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O ciberespaço como fonte para os jornalistas

Elias Machado∗
Universidade Federal da Bahia

Índice capacidade de fundar uma modalidade dis-


tinta de jornalismo, em que todas as etapas
1 Introdução 1 do sistema de produção de conteúdos jor-
2 A especificidade da apuração no cibe- nalísticos permanece circunscrita aos limites
respaço 1 do ciberespaço.
3 A natureza das fontes no ciberespaço 4 A falta de clareza sobre as conseqüências
4 Mudanças no sistema de produção no para o jornalismo da disseminação do su-
ciberespaço 7 porte digital dificulta a compreensão plena
5 Conclusões 10 das particularidades da prática jornalística
6 Bibliografia 11 nas redes, das mudanças no perfil do profissi-
onal, na estrutura organizacional das empre-
1 Introdução sas jornalísticas e das funções que o usuá-
rio passa a ocupar no sistema de produção
Como regra geral, nos estudos sobre a prá- de conteúdos. Neste ensaio, com a caracte-
tica profissional no jornalismo digital, são to- rização do próprio ciberespaço como fonte
mados como parâmetro pelos pesquisadores para o trabalho dos jornalistas, pretendemos
os procedimentos usados nos meios conven- reorientar o foco da discussão, defendendo a
cionais, transplantados como elementos es- hipótese de que o futuro dos projetos jorna-
truturais do sistema de produção de conteú- lísticos empreendidos no suporte digital, até
dos das publicações jornalísticas no ciberes- o momento muito atrelados aos modelos dos
paço. A criação da tecnologia digital desen- meios clássicos, depende da adoção de téc-
cadeia um processo de utilização das redes nicas de pesquisa e apuração adequadas ao
telemáticas que apresenta duas vertentes: a) jornalismo praticado nas redes telemáticas.
as redes são uma espécie de ferramenta para
nutrir os jornalistas das organizações con-
vencionais com conteúdos complementares 2 A especificidade da apuração
aos coletados pelos métodos tradicionais e b) no ciberespaço
as redes são um ambiente diferenciado com
Na contramão do uso instrumental dado aos

Jornalista e Doutor em Jornalismo. Professor e computadores durante o processo gradual de
pesquisador do CNPq na Faculdade de Comunicação
da Universidade Federal da Bahia.
entrada destes equipamentos nas redações,
a disseminação do jornalismo digital, en-
2 Elias Machado

quanto uma nova modalidade jornalística, ências Sociais pouco compatíveis com os
pressupõe a criação de técnicas de pesquisa constrangimentos do jornalismo diário, esti-
e apuração adequadas ao entorno constituído mulou um modelo de aplicação da tecnolo-
pelas redes telemáticas. O conceito de jorna- gia destinado a equipes especializadas para
lismo de precisão, elaborado no começo dos a elaboração de reportagens33 , uma vez que,
anos 70 para definir o trabalho jornalístico no dentro das redações, o computador era, como
cenário das sociedades complexas revela os ainda continua sendo, usado para processar o
limites dos primeiros modelos de digitaliza- texto, ocupando função secundária nas ativi-
ção nas redações. Quando enquadra a tecno- dades cotidianas de apuração.
logia como apêndice do processo, que serve Quando aplicado nos anos 60 e 70 o
para aperfeiçoar as ações dos jornalistas sem Precision Journalism, como recorda Meyer,
implodir os fundamentos então consagrados longe estava de reivindicar mudanças de pa-
pela prática, em vez de contribuir para mu- radigma no jornalismo, descrevendo a uti-
dar a essência da profissão, o jornalismo de lização de métodos de pesquisa das ciên-
precisão, como mais tarde, a reportagem as- cias sociais como o mesmo velho jornalismo
sistida por computador11 , passa ao largo das feito com outros meios. “As normas bá-
implicações que a tecnologia poderia repre- sicas não diferem das que nós sempre te-
sentar para o exercício do jornalismo. mos trabalhado. “Descobrir os fatos e con-
A escassa incorporação pelo conjunto tar o significado deles sem perda de tempo.
dos jornalistas das potencialidades ofereci- Se existem instrumentos que nos autorizam
das pelos computadores para a execução das a cumprir esta tarefa com maior poder, ve-
tarefas diárias, mesmo depois de passados racidade e luzes, nós deveríamos utilizá-los
quase 30 anos do lançamento de obras clás- ao máximo44 ”. Quase três décadas depois,
sicas sobre o tema como Precision Journa- quando revisa o conceito em 199155 , Meyer
lism22 , de Philip Meyer, demonstra o des- 33
As reportagens realizadas pelas equipes de es-
compasso entre o mapeamento conceitual do pecialistas em reportagem assistida por computador
fenômeno e as demandas da prática profissi- consomen meses de trabalho dos profissionais envol-
onal. Como no caso do chamado New jour- vidos no projeto. A reportagem “Deadly Force”, de
nalism, que desconhecendo as particularida- Alice Crites e Margot Williams, do The Washington
Post, um conjunto de cinco peças publicadas no final
des do discurso jornalístico numa sociedade
1998 e ganhadora do prêmio Pulitzer de 1999 custou
complexa, defendia uma espécie de jorna- 8 meses de trabalho a uma equipe formada por dois
lismo ficcional, o Precision Journalism, que- pesquisadores, dois especialistas em reportagem as-
rendo empregar métodos oriundos das Ci- sistida por computador, 4 repórteres, 2 editores, 1 di-
retor de arte e 1 fotógrafo. Ver HANE, Paula. Super
11
Para detalhes sobre origem do conceito de searchers in the news. The online secrets of journa-
reportagem assistida por computador ver Investiga- listas and news researchers, BASH, Reva (ed), New
tive Reporters and Editores (http://www.ire.org ) e Jersey: CyberAge Books, 2000. pp...97..
National Institute for Computer-Assisted Reporting 44
Ver MEYER, Philip. Precision Journalism. A
(http://www.nicar.org ) Reporter’s Introduction to Social Science Methods.
22
MEYER, Philip. Precision Journalism. A Re- Bloomington: Indiana University Press, 1973, p. 15.
porter’s Introduction to Social Science Methods Blo- 55
Ver The politics of precision journa-
omington: Indiana University Press, 1973. lism in MEYER, Philip. The new precision

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considera que, com modesta melhora quanti- rentes de uso das redes telemáticas. No pri-
tativa em rapidez e veracidade, o jornalismo meiro, as redes são concebidas como fer-
de precisão preserva a função clássica do jor- ramenta auxiliar para a elaboração de con-
nalista e, mesmo sem entrar no mérito da hi- teúdos para os meios clássicos, ainda abas-
pótese que o jornalismo passa por uma revo- tecidos com métodos clássicos de coleta de
lução paradigmática, para responder as ob- dados, enquanto que, no segundo, todas as
jeções contra o jornalismo de precisão, es- etapas do sistema jornalístico de produção
clarece que, quando uma mudança quantita- - desde a pesquisa e apuração até a circu-
tiva alcança magnitude, tende a se tornar em lação dos conteúdos - estão circunscritas as
transformação qualitativa. fronteiras do ciberespaço. Sem incorporar
Não é de surpreender-se, pois, que a crí- as particularidades do jornalismo digital, o
tica ao jornalismo de precisão ocorra no mo- primeiro modelo representa a aplicação do
mento da expansão do processo de produção, conceito de jornalismo assistido por compu-
circulação e consumo de conteúdos jornalís- tador, que permite o uso dos conteúdos das
ticos nas redes telemáticas, que indica a as- redes nos meios convencionais sem altera-
censão, dentro da ecologia do campo comu- ções essenciais no conjunto das práticas de
nicacional, de um novo tipo de jornalismo todos profissionais dentro das redações.
formatado para o ciberespaço. O jornalismo O conceito jornalismo assistido por com-
digital inclui todo produto discursivo que re- putador identifica o processo de coleta de da-
produz a realidade pela singularidade dos fa- dos com auxílio do computador e que, para
tos, tem como suporte de circulação as re- Nora Paul (1999: 3-4), abrange quatro mo-
des telemáticas ou qualquer outro tipo de dalidades: 1) reportagem, pesquisa, referên-
tecnologia que transmita sinais numéricos e cia e encontro. Na reportagem o jornalista
que incorpora a interação com os usuários no conta com os recursos de programas espe-
processo produtivo. É, considerando o fato cializados para cálculos complexos, progra-
que o suporte digital possibilita tanto a re- mas estatísticos para análises de dados exten-
conversão da natureza do ofício, quanto a al- sos e programas para construção de arquivos
teração de todas as etapas da produção jor- próprios, capazes de contextualizar os fatos
nalística, que a consolidação do jornalismo e identificar tendências futuras. Enquanto a
digital depende da superação do modelo con- reportagem assistida por computador traba-
ceitual contemplado no jornalismo de preci- lha com fontes primárias como entrevistas ou
são ou na reportagem assistida por computa- observações, a pesquisa utiliza fontes secun-
dor, que caracteriza a tecnologia como ferra- dárias como relatórios, artigos ou disponí-
menta auxiliar no trabalho jornalístico. veis nos bancos eletrônicos de dados. A refe-
Um diagnóstico do sistema de produção rência permite a consulta a fontes como dici-
do jornalismo nas sociedades contemporâ- onários, enciclopédias, almanaques e glossá-
neas revela a existência de dois tipos dife- rios, disponíveis em meios como CD-ROMs
ou nas próprias redes. Os encontros são pos-
journalism. 2a ed. Bloomington: Indi-
ana University Press. 1991 Disponível em < síveis nas listas ou nos grupos de discussão,
http://www.∼unc.edu/∼/pmeyer/book/ > Acessado lugares em que os jornalistas têm a chance
em 10 Mar 2002. de participar das discussões, acompanhar as

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opiniões de especialistas em esferas especí- trastar os indícios com os fatos arquivados


ficas e descobrir futuras fontes para reporta- no jornal, além da obrigação de entrevistar
gens. parlamentares ou funcionários vinculados ao
A disseminação das redes digitais, como assunto. No caso da apuração eletrônica, que
constata Bastos (2000: 82) estimula a elabo- parte de uma frase para descrever o tema da
ração de uma lógica estrutural distinta para notícia ou reportagem, Koch lembra que, an-
o jornalismo com conseqüências para a pes- tes do relato contextual dos fatos o jornalista
quisa, produção e difusão de dados. Mais consulta dados armazenados ou fontes dispo-
que ferramentas ao dispor dos jornalistas as níveis no ciberespaço, entrevista os sujeitos
tecnologias de circulação e armazenamento dos fatos e avalia o conteúdo das declarações
de dados são o indício de fenômeno mais tanto no espaço eletrônico quanto nas pági-
amplo que exige diferentes habilidades dos nas impressas.
profissionais do jornalismo. Antes mesmo
do desenvolvimento do jornalismo digital,
3 A natureza das fontes no
Koch (1991: 63) defendia que com os ban-
cos de dados em linha nascia uma forma dis- ciberespaço
tinta de relação entre o jornalista e o assunto A estrutura descentralizada do ciberespaço
da notícia. Como a tecnologia digital tende complica o trabalho de apuração dos jorna-
a afetar tanto os meios de produção quanto listas nas redes devido a multiplicação das
os próprios conteúdos, contrapondo-se a teó- fontes sem tradição especializada no trata-
ricos como Meyer que consideram o fenô- mento de notícias, espalhadas agora em es-
meno como o “mesmo velho jornalismo” cala mundial. Nos sistemas convencionais
com nova cara, Koch (1991:198) acredita de jornalismo a preferência pelas fontes ofi-
que o uso dos bancos de dados eletrônicos ciais representa uma estratégia dos profissio-
lança os alicerces de um novo tipo de jorna- nais para obter dados fidedignos de persona-
lismo, que liberta os profissionais dos pontos lidades reconhecidas, respaldadas pelo exer-
de vista limitados expressos por especialistas cício de uma função pública. Uma caracte-
e fontes oficiais. rística que, mesmo decorrente da estrutura
Enquanto nos modelos de pesquisa e apu- social que predomina nas sociedades indus-
ração nos meios convencionais a apuração triais, quando elegida como critério decisivo
parte de fatos que podem ser localizados com para a definição das pautas, arrisca a credi-
facilidade, factóides isolados de uma deter- bilidade da publicação pelo tom oficialista
minada região e, mais frequentemente, de dos conteúdos. Na medida que a arquite-
declarações, Koch acentua que, no modelo tura descentralizada do ciberespaço desarti-
eletrônico para apuração jornalística, os fa- cula o modelo clássico, o exercício do jorna-
tos são substituídos pela necessidade de uma lismo nas redes telemáticas depende do esta-
frase de busca que defina a questão ou pro- belecimento de critérios capazes de garantir
blema pautado. O estudo de Koch demonstra a confiabilidade do sistema do apuração den-
que, no modelo clássico, antes do relato ser tro de um entorno com as especificidades do
publicado o jornalista deve encontrar os fa- mundo digital.
tos, buscar os produtores de fatos para con-

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Nos bons manuais dedicados ao estudo do ou uma ação que afronta a norma legal como
jornalismo as fontes são classificadas quanto a ocupação de uma propriedade privada sem
em oficiais, oficiosas e independentes. Fon- prévia autorização porque a lógica massifi-
tes oficiais são mantidas pelo Estado, por cada do jornalismo nas sociedades comple-
empresas e organizações como sindicatos ou xas dificulta a reiteração cotidiana das temá-
associações. Fontes oficiosas são aquelas re- ticas específicas, mais adaptadas a publica-
lacionadas de forma direta com uma institui- ções dirigidas como o Jornal do MST, que
ção ou personalidade mas sem poder formal conta o dia a dia do movimento para uma au-
de representação. Fontes independentes são diência limitada.
aquelas sem vínculos diretos com o caso tra- Como a credibilidade das organizações
tado. O mau hábito de julgar as fontes ofi- jornalísticas, enquanto instituições mediado-
ciais como as mais confiáveis trata-se, alerta ras de todos os tipos de bens simbólicos
Lage (2001:63), de um vício no jornalismo numa esfera pública comum nas sociedades
porque a mentira ocupa lugar estratégico nas contemporâneas supõe a incorporação das
intervenções de personalidades ou institui- vozes dos diferentes setores fica muito mais
ções vinculadas aos poderes fáticos quando difícil desconhecer o MST como fonte por-
da defesa de interesses particulares, difundi- que a realidade do movimento circula no
dos como manifestação da vontade coletiva. ciberespaço sem a necessidade da chancela
Mesmo com a comprovação da parcialidade jornalística. A natureza da estrutura das re-
dos detentores dos poderes sociais, a estru- des telemáticas transforma movimentos so-
tura centralizada do jornalismo convencional ciais como o MST, classificados pelo campo
gera uma supremacia absoluta das fontes ofi- jornalístico como fontes primárias, envol-
ciais. vidas como atores no desenvolvimento da
No ciberespaço, pela primeira vez, os mo- ação descrita na notícia ou reportagem, em
vimentos sociais, até então atores políticos difusores66 para o conjunto da esfera pública
dependentes na medida que a difusão do re- comum de uma agenda temática que, desco-
gistro verbal na cena comum passa pela me- nectada da realidade imediatada dos demais
diação das organizações jornalísticas, podem setores, somente merece destaque dos meios
sem os impedimentos colocados pela tecno- convencionais durante momentos de confli-
logia necessária para manter os meios con- tos. O processo de constituição de asses-
vencionais, contribuir para a constituição de sorias de comunicação ou relações públicas
um espaço público democrático. A capa- orientadas para incluir temas particulares no
cidade de intervir sem mediação de tercei- fluxo dos sistemas de circulação de notícias
ros no processo social desde uma perspectiva representa um indício de que a profissiona-
distanciada dos poderes oficiais desestabiliza 66
O MST mantém um página com versões em
a proporção do uso dos três tipos de fontes português, espanhol, inglês, sueco, italiano, francês
pelos jornalistas. Vejamos o caso do MST, e alemão com dados sobre o movimento, boletins
por exemplo. No jornalismo clássico um de notícias e campanhas de arrecadação de recursos
movimento social como o MST ganha cober- entre outros.Ver a página do MST . Disponível em
<http://www.mst.org.br> Acessado em 10 de Março
tura jornalística quando ocorre uma tragédia
2002.
como o massacre de Eldorado dos Carajás

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lização das fontes constitui uma das espe- dados armazenados nas páginas individuais,
cificidades do processo de coleta de dados, nos bancos de dados públicos e nas redes de
produção e circulação de conteúdos no jor- circulação de notícias aumenta a chance de
nalismo em sociedades complexas. ocorrer um deslocamento do lugar das fontes
A novidade do jornalismo digital reside no da esfera do oficial ou do oficioso para o do-
fato de que, quando fixa um entorno de ar- mínio público. Enquanto o sistema de cober-
quitetura descentralizada, altera a relação de tura setorizada dos meios convencionais, ali-
forças entre os diversos tipos de fontes por- cerçado numa estrutura de redação centrali-
que concede a todos os usuários o status de zada dividida em editorias reforça o vício do
fontes potenciais para os jornalistas. Se cada recurso as fontes oficiais, uma redação des-
indivíduo ou instituição, desde que munido centralizada que opera dentro de um projeto
das condições técnicas adequadas, pode in- de afinidades temáticas estimula a diversifi-
serir conteúdos no ciberespaço devido a fa- cação das fontes.
cilidade de domínio de áreas cada vez mais Mesmo com projeto conversador para o
vastas, fica evidenciada tanto uma certa di- formato digital, o Último Segundo88 , publi-
luição do papel do jornalista como único in- cação jornalística do iG, conta com uma pro-
termediário para filtrar as mensagens auto- posta original: trata-se do Leitor-repórter
rizadas a entrar na esfera pública, quanto iG99 em que os usuários do portal podem
das fontes profissionais como detentoras do enviar sugestões de reportagens e textos ao
quase monopólio do acesso aos jornalistas. Último Segundo. Com o Leitor-Repórter a
A possibilidade de dispensa de intermediá- publicação incentiva a participação dos in-
rios entre as fontes e usuários implode com ternautas na solução dos problemas de cada
a lógica do predomínio das fontes profissio- comunidade, cidade ou do próprio país. Di-
nais porque transforma os próprios usuários vidido em duas modalidades: notícias e re-
em fontes não menos importantes. portagens, o Leitor-Repórter iG, que prio-
O estabelecimento de uma relação sem in- riza notícias em tempo real, possibilita que
termediários entre as fontes e os usuários de- o usuário faça denúncias e divulgue fatos de
corrente das características da tecnologia di- qualquer parte do mundo. Para participar, o
gital permite concluir que a pesquisa sobre leitor que presenciar um fato inusitado pode
as fontes não se circunscreve mais as rela- mandar uma mensagem para a Redação. Se
ções dos jornalistas com as fontes oficiais for o caso, o Último Segundo faz nova apura-
ou com fontes institucionalizadas pautadas ção e checagem dos dados antes de colocar a
por uma lógica de ação estratégica, compor- 88
Para um estudo detalhado das especificidades
tando como elemento estrutural não menos do Último Segundo ver PRADO, Ana. Informação
importante, os usuários como fontes para o Fast Food. Um estudo de caso do jornal Último Se-
jornalismo77 . Com a multiplicação das fon- gundo do portal iG.2002.148 pp. Dissertação (Mes-
tes provocada pela facilidade de obtenção de trado em Comunicação), Faculdade de Comunicação:
Universidade Federal da Bahia, Salvador.
77 99
Ver PINTO, Manuel. Fontes jornalísticas : con- Disponível em <
tributos para o mapeamento do campo. In Comunica- http://ultimosegundo.ig.com.br/useg/palavra/artigo/
ção e Sociedade, Vol 14 (1-2), 2000, 277-294, Braga: 0„658886,00. html > Acessado em 10 de Março
Universidade do Minho. 2002.

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notícia do colaborador no ar. No caso das re- 4 Mudanças no sistema de


portagens o leitor pode enviar textos e fotos produção no ciberespaço
para reportagens especiais sobre algum tema
de livre escolha. O treinamento dos jornalistas e dos usuá-
A inclusão dos usuários como fontes co- rios emerge como uma pré-condição para o
loca na agenda da pesquisa sobre o campo acesso com proveito das fontes no ciberes-
jornalístico um aspecto até agora negli- paço devido as particularidades das técnicas
genciado pelos códigos de ética do jorna- de apuração e das funções desempenhadas
lismo convencional: as responsabilidades pelos diversos atores sociais nas redes tele-
dos usuários das redes como fontes para máticas. Para desenvolver o trabalho jorna-
os jornalistas1100 . Uma omissão justificada lístico em um entorno cada vez mais amplo
no Jornalismo convencional porque a notí- e complexo como o mundo digital tanto o
cia que chega ao público depende de uma profissional quanto o usuário das redes tele-
negociação direta entre jornalistas e fontes, máticas devem dominar técnicas adequadas
cabendo ao leitor, ouvinte e telespectador a para avaliar dados muito diversos, com va-
função de consumidor dos conteúdos. Como lor desigual e propósitos distintos que cada
a experiência do projeto Leitor-Repórter do cidadão pode publicar sem qualquer tipo de
iG indica, daqui para frente é provável que, restrição prévia. A multiplicação das fontes,
cada vez mais o cidadão comum disponha como frisa Pinto (2000:292), representa uma
de condições para entrar no circuito de pro- complexificação da vida social como con-
dução da notícia. Em contrapartida, do seqüência do desdobramento das instâncias
mesmo modo que o jornalista no exercício produtoras de discursos e iniciativas, que re-
da profissão deve cumprir com o código de vela a entrada de novos atores na cena social
ética que resume os procedimentos deonto- e exige uma estrutura distinta das organiza-
lógicos, a participação do usuário enquanto ções jornalísticas.
fonte ou colaborador revela a necessidade de Sem a necessidade da presença dos jor-
uma atualização dos códigos de ética pro- nalistas no local, a redação do jornal digi-
fissional com a definição dos direitos e de- tal ocupa o lugar de um centro de gravidade
veres dos usuários como fontes, alargando para onde converge o fluxo de matérias en-
um processo antes restrito aos jornalistas e viadas pelos profissionais, colaboradores e
aos membros do público detentores de car- usuários do sistema1122 . Em vez da divi-
gos oficiais ou envolvidos nos fatos1111 . são em editorias específicas como ocorre no
jornalismo convencional nas redações digi-
1010
Ver PINTO, Manuel. Op. cit. pp. 291. tais os membros da publicação são dispostos
1111
Ver MARINHO, Sandra. O valor da confi-
ança nas relações entre jornalistas e fontes de infor-
de forma mais livre para facilitar o trabalho
mação In Comunicação e Sociedade, Vol 14 (1-2), em torno de uma temática comum. Como a
2000, 351-356, Braga: Universidade do Minho. descentralização da produção dos conteúdos
1212
Ver MACHADO. Elias. Os novos conceitos
de edição no jornalismo digital In Comunicação e So-
ciedade, Vol 14 (1-2), 2000, 357-373, Braga: Univer-
sidade do Minho.

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8 Elias Machado

dificulta o contato direto entre os profissio- capazes de alterar a rotina de todos. Muda
nais a construção de redes de comunicação sim a perspectiva da cobertura que pode fu-
internas evita o isolamento entre os colegas, gir da síndrome das declarações ou repercus-
contribuindo para que o produto final seja sões para aprofundar temas de interesse co-
o resultado de um esforço coletivo. Quanto letivo e a forma de apuração dos fatos. No
mais cada profissional envolvido com o pro- caso de um setorista do Congresso Nacio-
jeto estiver vinculado a construção da rede nal em vez de permanecer todo o tempo a
interna de comunicação maiores são as pos- espera de um determinado senador ou depu-
sibilidades de troca de dados ou experiências tado o jornalista pode ocupar parte da jor-
porque o segredo do sucesso de um rede de nada de trabalho em vasculhar pela rede os
comunicação reside na diversidade de fontes projetos em ordem de votação, os pareceres
disponíveis. dos relatores, as emendas propostas ao or-
O jornalismo nas redes promove uma in- çamento da união e tentar estabelecer as re-
versão no processo tradicional de produção lações entre os projetos na ordem do dia e
de notícias porque o repórter antes de sair as prioridades do programa de governo, por
em perseguição de uma personalidade qual- exemplo. Depositário de uma tradição de de-
quer para recolher uma declaração sobre um pendência da palavra oral o jornalismo tra-
determinado fato deve empreender um levan- dicional raras vezes centra o foco no traba-
tamento dos dados necessários para elaborar lho ordinário da administração pública, com
a notícia ou reportagem. Enquanto no jor- exceção dos considerados escândalos públi-
nalismo convencional, muitas vezes, a notí- cos, episódios rumorosos em que os dados
cia consiste na própria declaração, o jorna- via de regras são provenientes de vazamen-
lismo nas redes possibilita que a declaração tos de fontes interessadas1133 , como nas re-
seja um dos elementos que reforça a credibi- centes reportagens sobre operação da Polícia
lidade da notícia, quando permite aos envol- Federal na empresa da Governadora do Ma-
vidos o direito de expressar comentários so- ranhão, Roseana Sarney.
bre o caso. A inversão no processo produtivo A reboque das circunstâncias, o jorna-
nada tem a ver com a substituição dos pos- lismo convencional divulga os fatos quando
tos clássicos de cobertura como prefeituras, em pleno desenvolvimento, como a epi-
câmaras de vereadores, assembléias legisla- demia de dengue no Rio de Janeiro que,
tivas, governos estaduais ou federal, câmara mesmo tendo sido ocasionada por medidas
federal, senado ou federações empresariais e adotadas com antecedência de meses como
sindicais pelas variadas fontes independentes a demissão dos mata-mosquitos no Estado
acessíveis no ciberespaço. pelo Ministério da Saúde, ocupa as manche-
Nenhum tipo de jornalismo pode em troca tes no momento que ganha proporções as-
do acompanhamento das ações restritas ao sustadoras, com os registros das primeiras
mundo das redes menosprezar a cobertura de 1313
Ver GASPARI, Elio. As baixarias
centros de onde irradia parcela considerável contra Roseana Sarney Dsiponível em <
do poder político de uma sociedade, instân- http://oglobo.globo.com/colunas/gaspari.htm>
cias dedicadas a elaborar as normas essen- Acessado em 10 de Março 2002.
ciais para o funcionamento das instituições

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mortes1144 . Com o exame cuidadoso dos sentar uma cobertura completa da situação
bancos de dados existentes nas redes o jorna- tomando como fundamentação os dados, do-
lista digital pode descobrir fatos de enorme cumentados e as projeções de analistas de
relevância muito antes da medida entrar em mercado ou especialistas acadêmicos dispo-
funcionamento, quando ainda em fase de es- níveis em páginas como Banco Mundial1155 ,
tudo ou finalização do projeto. Mesmo nos Bolsa de Nova Iorque ou de economistas
casos de medidas consumadas, uma simples como Paul Krugman. Na era das redes com
consulta rápida ao diário oficial dos três po- a diversidade de fontes encontradas, muitas
deres dá ao repórter uma radiografia de no- delas de livre acesso, nada que não seja a
meações, editais lançados, contratos assi- falta de compreensão da modificação porque
nados e recursos distribuídos, que estuda- passa o jornalismo nas sociedades contem-
dos com cuidado, podem se transformar em porâneas justifica a transcrição total dos con-
ponto de partida para uma notícia ou repor- teúdos comprados das agências de notícias,
tagem. divulgados com um dia de antecipação pelas
A dimensão mundial das redes rompe com próprias agências.
os limites impostos pelas distâncias físicas, O acompanhamento das experiências de
impeditivas para empresas com menos re- apuração nas redes revela que o produto fi-
cursos acessar documentos ou as fontes pri- nal apresenta melhores resultados sempre
márias, mas que agora podem ser consulta- que ocorre uma divisão do trabalho, com
das a baixo custo através de correio eletrô- cada profissional ficando encarregado de
nico. Uma publicação que acompanha o pro- uma parte da apuração. Na maioria dos ca-
cesso de renegociação da dívida externa bra- sos, ao menos nos Estados Unidos, o jor-
sileira pode, sem a necessidade de manter nalista conta com o apoio dos pesquisado-
um correspondente em Nova Iorque, apre- res do Centro de Documentação das publi-
1414
cações. No Brasil, em publicações como O
Em 1999 a Fundação Nacional de Saúde (Fu-
nasa) demitiu 5.792 mata-mosquitos, decisão mantida Globo,1166 a redação digital trabalha em li-
pelo ministro José Serra, mesmo após a sentença de nha direta com o Centro de Documentação,
reintegração dada pelo Tribunal Regional Federal da e, durante a implantação do projeto a mesma
2a Região em dezembro do ano passado dos Traba- profissional acumulava a chefia dos dois se-
lhadores da Saúde, Previdência e Trabalho do Estado
tores porque a empresa considerava que o
do Rio. Em documento entregue pelo Sindicato dos
Trabalhadores em Saúde do Rio de Janeiro ao Minis- funcionamento do trabalho dependia da sin-
tro José Serra em 20 de janeiro de 2002 a entidade de- tonia da redação com a parte de recuperação
nuncia que a atual epidemia de dengue no estado do 1515
Rio de Janeiro decorre em boa parte da demissão dos Ver Banco Mundial Disponíve em
mata-mosquitos. O documento revela também que <http://worldbank.org> Acessado em 10 de
houve a redução dos recursos para mão-de-obra con- Março 2002 Bolsa de Nova Iorque Disponível
tra a dengue no estado - de R$ 60 milhões para cerca em <http://www.se.com> e Paul Krugman Dispo-
de R$ 20 milhões. Ver GANDRA, Alana Serrra rece- nível em <http://www.princeton.edu/∼pkrugman/>
berá documento de mata-mosquitos demitidos no Rio. Acessado em 10 de Março 2002.
1616
Disponível em < http://www.radiobras.gov.br/REA- Disponível em <http://www.oglobo.globo.com
20020121-124116-00-74.html> Acessado em 10 de >Acessado em 10 de Março 2002.
Março 2002.

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10 Elias Machado

de dados ou reportagens necessárias para a como jornalismo de precisão ou reportagem


produção dos conteúdos diários. assistida por computador, capazes de redu-
Se formulada com o cuidado de atender zir a tecnologia a um uso instrumental por-
as particularidades das operações desenvol- que aperfeiçoa o trabalho sem desestabilizar
vidas pelo jornalista ao longo de um dia de os fundamentos da prática. A consolidação
trabalho, uma proposta para estimular a apu- no jornalismo digital pressupõe a compreen-
ração que toma como ponto de partida os da- são de que a tecnologia representa a possibi-
dos disponíveis nas redes tem todas as condi- lidade de criação de um formato distinto de
ções de agradar os profissionais de uma pu- jornalismo em que todas as etapas do sistema
blicação digital. Em um entorno complexo de produção de conteúdos – desde a apura-
como o ciberespaço, com uma multiplici- ção a circulação – são circunscritas aos limi-
dade de emissores e em fase de consolidação tes do ciberespaço.
nenhum modelo que desconsidere a necessi- A multiplicação dos difusores altera as re-
dade da redução de custos, da economia de lações entre os jornalistas e as fontes porque
tempo e da incorporação de usuários no sis- transforma os usuários do sistema em fon-
tema produtivo como forma de diversificar tes. Enquanto no jornalismo convencional
as fontes tem muito futuro. Nas atuais cir- em que muitas vezes declarações são trans-
cunstâncias qualquer publicação pode adotar critas como notícias predomina o uso das
um sistema de produção de conteúdos fac- fontes oficiais, no jornalismo digital a parti-
tível com as características do mundo digi- cipação dos usuários contribui para a utiliza-
tal. A falta de uma generalização de sistemas ção de fontes independentes, desvinculadas
capazes de superar os modelos consagra- de forma direta dos casos publicados. Com
dos pelas organizações jornalísticas de anti- a descentralização da redação ocorre uma in-
gas gerações esbarra na cultura arraigada dos versão no fluxo de notícias, antes muito de-
profissionais, sempre temerosos de trocar o pendente das fontes organizadas. O próprio
certo pelo duvidoso, na escassez de proje- jornalista necessita rastrear nas redes os da-
tos considerados viáveis pelos investidores e dos antes de redigir a matéria solicitada ou
na quase inexistência de pesquisas aplicadas mesmo quando apura a veracidade dos con-
ao jornalismo no suporte digital, sem atrela- teúdos das matérias enviadas pelos colabora-
mento direto aos conglomerados de comuni- dores. O alargamento do conceito de fontes
cação comprometidos com os meios conven- coloca na ordem do dia a reflexão sobre as
cionais. consequências para o jornalismo da incorpo-
ração dos usuários no circuito de produção
de conteúdos.
5 Conclusões
Nas redes de circulação de notícias, mais
O descompasso entre as demandas da prática que nunca, como lembra Claudio de Moura
profissional e o modelo de adoção dos com- Castro, vale “o princípio da dúvida sistemá-
putadores nas redações impediu uma modifi- tica para distinguir entre o verdadeiro e o
cação no sistema de produção de conteúdos falso usando a razão e o bom senso”.1177
nas organizações jornalísticas. Muito desta 1717
DE MOURA CASTRO, Claudio. Roubaram a
defasagem se deve a difusão de conceitos

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O ciberespaço como fonte para os jornalistas 11

Mesmo que seja um exagero concluir que a MACHADO. Elias. Os novos conceitos
ausência de reputações construídas por dé- de edição no jornalismo digital In Co-
cadas entre os emissores nas redes, quando municação e Sociedade, Vol 14 (1-2),
comparados aos meios convencionais, con- 2000, 357-373, Braga: Universidade do
duz ao reino da boataria plena, existe pouca Minho.
dúvida de que o futuro dos sistemas de cir-
culação de notícias no ciberespaço depende MARINHO, Sandra. O valor da confiança
da disseminação entre todos os usuários de nas relações entre jornalistas e fontes
critérios de controle de qualidade dos con- de informação In Comunicação e So-
teúdos. Como contrapartida a diluição das ciedade, Vol 14 (1-2), 2000, 351-356,
instâncias de controle antes definidas pelos Braga: Universidade do Minho.
próprios profissionais ao longo das etapas de MEYER, Philip. Precision Journalism. Blo-
um sistema centralizado, o fator diferencial omington: Indiana University Press,
do jornalismo digital consiste na redistribui- 1973.
ção dos poderes de controle entre todos os
membros do sistema, considerando que os MEYER, Philip The politics of preci-
usuários são ao mesmo tempo fontes e pro- sion journalism in MEYER, Philip.
dutores de conteúdos. The new precision journalism. 2a
ed. Bloomington: Indiana Uni-
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