudos sobre masculinidades, em
especial masculinidades negras, podem nos auxiliar na compreensão de como esses
mecanismos operam de modo a silenciar e invisibilizar esses sujeitos, dos quais sua
corporeidade não está distante de um discurso ou de uma prática ideológica que visa
seu extermínio físico ou intelectual. O corpo negro como memória transmigracional2,
que atravessa o Atlântico e que reencontra na arte, na música toda uma

1 Graduada em Pedagogia e Mestranda do Curso de Educação Conhecimento e Inclusão pela


Faculdade de Educação da UFMG, na linha Educação Cultura, Movimentos Sociais e Ações Coletivas.

2 Referencia a obra de Alex Ratts “Eu sou atlântica sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento”.
performatividade expressiva e revolucionária, a qual tem em si a potencialidade de
transformação de subjetividades subalternas em subjetividades mais autônomas.
Historicamente no Brasil é possível apontar a Segunda Onda do feminismo
como momento definidor no enfrentamento das desigualdades de gênero na escola.
Nesse momento o sexismo passa então a ser evidenciado na educação de meninos e
meninas na década de 70. É também a partir da Segunda Onda do feminismo que as
reflexões à cerca de masculinidades e feminilidades ganham respaldo nos trabalhos e
pesquisas acadêmicas. Posteriormente, um dos principais marcos regulatórios na
política nacional de educação foi o documento elaborado pela UNICEF na década de
90 intitulado: The Girl Child: AnInvestment in the Future,3 o qual apontava uma dupla
desvantagem a meninas e mulheres no sistema de ensino.
Para pensar na universalização do ensino e na redução das desigualdades
raciais e de gênero na educação devemos pensar não somente no acesso, mas na
permanência desses sujeitos, eliminando práticas normativas e que, portanto, são
discriminatórias a um contingente significativo de jovens negros que acabam
impedidos de concluir a Educação Básica. Se estes jovens estão fora da escola é
muito provável que encontrem caminhos deseducativos, diminuindo suas chances de
ter uma melhor qualidade de vida, tendo ciência de que por ano mais de xx mil jovens
são vitimas de violência no país. Quais os sentidos e significados da educação, senão
de transformar essa realidade?
No âmbito desse artigo, pretendemos analisar as relações entre as formas de
socialização dos jovens negros no ambiente escolar e sua importância intersubjetiva
na construção de masculinidades negras, pretendendo assim suprir uma lacuna nos
estudos de gênero e educação. Para isso, faço uso de autores que irão auxiliar nas
abordagens de gênero, raça e sexualidade, levando em consideração a trajetória
escolar desses sujeitos e os mecanismos de exclusão presentes nas práticas
pedagógicas normativas. Para alcançar esses objetivos, optamos por uma pesquisa
de cunho qualitativo, numa perspectiva etnográfica visando potencializar a
investigação de campo, podendo extrair o máximo de elementos presentes no
cotidiano e nas práticas interativas entre os jovens no contexto escolar.

CAMINHOS E TRAJETÓRIAS

O percurso que me fez chegar até aqui enquanto negra, pois antes de ser
“mulher” sou atravessada por olhares de racialização sobre o meu corpo, esses
mesmos olhares que me relegam também a condição de ser “fêmea”, pois em um
processo de dupla subalternização a condição humana me é relegada. Tais caminhos
tangenciaram minhas experiências a de outros sujeitos individuais ou coletivos cuja
corporeidade e memórias são atravessadas não apenas pela invisibilidade e
silenciamento, mas também de subversão, rupturas e agenciamentos.

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Compreender o lugar do corpo negro dentro de uma estrutura racista me
obrigada a deslocar em busca de maior autonomia e emancipação das práticas
pedagógicas. Práticas essas que sejam minimamente capazes de transformar o não
lugar em lugar de pertencimento e apropriação do conhecimento universal, mas
também do conhecimento individual/particular de Si e do Outro.
De modo que pude trilhar caminhos em busca de algo que fosse significante
para a minha formação profissional e humana, envolvendo em movimentos sociais e
ações coletivas pela cidade, como no Fórum das Juventudes da Grande BH e
posteriormente no Fórum Metropolitano de Educação de Jovens e Adultos. No último
ano do curso de Pedagogia fui selecionada dentro do Programa de Formação
Docente/PROEF II para trabalhar com educandos da EJA no Centro Pedagógico da
UFMG. No ano seguinte a minha formação, em 2017, fui designada ao cargo de
Especialista de Educação Básica, trabalhando na condição de supervisora escolar em
uma das unidades de internação do socioeducativo na Região Metropolitana de Belo
Horizonte.
Antes da conclusão do curso, apresentei enquanto trabalho final a monografia
intitulada: Gênero e Raça na EJA: Diálogos intersetorias nas políticas públicas
estaduais mineiras em educação. Para elaboração deste trabalho, realizei
entrevistas semi-estruturadas com gestoras da Secretária de Estado de Educação de
MG. Com o resultado da análise dos dados obtidos pude perceber a associação de
gênero a uma categoria de análise exclusiva da mulher o que me levou a certo
incomodo.
Cabe ressaltar que ao falar de gênero, não estamos falando apenas em
mulheres, pois o gênero em si é relacional, ou seja, ele depende da existência do
Outro. Daí decorre um erro em polarizar homens e mulheres como se o primeiro fosse
um ser abstrato e não generificado, relegando a mulher a corporificação de seu sexo
biológico, portanto, inferior. Outro problema é não identificar as masculinidades
subalternas e marginalizadas no interior das masculinidades hegemônicas.
Tal fragmentação tem levado “a adoção de metas uniformes e unilaterais, que
não consideram as “variáveis locais, regionais, raciais, de gênero, de classe e outras,
fazendo a dominação de gênero tabula rasa” (PINHO, 2014, p. 234), o que não
oferece solução para o fim das desigualdades educacionais, mas seu
aprofundamento. Ao tratar gênero como “tabula rasa” demonstra-se a necessidade da
qualificação profissional de gestores e educadores, bem como a produção de novas
pesquisas que contribuam para concepções menos universalistas a cerca das teorias
de gênero.
Nesse sentido Alan Augusto Moraes Ribeiro (2015) ao citar os estudos da
professora Marília Pinto de Carvalho, mostra como a pesquisadora tem colaborado
para concepções menos universalistas de gênero em educação e que auxiliam no
objetivo desse artigo, ao evidenciar mecanismos de exclusão sofridos por meninos
negros, principalmente nas avaliações de desempenho realizadas por docentes da
educação básica. Para a autora “resta discutir o peso da instituição escolar nestas
construções de masculinidade, de aluno, criança e jovem negro” (RIBEIRO, 2015, p.

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4), sendo exatamente o que proponho ao tentar compreender a relação entre o
cotidiano escolar e a construção das masculinidades negras em seu interior.
O QUE SEPARA OS HOMENS DOS MENINOS?
“Sem espaço pra emoções a rua ensina que se eu seguir só meu coração
me fodo na próxima esquina, e mais que rima e mais que som e mais que
sina, mas que porra e essa Sant, e minha vida e o bit em cima. [...] Sou só
um garoto leone, as circunstancias me fizeram homem.” 4

Os estudos a cerca das masculinidades, em especial das masculinidades


negras, embora recentes em nossas pesquisas, encontra arcabouço teórico tanto na
literatura de língua inglesa, quanto na de língua portuguesa. Tal reflexão sobre a
temática requer uma intersecção entre os conceitos de gênero, raça, sexualidade e
territorialidade. Para nós, uma das principais referencias no campo é a professora
australiana Raewyn Connell, que nos aponta a importância da segunda onda do
feminismo na década de 70 para os estudos ao problematizar os papeis de gênero e
o corpo enquanto campo de disputa teórico nas ciências e pesquisas acadêmicas. De
acordo com a autora “para entender homens ou o masculino, devemos ter em mente
noções de gênero” (CONNELL, p. 17).
Nesse sentido, as contribuições da professora e filosofa norte-americana Judith
Butler tornam-se fundamentais para compreensão das masculinidades e feminilidades
não como algo rígido ou imutável, mas performático. Salih nos ajuda a compreender
melhor quando nos diz que para Butler “a performatividade contesta a própria noção
de sujeito’’ (SALIH, p. 90, 2015). Segundo Butler (2003, p. 24), “a hipótese de um
sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética
entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito”.
Se o gênero informa o sexo ou é por ele restrito, a noção de raça também se
restringe no próprio sujeito, pois “o branco está fechado na sua brancura, o negro na
sua negrura” (FANON, p.27). Gênero e raça são construtos sociais usados para
validar as diferenças e evidenciar privilégios de grupos hegemônicos. Servem como
categoria de análise social e não biológica como as que fundamentaram o racismo
científico no século XIX. Abrindo um pouco a mão de nossas fundamentações
teóricas, nos questionamos sobre o que significa ser homem, Sant5?
Em sua celebre frase Simone Beauvoir nos fala que “Não se nasce mulher,
torna-se”. Há uma equivalência para o gênero masculino? Podemos dizer que sim, na
medida em que afirmamos que gênero é um construto social também afirmamos que
“embora as posições entre homens e mulheres não sejam simplesmente paralelas, o
principio também é verdadeiro para os homens: ninguém nasce masculino, é preciso
tornar-se um homem.” (CONNEL; PEARSE, 2015, p. 38).
O tornar-se não é algo simples ou fácil para muitos meninos, a quem as
determinações sociais lhes impõem um padrão hegemônico de masculinidade, pois
“os significados de masculinidade variam de cultura a cultura, variam em diferentes

4
5 Cantor de rap da música “o que separa meninos de homens”.
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períodos históricos, variam entre homens em meio a uma só cultura e variam no curso
de uma vida” (KIMELL, 1998, p. 106). Não podemos então falar de uma única forma
de masculinidade e sim masculinidades. Não há receita pronta do modo de como
“ser” homem ou “ser” mulher, embora ocorra todo um movimento que tenta moldar e
controlar corpos desconsiderando a agência individual dos sujeitos.
Neste sentido, devemos falar de masculinidades, reconhecendo as diferentes
definições de hombridade que construímos. Ao usar o termo no plural, nós
reconhecemos que masculinidade significa diferentes coisas para diferentes
grupos de homens em diferentes momentos (KIMELL, 1998, p.106).

Para Butlher, “se o gênero são significados culturais assumidos pelo corpo
sexuado, não se pode dizer que ele decorra de um sexo desta ou daquela maneira”
(2003, p.24), portanto, é preciso ter em mente que quando tais elementos são
desestabilizados dentro de uma lógica “inteligível” provocam crise nos indivíduos
modernos, como nos informa (HALL, 1997) assim, mediante a uma relação de
conflito, podemos por em cheque condutas e valores de uma masculinidade
normativa.
Essa perda de um sentido de si estável é chamada, algumas vezes, de
deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento –
descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural
quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo
(HALL, 1997, p.10)

Sendo assim, é perfeitamente possível que corpos femininos carreguem


consigo comportamentos e condutas masculinas, assim como corpos masculinos
carreguem consigo comportamentos e condutas femininas. “Corpos compartilham da
agência social, da geração e definição dos caminhos da conduta social.” (CONNELL;
PEARSE, 2015, p. 98). Desconsiderar sua agencia é desconsiderar outras formas de
se vivenciar as masculinidades que fujam do padrão hegemônico ocidental, do
branco, heterossexual e rico, que se sustenta na negação e oposição a feminilidade.
Tal dicotomia é base de uma cultura patriarcalista, racista e heteronormativa
institucionalizada nas estruturas sociais, tal como a escola, o esporte e o poder
público.
Se o branco é o sujeito universal, o que é o homem negro? Para Fanon, “o
negro não é um homem, é um homem negro” (FANON apud FAUSTINO, 2014, p. 82)
e para ser homem é necessário primeiro ser humano. Logo o homem negro é um ser
cindido em uma eterna busca do seu reconhecimento e de sua humanidade. Sua
corporificação é reduzida a dimensões simbólicas marcada por estereótipos da
hipersexualização e criminalização. Ou seja, tudo que conhece sobre si é por meio e
através do olhar do Outro. “O ‘Outro’ torna-se então a representação mental do que o
sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo, neste caso: o ladrão/ a ladra violento
(a), o(a) bandido(a) indolente e malicioso(a).” (KILOMBA, p. 174).
Ao buscar corresponder aos estereótipos do mundo branco, homens negros
assumem em si, muitas vezes comportamento de risco. Será que por isso a rua não é
lugar para emoções? “O negro quer ser branco. O branco incita-se a assumir a
condição de ser humano” (FANON,1983, p. 27). Seria o homem negro um discurso ou
um mito? “O mito não é uma fala qualquer. É uma fala que objetiva escamotear o real,

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produzir o ilusório, negar a história, transformá-la em “natureza”. (SOUZA, 1983, p.
25). É nesse sentido que Paulo Freire (1978), nos fala da importância da vocação
Ontológica do Ser, de se saber inconcluso para Ser Mais (Ser Homem), no intuito de
resgatar essa humanidade perdida.
TRAJETÓRIAS ESCOLARES DE JOVENS NEGROS, QUEM DE FATO É O
“PROBLEMA”?
Problema com escola. Eu tenho mil, mil fitas. Inacreditável, mas seu filho
me imita. No meio de vocês, Ele é o mais esperto. Ginga e fala gíria, Gíria
não, dialeto. ( Negro Drama-Racionais McS)

O trecho da melodia faz parte da música do grupo de rap “Racionais MC’s”,


intitulada “Negro Drama”, lançada em 2002 no álbum “Nada como um dia após o
outro dia”. Essa música é uma das letras de rap que mais repercute nas periferias,
pois traz a realidade de quem vive em meio a um amontoado de selvas de pedras.
“No entanto, algumas observações sobre a vida nas cidades se fazem necessárias
para se compreender o processo de construção da narrativa sobre a autonomia no
Rap” (ROSA, 2006, p. 54), dentre elas as desigualdades socioeconômicas e
educacionais que se fazem presente no trecho apresentado.
Se para o Mano Brown “Problemas com a escola, eu tenho mil”, também é
possível perceber que na história da educação o “problema” é algo pertinente, mas
quais seriam esses “problemas”? E o “problema” é “problema” para quem?
A maioria das pessoas e até mesmos alguns educadores atribuem os
“problemas” da educação aos educandos. Ou seja, como na música de Charlie Brown
Jr e Negra Li “O jovem no Brasil nunca é levado a sério”, pois a eles são impregnados
uma série de estigmas e estereótipos que os acompanham ao longo de sua trajetória
escolar. Porém, um dos maiores “problemas” do sistema de ensino é justamente a
exclusão sistemática de meninos negros.
Por muitos anos, o “fracasso escolar” foi objeto de estudo de diversas
pesquisas e estas não chegaram a mostrar nenhum resultado satisfatório.
Historicamente tais pesquisas vêm tentando explicar as causas das desigualdades no
sistema de ensino por meio de “concepções equivocadas a respeito da natureza dos
problemas e de sua solução” (PATTO, 1988, p. 73), mas é importante atentar para o
fato de que esses “equívocos” baseavam-se em concepções eugênicas e práticas
discriminatórias que tiveram efeitos sobre as políticas públicas. Também é importante
atentar que tais “equívocos” são fruto de uma produção histórica do conhecimento
que ainda é muito presente no contexto escolar e isso é um fator importante para
entendermos o porquê meninos negros vão mal nas escolas.
Na segunda metade do século XX a “patologia do fracasso” foi substituída pela
“sociologia do fracasso” e embora tenha dado novos contornos às teorias sobre as
desigualdades educacionais passando a atribuir o “fracasso” às causas inter-
escolares e não extra-escolares caem novamente no mesmo engodo ao atribuir aos
educandos sua responsabilidade. As teorias que relaciovam as causas extra-
escolares, como as de cunho marxista na perspectiva de Patto (1988), não superaram
a anterior, mas somatizam a essa a responsabilização quanto à má qualidade do
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ensino público. “O que enfraquece qualquer proposta voltada para melhoria da escola
como solução para dificuldades que supostamente lhe são exteriores.” (PATTO, 1988,
p. 76).
No final da década de 90 com a reversão do “hiato gênero”, ou seja, “a
correção de desigualdades históricas fundadas sobre a diferença sexual”
(CARVALHO; SENKEVICS, 2015, p. 946), após inúmeras reformas do ensino têm se
observado um maior desempenho do sexo feminino, que hoje chega a compor 53,3%
das matriculas de nível médio, sendo o analfabetismo maior entre as mulheres na
faixa etária acima de 40 anos e entre jovens de 15 a 29 anos do sexo masculino.
Para Carvalho (2003, p. 186), “isso nos permite dizer que a diferença entre as
proporções de homens e mulheres alfabetizados tem a ver com o percurso escolar
que meninos e meninas estão fazendo no nosso ensino, evidenciando uma trajetória
mais longa e mais tumultuada para as pessoas do sexo masculino”. Em sua pesquisa
a autora evidência que no cotidiano escolar os critérios de avaliação utilizados nas
escolas vem sendo determinados de acordo com o sexo e a raça dos estudantes. De
acordo com a autora, meninos negros são alvos centrais das ações “disciplinares”,
tais como aula de reforço após o horário (subtende-se castigo), ocorrências e
conceitos de “insuficiente”. Isso também é evidenciado nos estudos de bell hooks em
seu livro We Real Cool: Black Men and Masculinity, quando a intelectual elaborara
uma reflexão a cerca da escolarização de homens negros e suas trajetórias
escolares. De acordo com hooks:

ao identificar estereótipos raciais e de gênero como práticas que atuam na


formação de identidades sociais do sujeito durante sua vida escolar, esta
perspectiva analítica vai ao encontro da ideia na qual a heteroidentificação
racial e de gênero pode ser tecida também com relação ao desempenho
escolar, imputando ao sujeito um status racial cuja consequência política pode
ser a responsabilização por seu desempenho na escola, por meio de seu maior
ou menor “compromisso” com a instituição (hooks, 2015, p.)

Tanto Carvalho quanto hooks nos apontam que conseqüentemente são os


meninos negros que detém menor desempenho escolar e maior exclusão do sistema
de ensino. Qualquer desvio da norma ou conduta cometida por estes, é passível de
punição. O negro é uma ameaça apenas por existir, uma vez que não é o “sujeito
universal e essencial”, não é “predicado contingente e particular”, não é branco.
(SOUZA, 1983, p. 04). Ainda segundo a autora:
Garotos negros inteligentes que buscaram ser ouvidos, antes e agora, foram
frequentemente expulsos, considerados encrenqueiros e colocados em classes
de baixo rendimento ou em classes especiais que são meros espaços de
confinamento para aqueles garotos considerados delinqüentes. (hooks, 2015,
p. 683)

Por fim, volto ao questionamento inicial: será que são os jovens o real
“problema” do sistema de ensino? Ou devemos nos perguntar de fato quem tem

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“problema” com quem?
NORMATIZAÇÃO DE CORPOS NEGROS E MECANISMOS DE EXCLUSÃO
Mano, vou te falar ein, que lugar que eu odiava, eu não entendia porra nenhuma do que a
professora me falava. Ela explicava, explicava querendo que eu criasse interesse em um
mundo que não tinha nada a ver com o meu. Não sei se a escola aliena mais do que informa, te
revolta ou te conforma! Com as merdas que o mundo tá. Nem todo livro irmão foi feito pra
livrar. Depende da história contada e também de quem vai contar. Pra mim contaram que o
preto não tem vez. E o que que o hip hop fez? Veio e me disse o contrário. A escola sempre
reforçou que eu era feio. O hip hop veio e disse: “tu é bonito pra caralho”.6

Neste último tópico volto às negras raízes ou raízes negras ao buscar na


trajetória do Atlântico Negro7 a importância da música e suas dimensões sociais,
política e filosófica para negras e negros de diáspora. Tentar trazer ao corpo desse
texto trechos de artistas que não somente vivenciam a experiência de serem homens
negros, mas as traduzem em suas narrativas que são experiências de sua linguagem
cotidiana8. “Como o desejo, a língua rebenta, se recusa a estar contida dentro de
fronteiras9”. Não somente isso, “a música se torna vital no momento em que a
indeterminação/polifonia lingüística e semântica surgem em meio à prolongada
batalha entre senhores e escravos10”.
Trazer a musicalidade negra, sua corporeidade e performance é provocar
rupturas epistemológicas e culturais11 que valorizem e reconheçam outras
concepções de saberes, não apenas da cultura escrita/letrada, mas da oralidade e da
potencialidade da metacomunicação negra. É trazer para o pensamento escolar a
necessidade de um dialogo intercultural que se proponha a ser emancipatório.

Desejo endossar a sugestão de que esses subversivos músicos e usuários de


música representam um tipo diferente de intelectual, principalmente porque sua
autoidentidade e sua prática da política cultural permanecem fora desta
dialética entre devoção e culpa que, particularmente entre os oprimidos, tantas
vezes tem governado a relação entre a elite literária e as massas da população
existentes fora das letras (GILROY, p. 165)

O que o trecho da música pedagoginga nos informa é a necessidade de uma


educação com práticas anti-racistas. O que fica subtendido na construção da narrativa
utilizada pelo cantor é o da escola como um não lugar de pertencimento e da
necessidade do reconhecimento desse sujeito. Reconhecimento este, que “implica em
justiça e igualdade de direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como a
valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que
compõe a população brasileira”, como nos orienta o Parecer CP/CNE N° 3/200412.

A representação negativa ou não representação dos grupos minoritários dentro


de uma sociedade atua de forma perversa sobre a própria subjetividade da

6
Trecho da música do cantor Thiago Elninõ “Pedagogingas”, albúm: “A Rotina do Pombo”, 2017.
7

8 (CONRADO & RIBEIRO APUD SCOTT, 2017 P.75)


9
10
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12 Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e
Africana.
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vítima: a própria autodepreciação torna-se um dos mais fortes instrumentos de
opressão sobre os sujeitos pertencentes a grupos cuja imagem foi deteriorada.
Portanto, o reconhecimento incorreto ou não reconhecimento de uma
identidade marca suas vítimas de forma cruel, subjugando-as através de um
sentimento de incapacidade, ódio e desprezo contra elas mesmas, e desta
forma a política de reconhecimento não é apenas um respeito a esses grupos,
mas também uma necessidade vital para a constituição dos indivíduos
(SHUCMAN, XXXX, p. 49)

Historicamente, o “esforço de racionalização da própria escola e de sua


cultura”, deu-se no sentido de “homozeinização e uniformização de seus corpos”13.
Esta “normatização disciplinar” é descrita por Gadelha (2013) ao estabelecer uma
relação entre biopolítica e a educação. É a partir dessa análise Foucaultiana que
busco estabelecer uma interconexão entre os mecanismos de exclusão e o racismo
vivenciado por jovens negros.
Quando a escola assume uma posição de normalização dos corpos e dos
saberes desses sujeitos estabelece também uma relação hierárquica entre as raças
dentro de uma lógica dual entre superior e inferior. A superioridade baseia-se na
estética, na moral e na intelectualidade branca de forma que o racismo cientifíco e
biológico se transformam em elementos estruturais e estruturantes que solidificam
suas bases na normalização disciplinar da prática pedagógica.
O biopoder é um instrumento de controle político e regulação econômica 14 dos
corpos. Segundo Mbembe (2018, p. 17) “tal poder se define em relação a um campo
biológico do qual toma controle e no qual se inscreve”. Seus mecanismos de controle
criam um discurso político que não se estabelece no abstrato15, pois, entende que o
corpo é também espaço de ideologia16, de forma que “a representação física do corpo
negro é atribuída a valores morais que implicam nos tipos e estereótipos destes
corpos e sujeitos” (BORGES, 2018, p. 62) fixando-lhes categorias arbitrarias que
oscilam entre a normalidade e a anormalidade, como nos informa Gadelha (2013, p.
178)
Essas categorias de acordo com Jesus (2018) se impregnam de características
depreciativas quem pode interferir negativamente na auto-imagem e na auto-estima
dos sujeitos e conseqüentemente na construção de um não lugar para muitos dos
jovens que já se encontram fora do sistema de ensino. Atualmente são “cerca de 900
mil adolescentes que estão fora da escola e não concluíram a educação básica17”
estes com idade entre 15 a 17 anos. Sendo que a diferença entre brancos e negros
dos quais freqüentam a escola era de 3 pontos percentuais em 2017, de acordo com
Relatório do 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação –
2018. Por fim:

Ao se silenciarem acerca de discriminações raciais, de gênero, de sexualidade, etc., as


instituições escolares também contribuem para a perpetuação das desigualdades intra e
extraescolares, incidindo, ainda que silenciosa e sub-repticiamente, na produção de
destinos educacionais e ocupacionais desiguais (JESUS, 2018, p. 15).

13 )
14
15
16
17

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CONCLUSÃO

É na escola onde muitas crianças negras defrontam-se pela primeira vez com o
racismo, Seja através de opressões vivenciadas com outras crianças ou na sala de
aula por meio de sutis mecanismos de discriminação que tentamos abordar ao longo
do texto, expressos nas avaliações negativas dos docentes, na normalização das
praticas pedagógicas ou através de estigmas e estereótipos. A negação de sua
identidade, tal como as avaliações realizadas de modo a diferenciar o “bom” e o “mal”
aluno, o “disciplinado” e o “indisciplinado” são alguns dos exemplos do que a escola
considera atualmente enquanto “problema”.
Buscamos saber se a produção desses estereótipos interfere ou não na
construção da identidade masculina e, se interferem, qual são os valores e condutas
incorporados pelos adolescentes e quais são os valores e as condutas rejeitadas, pois
entende-se que embora haja todo um mecanismo de controle e repressão sobre seus
corpos também existem formas de subversão e negociação dessas identidades
incorporadas no cotidiano escolar ou fora da escola. Os estudos sobre as
masculinidades trazem um conjunto de informações que permitem ultrapassar uma
leitura universal sobre o gênero, incorporando a esse conceito outros marcadores
importantes para a leitura da realidade de sujeitos diversos, assumindo que não há
uma única forma de masculinidades e que é preciso romper com uma concepção de
masculinidade hegemônica para que os jovens negros possam vivenciar outras
relações que não os reduzam a condição desumana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRÉ, M. E. D. A Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 1995.
BRASIL.Constituição (1988).Constituição da República Federativa do Brasil. Brasil,
DF: Senado Federal; Centro Gráfico, 1988.
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a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-
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