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ABL

ADMIRÁVEL RECURSO VERBAL


SERVE AO PRAZER DA LEITURA

As águas de Escorpião, numa construção de


arte deliberadamente literária de certa feição
de um mundo atual, quer emocionar-nos e
fazer-nos rerrefletir sobre temas e problemas
humanos que, acaso, remontam há milênios
de nossa cultura e, ao mesmo tempo, bus-
cam revelar-nos essa mesma cultura no que
ela tem de mais contundentemente inovado-
ra, modernizadora, nas manifestações mais
ostensivas de nosso convívio, em que a pre-
servação de mitos de pureza colide com cer-
ta permissividade - ética, estética, erótica,
sexual- que invade, pervade, alaga a liber-
dade de cada um.
Ver-se-á que um tema- aparentemente
nodal - é o de irmãs geminadas que, "bivi-
telinas" (concessão cientificista desnecessá- ,

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ria), contrastam em tudo. Esse contraste se
consolida, no fluxo de tempo, em duplo mo-
vimento: a bela, de início, vai agravando as
condições do ser mental e físico da não-bela,
de tal modo que, quase concomitantemente,
a primeira chega a um ápice que, a conti-
nuar, só lhe oferece decadência, e a segunda,
ou abdica de si ou reage, em teimosa (ou se
quiser, pertinaz) busca de um lugar ao sol.
Se nessas duas irmãs parece concentrar-se
o protagonismo, a galeria humana tão amo-
rosa, minudente, piedosamente captada
pela romancista é de tal modo expressiva
dos nossos tiques e truques existenciais de
aqui e agora (nestes Brasis urbanos cuja clas-
se modernizante é comum a todas as nossas
cidades, por sua ânsia de ter, de consumir,
de luzir, a qualquer "preço", argentário ou
fiduciário ou, de novo, ético ou, em suma,
"compensatório", desde que consumista),
que aí parece haver o principal "defeito"
deste romance: tantas personagens tão bem
postas em ação, que nos deixam frustrados
(risonhamente) por sua tão episódica pre-
sença (mas, aí, seriam romances, e não o
romance que é).
Romance conspectivo e abrangente, en-
frenta classes, profissões, luta pelo trabalho,
busca do amor, em análises ou sínteses ou
"pontes" que se vão enlaçando com a lógica
da verossinúlhança, do que, não tendo sido,
pode ter sido, a fim de nos revelar, em nossa
fraqueza, em nossa triste esperança, em nos-
sa amarga alegria, que, apesar dé tudo, algo
(já que não tudo) vale a pena: a "falsidade"
verbal e argumentativa da garota final é uma
estupenda forma de prová-lo.
Isso acarreta uma observação fundamen-
tal, para quem não está senão querendo
transmitir a alegria de quem leu, com amor
crescente, o romance.
É que foi ele vazado com admirável se-
nhorio dos recursos mentais e verbais, retó-
ricos e literários de antigos a estes tempos.
Adoraria abundar nesse seu aspecto de
nossa criação verbal. Mas me limitarei a uma

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observação genérica: a primeira pessoa do
discurso ocorria no discurso direto; depois,
no autobiográfico (César, por exemplo, evi-
tou-o quanto pôde, atribuindo a "César" o
que ele tencionou, disse e realizou); depois
no chamado discurso indireto livre, de que
Joyce e periféricos foram exemplo; enfim,
vencida a etapa do stream of inconsciousness
(em que os truques e os triques mentais-ver-
bais das espontaneidades em construção das
intencionalidades eram registrados), ei-nos
aqui.( ... )
(.. .)Que as minhas observações tecnici-
zantes finais não obscureçam a admiração
com que li As águas de Escorpião, o que espero
aconteça com os leitores que sabem que a
criação literária é -oral, oratura, ou escrita,
literatura - a forma mais digna de o ser
humano sobreviver pela arte. Que Clair de
Mattos Santos aceite minha entusiástica ho-
menagem pelo seu romance.

Antônio Houaiss
(da Academia Brasileira de Letras)

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