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Por Helder Lamark

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A HISTÓRIA DE UM CABRA
PAJARACA

Por Helder Lamark da Silva Nunes Vieira

2019

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Biblioteca UEPB)

VIEIRA, Helder Lamark da Silva Nunes


A História de um Cabra: Pajaraca.
1a Ed. - 1a impr. - João Pessoa – PB, 2019.

Título: A História de um Cabra: Pajaraca


ISBN: 879-58-93298-54-4

2 – História – Biografia – Literatura Regional.

22 -15034 CDD-600

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APRESENTAÇÃO

Se você optou por trabalhar e ser honesto, saiba que as dificuldades lhe serão terríveis,
você vai olhar para os quatro cantos e não vai ver no que se apoiar. E caso queira escrever um
livro de memórias não sendo versado nas letras como eu, por exemplo, que só entendo de
números e olhe lá? Pior ainda. Porém, temos que considerar que as palavras foram feitas para
narrar acontecimentos e não para simplesmente adorná – los. É por isso que tudo que está
contado aqui foi escrito de um modo bastante peculiar, onde todo o desenrolar da história é
narrado propositalmente na linguagem, na semântica, na pronúncia e no sotaque da região, na
época onde tudo aconteceu. Na descrição, faço uso de termos mistos, mas simplificados junto
ao nosso entender. Todas as narrativas são provenientes da vida daquelas pessoas humildes do
interior, que habitaram aquele lugar e pertenceram a este passado no qual vivi a minha tenra
infância.
Em nenhum destes casos eu estive envolvido, pois nasci em 1984 e os fatos se deram
em meados da década de 1950. No entanto, esta espécie de biografia em linha de tempo eu
tomei conhecimento e nota através das ricas narrações de minha tia Ana Nunes (Nita), minha
avó Marina, meu primo em segundo grau, Evano Nunes que também é grande entusiasta
sobre a história do nosso lugar. também contribuiu para este livro o amigo engenheiro
Francisco Pereira, o qual fez um levantamento da árvore genealógica da família Lucena, a
qual somos descendentes, o que muito ajudou a ligar os pontos entre os personagens e fazer as
histórias terem sentido. Também enriqueceram o que aqui está escrito meu avô e meu pai: Zé
Serafim e Nunes Tecladista (ambos In Memorian) entre os anos de 2005 e 2011 sobre o
quanto eram bons aqueles tempos, quem dera eu ter vivido nele.
Entretanto, tudo aqui foi escrito de um modo todo próprio e fiel à verdade dos fatos.
Modo esse, talvez até confuso para alguns letrados, com inúmeros erros de ortografia e
diagramação, por isso, queria pedir desde já a tal licença poética para a prosa. Não sei se
existe, mas não importa. Isto eu peço por ter um estilo particular de expressão e sem pretensão
acadêmica alguma, pois nunca tive acesso ao convívio de bacharéis entusiastas das letras.
Repito, eu trabalho com números e já estou satisfeito.
Também não vou munir-me de noções que não tenho, do contrario arrisco-me a usar
expressões desconhecidas de mim mesmo, pois os outros conhecimentos que possuo são
inúteis neste aspecto. Minha intenção é contar um pouco da história de um homem sertanejo
que talvez exista em cada cantinho do Nordeste.
Repito, não espere uma ortografia perfeita, coerência e coesão verbal, foque a história
em si, pois é ela que interessa. Peço isto de antemão para não ser abordado posteriormente e
ridicularizado, sobretudo por não ter culpa de nunca ter aprendido bem a gramática padrão e
no fim das contas ter me distanciado dela. Sempre constatei que ela jamais gostou de mim, e
também eu que desgosto dela, talvez seja isso ou as duas coisas, mas tenho uma certeza, eu e
ela somos dois bicudos e bicudos não se beijam.
Outra coisa, porém é a avidez por essas histórias. As lembranças relatadas de meus tios
– avós, e meus avós, meu pai entre outros chegados quando são contadas para mim, eu as
absorvo como aquele que tem sede no deserto absorve a água. Estas histórias chegam
destacadas, em pacotes, esparsas ou em pedaços, mas nunca confusas e assim melhor se
misturam numa homogeneidade perfeita e então, com um pouco de paciência e criatividade,
faço uma conexão entre essas histórias para que se possa ao menos contar, sem a menor
pretensão que ela seja de fato, uma boa história, é nisto que eu acredito. É a falta disto que
gera aquela sensação revoltante na pessoa que leu uma historia mal contada. É este leitor em

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questão que faz a mesma pergunta de muitos sobre péssimos escritores e suas obras e que
falam assim:
- “Porque esse ‘cidadão’ se mete a escrever tanta besteira? Ainda sai por aí dizendo
que sabe escrever livros. Ora seu metido a escritor, sai da frente, deixe o espaço p’ra quem
sabe. Ter onde imprimir livros não significa que vós sabeis escrevê - los"!
- "Outra coisa, senhor pretensioso às letras... – (Esta é comigo, tenho certeza). - Eu já
sei por que você narra a história dos outros, é porque a sua história de vida não tem nada que
chame ou desperte a atenção. E tem mais, se este conto for publicado, ele não será nada mais,
nada além de um 'besteirasseler', e é por esta razão que a sua apagada pessoazinha vai sempre
continuar despercebida, não é mesmo"?
Mas meu caro amigo, eis aqui uma boa resposta que vai justificar seu ponto de vista,
pois se você achou elementos para me criticar assim por causa destas memórias, que de fato,
não são minhas, ainda assim eu fiquei muito feliz na hora que souber disso. Quer saber o
motivo? É que se você está me criticando, certamente leu esse livro, portanto muito obrigado,
e não deixe de ler o próximo. Falarei de números, prometo.
Enfim. É sabido que existem acontecimentos que se perdem no pó dos tempos tão logo
tenham acontecido. Outros ficam gravados para sempre no íntimo das pessoas. Qual seria o
segredo das historias que ficam? E das que desaparecem? As narrativas são trazidas por quem
viveu o acontecimento, ou por quem ouviu de outra pessoa lá na esquina de uma rua. Que seja
ouvida por um individuo ou por um coletivo. Só sei dizer que elas caminham. Saem da boca
de uma pessoa, entram nos ouvidos de outra e saem pela boca do mesmo ouvinte. Só posso
dizer que as historias que estão adiante foram reais, vividas por pessoas reais.
Narrar assim é como ver um filme se desenrolando, sendo que as imagens não são
muito nítidas. Apuro a visão e fico olhando através das vidraças coloridas da janela do saber e
logo consigo identificar algumas imagens borradas por trás das cortinas empoeiradas do
tempo. Muitos anos separam aquela época deste tempo presente. Só consigo distinguir duas
cores, o preto do branco. Às vezes, faço o mesmo com o escuro ou claro, luz ou escuridão.
Penso eu que seria muito bom se nunca mais houvesse outro personagem para fazer algumas
das cenas que eu estou materializando nos capítulos 1, 2 , 3 e n deste livro.
Estes eu jamais teria a vontade de descrevê-los se não fossem verídicos, pois para
fazer isso eu tive que abrir um buraco no centro da ignorância, transpô-lo, passar pela loucura
e sair do outro lado para ver o que havia lá. O projetor é a minha imaginação, vasculhando
essas histórias, contadas por meus parentes mais idosos, reavendo tudo que ficou gravado no
subconsciente, mas que nunca perdeu a consistência. O filme precisa rodar muitas e muitas
vezes, assim eu vejo melhor as imagens e os atos acontecendo na parte escura da tela, pois a
poeira da vida vem se acumulando ali há muito tempo.
Muitas vezes eu me pergunto, porque isto me atrai tanto? Porque me sinto tão ligado a
essas histórias do passado? Se coisas que aconteceram no dia de ontem eu já esqueci ou nem
me importo mais? Talvez seja porque certos fatos não devem ser esquecidos. Muitos parecem
banais, muitos casos eu me lembro dia e hora dos seus acontecimentos, pois são marcas bem
profundas, que deixaram cicatrizes que até hoje eu posso ver seus rastros deixados em meu
íntimo. Falo de feridas que nunca saram e ainda insistem em doer. Dizem que passado é
passado. Dizem que cada geração escolhe o passado que mais lhe convém, Será? O que se
perdeu está perdido, e assim por diante, mas quando nos lembramos de coisas ruins que nos
aconteceram, nos preparamos para coisas talvez ainda piores que possam nos atingir
posteriormente.

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Estou aqui sentado para confrontar este diário com a razão, se é que há razão para
tanto. Vejo que cada nascer do Sol tem um motivo para ser dádiva divina. Em outra parte mais
clara da tela, eu vejo nitidamente que vieram e se foram épocas de encanto,
que transbordavam aventuras do dia - dia. No mais, para quem não tem nada, qualquer pouco
é visto como muito.
A projeção é interrompida e neste intervalo eu vejo a generosidade humana trilhando
caminhos estranhos e que muitas vezes não cruza mais com caminhantes que desejaríamos
cruzar. Vi que não é preciso gritar para ser ouvido, pois quando a situação é gritante, não há
como ser ignorada.

Bosta, o vira – lata

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PRÓLOGO
1952, Feira de Patos - PB
A bebida sempre trazendo problemas...

Primeira segunda feira do mês: Dia que todo bom sertanejo junta seus trocados e vai à
cidade comprar seus mantimentos. Muitos deles, nem se quer levam dinheiro vivo na
algibeira; vão somente na esperança de fazer boa troca com o que levam em mãos.
Uns querem trocar batata por açúcar, outros querem trocar parte da produção de feijão,
uns querem trocar isto por aquilo, e José da Natividade Teófilo, vulgo “Zé Pajaraca”, não
fazia de outro jeito. Ele não era muito dado a trabalhar no pesado, muito menos possuía onde
lavrar, pois era morador antigo do velho vaqueiro e fazendeiro Joaquim Nunes e morava em
um tabuleiro muito ruim de plantio. No entanto, sobrevivia com alguns “bicos” oferecidos
caridosamente para que nem ele nem sua pobre família sucumbisse à própria pobreza,
ignorância e miséria.
Zé, quando ia à feira, tinha o péssimo hábito de comprar mercadoria de baixa
qualidade, para que assim pudesse ter algum trocado de sobra e então lá por entre as
barraquetas do mercado poder tomar um quartim* ou quem sabe, até uma meiota**. (*250 ml de
cachaça // ** 500 ml de cachaça de meio litro). Este hábito, por vezes já o deixou em maus lençóis, pois ele
simplesmente ficava bêbado e não sabia mais onde tinha deixado a feira. Como era bom
conhecido dos vendedores, estes mandavam deixar suas comprinhas no caminhão com destino
ao distrito de Cabaças. Nisso, enquanto o caminhão vem bravamente levantando poeira no
estradão, dentro dele, na carroceria coberta, uma recorrente e acalorada discussão entre
Vicência e Chico Canuto:
- É por isso que eu num vem pra djabo de fêra! Por que eu tem que dividi passage e
viage cum um presepe desse, meu Deus du céu!
- Vai pra lá, véa nojenta. Eu lá sabia que esse saco era teu!
- Apois que fosse im pé. Se sigurano nos caibo! Agora você pega, se senta e ainda
peida na minha saca de farinha, rapaz! Você vai pagar!
- Eu num pago um vintém!
Isso tudo em meio a dezenas de pessoas espremidas naquele pau de arara entre
caixotes, galinhas e bodes. Tudo se misturava naquela sinfonia sertaneja.
Nesta segunda feira em questão, o caminhão de Zé Lino, para variar, não estava
funcionando bem. Fez a viagem até o pequeno distrito fumaçando e sacolejando muito,
obrigando o chofer a dar uma parada na pequena vila de Santa Teresinha, já em Cabaças, para
lá averiguar o que estava acontecendo. Isto não iria levar menos de duas horas; fato que
indignou os outros passageiros do caminhão, exceto Zé Pajaraca, que viu ali uma
oportunidade de fazer bom negócio.
Zé abriu a caixa da feira e escolheu algumas compras que ao seu ver, não fariam tanta
falta. Estas, uma vez escolhidas, se resumiam a seis ovos, um pacote de fuba*, *Farelo de milho
misturado com açúcar outro de fubá*, *Tipo de cuscuz um saquinho de feijão e outro de arroz. Tais itens
subtraídos da feira serviriam para Zé Pajaraca colocar n’uma sacola e vender pela cidade, e
assim teria condição de comprar uma garrafa de cana, tendo garantida a sua branquinha
durante quase uma semana.
Tal artifício era muito comum naquele lugarejo. Nas segundas feiras, muitos
moradores da vila de Santa Teresinha, no distrito de Cabaças, compravam estes itens desta
forma, pois eram oferecidos a preço inferior. Zé, assim que vendeu seus itens, partiu em

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direção à bodega de Caburé, feliz da vida, para comprar um litro de cana Cipuada*. *Nome de
uma cachaça artesanal feita em Patos mesmo.
- Boa tarde, Cumpade Caburé.
- Ôpa, Pajaraca! Cuma vai o sinhô?
- Eu tô bom. E cumade ‘Telvina, tá boazinha?
- Boa toda, cumpade. Tá lá pa ingrêja umas hora dessa...
- Eita danado, cumpade...
(...)
- Ô cumpade...
- Ôpa, cumpade.
- Cumpade... Siguinte... Eu tô sem denhêro trocado aqui, mais eu truce esse pacote
cu’ns résto de fêra, aí eu tava pensano se pur’um acauso nóis num…
- T’aquí o lito de Cipuada, cumpade!
- Oxente e cumpade adivinhô, foi?
- Foi nada, cumpade. Cuide, ói, o caminhão lá tá buzinano já… - Diz Antônio Caburé,
displicente.
- Mais o cumpade num vai confirí o que tem na sacola não?
- Carece não, cumpade. Sêno coisa sua, eu sei que é mercaduria de primêra. Carece
não...
- Pois é, cumpade. Né eu se gabano não, mais... Tod’mundo diz qu’eu sô muito é
caprichoso pa fazê fêra...
- Tá se vêno, cumpade. – Diz caburé, conferindo a mercadoria, meio sem graça pelo
canto do olho.
- Ô cumpade…
- Diga, cumpade.
- Cumpade num tinha pur’aí umas bandinha de limão não, pa mode de...
- Tem não, cumpade. O pé que nóis tinha lá do roçado morreu nessa seca. Ficô só o
cotôco. Mais ainda tem laranja, cumpade qué?
- Oxe, na hora, cumpade!
- Apois fique pastorano aqui a entrada da budega, cumpade, pa mode de tangê esses
djabo desses cachorro que eu vô… - (Se espreguiçando) - lá no muro vê se tem. Vai pra lá,
cachorro! - E sai arrastando as chinelas.
- Tá certo, cumpade. Mais num demore não, cumpade, que o povo já tá acerano por ali
pelo caminhão...
Passados pouco mais de dois minutos, o vendeiro chega com duas laranjas – cravo,
que para Zé Pajaraca, era um grande presente e muito feliz ele ficou:
- Eita, cumpade! Brigado!
- De nada, cumpade.
- Já vô ino, Dêur le pague!
- Mais só seno… ‘Té mais, cumpade!
Chegando ao caminhão, Zé Pajaraca sobe e Zé Lino finalmente dá a partida rumo aos
sítios da parte norte de Cabaças, ou seja: Sítio Porcos, Jardim, Lameirão, Maracujá, Santana,
Arapuá, Cachoeira, Quixaba, Goiabeira e Velha Ana.
O caminhão de Zé Lino era um velho Studbaker ano 1928 com cabine de madeira, que
só Deus sabe como veio bater ali naquele fim de mundo. Esse transporte é também conhecido
por “cara branca”. O lugar mais fácil de encontrá – lo era sempre nas oficinas, pois já estava
velho e muito mal conservado. Entretanto, esse caminhão e mais outro eram os único meio de

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transporte ali no raio de quilômetros e atendiam uma pequena multidão. A viagem do
Studbaker’ 28 transcorria tranquila; a jamanta sulcava lentamente as estradas anunciando
longe sua passagem devido ao barulho ensurdecedor que fazia, sem falar da poeira e dos
solavancos repentinos quando passava desavisada por algum tronco de pedra ou buraco na
estrada.
Quando manobrava para fazer a curva da estrada do Jardim, que mudava a direção do
poente para o norte, no alto de uma pequena ladeira existia agora um mataburro, obstáculo
recém construído por Carijó, filho do influente Doutor Noberto Baracuhy. Zé Lino não sabia
desta novidade; e a dianteira de seu caminhão acabou sendo tragada pelo mataburro, que era
feito de madeira e não de trilho de trem. Este tinha dois buracos nas bordas e um no meio. A
conta certa para somente o Jipe daquele proprietário passar.
Resultado: Nova confusão. Uns partiram para cima de Zé Lino, acusando – o de ser
mau motorista, displicente. Outros, mais exaltados, queixavam – se do velho Baracuhy, que
havia feito aquela verdadeira armadilha para o caminhão não mais passar por ali e fazer subir
poeira.
- Tu divia tê é pegado a camím da Santana, Zé Lino! – Diziam os passageiros.
- E agora? Cuma é que eu vô levá a fêra im casa? – Pergunta Vicência, de Mané
Roldão, justo na rara vez que saiu de casa.
- Rapaiz, ói. Num me aperrêi não, sinão eu mando tudim se lascá pra lá
- Mais Zé, tenha carma. Só arrepare no tanto de cáxa e sacola de fêra desse povo. Tem
condição da gente levá essas coisa na cabeça? Num tem! – Rebate o velho Zé Pio.
- Faç’ussiguinte. Num vô cobrá passage de ninguém não. Pronto! Vão a pé andano lá
na casa de Zé Aivo e frete dele e dur moradô dele umas cinco carroça de jumento que dá pra ir
levá as fêra de vocêis im casa. Pronto! Já tô lascado mermo. Pode ir.
- Aí o sinhô vai ficá sozim aqui no mêi do tempo, é? - Pergunta faceiramente Maria
das Dores.
- A sinhora vai me fazê cumpanhía na buléa do caminhão?
- Eu só le fiz uma pergunta, caba grande e besta! Inguinorante!
Mesmo contrariados, os passageiros acharam razoável a ideia de Zé Lino e partiram
todos em direção à casa de Zé Alves, sobretudo pelo fato de Zé Lino não ter cobrado
passagem, pois o frete de uma carroça de burro é bem mais em conta. E assim, lá se foram
todos. Todos, exceto Zé Pajaraca, que ficou por ali, sem muita ação.
- Oxente, Pajaraca. Num vai levá no burro as suas coisa não?
- Intão, cumpade. É purquê... Eu ia pidí pro sinhô botá o preço da ôta currida e essa na
conta, num sabe?
- Ah, e era? E num ia me pagá as ôtas currida atrasada no fiado hoje não, Pajaraca? Eu
só le levei por você ter dito que ia.
- Quando eu recebê dinhêro eu le dô, cumpade. Sem farta!
- Tu recebê dinhêro de quê, Pajaraca? Se tu só fáiz raiva? Ói, eu vô ficá cum sua fêra!
Pode ir simbora, vá!
- Num fac’isso não, cumpade, sinão Bigaí me cob’ na péda eu chegano im casa sem
esses breibôto aí...
- Posso fazê nada. Aprenda a pagá suas conta!
- Ô rapaiz… Qué dizê intão que tamo acertado no negóço das passage pelo meno? –
Pajaraca não viu outra saída.
- Rapaiz, pelo que tô veno, o preço da minha passage é mais caro do que esses bascúi*
*mato seco arrastado em enchente (basculho). aí que você chama de fêra. Mais tá, vá. Mim dêxe im páiz

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aqui pr’eu vê comé qu’eu faço pa disapregá o caminhão desse buraco. Eu devo de tá pur’aqui
até amenhã pelo jeito. Se você mim trucé pel’umeno o dinhêro dessa ôta currida, você pode
levá sua fêra.
- Mais e se eu num pudé trazê?
- Aí intão vai pa caxa das alma! - Sentencia Zé Lino, irônico.
- Tá inhordi, cumpade. Vô vê s’eu disinrolo o denhêro. Boa tarde, cumpade.
- Tá bom. Boa tarde, Pajaraca.
Quando já tomava certa distância, Pajaraca lembra – se de um item valioso, do qual,
não poderia abrir mão de jeito nenhum, e volta:
- Ô cumpade, num tinha como eu levá u’meno o lito de cana e ar laranja não? É que eu
ia fazê um licô po meu minino que tá pa naiscê...
- Licô, né? Sei…
- É. Licô de laranja. Quando o cumpade tivé ino pra’quelas banda qu’eu moro, tá
cunvidado pa bebê o mijo do minino!
- Hum. – Acena Zé Lino com a cabeça, já cortando conversa.
- Apôis eu vô – me já! Vô lá, cumpade!
- Vai lá...
Enquanto Pajaraca se embrenha na mata, cortando caminho até em casa, Zé Lino
resmunga:
- Vai timbóra, presépe. Eu lá sô cumpade de caba inrolão, rapaiz? Mim respeite!

Zé Pajaraca

CAPÍTULO I
Sítio Jardim / Sítio Lameirão – Distrito de Cabaças.
O que dizer em casa?

Durante a caminhada, Zé Pajaraca, que tinha bebido umas 4 ou 7*, consumido bebida alcóolica
além da conta. foi logo criando uma boa desculpa para justificar o porquê de não ter trazido a
feira, e para ver se ganhava tempo para conseguir resgatar a mercadoria no dia seguinte.
Quando pisa no terreiro de casa, Abigail, sua esposa, já o recepciona aos berros:
- Ave, Zé!. Pensei que tu num vinha mais!
- O que foi, Bigaí?
- O que foi? Dérne de cedo que tu sai e só chega uma hora dessa? Ninguém nessa casa
cumeu hoje não, sabia? Minha sorte é que tinha fumo pro meu cachimbo, sinão eu ia dá um
passamento!
- É que o caminhão inganchô no mataburro ali, aí eu num truce a fêra, mái tá tudo lá.
- É, mais o lito de cana vêi cum tu, né?

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- Não, bagage de mão dá pa trazê...
- E quem ficô lá cuidano das coisa, hein?
- Ficô Zé Lino mêrmo.
- Vala minha nossa sinhora, e agora? Eu já tô caíno das perna aqui e num pudê fazê
janta?
- Só se você fô lá na cas’de cumade Regina pidí mêi pacote de cuscuiz, purquê eu
também num cumi derêito não. Tô é cuma ressaca da gota serena e cum dô de cabeça.
- Eu, Zé? Eu passei o dia todim contano que tu chegasse pelo meno cu’ma péa de
linguiça pra vê se a gente tirava a noite aqui e tu dêxa tudo lá?
- Não, eu truce duas laranja.
- Issaí é pra você tumá cum cana! Tem cinco minino aqui lascado de fome! Até parece
que uns bago de laranja séive pra aguma coisa!
- Na verdade, só tem laranja e mêa, purque eu vim cumêno uns bago da ôta...
- Ave, Maria, Zé. Eu num tem nem cara mais pa pidí coisa na cá’dos ôto não!
- Mái num é imprestado? Intão?! Eu ricibi dinhêro e fiz a fêra, mais num truce purque
butaro tudo numa cáxa só e fecharo cum um nó que num tem cristão que disate.
- É, né? Mais abriu a cáxa só pra tirá a cana. Pudia tê trazido u’mêno um pacote de
fuba pra vê se nóis jantava aqui. – Diz Abigail, decepcionada.
- É que eu tava cum a mão ocupada trazêno a cana, Bigaí… Já disse.
- Oxi, e a ôta?
- A ôta era cum laranja!
- Sei não, viu? Apôis intêrta* *Entretenha essa minineira aí inquanto eu chego.
Nisso, Abigail sai em busca de algo que possa matar a fome de sua prole nas casas
vizinhas. Primeira parada: A casa grande, morada de Alcinda e Severina e do velho Joaquim
Nunes, que vivia na calçada, sempre rezando com um rosário na mão.
É pisar no terreiro da casa grande que Bradamante, o cachorro de lá, já faz a sua
calorosa acolhida de latidos, anunciando a visita. Abigail, que não era besta, tratou logo de
encher a mão de pedra para o caso do cachorro avançar em direção às suas canelas.
Abigail, a certa distância bate palmas, chamando o povo da casa:
- Cumade Sivirina... Cumade Arcinda... Cumpade Juaquim!
- Ôpa, cumade! Entra, muié. – Recepciona Alcinda.
- Chame o cachorro, cumade. O bicho tá é brabo hoje.
- É, tem dia qu’êle tá atacado. Vai pra lá, cachorro!
- Entre, cumade, chegue. – Convida Severina.
- Coméc’ tão as coisa, cumade? – Pergunta Alcinda, passando o ferrolho na porta de
baixo.
- Tudo cas’ urêa na cabeça, cumade. Eu vim le aperriá aqui...
- Qué isso, cumade, né aperrêi ninhum não. Diga aí.
- Foi Zé, que chegô bêbo e sis’queceu da fêra de novo. Ai tava eu isperano ele chegá cum as
coisa aí ele chegô cu’ma cunvéssa de que o caminhão inganchô – se no mataburro e num sei o
quê lá... Eu só num disse – le umas coisa por causo que eu tava sem força pa dá – le uns grito!
- Tô veno que tu tá cansada mêrmo, cumade. Arre Maria! – Concordou Severina.
- Dê água a ela... – diz o velho Joaquim Nunes, pigarreando.
- Pricisa não, cumpade Juaquim. Brigado.
- Mais o negoço do caminhão foi verdade, cumade. Evanim foi fazê minha fêra e vortô
de mão abanano. - Completa Alcinda. - Ele vêi aqui só pegá a carroça do jumento pa dexá fêra
na casa do povo pur’aí.

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- E foi? Eita, ó? É qu’eu ia pidi a vocêis imprestado um pacote de cuscuiz, pr’eu fazê a
janta lá em casa.
- Eita, cumade. Pió que tamo sem. Evanim num chegô ainda e hoje nóis vamo jantá lá
na cas’ de Cumpade Zé Aivo, mais é lá pa mastarde, porque nóis só vai quando Evanim
Chegá.
- Intão eu vô lá, é o jeito.
- Vá lá que tem, cumade – Aconselha Alcinda.
- Eu vô.
- Vá discurpano aí quarqué coisa, cumade! – Desculpa – se Severina. - É por que num
tem mermo aqui.
Nisso, Abigail respira fundo para juntar forças para descer e subir a ladeira até a casa
de Regina de Zé Alves. Dez minutos de caminhada, Abigail aparece de frente á casa de Zé
Alves.
- Ô de casa!
- Quem é? - Diz Regina, lá da cozinha, sem abrir a janela.
- É Bigaí, de Zé Pajaraca, cumade.
- Ôpa, cumade. Tud’bom?
- Tudo ino, cumade.
- Entra, cumade. Zé, é cumade Bigaí!
- Opa. Boa noite, cumade.
- Boa noite, cumpade Zé Aivo.
- Diga uma nuvidade bem boa.
- A nuvidade, cumpade, é que o caminhão de Zé Lino se quebrô - se no mataburro da
entrada pra cá e a fêra da gente ficô lá.
- Eita, pur’isso que Mané num chegô ainda. - Conclui Zé Alves
- Que Mané?
- Mané, o meu mai véi, que casô – se a pôco tempo.
- Ah, se lembrei. Casô até mais cumade Nevinha lá de Catinguêra, né? Ele ia fazê a
fêra de vocêis tomém?
- Não, ele foi só resovê as coisa dele. Deve de tê ficado lá cum Zé Lino intão.
- Pra mode d’ele num ficá só, né cumpade Zé?
- É, tumara que sêje.
- Intão, cumpade. É que Zé chegô bêbo, num sabe? Aí ele dexô a cáxa da fêra lá no caminhão
e nóis fiquemo sem janta, aí…
- Regina, cace aí um pacote de cuscuiz e reparta aquela tira de tripa que Putruco dexô
aqui pa cumade Bigaí. Acho qu’ele num vem buscá mair não...
- Nam, cumpade. Mêi pacote já dá. É só pra hoje e lá eu faço e boto uma natinha.
- Amanhã nóis já dá de vorta.
- Oxi, cumade. Quem danado é que faz questão por cuia de farinha de míi? (*Milho)
Dêxe pra lá, pode levá.
- Intão apôis brigado, seu Zé. Dêur le pague!
- De nada, cumade.
- Ô cumpade...
- Ôi, cumade.
- Tem como cumpade me arrumá uns carocim d’água. Teu sogro me ofereceu e eu nem
quis, mais agora eu tô cum sede...
- Tem, cumade. Mais o véi Juaquim é meu pai. - Ri ele.

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Zé Alves, muito bem acomodado em sua espreguiçadeira, vira para o lado e convoca
sua filha:
- Ô Nita, arrume uma aguinha no pote pa cumade Bigaí aqui. Vá lá, cumade, vá.
- Eu tô apregada nas cuxtura aqui, papai… Peça aí a Lurde ô a Quinha…
- Chegue, dona ‘Bigaí... Tome... – Prontifica – se a pequena Quinha.
- Vá discurpano aí, cumade, é qu’eu num posso largá aqui não sinão eu perco o ponto
da máquina...
- Tem nada não, Nitinha, eu sei como é...
Abigail toma dois generosos copos d’água. Sacia a sede, se despede de todos e toma o
rumo de casa.
- Cuidado mode lacraia no mêi dêsse mato, cumade! – Alerta Regina.

Abigail

CAPÍTULO II
A Janta Garantida

Após quarenta minutos de muita peregrinação, eis que Abigail chega em casa. A porta
entreaberta, é menino chorando de um lado, menino puxando a saia dela do outro, cocô e xixi
por toda parte de gato, menino e cachorro. Ao fundo, Zé Pajaraca sentado à mesa, n’um sono
tão pesado que a baba já escorria pela mesa e pingava no chão.
- Ave, a pessoa manda Zé olhá ur minino e quando eu sai de frente de casa ele já
agarra no sono! Saí daí minino! Homi, esses minino vão terminá cumêno o rebôco da casa
todinha, meu pai!
- Mãe, eu tô cum fome! – queixa – se um.
- Peraí qu’eu vô fazê a janta. Vão lá pra fora, vão! Pixte!
- Januáro obrô lá na sala, mãe! – Acusa Firmina, a mais velha, com treze anos
aproximadamente.
- E você num tá perto uma hora dessa pa impatá ele de fazê um sirviço desse, né?
- Quando eu vi, ele já tava cum a boca melada de cocô, mainha.
- Ô meu pai... Esses minino vão dexá eu doida! Apois pegue a pá e vá lá apanhá, vá!
- Eu mêrma não, mainha. Eca!
- É o quê, homi? Tá me disobedeceno, é?

13
- Não, mais eu num quero limpá nem apanhá cocô de ninguém não, eu já tumei bãe!
(*banho)
- Mais vai sim. E né pa me disobedecê não, viu, sinházinha ma’luvida? *(mal – ouvida,
desobediente).
- Num vô apanhá não!
- Apanhe, sinão apanha! – Ameaça Abigail, já se abaixando para pegar a chinela.
- Dê n’eu não, mainha! Eu vô, eu vô!
- ...
- Mais eu num tõ dizeno mêrmo? Uma bichota dessa trocano juízo mais eu aqui!
Passados alguns minutos, Abigail prepara o cuscuz com a tripa torrada e da janela,
berra avisando que o jantar está pronto:
- Vem cumê o cumê, minino!
A menineira vem desembestada, gritando, pisando em rabo de gato, escorregando em
sabugo, pisando em poça de mijo e chega no pé da trempe* fogareiro improvisado. Abigail,
contente, despeja boa parte do conteúdo da cuscuzeira n’um grande caco de pote e põe no
chão, distribuindo em seguida seis pequenas colheres feitas de pau e catemba* Metade de um côco;
casca. de côco. Até a ordem de distribuição dessas colheres era motivo de conflito:
- Ô mãe, purquê a sinhora deu primêro a cuié dela?
- Mãe, e eu vô recebê por utimo, é?
- Mãe deu premêro a culé pra eu purquê ela qué mais bem a eu, né não, mãe?
- Eu quero bem a tudim d’um jeito só! Coma esse cuscuiz calado pa mode de num
si’ngasgá!
Foi só o tempo de Abigail terminar de falar e um já botou pra tossir, pondo a mão na
garganta , salpicando cuscuz p’ra todo lado!
- São Braiz, São Braiz, São Braiz! Traiz água pra teu irmão aqui , Firmina!
- Ô mãe, eles vão cumê minha parte todinha! Quem mandô ficá de qui-qui-qui na hora
da janta?
- Homi, o pote é aí atráis de você! Vá, ninguém bóle na sua parte não!
- ...
Pratos de louça eram mais caros do que pratos de metal, que por sua vez eram mais
caros que os feitos barro. Entretanto, na casinha de Pajaraca não tinha tanto luxo assim. Lá a
criançada tinha que se virar com aquele grande caco de pote, que girava ao sabor das
colheradas, e Abigail precisava ficar atenta para ninguém comer mais que ninguém.
Uma vez servida a refeição de quem tinha prioridade, ou seja, as crianças, Abigail as
despacha cada qual para sua rede, que na verdade, eram somente três. E dois dormiam em
cada uma. Firmina, que já era mocinha e tinha recebido de presente uma rede de sua madrinha
Vicência, agora dormia sozinha na própria rede. Com isso,
finalmente Abigail consegue desfrutar de seu jantar. Como sua dentição estava quase
resumida a nada, derrama café dentro de seu cuscuz para amolecer. Debruça – se na mesa e
saboreia seu delicioso cuscuz com tripa. (É gostoso mesmo!). Terminada a refeição, dirige –
se à frente da casa para pitar seu cachimbo, a sobremesa.
Nesta pedra, Abigail conforme vai pensando na vida, vai misturando esses
pensamentos à fumaça de seu cachimbo. Não tinha horas em casa, mas sabia que quando a luz
do lampião da casa grande se apagava lá no horizonte, já passava das oito. A esta hora,
Severina, Alcinda e o velho Joaquim Nunes, moradores daquele casarão, já se preparavam
para dormir.

14
Nesta mesma pedra, Abigail ficou por algum tempo, como todo dia fazia. A escuridão
era total, sendo que apenas era contrastada com um pequeno ponto amarelo – avermelhado
que ora ficava mais forte e depois mais fraco, ou seja, a própria chama do seu cachimbo.
Abigail não se queixava da dura vida que levava, nem tinha noção do quão dificil era. Assim,
também não via necessidade de fazer algo para melhorar. Não conhecia outras vidas senão
aquela para poder comparar.
Passados mais alguns minutos de reflexão, ou melhor, de pensamentos no vazio, eis
que surge Pajaraca tateando a parede, vindo em direção à sua esposa iluminando o caminho
com um tição de carvão aceso, preso a um arame emoldurado já para esta finalidade.
Ele, ainda sonolento da bebida e com um pouco de cefaleia, tem certa dificuldade para se
contorcer e assim evitar de peitar nas redes dos seus meninos:
- Bigaí?
- Oi.
- Trucésse arguma coisa pa janta?
- Qué que tu acha, Zé? Se num tivesse tido janta hoje ur minino tava durmino?
- Hum. Fizesse o quê?
- Cumpade Zé Aivo arrumô cuscuiz e tripa.
- Sobrô quaqué coisa?
- Dexei o seu tanto lá.
- Intão eu vô lá.
- Vá mais venha cumê aqui fora, sinão você acorda todo mundo cum esse seu
caquiado.
- Mió é eu arrudiá intão.
Pajaraca dá a volta na casa e entra na cozinha pelos fundos. Vê sua comida na mesinha
e aproveita o resto do cuscuz, misturando com um pouco de tripa e joga o resto para o
cachorro, que vorazmente devora aquela mistura crocante. Dirige – se novamente por fora da
casinha até onde se encontrava Abigail.
- Fasta aí, Bigaí…
- Comé que aquele caminhãozão daquele tamãe caiu dento dum mataburro, Zé?
- Rapaiz, nóis quando fumo, fumo pur’ôto canto aí num vimo derêito...
- Zé Lino foi pelo camím da Santana, foi?
- Foi, só que na vorta ele passô direto na istrada do Grotão, aí foi ino, foi ino,
quande’fé, mermo na cuiva tinha um mataburro, e cum um buracão no mêi.
- Pu’certo o cimento tava mole, intão...
- É, num sei não.
- Mais purquê tu num trucésse a fêra na cabeça? Tu num é acuxtumado a trazê coisa
mais pesada?
- Nam, eu tava cansado – Disfarça ele, pigarreando e se engasgando com a fumaça do
cachimbo.
- Sei... Qué sabê? Vô é durmi.
- Ei...
- Oi.
- Vai levá o cachimbo?
- Não. Pode ficá cum ele. E num vai se deitá agora não?
- Terminá o cachimbo aqui eu vô.
- O cachorro tivé dento de casa, bote pra fora. – diz Abigail.
- Tá certo.

15
Após um dia tão penoso e cansativo, Abigail se deita na sua cama de colchão de palha
e se envolve em seus finos trapos, buscando algo que os ricos chamam de sono, mas os pobres
chamam de desmaio. Não demora muito, Pajaraca também chega. Ao pé da cama, lava os pés
(somente eles) n’uma bacia branca de ágata com água pela metade esfregando um no outro
em seguida se deita. Seu dia também não tinha sido nada fácil. Ficou lá pensando em como
reaver sua feira no dia seguinte.
Desde que voltou a morar no Lameirão, Pajaraca quase sempre as mesmas compras,
aliás, apenas ia até Patos e ficava na frente da casa do prefeito Darcílio Wanderley aguardando
a distribuição de umas cestas básicas para alguns chegados (moradores de aliados políticos).
O que dava para vender, ele vendia. Todo o excedente em dinheiro, comprava de cachaça.
Sabia de cór o que continha aquele caixote de madeira de carregar cebola ou alho. Os itens
abaixo descritos estão em ordem de importância:
• Um pacote de fumo Dubom;
• Um maço de fósforo Argos;
• Uma rapadura mole (batida);
• Cinco pacotes de cuscuz Nutrivita;
• Uma lata da pequena de margarina Primorina;
• Um saco dos de cinco quilos de arroz Paraense;
• Um pacote não pesado, mas com aproximadamente três quilos de feijão;
• Um pacotinho de Colorau;
• Quinze bananas;
• Dois quilos de bofe;
• Três pacotes de café moído;
• Dois quilos de açúcar;
• Dois quilos de farinha;
• Meio quilo de tripa de porco;
• Um quilo de linguiça.
Os itens acima descritos garantiriam o sustento daquela prole por aproximadamente
dez dias, já descontando o que tinha de ser pago de empréstimo aos vizinhos.
Abigail, por sua vez, rolava de um lado para outro na cama. Não tinha comido
absolutamente nada o dia inteiro. Distraiu o metabolismo apenas pitando o cachimbo. À noite,
comeu cuscuz demais, sendo que a tripa ofertada por Zé Alves, trazida por Alfredo Putruco
sabe – se lá de onde, estava com um aspecto duvidoso; e sem mastigar direito, já que seus
poucos dentes ainda restantes na boca se resumiam a pequenos cacos. Para piorar, não tem o
costume de beber água com frequência. O resultado não poderia ser outro: Má digestão.
Então, de madrugada:
- Ô Zé, acode eu aqui!
- Que foi, muié? – Diz ele, esfregando os olhos e se espreguiçando.
- Tá me dano umas coisa...
- Uai, receba.
- É umas coisa ruim...
- Intão deixe pra lá. Bora durmi...
- Tá me dano uma agunia, Zé! Tô c’uma dô no bucho...
- Issé hora de se sintí ruim, muié?
- Eu acho que foi a tripa.
- A tripa? Tu tá canso de cumê tripa cum farinha o tempo todo, Bigaí.
- Sim, mais... Eu tô cum vontade de vomitá!

16
Zé Pajaraca, que morria de medo de vomitar, dá um pulo da cama, assustado:
- Arre, Maria, Bigaí! Num vomite não!
Abigail se senta ao pé da cama e lá fica respirando fundo, se tremendo e tentando se
segurar. Mesmo com todo esse alvoroço, ainda consegue ordenar as ideias e fazer um pedido
ao esposo, que a essa altura também já estava tão enjoado quanto ela, de tão nervoso:
- Zé, acorde Firmina e mand’ela fazê um cházim de pepaconha pa mode vê s’êu
iscapo!
Zé atende o pedido, dando graças a Deus por ter encontrado um motivo para sair dali e
não ver ninguém vomitar.
- Firmina, ô Firmina... – Diz Pajaraca, remexendo os punhos da rede da filha.
- Hum? O que era, pai? – Pergunta ela, esfregando os olhos e se espreguiçando na
rede.
- Levante e vá fazê um cházim de pepaconha pra nóis, que nóis tamo aqui se acabano
de dô no bucho...
- Ô pai, num dá pa isperá inté amenhã não? Mainha mêrmo fazia o chá...
- Ela que tá pidino o chá. Vá lá, vá...
E Firmina sai pisunhando e resmungando por ter que acordar de madrugada e fazer
chá.
- Homi... Djabo de chá! – Queixa – se ela.
Enquanto isso, lá dentro da casa, o aperreio tinha mudado de figura. Abigail, depois de
ter botado p’ra fora cuscuz e tripa do tempo que era menina, tenta se recompor, caminhando
se segurando nas paredes e vai ajudar o esposo, que a essa altura, também não estava nada
bem.
- Bigaí... Butass’aonde meu pinico, hein?
- Ah, e é eu que sei, é Zé? Ai meu pai do céu, que agonia...
- Repare se tá imbaxo da cama, muié...
- Tá aqui, vancê qué é?
- É, criatura! Avíe cum esse pinico qu’êu tô mim acabano de dô de barriga aqui!
Sem perda de tempo Zé Pajaraca rebola o penico no chão e manda brasa. Dava cada
gemido de dar dó. Logo depois que terminou o serviço e voltou para a cama:
- Ai, meu Deus do céu, eu vô morrê! É hoje, Bigaí...
- Homi, dêxe de sê frôxo! Eu passei muito mais ruim e tô aqui.
- Cadê Firmina que num vem cum esse chá?
- Tá já terminano, pai. – Grita Firmina, lá de dentro.
- Fique fungano pa já ficá sintino o chêro do chá!
Mais um pouco, Firmina aparece por trás do paninho esvoaçante que servia de cortina
para a porta do quarto do casal:
- Pegue, paím. Ó o chá aqui.
Pajaraca sorve um pequeno gole, que lhe provoca engulhos de todos os tamanhos.
- Arre Maria, Firmina! Esse chá tem gôxto de fé!
- É pa mirorá logo, pai.
- Ô terminá de morrê de vêiz, né?

17
Firmina
CAPÍTULO III
Sítio Lameirão / Sítio Goiabeira
“Sempre Deus manda alguém por nós”.

Na manhã seguinte, Pajaraca acorda ressacado, mas com uma missão a cumprir:
Reaver sua feira antes que o caminhão fosse retirado do mataburro. O Sol já incidia bastante
inclinado pelas frestas do telhado, o que significava que já se passavam das nove horas.
Rapidamente ele levanta e sai. A mulher e as crianças ficaram esperando ele trazer a
feira e saciar um pouco a fome daquela pequena multidão.
Primeiro ele procura Mané Roldão:
- Bom dia, cumpade Mané.
- Bom dia, cumpade Zé.
- Cumpade, eu quiria fazê uma impeleitada aqui mais tu...
- Diga, cumpade.
- É qu’eu tava pricisano dum adeantamento, num sabe?
- Adiantamento? De quê?
- De denhêro, cumpade.
- Mais se nem trabaiadô meu tu é, cumpade.
- É, mais... eu poss’ sê, né?
- O cumpade vá mim adiscurpano, mais... Eu nunca vi o cumpade ino atráis de siviço.
O povo aqui é que vai le oferecê. O que foi? Tá fazeno promessa?
- Sab’o que é, cumpade? Foi por causo de Zé Lino.
- E o que foi?
- Tu subésse, né? Onte o caminhão dele sin’ganchôsse lá no mataburro de dotô
Baracuí...
- Sube, cumpade.
- Ele dexô todo mundo que tava cum ele ir simbora sem pagá, só não eu.
- Oxe, e por causo de quê?
- Eu num tava cum denhêro pa pagá carrocêro nem tava cum o de pagá as currida
patrairmente.

18
- Eita, cumpade. Aí tombém, né? Num sei nem com’êle dexô tu vim ainda sem tê pago
as de antes. Foss’ uôto, nem subi no caminhão tu subia.
- É mais só que num tem ôto não cumpade. Até tinha, mais eu num me alembro quem
era...
- Era eu.
- ...
- Intindi, cumpade...
- Mais nunca dirigi não, pur’isso qu’êu vendi.
- Intindi, cumpade. – Repete Pajaraca, entristecido com a indireta, e já se voltando
para a estrada novamente.
- Agora ingraçado, Pajaraca. Tu deve a todo mundo aí conta muito maió e que o povo
até le cobra mais, intão pur causo de quê tá quereno pagá logo Zé Lino?
Zé Pajaraca ficou envergonhado de dizer o verdadeiro porquê a Mané Roldão, que iria
enchê – lo de perguntas e depois sair comentando, aumentando a história.
- Cumpade Mané, o sinhô tá certo. Mió eu ir simbora agora. ‘Té mais.
- Inté, cumpade. Ói, se interessá, amole um facão e derrub’ essa juremêra todinha aí
que quando eu vendê os pau eu le pago uma pataca!
- É siviço muito pesado e no Só quente, cumpade. Fora qu’eu tô cum o ispinhaço
dirmantelado.
- Ah, e tá, é? Dexe tá que depois eu vô le arrumá um siviço de veriadô. – Diz mané
Roldão, em tom irônico.
- Esse eu quiria, cumpade. ‘Té mais...
- ‘Té mais, Pajaraca.
Na primeira tentativa, Pajaraca não obteve êxito. De lá, pega a estradinha rumo à casa
de Joaquim Nunes e suas filhas balzaquianas de meia idade Alcinda e Severina. Boas pessoas,
mas que só oferecem ajuda a quem lhes pagar com duas.
- Ô de casa...
- Arrudêi, seu Zé. Tam’aqui atráis, chegue.
- Bom dia, minhas cumade.
- Bom dia, cumpade Zé. Mand’as órdi. – Diz Severina.
- Deu certo lá o negóço da fêra? – Pergunta Alcinda.
- Deu, cumade. Bom todo… - Responde ele, inseguro.
- Sei... Mais o cumpade tá pricisano de arguma coisa?
- Eu tô pricisano de siviço, cumade, que Firmina, a minha mái véa vai fazê premera
cumunhão e eu vô tê arrumá as coisa...
- Eu sei... De tê tem, cumpade. Cumpade qué puverizá as batata ali no baxíi?
- Agora, cumade!
- Intão se quisé pode cumeçá agora.
- Ô cumade, eu pensei mió, tinha como cumade Arcinda fazê duas coisinha pra eu?

- Er’uquê, cumpade?
- Não, era que... Tinha como cumade me dá um adeantamento e eu cumeçá a vim só
amenhã?
- É o quê, homi? E que siviço é esse que paga na frente, que nem roçadêra?
- Nem que fosse só uma parte...
- Ô cumpade, o sinhô num sabe que num pode sê ansim, né?
- Num pode purquê intão?

19
- O sinhô puveriza, aí o povo faz a coieita, eu vendo e quando abá é qu’êu le pago.
- Mais isso demora. Num tinha com’a sinhora me arranjá u’meno uma parte não?
- Im dinhêro vivo? Tem não, cumpade. Tamo lisa, batêno!
- Apois tá certo, cumade. Bom dia.
- Bom, cumpade Pajaraca, boa sorte.
Pajaraca falha na segunda tentativa de conseguir dinheiro. As chances dele conseguir o
que precisava estavam acabando. E pior, conforme o tempo passa, mais provável é de o
caminhão ter saído de onde estava preso e o seu dono mora no Goiabeiras, muito longe dali.
- Má rapaiz, eu num tê consiguido ninhum vintém cum esse povo, é fogo! Eu num tem mais a
quem pidí não. Só se... Eu me oferecê pá ajudá Zé Lino lá a impurrá o camenhão, sê ajudante
e tal. Mais o pió é que ele vai fazê mangoça e capaiz de nem querê. Homi, eu num vô
indoidecê não. Se ele num quisé, pobrema dele. Vai sê o jeito eu dizê a Bigaí.
Nisso, já quase a meio dia, ele pega a estrada do Lameirão rumo ao mataburro na
divisa com o sítio Jardim. A certo ponto, se encontra com Zé Alves, que voltava da luta com o
gado em cima de um cavalo:
- Digaí, Zé Pajaraca. Tud’bom?
- Tudo maômeno, cumpade.
- E o que foi, homi?
Pajaraca exita a princípio, mas o dia já estava quase consumindo a manhã e seus
meninos ficaram em casa morrendo de fome. Foi então que ele resolveu contar:
- Foi Zé Lino, cumpade, que num dexô eu trazê a minha fêra purque eu num tava com
o denhêro da passage.
- Má rapaiz, Zé Lino feiz isso de novo, foi?
- Foi, cumpade.
- Sabe se ele tá lá no mataburro ainda?
- Eu tava ino lá pra vê e oferecê siviço pa mode d’ele devorvê minha fêra.
Zé Alves olha para longe com um grande ar de desapontamento. Em seguida, convida:
- Cumpade. Vamo lá nesse mataburro tirá essa hixtóra a limpo. Suba aí.
- Eu num tem armanha de andá de cavalo não, cumpade. Eu tem medo.
- Tu num anda de jumento?
- Ando, mais jumento é perto do chão...
Como não estava longe de casa, Zé Alves desce do cavalo e acompanha Zé Pajaraca a
pé, para melhor se inteirar dos fatos.
- Lá im casa eu vô incangaiá o jumento e nói vai de carroça até lá.
- E s’êle num tivé máir lá, cumpade?
- Nói vai lá na Goiabêra.
- Arre Maria, pricisa não, cumpade. É longe.
- Nam, cumpade. Aqui é cumigo e Zé Lino. Ele num era pa tê feito isso cum você não
nem cum mair ninguém não! Semana passada, foi cum dona Mãe Rosa; ele tá cumêno corda
dimais...
E de fato, quando chegaram no local indicado, só restavam os cacos e os ferros
retorcidos do mataburro. Zé Lino já tinha levado o caminhão.
- Pois é, cumpade Zé. Zé Lino foi simbora e agora é o jeito eu criá corage e dizê a
Bigaí o que se assucedeu. – Lamenta – se.
- Num minta pra sua muié não, cumpade. De todo jeito você diga a ela. Mais bora
antes lá nas Goiabêra que Zé Lino tá pensano que tá fazeno negóço cum minino!

20
A estrada até a casa de Zé Lino, no sítio Goiabeiras era muito longa. Dava mais de
duas léguas. Zé Pajaraca não entendia aquela atitude de Zé Alves, parecia até ter comprado a
briga. Zé Pajaraca era um homem muito pacato. Suas cachaças só ofendiam a ele mesmo,
nunca brigaria com ninguém. E aquela cara de Zé Alves não parecia nada amistosa.
Após quase uma hora de viagem na carroça de burro, os dois apontam no terreiro de
Zé Lino. A esposa sai na porta, enxugando as mãos para ver quem era a visita:
- Pôir não, meu sinhô?
- Zé Lino tá pur’aí minha sinhora? – Pergunta Zé Alves.
- Zé deu uma saidinha, meu sinhô...
- Ele demora?
- Nem sei, meu sinhô. É da parte de quem?
- É Zé Aivo, fíi de Juaquim Nune...
- Ah, sim. Entre, entre. Ele foi caçá rolinha. Se num tivé achado nada ele vem
armunçá.
- Intão nóis ispera! – Diz Zé Alves.
- Mais entre, chegue. Aí tá no Só quente.
- Aqui tá bom, sinhora. Brigado, noi vamo ali pas algaroba.
Os dois colocaram a carroça sob as sombras de umas algarobas ao redor da casa e lá
ficaram conversando e pitando seus borós para matar o tempo.
Pajaraca estava ficando cada vez mais preocupado. Por um lado, pensando na sua
família esperando a feirinha, que nem o café da manhãtinha tomado, e por outro, estava
preocupado pela expressão nada satisfeita de Zé Alves com Zé Lino.
O Sol fervia às 13 horas daquele 15 de setembro de 1952. Sentados na carroça à
sombra do pé de algaroba, depois de muito esperar, eles observam uma figura humana
indistinta aparecendo entre as ramagens secas da caatinga sobre uma montaria. Era Zé Lino,
que já se dirigia à carroça para ver quem o aguardava. Quando percebeu que se tratava dos
Zés Pajaraca e Alves, o Lino engoliu seco. Parou a jumenta um instante antes de prosseguir.
Ele já sabia o que seus visitantes queriam. Como cada segundo parado ali o tornava mais
culpado ainda, criou coragem e se aproximou:
- Boa tarde, meus cumpade.
- Boa tarde. – Respondem os dois.
- Mand’as orde aí.
- Vim buscá o caminhão, Zé Lino.
Pajaraca se assusta. Zé Lino mais ainda:
- Oxente, cumpade. Que negóço é esse? O caminhão num tá a venda não! – Rebate Zé
Lino.
- Intão você deve tê aí imbaxo do cóchão meus cento cinquenta mião de cruzêro!
- Eu num tô intendeno, cumpade. A gente num tinha feito um acordo?
- Ahh, cumpade Zé Lino, qué dizê que o cumpade num sis’queceu do acordo não, num
foi?
- Eu mêrmo não, cumpade. E tô cumprino, num tô não?
- Eu e Pajaraca vinhemo aqui juxtamente por causo que você num tá cumprino!
- O cumpade tá falano da fêra de Pajaraca qu’eu peguei de pagamento?
- É, cumpade. E minha paciência acabôsse!
- Mais o que foi qu’eu fiz, cumpade, me diga?

21
- O cumpade deve de tá caducano, só pode. Quando eu le imprextei os cento e
cinquenta pau, eu sabia que você num ia pudê pagá. Só arrumei por causo que seu pai foi o
fiadô, mais o cão foi tão ruim que ele morreu.
- Sim, e o quê mais, seu Zé?
- Meu acordo cum você foi como? Toda sigunda fazê a linha cortano as vareda do
Lamerão, levano e trazêno coisa pra minha propédade e os troço dur moradô e sem cobrá nada
de ninhum moradô meu durante treis ano!
- Mais Pajaraca né moradô de ninguém não, esse aí nunca deu uma préga numa barra
de sabão! Nem dento de sua propédade ele mora, uai. -
Pajaraca era moradô de pai, Zé Lino. Mamãe morreu no finzim de 49, pai ficô véi, ficô
doente, o pai de Pajaraca morreu e ele passô a sê moradô meu. Pronto! Nunca tive quêxa
ninhuma dele, e num era pra você tê cobrado nada dele não, rapaiz. Você, um caba até cum
certo intendimento das coisa, fazeno quextão de coisa pôca. Sabia que você tirô o cumê da
boca de quato minino piqueno?
- Agora é seis, cumpade, por causa dos gêmo que naiscêro. – Emenda Pajaraca de
longe, mas que estava de ouvidos atentos à conversa.
- E o cumpade qué qu’eu faça o quê, qué que eu crie uma parte, é?
- Devorva a fêra do cumpade Pajaraca e pronto!
- Ih, cumpade. Onte eu paguei um trabaiadô que ajudô a impurrá o caminhão cum ela!
- Pois você fêiz sua fêra, tire da sua e dê a banda dele.
- Oxe, mais isso num tá certo não, cumpade!
- O que num é certo é você tirá da boca du’ma famía que num tem o que cumê, rapaiz!
- Agora ingraçado, cumpade Zé Aivo, o sinhô nunca foi ninhum santo. Tá defendeno
cachacêro pro mode de quê? Virô biato, foi? Ô tá quereno se canidatá de pulit’co?
- Niuma coisa nem ôta, e você me respeite qu’eu tem idade de sê seu pai! O acordo de
você ir abateno o que me deve é
você fazê a notinha de meus moradô que viajare no seu caminhão e da troçada que eu comprá
im Patos. Você tá fazeno isso? Num tá! Ôto dia você num quis trazê Mineivina, fia de mãe
Rosa, que trabaia lá im casa. Ôta vêiz, quis cobrá uns pôrco que Antôim Gino quiria levá!
Num pense qu’eu num fico sabeno não, qu’eu fico.
- É, o sinhô im vêiz de dá moradia pa trabaiadô, só acói priguiçoso e fofoquêro, num
poss’ fazê nada e...
- Homi, dêxe de cunvéssa cumprida! Me dê a manivela do caminhão, mim dê! –
Interrompe Zé Alves.
Zé Pajaraca, a esta altura, já estava numa tremenda saia justa.
- Pajaraca, o que era que tinha na sua fêra? Faça um ró aí e dê pa muié de Zé Lino butá
num balái e trazê pra cá!
- Nam, Zé Aivo, minha fêra é contada, num dá pa tirá nada não! Tem goiaba branca lá
no meu baxíi. Pode catá lá, Pajaraca. Pode inchê essa carroça se quisé.
- O cumpade Zé Lino me adiscurpe, mais... Eu acho que a gente num tira até o fim do
mêis só cumeno goiaba não... – Contesta Pajaraca, confuso.
- Vamo fazê o siguinte intão. - retoma a conversa Zé Alves - Eu levo a sua fêra
todinha e você que coma essas goiaba aí. Deve de sê bom pra o sinhô tá oferecêno.
- Homi, ói. O sinhô me dê licença qu’eu tô cansado. Essa cunvéssa tá incerrada!
- Só se fô pra você. Me dê a manivela do caminhão agora, me dê!
- Mêrmo qu’eu le désse, comé que o sinhô vai levá, se nem guiá carroça de burro
direito o sinhô sabe?

22
- Você tá bem disaforadim pro meu gôxto, viu, seu moço? Nem que eu vá roçano ur
mato néssa bêra de ixtrada, mai cum você o negóço tá disfeito!
De maneira alguma Zé Lino era má pessoa. Era muito ignorante e bufava pelas ventas
quando alguém lhe levantava a voz. Mas diante da posição de seu credor e dos conselhos
cochichados pela sua esposa, Zé Lino cede, silencia um instante e recua:
- Ói, seu Zé, o sinhô sabe que eu le tem muito respeito...
- Num tá paricêno.
- Dêx’eu continuá. Esse caminhão tem me dado dô de cabeça fáiz muito tempo, num
sabe? E só num agilizei conserto pur causo dus fiado. Quando ele deu o prego lá no mataburro
eu fiquei cum muita raiva. Se teve uma coisa qu’eu tive foi prijuízo!
- Mais eu le dei o ró dur meus moradô, que pode andá no seu caminhão quantas vezes
fô priciso.
- Ninguém aqui sabe lê não, cumpade Zé. Eu tem que puxá pela memóra, e vai mai de
cinquenta passagêro nesse caminhão, fora as cáxa e os bicho. Eu lembrá de tudim é fogo, né?
- E o cumpade aliviô a prosa assim pur causo de quê?
- Por nada. Pajaraca, siga Zumira até a dispensa e lá pode pegá o que fô priciso. Leve
também uma lata de sardinha e uma garrafa de mantêga da terra. É por conta da casa!
- Agora goxtei de vê! – Alegra – se Zé Alves.
Pajaraca não contou conversa. Como sabia de cór quais eram os itens de sua feira,
logo estava de volta com a bacia cheia de víveres.
- Eu num sei nem como ‘gradicê. Eu já tava pensano im tirá cum meu povo pa Patos
pa pidi irmola lá de novo.
- Iss’era antes, Pajaraca. E agora você é moradô meu.
- Dêur le pague, cumpade Zé Aivo!
- Bem, tá tudo muito bom... Tá tudo muito bem... Ispero que o sinhô num tenha
dirmanchado o negóço, cumpade Zé.
- Num vejo máir mutivo não. Vamo simbora, Pajaraca?
- Ôpa!
Nisso, os três Josés se despedem e a história se encerra tranquilamente, graças a
Deus…

Expedito

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CAPÍTULO IV
Sítio Goiabeira / Sítio Lameirão
E as histórias vão surgindo

No longo caminho de volta, Pajaraca e Zé Alves vão jogando conversa fora:


- Sei nem le agradicê, cumpade.
- Nada, cumpade. Tu é de casa, rapaiz. Só veja se diminui essas cachaça aí, cumpade.
Tua muié e tua moça mái véa reclama direto.
- E eu num sei, cumpade? Mais é dérn’de minino que eu sô ansim, cumpade. Num tem
jeito!
- E é, cumpade?
- Eu se alembro que papai fazia a imbira dele e guardava imbaxo da roca de mamãe
fiá. De noite, eu se alevantava na ponta de pé e ia até lá e tumava uma chamada iscondido.
- Ixi, tu era traquino assim, cumpade?
- Oras tá sinão... E derne desse tempo qu’eu sô fumadô tomém.
- Tu tinha quantos ano?
- Eu era mulecote, eu divia tê uns onze ano, puquê iss’era mêrmo no tempo que eu
fazia o caticirmo. Eu se alembro muito desse tempo.
- E era, né cumpade? Tu cumaçasse a... Coisá cigarro cum quantos ano?
- Ah, aí eu era mais piqueno ainda, cumpade.
- Oxi, mai vai dizê que tu também acordava e ia fumá iscondido.
- Nam, aí era imbaxo das venta de pai isso.
- E era?
- Era. Ele e mamãe fumava boró dimais, mais eles vivia ocupado fazeno as coisa, ai
eles mandava eu ir acendê no fugarêro da cunzinha.
- Ah, aí lá tu já acendia na boca, n’era?
- Pió que não, viu cumpade. De primêra, eu mêrmo fazia os boró cum fôia de
bananêro, ô de míi. Aí butava ansim na bêrada da mêsa, aí acendia o fósco. O boró ficava
preto, preto.
Zé Alves ri da narração detalhada de Pajaraca.
- Aí depois fui querêno aprendê e lái vai... Quand’efé, já tava acendeno na boca. Dava
ingasg’ e ingúi de todo tamãe. Hoje eu fumo pa mais de déiz vêiz no cachimbo.
- Unra, djabo! Desse jeito tu morre, cumpade!
- Máis se eu morrê, pelo meno eu se batizei e fiz a primêra cumunhão e Deus perdoa
os pecado d’eu. – Ri ele.
- E fizesse catecirmo, foi?
- Foi mais num terminei não. Papai quiria qu’eu fizesse, mais aí eu uma vez fiz uma
traquinage lá na catredal aí eu levei foi uma pisa grande.
- Rapaiz, e cumpade era traquino assim?
- Homi, cumpade, eu num valia o que o gato interra – Ri ele. – Nessa vêiz er’uma missa de
manhã, da paxão de Crixto.
Tinha mêi mundo de gente lá na catredal. Aí tava lá eu, mamãe, papai e uns irmão meu.
Têv’uma hora que a biata lá chamô eu e mais ôta minina pra sigurá aquela bacia, num sabe?
- Bacia?
- Sim, uma que tem um panim cubrino ela?
- Sabia dessa não.
- Tem cumpade, né a bacia do dírmo?

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- De quê, homi?
- Dírmo.
- Né o dismo não, cumpade?
- É, é iss’aí cumpade, é qu’eu cum êsse dente fartano aqui na frente é ruim dimais pra
falá difice.
- É, é a coleta do dízimo! – Zé Alves esforça – se em falar corretamente. - Sim, mais o
qué que tem a bacia, cumpade?
- Minino, tev’ a hora que o pade cumeçô a cantá lá uns negóço aí o povo foi chegano e
sortano denhêro dento da minha bacia... Minino, eu num aguentei não... Era denhêro dimais,
cumpade!
- Oxi, e tu fizesse o quê, cumpade?
- Butei a bacia nos peito e saí corrêno!
- Eita, muléxta!
- Sei que saíro atráis de mim cum a gota serena. Quando eu vi que o povo tava já perto
de me pegá eu sortei a bacia, aí
foi nota de denhêro pa tudo qué canto, aí saiu o povo e a mulequêra da rua catano. Minino,
cumpade, foi um fuá medõe.
- Rapaiz... eu acho que eu me alembro desse caso. Faiz tempo isso, num faiz?
- Tá pa mais de trinta ano, de certeza. Eu já tô é cum quarenta e dois… Eu lembro que
pai falava muito no tempo que o prisidente era paraibano...
- Eu me lembro assim, pu cima...
- Sei que papai me deu uma pisa e me tirô do caticirmo. Disse que eu só num ia morrê
pagão purquê eu já tinha se batizado quand’era novo.
- Num cheguei a cuincê seu pai não.
- Era caba bom, cumpade...
- Meus irmão tudim déro pra gente, graças a Deus. Só eu, que sô o caçula, que dei
trabai, me dirmantelei na cachaça e tive que se ajuntá cum Bigaí pur causo dela tê imbuchado
de Firmina, im trinta e nove.
- O cumpade tá bom é de dá um nó nessa birimba pa vê se dêxa de fazê minino,
cumpade. Hoje criá minino é difice, tudim qué ir simbora, trabaiá fora e lái vai. O caba
termina é só. Eu tiro por mim. Ficaro só as fia muié lá im casa...
- Nam, agora é o urtimo, cumpade. Dá pra mim mair não...
-…
Depois de um longo tempo de descontraída prosa, os dois se aproximam de casa. Zé
Alves conduziu a rústica charrete pela estrada do Arapuá na intenção de deixar o amigo na
porta de casa, junto com a feira. Encompridou o caminho um pouco, mas pelo menos ocupou
seu dia inteiro, já que os anteriores estavam muito monótonos devido ao casamento de seus
filhos homens quase todos ao mesmo tempo.
Em casa, Abigail e a meninada, a essa altura já estariam verdes de fome devido a tanta
demora. No entanto, Abigail, como não suportava ver seus filhos lhe pedindo o que comer, foi
mato a dentro com um cesto de palha e um facão e só havia voltado minutos depois, com
alguns pedaços de palma. Em casa iria descascar, salgar, torrar e dar de comer à sua prole. Isto
iria enganar as tripas de todos por algum tempo, talvez até a volta do homem da casa. A
sensatez dela dizia que não se admirasse caso o marido não voltasse mais. Tal fato nem é tão
surpreendente assim, pois é o que muitos fazem quando a coisa aperta.
Acontece que com Zé Pajaraca era diferente. Suas cachaças somente ofendiam a ele. E
este, queria muito bem a seus meninos. Outra coisa que sempre estava a seu favor era o

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suporte de amigos como o Zé Alves, que lhe tem uma dívida de gratidão que nem ele próprio
entende bem de onde vem.
A feira foi descarregada por trás de casa. Pelo tanto de coisa que veio, calcularam que
daria tranquilamente para se chegar ao fim do mês.
- Minino, tem uma coisa. Dessa vêiz vêi coisa, viss?
- Né não, muié? Dá até pa dá de cumê ao jumento que ainda sobra!
- Tá bom, também num é assim não, Zé, tá nem cum a gota!
- Oxêm, não purquê? O póbe dérne piqueno só vive de cumê bago de algaroba, tinha
nadinha dá pu bixim uma coisinha diferente veiz perdida.
- E tu vai querê dá cumê de panela pa jument’ é? Oxi!
- Homi, num tem tanta batata aí? Dá até pa prantá o que sobrá! Eu que nunca fui
batatêro, nem você é muito chegada im batata tomém, intão dá pu jumento. Jumento é bicho
bento, muié, é que nem que fosse da famia da pessoa...
- Só se fô da sua, purquê da minha, mermo, não.
- É que eu quero muito bem a esse jumento, num sabe?
- Primêro, Zé, ói que tu tem uma carrêra de minino que só num cumêro péda de uns
dia pra cá pur causo que Deus é grande, intão nói vamo guardá pa cunzinhá essas batata
tudinha aí, que a coisa num tá fáci’ não. Ôta que, tu num sabe nem se jumento come batata...
- Menha fia, o que jumento num cumê, nem urubu come...
- Tá bom, São Francisco dos Bicho, vamo fazê ansim intão, eu tava pensano im guardá
as casca da batata pa secá pa acendê o fogo de caivão e pa queimá perto da rede dur minino pa
mode de ispantá muriçoca e pa daná dento dus buraco dus baibêro, que diz que mata!
- Uai, é só guardá um poquim, né, muié?
- Homi, Zé...
- Homi, nada. Ói, dona Arcinda mais dona Sivirina me oferecêro siviço onte. Eu vô lá
vê se tá de pé ainda.
- É bom mermo, mais é siviço de fazê o quê?
- De fazê tudo. Tá as capuêra cumeno tudo pur lá, aí elas qué prantá as coisa e num
tem que prante.
- Sei... Aí chamaro logo quem pra roçá mato? Tu?
- Oxe, e o qué que tem? Eu sô trabaiadô, minha fia, só num faço mais pur causo do
meu ispinhaço, que é dirmantelado!
- Sei, Zé... Quem mais sabe de tua hixtória todinha tá aqui... Mais verdade é que, do
povo que le oferece siviço, os menos pesado é os de cumade Arcinda mais cumade Sivirina
mêrmo, só que elas tem esse negócio de só pagá quando vendê a safra, aí quebra na imenda!
Você dêxa de pegá ôtos sirviço pur causo de tê que tá isperano.
- É, mais... Foi o que apariceu.
- Intão cuide de tumá bãe pa siguí pra lá, que elas dorme cedo!
- Rapaiz... Num tinha como tu ir lá não, Bigaí? Aí tu dizia que eu quero o siviço...
- Mais agora pronto, mêrmo! O caba diz que qué o siviço e num pisa nem lá pa dizê?
Oxe, bote o pé no camim e vá!
- Djabo, o caba num chega nem dereito im casa e a muié já bota o caba pa fazê siviço
véi nojento!
- Intão num vá, Zé! Se fô pa tá se mardizêno pur lá, num vá não, mais se lembre que
esse ano foi de chuva e num vai tê ‘megença não...
- É, o Cão é tão ruim que quando já dá pa trabaiá eu, tu e Firmina na ‘megença, aí num
tem!

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- Homi, dêxe de cunversá merda! Tão bom um ano que chove, pa mode do povo pudê
prantá e os bicho num morrê e tu sintí farta da megença!
- Né sintino farta não, mais pelo meno era um denhêrim cert’ dent’ dessa casa!
- Homi, Zé, dêxe de cunvessa cumprida! Vai ô não?
- Vô!
- Intão pixte! É o tempo d’eu cunzinhá arguma coisa.
- Quedê meu chapéu?
- Tá na sua cabeça!
- Esse não, o de côro!
- Ah, e eu num sei não. Tu pindura aquele chapéu im todo canto. Vá cum esse aí.
- Nam, eu quer’é o ôto, pra elas vê que eu tô pronto po siviço.
- Intão vá tumá bãe qu’eu vô procurá...
- Nam, eu vô ansim, e cum chapéu de côro!
- Oxi, quem já viu o caba ir se apresentá p’um siviço fedeno? Tá doid’é?
- Só num prexta eu ir cherôso. Elas vão pensá qu’eu num tô quereno trabaiá. O caba
tem que ir é como se já tivesse trabaiano, puquê vai qu’elas quêra qu’eu faça arguma coisa na
hora já...
- Vai mêrmo sem tumá bãe, Zé? Ave – Maria!
- Vô! Homi, eu vem logo, num vô nem entrá lá não, só vô dizê da porta mêrmo que
quero o siviço e pronto, ninguém vai dá chêro in’neu não!
- Apois pronto. Vô acendê o fogo. Na vorta, venha catano uns gravetim que tivé no
camim...

Mané Roldão jovem

Capítulo V
É o jeito caçar serviço.

Esta parte, a de catar gravetos, entra por um ouvido de Zé Pajaraca e sai pelo outro.
Abre o puxa – encolhe que dá acesso ao terreiro da casa e lá encontra, pendurado no mourão,
o tal chapéu de couro, e assim, se caracteriza como trabalhador, não lhe passando pela cabeça
que todos já sabem que é pura encenação, e que em pouco tempo ele começa a fazer os
serviços pela metade até ser dispensado pelos patrões. Faz o mesmo percurso que Abigail fez
na noite anterior, peregrinando farelos pelas casas da vizinhança. Ao aproximar – se da casa
grande, o casal de irmãs sentadas na calçada e o velho Joaquim cochilando boquiaberto em

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uma espreguiçadeira. Severina reconhece a silhueta recurvada e o andar desajeitado do
vizinho:
- É Pajaraca vin’ali, Arcinda? – Pergunta Severina, tentando identificar o que vê com
ajuda de seus pesados óculos do tipo bifocal, com lente esverdeada.
- É Pajaraca sim. Será que de onte pra hoje ninguém cumeu nada na casa dele?
- Né pussive não...
Aproximando – se do batente, Pajaraca se anuncia:
- Boa...
- Boa, cumpade Zé. – Respondem as duas ao mesmo
tempo.
- Eu quiria levá um assunto cum vocêis... Tem como?
- Tem sim, cumpade – Responde Alcinda. – Tu pega um cafézim ali pa cumpade Zé,
Sivirina?
- Sei nem se tem mais, viu? – Diz Severina – Mais po’dexá qu’eu faço agorinha...
- Pricisa se incomodá não, cumade, o qu’eu tem pra falá é ligêro.
- Apois pode ir falano aí mais Arcinda, que o que ela acertá cum você, por mim tá
bom.
- Eu prifiria falá primêro, tinha como não?
- Não, cumpade. Fal’aí cum Arcinda mêrmo... – Diz ela, afinando a voz, sob certa
intenção de esquivar – se, já que Alcinda ficava brava quando a palavra final não era dada por
ela.
- E era o quê, cumpade? – Pergunta Alcinda.
- Era aquele siviço que a sinhora falô onte.
- Qué que tem?
- Se a sinhora ainda quisé, eu pego o siviço.
- Cumpade pega nada...
- Eu pego, cumade. Ói, eu já tava vino de ôto siviço, lá na propédade do véi Lucena no
Loreto. – (Mentira).
- Ah, bom. Mais a casa de seu Luí Lucena num fica pegano essa ôta ixtrada não? Tu
chegô por ali, cumpade. – Aponta ela, para a estrada oposta à que Pajaraca disse.

- Não, é que eu vim cortano camím, por causo que Dona V’cênça tá me pagano pr’eu
caçá umas raposa...
- Ah, bom... E dá pa caçá raposa só cum graveto?
- Não, iss’aqui é pa ‘Bigaí acendê o fogo. Raposa eu caço butano Bóxta pá acuá...
- Butano o quê, cumpade? – Indaga Alcinda, franzindo a testa, olhando de lado, não
entendendo (ou sim), o que ele falou.
- Bóxta.
- Boxta?
- É...
- Uvisse essa, Sivirina? Pajaraca caça raposa cum bóxta! – Diz Alcinda, disfarçando
uma risada.
- E préxta isso, cumpade? – Pergunta Severina, trazendo o café.
- Prexta, cumade.
- Nunca uví falá não... – Contraria Severina.
- Tá acriditano não? Se quisé, eu provo!
- Não, não, não, não... Pricisa não, cumpade! – Interferem as duas.

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- Bóxta é caçadôzim, qué medôim...
- Tá falano de quê agora, cumpade, de cachorro?
- É. Bóxta é o nome do cachorro lá de casa.
- Ahhhh, intendi agora! – Diz Alcinda. – Mais tanto nome bunito pa se butá im
cachorro e tu butá logo esse? Oxe! Nome de cachorro tem que sê bunito, rapaiz. O daqui
mêrmo, ó, é Bradamante... Né nêgo véi?
Bradamante era um vira – lata de cor caramelada, magro, do rabo fino e da orelha
preta. A única coisa bonita nesse cachorro era somente o nome. Vivia deitado aos pés das
donas. Sempre que Alcinda estalava os dedos e chamava ele de “nêgo véi”, ele balançava o
rabo.
- ...Isso foi uma receita que Mãe Rosa me passô, po cachorro sê caçadô. Quem me deu
o cachorro foi meu primo Inácio Ganga e ele usa muito meu cachorro nas caçada dele pur’aí
- Baxta... Só pudia sê coisa da véa Rosa e de Ináço mêrmo... – Diz Severina.
- Mais é séro mêrmo, cumade. Ela cobrô um guiné e tudo pa mode me dizê essa
receita.
- E que receita é essa, cumpade? – Pergunta Alcinda.
- Posso dizê não, cumade. – Só se a sinhora me chamá pa trabaiá.
- Não, por mim, pode cumeçá agora se quisé, mais é cum aquela condição lá que le
falei onte.
- Pra mim tá inhordi, cumade.
- Sim, mais que receita é essa de cachorro caçadô que le insinaro? – Pergunta
Severina, curiosa.
- Assim, dona Rosa disse que iss’é sabiduria antiga, dos índio, que serve até pra gente.
Sei que quando a gente acha uma ninhada de cachorro, primêro tem que vê se o cachorrim
tem as pizunha...
- Hum. – Acompanha Severina, com a mão no queixo.
- Aí quando ele dirmama, a gente leva ele pra casa pa passá a noite. No ôto dia, a
primêra coisa que você vê ansim que acorda, vai sê o nome do cachorro. É só fazê isso qu’ele
fica caçadô todo!
- Ah, tô intendeno... – Diz Alcinda – Aí cumpade acordô, a casa chêa de minino... Oiô
po chão, aí tava lá...
- Han ram... Bem grande.
- Num tem como arrumá um vaso não, cumpade? – Pergunta Severina.
- Ainda não, cumade.
- Ainda é assim todo dia lá, cumpade? Ur minino obrano no chão de dento tua casa? –
Questiona Alcinda, um tanto indignada.
- Fazê o quê, né cumade? Pur’aqui num vende pinico...
- Sim, mais... O que cuxtava comprá um pinico im Patos? Tu num vai sempre?
- Nam, eu vim trazeno pinico na mão? Nam! Pro povo pensá que é pra eu? Nam!
- Oxe, que bextêra, cumpade! Pió é, como o sinhô mêrmo disse, acordá e vê logo a
ruma que ur minino fizero!
- Nam, mais essa ruma que eu vi pa batizá o cachorro, quem fêiz foi Bigaí. Eu cunheço
pela cô, e pelo jeito que é a dela...
Nam, cumpade. Bora mudá essa cunvéssa, qu’eu já tô dano ingúi de tod’ tamãe aqui só
de imaginá! – Interrompe Alcinda. – Diga a cumade Bigaí que quando a Sucam passá lá, peça
pra eles butá lá um sanitáro pra vocêis.
- Nada, ela apanha cum a pá...

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- Ugh! – Alcinda, repugnada com o que Pajaraca disse, tapa a boca com a mão e entra
rapidamente.
- Pois é, cumpade, já tá iscuriceno. Vam’entrá? – Diz Severina, encerrando a conversa.
- Quero não, cumade, brigado! Qué dizê intão que tamo certo, né?
- Tamo sim, cumpade. Pode cumeçá amanhã, se quisé.
- Tá certo, cumade. Era só isso mêrmo. ‘Té amanhã.
- Até, cumpade Zé.
Zé Pajaraca segue para casa, trazendo uns poucos gravetos encomendados pela esposa.

Vicência

CAPÍTULO VI
A “nuvidade”

Nesse meio tempo, Firmina chega da casa de Dona Regina. Lá, ela ajudava nas
costuras e fazia bordados. Dessa vez, trazia uma novidade:
- Mainha, eu quero sê frêra.
- É o quê, homi?
- É, eu quero mim chamá Made Firmina.
- Oxi, mais pra mod’equê, se tu é póbe?
- Nam, mainha, eu vô lá ficá aqui nada. Eu quer’é morá im Patos!
- Firmina, tu só tem treze ano. Vai te aquetá!
- É, eu tem só treze ano, mais a sinhora já fica falano pra eu se casá cum ur neto de seu
Badu, né?
- Eu merma não. Eu só fazia gôxto.
- Quero não, mainha. Eu quero é sirví a Deus.
- Mais agora lascô. Nóis semo póbe, minha fia. Num tem pra quê isso não. Ói,
Firmina, tu num vai tê nóis a vida toda não. Tu uma hora vai tê que arrumá um rapaiz pa se
casá.
- Não, mais eu num naisci pa casá não. Eu acho a coisa mái linda do mundo uma muié
vixtida de frêra.

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- Minina, tu tais trevaliano, é? Tu sabe onde é o convento mais perto? Im Patos!
- Oxe, eu vô!
- Vai como, vuano?
- Eu vô muntada im Relóige...
- Nam, seu pai vai pricisá do burr’ agora. Num invente não!
- Oxe, mainha, eu quero ixtudá pa sê arguém!
- E é assim, é? E quem vai me ajudá cum a luta aqui nessa casa?
- Oxe, eu ajudo do mêrmo jeito, só de tarde qu’eu vô pá iscola ixtudá!
- Logo que hora? De tarde? E o siviço lá de dona ‘Nita de cumpade Zé Aivo? Vai dexá,
é?
- Primêro que tá fraco de cuxtura, sigundo que, ela disse que inquanto tivé algum
rimonte pra fazê ela manda ur minino vim aqui chamá eu pa ajudá.
- E por falá nisso, ela le deu dinhêro?
- Deu, deu...
- As quato pataca?
- Deu trêis, mas ela disse que quando uma galinha lá que ela deitô, tirá os pinto, um é
meu.
- Hum, tumara que dê mêrmo. Tem que vê na hora e trazê é uma pinta, pra quando ela
ficá grande a pessoa pudê apruveitá uis z’óvo…
- Sim, mainha, mair num mude de assunto não... Ói, eu vô lá im seu Antôim Aprige vê
s’eu compro um vrido de pelfume. Eu já vem...
- Tá, num demore não....
Nesse momento, Pajaraca chega da casa das meninas:
- E aí, Bigaí, tem janta, nessa casa?
- Tem, Zé. Fiz uma sopa. Tá isfriano... Apruveite e tome um bãe inquanto termina de
isfriá...
- Homi, tu só fala im bãe, bãe... Oxe! Aperrêi da mulexta! Eu num tô obrado não!
- Apôis num tome não, Zé! Dêxe ar mosca le cumê vivo!
- Tu fala como se tu tamém só vivesse de cóca dento da cacimba.
- Todo santo dia eu inhencho as ancureta cum água pra trazê pra cá, viu? Num fosse
eu, derne de quando a gente se ajuntô que tu num tinha tumado um bãe!
- Homi, dêxe de cunvessa. Repare se a sopa já isfriô...
- Tá quente ainda.
- Tem nada não, bote.
Pajaraca senta – se à pequena mesa e Abigail o serve. Naquela casa, os talheres feitos
de pau e catemba de côco não serviam para se tomar sopa. Esta era literalmente sorvida numa
cabaça grande.
- Arra, que sopa quente, Bigaí!
- Cumê cumê quente assim, só tu mêrmo, Zé. Num ispera nem isfriá. Tirei do carderão
agora, num viu não?
- Eu que m’importa?
- Cumê cumê quente, diz que dêxa o caba fraco na cama, sabia, mocim?
- É, possa sê que seje verdade mêrmo, um troço quente desse queimano os dedo e a
língua do caba...
Nesse momento, Firmina volta antes do tempo e interrompe a prosa, retomando aquele
assunto com a mãe:
- Dêxe, mainha...

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- Oxem, num foi não?
- Nam, tá iscuro já. Disixti.
- É mió mêrmo. Guarde o dinhêro...
Nisso, Firmina insiste:
- Dêxe, mainha...
- Dexá o quê, minina?
- Eu sê frêra...
- Homi, Firmina, dêxe você de me aperriá aqui. Tá uvino a cunvessa de tua fía agora,
Zé? Tá cum vontade de sê frêra, vê se pode um negóço desse...
- E o que djab’é isso? É uma duença?
- Que djab’ de duença, Zé! Indoidô, foi?
- E é o quê? É coisa de cumê?
- Não, Zé! Ela qué ir pa um convento!
- Ah, diga ansim…
- Paim dêxa?
- É... não.
- Não purquê, paim? Homi!
- Perdeu nada im djabo de coléjo de frêra não, doninha!
- Ô, paim... eu num quero morá im roça a vida toda não!
- Firmina, pa ir pa iscola de frêra é priciso teu pai tê denhêro pá comprá seu inxoval e
ele num tem não! Tem que comprá percata, tem que mandá fazê rôpa, tem que comprá lápis,
cadéino... Seu pai num tem condição não! Veja se você se casa cum ur minino de seu Badú
mermo, aí quem sabe, se vocêis fôre morá na rua, aí ele tenha condição de le butá na iscola de
frêra.
- E eu vô virá frêra casada, mainha?
- E eu é que sei? Você é quem tá inventano éssas coisa aí.
- Num pode não.
- Cupa minha é que num é.
- Ar muié daqui só casa pra vivê num pé de fugão, mainha...
- Homi, iss’é um djabo mermo! Será pussive que nem uma sopa o caba num pode
tumá sussegado, fica esse povo pertubano! Ó o minino se atrepano na janela, Bigaí… - Grita
Pajaraca, com a boca cheia de macarrão de sopa.
Assim era a constante inquietude que reinava naquela casa. Mas nem sempre foi
assim. Pasmem, já foi muito pior.

32
Joaquim Nunes

CAPÍTULO VII
1951 - Sítio Lameirão / Cidade de Patos
Um pouco da história.

O pai de Zé Pajaraca, Porfírio Natividade, era morador muito dedicado das fazendas
de Joaquim Nunes, braço direito do mesmo. Porfírio, que já era viúvo há alguns anos, morreu
em 1926. Seus quatro filhos, exceto José, o Pajaraca, tomaram rumo na vida. Foram embora
para o Sul, por lá se casaram, construíram a vida e pouca notícia mandaram para a terra natal
desde então.
Desamparado, o caçula ficou sob os cuidados de Joaquim Nunes. Nesta época,
Pajaraca só tinha dezesseis anos. Era rapazote feio, desengonçado e ingênuo, mas já dado a
farras. Não podia ouvir o batido de uma zabumba que já ia atrás para ver onde era. Após a
morte de seu pai, morou mais treze anos no Sítio Lameirão, época que esta propriedade era
pequena, mas pertencia a Joaquim Nunes antes de Zé Alves ter comprado outras terras e
aglutinado ao nome Sitio Lameirão. Certo dia, o velho convocou uma grande adjunta para
limpar todo o baixio do pequeno sítio Lameirão. Vieram mais de quarenta pessoas atrás de
serviço nesta ocasião. Entre elas, Abigail, uma moça de vinte anos, entroncada, desengonçada
e muito bobinha.
Zé, Abigail e os outros, pela manhã desciam até o baixio para a labuta. Ele nos
trabalhos braçais e ela ajudando outras senhoras no preparo do almoço de todo o eito.
Pajaraca, cuja alcunha se deu por causa de uma suposta semelhança dele com uma ave
muito feia que às vezes agourava por aquelas bandas, ia várias vezes até a latada onde estava
Abigail, na tentativa de puxar conversa. Abigail, vinda de uma família muito humilde, morava
n’uma tapera na vila de Santa Gertrudes, hoje distrito de Patos. Não é de se negar que houve
uma simpatia entre os dois desde então.
Conversa vai, piscada de olho vem, recado vai e vem e os dois foram se engraçando a
ponto de, no dia de pagamento da adjunta, eles já de namorico, desaparecem pelos matos, só

33
tendo sido encontrados na cidade de Mãe D’água, mendigando, pois todo o dinheiro já tinha
sido gasto.
Nesse ínterim, Abigail já estava prenha de Zé Pajaraca. Firmina estava a caminho. Foi
um rebuliço danado para Joaquim Nunes e sua esposa, Mariquinha, resolverem. Joaquim, que
de toda forma era responsável pelo garoto Pajaraca, então procurou em pessoa a senhora
Adjalma Medeiros, dona da propriedade em que os pais de criação de Abigail moravam. Não
foi difícil todos concordarem com o casamento, pois, já eram bem grandinhos, meio
preguiçosos e seus responsáveis há tempos queriam lavar as mãos dessa responsabilidade de
criá – los. Passaram a morar juntos e de lá para cá, muitos pajaraquinhas nasceram. Seis
vingaram, três, no entanto, engordaram a estatística de mortalidade infantil da época em que
estiveram longe do Lameirão.
Por cerca de dez anos, Pajaraca, Abigail e os filhos não tiveram morada certa. Viviam
pelas ruas de Patos a pedir esmolas, e a noite, voltavam à casinha de taipa que construíram
nos arredores da cidade. Por lá ficavam até que o dono da propriedade descobrisse a
clandestinidade da morada e os obrigassem a desmontar tudo e procurar outro lugar.
Zé Pajaraca era considerado um pinguço já folclórico da cidade de Patos. Seu
itinerário errante em busca de um copo de pinga, uma dose que fosse, ia do mercado central
que antes funcionou pelos arredores da igreja da Conceição, passava pelo mercado novo, que
estava em construção, mas já tinha certo comércio ao redor e ia até a linha do trem, também
inaugurada a pouco tempo, em 44. Ficava acerando por ali, pela redondeza das casas de
recurso que, quando chegaram com força na cidade, em meados de 35, mudaram os costumes
de todas as pessoas; entre tais, o hábito de fazer feira, que antes era mensal, bimestral,
trimestral e até mesmo, semestral. Sim, o povo do sítio quando vinha na rua comprar algo,
comprava de muito e armazenava em casa em silos e no sal. Com a chegada daquelas gentis
senhoritas, a coisa mudou. As feiras do povo passaram a ser semanais. Olha que coincidência.
Toda segunda feira desde então, os “cabra” era tudo fazendo feira agora. Comprava de
pouquinho em pouquinho. Desculpa não faltava:
- Pode deixá qu’eu faço a fêra, muié. Fique em casa discansano…
- Fazê fêra toda sumana é bom por causo que nada se apuidrece...
E como dito, Pajaraca era uma figura folclórica carimbada no mercado onde ocorria
dessas coisas. Parte dos trocadinhos que arrumava, era fazendo presepada mesmo na beira das
mesas, como por exemplo, topando desafio, bebendo uma garrafinha inteira de pimenta a
trôco de algum tostão ou até mesmo recebendo um trocado simplesmente p’ra deixar de
perturbar o povo na mesa e ir embora.
Entre os compadres de “CTI” *reduto onde os bêbados ficavam, com alusão à ala hospitalar.
que Pajaraca possuia estão os ilustres: Betim Careca, Xexeu Disintería, Zé Socana, Chicão
Boró, Elias de Néga – Balai, Ribamar Vaca Véa, Arlindo Freadão, Sergio Bala Choca, Tião
Corno Manso (Esse puxava peixeira pra quem dissesse isso perto dele), Bibica 38, Bira
Macumbeiro, Zé Cana Doida, Bibau do Goró, Chifrudo, Cai Torto, Mandinga, O Crente,
Aima Penada, Babaçu, Jamorreu, Carcaça, Simão Antena de Lagata, Babau, Traque Ruim,
Titico Gambá, Chico Bucho de Cachorro; entre outros tantos nominalmente indigentes, mas
que sempre povoaram os batentes e as calçadas daquela cidade, ora adormecidos, ora
aprontando, fazendo raiva ou fazendo presepada.
Pajaraca ali era só mais um, mas o único que já tinha um apelido estranho antes de ter
chegado lá. Certo dia, nos arredores da feira central de Patos, eis que Zé Alves, filho mais
velho de Joaquim Nunes, encontra e reconhece de imediato o velho amigo e antigo
trabalhador de seu pai. Pajaraca estava magro, ébrio, com barba por fazer, mal vestido e com

34
um monte de sacolas, cheias de tudo que era possível catar. Zé Alves ao chamá – lo, já nas
primeiras palavras ditas por Zé Pajaraca, sente que ele tinha ingerido bebida alcoólica, mas
ainda assim, estava relativamente lúcido para conversar.
Conversa vai, conversa vem, Pajaraca relata a Zé Alves o quanto tem sido difícil a sua
vida em Patos, tendo que se deslocar mais de duas léguas diariamente com mulher e filhos em
busca de algo para comer. Pajaraca, como dito, ficava nos arredores da feira e do recém
inaugurado mercado central. Quando raramente sóbrio, carregava as compras das madames
nos balaios, ajudava a montar e desmontar barracas, enfim, fazia de tudo um pouco quando a
preguiça e a cachaça permitiam. Abigail, por sua vez, junto com seus três filhos na época,
Firmina, Expedito e Raimundo sendo que este último ainda é carregado no braço,
perambulava pelos bairros tendo que fazer algo que detestava: Pedir esmolas. Conseguia
muito mais comida do que o marido, pois as pessoas se compadeciam do semblante sofrido
daquela mulher, com crianças pequenas. A conversa de Zé Alves com Zé Pajaraca rendeu
um convite para retornar ao sítio Lameirão. Convite este, de imediato aceito. Entretanto,
precisava falar à mulher sobre a novidade. Por isso mesmo, só à noite, quando todos
estivessem em casa, é que ele poderia falar. Se todos estivessem ali juntos na hora, ou seja,
Abigail, os filhos e Zé Pajaraca, já fariam no mesmo instante o caminho de volta para o
Lameirão na carroceria de um caminhão.
À noite, quando já estão todos no casebre, Pajaraca fala a novidade a Abigail, que dá
um pulo de alegria ao saber que vai ter um canto certo para morar e não vai mais ter que pedir
esmola nas casas. Zé Pajaraca ficou sabendo pela conversa que teve com Zé Alves, que ele
raramente tem vindo em Patos, sendo que demoraria muito a revê – lo novamente para assim
ir de carona no caminhão até o Sítio Lameirão, no distrito de Cabaças. Decidiram então ir a
pé.
Pajaraca lembrava bem como chegar lá. Cinco léguas de distância. Passaram uma
semana juntando comida e água e no dia da partida, saíram logo cedo. Deixaram muita coisa
para trás. Coisas aparentemente sem valor, mas para aquelas pobres pessoas, era uma fortuna:
Um pote médio, dois tamburetes, uma tampa de fogão de madame que servia de mesa, alguns
trapos para se enrolar para dormir entre outras tranqueiras.
A bagagem deles consistia em um saco com um quilo de farinha, meio galão de água,
um vidrinho de querosene para acender fogo, um pacotinho de fumo para cachimbo, uma tira
de jabá, feijão de corda, e angu. Abigail com uma trouxa de roupa na cabeça, e Zé Pajaraca,
heroicamente também equilibrava a lata d’água na cabeça. Seria um dia e meio de viagem a
pé.
As crianças também tinham bagagem:
Firmina, além de carregar muita tralha nas sacolas improvisadas, trazia nas mãos uma
muda de um pé da flor Bulgarí. Expedito, o filho do meio, trazia Mimi, um gato preto, muito
inquieto, gato que desde sempre atentava em casa, roubando comida e era quem denunciava
que eles estavam morando clandestinamente nas proximidades da casa de algum fazendeiro
de Patos, pois ia roubar comida lá. O menorzinho, Raimundo, o único peso que trazia era um
pano que protegia a própria cabeça do Sol. De vez em quando Abigail o colocava nos braços.
Durante a viagem de peregrinação, Deus foi muito bom com aqueles viajantes, pois,
em cada casa que parassem, sempre havia quem os acolhessem, oferecessem o que comer,
além de repôr a reserva de água. Como estavam ansiosos em chegar logo, agradeciam a oferta
de dormir no local e retomavam o percurso. No final da tarde do dia seguinte, eis que eles
cruzam o último mataburro e pegam a reta que dá acesso à casa de Zé Alves. A essa altura,
todos já estavam muito debilitados e doloridos com a estafante caminhada. Chegam ao

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batente da casa de Zé Alves e este de imediato os recebe, dizendo que entrassem para
descansar. Também de imediato foi a ordem para os trabalhadores limparem alguma casa
desocupada, pois iria ter morador novo.
Na cabeça de Zé Alves, Zé Pajaraca poderia ser seu braço direito, assim como o velho
Porfírio, pai de Pajaraca, era braço direito de seu pai, Joaquim Nunes. Não foi bem assim
afinal, mas tudo bem...

Porfírio Natividade - Jovem

CAPÍTULO VIII
A primeira moradia e os serviços estranhos

Apesar da boa intenção de Zé Alves, naquele momento não tinha nenhuma casa vaga
em toda a propriedade dele, mas isso não foi problema. Zé Pajaraca foi morar numa casa na
pequena propriedade de Inacio Nunes, irmão de Zé Alves. Pajaraca foi morar na casinha onde
Inacio viveu logo após ter se casado, mas se mudou para outra casa maior, devido ao fato de
ter tido vários filhos, um atrás do outro, mas que agora aquela casinha estava servindo
somente de entreposto para cuidar do gado e de uma pequena roça, que por sinal estava
comida de capoeira. No fim das contas, ao ter voltado para o Lameirão, era para Inácio que Zé
Pajaraca fazia a maioria dos serviços, pois eram muito amigos, ambos gostavam de uma
caninha e eram quase igualmente pobres, a diferença era que, mesmo com muitos meninos
igual a Pajaraca, Inacio Nunes gostava de trabalhar, sendo que era muito inocente para certas
coisas e vez ou outra saía com umas ideias meio malucas.
Certo dia, Inacio foi no poleiro das galinhas e voltou brabo, trazendo debaixo dos
braços um peru e um guiné, para mostrar a sua esposa aquela situação. Ambos estavam muito
debilitados, sendo que os demais já estavam mortos. Os que ele tinha em mãos, estavam
faltando muitas penas, o peru, com um furo no papo e ainda para
irritá-lo mais, vinha atrás dele a cachorra do terreiro, Cabecinha, no maior latideiro desse
mundo, ganindo:
- Bouooóóóoouououuuóó!!
- Tava fazeno o quê que num viu quem fez isso cum meus bicho no pulêro, gota
serena? - Pergunta Inacio à cachorra. Estava indignado, e perguntava como se porventura
pudesse obter resposta do animal amedrontado.
- Issé qué sê uma cachorra nojenta, rapaz! – Indigna – se ele.

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A pergunta é: Quem teria feito aquilo com aquelas aves no poleiro de Inacio? - Sei que
raposa que não foi. Raposa num pega peru, que é grande; e nem pega guiné, por que guiné é
ligeiro na carreira. Foi outra coisa, com certeza! Raposa num fura papo de bicho ninhum!
Alguém tinha que pagar por tamanha ruindade feita contra aquelas penosas que só
faziam enfeitar o terreiro de Inácio, tão bem varrido e cercado que chega dava gosto. Bastava
uma galinha soltar uma “prastada” no chão, que rapidinho Rita ia lá com uma pá. Mas enfim,
naquele momento a única coisa a ser feita era costurar o papo do peru, colocar violeta nos
machucados do guiné, dar muito mastruz com leite e torcer para que se recuperassem, já que o
resto, ou seja, peru, galinha, pato e guiné, morreram quase tudo. Restava enterrar longe p’ra
não feder perto.
Depois de toda essa trabalheira, Inacio começou o trabalho de investigação para
chegar ao culpado de tudo aquilo e depois fazê - lo pagar pela ruindade. Foi à casa grande e
contou tudo ao seu velho pai Joaquim, que estava em companhia de sua filha Severina, lhe
ministrando uma sopa, que por sua vez ficou horrorizada com aquela ruindade com seus
bichos do terreiro. Que animal infeliz andava por aquelas bandas?
- Tanto que a gente reza! - Queixava – se Alcinda.
Por que esse bicho medonho tinha feito aquilo com os bichos de Inacio? Alcinda, que
escutava de longe a conversa enquanto mexia um tacho de choriço, aproximou-se e disse:
- Isso aí é coisa do tá do papa - figo! - Pois ela afirmava que já tinha visto um bem
graúdo, na beira do riacho, comendo o fígado de um caçote; e ainda advertiu:
- Cumpade Inaço, ói, tome cuidado quando fô sortá esses guiné, por que esse bicho já
cumeu muita gente até, num foi não, Sivirina?
- Foi mermo, Arcinda, e lá no Loreto, eu sube que ele cumeu foi seis pavão de um lado
e arrotô só as pena do ôto. Arre Maria!
Nisso, escuta – se o arrastado das chinelas de Mané Roldão ignorando os latidos do
cachorro, fazendo seus velhos grunhidos de preguiça para subir os três batentes da calçada e
puxando o ferrolho para entrar na casa. E nisso, já vem se inteirando da conversa, ao passo
que foi logo dizendo que aquilo tudo era invenção de Inacio, e que papa - figo só comia
fígado de gato, de cachorro e de gente, ou seja, bicho carnívoro e só se fosse aqueles de barão
ou de madame, ou seja, bem cevados. E gente, era gente gorda, que nem ele:
- Bicho magrelo, cum gôgo, papa figo num qué sabe não…
- Oxe, cumpade. Tá dizeno meus bicho passa fome e tem gôgo?
- Não, cumpade Inaço...
Depois dessa visita, Inacio afirmava de pé junto que ele mesmo ia mostrar para todo
mundo o veneno certo contra papa - fígado. Nisso, Vicência que lá da sua casa focou pelos
seus grossos óculos o grupo se dirigindo ao alpendre da casa vizinha, em volta de um bule de
café, e então foi até lá saber o que estava se passando. Ao ser informada do que aconteceu
com o peru e com o pato e com os outros bichos de Inacio, ela também ficou aperreada, pois
também tinha muitos bichos em seu terreiro. Se lembrou logo de ter visto na pedra da beira do
riacho que ela usa para lavar roupa as pegadas ensanguentadas de um bicho diferente, e que
esse bicho era o mesmo que comia todos os cágados do poço amazonas, deixando só o casco;
é tanto que depois disso ela nunca mais tinha ido lá para lavar as roupas, estava fazendo isso
agora em outro lugar, chamado cacimba dos bodes, que os bodes das redondezas bebiam água
e na mesma hora mijavam, conferindo à água um mal cheiro característico e uma insatisfação
por parte de seu marido, Mané Roldão, que reclamava que suas ceroulas estavam com catinga
de mijo de bode.

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Mas foi o jeito. Tudo isso para não ter que ir mais naquela cacimba mal – assombrada
e se deparar com o “papa – figo”.
- Intão a sinhora me leve lá, pra eu vê essas pisada, cumade V’cênça, que eu armo as
arataca pa pegá ele! – Prontificou – se Inacio.
- Arre Maria, cumpade Inaço, uvi dizê que esse danado desse bichote num cai im
armadía ninhuma não!
- Mais eu vô pegá ele é de quaqué jeito, vô agora mêrmo lá no Jardim falá cum Carijó.
- É verdade! Vá! Ele é caba sabido, e deve de sabê como fazê uma tucaia boa pa pegá
esse péxte du djabo! - Confirma Alcinda.
Ao chegar lá, Carijó argumentou que durante o seu tempo de estudante na cidade
grande só havia observado alguns relatos contra esse bicho tenebroso nos livros, jornais e
periódicos onde em alguns casos, tomou conhecimento de que a polícia até corria atrás, mas
nunca conseguiu prender nenhum, apesar de ele próprio afirmar já ter visto muitos correndo
nos munturos da cidade. Entretanto, Carijó sabia de uma pessoa que conhecia a fundo essa
pratica de pegar lobisomem, e que até tinha a queixada de um guardada a sete chaves.
- Quem é essa pessoa, cumpade Carijó?
- Você conhece, Inaço, é a velha Mãe Rosa, que mora na propriedade de seu irmão Zé
Alves.
Carijó, apesar de ter nascido e se criado no sítio, não tinha o sotaque dos outros ali,
pois era de família abastada e era relativamente viajado.
- Ah, rapaiz, cunheço dimais, cumpade Carijó! Diz que ela é muito da sabida, né? É
quem vem parí ur minino tudim lá de casa, eu pego ela num burro e levo.
- Essa mesma! - disse Carijó – Papai disse que ela é moradora de Zé Alves desde o
tempo que o velho Nicolau, teu avô era vivo!
- É, tem muitos ano já. A véa mermo já tem bem cem ano.
- É um patrimônio do sítio Lameirão! - Conclui Carijó, brincalhão.
- Eita, é verdade, cumpade. Essa véa é sabida de tudo que é qualidade de reza, de chá e
de pari minino!
- Procure ela e ela resolve seu problema.
- Pois é. Eu sei quem é dimais! Mais é isso mêrmo, rapaiz! Intão eu vou lá é já na casa
dela, e ói que eu vô é aqui pelo camím do Grotão que é mais perto.
- Então até mais, Inacio, mas tome cuidado com esse bicho.
- ...
Logo a magra e ligeiramente torta silhueta de Inacio desaparece entre a caatinga,
tomando atalho até a casa do velha e excêntrica Mãe Rosa, pegadeira de menino.
- Arra, que eu ia até s’isqueceno de mim dispidí de cumpade Carijó, agora eu tô é feito
com esse djabo desse papa – figo, cumeno meus bicho, mais eu pego ele, ah se pego! Cuxte o
que cuxtá, mais eu pego! Ara que coisa mái chata danada da gota, rapaiz? Agora fico eu pra lá
e pra cá feit’ um doido, só por causa desse disinfiliz!
Enquanto caminha, Inacio vai deduzindo melhores atalhos até a casa da anciã, já que o
terreno era muito irregular, cheio de pedras, grotas e mato muito fechado.
- Oxente, eu vô é pur’ali que é mais perto. Eu bem que pensei, tô chegano, vou pidí
informação naquela casa.
Inacio notou que tinham feito uma casinha de taipa no meio do caminho fechado.
Estranhou pois passou por ali a poucos dias e não tinha casa nenhuma. Era uma casinha de
taipa ao nível do chão. Parecia estar fechada, mas duas bocas de telhas juntas, presas à parede,

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com a função de chaminé, davam a entender que tinha alguém na casa, pois estava
fumaçando, então Inacio chama:
- Ô de casa...
Ninguém responde.
- Lôvado seje nossinhô Jesúis Crixto!
- Para sempe sêje lôvado! – Responde alguém lá de dentro, abrindo a janela. (Isso
mostra que é alguém que vem em paz).
Nisso, surge na janela a figura de uma mulher com seus trinta anos, com cara
sonolenta, cabelo desgrenhado, do tipo sarará e aspecto embrigado. Esfregando um olho. Era
Maria Dasdores.
- Ô madame... Onde é a casa da véa dona Rosa? - Pergunta Inacio, um tanto
supreendido por ver aquela pessoa, tentando fingir que não a conhecia, mas ela ficou toda
sorridente quando o viu ali:
- Ôpa, Inace... É aquela casa da bulandêra véa ali ói... Tá veno? Esqueceu das amiga,
num foi? Chegue cá tumá um café mais eu… Chegue…
- Mainha, esse home é meu pai? - Pergunta uma criança que surgiu na janela.
- Ah, opa Dasdore... Tud’bom? É que eu tô avexado. Mas brigado mermo assim... -
Responde Inacio, muito encabulado.
- Tudo bom, Inacim... Tô morano aqui agora, viu? Qualqué coisa, já sabe, jogue uma
pedinha na telha que se eu saí… Eu posso le atendê…
- Gradicido, Dasdore… Mais agora eu tô... É… eu tô ino pa missa e se confessei e
tudo. Tô abandonano aquela vida, num sabe? Mais brigado. Mim diga só se a sinhora sabe
onde é a casa de mãe Rosa, a sinhora sabe?
- Eu já le disse, tá veno aquela casinha com a trempe acesa ali? É aquela.
- Ah já sei, é aquela que tem aquela mulhé lá do lado de fora mexeno no cabelo, né?
- É isso mêrmo.
- Certo. Intão ‘té mais.
- Té mais, Inacim…
- Oxe, mainha, esse home é a cara de Toím… - Diz uma das crianças ao redor de
Maria das Dores, apontando para seu irmãozinho, agarrado com um caroço de uma manga.
- Oxe, cala boca, minino! Entre pra dento com seu irmão. Passe!
-…
Enquanto caminha em direção a casa indicada, Inacio vai murmurando:
- Oxe, e essa trepeça vêi batê aqui, foi? Homi, pelamordideus! Bom, ainda bem, me
parece que a véa tá im casa, agora eu resôrvo isso.
Meio sem jeito, olhando para os lados e para o alto, se aproxima e puxa conversa:
- Licença, dona Rosa tá puraí?
- Tá ali dento. – diz uma moça que lutava em pentear o cabelo sentada na calçada
improvisada. Era Minervina, filha de Mãe Rosa e era ajudante lá em Zé Alves.
- Opa, rapaiz! Chegue pra cá seu Inaço, eu tô aqui, meu véi, chegue...
- Ainda bem, boa noite Mãe Rosa. Abença?
- Deur le dê boa furtuna... Boa noite seu Inaço, arguma nuvidade, seu moço? -
Pergunta Mãe Rosa, equilibrando um cachimbo nos beiços.
- Tem e muita Mãe Rosa, eu tô é muito aperriado, homi. Só num sabia que a sinhora
me cunhicia…
- Cunheço tod’mundo, meu fí… Mas diga aí seu aperrêi...
- Um bicho que tá cumeno meus bicho de pulêro tudim, Mãe Rosa.

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- Ah, rapaiz, já sei... É o papa – figo! Hoje mêrmo eu vi foi dois: - (Cospe) - Um vuano
bateno asa, comé que se diz… E o ôto, vi o rasto na agua lá ali do açude véi do Jaidim...
- A sinhora sabe onde êles mora, dona Rosa?
- Sei... Comé que se diz... é lá no fosso do Grotão!
- A sinhora já pegô argum, mãe Rosa?
- Oxi, eu já peguei foi é muito!
- A sinhora tem a quexada deles aí pr’eu vê com’é que é a de uma?
- Rapaiz, Comé que se diz... Tê eu num tem mais não. O que eu tinha, comé que se
diz... Eu vendi hoje pra Zé Píi, comé que se diz... A quexada é muito visada por que é dura, e
também serve, comé que se diz... pa fazê catimbó!
- Sei... Mãe Rosa, com’é qu’eu faço pa pegá o que tá só cumeno minhas galinha?
- Isso é ligêro, é só, comé que se diz... É você mim pagá, aí eu li insino na hora!
- Mais Mãe Rosa eu tô liso e sem dinhêro, rapaiz...
- Você me dá duas galinha, aí eu li insino, comé que se diz... A como pegá êles tudim!
- A sinhora falô que pega eles direto aqui como? Tem muito por aqui, Mãe Rosa?
- Ah, eu pego na base da reza! Quando passa um eu faço uma cruiz no chão, cuspo im
cima e rezo a ladainha de São Pêdo pegadô de papa – figo! É eu cumeçá a reza e ele cai duro
duro duro!
- Arre Maria, mãe Rosa! Eu tem é medo dessas coisa!
- Nam, faz medo não. E aqui tem e é muito sim, pelo o que eu tô veno, comé que se
diz... Já que cumero seus bicho de terrêro e o sinhô num fez nada, vão agora parti pa cumê até
o seu boi de carroça se você num cuidá!
- Num mi diga um negóço desse não, mãe Rosa! Vá pegá eles aí o sinhora fica cum a
quexada véa, já que diz que é muito cara!
- Nam, eu merma não. Comé que se diz... Eu num posso pegá papa - figo máir não. Eu
já tô véa… Se esqueceno das reza… Das mandinga… Quando eu era nova, pricisava nem de
reza. Eu pegava era pelo gogó, trucia, trucia inté morrê.
- Apôis intão mim insine antes da sinhora terminá de caducá como pega eles e toda
vêiz que eu pegá um eu vem le intregá a quexada pa sinhora vendê.
- Assim num préxta não, a quexada fica, comé que se diz... Cum a pessoa que pegá ele.
- É, Mais a sinhora num disse que vendeu a sua agorinha?
- Ah mais só, comé que se diz... Aquela pessoa que pegá um é que pode vendê depois,
aí eu vindí!
- Intão a sinhora mim insine e eu le dô uma galinha pedrêiz bem bunitinha que eu tem,
se quisé já vô buscá agora.
- Nam, você mim dê é o galo e a galinha pedrêiz!
- Tá certo, Mãe Rosa, agora mim diga logo como é, que já tá ficano tarde e eu dexei a
mininêra todinha só em casa.
- Oxente, e cadê sua muié?
- Minha muié tá é aduentada, mãe Rosa. Tá na casa da minha sogra pa mode vê se se
ricupera; as irmã dela tão cuidano.
- Hum. Eu vô rezá pela áima dela…
- Oxe, nam, minha muié num morreu não, mãe Rosa! Tá só duente.
- Toda duença do corpo vem da áima. - Esclarece Mãe Rosa, apontando o pito do
cachimbo para Inacio. - É pela áima que a pessoa tem que rezá.
- Ah bom. Intão tamo combinado?
- Por mim, sim. Cuide que seus pinto ficaro im casa.

40
- Sim! Eu mandei até um penerá xerém mais num sabe dá de cumê pros bicho duente
não, intão tem que sê eu.
- Seu Inaço, comé que se diz... na sua casa tem cururu?
- Tem não, Mãe Rosa. Minha muié vê um longe e já taca sá pra cima. Tinha na casa da
minha sogra era muito, mais ela deu fim a tudim. Tinha de todo jeito, de tod’ tamãe, até de um
ôi só, eu acho.
- Pois bem, o sinhô vai tê é que arranjá um casal de cururu, comé que se diz... Bem
grande e bem buchudo, agora tem que sê bem grandão, grandão mêrmo! Também tem que tê,
comé que se diz... O côro bem bunitim, e sê bem gordim, comé que se diz... Tem que sê bem
pesadão. Comé que se diz... O sinhô pega dois e bota, comé que se diz... Num ispeto bem
grande tresvessano os dois e torra eles vivo! Asse, que daqui eu faço a reza!
- Ave Maria, mãe Rosa! Eu num vô fazê iss’aí não! Deus que milivi’guarde dum
pecado desse cum os bicho bruto. Sapo é de Deus! A pessoa num pode judiá não!
- Intão eu tô veno que o sinhô num qué pegá ninhum papa - figo não...
- Mais Mãe Rosa, num tem ôto jeito não?
- Rapaiz, tem não, seu Inaço. A reza de papa figo só se pega na base da isca de cururu
assado, e sem sá, e ói lá, oí lá...
- Mas logo um casal de cururu? Como é isso, mãe Rosa?
- Comé que se diz... Como eu ia le dizeno, depois deles bem torradim, comé que se diz... O
sinhô leva eles no ispêto pro lugá que o papa figo cumeu as suas galinha. Lá, Comé que se
diz... O sinhô arma um laço e bota o ispêto dento do fojo, tumano, Comé que se diz... O
cuidado de deixá os cururu assado lá im cima na ponta da grea!
- Quando você fô ino fazê, me avise que é pra eu caprichá na reza aqui.
- Nam, mãe Rosa, pelo o que eu tô vêno, é mais fáce pegá o tá do papa - figo cum ar
mão do que pegá os cururu desse jeito que a sinhora ricumenda, repare lá assá eles vivo! Eles
vai é dá uma mijada na minha cara!
- Mais Seu Inaço, o sinhô é acuxtumado a pegá guiné na carrêra, pegue dois cururu
gordão e pronto. Uma fême e um macho!
- Só se fô desse jeito, mais eu vô é dexá pra lá esse negoço de pegá papa - figo . Eu já
vô ino mimbora, Mãe Rosa, até mais...
- Saravá!
Inacio se assusta com aquele modo estranho dela se despedir, e quando se distancia,
comenta consigo:
- Vai te lascá, véa doida!
E conforme vai caminhando, vai fazendo sua reflexão:
- Eita meu pai, e se quando eu chegá lá o papa - figo agora já tivé cumido meus fí junto junto
cum us burrêgo e as uvelha e os bizerro? Arre - Maria, eu num góxto nem de pensá nisso não.
Quando eu chegá lá eu vô perguntá a quem sabe onde tem cururu, talvêiz arguém saiba, mais
cadê corage de assá um casal de cururu vivo? Meu Pai do Céu, né bom nem pensá nisso não!
Mais os papa - figo vão cumê até as
pena dar minhas galinha. Mais assim num vai dá não. Ah, já sei! Já que eu num tem corage
pra fazê isso, vô pagá pa argum doido pra pegá esses cururu e me intregá eles já é assado,
depois eu mêrmo levo ele pra butá no laço e o infiliz vim cumê. Arra, cum tanta coisa na
cabeça, que quase eu ia é passano do camím de casa!
Inacio estica a cabeça para tentar enxergar a casa por cima do matagal:
- Ah, a casa tá com um candiêro aceso, ainda bem, tá tudo inhordi!

41
Chega na calçada de casa e vai largando logo a sandália e a blusa, pendurando esta
última num gancho já apropriado para este fim na parede de fora. Tudo isto para ficar mais à
vontade em casa.
- Ô esse minino, cheguei! Abra a porta aí que eu já tô aqui!
- Foi pra onde, paim? Paim foi pra donde? – Pergunta a meninada que estava sozinha
em casa, puxando os ferrolhos e saltando pelas janelas.
- Fui lá ali. Vão logo me dizeno uma coisa, vocês sabe me dizê tem aparicido cururu
aqui pelo terrêro?
E a resposta veio logo:
- No terrêro aqui de casa não, paim. Mais eu sei onde tem, paim! Por causo de quê?
- Né nada não. Aonde que é?
- Onde tem cururu e muito é lá na casa de seu Zé.
- Zé de quem?
- Zé Pajaraca.
- Ah é mêrmo? Intão eu vô ali de novo, mas vorto já. Ah, eu vô é levá logo um bisaco.
Feche a porta pra mode de num entrá bisôro!
- Vai caçá sem a ispingarda, é, paím?
- Não, homi. Eu já vem...
- Tá certo, paim...
E lá vai Inacio mais uma vez se embrenhando pelas matas...
- Eu vô andá ligêro, por causo que Pajaraca mais Bigaí do buchão dorme mais cedo
que o galo e sinão, eu num arranjo esses cururu pra hoje.
Zé Pajaraca era mesmo um capiau do legítimo. Um bicho do mato. Tanto nos hábitos,
quanto na aparência. Como quase todos ali, não sabia ler, gostava muito de cachaça, mas ele
em particular admirava as palavras difíceis e compridas da gente da cidade, pois já tinha
morado por lá durante alguns anos e por isso não era nada fácil entender o seu linguajar, um
misto de matuto com urbano. Os poucos que conseguiam entender a fala confusa de Pajaraca
eram gente de seu convívio, como seu amigo Inacio Nunes. Mas sempre lembrando, Pajaraca
era um cabra bom, embora meio sem noção.
Por sorte, Inacio acaba encontrando o nobre casal na estrada iluminada pelo luar das
oito da noite, já que ambos sempre viviam de fazer visita a algum vizinho ou amigo, aqui e
acolá, para filar uma boia e levar os restos para casa ou então descolar algum serviço que não
fosse puxado. A vida deles não era fácil. Pajaraca era um bruto, mas certamente era
inquestionavelmente uma figura marcante, com a cara do Sertão.
- Quem é que vem ali meu Deus? ah é Pajaraca véi mais Bigaí. Boa noite, seu Pajaraca
mais cumade Bigaí.
- Boa noite, Inaço. – responde o casal.
- Vão pra d’onde?
- Nói vai lá nos pé de batata de puiga pegá uma batata pra fazê chá pa Bigaí tumá pa
ver se báxa êsse buchão dela. Ela anda biquêra*, sem apetite rapaiz num qué cumê, tá é duente,
inté jurô qui tá duente.
- Eu tô ruinzinha, seu Inaço. Um rói - rói véi na tripa... Uma vontade de num cumê
nada, nam, arre-Maria… Tudo que eu como eu se sinto ruim e boto pra fora...
- E o sinhô, vai pra onde? – Pergunta Pajaraca.
- Ô rapaiz... Eu ia lá na sua casa.
- Apôis intão nóis vórta pa tráis...
E o trio toma o caminho inverso, rumo à casa de Zé Pajaraca.

42
Enquanto caminham, Inacio puxa prosa:
- Ô Pajaraca, me diz uma coisa. Tem cururu na sua casa?
- É o pau que mais tem, seu Inaço.
- E são como?
- Seu Inaço, meu fíi, eu tem pra mim que os cururu que tem lá de casa é graúdo que
nem o djabo!
- Oxem, com'assim, cumpade Zé?
- Homi, seu Inaço, o povo diz por aí que o demo é gordão e chifrudo! Pôi bem, os
cururu de lá de casa é dêche jeito, só falta o chifre! Parece um saco de Feijão!
- Mais é cururu ou gia?
- É cururu.
- Comé que tu sabe?
- Ah, a gia se você pegá ela, ela pia que nem um pinto!
- Ah, é mermo.
- E gia quase num tem mais não.
- Por causo da seca, né?
- Nam, é que a gente comeu foi tudo, aí quase num tem mais não.
- Ave Maria e vocês tem corage de cumê gia?
- Ora mais tá se não? A casa chêa de minino, a dispensa vazia…
- É verdade, cumpade Pajaraca…
- Gia é mermo que tá cumeno galeto. Cururu é que a carne é dura e fedorenta e demora
o dia todim pa cunzinhá…
- Misericórdia, cumpade Pajaraca mais Bigaí… Vocês cumêro até carne de cururu já?
- Já, mais faz tempo, cumpade Inaço. – Explica – se Abigail. - Foi no tempo que a
gente pidia irmola* esmola im Patos.
- Ah… Tempo difice, né cumade?
- Dimais, cumpade… Dimais…
-…
- Sim, cumpade Inaço, mas por causo de quê tu qué os cururu lá de casa?
- É purquê eu tô pricisano de um casal de cururu.
- Oxente, intão traga um balai que o sinhô leva tudim.
- Oxi, brigado, cumpadi! Mais assim, eu só quiria um casal.
- É só o sinhô mim ajudá a pegá, por causo que eu sô mei dirmantelado do inspinhaço
e Bigaí cum esse buchão num consegue se abaixá pa pegá.
- E num são face de pegá não?
- Rapaiz, são não, seu Inaço; quando é pá tangê dá muito trabai. Eles dão cada pitú na
gente… É cada pinote! Eu já tentei matá foi tudim mais num teve jeito!
- Diga assim, a priguiça num dexô... - Interrompe Abigail.
- Cala a boca, muié...
- Oxi, pur quê matá eles, Pajaraca?
- Porque eles se dexá uma porta aberta entra dento de casa, fica imbaxo do pote, caga,
mija... Agora tem tem uma coisa, se eu pegasse, eu ia queimá vivo!
- E tu tem essa corage, cumpade?
- Ora se eu num tem…
- Intão bora pegá um casal e eu pago pa você assá vivo!
- Num pricisa pagá nada não, eu asso ele é de graça, só assim eu se vingo da cocêra
que deu no meu pé por eu tê pisado no mijo de um.

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- Tu pisô bem dizê por que quis, Zé! - Interrompe novamente Abigail.
- Oxe, mas eu pensava que era mijo de minino, que eu já tava acuxtumado.
- Intão bora pegá eles, cumpade!
- É nesse inxtante!
Chegando em casa, Pajaraca e Abigail mostra a quantidade deles ao redor da casa, o
que causou até certo espanto a Inacio, por tamanho desleixo.
- Vamo digavazim que ele já deve tê entrado pelo buraco da taipa pa de noite entrá e se
deitá dento da vazia dagua do cachorro, aí nóis pega eles é dento de casa bem facim. O buraco
que ele entra é aquele ali, ói. Você fica lá e eu fic’aqui atucaiano.
- Peraí, Pajaraca! Que eu armo a tarrafa e ele cai nela já já, por que ele vai mijá tudo
quando se inganchá.
- Intão vá pa lá e quando tivé pronto você me diz, que eu abro a porta!
- Mais Deus é bom, rapaiz. Veja como tá dano tudo certo, certim, certim, e amanhã...
- Tá falando com quem seu Inaço? - Pergunta Pajaraca.
- Ninguém não, Pajaraca, pode abrí a porta agora, vá!
- Ói, os cururu tão saino, Inaço! E logo dois.
- Dêxe ele vim...
Por sorte, sai da toca um sapo na cacunda do outro, ou seja, um casal. Inacio, que tem
muito nojo de sapo, joga a tarrafa e prende os mesmos, que esperneiam bastante, se urinam,
mas por fim, estão presos na armadilha.
- Peguei, Pajaraca! Peguei!
- Seus infiliz, agora vocês vão pu inferno! Danado, eu vivê pisano em mijo de cururu
dento de casa? Onte eu me deitei no chão pa tirá um cuchilo no pé da porta, quandefé, um
cururu gelado sobe im cima do meu bucho! - Queixa – se Pajaraca. - Mais agora quem vai po
ispêto é vocês, seus gota serena!
- Apois intão pronto, Pajaraca, tá tudo risurvido, os cururu tão aí na tarrafa, agora é só
juntá e torrá!
- Tem que tratá, cumpade?
- Não cumpade, pode torrá do jeito que tá aí.
- E vai sê ainda pra hoje isso, seu Inaço? - Pergunta Abigail.
- Vai sim, cumade. E que hora eu vem pra buscá ele?
- Amanhã cedo, cedim bem cedo mermo.
- Tá certo. Intão até amanhã.
- Inté, seu Inaço.
E assim, Inacio toma o caminho de volta para casa, satisfeito com a própria sorte, pois
além de ter encontrado o casal de cururu, ainda encontrou quem fizesse todo o serviço sujo
em seu lugar e sem nada cobrar por isso.
- Mais como eu ia dizeno, ah, Deus é bom mêrmo, deu tudo certo do jeito qu'êu quiria,
rapaiz! Até um caba corajoso pa assá cururu eu achei. Se prepare seu papa figo sangradô de
bicho dos ôto, que dessa você num escapa!
Enquanto caminha e conversa sozinho, Inacio ouve algo:
-Êpa, parece que alguém chamô eu?
- Foi eu, cumpade Inaço.
- O que foi, Pajaraca?
- Mim diga uma coisa, cumpade Inaço. O sinhô qué os cururu assado normal ô do
avesso, que nem a raposa faz pa cumê?
- Normal, cumpade.

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- Pode saigá?* salgar
- Sem sá, Pajaraca.
- Intão tá bom, vô acendê o fogo é agora.
Talvez o "papa - figo" tenha problemas de pressão alta, daí a necessidade, segundo
Mãe Rosa, de não colocar sal no churasco de cururu. Nisso, Inacio foi para casa, enchiqueirou
os bezerros, jantou e foi deitar relembrando os últimos acontecimentos do dia, lamentando -
se com tanto trabalho que teve no dia. Quis saber de Expedito,
filho de Pajaraca que ajudava Inacio, se ele tinha dado de comer à ovelha e ficou conversando
sozinho algum tempo:
- Rapaiz, essa cachorra daqui de casa só faz durmi… Só toma ação depois que tá tudo
perdido! Agora dêxe essa noite passá, seu danado, que amanhã cedo eu armo um laço pra
pegá você, seu djabo de papa - figo... Apague a lamparina aí, Ixpedito. E pode ir pra casa.
- Fuuu!
- ...
Inacio fica se balançando na rede, empurrando a mesma com o pé na parede. Enquanto
se balança, consegue mirar a Lua aparecendo por um trincado na telha. Interessante que, no
sertão e naquela situação, quanto mais rápido o ritmo do balanço da rede, maior era a
preocupação ou no caso, a ansiedade de quem se balança.
- Eita que eu tô cansado de tanto andá, rapaiz. Vala-me Deus, me lembrei de uma coisa, eu
nem perguntei a Mãe Rosa como é que se bota os cururu na ponta do ispêto pra assá ele vivo.
Se Pajaraca infiá o ispêto neles vivo eles morre, se ele amarrá cum cordão, antes de esquentá,
o fogo queima aí os bicho cai. Rapaiz, só tem um jeito, eu vô é vortá lá na casa dele pra
mandá ele amarrá os cururu cum arame no espeto... Arra que tanto aburricimento só por causa
desse papa - figo disgraçado! Amanhã você me paga seu péxte! Ô iscuro danado aqui dento de
casa, rapaiz...
Pela terceira vez, Inacio sai de casa sem avisar. Sai pelos fundos, onde a porta nada
mais era que uma trança de caniços, que não faria barulho ao ser aberta. E assim ele toma
caminho à casa de Pajaraca, que não ficava muito longe dali.
- Daqui eu já tô veno o fogo que Pajaraca acendeu, ói? Ixi... Essa catinga de pentêi
cunzinhado deve sê do cururu assano. Já tô chegano... laxtá Bigaí mais Pajaraca!
- Pajaraca! É eu, é Inaço de novo...
- Diga aí, seu Inaço... já vêi buscá os cururu, foi? Tá quase pronto.
- Amarrasse eles na vara cum o quê, hein?
- Cum arame, seu Inaço, sinão eles cai.
- Num é que o bicho é disinrolado mêrmo? E por quê Bigaí tá se inxugano?
- Ah seu João, a luta aqui foi fêa pa tirá esses cururu da tarrafa, viu? viu? Minha muié
tá aí toda mijada, ói. Ainda bem que ela é uma muié macha, porque sinão... Os cururu num ia
nem po ispêto. Amax’tarde eu baxo eles pa mais pa perto das brasa, depois eu isfrego ele nu
borrai e pronto, amanhã cedo eu levo ele lá, pro sinhô.
- Intão tá bom, apôis eu já vô durmí.
E no dia seguinte, muito cedo, Inacio se levanta. O Sol já vem raiando… Expedito
chega logo cedo para ajudá – lo nas tarefas.
- Ixpedito, acenda o fogo pa fazê o café, que eu vô lá no roçado vê se as uvelha tão
viva. Eu vô andá ligêro purquê quando eu vortá eu corto o pau pa fazê o arco e pego a corda
pa fazê o laço. Ô meu Deus, lái vem Mané Rordão… Eu num acridito não! O que será que ele
qué? Já sei, qué sabê como tão as galinha. Eu vô saí logo, sinão ele vai mim impaiá* tomar meu
tempo, eu vô logo é se incontrá cum ele e tirá de tempo...

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Seu Mané Roldão era vizinho de propriedade de Inacio. Era casado com Dona
Vicência. Mané “Rordão” era conhecido pela preguiça, que lhe comia vivo e também, por ser
muito curioso com a vida dos outros:
- Bom dia, cumpade Mané Rordão.
- Bom dia, cadê os bicho. Tão bonzim?
- Mais u mêno, tão sem cumê. Eu tô dano um xerénzim com leite só na cuié...
- Você tava ino pra donde?
- Eu vô ali no baxóte.
- Perdeu o quê lá?
- Um pau de lenha.
- Pra que?
- Pa queimá, cumpade Mané.
- Queimá aonde?
- No fugarêro, cumpade Mané.
- Vai torrá o quê?
- Umas ribaçã, cumpade.
- Hum, sei... Ei, eu vi quando tu quando tu passô onte de noite, tu vinha de onde?
- Do Jardim, cumpade Mané.
- Foi vê o quê lá?
- Fui lá im cumade Mãe Rosa...
- Ah, bom. Tá certo. Até mais. Ah, eu ia isqueceno. Quem foi que passô onte aqui nu
corredô?
- Num sei não, cumpade Mané...
- Tá certo. Até mais.
- Até...
Finalmente o interrogatório termina e Mané Roldão se distancia...
- Vái pu djabo cum esse perguntadêro! Tanta coisa aqui pa eu fazê, o xerém dos
bichim... Qué sabê? Depois! Agora eu vô tirá logo é o pau no baxote ali, depois eu dô o xerém
dos bicho quando terminá. Vala-me Deus, eu tô todo atrapaiado aqui, num sei nem o qué
qu’êu vô fazê primêro! Ah já sei, vô dá é o leite dus burrêgo. Vou armá o laço do jeito que a
véa Mãe Rosa me insinô, mas disse que eu num falasse pa ninguém. Já pensô se Pajaraca
tivesse chegado na hora que cumpade Mané tava mais eu aqui? Todo mundo ia ficá sabeno.
Nisso, Pajaraca vem chegando com a encomenda.
- Lái vem ele cum a isca de papa - figo. Eu vô logo butá ele é dento dum saco pa
ninguém vê!
- Bom dia, seu Inaço. Tá aqui a incumenda.
- Bom dia, Pajaraca. Tráiz pra cá, bote aqui e vá simbora logo, que depois eu le dô um
agrado.
- O sinhô num vai mim pagá nada não, cumpade Inaço. Eu fiz cum maió gôxto, mais
cururu ruim que tivesse!
- Tá bom homi, mái vá simbora, que eu tô cum dô de barriga e tem que fazê o sirviço
alí atrás da péda.
- Ah, tá certo, seu Inaço. Faça bom pruvêito aí dos cururu.
E Inacio agora, tem um tempinho para dar atenção aos poucos animais que lhe restam.
- Ti, ti, ti... tome o míi de vocês, tome, encha o papo, que eu tô cum pressa, assim...
Isso... Pronto... Agora o pau do laço, eu tiro lá no lugá de armá, é isso mêrmo, e eu vô é pelo
camím do Arapuá, pra ninguém me vê com esse saco com essas coisa dento, eu passo pelo

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cancelão* porteira grande, que lá no baxíi* baixio, porção de terreno própria para plantação. do pau do leite
tem muitas vara de jurema preta que dão certim pra mim fazê o pau do arco. Eita, meu Deus
daqui eu já vejo é mais sirviço. O cancelão tá é todo torto, mas na vorta eu conserto ele. Bem
que eu disse! Olha pra lá Inaço, - Diz ele falando sozinho - Como tem varão de jurema nesse
canto, eu vô é logo cortá um pa levá. Esse tá no jeito, já parece um badoque*, cabo do estilingue ó?
Pelo jeito que eu danada, rapaiz... Mais cortô assim mêrmo. Agora o pau já tá cortado, eu vou
ino mimbora que eu já tô perto do canto. E tô chegano! Bem no ponto que o bicho cumeu
meus bicho, foi mêrm'aqui, no pé do pulêro, intão eu armo o laço aqui, os buraco... Ah, os
buraco um é pa infincá o pau do laço, o ôto é pa mim butá o ispêto cum a isca, um deles tem
que sê bem fundo porque o pau do arco é forte. Eu vô tê um trabaião pa drobá ele sozim... –
Inacio fala sozinho sem parar mesmo.
Depois de tudo bem fincado no chão, começou a luta para armar o laço:
- Puxe forte Inaço, puxe mais, puxe mais... Mais, mais, mais...
Até que finalmente ele consegue.
- Epa, tá bom, tá bom! Pronto, ficou bom dimais! Eu vô logo saí daqui por que esses
cururu tão cum uma catinga danada, o bicho vai sintí é de longe. Já já ele tá aqui; ainda bem
que ninguém mim viu aqui. Agora eu vou vortá por ôto camím.
Sempre pensativo, Inacio acaba lembrando:
- Ah, mais tem que ajeitá o mataburro véi. Eu vô logo fazê é isso, mêrmo sem vê os
bizêrro puraquí. Aquil’alí é Ixpedito, é? Será que ele viu os bizerro?
- Tá fazeno o quê aí, seu Inaço?
- Nada não... Ô Ixpedito, tu viu os bizerro?
- Vi, seu Inaço, eu dexei tudo junto. O sinhô vai pra onde?
- Eu vô ali...
- E ta vino de onde?
- Eu fui ali vê se tem buraco na cêica.* cerca.
- E fêiz o quê com aquelas vara que o sinhô levava?
- Homi, deixe de perguntadêro bêxta! Ora mais tá... Opa, ói, lái vem Cumpade Carijó
no Jipe.
- Bom dia, cumpade Carijó.
- Bom dia Inacio, como foi lá? Viu o Mãe Rosa?
- Vi.
- E como foi lá?
- Rapaiz, ele ela mim insinô um negóço e eu fiz tudo conforme ela me orientô. - Diz
Inacio, coçando a cabeça por cima do chapéu. - Amanhã essas hora o bicho já tá é morto,
qu’eu sei. A receita é da boa!
- Tem mandinga pelo meio?
- Ela disse que eu fizesse minha parte, cá, que ela fazia a parte dela de lá.
- E você não quer que eu mande alguém te ajudar não?
- Não, num priciso não, cumpade Carijó. Eu tô doido pa pegá é esse bicho é sozim e
dessa vêiz ele num iscapa não!
- Vá com cuidado, Inacio.
- Dêxe cumigo, cumpade Carijó. Quando tivé tudo terminado eu vô le avisá.
- Tudo bem.
- Até mais ver...
E logo logo Inacio retorna a seus afazeres, requisitando o auxilio do seu ajudante:

47
- Ô Ixpedito, vá butá água pus bizêrro e quando abá*, terminar ajeite o cumê que eu vô
lá na casa grande vê se tem café.
Ao chegar lá, como esperado, já foi cercado de perguntas acompanhadas com um
caneco de café, servido por Alcinda:
- Cadê os bicho, cumpade Inaço?
- Tão tud’ im casa, cumade Arcinda. – Inacio toma um gole de café.
- Será que vão se criá? - Pergunta Severina.
- Vão, cumade. Se Deus quisé. – Enquanto ele sorve mais um gole.
- Ô cumpade Inaço, tu deu agora pa cumê cururu, foi?
Inacio, que nesse momento dava mais um gole no caneco, tamanha a surpresa,
engasgou – se e cuspiu soprando o café quente por todo lado!
- Que cunvessa é essa, cumade?
- Oxente, Ixpedito mim falô que tu assô um um casal de cururu onte mais Pajaraca.
- Homi, é cunvessa de Ixpedito, cumade; num dêxe nem papai uví um negóço desse
qu’êle morre de disgôsto.
- Pois é. E se mamãe fosse viva, ia quebrá um cabo de vassôra no seu ispinhaço. Sapo
é de Deus! - Repreende Alcinda.
- Pois é, cumade. Sapo é bicho bento. A pessoa num pode judiá não! - Completa
Severina, chegando e se inteirando da prosa.
- Homi, eu num já disse? É lorota de Ixpedito! Vocêis sabe que ele é presepêro?
- E era o quê intão? - Pergunta Alcinda.
- Era só um peba, cumade. Um peba!
- Ah, tá bom… Que peba mais miúdo, cumpade...
- Eu já vô. – Sai ele, todo desconfiado.
Enquanto caminha de volta, Inacio recomeça seu hábito tão comum de falar e
resmungar sozinho:
- Que cunvéssa danada foi essa de seu Ixpedito? Ele deve tê vixto os cururu quando eu
ajeitava no saco, mais ele foi cedo olhá os bizêrro e deve tê vortado pa vê o que eu ia fazê
com aquele danado. Tem nada máir não, depois que ele vê o papa - figo morto ele vai intendê
tudo.
Distraído enquanto caminha e resmunga, não percebe a aproximação de Mané Roldão a
tempo de tomar algum rumo alternativo para casa e assim se desvencilhar das tantas perguntas
que ele faz:
- Oxente, Vem vino de onde, cumpade Inaço?
- É Dali mêrmo, da casa grande, cumpade Mané...
- E vai pra onde?
- Eu vô ino pra casa.
- Viu V’cênça por aí?
- Vi não, cumpade Mané... ‘Té mais!
- Tá mêi avexado é?
- É que eu tô ruim do bucho, cumpade, aí tô assim apertano o passo.
- Oxi, e porquê você num obrô aí no mato?
- Goxto não, cumpade. Vô lá. ‘Te mais!
- Quando terminá de obrá, coma uma xícra de farinha cum açúca que é bom! – Diz
Mané, falando de longe.
Inacio se distancia apenas fazendo o sinal de positivo com o polegar.

48
- Eita home que faz pergunta! Daqui a pôco ele já sabe é de tudo dos cururu lá. Homi,
eu vô logo é pra casa discansá um pôco. Lái vem Ixpedito com um galão d'água, tão dispôxto
que chega vem baxêro... Ô minino isperto da gota! Se num fosse ele eu tava lascado cum tanta
coisa pa fazê e num dá conta. Só quiria que ur lá de casa crescesse logo pra me ajudá
também... E agora eu vô cumê meu cumê e mim deitá...
Nisso, Expedito leva o prato para Inacio, meio desconfiado:
- Oxe. O fejão queimô, foi, Ixpedito?
- Foi não, seu Inaço.
- Ora não, chega tá amaigâno!* amargando. Alumêi aqui cum a lamparina e pegue esse prato
aqui no pé da rede, que eu tô já cuchilano.
E mais tarde:
- Será que eu tô sonhano? Vala-me Deus! Já é de tarde e eu vô dá é uma olhada de
longe pra vê se tem nuvidade. Já que eu vô levano a ispingarda, eu vô passá é no grotão e vê
se eu mato uns preázim ô intão pego um peba. Na vorta, eu passo lá na casa de Pajaraca, pa
tumá um cafezim...
Andando apressado pelas capoeiras, Inacio sempre se incomoda com algo muito
comum naquele lugar:
- Arra! Que dijabo de tanto carrapicho nesse canto, rapaiz! E preá qué bom, nada.
Agora eu tem que ir divagazim pa vê se tem arguma coisa no laço, mais me parece que o
bicho num vêi não. Ah, já sei purquê. Ele num anda de dia não, é de noite. Eu vô mimbora e
vô entrá aqui na casa de cumpade Pajara, parece que ele num tá im casa, ah, láxtá ele!
Pajaraca já sabe que quando seu vizinho aparece por ali, é atrás de um sufrágio de
café… A mulher doente na casa da sogra, e a criançada em casa, dependendo do almoço que
as irmãs estavam fazendo. Ele, sem seu café, estava aperreado.
- Boa tarde, cumpade Pajaraca.
- Boa, cumpade Inaço. vem vino da roça, Cumpade?
- Eu vem lá dos pé de cumaru...
- Ô Bigaí, isquente um cafezim aqui pa nóis!
- Ô Zé, eu já vô butá a janta. O café é depois!
- Intão eu num vô isperá não, cumpade, Ixpedito, teu minino tá só lá im casa e eu tem
que dá leite pos Bizerro. Boa noite.
- Boa noite, cumpade Inaço. Se pricisá Ixpedito dorme lá cum o sinhô. Vá
discurapan'aí quarqué coisa! Bigaí dispois que arrumô esse impanzinado* inchaço no bucho, só
viv’ansim, amuada!
- Nada, rapaiz...
Inacio pega a picada* estradinha estreita a caminho de casa e começa a resmungar:
- Djabo! Eu doido pa tumá um cafezim... Vô passá na ca'de cumade V’cênça. Lá deve
de tê café feito. Lá eu tomo uma xicrinha e acabo de chegá em casa. Ixpedito deve de tê
isquentado o rubacão e cunzinhado a traíra, que as bicha já tão seca faiz é dia.
Chegando na casa de Vicência, João se anuncia e ninguém aparece para recebê – lo.
- Ih, rapaiz! Num tem ninguém na casa de V’cênça não, ó? Pió é que lá im casa tá sem
café. Homi, deixa pra lá, já tô chegando im casa mêrmo e Ixpedito deve de tá sentado na
porta. Já tô com cum dô de cabeça por num tumá café.
Chegando em casa já meio zonzo, Inacio aborda Expedito:
- Désse o farelo pus bizêrro, Ixpedito?
- Díi…

49
- Apôis intão eu vô logo é tirá o que sobrô, juntá cum xerém e dá pas galinha antes que
elas suba no pulêro.
Inacio se dirige até o pequeno curral onde estão os bezerros, e de lá, conversa com
Expedito, que está na calçada:
- Trouxe preá pa nóis, seu Inaço?
- Truce ninhum não... sai nuvía* novilha, vaca de bezerro danada, dêxe eu dá comida pa seu
fíi, dêxe!
Ao terminar, Inacio jantou, foi deitar e ordenou:
- Ixpedito, vamo logo é durmí. Seu pai disse que você pudia durmi aqui. Apague a
lamparina.
- Fu!
Passadas lentamente as horas da madrugada, Inacio rolou para lá, rolou para cá e nada
de sono.
- Eita, que inquanto eu num pegá esse bicho eu num vô sussegá. - Diz ele em seus
pensamentos. - Já é madrugada e eu num durmo, rapaiz. Agora que tá chegano um sonim,
mais o dia já tá amanhiceno. É o jeito eu se levantá e acordá Ixpedito pa ír na casa de cumade
V’cênça tumá imprextado uma cuié de café pa vê se eu iscapo!
Inacio vai até a rede de Expedito e sacode os punhos:
- Acorda, Expedito pa tu ír lá na ca'de cumade V’cênça dizê que eu mandei pidí que
ela me mande uma cuié de café imprextado...
- Agora, seu Inaço? Tá cedo – Reclama Expedito, fazendo careta de sono
interrompido. - Minino, tem uma coisa! Isso foi tu que mijô ou foi uma vaca?
Expedito vê a poça gigantesca de mijo embaixo da rede, fica todo constrangido, mas
tenta justificar:
- Eita, foi sem querê, seu Inaço. Pod’ dexá qu’eu limpo tudo e lavo sua rede.
- Mas tu tão grande e ainda mijano na rede, rapaz?
- É por que de noite fez fríi… E eu sonhei que tava mijano…
- Tá bom, homi. Cuide. Quando vortá, limp’ essa presepada aqui.
- Certo, seu Inaço.
- E sabe duma coisa? eu num vô muito cedo lá na armadía não. Primêro eu vou arrumá
é as coisa pur aqui. Ah, Ixpedito já vêi cum o café e já vai fazê. Graças a Deus!
- Me dá aqui, Ixpedito!
- O quê?
- Uma cuia cum água que eu vou amolá minha pexêra bem amoladinha e eu vô
também lavá o bacamarte. Vá butá aquela táuba* tábua lá no pé de perêro,* pereiro, árvore da caatinga
que eu vou ixprimentar esse zizuito* apelido dado à espingarda aqui.
Após ter limpado o velho bacamarte, Inacio ficou treinando a mira em uma árvore
próxima da casa:
- E tome-le chumbo! Pêi!! Mais um, mais um, agora tá bom, já tá carregado cum
chumbo grosso e a faca tá aqui na cintura. Agora eu vô lá, num vô nem passá na casa de
cumpade Mané Rordão não, sinão ele fica fazeno aquele perguntadêro bêxta dele. Já é oito
hora e o papa - figo já deve ter murrido infóicado. Como eu já tô chegando perto da casa de
Pajaraca, eu vou passá é pru fora, por que se não ele vai caçá cunvessa também e eu tô é cum
pressa. Ainda bem que ele num me viu, e agora eu vô é correno! Eita, que esse pica – pau*
outro apelido dado à espingarda pesa que só a gota! Eu num sei como era que lampião suportava um
peso danado desse na cacunda...

50
Como Inacio era meio ruim das vistas, teve certa dificuldade para ver de longe o que
se debatia na sua armadilha. Ficou curioso e apressou o passo.
- Epa! Tô chegano, peraí, o que é aquilo? Será que eu tô inxéigano ruim? Oxente. E
papa – figo voa? E eu tô veno umas asa aberta se babatano!* se debatendo Oxi, eu vou olhá mái
de perto pa tirá a duvida!
Ao chegar mais perto, tremenda foi a decepção:
- Ah, vuô! Meu Deus, é os caicará cumeno os cururu lá, rapaiz! Pirdi foi meu tempo,
num sobrô foi nada. Só o cotôco! Agora eu tem é que assá ôto, mais será que o bicho num vêi
não? Epa, vem vino uma pessoa ali, quem será? Ah é cumpade Mané Rordão, qué vê? Agora
ele vai fazê pergunta. Lascô!
- Tá fazeno o que puraí, cumpade Inaço, com esse laço armado?
Inacio, pego com a mão na massa, não teve outra saída senão falar e assumir toda a
verdade. Respirou fundo e respondeu:
- Isso aqui é pa pegá o papa - figo que comeu os bicho do meu pulero. Pronto, falei!
- Mais cumpade Inaço, e tu acridita nisso, é?
- Acridito, cumpade Mané. E foi a véa Mãe Rosa que me insinô comé que pega!
- Homi, a véa Rosa mente cum fôrça, cumpade Inaço. Num ixiste isso de papa - figo
não, meu cumpade... Peraí, o que qué isso aí na ponta dessa vara?
- É o rexto da isca que eu butei pa atraí o bichote.
- Sim, mais quem comeu?
- Foi o djabo dus caicará.
- Apôis ói, cumpade, os carcará que comêro essa isca aí é os mêrmo que cumeu a seus
bicho!
- Rapaiz, num é pussíve não!
- Intão você pergunte a Liodoro pra tirá sua duvida.
- Intão esse caicará tava me fazeno de bêxta! Já cumeu minhas galinha tudinha e
muito mais e agora ele comeu o casal de cururu assado, dexô só o côro do avesso, pia mêrmo!
- Um casal de cururu, cumpade? E ainda pur cima, assado? Também, né, cumpade? O
papa - figo era ixigente assim? Tê que butá a isca inté pa assá?
- Foi tudo a véa Mãe Rosa que me insinô, cumpade Mané.
- Largue essa hixtóra de papa - figo pra lá, cumpade João, e cuide de livrá suas galinha
é dos caicará!
- Intão eu vô fazê é isso mêrmo, vô fazê um vivêro* gaiola grande, purque eu só tive
cum isso foi muito trabái e prijuíze, mais o pecado de assá os cururu vivo eu vô falá cum
pra cupa ficá cum a véa Mãe Rosa, que isso foi invenção dela. Ah, se vô! Agora mêrmo eu vô
falá cum Liodoro pra ele me insiná comé que acaba com esses caicará do djabo! Homi, só o
trabái pa fazê essas gangorra e nada de papa – figo.
- Papa – figo é a cachaça que tu toma, cumpade. Tá acabano cum teu figo. - Brinca
Manoel Roldão, enquanto se despede.
E chegando na casa de Eliodoro, filho recém casado de Zé Alves, quando solteiro, era
conhecido como o maior caçador de passarinho da região. sabia todas as armadilhas. Inacio
foi logo contando o caso para o sobrinho, e este, meio risonho, foi logo dizendo:
- Mais tí Inaço, o sinhô foi na cunvessa daquela véa mintirosa? A véa Mãe Rosa só
sabe fazê catimbó, rapaiz!
- E você já sabia do negóço do casal de cururu assado?
- Sabia, tí Inaço.
- E quem foi le disse, Liodoro?

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- Foi Mané Rordão mêrmo. Eu cheguei da casa dele agorinha, tí Inaço.
- Eita home do fato – furado!* Falastrão, que gosta de fofoca. Sim, mais como é que eu faço pra
dá fim a esses caicará?
- Aí é só saí caçano eles por ai e passá eles na boca da Lazarina* marca antiga de espingardas,
e ôta coisa, o sinhô chame Pajaraca pa caçá o nim deles e quando achá, matá os filhote, que só
come carne mole, ô seja, língua e ôi de burrêgo.
- Pajaraca? Só seno.
- Ele tá parado.* Desempregado, sem serviços Ele vai. - Reforça Eliodoro.
- Verdade. Ainda bem que meu bisaco tá chêi de munição, e eu vô cumeçá agora
mêrmo.
- Ói, tí Inaço, lá pras banda do Cabacêro tem um bucado de ním.
- Tá bom, eu vô já pra lá, agora eu vô dá trabái a Pajaraca que tá muito é disocupado. Só faiz
durmi, tumá cana, fumá boró e fazê minino. Ói, Pia mermo, lai vai ele lá longe com um lito de
cana imbaxo do suvaco. Isso vai bebê lá no lajêro…

Seu Miguel

CAPÍTULO IX
E haja serviço estranho

Quando chegou em casa, trocou de roupa e voltou ao lajeiro onde Pajaraca estava. Ao
ver Inacio se aproximar, já era tarde demais. Tentou se esconder para não pegar serviço, pois
já estava cansado com os bicos que estava fazendo na casa grande. Seu lazer consistia nisso
mesmo: Nos finais de semana, ir beber sozinho no lajeiro. * amontoado de pedras com sombras de árvores.
Inacio não contou conversa, chamou Pajaraca para um serviço e instituiu:
- Ói, Cumpade, eu vô falá cum ar minina e daqui pa frente você só vai tê um siviço; é
marcá ním de caicará, que é pra eu í lá depois matá, tanto os pai como os fíi. Eu le pago o que
ar minina tão le pagano.
- Ô cumpade, num quêra não...
- Oxem, quero sim. Ôta que elas só vão le pagá lá po fim do mêis que vem, e eu le
pago mêa pataca pa cada ním que você marcá.
Falou em dinheiro caindo, a conversa é outra, Pajaraca começou a se animar:
- Ah, cumpade, apôis eu já sei onde que tem um ním grande!.
- E adonde é?
- É lá perto do Carderão do véi Santo Carnêro.

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- Então vamo lá índa hoje, vam'arrumar as coisa, dá leite aos bizêrro, água pa jumenta
e avise logo na casa das véa lá, que seu siviço agora é ôto. Minha ispingarda tá carregada e eu
tô cum o bisaco chêi de munição. Liodoro mim disse que o milhó lugá pa matá caicará é no
ním, principalmente quando eles tão dano de cumê aos fíi, já que tem sempre um por ali, e o
ôto chega logo com a boia, porque caicará nôvim come sem pará e quando alguém chega
perto, eles tenta de todo jeito defendê o ním, aí é hora deles pagare a safadeza ruim que eles
fizero cum minhas galinha, cum meu pato e meu piru, porque eu vou serrá o bico de tudim!
Vamo logo pur’aqui que a gente passa pela casa de Maria das Queimada e de lá nóis passa no
riacho da barrage de Zé Áivo,
aí já tá perto do Carderão do véi Santo Carnêro. Vamo, logo, ali vem vino gente!
Nisso, um velho amigo se aproxima:
- Bom dia, Antôim Lucena. - Diz Inacio.
- Bom dia, Inaço.
- Inacinha tá puraí?
- Tá lá na casa dela...
Nisso, as sombras dos carcarás voando perto do terreiro das galinhas assusta o galo da
casa de Antônio Lucena.
- Eita, Pajaraca! Parece que eu já tô veno a queda dum bucado de caicará. Pia o tanto
vuano pu puente!
Maria das Queimadas, esposa de Antônio Lucena, sai na porta para ver quem eram
aqueles visitantes que puxavam conversa com seu esposo:
- Boa tarde cumpade Inaço, boa tarde cumpade Pajaraca..
- Boa tarde, cumade. – Respondem os dois.
- Ô Maria das Queimada, eu vou passá aí por dento da sua roça, viu?
Vale ressaltar que em meados de 1952, as cercas e porteiras das fazendas de interior
para nada serviam além de apenas impedir as criações de irem para longe da propriedade.
Entrava e saía quem queria. Os educados, ainda pediam ou comunicavam aos donos a sua
travessia, como Inacio sempre fazia. Outros, nem se davam ao trabalho,
mas isto nunca foi um problema. Atualmente, em certas propriedades, ainda é assim, mas hoje
em dia, qualquer passante desconhecido por dentro da propriedade já é bom motivo para ao
menos ver onde está guardada a espingarda.
- Pode passá, Inaço, cuidado pa num se inganchá nos arame que a ceica* cerca é nova.
- Pode dexá, cumade.
Nisso, a dupla retoma a caminhada. Enquanto seguem a caminho dos ninhos, Pajaraca
sempre dá um jeito de dar uma bicadinha na moringa de cana que trazia embaixo do braço.
- Opa, ói, laxtá a casa de Teofe Batista, na vorta nóis vai passá lá pra comprá café e
quando chegá im casa ainda vô torrá e pilá, pa pagá aquela cuié que meu minino pegô
imprextada lá da casa de cumade V’cênça.
Nisto, Pajaraca grita:
- Cumpade Inaço, já tô vêno um ním!
- Adonde?
- Ói, lá ali bem naquele pé de imburana ali, ói!
- Ah tô veno, rapaiz! É já já, seus danado, vocêis me pagá!
- Pía, cumpade Inaço, dois carcará véi tão lá im cima!
- Vamo de quato pé, pur tráis déssa moita, fique calado e cuidado com essas urtiga que
já me queimaro todim. Pare aí, já dá pra atirá neles, fique quéto... Já tá na mira... Tome - le
chumbo nos peito, seu

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caicará dos djabo, lái vem caino, ó, Cumpade Zé! Agora seu danado, eu vô le machucá cum us
péis, vô pisá im cima de você, seu bixiga!
Imprevistos acontecem:
- Aiiiiiiii, aiiiiii! Acuda aqui, Zé, o caicará apregô o bico e as unha 'nêu, puxe as perna
dele, puxe! Aaiiiii! Sórta, djabo, sórta! Infie um pau no mêi das unha dele, sigure as perna,
sinão ele me pega de novo, assim, segure firme, rapaiz! Agora eu vô vê se lasco a cabeça dele
com duas ô trêis predada* pedradas, pa vê se ele abre o bico!
- Cumpade Inaço, pia o ôto lá im cima!
- Cala a boca, que eu vou carregá a ispingarda de novo, iscuta, ói ele lá, pronto! Faça
zuada não... – murmura Inacio.
- Quedê ele? - Sussurra Pajaraca.
- Ói lá, tô veno, tá na mira! tome - le póiva também, seu bixiga!, vem caino e é pa caí
mêrmo! Correu, Pajaraca. Vai, pegu'm pau e corra atrái dele, que ele só tá com uma asa
quebrada. Bora, passe o pau nele, assim... Pronto, num pise im cima não, sinão ele méte – le o
bico pra cima, jogue essa péda im cima desse safado. Pronto! Pronto, ai já tá bom. Morra não,
gota serena!
Passado o rebuliço para matar um carcará, algo semelhante à dificuldade que uma
Zebra teria para matar um leão, Inacio estabelece um serviço quase impossível de ser
realizado por um homem tão desajeitado como Pajaraca:
- Agora, cumpade Zé, você se suba no pé de pau, que eu vô cortá uma vara de
mamelêro* árvore da caatinga pra você catucá o ním, pa derrubá essa praga ruim do djabo que tá aí
dento dele, que eu num vou gaxtá chumbo com essas ruindade do djabo não.
- Oxente, eu, cumpade?
- Sim, cumpade. O qué que tem?
- Cumpade, eu só entro im casa por tráis, pra num tê que subí nus batente...
- Vala, e purquê isso?
- É por causo de meu ispinhaço, que é dirmantelado. Ôta é por causo que eu tem
med’e artura! Dêur me live d’eu se atrepá num pé de pau desse, cumpade!
- Mais dêxa de lorota, cumpade Zé! Eu te cunheço, caba! Pensa que eu num sube da
vêiz que tu se atrepô bem na ôinha do pé de acácia só pa sis’condê de fazê inzame de sâingue?
- Tambéim, né, cumpade? Já num báxta muriçoca e mutuca pa tirá sâingue da pessoa,
‘inda vim o povo atráis de fazê a mêrma coisa?
- Pois é. Pass’a mão na téxta* testa, fronte e invente ôta. Bora, dêxe de fulerage e sub’aí,
rapaiz. Eu vô le pagá, caba véi bêxta! – Inacio pôe uma nota de mil cruzeiros no bolso da
camisa de Zé Pajaraca, o que, de certa forma, tira um pouco do medo de subir na árvore.
Mais um pouco de conversa, de tanto Inacio, acaba convencendo Zé Pajaraca a subir
na árvore. Coisa que de fato, ele faz, mas não com tanta desenvoltura quanto Inacio presumiu:
- Suba mais, vai. Mais.. Aí tá bom. Tome a vara pra você catucá. Assim, vá impurrano,
eles vão caí cum ním e tudo. Ói, já tão caino… Puf! Lái vem, desça ligêro, sinão eles vão ficá
correno, mais eu le pego seus djabo criado cum língua e ôi de galinha dos ôto! Tome pisada
que eu quero é vê suas tripa saino pelo bico e pelo fiofó! tome - le, você também! Pronto,
acabô-se foi tudim! Ufa!
João Nunes teve seu momento para descarregar as emoções. Cada pisada lhe estornava
um pouco da raiva que sentia pelos seus bichos mortos, já que ele não criava para comer, e
sim, somente para adornar seu terreiro.
- Agora Pajaraca, você tire umas imbira* tira de casca de árvore, com a função de cordão daquele pé de
imbiratanha, depois você amarre os quato junto, que é pa mim levá eles, pa butá e dexá

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ispetado nas ponta das ixtaca da cêica pa sirví de exemplo prus ôto, e a partí de amanhã você
vai caçá mair ním puraí, cumeçano lá pelo Arapuá, passano pelo Pau-de-leite, no Cabacêro, na
Quixaba, no Logradô dur Minéu, no Bota-abaxo, no Jardim, nos Pôrco, no Loreto, na
Cachueira Grande, nas Cupira, nos Cavuco, na Urtiga, e inquanto tivé caicará nessa
redondeza, eu num vô sussegá!
A verdade é que o carcará hoje é figura folclórica do sertão. Tal ave de rapina quase foi
cruelmente dizimada de todo a região principalmente por esse motivo, o ataque às galinhas ou
borregos. Hoje, virou um símbolo do sertão e aos poucos tem surgido novas revoadas, mas
poucas. Junto com urubus, e gaviões, fazem a limpeza das matas, comendo restos de animais
em decomposição. É uma bela ave, parecida com uma águia, mas que no embalo da seca,
quando até as carcaças são escassas, partem para comer qualquer coisa que ainda esteja viva.

Mãe Rosa “Pegadeira de menino”.

CAPÍTULO X
1953 – Sítio Lameirão / Vila de Santa Teresinha
O problema de Abigail.

1953 foi mais um ano seco na região de Santa Teresinha. Mais um ano de aperto. Zé
Pajaraca, trabalhava na casa grande, Abigail em casa se queixando de uma dor no pé da
barriga que não a deixava em paz e Firmina conseguiu a muito custo que seus pais a
deixassem ir para a Santa Teresinha e lá ver como se faz para virar freira, desde que arrumasse
serviço na casa de alguém em Santa Teresinha. E foi isso que ela fez. Era ajudante na banca
de Dedé Fumeiro, vendia fumo de rolo e durante a noite, dormia na casa de sua tia Doroteia,
também conhecida como Carrôla. Expedito, fazia alguns serviços ajudando o pai Pajaraca e os
demais filhos pequenos ficavam em casa mesmo, aperreando a mãe no terreiro.
O fenômeno da seca do nordeste nunca deixou de ser um monumental espetáculo,
assim como não deixa de ser um objeto representativo de tanta miséria. No entanto, o povo
desta região é resistente. A prova está aí, pois a espécie Homo Sertanejus ainda não se
extinguiu. Não se engane, vale a pena conhecê – los, pois são alegres, festivos, dançam forró,
trabalham, são criativos, unidos, acreditam nos milagres de Frei Damião e de Padre Cícero do
Juazeiro. São sobretudo, servos de Deus.
Entre eles, não existe qualquer espécie de racismo. O moreno claro é o tom de pele
predominante. Possuem uma estatura mediana, um pouco abaixo da média nacional.

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São tão calorosos que, quando recebem alguém nas suas casas, se for o caso, dormem
no chão para dar a rede para sua visita deitar. Fazem grandes sacrifícios para agradar as
pessoas, pois são muito simples, humildes e nunca exaltados. E claro, ali também se encontra
muita gente bonita.
Pajaraca é produto daquele meio humilde, mas vivia sempre alegre e festivo. Fazia
suas presepadas quando tomava uma, ia às festas de São Pedro na casa de Pedro Nunes, lá no
Arapuá, ia também às novenas na casa de Chiquinha de Mané Canuto, onde o velho papagaio,
de sessenta e nove anos vivia num torno fincado na parede por cima da mesa que servia de
altar, de onde cantava junto com as mulheres os hinos de louvor aos santos. Ele nunca perdia
as festas da igreja lá em santa Terezinha, assistia às santas missões pregadas por frei Damião
de Bozzano, além de não perder às animadas festas da casa de Zé Oliveira lá no Jardim,
principalmente as de São João. Sempre que podia, levava Abigail, pois a dor no pé da barriga
constantemente a deixava muito indisposta para essas coisas.
Dona Vicênciaàs vezes também fazia suas festinhas e Zé Pajaraca, junto com sua
mulher e filhos sempre se faziam presentes, pois moravam perto. Eles queriam muito bem a
ela e a Mané Roldão, pois sempre os ajudavam como podiam. Inacio nunes, também era
muito amigo de Zé Pajaraca, e gostava muito de brincar com ele. Pajaraca chamava ele de
“Pajara”. E Pajaraca chamava ele de Inaço Lapilango.
- Ô caba fêi tu é, parece uma Pajaraca no tôco!
- Fêi é tu, parece um calango lapilango!
Na casa de Zé Alves, também tinha festas animadas, e sanfoneiro era o que não faltava
na redondeza. O forró era o que havia de mais moderno, e a cabrochada* os jovens dançava
numa carraspana* bebedeira arrochada e desmedida, pois cabrocha do cabelo de xerém era o que
não faltava ali por perto, e elas sabiam balançar o esqueleto como ninguém.
Pajaraca era um quarentão desligado e displicente, mas prestava atenção a tudo que
fosse relacionado a folia. "Chiquita Bacana lá da Maquinita" era o hit que estava na moda,
"...Andava pelas estradas vestida numa casca de banana nanica pedindo carona aos
caminhoneiros..." era o trecho da cançoneta que Pajaraca sabia de cór e vivia assoBigaíndo
esse refrão quando ia na cacimba pegar água.
Outro por exemplo, era um rapaz chamado Zé Serafim, que tocava sanfona batendo o
pé no chão, porém quando tomava umas quatro ou sete, ficava conversador, pois a cachaça lhe
tirava as papas da língua.
Tinha também o Inácio Lucena, o “ganga”, primo de Pajaraca por parte de pai. Este,
quando via uma moça, ficava todo entronchado, arrastava a asa no chão como faz um peru.
Seu sorriso para as moças arreganhava os dentes e arregaçava as ventas de um jeito que dava
pra ver os miolos.
Abigail, a mulher de Zé Pajaraca, coitada, tinha o bucho quebrado de tanto parir e
trabalhar na cama; vivia sentada numa pedra junto às trempes de seixos onde acendia o fogo
para cozinhar os preás e a panela de angu de xerém que era a comida predileta do marido.
Enfiava a saia dentro das coxas, jogava o buchão por cima e ali passava o dia chupando o
canudo do cachimbão e Pajaraca vivia aperreado com aquele bucho que nunca diminuía de
volume. Comentava com os amigos, tomava conselhos com benzedeira e até com
catimbozeiro, e nada daquele bucho diminuir.
- Comé que pode? Uma muié tão bunita, rapaiz? Cum um bucho daquele tamãe*
Tamanho... - Comentava ele com os vizinhos, entristecido.
Mãe Rosa, muito amiga dela, rezava tanto que os ramos ficavam murchos e nada
daquele bucho baixar. Disseram que chá de folha de cardeiro era bom, mas Pajaraca varou o

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Lameirão todo e não encontrou as tais folhas milagrosas. Talvez pelo fato de que cardeiro seja
um cacto, portanto, não tem folhas e sim espinhos.
O velho Zé Pio, que também era rezador, nada pôde fazer, mas garantiu que conhecia
uma raiz que se ela tomasse um único chá, ficava curada por toda vida e seu corpo ia ficar de
fazer inveja a qualquer modelo lá das passarelas de Paris, mas antes tinha que combinar o
preço da receita, para somente depois ele ensinar onde encontrar a tal raiz.
Pajaraca se lamentou dizendo que nada possuía, mas o velho Zé Pio fincou o pé na
parede dizendo que só ensinava se recebesse adiantado. Como o caso envolvia a saúde de sua
esposa, Pajaraca resolveu dar como pagamento quatro capões e três galinhas que estavam
engordando no chiqueiro para o resguardo de Abigail que já estava prestes a parir mais uma
vez.
- E eu vô cumê o quê no meu resguardo, Pajaraca? - Pergunta Abigail.
- Eu dô um jeito, muié! Eu quero é vê tu boa desse buchão, criatura. Esse ano tá dano
muito preá* pequeno roedor e punaré* ave aquática e é só você cumê eles cum angu e pronto!
Depois de tudo acertado, o velho Zé Pio ensinou tudo direitinho a Pajaraca, sobre
como encontrar a raiz da pedra branca, que segundo ele, só tinha lá na serra de Catingueira.
Depois pegou o caminho de sua casa com quatro capões na ponta de uma vara e três galinhas
na outra ponta e recomendou que quando ele encontrasse as raízes, mandasse avisar que ele
em pessoa faria o chá para dar a Abigail.
Pajaraca procurou, procurou e não encontrou as raízes. O velho Zé Pio se defendeu
dizendo que as tais pedras brancas só criavam raízes em ano bissexto, ou seja, só no ano que
vem. Portanto, ele tinha que esperar e esse só vinha daqui a mais três anos, ou seja, ele que
esperasse. Veja bem: Pedra criando raíz...
- Avisá o caba disso tu num avisa, né, véi? Cadê meus bicho? Eu quero de vorta!
- Ah, meu bom. Já cumi e inté já interrei as pena...
Nesse meio tempo Abigail pariu mais duas crianças gêmeas, e aquele barrigão não
baixou. O povo dizia que dentro daquela barriga ainda tinha mais dois meninos grandes como
aqueles que tinha nascido, e estes juntos pesavam meia arroba cada um na balança de pesar
algodão, fora o fiel.
Abigail ficava o dia todo sentada na pedra junto da trempe, o bucho em cima das
pernas e um menino pendurado em cada peito, e a única coisa que fazia para espairecer era
pitar o canudo do cachimbo. As bochechas já estavam fundas de tanto chupar aquele troço
entupido de sarro de fumo.
Pajaraca continuava triste e aperreado. À noite, sentava no batente da porta da frente e
ficava olhando as estrelas até que o sono batesse. Acordava cedo, ia buscar água na cacimba,
na volta passava no fojo para pegar os preás, às vezes ia ao açude pescar algumas traíras, ao
chegar em casa tratava tudo, salgava, botava no cambito para secar, botava Bosta fora de casa
para ele não ficar fuçando e derrubando as coisas, lambendo nas pernas dele e grunhindo
suplicantemente para ganhar um pedaço do peixe.
Para diminuir aquele inchaço na barriga da esposa, Pajaraca fazia promessas, andava
ajoelhado em volta da casa, jogava água quente num gato ladrão que tinha por lá e estava
tentando roubar o preá do cambito, ia na rua confessar os pecados a Padre Zacarias por ter
jogado água quente no gato que estava tentando roubar o preá do cambito; e nesse embalo, foi
a bater na Cruz da Menina* Parque religioso em Patos, PB. e o ano bissexto ainda estava longe. Tudo
estava longe do seu alcance mesmo, e ele triste, consigo pensava:
- Uma muié tão bunita, meu Deus, sofreno...

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E ali ficava ele sentado na pedra em frente da casa, murcho. Olhos vidrados para o
nada, parecia um gato cagando na chuva.
Certo fim de tarde, quando ele chegava da casa grande e estava lavando os pés n’uma
bacia, olhou para o lado e viu que vinha muita gente seguindo pela estrada, uns montados em
cavalos, éguas, jumentos, burros e muitos outros a pé.
O cavaleiro da frente chegou até ele e deu boa tarde. Aí foi que Pajaraca reconheceu o
chegante; era o cigano Ismael que vinha com seu bando.
No apertar das mãos o cigano foi logo falando:
- O amigo tá todo atrapaiado cumigo? o que foi?
Pajaraca confirmou apenas com um aceno de cabeça. Lá de dentro, com os rinchos dos
animais de montaria, Abigail saiu na janela para ver o que estava se sucedendo. O cigano viu
Abigail assustada na janela. Tamanho foi o susto que o seu cachimbo caiu. Ao ver que eram
ciganos, ela soltou os meninos no chão e correu para o fundo da casa onde o jumento estava
amarrado. Sua intenção era esconder o mesmo lá no fim do roçado, mas já era tarde, pois
alguns do bando se aproximaram puxando uma jumenta velha, toda carcomida e propuseram
trocá - la pelo jumento e pediram "apenas" cinco galinhas de volta.
Abigail amarrou o jegue dentro da cozinha, encheu o bornal* bolsa que se pôe comida para
jumentos diretamente na boca, colocou o jumento para comer e assim não relinchar, ficou de frente a
porta e declarou:
- Tem esse gato aí, pode levá se quisé…
- Não, a gente qué é o jumento!
- Oxe, não sinhô! O burro não, a gente pricisa!
Já informado da doença da dona da casa, o chefe dos ciganos, que tinha ouvido a
proposta que os capangas do seu bando tinham feito à Abigail e entrou na conversa dizendo
que não aceitava aquele negocio de troca sem pé nem cabeça:
- Ô ganjona, * senhora, no linguajar dos ciganos. minha jumenta tá pelano assim porque ela tá pa
parí dois jumentim. A troca é trêis por um e a ganjona tá achano ruim me dá cinco galinha véa
só pela consideração? De jeito nenhum, assim num tem troca!
- Oxente e eu num tô quereno fazê troca ninhuma não! Seu caba aí é que já vêi puxano
o cabrêcho do meu jumento cum borná e tudo e quereno que eu fique cum essa cavêra véa aí,
eu mêrma num quero não.
E o cigano ainda insiste em impôr sua negociação:
- Vamo fazê o negóço assim, eu vou lê a sua mão aí eu discubro a sua duença, e a
sinhora me dá cinco galinha por isso, depois eu insino o reméido e recebo o jumento como
pagamento da receita. Ainda sou tão autrixta* autruista que dêxo a minha burra pra sinhora tê
lembrança boa de nóis que é cigano. Abigail deu um pulo inconformada:
- Pois eu vou morrê de bucho inchado, vô ixpludí, mais o jumento, nem pensá. Ele
fica! Leve esse rebãe* rebanho de gato véi, cigano num qué bem a gato? Apois pronto, leve!
Pajaraca pasmou - se com a vivacidade em sua esposa defender o seu jumento, pois
fazia tempo que ela vivia uma grande moleza, sem ânimo nem para bocejar.
- Rapaiz, Bigaí tá braba, toda! Isso qué dizê qu'ela tá ficano boa. Issé um milagre! -
Pensou - Mais cuma qu’eu vô sabê se foi frei Damião ô foi meu padim, Padim Ciço?
O cigano sertanejo era uma figura bastante peculiar. Dos hábitos ancestrais da terra
natal Romênia, pouco restava. Aquele bando nada mais era que um sincretismo cultural do
sertão com o do leste europeu. Aquele grupo não fazia parte do clã originalmente instalado em
Patos, como a família Ron. No passar das décadas, os legítimos ciganos misturaram - se ao
povo nordestino. Muitos jovens desgarrados das suas famílias pelas mais diversas razões

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acabavam por ingressar a vida no bando, principalmente após o fim do cangaço, cerca de dez
anos antes.
Eles sobreviviam como saltimbancos, exotéricos entre outras coisas nas peregrinações
que iam de uma cidade para outra do sertão.
Não havia como negar que eles dominavam muito da sabedoria popular, mas caso ela
fosse contrariada, o opositor estava sujeito ao tribunal dos pica-paus* espingardas que cada um
trazia a tira colo.
- Pois se num aceitá a troca a sinhora vai morrê! - Ameaça o cigano, ao passo que
todos os seus capangas apontam suas espingardas para Abigail. Uma cigana do bando, sentada
de lado numa mula tenta convencê – la com o arrogante argumento:
- Quem que vai dá de mamá a esses dois minino véi sujo aí no chão, todo lambuzado
de bóxta mixturada cum barro? Me diga, ganjona?
- Ói eu num dei míi pas galinha ainda não, fique na sua aí! - Rebateu Abigail ainda
mais brava ainda com aquela conversa da cigana.
No entanto, Um comparsa cochichou no ouvido de Ismael, e ele lembrou - se que
várias pessoas influentes daquela região lhe estenderam a mão, tais como o doutor Baracuhy,
Chico Rufino, Zé Alves, Zé Gayoso entre outros, e deduziu que se fizesse qualquer mal
àquela família, todo o seu bando seria perseguido e que nunca mais seriam bem vindos
naquela localidade, isso se conseguissem sair vivos dela. Vendo que ali não ia dar negócio de
futuro, mas para não perder a viagem, ele ainda fez uma última proposta a Zé Pajaraca:
- Você dê uma galinha boa aí pra eu armunçá hoje, e cá eu le insino o reméido pra cura
essa sua muié véa fêa aí...
- Tá feito! - Concordou Pajaraca.
- Ói, vá lá na rua e compre bicarbonato de sódio, e mande ela tumá uma culerada todo
dia em jijum... Isso aí é bufa guardada.
Nisso, o cigano pega a galinha, enfia numa sacola daquelas de carregar cebola e bate
em retirada com o bando com tanta pressa que chega a poeira subiu.
Pajaraca, que era analfabeto de pai e mãe, nunca tinha ouvido falar em bicarbonato de
sódio, e do alto de sua ignorância, trocou a palavra original por “carbureto de solda”, que era
uma palavra mais comum aos seus ouvidos, pois na feira em Patos eles usam este mineral
para acelerar o amadurecimento das frutas e para acender farol de bicicleta, aqueles de
dínamo. Logo, este produto sim, ele sabia onde encontrar. Foi até Patos, onde residia Pedro
Ferreiro, hábil fabricante de facões, enxadas, correntes e todo tipo de ferramentas feitas com
ferro. Pedro cedeu as pedras de carbureto sem cobrar nada nem questionar para quê seria
usada, pois seu entendimento dizia que ele iria soldar algum pedaço de ferro em outro ou
botar manga pra amadurecer.
Chegando em casa, Pajaraca chama Abigail dizendo que finalmente tinha em mãos a
cura para aquela barriga inchada da esposa. Por sorte a pedra de carbureto era grande, e teve
que ser quebrada, batida num pilão para poder descer goela abaixo, e quando o primeiro
cavaco de pedra desceu, a fumaceira logo subiu pelas ventas de Abigail.
Sufocada e sem poder respirar, Abigail caiu ciscando no chão, as crianças chorando
amedrontadas…
- Vala me Deus, mainha tá morreno, paim!
E seu marido correu para buscar ajuda dos vizinhos, que lhe provocaram vômitos, e a
pedra saiu fervendo de dentro dela rasgando tudo que estava no seu caminho. Naquela
situação o jeito era voltar no doutor no posto de saúde lá em Patos, para que ela fosse
internada. A pergunta que não saía da boca de Pajaraca:

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- Quando é que tem carro pa Patos? - Pergunta Pajaraca a Alcinda.
- Rapaiz, passô onte, intão vai demorá, viu? Só sigunda que vem agora.
- É mió dá um jeito de levá ele pa Patos sem sê com caminhão de fêra.
- E quem que vai dá de mamá aos dois minino agora?
- Tem que levá, né, Pajaraca? - Responde Alcinda, afinando a voz, impaciente.
No outro dia logo cedo Pajaraca botou a cangalha no jumento que escapou da troca
dos ciganos, colocou dois caçuás, botou um menino dentro de cada um, assentou Abigail entre
um cabeçote e outro da cangalha e tocou para Patos. Saiu cedo da noite para chegar pela
manhã, pois era mais légua de distância de onde moravam até a vila de Santa Teresinha e lá
tentar a sorte com algum transporte que viesse do Piancó ou de Misericórdia até Patos. De
fato, em menos de uma hora passou um pau de arara lotado de romeiros que vinham do
Juazeiro do Padre Cícero.
Pajaraca tinha uma cunhada meio ruim das ideias, chamada Doroteia; mais conhecida
por ali como Carrôla. Pajaraca deixou o jumento em um curralzinho que existia ao lado da
casa dela e esta foi junto com o casal no caminhão para auxiliar no que fosse preciso.
Chegando na clínica em Patos, Carrôla, que era mais acostumada com o povo da cidade, bateu
na porta do consultório e o médico, o doutor Peregrino, já fora de seu horário de atendimento
e muito mal-humorado, gritou lá de dentro, tentando avistar através da pequena vidraça da
porta quem eram aqueles três:
- Quem tá bateno a mão com toda força em minha porta, hein?
- Foi Carrôla, dotô! - Respondeu Zé Pajaraca, mais que ingenuamente.
- Pois aprenda a bater com a mão, rapaz…
- Abra aqui, dotô. Minha muié tá dano um passamento.* passando mal. Ao atender na
porta aquelas figuras rurais, o doutor Osman não pôde se negar a prestar - lhes o devido
atendimento e claro, cobrar o mínimo possível, pois era visível que eram pessoas muito
carentes que lhe pediam socorro.
Aquele médico ficou espantado com o tamanho daquela barriga, não tinha nem como
fazer uma fluroscopia* exame de imagem anterior ao raio x para ver o que tinha ali dentro, mas todos os
sintomas e a experiência de médico indicavam que ela estava apenas entupida, e o jeito era
procurar saber o que ela comia.
- Dona Abigail, me fale o que a senhora ingere todo dia.
- Cuma, dotô? - Abigail franze a testa sem saber se ele xingava ela ou a mãe dela.
Dr. Osman tentou sem sucesso fazer algumas perguntas sobre a rotina alimentar
daquela senhora, mas Abigail não entendia aquelas palavras que o doutor falava. Foi o jeito
ele mandar o marido entrar para responder por ela as perguntas, daí o medico perguntou:
- Qual o seu nome, meu senhor?
- Jusé da Natividade Teofe, dotô.
- Seu José Natividade, a sua mulher tem apetite?
- Tem sim, dotô. O pititão dela é bem grandão... Mais pra quê o sinhô qué sabê?
Já passando a mão na testa e vendo que o marido entendia menos ainda às perguntas, o
médico resolveu perguntar no linguajar paroara* rural, matuto:
- Venha cá meu fíi, me digue uma coisa. Quando a sua mulé chupa manga, será que ela
anda ingulino os caroço?
- Ingole mair não, dotô. Ela agora só tá cumeno juá.
- E juá é o quê?
- Juá é uma bolinha ansim desse tamãe…
- E caroço de juá é grande?

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- É não dotô, é miudim. Mais umeno do tamãe de bosta de carnêro. Dá pra entrá pru
cima e saí lá imbaxo sem nem sintí.
- E sua mulé come muito juá?
- Inté que ela agora anda biqueira* sem apetite no dicumê dotô... Come máir nada não…
Só vive inguiano...
- Sua muié tem esse pobrema do bucho e o quê mais?
- Ela vive aduentada dotô, mais de trans - onteônte pra cá ela ficou ruinzinha dimais,
rapaiz... Ah, sim me alembrei de uma coisa, ela engiliu uma péda de comprimido e quando foi
pra lançá* vomitar, ela vêi ‘tresvessada, rasgano tudo que era tripa da póbe.
- E que péda foi essa, seu Zé?
- Foi a péda de reméido que o cigano mandô ela tumá pa ficá boa do bucho!
- Não estou entendendo seu José, uma pedra que é
comprimido?
- A péda tá aqui na minha gibêra*, algibeira, bolsa dotô. Ói ela aqui...
- Seu José, isto não é remédio, isto é carbureto de solda! Isto é sim um veneno mortal
para um ser humano!
- É dotô, foi aquele cigano véi nojento que disse que era reméido pa sará bucho
inchado, e ela inté ficou mais mió com esse reméido, e inté hoje ela tá mais boa do que onte,
pelo mêno agora tá dano uns arrôto… Soltano umas bufa...
- Sei, e que mais asneiras esse cigano lhe disse?
- Que nóis fosse se consurtá cum o sinhô!
- Pra quê perguntei, meu Deus? - Pensa consigo o médico.
- E intão, dotô? A véa iscapa?
- Muito estranho, seu José. Normalmente uma receita caseira muito eficaz é
administrar uma colher de bicarbonato de sódio em jejum...
- Foi issaí qu'êle falô! - Completa Pajaraca.
- É, seu José, mas o senhor confundiu com carbureto de solda! Por pouco sua mulher
não pegou fogo! Mesmo assim ela ainda está cheia de gases, arrotando sem parar. Agora o
senhor se retire que eu vou examiná - la com mais detalhes. Pelo menos já sei o que
aconteceu. Chame ela aqui.
Mais alguns exames e logo o doutor convocou Zé Pajaraca para o diagnóstico
definitivo, sempre no linguajar paroara, senão ninguém entende:
- Seu Pajaraca, chegue cá. Ói, o caso dela era mêrmo um caroço de manga inganchado
na tripa gaitêra, mais eu fiz uma lavage cum magnésia que saiu merda de tempo quando ela
era mocinha. O caroço vêi no pilotão! Bateu numa parede, bateu na ôta, quebrou o vrido da
janela e vuô puralí…
- Vixe Maria, dotô Ormã, intão pegô pressão…
Após ser colocado a par do caso, Pajaraca perguntou:
- Ô Dotô, quando o sinhô viu o carôço saino, reparô se o buraco ficou folóte?
- Não, seu Pajaraca, vai ficá normá...
O bom médico fez com que Abigail se livrasse daquele tormento. Já estava boa pouco
tempo depois. Os parentes dela sempre procuravam saber como ela ia passando e se
admiravam como depois ela ficou batidinha.

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Minervina
CAPÍTULO XI
Lurdes de Zé Alves.

Desde a morte de Mariquinha, a matriarca do sítio Lameirão tal como ele é, que
ocorreu em 31 de dezembro de 1949, que há ainda um certo enlutamento no meio de todos
que ali vivem, pois, ela era muito querida. Mariquinha deixou muitos filhos. Após a sua
morte, seu viúvo, Joaquim Nunes, decidiu fazer em vida a partilha das terras entre seus filhos;
que totalizavam 11. Entre eles, Zé Alves, Inácio, Vicência, João Nunes e por aí vai. Zé Alves,
que na sua juventude foi mascate e fazia viagens constantemente de Patos a Campina Grande
negociando gado e algodão, juntou um bom dinheiro para que, no momento certo, pudesse
comprar mais terras e assim expandir suas atividades rurais. Logo, comprou dos irmãos
mesmo a maioria das terras a um bom preço na época dessa partilha.
Zé Alves também teve muitos filhos. Herdou da falecida mãe a austeridade nos
negócios, jamais os misturando com amizade. No entanto, na parte de ser amigo, era amigo de
todos e também muito querido. Embora tivesse outros irmãos que também angariaram certa
condição financeira, Zé era de longe o que mais tinha moradores e que muito lhe ajudavam na
labuta do sítio, sendo que jamais nenhum deles ergueu – se perante a lei para reivindicar algo
que, por direito, Zé Alves já não tivesse proporcionado.
Esta formação foi sendo gradativamente herdada pelos filhos de Zé Alves. Todos eles
tinham a intenção de perpetuar as atividades rurais tão zeladas pelo pai, e que remontavam a
mais de 100 anos antes, desde o bisavô deles, Nicolau, lá da fazenda Bom Jesus, em Santa
Gertrudes. Entre esses filhos, o destaque vai para Lurdes. Lurdes é a filha mais velha de Zé
Alves; nasceu em 1922, no dia que a princesa Isabel morreu.
De todos os seus netos, ela foi quem mais sentiu a partida repentina de sua avó,
Mariquinha. Na época, Lurdes adquiriu o que hoje chamaríamos de depressão profunda.
Lurdes ficou vários dias sem se alimentar bem, sem sair, conversar, nada. Ficava apenas
deitada em sua cama.

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O tempo passou, a dor da morte da velha Mariquinha até cicatrizou para os demais
entes queridos e Lurdes também aos poucos foi se recuperando. No entanto, nunca por
completo. Aquela jovem e bonita moça, de longe a mais bonita de todo o Lameirão, cortejada
por todos os bons partidos que haviam por ali, de repente se viu em um estado de constante
apatia. Até saía novamente, ia para a casa de suas tias, ia para as novenas; mas não mais com
aquela alegria de viver. Sem mais aquele brilho de sorriso através de seus lindos olhos verdes.
Suas irmãs mais novas, Nita, Marina e Quinha faziam de tudo para animá – la. Nas
festas que o pai frequentemente fazia, traziam ela quase à força para dançar, se enturmar e
conhecer os rapazes:
- Bora, Lurde. Se anima, muié! O subrim de Zé Américo tá vino de Patos le cuincê… -
Afirma Marina.
- E quem é esse? - Pergunta ela, indiferente.
- O guvernadô, criatura. Tá lembrada não?
- Eu? Lembrada de quê?
- Mulher, aquele moço galegão que num tirava o ôi de tu?
- No comício?
- Sim, criatura. Se alevante daí. Bora lá po mêi do povo, bora. Boraa!! - Puxando ela
da cadeira.
E assim Lurdes ia. Apática, mas ia. Queria muito bem às suas irmãs. No fundo ia
somente para não vê – las tristes ou preocupadas. Mas também no fundo, só Deus sabe o que
afligia o coração de Lurdes.
Vale também salientar que não foi somente a perda de sua avó, ocorrida a 3 anos, mas
também de uma grande amiga, chamada Anatildes, esposa de seu tio João Nunes, a pouco
mais de um ano. Elas eram muito confidentes, sempre se ajudavam e Lurdes gostava muito de
ajudar nos resguardos de sua amiga. Entretanto, em 1952 Anatildes adoeceu e rapidamente
veio a falecer, aos 32 anos. Isto também certamente contribuiu para aquela apatia. Lurdes,
antes um mulherão, que cavalgava sozinha no cavalo mais alto do sítio, ia bater em Patos e
voltava nos comboios do pai, agora vivia reclusa e se alimentando mal e qualquer resfriado
lhe derrubava.
Não era de se estranhar, depois de um tempo Lurdes passou a sentir constantes
tonturas, frio no corpo, torpor, crises de falta de ar e uma tosse que por nada passava, além de
uma forte e recorrente dor no peito. Sua família ficava atônita. De uns tempos pra cá, ninguém
dormia direito naquela casa. Somente os chás de Regina, sua mãe, não resolviam mais. As
idas a Patos em busca de consulta médica passaram a ser rotina e sempre que voltava, era com
vários frascos de remédio e cachetes de comprimido. Tudo na intenção de aliviar aquele
tormento crescente que circulava por aquela casa e abraçava cada vez mais forte aquela linda
moça.
Os moços pretendentes, foram dispensados um a um. Inclusive o Euclides, sobrinho
do governador. Aquela moça bonita, boa de conversa e bem feita de corpo, estava
emagrecendo e até mesmo falando menos. Toda semana Lurdes ia para Patos acompanhada de
sua mãe e sua irmã Nita. Iam no caminhão de Zé Lino mesmo, sem luxo; na boleia. Uma certa
vez, foram com um bom dinheiro. Zé Alves tinha vendido duas reis * vacas para que o dinheiro
pudesse pagar exames mais complexos. Neste dia elas pernoitaram em Patos, no hotel
Central.
A viagem do caminhão era sempre muito cansativa e demorada. Lurdes tinha chegado
muito cansada da viagem, sobretudo da poeira, o que tinha agravado ainda mais a sua tosse.
No outro dia, logo cedo, foram de táxi até o hospital e fizeram exames. Foram necessários

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dois dias em Patos para que todos os exames fossem feitos, os médicos analisassem tudo e
dessem o veredito:
- Lurdes é portadora de uma cardiopatia grave e degenerativa. - Diagnosticou o doutor
Peregrino.
Se fosse nos dias de hoje, Lurdes estaria na fila dos transplantes. Em 1953, não. Tudo
teria que ser resolvido na base da medicação ou reza. E os remédios passados eram cada vez
mais fortes, e os efeitos colaterais, também. Findado o que poderia ser feito, o médico passou
todo o receituário, a lista de proibições, contendo coisas que ela não poderia fazer mais, nem
comer, sendo que praticamente tudo da lista ela já tinha mesmo perdido o gosto de fazer.
Entre as medicações que deveria trazer para casa, um isopor cheio de ampolas de Carvedilol,
que deveriam ser ministradas em duas injeções diárias. Também dentro do isopor estava a
seringa metálica, exclusiva para Lurdes. Por sorte ou não, no Lameirão o que não faltava
naquela época era quem aplicasse injeção.
Ao saírem do hospital, atravessam a rua e almoçam em uma mercearia ali perto.
Lurdes, já medicada com a primeira injeção até tenta comer, mas quase nada consegue, pois
logo começa a tossir e se engasgar. Sua mãe e irmã, também praticamente perdem o apetite.
Na hora marcada, o táxi surge na esquina. Elas adentram o veículo e o chofer as conduz até o
centro, na lateral do hotel, que serve como ponto de embarque e desembarque de viajantes em
seus ônibus e caminhões. Elas fazem o mesmo para aguardar a chegada do caminhão de Zé
Lino com as feiras e os moradores.
Não demora muito, o caminhoneiro surge. A vaga na boleia, já reservada, está vazia. Já
o resto do caminhão, está abarrotado de crianças, velhos, adultos, bêbados, bode, galinha, e
um monte de caixote de feira. Tudo equilibrado e amarrado firme com corda de agave.
Todos adentram o caminhão. Zé Lino dá a partida e lentamente o veículo toma destino
ao poente. Ao todo, aquela “composição” iria percorrer cerca de 40 quilômetros até chegar em
seu barracão, na casa de Zé Lino, lá nas Quixabas.
3 horas da tarde. Os raios do Sol espetam sem piedade as vistas de quem está naquela
viagem. Todos fazem careta, põem a mão no rosto, se abanam, protegem o nariz da poeira
com um pano, enfim, se viram como podem. As últimas casinhas de taipa da cidade de Patos
são deixadas para trás, e consigo, o calçamento, onde a viagem ainda era um pouco
confortável.
Surge agora a interminável estrada de terra, poeirenta e caroçuda, com grandes pedras
grudadas na areia que, quando o pneu do caminhão passava por cima de uma, o solavanco era
grande, já que a suspensão do mesmo era quase inexistente. Com a pancada, a bagunça na
carroceria era grande. Tudo saía do lugar, gente caía, caixa caía, galinha se soltava, bode,
enfim. Era um Deus nos acuda! Isto perdura por cerca de três quartos de hora, até o caminhão
chegar na vila de Santa Teresinha, onde alguns desembarcam, e outros embarcam, rumo aos
seus lares, nos mais longínquos sítios.
Na boleia, o silêncio reina. Zé Lino em uma ponta, Lurdes na outra para poder pegar o
vento, e no meio, Regina e Nita. A parte mais judiosa era sem dúvida aquela viagem de volta,
tendo que ser feita sempre naquele horário, de frente para o sol. Resolvido o sobe e desce
do povo em Santa Teresinha, o destino agora é o sítio Lameirão. Já está mais perto do que
longe. O silêncio na cabine só era quebrado com as constantes crises de tosse que Lurdes
tinha. Tossia, tossia até fazer parecer que ia desmaiar. Nita e Regina, seguravam sua mão,
faziam massagem nas suas costas, limpavam o suor em sua testa, meio sem posição devido ao
aperto da cabine, mas, tudo que queriam naquele momento era chegar em casa.

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O caminhão foi vencendo gradativamente cada mataburro, cada alto, cada descida e do
baldo do Botabaixo, todos avistaram de longe a casa de Zé Alves:
- Se preocupe não que tamo chegano, dona Lurde. – Acalma Zé Lino, quebrando o
silêncio.
- Ave Maria, nem me fale. Parece que hoje demorô mais que das otas vez... - Retruca
Nita.
- Não, eu nunca vi um negóço desse... - Responde Regina.
E Lurdes sempre calada, com o olhar perdido.
Nisso, o caminhão toma a reta final, para entrar no corredor que dá acesso à casa de Zé
Alves. Repentinamente Lurdes crava fortemente a mão no peito e tudo que se ouve é:
- Ai, meu pai…
Foi tudo muito rápido. O velho caminhão cara branca, é de cabine de madeira e não
tem porta. Logo, Lurdes infelizmente tombou para o lado de fora, em fração de segundos;
caindo do caminhão e batendo a cabeça em uma pedra, ficando lá inerte. Nita e Regina em um
ato desesperado, tentaram segurar Lurdes, mas quase também caem do caminhão, vindo
ambas a se machucar, sobretudo com a freada do caminhão após Zé Lino ter percebido o que
aconteceu.
O desespero foi tremendo. Todos desceram do caminhão e foram em socorro de
Lurdes. Cada um que a abraçasse, tentasse de seu jeito reanimá – la:
- Lurde, fale comigo, Lurde! É sua amiga véa, Bigaí...
A primeira que foi ao encontro de Lurdes foi Abigail, que estava em Santa Teresinha
com Firmina. Em seguida o restante do povo que estava no caminhão também se amontoava
ao redor de Lurdes. No fim, a multidão abre passagem para que Nita e Regina, embora
machucadas, pudessem se aproximar:
- Minha, fia, minha fia!!! Por quê não me disse que tava sintino as coisa?? - Grita
Regina.
- Ô meu Deus, acuda minha irmã, eu le imploro! - Suplica Nita, abraçada com o corpo
ensanguentado da sua irmã, que ainda dá seus últimos suspiros.
Nada mais podia ser feito. Aqueles eram de fato os últimos suspiros de Lurdes.
Rapidamente seu corpo esfriou e os suspiros cessaram. Um ar de tristeza, revolta e resignação
tomou conta daquele pé de estrada. Em poucos minutos aquele lugar estava tomado de
pessoas dos arredores. Zé Alves e seus filhos vieram rapidamente em seus cavalos, também
não contendo seus prantos. De dentro de uma picada do mato, Pajaraca surge, acompanhado
de seu filho Expedito, indo de encontro a sua esposa Abigail.
- Ô Zé, cabôsse dona Lurde, Zé!!
- Ô meu Deus, que Deus a tenha. Discansô né? Tava sofreno, né?
- É mais é muito trixte isso, Zé. Ô meu Deus...
- Que saingue é esse em tu, Bigaí?
- Eu ainda tentei acudí, mais ela tinha danado a cabeça no chão, Zé. Eu fui a primêra a
tentá acudi minha amiga véa...
Eram quase 5 da tarde. Uma multidão fez vigília naquele lugar. A família toda
abraçada, chorando horrores, em desespero. As pessoas ao redor, umas seguiram o caminho
de suas casas a pé, levando a triste notícia, outras ficaram lá até o fim. Em meio a tanto
desespero, alguém tinha que tomar a triste providência de encomendar caixão e demais
procedimentos fúnebres. Isto ficou a cargo de Inácio Nunes, irmão de Zé Alves. Inácio
conversa com Zé Lino para transportar o corpo de Lurdes no caminhão mesmo, até a casa de

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Zé Alves e lá o prepararem para quando o ataúde chegasse. Duras tarefas para cada um. Na
casa, diante de toda dor, tal atividade ficou a cargo de Minervina e Mãe Rosa.
A noticia da tragédia que ocorreu, rodou aqueles sertões até nas difusoras de rádios
distantes, como a de Patos e Caicó. O enterro só veio ocorrer dois dias depois, já que parentes
e amigos de muito longe vieram dar seu último adeus. Lurdes se foi aos 31 anos. Enterrou –
se no pequenino cemitério da vila de Santa Teresinha. Desde então, o Lameirão nunca mais
foi o mesmo. Passou a existir a recomendação de não se falar no nome de Lurdes diante de
seus familiares, que rapidamente desabavam em prantos.
A dor das lembranças eram tantas que, Zé Alves ordenou que fosse traçada uma outra
estrada, alternativa àquela onde aconteceu o trágico acidente. No lugar onde ocorreu tal
infelicidade, ficou por muitos anos apenas o cruzeiro de ferro, em sufrágio da alma de Lurdes,
que anos depois desapareceu, roído pelo tempo. O traçado da velha estrada também
desapareceu. Hoje, resta apenas uma grande clareira. Nada cresceu ali. Nem árvores, nem
mato, nada.

CAPÍTULO XII
1954 – Sítio Lameirão
A Goipéba.

Em meados da década de 1950, Zé Alves era conhecido por lidar com tudo que era
criação de bicho. Gado bovino, ovino, asinino, equino, menino, era com ele mesmo. Em 1954
ele era um senhor de meia idade, magro e esguio. Gostava muito de óculos estilo aviador e de
andar sempre com perfume forte. “Zé Aivo” , como já sabemos, tinha como um de seus
moradores o ilustre Zé Pajaraca, que residia numa casinha que era de Inacio Nunes e este
vivia sempre a ser solicitado nos mais diversos serviços.
Certa feita, Zé Alves estava muito confuso e aperreado com seus cavalos. Toda boca
de noite, que ele fechava a porteira, um cavalo ia dormir bonzinho, e acordava morto. Ele
desconfiou de mil coisas, chamou outros criadores, veterinários, consultou um livrão de
veterinário que ele tinha, mas nada de solução.
- Má rapaiz, tanto que eu ajudo e quero bem a esse povo, será que tem arguém butano
bola no meus bicho?
- Sim, Zé, mais se fosse arguém, os cachorro latia – Contrapõe Regina, sua esposa.
Uma senhora baixinha e muito simpática.
- Esses dois pé de priguiça aí? Homi, só serve pa bufá! Duênça num é, porquê eu vacino e
tomo cuidado. Tiro também num foi, sinão ficava o buraco e eu ia uví a zuada e eu cunheço o
tiro das ispingarda desses caçadô daqui tudim.
- Apois intão tá ruim, Zé...
- Só se...
- Hum?
- Bem, cum esse, já faiz trêis cavalo que morre assim do nada. Eu vô lá na ca’de de
cumpade Inaço pa vê se Pajaraca ainda tá caçano bicho pa ele. Se ele num tivé, ele pudia vim
ficá de noite ataiano* pastoreando a baia pra vê se pelo meno ele vê o bicho morrê.
- Eu tem pra mim que ele pegô um sirviço lá im cumade Arcinda.
- Foi? Ah, cum ela eu me acerto.
No dia seguinte, já na casa de Inacio, após narrar todo o acontecido:
- Mais cumpade, será que isso num foi catimbó do véi Zé Píi não?
- Nam cumpade, eu me dô bem cum ele...

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- Sim, mais aquele véi é sintido. Tu pagô aquele pilão que tu mandô ele fazê?
- Ora se não? E ele faiz nada se num fô casano o dinhêro na frente?
- Possa sê que ele tenha ficado cum raiva por naquela vêiz tu num tê trocado o teu
cavalo na charrete por aquela burra dele.
- É, num vi futuro ninhum não.
- Ela tava amojada* prenha, pelo meno?
- Nam!
- Oxi, e ele é doido, é? Onde já se viu querê trocá uma burra véa chêa de bichêra num
cavalo manga láiga na charrete?
- Ele quiria dá na vorta umas rezada nur meus roçado, dizia que nunca mais ia dá
praga ninhuma e que podia tê a seca que fô, que no meu roçado ia chuvê. Disse que eu
pricisava da reza e ele, do cavalo, mais num me interessô não.
- Tá veno, cumpade? Foi ele! Se infezô cum raiva e feiz uma macumba prus cavalo!
Vai morrê tudim, cumpade, arre Maria! – Assusta – se Inacio.
- Crê im Deus, qué santo véi, cumpade. Foi ele não. Ôta, eu num acridito im macumba
não.
- Ah, e não, é?
- Nam.
- Intão me diga mêrmo o que é aqueles arguidá* alguidar, bandela arredondada cum um lito de
cana dento, farofa, galinha preta... E que aparece lá na incruzíada da entrada da ixtrada do
Arapuá, me diga!
- Mar’minino... Se Pajaraca vê, aquilo é armoço!
- Ele é doido intão. Dig’ué nada...
- Poi’sé meu véi... Sei que eu tô fican’é no prijuízo nessa cunvessinha. Já ispiculei sê a
água, o capim muído, a ração... Nada, nada nada!
- Será muicêgo? Caicará?
- Piorô!
- Uvi dizê que tem muicêgo que nar noite de Lua chêa vira vampiro! Pirigoso pegá até
nóis!
- Nem Lua tá teno, cumpade. Tu dorme cedo e num vê que o céu tem istrêla toda noite.
Né nada disso não, homi!
- Apois intão tá ruim, viu cumpade? Eu num posso le ajudá im nada até purquê eu
nunca tive condição de criá nem um jumento, quanto mais cavalo.
- É aí que tá, pode sim. Cadê Pajaraca, ainda tá caçano ním de gavião pra você?
- Ah, Pajaraca tá trabaiano aqui pra mim e lá na casa grande, ajudano cumade Arcinda
e cumade Sivirina nar luta de lá.
- E vocêis tão pagano quanto a ele?
- Tamo dano uma pataca por semana, e se ajuntemo pra dá a fêra também. É o dinhêro
que entra na casa dele!
- Apôis eu vô pagá trêis pataca e a fêra, se você vê ele, diga qu’ele pode buscá o que fô
pricisano lá im Teófe.
- O pobrema, cumpade, é que Pajaraca num intende nada de cavalo também não, fora
que sirviço de veterináro aí que ele num sabe mêrmo.
- Não, homi. Com’êle vive sem fazê nada lá nar minina e tem que butá o que cumê dent’ de
casa, eu quero só que ele madrugue na baia acordado cum o lampião aceso e fique pur lá
acerano pra vê se ele discobre quaqué coisa.

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- É, se ele topá... Pur mim eu num digo nada não. Só sei que cumade Arcinda num vai
achá nada bom.
- Tem nada não, cum ela eu me ajeito. O negócio agora é ele querê, né?
- Não, querê ele qué. Ele goxta de fazê sirviço pra tu. Diga só a cumade Regina que dê
a ele um pratim de cualhada* leite talhado com açúcar e uma garrafa de café qu’êle tira a noite
tranquilo. Só isconda a cana. – Diz Inacio, rindo.
Intão apois aqui tamo acertado. Diga a ele que leve Bóxta também.
- Ah, sim, o cachorro, né?
- É, cumpade.
- Oxente, mair lá na tua casa já num tem logo dois?
- Tem, mais... Depois que minha minha fia, a finada Lurde morreu, eles ficaro
capiongo, disanimado. Num acua mair nada não. Eles quiria muito bem a ela...
- Finada Lurde véa... – Resigna – se Inacio. - ... Eu quiria bem dimais a minha
subrinha e ‘Natilde véa, mulé de Juão Nune, que Deus a tenha, também quiria bem dimais...
Pessoa boa… O povo da gente é tudo morreno, nam…
- Pois é cumpade, eu vô ino logo, sinão vô chorá é já de sodade da minha fía. Tamo
acertado, né?
- Tamo, tamo sim!
- Se ele aparicê pur aí e num tivé bêbo, diga a ele que de seis hora pode chegá pa pegá
a janta lá também.
- Oxi, tranquilo! – (Inacio tinha que providenciar o almoço nas diárias que Zé Pajaraca
lhe prestava serviço). Vale ressaltar que ele adora quando alguém de casa, trabalhador ou ele,
é convidado para uma refeição em outro lugar, pois é um prato de comida a menos que ele
tem que providenciar.
- Daqui agora eu vô na casa dar minina avisá lá. – Diz Zé Alves.
- Tá certo, cumpade. Boa Tarde.
- Boa.
Tendo chegado na casa das “meninas”, que na verdade eram Alcinda e Severina, duas
senhoras solteiras de meia idade, Zé tratou de descrever novamente tudo que vem
acontecendo com seus cavalos, antes de solicitar o trabalhador delas.
- Num acridito não, cumpade! – Assombra – se Alcinda.
- Apôis foi, cumade.
- Máir minha nossa sinhóra, será pussíve um negóço desse?
- Né não, cumade Sivirina? Morreu Catulo, o cavalo de Dóro, Buiú, que era meu de puxá
carroça e Chiquitita, a égua melada de Vicênciamais Anita andá de banda. Tava lá nas
Queimada a bichinha. Vêi pra cá só pra morrê. Agora tá lá Vicência numa numa rede com um
disispero e Anita na cama cum ôto e sem pudê ir na rua por causo da égua que morreu. Sei
não viu, cumade. – Lamenta.
- É, mai num fic’assim não, cumpade. Ói, eu vou acendê uma vela pra Nossa Sinhora
de Monserrá pá iluminá quem fêiz isso cum seus bicho!
- Oxi, nam, cumade! Reze pa ela lascá ele! Quem já viu santo iluminá caba sem-
vergõe?
- Não cumpade, eu digo iluminá, pa se discubri quem foi, homi.
- Ah, bom.
- Agora eu fiquei pensano... – Interrompe Severina.
- O quê? – Pergunta os outros dois ao mesmo tempo.
- Tu se dá bem cum uis cigano?

68
- Rapaiz... é eu na minha e eles lá na deles...
- Eles vinhéro aqui impaiá a gente um tempo desse. Durmíro aqui no terrêro, armaro
mêi mundo de rede imbaxo desses péis de mufumbo e só fôro simbora depois que a gente deu
uma saca de farinha, sequêmo um silo piqueno de fejão pa dá a eles e levaro ainda a ninhada
duma cachorra que tinha trêis cachorrim bem novim atrás do pulêro.
- Agora que tu falô, dumingo eles fôro lá im casa também, e a pingo dá mêi dia,
mêrmo na hora do armôço!
- E foi, cumpade?
- Não... E eles só acerta a casa do povo nessas hora, que num são burro! – Completa
Alcinda, afinando a voz.
- Pidíro o quê lá, hein, cumpade? – Pergunta Severina.
- Ah, eles se agradáro dimais dur meus cavalo!
- Pia mêrmo, Sivirina, tái vêno?
- Eles ficaro lá só arrudiano... Arrudiano... Sabe cachorro quando qué cagá? Apois
pronto, do mêrmo jeito. Iss’eu armunçano, aí fui recebê eles no batente, aí ficaro lá, me
impaiano... Quand’efé ele deu o tiro!
- Ele deu tiro? – Questiona Alcinda, surpresa.
- Não, eu digo, deu o tiro pidino o que quiria, num sabe?
- Pidíro o quê?
- Pidiro só... Dois cavalo! - Diz Zé Alves, ironicamente.
- Mái pia mêrmo Sivirina, são bem bêxtinha eles...
- Né não, muié? No meu tempo passava arguém pidino era uma cuia de farinha... de
fubá...
- Pois é. Ficaro lá pertubano, pidíno, pidíno... Aí e eu disse: “Me dê licença, qu’êu vô
entrá”!
- Aí eles disséro o quê, hein? – Pergunta Alcinda, a mais curiosa.
- Ah, ficô o tá do Irmaé dizêno: “Vai dexá a gente falano sozim aqui no seu terrêro no
mêi do Só quente, é”?
- Ficaro ‘meaçano... – Deduz Severina.
- Foi. Mais aí Zé Sarafim, meu genro, ajuntô – se mais Liodóro, Zé, Mané, Juaquim e Nérso
que tava tudim armunçano lá im casa e saíro cada um cu’ma doze po lado de fora...
Mar’minino... Pense numa batida de pino desses cigano! Sarafim véi, né doido nadinha, disse
logo: “Pra vocêis num ficare no Só quente, nóis vai mostrá pra vocêis ondé que tem sombra”!
Aí meteu o pipôco pra cima e disse: “Pronto, agora é só sigui o fumacêro! Pode pegá descêno
tudim aí agora e num venham mais pertubá aqui não!”
- Apois eu uvi esse tiro, cumpade! – Diz Alcinda.
- E foi mêrmo no dia que eles vinhéro pra cá. Vocêis fizéro foi aprumá eles pra cá. Mai
pia mermo! – Conclui Severina, risonha.
- É... depois dessa, eu tô disconfiano que é eles que teja vino fazê arguma coisa cum os
cavalo de noite. Mais eu num quis falá nada pa Regina não, sinão ela ia se aperriá.
- Pió é que teus fíi homi se casaro tudo quase de uma vêiz só, purquê sinão, era só ficá
um lá de campana vigiano cum a doze!
- Pois é. Eu num tem idade mais pra essas coisa não. Pur’isso eu vim aqui.
- Apois tá ruim, cumpade, por que nóis aqui semo muié, já cuida de pai…
- Não, criatura. Vim chamá vocêis não...
- Já sei. Tu qué que Pajaraca vá, é? – Pergunta Alcinda.
- É.

69
- Por aqui num tem muído não. Pode levá o pacote! Tem que vê cum cumpade Inaço,
qu’ele tá trabaiano fazeno num sei o quê pra ele também.
- Já vim de lá. Tudo certo!
- Ele tá ajudano aqui fazeno ur mandado..
- Quedê ele?
- Mandei ele im Patos cum o ró da fêra. Ele volta cum Zé Lino.
- Ih... Intão ele só chega de noite já. Isso se num chegá bêbo
- Num qué isperá não?
- Nam. Já passei o dia fora de casa. Vô lá vê como tão as coisa.
- Tá certo. Se quisé, eu mando ele lá pra acertá as coisa quando ele chegá. Minéivina*
Filha de Mãe Rosa ainda tá lá?
- Ela ajuda Regina lá, mais eu mando ela pra cá.
- Pronto, faça isso.
- Combinado intão?
- Combinado.
- Intão até mais...
- Té mais, cumpade. Apareça.
De noite, após informado da solicitação, Pajaraca se apresenta na casa de seu patrão,
Zé Alves. E sóbrio. Como já estava informado de que se tratava o seu serviço, estava bastante
animado.
- Boa noite, cumpade Zé?
- Boa noite, Pajaraca. Já tá informado do sirviço, né?
- Tô sim, e eu quero dimais!
Zé Pajaraca estava muito entusiasmado com esse serviço, pois nem quando novo, em
casa, nunca que seu pai se quer confiou dele limpar a espingardinha soca - soca. Já ali, ele
teria em mãos um rifle calibre 12 legítimo, usado na revolução de 1930. Tinha mais de vinte
anos de uso, mas estava bem conservado e possuía um tremendo poder de fogo. Entretanto, o
que mais o animava, é que esse tipo de serviço lhe conferiria boa fama na redondeza, que
passariam a vê – lo como cabra macho e não mais como o cachaceiro frouxo de outrora.
Pajaraca, enquanto seguia para aceitar o serviço, ia mesmo se lembrando das zombarias que
receBigaí:
- Pajaraca? Um caba frôxo daquele? Acustumado a cagá atráis das casa, agarrado cum
um tronco de pau pa tangê a póica? - Era apenas uma das zombarias que falavam dele, pelas
costas.
Ao chegar, e aceitar a oferta, vai logo perguntando:
- E eu cumeço quando?
- É pra onte!
- Dêxe intão só eu passá lá im casa pra trocá de rôpa e avisá a Bigaí?
- Bigaí já sabe, e a más’tarde ela vem pur’aqui pegá um adiantamento de fêra, uns
trócim qu’eu mandei comprá pra sua casa. Já jantô, Pajaraca?
- Hum - hum. – Dizendo que não com a cabeça.
- Apois siga lá fora po banhêro pa tumá bãe que Regina vai isquentá um cuscuiz cum
ovo pra você. Quando abá* acabar, Mineivina leva uma muda de rôpa pra tu. Lá se inxugue
cum a tualha verde...
- Tá certo. Mai mim dê uma lamparina aí, cumpade Zé?
- Tem lampião lá, leve uma caxa de fósco. Tome.

70
Banho tomado, cuscuz comido e céu escurecido; sem perda de tempo Zé Pajaraca se
dirige à baia, com um tamburete numa mão e uma garrafa de café na outra.
- Tá si alembrano de máir nada não?
- Eita, a ispingarda! Quedê?
Zé Serafim, genro de Zé Alves, estava por ali e foi buscar a arma e a entrega
segurando-a com apenas uma mão. Quando Pajaraca a recebe, se desequilibra deixando cair o
tamburete e a garrafa de café.
- Vixi, cumpade Sarafim, é pesada dimais! Num vô pudê cum ela não.
- Passe a corrêa dela pelo seu pescoço. – Diz Zé Serafim.
Zé Serafim dá as instruções básicas de como manusear aquele trabuco e Pajaraca
capta algumas poucas palavras somente. Dirigiu – se à baia com seu aparato de guerra, isto é,
o tamborete, a garrafa de café e a “doze”.
- Daqui a pôco eu vô lá passá um pedacim mais você. – Diz Zé Alves.
- Tá certo, cumpade Zé…
Pajaraca tinha passado o dia em Patos pagando conta, mandando recado, trazendo
recado anotado em papelote de pão, fazendo feira e ao fim do dia já estava muito cansado. Foi
só sentar no tamborete e estirar os pés que suas pálpebras começaram a pesar e logo logo ele
já estava cochilando. Minutos depois:
- Oxente, Pajaraca!?
- Valei – me padim Ciço! – Acorda ele, assustado.
- Rapaiz, num fáiz nem mêa hora que tu vêi e eu pego tu já durmino?
- Não, cumpade Zé, eu tava só... Tava só rezano...
- De ôi fechado? - Questiona Zé Alves.
- Eu só rezo ansim, cumpade...
- Hum, sei... Tá pricisano de arguma coisa?
- Tô não... Na verdade, tô. Num era bom apagá esse lampião não?
- Pra quê?
- Premêro puquê tá só ajuntano borbuleta, e depois, o má cunduta de longe vai vê ele
aceso e num vai vim. Cum ele apagado não, eu pego ele no fraga e passo – le fogo!
Zé Pajaraca queria mesmo era que Zé Alves apagasse o lampião para que ele pudesse
dormir sossegado. Ele raciocinou que o lampião aceso atrai borboletas e besouros que por sua
vez, atraem muitos sapos e estes, atraem cobras, e este distinto cavalheiro não gosta de
nenhum destes. Esperto ele.
- Nam, Pajaraca. Aqui num dá certo ficá iscuro de tudo não. Leve o tamburete e vá pa
ôta banda da baia. Lá elas num pertuba você não.
Zé Alves não demora mais que dez minutos fazendo companhia a Pajaraca. Foi
quando o sono támbém lhe bateu nas pálpebras e ele se despediu, seguindo para casa. Antes
mesmo de Zé passar o ferrolho e a tramela na porta, Pajaraca já estava ressonando* roncando
brandamente em seu posto novamente.
Por sorte, a primeira noite de vigília transcorreu sem nenhum imprevisto e às cinco da
manhã Zé Alves já veio chamá – lo para tomar café e liberá – lo da primeira noite de serviço.
- Tá veno, Regina? Parece que a idea de butá um vigia lá na baia surtiu efeito. Hoje
acordaro tudo vivo os cavalo!
- É, já que isso num traiz os três cavalo que morrêro de vórta, é até milhó que afugente
quem qué fazé marvadêza cum us bichim. E eu mêrma num quiria morte aqui im terra da
gente não...

71
Para o dia seguinte, Pajaraca tirou parte da manhã e a tarde toda para dormir e ficar
disposto na próxima noite, afinal, não queria ficar enganando seu patrão com serviço mal
feito.
Chegada a hora de se apresentar para a labuta de vigilante, Pajaraca recebe uma
importante recomendação de Zé Alves:
- Ói, Pajaraca, você tá cum esse trabuco aí mais num é pra atirá se vê logo arguém não.
Aponte a arma, pergunte o que qué... Aí sim, se a pessoa num acatá, aí você tem a minha
pirmissão pra atirá, intendeu?
- ‘Tendi, cumpade Zé.
A postos na baia, a noite estrelada e silenciosa passa lentamente. Como desta vez ele
estava com olhos e ouvidos atentos a qualquer movimento em falso, não deixava de perceber
o canto afoito da revoada dos marrecos pela madrugada, o sibilo agudo dos morcegos, o
barulho distante do motor de um longínquo avião de alguma linha aérea que toda madrugada
sobrevoava aqueles céus até hoje, entre outras coisas.
Parecia ser uma madrugada tranquila como outra qualquer, mas quando ele levantou -
se para pôr café na tampa da garrafa e tomar, do nada um cavalo se enfezou e começou a
saltar, dar coice e mais coice, se morder todo e relinchar desesperadamente. Isto também
deixou os demais cavalos bastante inquietos, e estes bufavam pelas ventas e relinchavam sem
parar.
Seguindo a instrução do patrão, Pajaraca intimida:
- Quem t’aí? – Olhando para os lados.
Ninguém responde, só o cavalo relinchando em pânico, começando a espumar pela
boca e a sangrar pelos ouvidos.
- Responda, fí d’uma égua, quem é você? Apareça se fô homi! – Grita Pajaraca,
tremendo de medo. – Pois olha’qui o que eu tem pra você!
Pajaraca dispara a doze para o alto. O impacto do disparo impulsiona o rifle para baixo
com violência. Pajaraca, como não sabia disso, deslocou o ombro e machucou a articulação
do braço. Ele também nem se ligou que a baia tinha uma coberta de grossas telhas. Estas, com
o impacto do balaço, se despedaçaram e caíram em centenas de cacos no chão. Um destes
cacos acertou em cheio a sua cabeça, fazendo um talho e o sangue escorreu que nem cascata.
O tiro tinha um poder de impacto tão forte que criou um buraco no telhado com mais de um
metro de diâmetro. O som do estampido ecoou longe, acordando simultaneamente todo
mundo da casa de Zé Alves, Acordou Inacio e as meninas da casa grande e o velho Joaquim,
que agarrou – se logo num terço e começou a rezar de joelhos, assim como Abigail também
pinotou da cama, já temendo o pior. Como todos já estavam de orelha em pé com o que podia
acontecer, correram até a baia para ver o que tinha se assucedido.
Zé Alves foi o primeiro a chegar. Deparou – se com Zé Pajaraca recostado na entrada
da baia, com a mão na cabeça cobrindo o ferimento, e mais à frente, viu mais um cavalo ao
solo, estrebuchando, terminando de morrer.
Desolado, Zé Alves pergunta:
- O tiro pegô no cavalo, foi, Pajaraca?
Com voz lenta e confusa ele responde:
- Foi não, cumpade Zé... Tava tudo carmo, aí do nada ele cumeçô a pulá e a rinchá. – Diz
Pajaraca, lamurioso, gesticulando lentamente. – Eu curri, arrudiêi a baia todinha prucurano
quem era mais num vi ninguém, aí foi quando eu vortei e atirei, pra intimidá, que nem o sinhô
disse…

72
- Ah, meu pai do céu… Aí tu num óia pa cima e num vê que cada têa dessa pesa uma
arroba!
Neste momento, chegam Severina, Inacio e Abigail numa carroça de burro, já temendo
o pior. Foi quando Zé Alves percebeu o buraco no teto, e no chão os cacarecos de telhas e
caibros, passando então a entender como Pajaraca se machucou.
- Que pipôco da mulesta foi esse, Pajaraca? – Pergunta Inacio, atônito.
- Pensei que era gente, aí atirei.
- Tu qué morrê, é Zé? Qué matá eu? – Grita Abigail!
- É, tu pudia tê feito um arte, danado! Num se atira imbaxo de telha não, criatura! –
Diz Zé Alves.
- Pió né nada. Cum esse já é quato cavalo que morre... - Interrompe Severina.
- Né isso, cumade? E esse num era nem meu.
- De quem era, cumpade?
- Era de Cumade Edertrude, muié de Carijó. Tava só aqui purquê eles viajaro.
- Ixi Maria, logo de cumade Detú! Que prijuízo, cumpade Jusé!
- Nem me diga, cumade Sivirina. Cum uma dessa, amanhã mêrmo eu vô vendê tudim
im Patos!
- É bom mêrmo, viu, cumpade? – Incentiva Severina. – Tu se alembra que foi bem
pur’aqui que finado Joca deu uma agunia e morreu? Possa sê que seja a áima dele quereno
discanso, pidino réza, sei lá. É bom mandá benzê, rezá uma novena, fincá um cruzêro.. Sei lá.
- Sei mais é de nada, cumade. Vocês quisére rezá, acend’uma vela e reze. Eu vô pra
casa agora, já tive disgôxto dimais de uns dia pra cá. Vocêis duas leve Pajaraca lá pra casa na
carroça pa tratá desse corte.
- Não, eu levo ele pra casa – Interrompe Abigail. Lá eu trato desse firimento e faç’um
curativo. Num foi fundo não… Sangrô muito por que foi na subrancêlha.
- Ai, ‘Bigaí... Eu tô morreno… Misericórdia, Jesuis...
- Dêxa de sê mole, Zé! Pode dexá, seu Zé Aivo, eu levo ele pra casa.
- Apois tá certo. Cumpade Inaço, lá pras sete hora da manhã tem como tu vim aqui me
ajudá a levá esse cavalo e sortá lá no munturo?
- Tem, cumpade. Eu vem...
Todos se despediram e foram cada um para suas casas. Zé Alves ao chegar, não
conseguiu dormir. Armou uma rede no salão de entrada da casa e lá ficou. Não quis mais
pensar no que poderia estar ocasionando a morte de seus cavalos. Estava decidido a vender
todos e se limitou a pensar por qual preço iria vendê – los, e a quem. Certamente não faltaria
comprador, pois eram muito bem criados e bonitos.
Sete da manhã em ponto e Inacio já está na porta de Zé Alves para ajudar o irmão na
dura tarefa de sepultar mais um animal de grande estima.
- Só sobrô seis cavalo, cumpade Inaço. Ainda hoje eu vô im Patos oferecê eles a uns
cunhicido.
- É milhó vendê mêrmo, cumpade. Pra acabá de vêiz cum o olho grande desse povo
véi nojento.
- Eu num quero máir nem sabê! Bora logo, que sirviço ruim o caba termina ligêro pra
se livrá logo.
E os dois irmãos caminham em direção à baia, com um ar triste no olhar. Chegando lá,
se deparam com a cena aterradora: Pouco mais de quatro horas depois de sua morte, o cavalo
já estava seco, enrijecido. Seu olhar pétreo era o retrato do quanto ele sofreu antes de morrer.

73
Inacio, ao amarrar as cordas que puxariam o cavalo por meio de um carro de boi até o
lajeiro, percebe algo diferente:
- Pia, cumpade. O cavalo inquanto tava sartano acabô pisano numa cobra preta. Torô a
bicha no mêi, ó? E ela se inganchô nos casco dele.
- Dêxe eu vê. – Aproxima – se Zé. – Cumpade, isso num tem nada de cobra preta não.
Issé uma goipéba! - Conclui Zé Alves.
- Vixi nossa sinhora!
- E eu num duvido que tenha sido ela que matô os cavalo não! Vô ixaminá mió. Fic’aí
qu’êu vô im casa pegá meus ócro pra eu vê uma coisa!
Goipéba é uma serpente venenosíssima, uma jararaca jovem, que possui um veneno
muito forte, capaz de matar um boi zebu em poucas horas e um ser humano em poucos
minutos.
- Cheguei, cumpade Inaço. Vô olhá as pata dele pa vê se eu acho marca de murdido.
Se ela tivé murdido, foi disso que ele morreu!
Não demora muito, Zé Alves revira os pêlos das patas do cavalo e assim encontra
nitidamente a marca da picada, atestando sem sombra de dúvida a “causa mortis” daquele
equino.
- Cumpade, bora arrastá logo esse bicho lá po lajêro onde tá os cavalo que morrêro,
que lá eu vô tentá vê se tem marca de murdido de goipéba também!
Os dois se apressam em deixar o animal no lajeiro e lá examinam os outros. Com certa
dificuldade devido ao mau cheiro da carne em decomposição, ainda assim Zé Alves conseguiu
constatar a picada da cobra em todos os cavalos, exceto no primeiro, que já estava muito
deteriorado e fedendo bastante. Ainda assim, teve provas suficientes para incriminar o
suspeito correto. A jovem jararaca.
Na volta, mais animado por ter solucionado o mistério, Zé Alves diz:
- Já que foi murdido de cobra, sobra agora achá a ninhada, porquê onde aparece
goipéba, nunca aparece uma só não, e eu acho que sei até onde que é a ninhada!
- Adonde, cumpade?
- Rapaiz...Tem uma caêra* olaria, véa ‘bandonada pur tráis da baia. Só pode sê lá! -
Conclui Zé Alves, coçando a rala barba.
- Eita, cumpade, é mêrmo! Caêra ‘bandonada só ajunta o que num présta!
- Apois bora cortá camím aqui e vamo lá im casa carçá umas bota e vixtí carça grossa
que nóis vai derrubá a caêra é na base da picareta e da chibanca. Vô levá um lito de querosene
e fósco, purquê é eu achano uma cobra e tacano – le fogo!
Devidamente vestidos e munidos com as ferramentas, os dois se defrontam à pilha de
tijolos, mas antes de começar a demolição, tratam de limpar o capim ao redor dela, para que
não percam de vista qualquer cobra fujona que saísse dali sem ser notada. De fato, bastaram
as pancadas das enxadas no chão para que já saísse uma goipeba incomodada com o barulho
pelas frestas dos tijolos. Sem perda de tempo, Zé Alves aponta a garrafa de querosene e
derrama em cima dela o líquido inflamável, ateando – lhe fogo em seguida. Ficou lá junto
com Inácio a contemplar a cobra se contorcer enquanto as chamas a consumiam. Terminado o
bizarro espetáculo, os dois se voltaram para a pilha de tijolos grudados e começaram a golpeá
– los com a piicareta. Cada pedaço grande que caía era esmiuçado e examinado com a
chibanca, para ver se encontravam o que queriam. Não tardou e eles logo acharam não uma
nem duas, mas pelo menos umas doze cobras e vários ovos prestes a eclodir. Sem perda de
tempo, Zé Alves as encharcou com o querosene e riscou o fósforo. Uma grande labareda
subiu, reduzindo rapidamente as temíveis cobrinhas a pequenos tições torrados. Fim do

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mistério. Quem saiu perdendo com essa história foi Zé Alves, mas ele tratou de manter limpo
o derredor do estaleiro depois disso, assim como desistiu de vender os animais sobreviventes.
- Eu saí perdeno também. Fiquei sem meu imprêgo de vigia! – resmunga Zé Pajaraca, tendo
voltado aos serviços de antes…

Zé Alves e Regina.

CAPÍTULO XIII
Vicência e o Gato Maracajá

Segunda – feira, quatro de abril de 1955. Um dia de feira como outro qualquer, onde
as casas se fecham e boa parte das famílias vão para Patos fazer suas feiras e vender seus
produtos e animais.
Tendo o mês de abril já dado as caras e as chuvas até então tendo se resumido a alguns
poucos respingos somente acompanhados por muita ventania, redemunho e poeira, um nobre
casal que não tem costume de ir à feira como todos os outros fica em casa, ou seja: Vicênciae
Mané Roldão, que mandavam um rol de feira no bolso de alguém que fazia todas as compras
e pagamento. Tudo na base da confiança. Quem mais fazia esse serviço era o filho mais velho
de Pajaraca, Expedito. Como fica muito em casa, Vicênciavive debruçada na janela alta da
casa, contemplando aquela vista bucólica que só o sertão pode proporcionar. Dobra os beiços,
dá um suspiro e tira a seguinte conclusão:
- Eu tem pra mim que esse ano vai sê é seco...
- Vire essa boca agôrenta pa lá V’cênça! Homi, tu só fala im seca, é?!
- E tu num tá veno o siná não, Mané? Tá caducano, é? Tá cego?
- E qual’é esse bendito siná que eu num tô veno? Foi nos’sinhô que disse?
- É por que tu num préxta atenção nas coisa, Mané.
- Eu?
- Sim, sinhô! Deu só aquele serenim no mêis de malço, e num foi nem no dia de sinhô
são Jusé. De lá pra cá, nunca mais, fora que eu já tô sintino é a catinga da lagata * lagarta no
agudão* algodão.

75
- Pois a catinga que eu sinto é a das suas bufa…
- É vá só brincano. Quando morrê o gado todim, Mané, aí você se alerta!
- Tem o que fazê não, V’cença… – Diz ele, resignado.
- Tem sim! É bom tu ir logo puverizano pa vê se a gente cói ao meno umas arroba, por
que se não a coisa fica fêa. Oto siná é a tanajura.* espécie de formiga Elas só aparece quando tá
siguro que num vai chuvê mais. Mais uma razão pra você agiliza e puverizá é tudo, porque as
tanajura vão fazê ôtos furmiguêro e vão cortá as fôia...
- Ô V’cênça, tu sabe que eu sô duente e num posso trabaiá, tu é quem tem que ir
puverizá lá, rapaiz...
- Ah, intão eu vô mandá ôta pessoa fazê isso, por causo que toda vez que eu priciso de
você pa fazê quarqué coisa, tu inventa logo que tá duente!
- Bote ur muleque de Pajaraca e de Inaço pa cumê tanajura torrada
- Eu quero é minha roça limpa. Cuide!
- Eu mêrmo não... Faça um cafezim aí…
- Eu num vô fazê café não, eu vou é procurá trabaiadô pa puverizá meu agudão, e eu já
sei quem vai fazê isso. Pajaraca!
- Pajaraca? Só se fô pa puverizá cum bafo de cana!
Mané Roldão era amigo de Pajaraca, e o ajudava sempre que podia, mas nunca botou
fé na disposição dele em fazer qualquer tarefa mais complexa, até por que dificilmente
Pajaraca era encontrado sem estar exalando cheiro de álcool. No entanto Vicênciajá tinha no
costume de solicitar os serviços de Zé Pajaraca, pois este, a serviço de dona Alcinda, sempre
era liberado pela patroa para estes trabalhos, que eram feitos por um preço bem menor. Vale
ressaltar que a qualidade e o ânimo dos serviços de Zé Pajaraca eram proporcionais ao valor a
ser pago. De toda forma, Pajaraca tinha certa habilidade com pulverização, pois desde o
tempo de seus pais ele já operava aquele pesado instrumento nas roças de Joaquim Nunes,
trabalhando com seu pai, o falecido Porfírio, a coisa era diferente, o serviço era muito bem
feito.
- Djabo num pricisa nem ir lá não, daqui mermo eu meto o grito e ele que venha aqui!
- Ô cumade Bigaí..., cumaade Bigaíiii!!!! – O grito de Vicênciaecoa pelos tabuleiros, e
chega em alto e bom som até a pedra onde se Abigail se encontrava sentada, beiçando seu
cachimbo, com um menino pendurado em cada peito.
- O que era, cumade Vicença?
- Vem cá, muié!
- Dêxe de gritadêro aqui no meu pé d'uvido, homi!. – Repreende Mané Roldão, que
tinha tomado um susto.
- Ah, num tinha le reparado tu aí não, Mané!
- Tá bom, mais vá fazê o café, vá...
- Ah, ela já vem vino, ói?
- Fazê um cafézim, V’cênça, oxi!
- Oxe, tu só vive sentado aí nessas péda e num fáiz é nada, inquanto ela chega eu vô
fazê seu café. Tá bom assim?
- Aí tá certo!
- Ô home priguiçoso é esse meu ispôso, nam!
- Homi, cale essa matraca aí, rapaiz, que cumade Bigaí tá chegano! Vai arengá na
frente dos ôto, é?
- Eu que mim’porta? Pu certo ela num arenga lá cum o marid’ dela!
Nisso, Abigail chega:

76
- O que é que a sinhora qué cum eu, cumade V’cênça?
- Primêro chegue pra cá, cumade Bigaí, chegue tumá um cafézim aqui mais eu,
chegue...
- Ô, rapaiz... O negóço tá milhorano pu lad’icá… - Completa Mané Roldão, já se
levantando e ajeitando as calças, meio folgadas.
- Tráiz pra cá também o café, V’cênça...
- Homi, Mané Rordão, até o café tu qué que eu leve aí, é?
- Ô, V’cênça tu num sabe que eu sô duente? Eu tê que ir andano até aí?
- Tu num já im pé? Chegue intão.
- Tá. Peraí. Cadê minhas percata?
- Sei não… Ai… Que dor, meu Deus… como doi… Eu vivê doente assim...
- Tu só vive dizeno que é duente mais nunca morre!
- Apôis quarqué dia desse tu vai vê eu é morto!
- Tumára que chegue logo esse dia intão! Ói a sandalha aí! Sim cumade, eu que quero
que você fale cum seu marido vim puverizá meu agudão aqui, já que o sirviço lá nar minina tá
mêi divagá...
- Tá divagá, qua’i parano, cumade...
- Ela tá cobrano quant’ a diára, cumade?
- Iss’aí eu num sei le dizê não, viu, cumade? Esse negóç’aí de denhêro aí c’a sinhora
falô num é cumig’ não...
- Intão diga a ele que pode vim, que eu se acerto mais ele. Vô dá o mêrmo tanto que dô
a Pêd’ de Lalá pa vim puverizá o roçado.
- Ixi, cumade, Zé parece que tá mêi dirmantelado dos ispinhaço, eu acho qu’ele num
aguenta carregá a bomba chêa não...
- Tem nada não, cumade. O roçado aqui é piqueno. O que importa é que ele sabe
puverizá. Fora que ele termina ligêro. Milhó que Pêd’ de Lalá, cum aquela lezêra dele
puveriza uma carrêra, Pajaraca coisa duas!
- Tá certo intão, já que a sinhora qué, eu dig’ a ele, só num garant’ ele querê...
- Mais se ele quisé, ele pode vim amanhã bem cedo?
- Num sei, cumade. Mais tá certo, eu mando o recado. Brigado.
E no outro dia, Pajaraca tanto aceita que chega logo cedo. Dona Vicêncialhe entrega
toda a parafernália, isto é, a bomba e o veneno BHC e também recomenda:
- Eu quero um sirviço ligêro e bem feito, viu seu Pajaraca? Nada de cachaça no mêi
do sirviço...
- Tá certo, Cumade V’cênça, mais eu hoje eu vô cumeçá pur adonde?
- Lá imbaxo, perto da cacimba, beba logo esse leite aqui ó, que esse veneno é muito
forte. Quando o vento assoprá po seu lado, você fica andano de cóxta, mas num é pa pará não!
Recebidas as ordens e recomendações, Pajaraca segue mais que displicentemente
atacando rua acima e abaixo no roçado. Na hora do almoço, Vicênciaquer saber se as lagartas
estão morrendo:
- E aí, caba. Cuma que tá o leriado aí? Tá inhordi?
- Ora se num tá, dona V’cênça - assegura Pajaraca - até os cururu, que cumêro ar
lagáta que caíro no chão já morrêro tudim; e os urubu que tão cumeno uis sapo môrto também
tão morreno!
- Unra Djabo! Aí tá certo! Tá veno aí, Mané Rordão véi? Pajaraca tá fazeno o siviço
bem feito!

77
- Eu tô veno, V’cênça. - Responde Mané Roldão, de beiço dobrado e acenando
positivamente com a cabeça.
- É, mais você nem se qué vai lá pa vê. Num dá uma prega numa barra de sabão!
- Quando o Sol si’sfriá eu dô um pulim lá...
- Mar’minino... Eu que sou muié, eu vô no Só quente, no Só fríi...
- Mais você tem saúde, V’cênça. Eu não... - fingindo tossir.
Vicência, já sabendo que dar trela às conversas de seu marido é perda de tempo, tenta
retomar um outro assunto:
- ...E chuva qu'é bom, nada, né? Eu acho que esse ano vai sê seco mermo e pronto! Eu
vô logo é buscá as vaca purquê eu sei que tu nunca que ia mêrmo...
- Oxi, e num tá canso dessas vaca vim sozinha pu currá?
- Nam, mais tu num se lembra que o as vaca tão lá po Jardim cumeno o mato que tem
lá?
- Homi, V’cênça, intão vá logo, sinão amanhã num vai se tê um pingo de leite nessa
casa!
- Eu vô, mais pelo meno você pegue logo essa cabaça e vá só bateno a nata que tá aí
dento, né meu fíi?
- Homi, lái vem você cum siviço véi nojento pra mim! Num pode vê eu quéto não, é?
- Dêxe pra lá, Mané Priguiça! Dêxe inchê de mosca!
Nisso, ela avista o seu pequeno gado sendo trazido por um trabalhador do sítio de Zé
Alves: Putruco.
- Ixi, eu tive sorte! Ainda bem que as vaca já tão sêno trazida. Pajaraca, vai tê que me
ajudá a apartá esses bizêrro quando ele chegá da roça...
Pajaraca chega a tempo de ouvir sua solicitação para mais um serviço:
- Já tô chegano, cumade V’cênça. Cuma que tá ino meu siviço, tá achano bom?
- Tá inhordi, Pajaraca.
- Amanhã eu acabo aquela roça, depois acabo aquela ôta ali, ó. - Aponta ele em direção
ao baixio do lado oposto da casa, onde existiam algumas fruteiras e hortaliças amareladas pelo
Sol inclemente.
- Tá certo, mais toque esses bizêrro pra cá...
Pajaraca obedece.
- Isso... agora feche direito o puxincói*… Puxa – encolhe; espécie de porteira feita somente com arame e
varas. Pronto, e agora venha jantá e amanhã chegue cedo, viu? Vai pra lá galinha, vão durmi
suas galinha doida!
E quando Vicênciapresta atenção nas galinhas, levanta a vista e observa o viveiro de
pássaros, que era seu xodó:
- Ih, rapaiz, me parece que tá me fartano um passo* pássaro aqui... Tem nada não. Amanhã eu
vejo se tá mêrmo. Tô sem meu óclos*. óculos Amanhã eu vejo mermo se sumiu um... Devo de
tá cegano de vêiz, num sei nem mais os passo que eu tem...
E no outro dia:
- Ti... tí.. tí... - chamando as galinhas para dar milho no pé da janela da cozinha, solta o
xerém delas e depois se dirige ao viveiro, para colocar o resto para os passarinhos.
De fato, Vicêncianesse momento percebeu a falta de um passarinho de muita estima:
- Chêga aqui, Mané! Chega! O gato maracajá inventô de passá no dente meus
passarim, rapaiz! E você fica aí só sentado, né?! Né você que arma a açaprã* alçapão; armadilha em
forma de gaiola para capturar passarinhos. pa pegá, né? Ô, rapaiz, foi logo o meu assum preto* pássaro raro,
de canto belíssimo. que o maracajá butô pra dento, que eu tinha acabado de cegá.

78
O assum preto é uma ave de canto belíssimo, mas que se inibe em cantar quando
alguém se aproxima. Então, os antigos tinham o terrível costume de ferir os olhos do animal,
para que quando sarasse, ele cantasse independente de ter visita ou não.
- O danado pudia tê cumido quarqué ôto, sei lá, o craúna, ou golado, o galo de
campina, o galo de champãe, o cancão, a peitica, o concriz... Mais tivesse dêxado im páiz o
meu assum pretim, o bichim… Indefeso. Ah gato maracajá do djabo!
- É... Tem que vê iss’aí...
- Oxi, e você só diz, iss’ é?
- Eu aduentado que nem eu sô desse jeito, num posso fazê nada não... – Responde
Mané Roldão, totalmente despreocupado, acendendo um cigarro de palha.
- Minino, tem uma coisa, daqui a pôco o cupim vai terminá é cumêno você vivo,
Mané, eu tumara que le coma mêrmo, pur que só pelo qu'eu tô veno, o gato vai cumê inté os
arame do vivêro e você fica só aí, só dizeno que tá duente e lái vai, e duença qué bom, eu
num vejo nem se qué uma gripe!
- Aí você qué qu’eu faç’uquê? Durma no pé do vivêro, é?
- Eu quero que você tome providênça! O gato maracajá divia cumê era você, e não os
póbe dur meus passarinzim, tão cantadô! Sei não, viu? Tu num sê esse de armá uma arapuca
pra pegá esse danado, rapaiz. Desse jeito eu tô é aprumada. Mais eu vô li moxtrá que eu vô
pegá esse capeta, por que o que me dêxa cum mái raiva é ele tê passado na güela meu assum
preto! Tanto que eu quiria bem a meu bichim, rapaiz... Todo santo dia ele cumia na minha
mão…
- Também cego né, V’cênça?
- Merm’assim!
- E comé que tu sabe que é gato maracajá? Ele dexô um biête*? bilhete
- Ó aqui, o bicho rasgô na unha a maia de arame. Passô a cabeça, passa o rexto. E ói a
pelage aqui de gato maracajá ruim!
- Eita, tô veno.
No meio das lamentações de Vicência, Mané Roldão percebe que Pajaraca botou a
cabeça por cima do cercado:
- Ói, Pajaraca já chegô, V’cênça. Dêxe de churumingá aí e cuide logo de ajeitá café
que ele tá na janela e ele qué tumá café, né não, Zé?
- Eu já tava cuano, Mané.
Nisso, Pajaraca entra pela cozinha, com aquela "disposição” de sempre, e
Vicênciaentra no assunto do gato maracajá:
- Eu nunca mais vi Bóxta aqui pelo terrêro, Pajaraca, cadê?
- Mais é claro, né, V’cênça? Eu num mandei fazê o banhêro? - Interrompe Mané
Roldão.
- Ói, Mané, fique na sua aí, fique!
- Tá falano do meu cachorro, cumade?
- Só pode, né, Pajaraca? Nome fei da gota pa butá num cachorro!
- Ah, bom, cumade.
- Cadê ele, criatura?
- Tá im casa, cumade V’cênça, por quê?
- Por quê? É pra você pegá esse gato maracajá, que tá cumeno meus passarim! Que dia
você termina de puverizá meu agudão?
- Amenhã… - Diz ele, coçando a cabeça, sem certeza do que diz.

79
- Intão, ói, você vai ganhá por dia até pegá esse bicho, mais é pra trazê ele vivo pra cá, que eu
quero arrancá a dentada dele com um alicate, e depois eu vô tirá o côro dela vivo e dêxá ele
bem pindurado pelo rabo lá naquele pé-de-pau ali. Se aparicê ôto, eu vô matá na tijolada, por
que eu não aguento mais criá passarim pra ôto bicho cumê não!
- E onde que é a toca, cumade?
- Ói, ele mora ali prur lado do Tâinque Grande, porque ali tem muitas furna e vai sê
fáce pra você pegá ele. E ôta coisa, além da diára que você vai ganhá, eu ainda vô le dá dois
capão* galos castrados e cevados. que eu tô ingordano lá no chiquêiro, mais só depois que você me
intregá o gato maracajá vivo.
- Sei cuma é, cumade...
- Apois a puverização é pra terminá amanhã cedo mêrmo, viu? Pra depois de amanhã
nóis cumeçá a caçada!
- Tá certo, cumade... – (Só aparece abacaxi pra eu!) – Pensa ele, calado.
Pajaraca desce para o roçado fazer o serviço, e mais tarde:
- Faz um cafezim aí pa nóis, V’cênça...
- Tu já vem cum hixtória de café di novo, Mané? Homi, vá cumê uma pá de boxta!
Agora eu vô é rapá as cuia que já tão tudo é suja ali e você já sabe que sô só eu que faço tudo
aqui im casa.
- Homi, vái caçá nim de avião, V’cênça!
- Eu não! Ora mais eu num digo mêrmo? você, fica só ai bem do sentado pidino café o
dia todim!
- Homi... - Mané Roldão vira para o lado, ignorando; já acendendo outro boró.
- Qué sabê? Eu já mudei de indéa aqui! Na hora que Pajaraca me intregá aquele gato
ruim ruim do djabo, eu vô amarrá ele dento do vivêro pur uma semana todinha, só depois
q'uêu vô arrancá os zovo dele dela e depois que eu arrancá é que eu vô pindurá ele pelas zurêa
pa tirá o côro dele vivo! Gato safado, rapaiz!
- Tem uma coisa, muié, essa raposa matô um passarim ou matô teu pai e tua mãe?
- Ói, num bote minha mãe nem meu pai no mêi não que eles já morrêro!
- Homi, era só mandá reforçá cum uns arame intrançado o vivêro dos passo e pronto,
oxi!
- Não sinhô! Aqui é olho por olho, dente por dente!
- Quando Frei Damião subé dessas suar marvadêza cum os bicho bruto...
- Iss'é pobrema meu!
- Sei não V’cênça... Depois vem us caxtigo…
- Quero sabê não! Ai ai, se você adivinhasse o que eu vô fazê cum suas zurêa, seu gato
maracajá, tu já tava era bem longe daqui!
- Ô rapaiz, o tempo que faiz que você ta aí budejâno assim, V’cênça, já tinha feito era
duas garrafa de café boa...
- Essa cunvessa aqui é cumigo e o gato maracajá!
- E como djabo é que Pajaraca vai pegá um gato maracajá vivo, hein, V’cênça?
- Issaí dêxe cumigo!
- (...)
- V’cênça, antes venha cá...
- O que é, Mané?
- Repare se você discobre quem é que vai passano ali no corredô...
Vicência faz caretas, tentando enxergar:

80
- Eu num cunheço não, quem divia sabê era tu que só vive com a buzanfa im cima
dessa péda. É só um casal.
- Eita, será que ela tá buchuda?
Rapaiz, tu num pode vê um casal que já vai dizeno que a póbe da moça tá buchuda?
Tu é doido, é? Homi, eu vô é cuidá da vida aqui!
- Esse gato do djabo tá dêxano tu doida de péda!
- Doida vai ficá é ele depois que eu pegá ela pelo gogó!
- Bora, avíe logo com esse café home, e tráiz um cigarro e um a cáxa de fósco.
- Ah, e eu num vô fazê cigarro pa ninguém não!
- Intão traga a paia e o fumo que eu faço aqui.
- Toma, vai fazê teu cigarro e mim dêxe im paiz!
- Sim, mais quedê a faca?
- E você também num vai querê minha boca não?
- Aí só quando eu fô cumê bóxta!
- Homi, ói, tome logo seu café aí que eu já vô rapá as cuia.
- Antes procure sabê quem foi que passô lá no corredô!
- Homi, oxi! Eu que mim'porta? Eu num tem tempo pra isso não, Mané!
Novavmente, Vicência tenta mudar de assunto quando vê que o atual não está
rendendo.
- Rapaiz, eita tempo fêi danado… Vai tê seca...
- Lái vem... Lái vem! - Se irrita Mané Roldão.
- É que eu já tô veno a seca declarada. Só tu que ainda é que acridita que ainda vem
chuva, só se fô em tuas venta, mais mêrmo assim vai tê uma safrinha de agudão, por que esse
sirviço de onte da puverização que Pajaraca fêiz matô cururu, camalião, calango, lagatixa,
cobra e quanto máir lagarta?
Mais um dia de serviço concluído e Pajaraca vem subindo o morrete, exausto.
- Ói... Zé vem chegano... - Anima - se Vicência.
- Terminei, cumade. Agora a catinga do veneno me dexô cum uma dô de cabeça
grande!
- Tua cabeça é grande de todo jeito, Pajaraca. - Brinca Mané Roldão.
- Chegue tumá um café aqui, eu dexei a garrafa im cima do fugão ali, mais num vá
ficá cunversano máir Mané a tarde todinha não, purquê sinão cumade Bigaí fica cum cuidado.
- Tá certo, cumade. De lá eu vô pra casa.
- Sim, ei, você reparô quem foi que passô lá ali no meu corredô? – Pergunta Mané
Roldão.
- Hunrum...
- E era quem?
- Foi Pêdo de Lalá mais a nêga dele.
- E ele disse pra onde ia?
- Pas Queimada.
- Fôro fazê o quê lá, hein?
- Disse que ia buscá a cangaia do jumento.
- O jumento dele tá lá, é?
- Não, mais ele vai trazê a cangaia na cabeça.
- Mái issé qué sê um caba sabido!
- Pur quê?

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- Pur que ele divia era tê levado o jumento e na vorta já trazia uma carga de lenha, nera
não?
- Era mêrmo, cumpade. Ei, eu já vô, viu?
- Pére, Pajaraca, chegue aqui.
- O que era, Cumpade Mané?
- Cate uma brasa ali pra mim acendê o cigarr'aqui.
- Cumade V’cênça vai brigá cum eu, cumpade...
- Vai nada, ela só tem zuada.
- Tá bom, mais ondé que tá o pegadô de brasa?
- Sim, tá aqui, eu tava sentado im cima, tome.
De repente, chega Vicência:
- Oxente, Pajaraca tu ainda tá puraqui, é?
- Não, eu já vô, cumade V’cênça. Boa... - Despede - se ele.
- E você, Mané Rordão, vá buscá as vaca hoje, que eu vô batê a cabaça de nata, sinão
ela azéda. Depois que você inchiquerá os bizêrro, venha me ajudá a prendê as galinha aqui
bora. Levante.
- Minino, tem uma coisa, também você só fala im galinha e bizêrro, né? - Resmunga
Mané Roldão.
No dia seguinte, na hora marcada para o serviço começar:
- Pronto, as cuia tão tudo rapada, prindí as galinha, já dei xerém pos passo, vala-me
Deus, cadê Pajaraca que num vem? Vô chamá ele gritano, é o jeito. Ah, ainda bem, sorte que
lái vem ele já.
No último dia, sabendo da comida mais farta, Expedito, o menino de Pajaraca foi até o
roçado onde o pai trabalhava, na esperança de também ter janta para ele. No fim do dia de
serviço, os dois vinham contando as passadas e o garotinho, coçando o bumbum, por causa
das lombrigas que lhe causavam a incômoda e insistente coceira.
- Chegue logo cumê, Pajaraca e diga a seu minino dêxe de coçá isso, rapaiz.
- Dêxa de cocá isso, minino! – Obedece Pajaraca.
- Tá coçano muito, pai...
- Eu dig' o quê agora, cumade?
- Lav’armão e ais zunha ali na bacia. Tu qué cuscuiz cum leite ou qué uma qualhada
cum farinha e cum rapadura pra adoçá?
- Pode sê o cuscuiz e a cuaiada? – Pergunta Pajaraca.
- Eu sabia, vocês é múinto é do cumilão. Comam logo e vão pra casa durmi cedo pra
acabá com a puverização já amanhã, viu? Ôta coisa, quando você chegá im casa, Pajaraca,
diga a cumade Bigaí que bote água cum uma cuiézinha de açuca numa bacia e se sente mêa
hora antes de deitá, pra cortá essa morróia desse minino, que já me dan’agunia aqui!
- Tá certo, cumade, eu faço. Vô falá a receita pa Bigaí...
- Pai coça o fuíco tomém, dona V’cênça. – Denuncia o menino, inocentemente.
- Cala a boca, cabrito!
- Se tivé, num tem nada não. É só fazê o qu'eu tô dizeno.
- É mintira dele, cumade, num é eu coçano não, é... – Pensa um pouco. - É só eu
tentano puxá a zorba que fica quereno entrá onde num foi chamado...
- Tá certo, Pajaraca, dêxe pra lá. E a minha roça, termina quando?
- Ah, isso eu acabo antes do pingo da mêi dia.
- Intão de tarde bote seu minino pra casa que você já vai é caçá é o gato maracajá!
- Eita, já cumeçô num foi, V’cênça? – Interrompe

82
Mané Roldão.
- Mané, vái cumê uma pá de boxta, vai! Cuide da sua vida que eu cuido da minha, tá
certo? Vá simbora, Pajaraca e teje logo aqui de tarde, depois do armôço.
E, durante a tarde no descanso depois do almoço na casa de dona Vicência e seu
Mané...
- Que caquiado é esse, hein, V’cênça?
- E essa tarde que parece que num passa mais? Agora que o galo tá amiudano* cantando
de forma estranha e o medo da seca me dêxa sem sono...
- Homi, V’cênça, dêxe de falá im seca, e dêxe eu vê s'eu tiro um cuchilo sussegado
aqui. Uma zuada, rapaiz!
Atônita, Vicência se levanta da rede. Como de costume, abre a janela da cozinha e
contempla o céu completamente azul. E para variar, estava com um ar nada animador:
- Você num tá veno a barra do ping' da mêi dia já tá azú? E essa aréula no Só, isso aí e
siná de seca. Eu já vô é fazê café...
- Quando tivé pronto, traga o meu aqui!
- Se levante também e vá caçá o que fazê, que eu escutei a batida na cancela do
corredô e isso deve sê Pajaraca que já vem vino e ele tem que tumá leite antes de cumeçá a
puverizá. Eita djabo, cabôsse os cavaco!
- Cavaco? De tocá musga?
- Não, Mané, o de acendê o fogo! Dêxe de sê bêxta! Eles tão cada vez mais difíce.
Repare quem vem lá, eu num disse que a batida na purtêra era Pajaraca?
- Pronto, cumade! Boa tarde...
- Trôuxe Bóxta?
- De vaca?
- De cachorro, qué dizê, o seu cachorro! - Se atrapalha dona Vicência. - Homi,
Pajaraca, iss'é lá nome de se butá num cachorro?
- É uma promessa, cumade!
- Homi… Eu sei! Mas cadê seu cachorro, intão?
- Se num tivé se danado lá pa Santa Teresinha atrái das cachorra, deve de tá lá im casa,
eu acho...
- Apois vá buscá ele que é o tempo d'eu terminá de cuá o café.
- Ô, cumade, num Só quente desse? Cheguei de lá agorinha...
- Tem nadinha. Vá buscá ele qu'eu fic' isperano!
- A sinhora qué ele aqui pra quê?
- Primêro pa inchê o tolé* a barriga dele. Como eu sei qu'êle é caçadozim qué danado, na
hora que você fô atráis do gato maracajá ele le ajuda, e ele tem que tá dispôxto, né não?
- É mermo, né, cumade?
- Onte mêrmo eu passei lá no fôjo e ele tava chêi de preá e punaré, aí eu tratei todim e
amax'tarde eu vô fazê uma panelada de angu cum preá, pra ele cumê até rachá o rabo, aí eu
sei que num vai sobrá um gato desse na redondeza pa contá hixtória!
- Eu fui lá na cacimba e truce uma lata d'água, V’cênça, pra mode de você num ficá
dizeno qu'eu num faço nada nessa casa!
- Apois pronto, Mané. Bote ali. E se prepare que agora você vai vê o que é o fim d'um
gato maracajá.
- Homi, V’cênça, dêxa de tanto faladêro só im gato, gato, gato!
- Tu vai vê o que eu vô fazê com ele!
- Pajaraca tá ino pr'adonde?

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- Foi buscá o cachorro.
- Pra que?
- Sei não. Tome seu café e dêxe de suas pergunta injuada aqui pert’imim!
Alguns minutos depois, Pajaraca retorna:
- O cachorro tá aqui, cumade V’cênça...
Como já deve ter sido percebido anteriormente, Vicência fala muito. Fala sem parar.
Qualquer relação ao fato de ser irmã de Inacio Nunes, outro tagarela, não é mera coincidência.
Enquanto sai, ela inicia seu monólogo:
- Amarre êle aí no pé da moita e venha tumá seu copo de leite que eu vô buscá uma cabaça
d'água ali. Eita meu Deus, se esse ano fô seco, até a cacimba véa vai secá, aí eu quero vê
aonde é que eu vô achá água. Só se fô mêrmo na cacimba dos bode. Aquela água véa fede é a
mijo de cabra que só. Vixe, né bom nem pensá não. Mais por ôto lado é bom, por que as
raposa, as onça e os gato maracajá vão morrê de sêde tudim, mais eu acho que esses bicharoco
dos djabo num bebe água não. O que eu sei é que eles goxta mêrmo é de cumê carne de bicho
dus ôto, isso sim. Fora que o mundo tá chêi de gente bêxta que nem eu, pa criá passarim e
cuidá só pra elas cumêre. Eu acho é pôco, que é pra mim dexá de sê bexta. Mané Rordão é ôto
lezêra que num tira a bunda de cima daquelas péda do alicéice da janela arta, pia mêrmo! Opa,
pra onde é que eu tô ino, meu Deus? Ah, me lembrei, tô ino pa cacimba buscá água. Num sei
não, esse gato tá me dexâno doida, mais na hora que eu tivé arrancano as urêa dele cum a
foice, ele é quem vai cagá de dô. Quando eu vortá, vou fazê logo o angu do cachorro, por que
depois do armoço, Pajaraca vai cumeçá o sirviço novo.
Ao retornar da cacimba, Mané Roldão questiona:
- Será que Pajaraca termina hoje a puverização, V’cênça?
- Ora se num termina, eu acho que era bom você passá lá pra vê comé que tá lá as
coisa!
- Nam, agora não, que o Sol tá pegano fogo!
- Pricisa mair não, ele já vem chegano, de certo, terminô tudo.
- Pronto, Cumade V’cênça.
- Pronto mêrmo?
- Pronto. Ufa... Paricia que o roçado tava se incumpridano…
- Então vá discansá um inxtante que aqui eu termino o armoço é já já.
- Tá veno ai, Mané Rordão, com'é que se faiz?
- Quanto tempo levô?
- Sei não, só sei que eu vou pagá saxtifeita, por que lá morreu tudo, até os urubu que
cumero os cururu. E você Pajaraca, já tá determinado o que vai fazê depois do armôço.
Zé Pajaraca almoçou, soltou Bosta, que já pulava lá debaixo do pé de Humaitá, seguiu
o caminho indicado por dona Vicência que segundo ela, o gato maracajá utilizava nas suas
visitas ao viveiro de seus passarinhos. Como gato é gato, Pajaraca quis ser prevenido e foi
pelo caminho do tanque grande, mas por ironia do destino, o bicho ladrão veio pela ponta do
baldro do açude e levou mais um passarinho que estava no viveiro, enquanto dormia. Dona
Vicênciasó achou o peneiro.
- Eu num vou nem contá isso pra Mané Rordão não, sinão ele vai ficá cum gaiófa* zombaria pu
meu lado, aí é da vêiz que eu sapeco essa culé de pau na cabeça dele! Má rapaiz... O danado
cumeu mais um! E logo qual? O meu concriz. Tem nada não, talvez Pajaraca vorte por esse
camím e ele se bata com Bóxta, aí vai ser fáci, fáci, pur que se ele cumeu sozim um passarim
onte e hoje... O bucho dele vai tá tão inchado que ela num vai aguentá corrê não e Pajaraca

84
pega ela até andano de quato pé! E ôta, o danado bebeu até a agua do vivêro. Só pode sê um
gato muito graúdo, pur que pa tê tumado
uma cabaça todinha d’gua? Im pé isso deve sê do meu tamãe dos cego da Caiçara! Tá c’a
bixiga!
Pela raciocínio descritivo de Vicência, o ladrão também poderia ser uma gato maracajá
daqueles de dois pés. No entanto, ela não se dá conta disto.
- Eu tem pra mim que tu tá ficano é doida, V’cênça!
- Doido é tu, que só viv'aí sentado paxtorâno o que num é da tua conta!
- Vamo pra dento de casa por que se não você também vai acabá seno cumida por esse
gato maracajá, bora.
- Ele vai cumê é alicate na urêa!
- Entra, muié. Passe o ferrôi aí...
No outro dia, Pajaraca já estava revirando tudo quanto é lóca de pedra, ôco de pau,
buraco de ticaca, enfim. Ele botava Bosta para enfiar as ventas lá dentro, mas nada de sinal
que indicasse a passagem do tal gato maracajá por ali. Ainda foi no serrote do Tanque Grande,
passou pelo pé de chique - chique, comeu uns caroços de favela na faveleira da lagoinha,
passou no pé de catingueira grande, de lá foi na casinha do jumento Jipão, desceu até a
represa do açude, chegou no sangradouro e comeu escondido uns tomates do canteiro de dona
Vicência. Quando já era quase noite, foi para casa.
- Bóxta tá aqui V’cênça, E eu acho que Pajaraca deve tá já chegano puraí...
- Então eu vô fazê logo é o angu do cachorro, depois eu boto a janta. E tu, Pajaraca?
visse argum raxto daquela satanáis por ai?
- Nem siná, cumade V’cênça.
- Apois assim que você saiu ele vêi por cima de casa e agarrô uma rolinha cafofa,
sacudiu pá ir sortano as pena tudinha e ainda levô ela no dente!
- E foi? Ô rapaz... – Questiona Pajaraca, sentindo – se culpado.
- Foi, mais num tem nada não! A faca tá amolada e o alicate tá guardado junto mais
ela. E venham logo jantá que eu já vou butá o angu po cachorro.
Apesar da raiva com o gato maracajá, Vicênciaera uma senhora muito bondosa e que
gostava muito de animais, os quais, eram tratados como se fossem gente:
- Chega Bóxta, Chega! Cuidado que tá quente e tu queima a língua! Ói, dos preá só
sobrô o cardo, mais amanhã deve de tê mais lá no fôjo, aí intão eu faço pra tu intendeu? E
amanhã cedo eu vô le dá um líto de leite, que é pra você farejá gato maracajá cum uma légua
de lonjura, tá certo, nêgo véi? - Afagando o cachorro.
E o vira – lata só achando bom a moleza, balançando o rabo.
- Quem é que tá aí mais tu, V’cênça?
- Ninguém não, Mané. Ninguém não.
- Apôis intão chegue e traga o café pra cá.
- Tá lá no fugão, vá pegá você!
- Pegue ali, Zé, que V’cênça tá cum a priguiça do mund' todim!
- Priguiça quem tem é tu, Mané priguiça! Ó aqui o café.
- E agora eu vou pra casa, viu, cumade?
- Tá certo, mais venha cedo amanhã que é pra tu siguí até no Arapuá e passá o pente
fino im tudo que fô buraco.
E no outro dia logo cedo, Bosta bebeu seu prometido litro de leite e logo na saída
acoou no pé do serrote. Pajaraca correu até lá e dona Vicênciapegou a faca junto com o alicate
e foi atrás dele, mas ao chegar lá, viram que o bicho tinha entrado num buraco muito do

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fundo, que ficava debaixo de uma pedra grande. Remover aquela laje era impossível, mas
dava para cavar por baixo dela, e talvez chegar no fim onde estava o gato. E assim, dona
Vicênciaordenou:
- Pajaraca, vá lá na casa de Cumpade Juzé e mande vim Aifredo Putruco e diga a ele
que eu mandei dizê que ele venha trabaiá hoje pra mim e que traga a chibanca, uma pá, uma
inxada, uma foice, um machado, uma ‘lavanca e uma marreta da grande, pois dependeno da
pricisão, nóis vai quebrá essa péda, por que dessa vêiz eu pego esse gato do djabo! E vá logo,
que eu vô ficá aqui de tucaia e se ela butá a venta pra fora... Finado gato!
Nisso, Mané Roldão se aproxima dos dois, embora a lentos passos, mas ávido em
saber o que Vicênciafalava:
- A muié de quem butô chifre em quem, V’cênça?
- Butô em tuas venta! Nem uma coisa nem ôta, Mané, foi dotô gato maracajá que entrô
dibaxo dessa péda, mais eu já mandei chamá Aifredo Putruco pa cavá. Até o pingo da mêi dia
eu pego ele!
- Homi, vamo pra casa pa fazê meu armoço, rapaiz!
- Nam, hoje ninguém vai cumê nada inquanto eu num pegá no rabo desse danado!
- Vá pra casa, V’cênça. Vá que eu fico sentado nesse toco atucaiano inquanto Putruco
chega. É bom que ele sempre anda com uma tira de fumo arrudiada no pescoço e eu vô é pidi
um pedaço!
- Nam, eu num vô não! Ah lái vem Putruco mais Pajaraca, ‘Inda bem. Trouxe tudo que
eu pidi, Aifredo?
- Truce, Dona V’cênça.
- Intonce vá cavano cum todo cuidado aí, por que eu vô querê ele viva, viu? Agora eu
vô ino pra casa, e você, seu Pajaraca, venha mais eu pra trazê a corda pa amarrá ele. Já você,
seu Bóxtinha, vai armunçá hoje é angu cum preá, pá fica forte!
E chega meio dia e nem sinal do fim do buraco. Foi trazido o almoço até a boca da
lóca* buraco e o trabalho continuou até as três da tarde sem que nada aparecesse. Finalmente, lá
pela tardinha apareceu um estranho rabo, que para aumentar a frustração de Dona Vicênciaao
puxá - lo, constatou - se que não era de uma raposa, e sim de um timbu. Dona Vicênciaficou
algum tempo calada pensativa, mas depois falou:
- Aifredo, amanhã você venha recebê o dinhêro de
seu sirviço.
- Tá certo, dona Vicênça.
- E você, Pajaraca, tá dispensado. Já pode vortá pra trabaiá pa cumpade Inaço,
cumpade Jusé ou par minina...
- E eu num vô ganhá meus capão não, cumade?
- Você tá cum o gato aí dento do bisaco?
- Tô não...
- Intão pronto. Só vai tê a diara e ói lá. É pá sê filiz!
Assim, no outro dia Zé Pajaraca retoma seu serviço de caça aos ninhos de gavião e de
carcará recomendado por Inacio. No outro dia, ele foi para o Arapuá muito cedo. Pegou um
tejo no córrego do juazeiro do engenho, mais adiante pegou uma ticaca, lá na frente tirou o
couro do pintado* um peixe, e deu um banho em Bosta à beira do córrego, e de lá foi para casa.
Chegando lá, encontrou Dona Vicênciatoda contrariada, já à sua espera, pois o gato maracajá
havia lhe enganado mais uma vez:
- Ai, se eu pegasse esse gato, Pajaraca, esse danado do djabo! eu ia le moxtrá comé
que se fáiz uma arapuca! Pirdi o dia de sirviço que paguei a Aifredo Putruco e a você, que já

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tá ganhano dois dia incarriado, mais os líto de leite que eu dei a Bóxta. Era eu quem divia tê
cumido os preá e não ele! Eu acho que você, Pajaraca, im vêiz de tá caçano, tá é tumano cana
iscondido dibaxo do pé de juazeiro do ingêim e durmino pur lá mêrmo!
- Oxi, eu mermo não, cumade. A sinhora sabe qu'eu
sô trabaiadô!
- Pois eu quero mais um dia de siviço seu...
- Tem que avisá pa cumpade Inaço!
- Dêxe cumigo. Ele vem aqui aí eu digo a ele.
- Intão assim tá inhordi.
- É, só que amanhã Bóxta num vai bebê leite ninhum e no armoço, se ele quisé cumê,
vai sê angu puro, e é pa sê filiz! Se num quisé, que vá se lascá pra lá!
No dia seguinte, Zé Pajaraca fez uma volta completa no açude e não achou sinal que o
gato maracajá viesse beber por lá. Não viu nenhuma pegada nas margens de barro mole.
Durante a tarde, quando voltou, Dona Vicência, a conselho de Mané Roldão, mandou
suspender a caçada. Pajaraca ganhou a diária, mas ainda não foi dessa vez que ele ganhou os
capões, conforme o prometido, caso ele capturasse a raposa.
O gato maracajá é um felino muito comum nas terras áridas do sertão, embora seja
cada vez mais difícil encontrar um pelos tabuleiros; os restantes, sobrevivem habitando as
matas mais densas dos pés – de – serra, onde não há muita ocupação humana. É um animal
muito bonito, parecido com uma onça pequena e também com um gato doméstico.
Normalmente, sua dieta consiste da fauna da própria caatinga. No entanto, quando a
seca aperta, o animal vai em busca de comida nas habitações dos sítios. A seca veio com
muita vontade de fazer seus estragos, o sinal verde que dava passagem a um futuro melhor
tinha se fechado e o vermelho estava aceso, impedindo assim o trânsito das boas esperanças;
pois onde a chuva não é pontual, nada frutifica em perene.
A safra do algodão de dona Vicência, mesmo pulverizada, já se encontrava
comprometida, os compradores de algodão na folha já não se atreviam a comprar mais
nenhum capucho. O milho e o Feijão plantado também já estavam morrendo, ao passo que
Dona Vicênciaa toda hora repetia para Mané Roldão:
- Eu bem que dizia que esse ano ia sê seco. Eu dizia!
E pior. Certa vez, Mané Roldão, como sempre, não fazendo nada, só sentado na pedra
do batente, ouviu um barulho diferente vindo do céu. Era um avião. Se tinha uma coisa rara
de se ver por ali era o tal do avião. Mas esse sobrevoou os céus do Lameirão primeiramente
bem alto, mas depois teve uma aproximação. Instantes depois já passava bem baixo. Mané
Roldão até temia que aquele avião estivesse prestes a cair e o piloto procurava um local para
pousar, pois ele se recordava de um sinistro parecido ocorrido em Patos no ano de 53, lá
próximo do Campo de Aviação.
- Só se ele posá nos tabulêro de cumpade Juão, que num prantô nada!
E mais uma vez o avião se aproximou. Chamou tanto a atenção do Mané que ele até
ficou de pé para ver aquela cena tão fora do comum por aquelas bandas. No entanto, o avião
realmente sobrevoou os roçados, mas não o do João Nunes, que nada tinha, e sim, todos os
roçados de algodão, fazendo um percurso em forma de X. Ao ver a aproximação pelo barulho,
Vicência, Mané e outros das redondezas partiram em direção da passagem do avião. E o que
viram, os deixou desolados:
- Ô cumpade, o avião tá quereno posá nos roçado de argudão ô não? - Pergunta Zé
Pajaraca.

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- Rapaiz, caino ele num tá não que depois ele sobe. E tá tentano posá só nas roça de
agudão?
Nisso, Expedito, que por ser novo tinha uma vista melhor, percebe que o avião estava
soltando uns grãozinhos escuros por cima dos roçados de algodão. E tem a iniciativa de
chamar os outros até o roçado de algodão. E lá, se depararam com a triste surpresa: Aquele
avião dos diabos estava na verdade soltando milhares de besourinhos por sobre a plantação de
algodão. Ao se aproximarem do roçado, ainda sentiam alguns caindo por sobre as cabeças e
ombros.
- Mas que mulesta dos cachorro é isso? Por que diabo alguém ia jogar isso numa roça
de algudão? - Esbraveja Vicência.
E nisso, a confusão estava feita. Rapidamente a noticia de que um avião tinha soltado
besouros no roçado de algodão havia se espalhado, e continuava sendo replicada, pois vários
outros agricultores se queixavam de que viram um avião pequeno sobrevoando os roçados de
algodão e soltado besouros, sob intenções desconhecidas. E a queixa tomou grandes
proporções em poucos dias. As estações de rádio noticiavam várias vezes ao dia que mais e
mais propriedades avistaram um avião sobrevoando as propriedades, e dado o curto intervalo
de tempo, era até de se supôr que se tratava de mais de um avião. O fato tomou grandes
proporções, chegando inclusive ao conhecimento do Governo do Estado, que fez visita a
várias propriedades, mas pouco pode fazer.
A safra de algodão, que até então, mesmo em períodos de seca tinha alguma garantia
de colheita, agora estava totalmente dizimada. Qualquer pezinho que tentasse desabrochar seu
capucho, era imediatamente devorado por esse besouro, que jamais tinha sido visto antes por
essas bandas, e que ficou sendo chamado de “bicudo”. E infelizmente, até os dias atuais as
safras de algodão ainda são dizimadas por essa praga trazida de fora por esses tais aviões. Em
suma, tiraram do sertanejo mais uma fonte de renda. As empresas compradoras agora teriam
de comprar a matéria-prima de outros países, principalmente dos Estados Unidos.
Coincidência? Nunca saberemos ao certo. Esse fato foi tão notório que em 1983 admitiram
publicamente a introdução desse inseto no país, mas que a introdução real deste, se deu dessa
forma tão sorrateira
De resto, vendo a lavoura do ouro branco sendo devorada pelos insetos, agora Mané
Roldão olhava para a esposa e ficava calado. Pajaraca, tinha perdido o emprego de vigilante
para Zé Alves, o de caçador de gato maracajá de dona Vicênciae perdeu até o de ajudante das
meninas. Zé Alves até ajudava com alguns mantimentos, mas eram muitos moradores, e a
ajuda nem de longe era suficiente. A coisa estava feia. Pajaraca, durante esse tempo todo no
sítio Lameirão, nunca tinha vivido dias tão difíceis, desde quando mendigava em Patos.
Para alimentar sua prole, ia pescar traíra escondido no resto de água dos açudes dos
outros; à tarde, ia botar as ovelhas dos vizinhos no chiqueiro a troco de algumas bolachas ou
farinha, ou qualquer outra coisa comestível, e por aí vai.
Nisso, mesmo com todo esse aperto, Inácio, que estava precisando vender suas
vaquinhas e os bois mansos, para pagar
dívidas, teve como única saída cortar lenha para vender e fazer carvão. A madeira já era
escassa, e para praticar essa atividade, tinha que ir aproveitando tudo que tinha sido refugo no
primeiro corte, mas como a necessidade supera obstáculos, Inacio convidou Pajaraca para
ajudar.
Este, sem muita habilidade com aquele instrumento, amolou o machado e a foice na
pedra sabão e foi a luta. Inacio tanto fazia o carvão quanto vendia lenha bruta às padarias de
Patos, pois não tinha outro meio de conseguir dinheiro.

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Certo dia Zé Pajaraca estava dentro da carvoeira, quando ouviu latidos persistentes de
Bosta. Correu em direção aos latidos e o encontrou muito agitado na entrada de um buraco
que ficava debaixo de uma coivara.* amontoado de galhos secos
À medida que ia afastando os garranchos, deu de cara com um grande gato maracajá!
Pajaraca viu ali oportunidade de ganhar seus dois capões prometidos por Dona Vicência.
Apesar de Bosta ter acuado muito longe do raio de ação do gato maracajá comedor dos
passarinhos de sua ex - patroa, Pajaraca não queria perder a oportunidade, além de considerar
a grande dificuldade que é capturar um bicho daquele! Tinha tanto dente na boca que fazia
inveja a qualquer tubarão das praias de recife. As garras então, cortavam igual a uma navalha!
O gato não dava espaço. Com um olho, fitava Pajaraca, com o outro mirava o cachorro.
Pajaraca se lembrava muito bem dos capões e sabia que eles estavam gordos. Concluiu
então que sua grande oportunidade estava ali. Era só correr o risco, mas cadê a coragem?
Tinha que haver um jeito de pegar vivo o gato maracajá.
Passados alguns minutos de troca de olhares e deu - se um descuido por parte do gato.
Pajaraca assoviou forte e o cachorro avançou. Como tinha que se defender do cachorro, o gato
esqueceu Pajaraca e este saltou no gógó dele, segurando firme com as duas mãos. O resto não
foi muito fácil: Puxou o bicho para fora do buraco, mas teve que levantá-lo acima de sua
cabeça, ficando ao alcance das garras do bicho, que não perdoou nem a cara nem a roupa já
surrada de Zé Pajaraca. Do outro lado, o cachorro pulava para alcançá-la no ar.
O gato maracajá tentava se desvencilhar a todo custo das mãos de Pajaraca, que
segurava firme o bicho naquela incômoda posição, já que o bicho estava arranhando ele sem
piedade. Nisso, o gato maracajá xeringava mijo na cara dele o tempo todo, que no fim acabou
ficando todo molhado, da cabeça aos pés, mas o bom foi que ele não a soltou.
Pajaraca tinha que levar o animal naquela incômoda posição, tendo que aturar os
miados e ruídos desesperados até um rancho onde ele lembrava que tinha um pedaço de corda
e lá poderia amarrar bem a presa, mas a pergunta era: Como passar na cerca de varas?
Levantou-se na ponta dos pés, passou a raposa por cima, mas esta fincava os pés na cerca,
mijava, cagava, grunhia, mas Pajaraca não a soltava
nem a pau! Apoiou os dois cotovelos por cima da cerca, passou a primeira perna para o outro
lado e ficou escanchado em cima das varas. O cachorro não conseguia alcançá-la por causa da
altura. Nessa posição ele até descansou um pouco, mas já tinha outro inconveniente: O mau
cheiro, pois a roupa de Pajaraca já estava toda cagada, mijada, rasgada, e ainda tinha que
suportar o próprio mau - cheiro do animal, que por si só, já é insuportável; fora ele, que estava
todo arranhado rosto, no bucho e nos braços.
No entanto, não poderia mais voltar atrás. Tinha que ganhar os capões a qualquer
custo. Assim, firmou as costas numa estaca, passou a outra perna para o outro lado e pulou no
chão. Seguiu por dentro da caatinga até chegar no rancho. O resto foi fácil. sentou por cima
do gato maracajá, prendeu o pescoço dele com as pernas e tendo as mãos desocupadas, cortou
a corda em dois pedaços, com ajuda dos cacos dos dentes, um para amarrar o gato, e o outro,
o cachorro, pois esse não estava disposto a deixá - lo em paz. Quando terminou de amarrar a
ambos, saiu dali levando os dois: O gato parente de onça, pendurado na mão esquerda e o
cachorro na mão direita. Pulou as cercas de vara, passou por baixo de arame, contornou a
represa do açude de Dona Vicência, e chegou até a casa dela pelo caminho do tanque grande,
ao que de longe, já gritava:
- Dona V’cênça, dona V’cênça! Peguei seu gato! Peguei seu gato maracajá!
Mané Roldão botou a cara na porta entreaberta e Dona Vicênciajá foi passando por ele
igual a uma bala.

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- Mim dê esse danado pra cá, me dê! - gritou ela.
Em seguida, jogou milho no chão, chamou as galinhas e começou a passear no meio
delas puxando o gato, que de tanto desejo, fechava um olho e abria o outro, ao passo que a
baba escorria pelo canto da boca.
Depois, dona Vicênciamandou Pajaraca segurá – lo mais uma vez. Entrou em casa e
voltou com um alicate numa mão e na outra uma faca peixeira, que de tão afiada, se uma
mosca sentasse em cima do gume, esta seria dividida em duas, mas Mané Roldão interveio:
- Homi, dêx'isso pa amanhã V’cênça! Vá cuidá de fazê café...
- Ói... Dessa vêiz eu vô tumá seu consêi, Mané.
Esfregou o alicate nas ventas do gato e com a faca cortou os bigodes dele, e depois
decretou a terrível sentença:
- Hoje tu vai durmí amarrado dento do vivêro, que é pros passarim cagá im cima de tu
a noite todinha, seu infiliz!. Eu ainda vô butá um capão bem gordo amarrado bem pertim de
tu, que é pra tu passá a noite todinha olhano pra ele, viu, seu djabo? E amanhã depois do café
eu vô sabê se tu aguenta ficá sem as urêa, sem dente e sem as unha, seu cumedô de passarim
dus ôto. Depois eu vô até le pindurá pelo rabo no pé de ‘maitá e tirá seu côro bem
digavazim... Boa noite, seu safado!
Vicência retorna do viveiro dos pássaros feliz da vida, com o feito de Pajaraca. E ela
não era mulher de deixar algo assim passar em brancas – nuvens:
- Ô Pajaraca, venha pegá seus capão a máx’tarde, purquê eles tão solto no ali pelo terrêro,
aí quando eles se inchiquerá de noite, aí eu tranco o pulêro e no ôto dia eu le dô. Ah, venha
amanhã cedo e traga Bóxta.
- O cachorro, né?
- Não, Pajaraca. Junte numa sacola sua bóxta, a da sua muié, de sêur minino e pode
trazê! Arre lá!
- Tá certo, cumade… Eu trago.
- Homi, Pajaraca, tá doido, é?
- Oxi, intão diz dereito, cumade. É o cachorro ou num é?
- É o cachorro sim! Traga ele que é pra ele vim bebê leite até impanziná!
Mas no outro dia, quando Pajaraca veio buscar os capões, encontrou dona Vicênciaàs
turras com Mané Roldão.
- Se eu num tivesse tumado seu consêi, num tinha aconticido o que aconticeu! Tu sabe
quanto tem me cuxtado tudo isso? Num sei quantos dia de sirviço de Pajaraca, um de Putruco,
e não sei quantos lito de leite pa dá pa djabo de cachorro! Além de num sei nem quantas
pratada de angu cum preá, dois capão, isso é, um hoje e o ôto depois!
- É… Bom dia, dona V’cênça…
- Num cumeçô muit' bom não, Zé.
- Cadê o café, V’cênça? - Interrompe Mané Roldão.
- Avuêi a garrafa no mato, Mané Rordão! E você, Pajaraca só vai levá um capão hoje,
por que eu ainda vô capá uns frango e depois é que eu le dô o ôto.
- Mais cumade V’cênça, essa noite eu tive que passá lá na budega de Teófe Batixta pa
mode de comprá sabão pa lavá minha rôpa que tava toda suja de mijo e de boxta da gato, e
comprá um carrité* carretel de linha pa levá lá im Nita de cumpade Zé Aivo pa cirzi os rasgado
e como eu num tinha denhêro, o véi lá aceitou recebê uj dois capão, e eu tinha que dexá eles
lá ainda hoje.
- E que sabão caro da muléxta é esse? – Pergunta Mané Roldão.

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- Ah, meu fíi. Você num sabe o que aconteceu... – Interrompe Vicência– Pois num foi
que o gato rimueu* remoeu a corda com o dente e eu tinha amarrado o ôto capão perto dele?
Quando cheguei lá de manhã só encontrei os dois pitôco de corda.
Ou seja, mais uma vez o gato maracajá se safou de seu destino mortal.
Antes de fugir, ainda fez sua última traquinagem com o frango capão, mas após tal
provação que passou, por muito tempo não se ouviu falar por ali de problemas envolvendo
gato maracajá pelas redondezas. Vai ver, um falou para outro para outra e que falou para mais
outro que o mar ali não estava para peixe, e que o quilo do galêto estava muito caro no sítio
Lameirão, sendo melhor abocanhar passarinho ou galinha em outra freguesia...

Inácio Lucena

CAPÍTULO XIV
1955
As Frentes de Emergência

E de fato, o ano de 1955 não estava para brincadeira. Foi mesmo um ano de pouca
chuva. O comércio da região, dependente quase em sua totalidade dessas estações chuvosas,
estava arruinado, reduzido ao movimento das compras dos poucos aposentados e funcionários
das prefeituras. Nem se quer na cidade havia mais emprego. Bêbados e mendigos se
multiplicavam pelas ruas. Muitos furtos estavam ocorrendo. Na zona rural a situação era ainda
mais calamitosa. Até a água de beber já estava em falta, sendo necessário ir cada vez mais
longe para encontrar o líquido precioso. O gado, sem ter o que comer, não conseguia se quer
ficar de pé, morrendo posteriormente de sede e inanição, sendo abandonados aos montes, na
beira das estradas. O impacto da seca no sítio Lameirão foi devastador. Zé Alves teve que
vender boa parte de seu rebanho, dispensou trabalhadores, teve prejuízo em todas as suas
plantações além de todo um gasto extra com a própria familia, da qual, ele é o arrimo.
As irmãs Alcinda e Severina, que além de cuidarem do seu velho pai, Joaquim Nunes,
também mantinham alguns trabalhadores em serviços simples da roça, também tiveram que

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abrir mão do trabalho destes, pois muito pouco do que tinha sido plantado vingou e mesmo
assim, nenhum comprador apareceu por lá desde então.
Inacio, mesmo muito trabalhador, não podia mais contar com o serviço de mais
ninguém, pois estava muito endividado com empréstimos para o plantio.
Vicênciae Mané Roldão, assistiam desolados ao espetáculo medonho de ver o Sol
causticante consumindo suas hortaliças e fruteiras, vendo suas galinhas morrendo de gôgo,*
doença que dá em galinhas quando não estão bem alimentadas sem mais nenhum tostão para pagar alguém para
agoar, cuidar e pulverizar o roçado, que demorou tantos anos para cultivar.
O castigo da seca também tinha sido severo com Zé Pajaraca, que sobrevivia graças
aos bicos oferecidos pelos vizinhos do sítio Lameirão. Zé já estava entrando em desespero,
junto com sua mulher, vendo seus meninos pedindo por comida e não ter mais nada para dar.
Nem um calango, nem uma gia. Até cururu ele procurou e não achou mais.
Em meio a esta crise, Firmina, a filha mais velha de Pajaraca, que estava morando e
estudando para ser freira em Santa Teresinha, do nada sumiu e quando mandou notícias, era
um bilhete dizendo que arrumou um casamento. E pior: Com um senhor bem mais velho que
ela e separado. Quando essa novidade chegou aos ouvidos de Zé Pajaraca, ele não gostou nem
um pouco da conversa, pois era muito
ciumento com sua moça e ficou decepcionado pois ela tinha saído de casa dizendo que seria
freira. Somente por isso ele deixou.
Tal mudança de planos foi um prato cheio para aqueles que gostam de um bom fuxico,
como Mané Roldão, por exemplo.
Pela história que já circulava na base do boca - boca, Firmina nunca pisou num
convento, e sim que esposa desse homem há muito tempo. Coube ao pai então aceitar, já que
não tinha mais jeito. Abigail tentou consolá - lo, dizendo que era uma boca a menos para
mandar dinheiro e dar despesa, e que nos dias de hoje, aparecer alguém para querer casar com
gente pobre era difícil.
Pajaraca meneava com a cabeça, mas estava visivelmente abatido com tudo isso, e
afogava as mágoas como nunca na cachaça. Interessante frisar que, faça chuva ou faça Sol,
cachaça é sempre produto em fartura, ao alcance até mesmo das mais pobres criaturas, como
Zé Pajaraca.
Apesar de muito jovem, Firmina juntou – se com este senhor, Barnabel, e foram os
dois morar em sua propriedade, uma chácara na entrada de Patos, à beira da estrada que liga
esta cidade ao distrito de Cabaças, num sítio chamado Várzea da Jurema.
Ficaram em casa Zé Pajaraca, junto com a mulher, Abigail, Expedito, de treze anos,
Marieta, de nove, Ana Júlia de cinco, Januário, de quatro anos, que tinha síndrome de Down,
e os gêmeos Romo (sic) e Remo, de dois anos. Eles tiveram outros filhos quando vagavam
pelas ruas em Patos, mas que não vingaram. Morreram ainda recém, nem um nome de
batismo tinham.
Passadas algumas semanas, Firmina, que sempre foi moça prendada, dona de casa há
muito tempo, com vergonha de vir em casa, mandou um recado e pedindo para levar os
irmãos pequenos para morar com ela na casa nova, que era muito grande e tinha quem
cuidasse deles, ou seja, terminar de criá-los, dando um alívio aos pais.
O orgulho de Zé Pajaraca foi novamente ferido com aquela proposta a princípio, mas a
necessidade das circunstâncias acabou por falar mais alto. Abigail acabou por convencer Zé
Pajaraca a permitir que eles fossem morar com a irmã. Ficando apenas Pajaraca, Abigail e os
gêmeos em casa.

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Depois do mês do São João a seca arrochou. Zé Pajaraca, juntamente com Abigail, se
sentiram obrigados a se alistar como cassacos emergentes nos serviços do Governo Federal,
onde cada um dos trabalhadores ganhavam meia diária para carregar terra do empréstimo até
a o aterro numa padiola. Comiam o "quarenta" no lanche, quarenta no almoço e quarenta no
jantar, pois o que ganhavam não dava para comprar outra coisa para comer.
No meio do acampamento, às vezes vinha um funcionário em um Jipe com uma rádio
difusora ligada a uma bateria. Por meio dela, os trabalhadores ouviram o repórter Esso
anunciar uma grande obra do governo, que era a construção do Açude Boqueirão de
Cabaceiras, ali pr’os lados de Campina Grande, ouviram também o reporter anunciar que
estavam contratando trabalhador e que o preço da diária no serviço era bem melhor. Por
isso, Zé Pajaraca se arrastou num caminhão pau de arara até lá com Abigail, Expedito, e os
gêmeos de braço, ficando os outros filhos aos cuidados de Carrôla, irmã de Abigail e outros
ficaram aos cuidados de Firmina, em Patos. Quando o fumacento caminhão, após dia e meio
de viagem pelas estradas pedregosas do sertão, alguém de bom coração lhes deu comida e
dormida.
Mais um dia de novembro de 1955 se passou. A jornada de trabalho do dia seguinte foi
feita sem comida. Lá pela tardinha, Pajaraca estava muito fraco. Ao se aproximar do local
onde ele deveria depositar o aterro contido em sua padiola, ele tombou. Ao cair, um saquinho
de moedas que trazia amarrado no cordão da cintura se rompeu espalhando várias moedas e
cédulas do seu magro pagamento por cima daquele barro seco. Os que rapidamente se
aproximaram, não estavam se importando com ele e sim, em catar aqueles tostões. A única
que veio em seu socorro foi a pobre Abigail. Poucos minutos depois Pajaraca estava bem e
retornaram o árduo serviço. No fim do dia, retornam ao acampamento dos trabalhadores. Lá
receberam finalmente a comida e dormiram no chão mesmo, pois não tinha onde armar as
redes. Apesar de estar em tempo de seca, nessa noite caiu uma chuva fina a noite toda. O jeito
foi procurar um lajeiro de rochedos para passar o resto da noite e no outro dia se alistarem
para trabalhar em mais uma diária de produção. Ganhariam um cruzeiro por cada metro
cúbico de terra cavada e transportada nas tais padiolas até o aterro do açude.
A contratante era uma empresa privada, criada pelos políticos daquelas redondezas
mesmo, e que não pagava pontualmente no fim da diária. Isto significava que quem quisesse
ganhar mais um pouquinho, tinha de acender um fogo para iluminar o barreiro onde a terra era
cavada, porém o transporte era feito no escuro, e mesmo assim não dava para garantir as três
refeições por dia. Vale ressaltar que essas frentes de emergência não se diferenciavam muito
do trabalho escravo, a única diferença era que, se o trabalhador não estivesse satisfeito com a
forma de pagamento, poderia ir embora e dar a vaga a outro. No mais, tudo era igual, pois na
verdade, não existia remuneração. Essas frentes de trabalho eram criadas estrategicamente
longe dos grandes centros e das fiscalizações, para que, com o pouco dinheiro recebido, eles
comprassem lá mesmo os mantimentos, que eram vendidos pelos próprios capatazes, e a
preços exorbitantes. Estes alimentos, enviados pelo governo federal para aliviar a fome
durante a seca, eram desviados pelos chefes das frentes de emergência e comercializados em
tendas próximas aos campos de trabalho. Ou seja, os cassacos*, alcunha dada aos trabalhadores das
frentes de emergência no fim das contas, trabalhavam apenas pela comida, que deveria ser destinada
a eles de graça.
O pior é que a toda hora chegavam novas levas de trabalhadores que venderiam um dia
de serviço por um pacote de fubá mofado que vinha dos tais silos do governo, pois este, para
se ver livre de tais tranqueiras, mandava distribuir de graça para às classes menos favorecidas.

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No entanto, esses atravessadores, como já dito, vendiam esses produtos a preços faraônicos no
próprio canteiro de obras, e muitos ainda davam graças a Deus por poder adquiri-los.
A seca tinha transformado aquela região numa apoteose de miséria e de sofrimento.
Era uma espécie de hóspede indesejado e inconveniente que não tinha vassoura nenhuma atrás
da porta que o fizesse partir, pois ele nunca queria ir embora. Aquilo era o meio termo entre o
mundo do horroroso e do fantástico. Muitas vezes era melhor não tentar compreender mesmo,
pois eram milhares de flagelados e no meio daquele imenso formigueiro de pigmeus
comandados por gigantes poderosos e de má fé.
Para onde se virassem, pisavam em fezes humanas, e naquele coletivismo desmedido
de escravidão e imundície onde os marcos da uma concessão humana são sugados por patrões
inescrupulosos, O sertanejo cada vez mais ia se imolando. E ele, como vitima da fatalidade e
do destino, se vía perdido ali com sua mente povoadas de previsões pavorosas.
Tais previsões de provação tornava as cabeças dos sertanejos coroadas de grandes
desilusões, eles olhavam de um lado
para outro e não viam uma saída. Isto apenas afirma quem viu aquele horror, pois até hoje,
isto pode ser visto através dos binóculos da boa memória daqueles que fizeram parte daquele
quadro coletivo e hoje narram pesarosos toda a mazela que passaram, pois só as pessoas que
estiveram ali e passaram por essa provação sabem como foi.
Ninguém além deles conheceu toda a gama universal de ruindade que sempre existiu
no domínio da política, a qual negava para aqueles milhares ossos revestidos de carne viva,
uma mera gota de dignidade.
Eles jamais esquecerão daquela rotina: ReceBigaím vinténs como pagamento de seus
serviços as mercadorias dos barracões dos patrões, com valores ditados por eles mesmos, pois
suas ambições não tinham limites. E nas suas medidas desumanas, só havia lugar para o
interesse do "eu", dos "eus", ou dos "nós", pertencentes a aquele próprio grupo. Quanto aos
outros "nós", ou seja, os milhares de Pajaracas que ali se encontravam, restavam apenas
"arrocho" dos “nós” da corda no pescoço e mais nada.
Outras mercadorias que eram enviadas pelo governo federal para serem distribuídas
gratuitamente como já foi dito antes, sem fiscalização alguma, eram também vendidas nos
ditos barracões, até mesmo água, pois estes tristes acontecimentos sempre são administrados
pelo grupo aliado dos governantes, que se beneficiam da miséria alheia, algo bem parecido
com corja daqueles envolvidos na Lava – Jato.
O conta-gotas que distribuía a dignidade a muito tempo estava obstruído, mas as rodas
dentadas da grande indústria da seca estavam bem lubrificadas, pois quem controlava o seu
movimento eram os poderosos chefões da política local. Naquele oceano de desrespeito para
com o próximo, que na realidade só a miséria estava próxima a eles, ainda vinham às grandes
filas para receber as tais mercadorias, cujo acontecimento começava no sábado à tarde, se
desenrolando até meia noite de domingo, já que muitas vezes o emergente só dispunha desse
resto de noite, para ir em casa levar comida à sua prole. Uma vez que, na segunda-feira cedo,
o tais flagelados tinham que estar presentes na hora da chamada, se não o ponto era cortado.
O fiscal que fazia o controle do ponto tinha ordens para agir assim, porém os amigos
dos mandantes nunca se faziam presentes, mas eram apontados. Outras praticas revoltantes e
desrespeitosas, eram por exemplo, essa grande mão de obra ofertada pelo problema da seca
que eram também desviadas, para ser utilizada na construção de grandes açudes particulares
nas propriedades dos mandantes, pois todas as prestações de contas para com o governo eram
forjadas ou maquiadas também por eles, isto, quando ainda eram feitas.

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Havia ainda a conveniência da rapinagem, entre o feitor de turma e o fiscal, pois o
ponto cortado daqueles que não estavam presentes na hora da chamada, era anotado no
caderno deles, e depois feito o rateio entre o grande grupo de ratos gabirus, que segundo me
parece foi o nome rato que deu origem a palavra rateio, (ou seja, doença contagiosa que se
propaga através dos ratos). O fato é que na maioria das vezes, a causa da ausência de muitos
trabalhadores eram doenças em decorrência do exagerado esforço físico e das precárias
condições de higiene e alimentação. Essa era uma constante na existência destes desprovidos
de dignidade, onde as patéticas condições sanitárias eram causadoras de tudo.
Outra humilhação grande, além das citadas antes, era na hora que o emergente era
atendido no balcão para o seu magro pagamento. Aqueles que eram despachados na noite de
domingo tinham que levar comida às pressas para casa e não tinham como estarem presentes
na chamada do dia seguinte, pois sempre moravam longe e iam a pé. Outra: Ninguém
dava carona a cassaco, por que todo ele é fedorento. Ora, se até a água para beber é racionada,
veja lá pra tomar banho.
O nome “cassaco” já diz: É aquele bichinho da família dos marsupiais que não usa
nenhum perfume francês, vulgarmente conhecido como saruê ou gambá. Naquela região seu
nome é cassaco.
Imaginemos aquele calor abrasador de quarenta graus, aqueles corpos surrados, suados
e impregnados daquela poeira de terra argilosa, roupa suja e somados a dias sem tomar um
banho. Só poderiam mesmo ficar fedidos. Com isto, esses pobres reféns da pobreza eram
também reféns do descuido, do desprezo consigo mesmo, como também da boa vontade dos
superiores.
Caso olhassem para esse lado, perceberiam que ali estavam reunidas milhares de
pessoas humildes e não exaltadas, construindo as gigantescas obras para a posteridade e a
imortalidade. Depois de um tempo só olhando para o outro lado com olhos animados e
compreensíveis, vislumbrando tudo através dos vitrais coloridos das janelas do saber,
observamos pessoas insensíveis a esses horrores, pessoas arrogantes e exaltadas. São elas que
colhem os frutos das fruteiras que os humildes plantaram, pois são exatamente essas pessoas
ratuinas que fazem gigantescas catedrais de maldade e imoralidade.
Como só a escola do tempo pode medir os méritos das pessoas, nós veremos, portanto
como um ser humano é classificado para entrar nesse meio íntimo de espetáculo de horrores a
céu aberto. É muito simples, só precisa ser mais um zumbi refém da pobreza, e José
Natividade Teófilo e Maria Abigail dos Anjos estavam naquele meio, juntamente com outros
na mesma condição. Todos juntos, disputando um pacote de fubá, para fazer o quarenta do
almoço, que naquele momento não vinham até eles por meios mais cômodos. Entretanto,
sonhar com as estrelas é audácia que rejeita a pequenez, pois o cerne do caráter do individuo
está no que ele faz.
Por onde este homem de bem passa, finca marcos da sua lide, seu caminho não é
escuro, pois ele carrega na mão a tocha que o ilumina. Como marco de sua passagem, suas
pegadas estão sempre
visíveis, pois estas, os agentes de erosão não desfazem. este é o sinal de sua jornada, que
andou e não se deteve em nenhum obstáculo que parecia impedir sua viagem pela estrada da
vida.
Mesmo com muito custo, o homem de bem faz de tudo para transpôr esse trajeto. Ele
bem sabe que para abrir as portas que nos conduzem à prosperidade, só dispomos de uma
chave, essa chave tem um nome, esse nome é trabalho. Sabe também que só a moeda de troca
chamada educação é que paga pela prosperidade. Ele sabe também que esse nobre e belo

95
conhecimento se aprende na escola do sofrimento. Lá o pupilo está sujeito a um processo de
metamorfose. Ele não dorme, continuando o doloroso e igualmente perene aperfeiçoamento
da mutação constante, lapidando as arestas mais agudas, e dando lugar a um renovo, que vai
crescendo com o passar do tempo e para frutificar para sempre. Em suma, é preciso ousar dar
um grande salto naquele trampolim que nos conduz à vitória. Tempos difíceis no sertão.

Pedro e Patricio – Os Cegos da Caiçara

CAPÍTULO XV
Um dia a chuva volta

Dezembro de 1955. A seca ainda castigava. O tempo parecia não passar. Os flagelados
resistiam e o ano novo se aproximava, trazendo consigo a teimosa esperança que sempre
renovava. Então no meio daquele intenso calor, o carão cantou. Já se notavam os voos
noturnos das marrecas identificados pelos seus cantos; já se ouvia a rã rapando embaixo do
pote; os emergentes só falavam em suas roças de algodão mocó, que não tinham morrido
apesar da grande seca.
O desespero lentamente dava lugar à esperança, a expectativa era contagiosa. As
promessas a São José eram feitas e testemunhadas; e o carão cantava e cantava! A siricoia
também amiudava seu
canto noturno. Então, na noite de natal de 1955, às duas horas da madrugada a tão esperada
chuva chegou, anunciada e iluminada pelo brilho dos relâmpagos e acompanhada pela
percussão dos trovões, ficando assim por vários dias e com isso, o fluido vital descia
escovando os riachos! Estava anunciado o inverno de 1956.
O sapo - boi berrava, o cururu cantava e a seiva milagrosa corria pelas artérias entre a
vegetação da caatinga, que brotava com uma robustez nunca vista. Uma nova palpitação de
vida onde tudo que era seco estava ressuscitando. O Sol, que antes empalava seus raios por
entre os garranchos secos da caatinga, agora tinha dificuldade de perfurar a espessa ramagem
que brotava com vigor. As estradinha entre os matos, todas elas adornadas, floridas de
chananas. O carão tanto cantou que ficou rouco, pois ele testemunhava aquele acontecimento
que gerava sua grande alegria de existir.
Havia ali um triunfante prazer de sentir cheiro de terra molhada. O desespero tinha ido
embora e a esperança tomava seu lugar. O algodão mocó brotava, se vestindo de uma

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roupagem nova e esverdeada. As estradas ficaram cheias de pessoas que voltavam para suas
casas no intuito de cuidar das suas plantações.
Aproveitando a folga do fim de semana, já se aproximando o dia de Reis, Zé Pajaraca
foi para casa ver como iam as coisas, desta vez, Abigail tinha ficado em casa. Zé já estava
longe a mais de quarenta dias. Chegando lá, tratou de ir lá na sua rocinha ver se terrada estava
bem molhada, bebeu água na lagoinha do Pau de Leite, foi no
açudinho do jumento jipão, e este estava quase cheio; o poço da cachoeira estava "pela boca"
de água boa, cheio de piabas, que tinham subido pelo riacho que segue até o açude dos Cegos,
recém construído, sinal que a água tinha descido até esse grandes açude lá de baixo. Tinha
chovido bem.
Neste dia ele dormiu em casa, de onde escutou ao longe o carão cantando a noite toda
no alto do baldro do açude velho. Quando o dia amanheceu ele ouviu aquele ruído, que há
muito tempo era seu conhecido; abriu a porta e olhou em direção ao açude. O que viu, o
deixou alegre e triste ao mesmo tempo: A baixa das carnaubeiras onde ele tanto serviço ele já
tinha feito, por exemplo, plantas e colher arroz para Alcinda, estava coberta do liquido
milagroso, que outrora fez tanta falta. Ele não sabia se um dia poderia voltar a esses serviços,
pois o prejuízo foi grande.
O açude velho jorrava pelo seu sangradouro uma torrente de água barrenta que ia se
espalhando pela baixada atrás do baldro, aonde tudo ia se enfeitando de espuma branca, o
riacho do Lameirão cantava grosso, bancando o igarapé amazônico! E o carão não parava de
cantar...
Como não tinha mais nada em casa para comer, Pajaraca pediu que Abigail fosse à
casa de sua Vicênciapra pedir um pouco de café. Lá, Mané Roldão deu uma valiosa
informação, segundo ele, já era possivel arrumar algum dinheiro cuidando do algodão das
propriedades das adjacências, plantando milho, Feijão entre outre outros grãos,
pois Zé Roldão, Severino Canuto, e Zé Minéo, estavam novamente comprando algodão na
folha e estavam precisando de trabalhador. Nisso, Abigail foi correndo para casa e comunicou
aquela novidade ao marido, tendo visto ali uma saída pra deixar a emergência, ou seja, estaria
perto de casa, para cuidar dos filhos que ficaram, assim como fazer algum bico aqui ou acolá.
Não que ele se felicitasse tanto com isso, mas qualquer coisa era melhor do que trabalhar nas
frentes de emergência do governo.
Zé precisou passar por cima do orgulho e foi até o sítio onde sua filha, Firmina, estava
morando. Foi em busca de seu menino maior, Expedito, porém o convencimento não foi
difícil, pois na casa nova, ele não obedecia a irmã mais velha de jeito nenhum, ou seja, não
deu trabalho trazê - lo de volta.
Esta viagem, apesar de mais curta, foi outra odisséia, pois Zé não tinha dinheiro para
pagar do caminhão que fazia aquele percurso, além do fato de que ele ainda se encontrava
bastante debilitado. Por sorte, um amigo seu rogou a um caminhoneiro que o levasse junto
com seu menino até Santa Teresinha, onde os dois chegaram já à boca da noite.
Passaram na casa de Carrola, a irmã de Abigail, mas esta, ou estava dormindo em
profundo sono ou não estava em casa. Como Zé não queria incomodar mais ninguém na
cidade pedindo abrigo até o dia seguinte, resolveu seguir a légua restante da viagem à pé. O
menino chorava, pois não tinha comido nada durante o dia inteiro. Assim, a pequena vila de
Santa Teresinha foi atravessada de uma ponta à outra.
Quando o trio passava em frente a última bodega, já prestes a fechar, o pobre menino
parou e ficou olhando vidrado um cartaz com guloseimas que eram vendidas e com certeza

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existiam por trás daquele balcão. Ainda era preciso Zé Pajaraca puxá-lo pelo braço para poder
prosseguir.
Ao passarem na frente de uma das ultimas casinhas da saída da rua principal, depois
do cemitério, onde existe um pequeno aglomerado de casebres chamado Pedregal, um milagre
aconteceu. Nas horas difíceis Deus se fez presente, como sempre, para guiar seus filhos pelo
caminho certo, como de fato, da porta de um daqueles humildes casebres, um alguém
reconheceu aqueles dois passantes e falou:
- É Zé Pajaraca? Pra onde tu tá ino cum esse minino uma hora dessa, caba?
- Opa, dona Letiça, tamo ino pra casa mêrmo...
- Ave Maria, Zé. Tu tá só o coió, o que foi isso?
- É qu'eu cheguei da 'megênça, aí ainda tô mêi cansado.
- Tá se veno. Parece até que apagaro um fogo cum você.
- Pois é, dona Letiça, mas póbe num pode discansá não, né? Fui lá na Varza da Jurema
buscá meu minino pa trabaiá mais eu pelas roça de argudão.
- Tá prantano agudão, é?
- Eu não, é que o povo me chama pa sê ajudante.
- Tu e teu minino tão muito cansado, Zé. Cuma é que vocêis ia consigui chegá im casa
de noite assim, no iscuro, se nem Lua tem pra alumiá o camím?
- Eita, eu nem tinha pensado nisso, acridita?
- Pois pronto, a casa é de póbe, mais durma vocêis dois hoje aqui.
- Ô, dona Letiça, Dêur le pague!
Aquela velha senhora, dona daquela casinha acolheu os dois de braços abertos. Botou
água para ferver, colocou farinha numa cuia, despejou um pouco da água fervente dentro,
cortou uma cebola, jogou sal em cima, mexeu tudo, e serviu aquela farofa à visita. Aquele foi
o jantar mais delicioso desse mundo e que Pajaraca e seu filho tiveram a honra de saborear
durante a vida inteira. Ao que, no final daquela ceia, Zé Pajaraca agradeceu:
- Muito 'brigado meu Deus, e muito 'brigado dona Letiça, a sinhora deu tudo que tinha
pra eu e mêu minino, Dêus num vai dexá faltá farinha nunca na casa casa da sinhora!
- Amém, Zé. Amig' é pr'essas coisa mêrmo...
Aquele pequeno casebre de taipa não tinha porta, apenas um saco de estopa já surrado
esvoaçava na entrada, assumindo somente a função de cortina, não de porta. Assim mesmo,
Zé Pajaraca juntamente
com seu menino deitou - se no chão onde os dois descansaram bastante. Às quatro da
madrugada dona Leticia já levantou, e todos, ao ouví - la remexendo seu fogareiro de brasa,
também se levantaram prontamente, se preparando para prosseguir a caminhada de mais de
uma légua até o sítio Lameirão.
De frente ao casebre, ao se despedir, dona Letícia deu um abraço no menino e em Zé
Pajaraca.
- Mande lembrança pra 'Bigaí e pra sua filha que casô - se.
- Eu mando....
Assim, Zé Pajaraca chamou Expedito e seguiu sua viagem, que terminou duas horas
depois.
Ao chegar em casa, Zé Pajaraca já tinha arrumado serviço, iria começar a plantar sua
própria roça. Zé Alves recrutou alguns trabalhadores para limpar o mato ao redor da cacimba
que ele colhia água para em seguida plantar, tapar as covas e "pastorar" os passaros, pois
estes, junto com a chuva, chegavam em bandos, voltando do retiro que foram obrigados a
fazer devido à grande seca. Esta cacimba ficava próxima de um pé de juazeiro, onde mais

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adianta passava um pequeno riacho. O mandacaru e o xique-xique também já estavam
carregados, o maxixe já estava florido, sinal de que a fartura já estava à vista.
O juriti passava em vôos rasantes, voltando de seu longo retiro lá pelo sul do país.
Tudo por ali pululava de vida. O gavião da asa fina ficava o dia todo no galho do angico seco,
olhava para um canto, olhava para o outro, para ver se passava alguma gangarra desgarrada de
seu bando. Nos pés de jerimum os frutos cresciam, os ninhos dos bem-te-vi estavam cheios de
ovos, logo também estes iriam trazer novos seres à vida ao assim que eclodirem.

Casa Grande: Onde viveu Alcinda, Severina e Joaquim Nunes

CAPÍTULO XVI
Inverno de 1956 - Eis que ele arruma coragem para trabalhar

Por perto do juazeiro do rancho, não tinha nenhuma árvore de sombra, por isso a
passarada da redondeza vinha toda parar ali, no meio do roçadinho de Pajaraca e Abigail. Uns
para fazer seus ninhos, outros só pra descansar e cantar pois a orquestra não parava de
executar a incansável sinfonia.
A fina folhagem do algodão convidava as borboletas amarelas pra lhes fazer uma
visita, e estas vinham aos milhares, pois acharam muito agradável aquela roça. Fizeram logo a
postura de seus ovinhos nas folhas, pois sabiam que quando seus filhos nascessem, iriam ter
muita comida, mas Zé Pajaraca foi mais esperto. Vendeu dez arrobas de algodão na folha a Zé
Minéo, comprou dois pulverizadores e um saco de BHC. Como não podia pagar um
trabalhador para lhe ajudar no combate às lagartas, o jeito foi utilizar o filho Expedito e a
mulher que mal sustentavam meia carga do pulverizador nas costas, mas ao menos o menino
tinha a vantagem de andar muito rápido entre os algodoais.
A panela de Feijão de corda, temperada com maxixe e um pedaço de toucinho ficava
chichilando debaixo do pé de juá. O papa-lagarta cantava mais que o carão do açude Bota-
abaixo, mas Zé Pajaraca juntamente com seu meninos se decidiram em fazer abortar aquela
metamorfose, pois ele sabia que se a safra de algodão fosse

99
boa ele iria comprar seu primeiro par de alpercatas, para finalmente poder tentar aprender a
ler na escolinha de Dona Vicênciade Antonio Amancio, lá no logradouro dos Minéo.
Nisso, O gavião da asa fina sempre ali no galho do pé de angico seco, pois sabia que
as gangarras iriam passar por ali mais cedo ou mais tarde para comer do milho verde na roça
de Inácio Lucena. Esta roça ficava no baixio do pau-de-leite, pois sempre era Inácio o
primeiro a plantar por ali e conseqeentemente o primeiro a colher. Porém, as gangarras
sabendo disso, já tinham amolado o bico. As melancias que também foram plantadas na
rocinha de Zé Pajaraca eram comidas quase verdes, pois não dava tempo sequer de esperá -
las amadurecer. Com o jerimum acontecia o mesmo. Tudo isto, por causa dos passarinhos
ladrões.
A safra de juá tinha acabado, mas as batatas-de-colher já davam para se comer, mais
um pouco e chegou o Feijão verde, em seguida o milho. Mais adiante e o algodão já abotoava.
O perigo da lagarta tinha passado, e a safra estava segura.
Zé Pajaraca, fazendo suas contas na ponta dos dedos, descobriu, que não era mais um
refém da seca, mas sim do comprador de algodão na folha, pois este conhecia bem todas as
necessidades do pequeno agricultor e se aproveitava covardemente disto para estabelecer o
preço de compra de acordo com sua conveniência. A safra foi então colhida, vendida e Zé
Pajaraca que surpreendentemente se empenhou,
teve como lucro apenas o suor de seu próprio trabalho, pois agora devia muito, até o que nem
possuía.
Nisso, nem ele nem os meninos não ganharam as alpercatas como prometido, mas Zé
Pajaraca teve o cuidado de mandá-los para a escola de Vicênciade Antônio Amancio assim
mesmo, porém, calçados com currulepos* sandália artesanal feita com couro surrado feitos por ele
mesmo. O plantio de algodão - seridó crescia de ano para ano naquela região, pois ele é
resistente às longas secas. Com sua fibra longa, ele sempre estava entre as melhores do
mundo, pois seu caroço era muito rico em óleo comestível e sua torta era boa para
alimentação animal.
A procura por sua pluma era disputada pelas grandes industrias de beneficiamento, que
entre elas estavam a Cica, Sanbra, Anderson Clayton (Cleite), Araújo Rique, Macilon, Sidol,
Lustoza entre outras. Algumas dessas industrias usavam lenha como combustível para
movimentar suas máquinas, principalmente a Cica. Certo dia, Zé Pajaraca tomou uma
decisão:
Foi ao Banco do Brasil, pegou dinheiro emprestado às custas de Zé Alves como
avalista, para investir na cultura do algodão. Derrubou a catinga, vendeu a lenha à Cica e à
ferrovia. Arrancou todo o toco, transformou os mesmos em carvão e assim a terra estava
pronta, pra plantar o ouro branco.
Comprou dois cultivadores, dois bois mansos para tracioná-los, comprou também duas
vacas leiteiras, algumas ovelhas e algumas galinhas. Comprou roupas para os meninos, pois
as que eles usavam eram feitas do pano dos sacos que vinham com açúcar. Cada um ganhou
um chapéu de palha, um par de alpercatas, mas não jogaram fora os currulepos, agora eles
serviriam apenas para andar em casa.
Nesse ano de 1956, uma coisa muito boa aconteceu: Seu Miguel Natividade Teófilo,
um senhor muito trabalhador, irmão de Pajaraca, que morava lá na região de Campina Grande
havia chegado. Ele, asim como Zé Pajaraca, fazia pequenos serviços para os proprietários das
redondezas, e ficou muito feliz ao ver que seu irmão mais velho, Zé Pajaraca estava tomando
jeito, e que já tinha até seu pedacinho de chão, cedido por Zé Alves para fazer seu plantio.

100
Seu Miguel voltou em busca de trabalho e para ajudar a carregar água, pois essa era
encontrada muito longe do serviço no roçado. Além dele, vieram em busca de trabalho
Antônio de Mané Pretim com seus irmãos, os negros de Siliqueira também vieram com todos
os seus, o velho Zé Fernandes veio para fazer carvão junto com seus filhos, José e Valdomiro
e a velha Zefa sua mulher. (Essa só vivia fumando num cachimbo muito do fedorento).
Caetano Pedra também chegou para cortar lenha e com parte dela, fazia carvão e vendia
escondido de Zé Alves, mas Caetano nunca pagava seus trabalhadores em dia e estes logo o
deixavam na mão. Enfim, o Lameirão estava cheio de trabalhadores novamente, assim como o
ranchinho de Pajaraca.
Zé Lino e Mané Biriba carregavam toda a produção em seu velho caminhão Studbaker
e Cara Branca, que passavam mais tempo no prego do que rodando, mas quando voltavam da
rua, sempre traziam toucinho, tripa de boi cheia de sebo para o velho Zé Fernandes
juntamente com Caetano Pedra temperarem o Feijão.
Muitas vezes Pajaraca almoçava e jantava junto com eles, enquanto isso o algodão ia
sendo plantado e crescia a todo vapor. A chuva em 56 estava chegando pontualmente, e se
essa safra fosse boa o suficiente, Pajaraca iria encomendar a Nita, filha de Zé Alves, a costura
de um terno para ele participar das festas por aí, além de comprar em Patos um par de sapatos,
e assim poderia assistir às novenas na casa de Chiquinha de Mané Canuto, aquela onde o
papagaio velho ajudava a cantar o bendito das trezenas de Santo Antonio, e que por sinal, o
mês de maio já se aproximava; logo viria também o mês de São João, onde as festas na casa
de Zé Oliveira, na Santana, como também às de Pedro Pereira no Arapuá, eram de "lascar a
riúna"* metáfora para cano do bacamarte, pois ambas eram muito animadas, principalmente quando o
tocador era Juvenal, ou Antonio Vitor, já que ambos eram bons puxadores de fole.
Pela redondeza não faltava rodadas de carteado, onde eram rifados no baralho alguns
pratos de chouriço mal-cozido, quartos de bode, pedaços de carneiro, juntamente com umas
bandas de porco, e ali os jogadores iam cuspindo seus tostões na boca do diabo. Uma das
jogadoras mais assíduas do Lameirão era Alcinda.

João Nunes

101
CAPÍTULO XVII
1956 – A pareia de cego.

Agora sempre que tinha uns tostões no bolso, Pajaraca pegava carona no caminhão de
Zé Lino, para ir em Patos, e já levava seu menino mais velho, Expedito. Ficavam ali por
dentro do mercado central. Zé se escorava no balcão de uma bodega qualquer e começava a
puxar conversa com umas moças não muito bonitas que aceravam por ali, tomando cachaça
com tripa assada. Já o menino, com uns trocados no bolso, ficava passeando pela rua. Parava
aqui, comia um cocorote*, espécie de bolacha feita com côco comprava confeito ali, chapéu de couro*
outra espécie de bolacha mais adiante, ia na lanchonete Pastelandia beber Crush, Gasosa* suco artesanal
feito com frutas e água com gás. Ou talvez um bom e velho caldo de cana com pão doce. Quando o
dinheiro era pouco, tinha que contentar com um buquê de rolete de cana mesmo.
Para ganhar mais um trocadinho, Expedito ajudava a carregar e a descarregar o
caminhão com lenha, carvão ou algodão e assim custear a própria passagem de volta, pois Zé
Lino não gostava de dar carona a menino e fazia tudo para despistar Zé Pajaraca, tendo ele as
vezes que pegar um outro caminhão que agora fazia a linha, pertencente a seu Mané Biriba, só
que este saía bem mais tarde, só quando estava lotado de gente.
Às vezes, Expedito assistia um filme de Mazzaropi, ou de Oscarito, no Gigantão do
Prado ou no cine Eldorado, em Patos. Outras vezes, ia ao circo da Alegria quando este
ancorava por lá. No mais, Pajaraca quase não vivia mais em sua casa, e lá ficava só Abigail e
os meninos pequenos.
Nessas andanças, Zé Pajaraca seguia para as festas da redondeza, gostava muito de ir
até uma casa de recurso em um lugarejo chamado Beco da Corda junto com seu primo e
companheiro de birita* bebedeiras Inácio Ganga, que também fazia visitas demoradas às festas
da região.
Na época de colher algodão, sempre vinham pessoas para trabalhar no Lameirão e se
hospedavam pelas casinhas dos moradores e ficavam uma temporada inteira. Estes
trabalhadores também serviam como companheiros de festa de Pajaraca, entre eles, Seu
Miguel, que tinha carregado várias propriedades nos nas costas, na época de serviços.
No mais, Abigail era quem ficava com a pior parte, pois se ocupava em fazer a
comida, pegar água, lenha entre outros afazeres. Depois de feitas essas coisas, ela mandava
Expedito para o mato com Bosta para caçar tejo, pois o couro deste tinha um preço que
compensava passar o dia inteiro cavando um buraco no formigueiro para chegar até ele, e nos
fins de semana, este ia caçar junto com Zé Gostoso, pois esse sempre sabia onde se escondia
um peba, uma ticaca ou um camaleão, pois nem toda semana tinha as tripas ou toucinho pra
misturar com feijão de corda, mas no seu pensamento, não faltava objetivos, empacotados e
amarrados com os barbantes da esperança, e da perseverança em dias melhores. Esse era
Expedito!
Nesse tempo, lá pelas alturas do mês de Maria de 1956, Zé Alves tinha pegado no
rádio a noticia que Frei Damião iria novamente fazer uma novena no próximo domingo, e
logo tratou de espalhar a noticia:
- Ixi que coisa boa, cumpade! – Exclamava um.
- Glória Deus! – Agradava – se outra.
- Iss’é uma nutiça boa, cumpade! – Alegrava – se outro.
Em pouco tempo, todo o povo do sítio Lameirão já estava ansioso com a visita do
religioso, preparando tudo que fosse do agrado mesmo para no dia dar para o frei. De todos
eles, não haviam duas pessoas mais devotas que Alcinda e Severina, que passaram a semana

102
inteira se preparando e agora apenas terminavam de se ajeitar e aguardar o caminhão que as
transportaria até a vila de Santa Teresinha das Rosas. No entanto, alguns contratempos
acontecem:
- Ô Sivirina venha cá vê quem é aquêles dois presépe que vem ali cum aqueles saco na
cabeça...
- Ah, Arcinda, é os cegoda Caiçara.
- Co’méc tu sabe?
- Eu cunheço pelos saco que eles carrega, pelo cipó de daná im doido e pelo jumento
que vai taiano a passada dos dois e eles vai só sigurano na corda…
- Vala-me Deus, eles vão querê passá o dia por aqui, e talvêiz até durmí que nem das
ôtas vêiz, e essa noite nóis tem que ir pas santas missões lá im Santa Teresinha, e se a gente
num fô, Frei Damião num vai perduá us pecado de nóis...
- Eita, é mêrmo Arcinda! Nóis tem que ir vê frei Damião, mais bora pelo meno dá um
armoço a eles, e de tarde eles já tão discansado e vão simbora. Vamo pa cuzinha ajeitá
quarqué coisa, dá tempo, bora! Tranc’a porta pa vê s’eles passa direto!
- É, tá certo, mais de todo jeito, eu ja ia fechano a porta mêrmo, porque possa sê até
que eles passe direto é lá pa cas’de cumade Vicênça.
Enquanto isso, a pareia de cego vem se aproximando conforme o jumento – guia os
vem trazendo, ambos lamentando o quanto foi frustrante a janta que tiveram na noite anterior:
- Rapaiz, o tá desse véi Sandová passô mêrmo a perna im nóis, Córmo.
- Pois é, rapaiz... Pudêno nóis tê ido era na casa do véi Zé Aivo...
- Fiquemo lá na bêra do batente a noite todinha...
- E cum cachorro no pé d’uvido latino...
- Né isso? Tudo porque a gente tava isperano jantá um peba. E na verdade era só arrôiz
um ovo.
- Pió é ele perguntá: “E tem janta mais peba do que arrôiz cum ovo?”.
Mais Jesuis tá veno, Damião... Isso num se fáiz cum um cego não...
- ‘Magina intão logo cum dois?
A lenta caminhada dos dois se encerra quando a corda que os puxava alivia a tensão
indicando que o jumento parou. Ambos ouvem o barulho de aves de criação e entendem que
estão em alguma casa. Tocam as estacas que lhes serviam de guia na calçada da casa grande.
- Bora aboiá?
- Oxente, pra quê?
- Oxente, pra sabere que é nóis.
- Ah é. Bora.
- “Povo de dento dessa casa, que os anjo cubriu c’as asa abra a porta pra um cego,
que eu sô pobe e nunca nego, pare um pouco e ouça isso, lovado seja nossinhô Jesuis
Crixto”...
- Para sempe sêje lôvado! – Responde Alcinda, abrindo a janela bem na hora, um tanto
contrariada, mas disfarçando.
- Tá veno que tinha gente, Córmo?
- Rapaiz, veno eu num tô não, mais eu sei que tem gente agora...
- É Dona Arcinda?
- É eu sim, seu Damião.
- Né Damião não. Eu sô Córmo.
- Ah, seu Cormo, é que o sinhô é muito paricido cum seu irmão.
- É que eu e Cormo semo gêmio, Dona Arcinda.

103
- Tá se veno mêrmo, seu Cormo. E o sinhô, Seu Patríço, tá bonzim?
- Eu vô bem, Dona Arcinda... Pai mandô lembrança pa sinhora...
- E foi? Brigado, seu Patríço. Apôis Mande de vorta pra ele também. Tão ino pra onde
dessa vêiz?
- Nós vai pra Misericórdia* antigo nome da cidade de Itaporanga assistí uma missa grande
que vai tê numa síitcho chamado Chapéu Véi e de lá nóis vai pa Cajazêra de onde vamo
desceno de vórta até nos Cariri...
Os cegos da Caiçara eram conhecidos em todo o estado, pois eles faziam um roteiro
que se iniciava no Cariri e ia rumo ao oeste, até a divisa com o Ceará. De lá, voltavam ao
ponto de partida, sempre viajando a pé e passando pelas cidades, vilas, povoados e toda zona
rural que existisse no percurso.
Do Cariri, desciam rumo ao leste até chegar ao litoral e vice-versa, recebendo como
esmolas tudo o que as pessoas quisessem lhes dar, pois para cada coisa que ganhavam, tinham
para isso um saco para acondicioná-las separadas das demais, e para carregar toda essa carga,
eles contavam com uma aliada, que era sua própria força.
Ambos eram muito fortes e robustos. A altura deles beirava os dois metros, como
também o peso de cada um não era menos de 120 quilos. Eram famosos por serem gulosos
comedores e ninguém queria lhes oferecer um almoço, ou uma janta, já que além de comerem
muito, ainda reclamavam da quantidade e da qualidade das refeições gentilmente oferecidas.
Quando os sacos de víveres estavam cheios dos cereais que ganhavam, eles vendiam,
pois era mais fácil carregar o dinheiro e assim levá - lo para a casa de seus pais quando
regressavam. Estes que por sinal também eram cegos e velhos. Cada um carregava um chicote
feito de uma tira de couro cru com uns dois metros de comprimento, e esta era amarrada na
ponta de uma vara que também tinha outros dois metros, que além de trazer a correia
amarrada na ponta, também servia de bengala para ir tateando o chão.
Os meninos que se aproximavam deles para atentá - los, sentiam na pele o gosto
daquele instrumento. Os cachorros ficavam fitando de longe, pois aquele chicote varria um
raio de quase seis metros se contar com o braço do cego. Devido ao tamanho de seus pés, eles
não usavam sapatos e sim alpercatas do tipo currulepo* sandália de couro surrado, que eram feitas de
couro cru e supunha-se gastar quase o couro de um boi zebu inteiro para confeccionar um par.
Calculava-se também que um jabuti grande passaria folgado por dentro de uma “pracata”
daquela sem nem peitar nas correias.
De longe se ouvia o arrastar daqueles chinelões pelo chão espalhando seixo miúdo e
graúdo por toda a estrada. O cabelo deles era crespo e espetado para cima como se fosse
espinho de mandacaru. Só tomavam banho quando algum benfeitor se propunha a lhes fazer
esse imenso favor. Mesmo assim, os lavadores tinham que usar uma vassoura com o cabo
bem comprido, tipo aquele de espanar a casa, pois a inhaca e o cheiro de grude eram
insuportáveis. Estes entre outros motivos contribuíam para que os cachorros, quando
sentissem a presença daquela nobre dupla, já começassem a latir de longe.
Dona Alcinda os recebeu, porém sem que pegasse nas suas mãos, pois estas se
assemelhavam a patas de dinossauro e estavam visivelmente suadas e sujas com algum tipo de
gosma verde que delas escorria.
- Seu Patríço, mais seu Pêdo se sente aí na carçada que nóis vai fazê o armoço de
vocêis.
- Muito bem Dona Arcinda, por que tem muito tempo que nóis num mata a fome que
préxte. É tanto que nós nem gosta de pará na casa dêssir miseráve das redondeza. Agora aqui
não, aqui eu sei que nóis vai tirá a barriga da miséra!

104
- Ah, vai mêrmo, seu Patríço, e é daqui a pôco. Aguarde aí sentadim us dois que é já já
que sai o cumê. – Diz Severina.
Adentrando a casa grande, ela não esconde a aflição com a visita.
- Ainda bem que nóis matamo aquela póica, Arcinda!
- Você bote pra cunzinhá dento do tacho grande e no fugão grande.
- E que pedaço é pr'êu butá pa cunzinhá, Arcinda? - Ah, tu bota a cabeça junto cum us
ispinhaço, as urêa, o rabo, o mocotó, a gaiganta, os bofe, o fígo, os rim, o coração, e mais o
que tivé puraí e cabê. Bote tudo junto cum a língua e até os zói, que eu vô só pegá uma parte
pa fazê um sarapaté*, iguaría típica da região e do sangue eu faço um chôriço* chouriço; doce feito com
sangue de porco cum bem muita caxtanha de caju mixturada com gigilim e aminduím...
- Tá certo.
- Eu vô butá tudo na mesa junto cum o arrôiz, o fêZé e a farinha, Sivirina, que eu
quero vê esses dois cego matano piôi no côro do bucho, de tão chêi e duro que ele vai ficá, pa
num saire pur'aí dizeno que nóis num dêmo cumê pra eles.
- Mais Arcinda, vai demorá muinto...
- Oxente, vai porque, Sivirina?
- É que eu ainda vou limpá a língua e arrancá a dentaiada da quexáda.
- Nam, Sivirina, vai pa panela do jeito que tá aí, cum dente, cum ôi, com a tromba do
fucím, as venta e tudo… Eles num vão vê mermo... E tem mais, eu tô com vontade de butá até
a tripa do fiofó da póica, pa mixturá na panelada! Eles que coma a gororoba!
Lá fora, os cegos já se encontram impacientes:
- Ô Dona Arcinda, me dê ai um tição de fogo pa mode de nóis acendê os cachimbo da
gente aqui, por que tá me pariceno que esse seu armoçozim aí vai é demorá…
- Pegue, seu Patríço, acenda seu cachimbo...
- Patríço não, eu sou Pêdo.
- Tá bom, tá bom, tá certo! O armoço sai já, seu Pêdo.
- Ih, rapaiz, me parece que aqui tem carne de pôico cunzinhano, por que daqui mêrmo
eu já tô sintino o chêro!
- E tem mêrmo, seu Pêdo.
- Oxe, Pêdo não, eu sou Patríço. Ou é eu que sô Pêdo e num tô lembrado?
- Perdão eu se inganei. - Diz Alcinda, se desculpando, praticamente fugindo dos
devaneios dos dois irmãos.
Enquanto isso, na cozinha as coisas andavam a todo vapor.
- Vamo butá as coisa na mesa e chamá logo esses cego pra vim cumê e depois dispachá
os dois pa eles ire logo simbora lá pa casa do djabo! Mim traga aqui o ispinhaço da póica
junto com a cabeça na tigela grande, que eu trago as ôtas coisa. Assim pronto... Vá chamá eles
pra armunçá, vá...
- Seu Pêdo e Seu Patríço, me acumpanhe aqui, chegue armunçá.
- Ô rapaiz, palavras santas...
Alcinda toma todo cuidado do mundo ao auxiliá-los a entrar na casa para não
tropeçarem em nada nem se machucarem.
- Chegue, seu Pêdo, é pur aqui. Cuidado cum a cabeça na porta, se abaxe...
- Pêdo não, criatura, eu sou Patríço!
- Pronto, seu Patríço. Sente aqui, e seu Pêdo sente aculá, ói, onde Sivirina tá bateno
cum a culé pa sinalizá. O carderão tá aqui na frente de vocêis, ói. Pode pegá a carne cum a
mão mermo, que num tem nada não.

105
E na frente de cada um puseram duas generosas tigelas, uma com arroz e outra com
Feijão.
- Pode dêxá que agora é cum nóis, dona Sivirina. Ah iss'aqui é uma cabeça de pôico,
né, Dona Arcinda?
- É sim, seu Pêdo.
- Pêdo é ele, eu sou Patrício. nóis vai logo é cumê primêro essa cabeça de pôico, né
Pêdo?
- Eu sou Patriço, crixtão! Pêdo é tu.
- Ah, bom. Já ia sis'quecêno.
- Intão você pegue o quêxo de riba que eu pego no quêxo de baxo. Assim... vá puxano,
vá. Faça força.. mais força! Pronto, tá veno?
- Vêno o quê, crixtão? Eu naisci cego!
- Tô dizeno que cada um vá maxtigano seu pedaço.
- Ei rapáiz, as urêa, Patríço! Tu ficou cum duas, mais eu vô querê uma!
- Ah, já inguli, Pêdo. Só se matare ôta poica pa nóis na janta, aí você me alembre qu'eu
num como a ôta urêa não!
- Na janta? – Assusta – se Alcinda, em silêncio.
- Tu é muito morta - fome, Patriço, nam!
Nunca se viu por ali duas pessoas com tanta habilidade para conversar de boca cheia.
Incrível é que do começo ao fim o falatório dos cegos não tinha uma pausa nem para renovar
o ar dos pulmões.
Pouco tempo depois só restavam os ossos roídos. Para limpá - los das carnes de dentro
eles tinham boa ferramenta, já que cada um só tinha quatro dentes na frente, sendo dois em
cima e dois em baixo, ou seja, dois superiores e mais dois inferiores, e esses penetravam nas
cavidades dos ossos igual à língua do tamanduá no formigueiro, indo buscar o tutano graúdo
onde ele estivesse, e tudo entrava de goela a dentro sem ser nem mastigado.
Após o almoço, cada um foi para o alpendre para descansar a refeição, mas os
hóspedes não davam sossego às anfitriãs:
- Ô Dona Arcinda...
- Pronto, Seu Patríço.
- Não, eu sou Pêdo.
- Pôir não, seu Pêdo. Diga o que é.
- Aí tem cuscúiz?
- Rapaiz... Essa hora num tem não, seu Pêdo. A gente só fáiz de noite. Mais era pra
quê?
- Não, é que... Era Pra mixturá com aquele cardo que ficô na tigela...
- Mais ‘inda tem farinha branca, seu Pêdo. Num séive não?
- Nam, fica lavogêro* semelhante a lavagem, comida de porco. Um cardo desse só dá certo se fô
cum cuscúiz...
- Pois pode trazê a farinha, dona coisa. Dêxe Pêdo ficá aí cum o bucho vazíi roncano
de fome!
- Intão pronto, vô trazê é logo uma cuia de farinha.
- Sapeque um sazim na farinha pa num ficá insosso.
Nisso, Alcinda entra na casa até a cozinha totalmente transtornada, resmungando com
a incômoda e demorada visita.
- Mais Sivirina, eu fazeno de tudo pra esses dois e o danado me chama de dona coisa?
Ele pur'acaso tá pensano que eu sô paricêra dele é?

106
- E o que djabo é agora? – Pergunta Severina.
- É farinha! Ainda tem farinha pelo amor de padim Ciço?
- Tem, tem. Peraí qu'eu vô caçá uma vasía* vasilha pra butá.
Sentado num tamborete encostado na parede do salão de refeições, Patricio vai
tateando com a mão à procura da janela aberta que está ao seu lado e dá acesso visual até a
cozinha. Quando a encontra, põe aquela cabeçorra diante dela e berra:
- Ô, Dona Arcinda! Quando a sinhora vinhé de vorta apruveite e já venha trazeno uma
rapadura pra gente pudê bebê água! ou intão um pratão desse chôriço que a senhora disse que
fez!
- Mais é pá uma incumenda. Só dá pa sê um píres pra cada um.
- Tem poblema não, depois a sinhora faiz mais pa sua incumenda. Pode trazê a
rapadura e o chôriço que a gente come. Tem poblema não...
- Ai meu pai do céu, uma hora dessa o cão num carrega êssis dôis num ridimúim pra
bem longe daqui! - Esbraveja Alcinda.
- Tá certo. Ói, coma logo o chôriço e depois que terminare, vão tatiano aí a parede até
o alpende, que nóis vai tirá as coisa da mesa.
- Sim, mais... E o café?
- Café? - pergunta Alcinda, cada vez mais indignada.
- Sim, cumade, um cafézim pa nóis isquentá as tripa véa, né?
- Tá, vá lá qu’eu levo lá pra vocêis, vão saino, vão...
- Bora Pêdo, se deitá lá no alpende. Pra que lado fica a porta, Dona Arcinda?
- É puraí mêrmo, de onde tá vino o vento, seu Pêdo...
- Patriço não, eu sou Pê... ah, a senhora acertô dessa vêiz. Eu sou Pêdo mêrmo.
Também, vocês fica tud'errano o nome de nóis...
- Seja lá como fô, seu Pêdo, a porta tá bem ali na sua frente, ói, é de onde tá vino o
vento.
- Achei... Chega pra cá Pêdo.
No entanto:
- Caim! Caim! Caim! Caim! Caim! Caim! – (Ganido de cachorro).
- Oxi, tu pisô num cachorro, foi, Patríço?
- Foi, rapaiz! Ai, ele abucanhô meu pé!
- Ô, acode aqui, Dona Arcinda! Tem um guênzo miserávi aqui que tá mordeno Patriço
e tá quereno mordê eu também!
- Sai pra fora, Bradamante! vai se deitá lá no alpende, vai! Venha os dois pur'aqui,
chêgue! Cuidado aí que a carçada é arta! Vai timbora pra lá, Bradamante, vai! Deixe de
latidêro bêxta aqui pert'imim! Chegue, ói, vão ficano por aí que eu vô buscá a rapadura e uma
lata d'água cum sabão pa limpá o canto da murdida.
Pouco se importando com a mordida e sim com a comida, Pedro completa a
encomenda:
- Lembe de trazê água de se bebê também e a farinha, por que eu sei que rapadura só
prexta cum farinha.
- Tá certo, mais me dêxe pelo meno ir lá na cunzinha pa buscá, se assente por aí logo
pel'amor de noss'sinhô!
Alcinda já está de perna dolorida de tanto entra-e-sai da cozinha e de tanto subir e
descer batente para agradar visita. Quando chega na porta da cozinha, esbraveja:
- Ô Sivirina vá levá tu a rapadura e essa butija* garrafão grande com água pra aqueles
dois amardiçuado que eu num aguento mair não, porque sinão eu vô butá o cachorro neles

107
agora mêrmo! Djabo, Já tô de viría* virilha assada de tanto tá de lá pra cá cum esse labacé
dent'icasa!
Nisso, lá fora, novos ganidos de terror do cachorro são ouvidos:
- Caim, caim, caim, caim, caim!!!
- Eita, rapaiz! Vort'aqui correno, Dona Arcinda, chega!
- Pronto, cheguei! Tô aqui, seu Pêdo, o que foi agora?
- Ora o que foi, esse seu comangu que me mordeu todim, ói!
- Oxe, o cachorro le mordeu de novo? Como foi isso, Seu Pêdo?
- Eu tava tatiano o alpende aqui atráis de um canto fríi pa reposá, aí eu se sentei bem
im cima dele!
- E cadê seu Patríço?
- Num sei não... Ô Patriço, cadê tu?
- Tô aqui imbaxo do batente, ói minha mão aqui ói... – Acenando.
- Tô é todo machucado aqui da queda!
- Meu cachorro le mordeu também?
- Não, quando ele tava mordeno Pêdo de novo, eu tive um medo aí pinotei de ré e caí
da carçada. Mais num quebrou nada i'mim não, só esse tamburete véi...
- É o quê, homi? Quebrô meu tamburete? Eu nem paguei ainda pro vendedô, rapaiz! Ô
meu pai do céu... - Lamenta Alcinda, com a voz já embargada com tanto prejuízo num dia só.
Na intenção de ajudar a resolver os contratempos lá fora, Severina abandona seus
intermináveis afazeres na cozinha e se junta ao grupo para auxiliar no que está ao seu alcance.
- Arcinda, peraí um poquim que eu vô logo amarraá esse cachorro é na corrente, se não
ele vai ingulí vocêis dois intêro. Ainda bem que pelo jeito essa tua bundona abafô a queda,
Seu Patríço.
- Eita, foi mêrmo, Dona Sivirina.
- Ajud'eu aqui a levantá ele, Arcinda.
- Puraqui, Seu Patríço, pise no batente e suba, bora.
- Ai meu ispinhaço... Cadê o cachorro véi nojento?
- Tá amarrado!
- Tá perto daqui?
- Tá não, amarrei lá im Juazêro de pade Ciço, tá bom? Fique aqui sentado e quéto cum
a graça de Deus e de Nossa Sinhora!
Mais uma vez Alcinda e Severina adentram a casa para resmungar longe das ouças dos
cegos:
- Tu viu mêrmo, aquele num sei o quê chamano o cachorro daqui de casa de guenzo na
minha frente, Sivirina?
- E num vi não, pu'certo? Chamô de comangu também.
- Deixe tá... Vai tê disconto depois...
Passadas finalmente a primeira hora após a refeição, finalmente alguma calmaria
naquela casa. Alcinda e Severina retomam seus preparativos para a missa de Frei Damião.
Enquanto isso, os cegos proseiam lá fora:
- Tá dueno muito, Pêdo?
- Tá não, já passô. E tu?
- Eu tô todo é arranhado nus cutuvêlo...
Passadas duas horas da refeição, a prestativa Severina reaparece com mais uma oferta
por conta da casa:

108
- Tome, ói o qu'eu trôuxe. Beba cada um de vocês um copo cum água de côco bem
fríinha.
- Sim, mais... Rapadura, que é bom, nem vê, né?
- Tráiz aí Arcinda… - Incomodada.
- Sim, minha fía, mais sirva pa nóis a água de côco, né? – Diz Pedro.
- Tá aqui na bandeja, pegue...
Mesmo sem nem aguentar mais olhar para a cara dos visitantes, Alcinda chega com a
sobremesa.
- Tá aqui a bendita rapadura, ói. Já tá toda quebrada dento da cuia mixturada cum
farinha pa ficá mais fáce de butá pra dento!
- Ah, rapaiz... Aí tá certo! E o cafezim vem que hora?
- Já já. Vá cuá o café lá, vá, Sivirina. A água já deve de tá ferveno.
- E o cachorro? Tá bem amarrado mêrmo?
- Pode ficá sem medo, sussegado, que tá, seu Pêdo.
- Pêdo não, eu sou Patríço, oxi! - Rebate com um tremendo mau humor.
Mais uma vez as duas adentram a casa para providenciar os últimos pedidos e
resmungar entre si:
- Minina, tem uma coisa, Arcinda. Tu tava falano que ia butá o cachorro neles e nem
fechô a boca, hein?
- Pois é, e agora eu vô ali dá um grito pra Pajaraca vim aqui, que eu quero mandá ele
levá e sortá êssis dois satanáis lá na báxa da égua! Homi, tu sabe que ais santas missões
cumeça sete hora da noite e daqui pra lá é dúas légua? Esses cego tá tumano o tempo da
gente!
- Pajaraca! Ô Pajaraca!!!!
- ...
- O que é, cumade Arcinda? Lá do roçado eu uvi a sinhora gritá.
- Venha cá.
- Já vô, 'xêu tirá a bota e carçá o chinelo!
- Toma, Sivirina! Leve logo o café pra'queles fí di rapariga!
- Arra, que você ainda derruba essa casa chamano êsses nome fêi, Arcinda! Parece que
tu foi criada cumêno carne de cobra!
- E us djabo desses cegos fôro criado cumeno carne de djabo, ou de satanáis, eu acho!
Pia mêrmo o casal de cego deitado, já armunçaro, cumêro minha rapadura, bebêro duas
ancureta chêa d'água, tumaro água de côco, tumaro café, agora é só durmí e roncá! Homi, eu
vou é dá um chêro no póbe do meu cachorro que levô foi mêi mundo de pisada hoje!
E Alcinda finalmente consegue sentar um minuto à mesa para tomar uma xícara de
café, tentando se acalmar.
- Iss’é uma gota serena mêrmo! Logo hoje que é a noite da missão cum Frei Damião,
rapaiz... – Lamenta Alcinda.
- Arcinda, os fíi de seu Badu Noguêra já deve tá tudim pronto, e nóis aqui, ainda
fazeno o ólho de côco pra passá no cabelo.
- Apois eu vô passá é cuspe!
- Dêxa de doidiça, Arcinda.
E enquanto conversam, Pajaraca entra pela porta dos fundos.
- Pronto, cumad’ Arcinda, cheguei. Me diga o que é que a sinhora qué cum eu?
- Vai entrano dent’ de minha casa de chapéu, é moço?
- Eita, discurpa, dona Arcinda, é o cuxtume.

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- Tem nada não... Pindur’aí no torno... – Diz Severina.
E Alcinda:
- Vamo, ói, ajude nóis aqui! Os cego da Caiçara tão aí. Assim que eles acordare,
Pajaraca, é pra você rebocá essa parêa de cego do djabo até lá na entrada da camím que vai
pas cacimba de ‘Berto Leite, e quando chegá lá na entrada, você aprume eles pra lá, e diga a
eles que o inferno é pra'quelas banda!
- Ixi, Maria, cumade...
- É isso mêrmo, fique por lá.
Quando o Sol vai avermelhando o poente, eis que os cegos começam a se remexer e se
contorcer, indicando que estavam prestes a acordar. Pajaraca percebe e já fica a postos para
cumprir o mandado da patroa. Entretanto, Patricio acorda rogando mais uma vez ajuda de
Alcinda.
- Ô dona Arcinda, dona Arciiiinda!!!
- O que foi, seu Pêdo?
- Mande esse caba que eu uví chegá aí me levá ali no mato, que eu e Pêdo tamo se
acabano cum uma dô de barriga danada, tá dano uma agunia im nóis!
- Eita, eu bem que le disse Arcinda, que tu não désse aquela cabeça da porca pra êsses
cego cumê, rapaiz. Tá veno aí o resurtado?
- Funfu! Vixi, eles já se obraro na rôpa, a catinga já chegô aqui!
- Vigi que catinga, Jesuis! Se pegá nos zói cega!
- Funfu...
- Pajaraca, vá puxá êssis djabo até lá na moita de mufumbo da bêra da ixtrada que vai
pros Pôrco.
- Tá certo, cumade.
- Sórte eles lá e vorte aqui pra você levá um balái de sabugo pra eles ire limpano o
fiofó pelo camím, aí dá mêrmo certo purquê eu tô aguardano Aifredo Putruco passá cum o
gado de Zé Aivo pra bebê, ai eu mando ele levá um desses saco cum as coisa deles e dexá im
cima da cêica do cofobó* ponta de tôco que serve para pendurar uma caneca da cacimba dos bode, aí
inquanto o gado bebe, ele vorta e pega o ôto pa dêxá no mêrmo canto.
- Tá certo, cumade – Repete Pajaraca, tentando sair.
- Quando o gado vortá da bibida d'água, você vá puxano seu Pêdo pela vara dele e seu Pêdo
vai puxano seu Patríço cum a vara dele,
aí quando você passá na cacimba dos bode, moxtre a eles onde que tão os saco deles. Vá
ligêro, sinão fica tarde, e eles anda muito divagázim.
- Se a sinhora dexá eu ir…
- Vá homi!
- E dus dois, quem é seu Pêdo, cumad’ Arcinda?
- Ah Pajaraca, é o mais ruim!
- E seu Patríce, é quá?
- É o pió dos dois!
- Vigi nossa sinhora, cumad’ Arcinda! Aí a sinhora chama eu pa discascá esse abacaxi,
é?
- Vá, criatura!
- Ô Arcinda, o ólho de côco ninguém ficô paxtorâno aí ele queimô. Chega o fumacêro
cubriu. E agora, tu vai passá o quê no cabelo?

110
- Nada, nada, nada, Sivirina! Vô cum ele arrupiado assim paricêno uma doida! Mim
deu uma vontade tão grande aqui de pegá um cipó de jucá e arrancá o côro daqueles dois cego
na lapada, sabia?
- Nam, eu vô logo é lá na casa de V’cênça, pegá mêa xícra de ólho imprextado que já
tá quase na hora de nóis ir se arrumá pras missão.
- Vala-me Deus, lái vem Pajaraca nas carrêra vortano. E agora?
- O que foi, Pajaraca?
- Foi o cego que cagô im cima da rôpa do ôto! Acode eu, cumade Sivirina, tá lá us dôis
nu na bêra da ixtrada!
- Issé um negócio bacana, rapaiz! Ói, vá puxano eles nu mêrmo até aonde Aifrêdo
dexô os saco das coisa deles im cima da cêica do cacimbão, aí lá eles que se vire pa lá.
- Mais mim ajude levano água e uma vassôra, né? Eles tão tudo melado lá.
- Tem nada não. Lá na cacimba dus bode você lava eles!
- Oxente, como?
- Você arranca uns pé de vassôrinha, insfrega neles e joga água com aquela cuia que tá
na ponta da morão*. Mourão. Estaca grossa de cerca. e pel'amor de Deus, me deixe eles no mínimo lá
na encruziada que vai pros Pôrco, sinão eles imbica pra cá de vorta.
Pajaraca vai, mas volta rapidamente:
- Cumade Arcinda... Ô cumade Arcinda!
- Ela foi na casa de Vicênça! Quem é que tá chamano? - Pergunta Severina, tentando
enxergar usando seus grossos bifocais.
- É eu, Pajaraca, aqui na janela, ói. Eu avixtei Alixandrina de Seu Badu, que vem mais
duas muié, desceno a ladêra e os cego tão nu lá dento da cuiva do corredô, e elas vão saí bem
im cima deles!
- Home, Pajaraca, você num me fale máis desses cego não. Faça do jeito que Arcinda
mandô, que dá certo. Se elas num quisere vê cego nu, intão que fêche us zói! E você, vá lá
logo, pra levá eles.
- Tá, já tô ino!
- Sei que durante a minha vida todinha eu nunca tive um dia como esse de hoje!. – Diz
Alcinda, chegando em casa portando um potinho nas mãos.
- Foi mêrmo Arcinda? - Pergunta Severina - Inda bem que Vicênça le imprextô o ólho.
- E ela vai também, é?.
- Cumade V’cença? Só seno. Vai nada!
- Num vai Por quê?
- Iss’é Purque Mané Rordão num qué ficá só im casa!
- Até nisso ele qué atrapaiá, por isso que eu num me casei, viu?
- Nem eu também!
- Mais você anda atráis de Artú de Seu Badu, qu'êu sei!
- Oxente, lái vem tu cum essa hixtória de novo...
- Pia, lái vem Alixandrina correno e chorano! Vá abrí a porta, que pelo jeito que ela
vem, deve tá se arranhano por dento dur mato.
- Abra aí, cumade, pelamordideus!
- Entra Alixandrina, chega. Me diga porque você vem correno desse jeito?
- Ave Maria, cumade… - Diz Alexandrina, trêmula.
- Tá toda se tremêno... Faiz uma garapinha pra ela aqui Arcinda.
- Ah Sivirina, aqueles cego da caiçara tava nu lá no mêi do corredô e foi o jeito eu
passá no mêi dos dois.

111
- Foi mêrmo, muié?
- Foi... – Diz ela em prantos.
- Tom’uma garapinha pra acarmá, tome.
- Gup, gup, gup...
- Ah Arcinda, graças a Deus daqui eu tô veno Pajaraca puxano aqueles dois djabo lá na
ladeira. Tumara que nunca mais vorte aqui.
- São nem bêxta de num vortá, cum tanta mordomia dessa?
- O nome diss’é garapa é cumade? Com’é que faiz?
- Ah, é só butá água cum açúca e tumá.
- É bom, viu? – Diz Alixandrina se lambuzando. - Mió que ponche de imbú...
Na estrada, Pajaraca pacientemente tenta remediar a constrangedora situação dos
cegos. Lavou os dois, tirou e deu roupas limpas de seus sacos para vestirem.
- Cuma é seu nome, esse minino?
- Meu nome é Jusé, seu Pêdo.
- Pêdo é aquêlali, ói.
- É por que o sinhô se parece muito com ele, seu Patríço.
- Tá bom, tá bom, máir me leve num lugar de mato mais fechado, que eu já tô pra obrá
na rôpa de novo.
- Aqui é discampado e o mato é muito ralo, viu, Seu Patríço? Num tem diferença
ninhuma não.
- Intão vai sê aqui mêrmo no mêi da ixtrada, e você fica olhano se vem gente. Se você
vê arguém chegano, você diga!
Pajaraca era apenas um capiau ingênuo no fim de contas. Era até esperto para umas
coisas, mas nem sempre era para utras. Acabou entendendo mal a ordem do cego. Nisso, ele
avista duas senhoras de véu na cabeça se aproximando no lombo de uma jumenta. Certamente
estão a caminho das Santas Missões de Frei Damião. Pajaraca corre de encontro a elas para
cumprir a ordem:
- Ei, ei, venha vê aqui um negóço aqui, chegue!
- É o quê, rapaiz?
- Venha vê, chegue! Eles que mandaro eu dizê!
Pajaraca puxa o cabresto da burra apressando o passo. Quando faz a última curva, as
carolas se deparam com aquela cena fecal:
- Ói ali, irmã, dois cego cagano de cóca!
- Minha nossa sinhora! Tu troxe nóis pra vê isso, foi, caba semvergôim?
- Oxe, foi eles que mandaro!
- Eles mandaro o que?
- O de lá disse que ia obrá e que se vinhesse arguém, eu fosse dizê. Foi o que eu fiz!
A senhora que ia pilotando a burrinha, pelo menos compreendeu o mal-entendido e
explicou melhor a Pajaraca o que o cego queria que ele fizesse. Em seguida tratou de tapar os
olhos para seguir em frente, ignorando ao máximo aquela cena.
Sem ter percebido a presença das madames, os irmãos cegos continuavam a conversar,
lamuriando pela dor no pé da barriga:
- Rapaiz... Vô dizê uma coisa, eu tô que num aguento mais, Patríço!
- Intão é bom obrá logo tudo aí, Pêdo. Isso tudo foi por causa daquela cabeça de pôico
quente que nóis cumêmo avexado.
- Foi mêrmo, rapaiz! Nunca mais eu como carne de cabeça...
- Eu também não...

112
Agora com a orientação correta das senhoras, Pajaraca vê um caminhão se
aproximando e avisa aos cegos:
- Avia, seu Pêdo mais seu Patríço, tô uvino a zuada de um caminhão ali. São* saiam daí
logo, bora!
- Ai meu Deus, tê que torá o tolête no mêi é ruim demais!
- Tráiz ligêro aqui o balái de sabugo, rapaiz. Ligêro!
- Oxe, os sabugo acabaro tudim e eu vô logo corrê e mandá pará o carro ali na cúiva,
sinão ele passa por cima de vocêis!
- E nóis vai se limpá cum o quê?
- Se limpa cum uma péda, uai! – Responde Pajaraca, olhando para trás.
Antes que Pajaraca andasse dez metros, o velho caminhão já apontava no cotovelo da
estrada, e os dois cegos ouviram
o barulho do motor e saíram se arrastando de quatro pé para fora do caminho. Tiveram que
dar uma pausa no serviço e vestir as calças às pressas com as bundas ainda por limpar.
Como a estrada era estreita, Pajaraca teve que puxar os sacos com os pertences deles
para dentro do mato para dar passagem ao caminhão, cujo chofér ficou muito aborrecido, pois
vinha acompanhado de sua esposa e de suas três filhas mocinhas, e todas elas contemplaram o
espetáculo dos dois cegos vestidos de Adão.
O caminhão foi embora mas a caganeira continuou, e parecia mesmo uma disputa,
pois não se podia calcular qual dos dois se obrava mais, e quando o monte já queria topar na
bunda, eles davam um pequeno passo para frente, pois estavam de cócoras e começavam tudo
de novo.
Erguida a última pirâmide de disenteria, a tarde já ia findando quando eles pediram
mais água, pois suas cabaças já tinham secado, e Pajaraca teve que voltar ao cacimbão dos
bodes para enchê-las. Ao retornar, encontrou os dois totalmente desfigurados e pálidos, pois o
Sol da tarde no sitio Lameirão dá para cozinhar até carne de galo velho.
Beberam aquela água misturada com mijo de bode e por incrível que pareça, a melhora
foi instantânea, atribuindo-se isso duas possibilidades: A primeira é que tenha sido a água, que
como na sua composição metade era mijo de cabra, tenha surtido algum efeito medicinal na
diarreia dos dois ou foi a casca dos marmeleiros
que eles comeram, como medicina dos índios antigos, pois ao redor deles estava tudo
descascado e roído. Já na opinião de Pajaraca, foi por que dentro do bucho deles não tinha
mais nada, pois tudo já tinha saído por baixo.
Vendo aquela paisagem fétida naquele ponto da estrada, Pajaraca inocentemente
conclui:
- Minino, esses cegos é pió que lagata pa obrá!
Os cegos permaneciam de cócoras, quase desacordados, pois ainda estavam fracos. Na
hora de limpá-los, Pajaraca teve que recorrer aos garranchos de malva branca, fazendo deles
pequenas vassouras para usá-las no lugar dos sabugos, pois como se viu logo atrás, estes já
tinham acabado. Quando Pajaraca passava a vassoura na bunda de um deles, o bicho deu um
pinote, pois a ponta dos garranchos espetou a birimba dele, que por sinal, de tão exagerada,
ficava dormindo no chão pendurada no meio das pernas, pois aquele dote ali só jumento que
tinha e mais ninguém.
Depois de limpos e vestidos, Pajaraca puxou os dois e aligeirou o passo, pois já era
quase noite, e ele também queria assistir às santas missões e ver frei Damião de Bozzano, pois
esse era muito milagreiro, dizia o povo.

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Seguiram em direção ao sul e logo mais toparam com a outra estrada que tinha o
sentido leste-oeste. Nesse cruzamento
Pajaraca os encaminhou no sentido oeste, que vai dar nas cacimbas de Humberto Leite. Os
cegos puseram as mãos na Cabeça de Pajaraca e disseram:
- Meu homem bom, Deus te dê boa furtuna. Até mais.

Seu Inácio Capim

CAPÍTULO XVIII
As Santas Missões de Frei Damião

Pajaraca volta para casa às pressas, só tem tempo pegar a mulher, os filhos, molhar o
cabelo e os pés e vestir a roupa de sair e correr para a casa de Alcinda e Severina, para servi -
las de companhia naquele longo percurso feito no caminhão de Mané Biriba. Chegaram em
cima da hora, mas no final correu tudo bem. Alcinda faria com que Frei Damião tomasse
conhecimento da assistência que elas junto com Pajaraca deram aos cegos, que eram muito
conhecidos e recomendados por Frei Damião. Este haveria de as abençoar e fazer muitos
elogios pelo grande ato caridoso que fizeram àquelas criaturas tão pobres e necessitadas, ou
seja, os cegos.
Chegando no vilarejo de Santa Teresinha, todos descem do caminhão. Alcinda e
Severina impecavelmente bem vestidas, Pajaraca desengonçado com um terno velho de Zé
Alves, Abigail com o vestido novo, branco com bolinhas vermelhas mas que não lhe caía nada
bem, os meninos aperreando pra comprar pipoca, quebra – queixo, rolete de cana e tudo mais
que viam pela frente, e assim iam caminhando em direção à igreja.
Lá, uma multidão se aglomerava em torno do palanque improvisado onde ele rezaria a
missa. Os caminhões e ônibus e carroças com peregrinos de todas as partes não paravam de
rodar, trazendo levas e mais levas de fiéis.
Todos queriam vê – lo, ouvi - lo, tocá – lo, guardar qualquer objeto que ele benzesse
como um item precioso, nem que fosse um fio da barba. Nem o próprio Frei Damião se
agradava muito disto, mas não tinha meios de abrir os olhos dos romeiros sobre sua real
missão, que era apenas evangelizar e dar a palavra de Deus a todo aquele povo sofrido, nunca
encarná – la, como a população pretendia que fosse.
À noite, pouco passava das dezenove horas quando o Jipe que trazia o Frei da cidade
de Patos jogava as luzes do farol acima do último alto da estrada, pegando a ladeira reta em

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direção ao vilarejo. Os mais jovens corriam ao encontro, os mais velhos, faziam como
podiam; logo a cidade já estava ladeada de romeiros acenando ao Frei.
De um lado e de outro na estrada, as pessoas se contorciam para vê – lo no Jipe,
acenando para a multidão que se estendia da entrada da cidade até o pátio da pequena igreja.
O Jipe faz a manobra e entra num pequeno beco ao lado da igreja. Os poucos ajudantes da
igreja improvisam um cordão de isolamento para que o frei pudesse ter acesso ao interior da
igreja.
Lá fora, a euforia tomava conta de todos.
- Eu sabia que cinquenta e seis ia sê um ano bom; até Frei Damião vêi aqui de novo!
Issé uma bênça! – Diz dona Regina, esposa de Zé Alves.
- Frei Damião, benza aqui esses gaím de ramo pra eu benzê o povo no seu nome!
– Grita mãe Rosa, pegadeira de meninos.
E assim, em meio a essa correria, Pajaraca e Abigail estavam muito desconfiados.
Tinham cometido um pecado grande meses antes, e queriam a todo custo se redimir:
- Ave, Zé, será que vai dá pa gente se confessá?
- Sei não, viu, muié...
- Tu já viu se butaro o confissonáro pra fora?
- ‘Té agora, nada, Bigaí...
- Arre Maria, Zé, eu num quero carregá esse pecado nus côro o réxto da minha vida
não.
- Eu num mandei matá cururu!
- Oxi, foi indéa sua. Seu Inaço quiria o cururu, era só dá e pronto, ele que fizesse o que
quisesse cum ele, a gente num tinha nada a ver.
- (...)
- Cururu é dez ano de azá, né, Bigaí?
- E se num fô mais, porque do jeito que tá tudo subino de preço... capaiz de sê bem
vinte ano hoje.
- Pois fique de ôi por aí, se você vê se formano fila, pode guardá o canto da gente!
- E a missa? – Pergunta Pajaraca.
- A missa eu rezo por nóis, eu quero é se confessá. Tá cum a gota serena não, derne do
dia que a gente matô o cururu, só dá errado as coisa da gente.
- E apois?
Nisso, um frade da comitiva de Frei Damião sobe o palanque, endireita o microfone e
anuncia:
- Irmãos e irmãs, que o Senhor esteja convosco...
- Ele está no meio de nós... – responde a multidão em uníssono, se espremendo cada
vez mais no pé do palanque.
- Irmãos, nosso Frei Damião se encontra com uma leve indisposição, mas assim que
ele se reestabelecer, ele vem para o púlpito celebrar a Divina Eucaristia na diocese de Patos...
A multidão começa a se agitar, um ar de preocupação toma conta da multidão.
- E agora, Zé? E se Frei Damião num fô confessá ninguém hoje? Tamo é lascado!
- Dêxa de boca de azá, muié, iscuta o pade falano lá...
Nisso, o padre, ou melhor, o frade, prossegue mansamente seu discurso:
- No mais, nobres cidadãos cabacenses... A palavra de Deus... Não escolhe pregador...
A única intenção da mesma... É chegar aos ouvidos... E tocar o coração de cada um de vós
que aqui está...
- Esse pade fala bunito, né não, muié?

115
- Psss!!! Cala a boca, dêxa eu iscuitá... – sussura Abigail.
- ... Dessa forma, caros irmãos... Como nosso tempo é curto... Iniciaremos a
celebração da missa sem a presença do nosso Frei...
Nisso, uma voz interrompe o frade:
- Oxente, e quem vai rezá a missa?
- Eu, oras... – Responde o frade, risonho.
- Ah, não, eu vim lá do síitcho Quixaba de péis só pra vê Frei Damião, e num quero
ôto no lugá dele não, de jeit’ ninhum! – Reclama um romeiro.
- Eu tomém num quero assixtí missa de ôto não, assim num tem graça!
E a confusão está instaurada. Os poucos ajudantes da igreja tentam como podem
contornar a situação, mas pouco podem fazer.
- Meus amigos, missa é tudo igual... – Diz o frade.
- É não, é não! – Grita a multidão.
- Vala minha nossa Sinhora, tô ven’a hora esse povo derrubá as porta da igreja, Pade
Zé Luiz! - diz Severino Romão, o sacristão.
- Eu vou lá no quarto onde frei Damião tá, pra vê como ele tá.
Frei Damião estava exausto, sua peregrinação já durava semanas, sem uma única noite
de descanso. A maior parte de suas peregrinações eram feitas a pé, e o roteiro, era estabelecido
com pouca antecedência. Isto era o que causava toda a correria. Por sorte, ao ter chegado na
diocese de Patos, a paróquia da Conceição cedeu o Jipe
do bispo para trazê – lo até Santa Teresinha, senão a estafa teria matado o religioso no meio
do percurso.
- Toc, toc, toc...
- Quem é? – Pergunta um Frei Fernando, capuchinho que acompanhava o leito de Frei
Damião.
- Sou eu, Padre Zé Luiz, pode abrir um instante?
- Pode entrar.
O padre entra e vê o frei cochilando.
- E então, Frei Fernando, como está Frei Damião?
- Bom, tudo indica ter sido a pressão dele que subiu, aí ele ficou tonto quando desceu
do Jipe.
- E agora? Esse povo aqui na frente, se não ver Frei Damião, vai derrubar a igreja!
- Bem, eu já dei o remédio de pressão dele, agora só resta aguardar ele se restabelecer.
- Responde Frei Fernando, sussurrando.
- Ai, meu pai do céu, e agora?
- Porquê você não tenta iniciar o rito de celebração? Frei Damião não tardará em
acordar. Tenha fé, homem.
- Já tô pronto... – Diz Frei Damião, meio sonolento.
- Glória, senhor! – Alegra – se o padre.
- Mas Frei, você precisa descansar. – Retruca Frei Fernando.
- Depois eu descanso. Vamos! – Diz Frei Damião.
- Então vá se arrumando aí, Frei, que eu vou lá no palanque dar uma satisfação a esse
povo. – diz o padre.
De fato, lá fora os ânimos estavam cada vez mais exaltados. Pessoas de todos os
lugares se fizeram ali presentes na intenção de assistir à missa celebrada por Frei Damião, que
na época incluía num pacote só:
• Celebração de casórios;

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• Primeira comunhão;
• Extrema unção;
• Batismos;
• Encomenda de defuntos;
• Confissões;
• Missa propriamente dita.
No caso da encomenda dos defuntos, as famílias quando tinham noticia da vinda de
Frei Damião. Naquela região, as pessoas chegavam a passar até 48 horas para enterrar o ente
querido. Quando ele chegava, lá ía a familia com o defunto no caixão, rede ou padiola para
perto do palanque aguardar que o missionário dissesse duas ou três palavras pelo falecido.
Este costume causava bastante chateação à comitiva de Frei Damião, diziam que não
era adequada nem certa aquela atitude. De fato, depois de dois dias sem enterrar, um cadáver
tende a não cheirar nada bem. Imagine isto em meio a uma multidão. Por essa razão, as Santas
Missões em Santa Teresinha passaram a ser celebradas durante a noite, para que inibisse essa
prática de trazer os defuntos para a igreja. Durante o dia as familias, logo após a encomenda
do corpo por Frei Damião, partiam logo para o cemitério. E agora, sendo o evento durante a
noite, o enterro só poderia ser feito no outro dia, pois coveiro não trabalha de noite e o
folclore popular desencorajava qualquer um de entrar de noite em cemitério.
Em todo caso, não faltava quem estivesse ali em busca dos milagres mais inusitados,
como por exemplo, pedir que o marido volte, pedir que o namorado de fulana acabe o
romance, pedir pra gestação da vaca ser tranquila, pedir por casamento, pedir que castigue
alguém, e por aí vai. Já pedidos por saúde, prosperidade, paz na familia, esses nem eram tão
numerosos.
Passados alguns instantes, o padre Zé Luiz sobe no Palanque:
- Amados irmãos e irmãs... boa noite.
- Boa noite! – Responde a multidão, inquieta.
- Meus queridos, espero que entendam que a jornada de Frei Damião é muito árdua.
Somente Deus para prover tanta disposição a um santo homem. Frei Damião, assim que
desceu do carro, sentiu – se mal...
- Ai meu Deus... Frei Damião morreu, qué vê? – Diz uma mulher ao pé do palanque,
interrompendo o padre.
Estava feito novo rebuliço:
- Ai meu Deus!!! – Grita um grupo de romeiros.
- Lascô! – Responde outro grupo.
- Ô meu Deus du céu, Frei Damião vêi pra cá só pa morrê!!! – Desespera – se mais
outro.
- E agora o que vai sê de nóis, meu pai eterno???
E a multidão cada vez mais ficava tensa, mas o padre Zé Luiz, que era calmo até onde
se podia ser, teve de usar a força dos pulmões:
- Silêncio!!!!!!!!!!!
- (...)
O silêncio foi instantâneo, parecia a madrugada de uma quarta feira naquele lugar.
- Meus caros irmãos, tenham calma. Se eu não tivesse sido interrompido, já teria dito
que Frei Damião já está se sentindo melhor e está se preparando para subir no palanque e
rezar a missa!
Aí não, o contentamento foi geral:
- ÊÊÊ!!! Glória Deus!!! Viva!!! – Grita a multidão.

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E após mais alguns instantes, Frei Damião sobe no palanque. Parecia bem disposto.
A multidão, o observa em cada gesto. Ninguém ousa dar um piu, para não perder
nenhum detalhe. Até que então, Frei Damião se dirige até o microfone:
- Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!
- Para sempre seja louvado! – Responde a multidão, se ajoelhando.
- Amados irmãos… Começa Frei Damião a falar, com sua voz ainda meio estrangeira -
Este que vos fala anda meio debilitado. O Frei Damião de vocês, né nada não, já tá é com 56
anos, não é mais um menino não... De vez em quando... Dá uma canseira, mas vem Jesus e
me dá força pra continuar. E quero dizer... A vocês... Uma coisa: Não há nada que melhor cure
meus males... do que estar aqui, diante desse povo, para falar da palavra de Deus…
Nisso, o raciocínio da pregação do Frei é interrompido com um inusitado fato de vir
um homem se aproximando do palanque em cima de um cavalo. Estava visivelmente ébrio.
Seu nome era Carijó Baracuhy. Conhecida figura folclórica das redondezas no sentido de se
meter em confusão. Sem se importar se o cavalo estava pisando no pé de alguém, Carijó
chega ao pé do palanque e embora cambaleante, sai do cavalo e sobe com um pulo só no
palanque. Todos ali ficaram perplexos. Carijó vai até os religiosos e grita:
- Eu quero batizar esse cavalo!
- Frei Damião, embora contrariado com a interrupção de seu ofício, responde com a
mansidão que lhe é característica:
- Caro filho, eu não batizo bicho não.
- Mais Frei Damião, eu quero muito bem a esse cavalo! O nome dele vai sê Ciço
Rumão!
- Meu caro. Eu preciso que o senhor desça que eu quero continuá minha fala…
Foi só Frei Damião terminar de falar e uns fortões subiram como um gato no palanque
e puxaram pra baixo o importuno ébrio. Ao se distanciar, esqueceu até do cavalo, ao passo
que ia esbravejando palavrões impronunciáveis.
- Ao retomar o microfone, Frei Damião encerra o assunto dizendo:
- Eu não conheço este homem, muito menos de onde ele vem. Mas se ele não se arrepender,
caros irmãos, o jardim dele, tão bonito, nunca mais haverá de florescer!
Esta fala, com esses mesmos termos, repercutiu bastante na época. Cada um que
interpretasse de um jeito, mas o fato era que: Carijó era filho do doutor Baracuhy, dono da
rica e florida fazenda Jardim. Por coincidência ou não, depois desse episódio o sítio jardim
decaiu bastante em sua beleza e riqueza, obrigando inclusive seus donos a irem embora dali
para nunca mais voltar.
Quanto ao resto, Frei Damião, com auxílio de Frei Fernando celebra a missa, que dura
cerca de 50 minutos. Em seguida, parte em direção ao interior da igreja para fazer o crisma,
celebrar batizados (de pessoas) e dar a hóstia da primeira comunhão aos adolescentes, todos
vestidos de branco, com vela na mão, e que esperaram por horas por aquele momento. Quase
três horas depois, vem a parte menos cansativa: As confissões.
Alguém traz uma poltrona bem confortável e leva para um canto da igreja. O sacristão
improvisa uma cortina ao redor da poltrona e Frei Damião se dirige até lá. O único conforto
consistia em um ventilador e uma caneca com água ao lado da poltrona.
Depois de tudo preparado, Severino, o sacristão vai até o palanque e avisa, sem
microfone:
- Quem fô se confessá, form’ a fila aqui. Lá dento tem que sê ligêro o negóço!
Rapidamente, as pessoas se espremem na porta da igreja. Pajaraca e Abigail,
aguardavam ansiosamente a hora da confissão, mas apostaram na porta errada, e tiveram que

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dar a volta em torno do palanque, o que fez com que ficassem lá atrás na fila, com risco de
nem conseguirem fazer a confissão.
O tempo estabelecido pelo padre Zé Luiz para cada confissão era de um minuto, mas
todos ultrapassavam esse tempo, o que resultava numa longa espera para os demais que
permaneciam na fila.
Depois de quase duas horas de confissão, menos de 50 pessoas tinham se confessado,
sendo que lá fora pelo menos 150 pessoas ainda aguardavam sua vez.
Temendo que Frei Damião voltasse a se sentir mal outra vez, padre Zé Luiz pediu que
o dono do sistema de som ligasse o microfone só mais uma vez para que ele pudesse dar um
recado aos que ainda estavam na fila. Quando tudo está pronto, ele sobe no palanque e diz:
- Meus irmãos, Frei Damião está muito cansado. Muito mesmo! Sei que todos queriam
se confessar com ele, mas ele falou lá dentro comigo e disse que só vai atender só as dez
pessoas que estiverem mais próximas à porta... – (Mentindo) - ... O restante, pode seguir para
a outra porta em direção ao confessionário de madeira. Vocês são de casa e se confessam
comigo mesmo.
Nisso, logo a grande fila se desfaz, pois ninguém queria confessar os pecados ao
padre, já que fazia isso desde sempre. Muitos começaram a tomar o rumo de casa.
Zé Pajaraca e Abigail, como eram o 11° e 12° da fila respectivamente, estavam fora da
lista dos que iriam ser ouvidos por Frei Damião, mas por ironia do destino, na frente deles
estava Dona Esmeralda e seu esposo, Pedro Canuto. Ela já não aguentando mais tanto tempo
em pé, começou a passar mal, obrigando seu esposo a sair da fila juntamente com ela. Nisso,
Zé Pajaraca e Abigail ganham duas posições, entrando no rol daquele que serão atendidos.
Mais alguns instantes, é a vez de Pajaraca entrar na igreja:
- Cadê Frei Damião? – Pergunta ao sacristão.
- Tá ali atráis da curtina – Responde o sacristão, apontando o local. – Num faça zuada
não…
Ao se aproximar do ponto onde está Frei Damião, bastante mal iluminado, por sinal,
Pajaraca percebe que o Frei está cochilando com a mão no rosto:
- Meu padim?
- ZzzzZzzz...
- Meu padim Frei Damião?
- Oi oi oi! – acorda ele, assustado.
- Aqui é Zé da Natividad’ Teófe...
- Hum, Zé Pajaraca, não é?
- Oxe, e meu padim se alembra, é?
- Lembro, e uma pessoa que... Se confessou antes, falou bem de você – Referia – se a
Alcinda, que estava na frente de Pedro Canuto e sua esposa, e que conseguiu se confessar.
- Eita, coisa boa, meu padim...
- Pois bem, José. Reze um rosário em penitencia, de joelhos e está perdoado.
- Tá certo, meu padim... Sua bênça...
- Deus abençôe, meu filho... Vá em paz.
- Eita que Deus foi tão bom que já dexô Frei Damião sabeno dur meus pecado sem
pricisá nem eu falá...
Saindo na porta, ele fala contente:
- Vai, muié, é tua vêiz!
- E aí, como que foi lá?
- Oxi, foi bom. Meus pecado tão perduado tudo!

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- Eita que intão eu já vô! Veja se você acha ur minino pur’aí, que tão solto na
bagacêra!
Assim, Abigail, toda estabanada, tem permissão para adentrar a igrejinha e ir de
encontro até Frei Damião:
- Sua bença, meu padim Frei Damião?
- Deus abençôe, minha filha. Diga seu nome.
- Meu nome é ABigaí, meu padim. Eu sô casada cum esse homi que acabô de se
confessá.
- José Natividade?
- Esse mêrmo. O sinhô perduô os pecado dele tudim, e ói que era muito. Perdôi ur meu
tomém...
- Parece um tanto preocupada com isso, minha filha. O que te aflige?
- Intindi não, meu padim... É o quê?
- Tá aperriada cum o quê, minha fía? – Pergunta Frei Damião, com linguajar paroara.
- Ah, meu Frei Damião. Eu comiti um pecado e do grande!
- Apois fale, minha fía...
- Eu e meu marido matemo um cururu, meu padim...
- Isso é muito grave, minha fía... Mái foi sem querê?
- Rapaiz... Foi e num foi...
- Apois fale logo, minha fía.
- Nóis matemo ele assado…
- Mas ao menos foi para matar a fome?
- Foi pa pegá um papa - figo, meu padim. Mais aí... fiquemo sabeno que papa - figo
num injixte!
Frei Damião vê que aquela pobre mulher é totalmente desprovida de qualquer
conhecimento, sendo assim, não a condena como pecadora:
- Já que é esposa do homem que aqui veio, vou lhe aplicar somente a mesma
penitência. Reze ajoelhada com ele um rosário. Vá mulher, e não peque mais.
Aquelas palavras tocaram fundo o coração de Abigail, que dali saiu emocionada.
Lá fora, a grande multidão já havia se dispersado, restando apenas alguns poucos
vendedores desmontando suas barracas, pessoas procurando algum objeto eventualmente
perdidos, alguns bêbados, cachorros comendo restos e, Pajaraca e seus meninos, sentados
num banquinho de concreto do meio – fio.
- Ufa, pronto! Bó simbó, bó? – Diz Abigail.
- E ai, muié. Cuma que foi lá?
- Ele perduô os pecado d’eu tomém, mais ele num ficô sabeno dur meus pecado por
Jesuis que nem tu não!
- Ah, e não?
- Nam, eu tive que falá.
- Eita, e aí? A pinitença deve tê sido braba!
- Foi não, foi a mêrma da sua.
- Só rezá o rusáro de juêi?* Joelho
- É...
- Oxi, é agora!
- Nam, nem invente. Amenhã, im casa, de noite, nóis reza. Eu tô cansada, Zé!
- Já reparô ond’é que tá dona Arcinda mai’ dona Sivirina? – Pergunta Abigail.

120
- Rapaiz, se já num tivére ido simbora, tão lá na frente de seu Odilom isperano
caminhão.
- Intão bora simbora pra lá purquê já deve sê mai’ de mêa noite!
- Bora!
E assim, eles seguem até a frente da casa de seu Odilon, muito conhecido por ali
conhecido devido aos versos de suas poesias. Lá acabam encontrando Alcinda e Severina,
responsáveis pelo pagamento das passagens deles, e mais alguns vizinhos do sítio.
- Vixi, Pajaraca, só faltava vocêis! – Exclama Alcinda.
- A gente tava terminano de se confessá. Quiria até le ‘gradicê, cumade Arcinda. – Diz
Pajaraca.
- Purquê, Zé?
- Pur a sinhora tê se lembrado de mim pra Frei Damião.
- Ah, sim... Pois é, Zé. Você é boa pessoa.
- Brigado mêrmo, cumade. Se tivé arguma coisa qu’eu possa fazê pela sinhora…
- Dêxe de bebê!
- Intão, pur isso qu’eu perguntei se tinha arguma coisa qu’eu pudesse fazê...
- Homi, Pajaraca! – Zanga – se Alcinda.
Nisso, Expedito, junto com os outros irmãos se aproxima:
- Ei, ei, o caminhão de seu Mané Birimba tá parado lá na ingreja!
- Minino, bata nessa boca, chamano nome fêi! É Mané Biriba! – Corrige Severina, que
era muito religiosa.
- Oxi, pois eu semp’ pensei que era Mané Birimba! – Diz Abigail.
- Vai viu, do jeito que aquilo num é injuado, tu chamá ele assim, capaiz dele fiá virado
numa biriba. mêrmo e de dexá vocês nem ir.
Vale ressaltar que biriba é um dos tipos de fogos artifício, de pequeno impacto, muito
vendido nos festejos juninos. Também conhecido como traque. No sertão, quem leva esse
apelido, geralmente é bem temperamental.
Depois do aviso do menino, todos correm para a frente da igreja, onde Mané Biriba já
esperava o restante dos viajantes. E como só dependia da chegada deles para partir, já estava
bem impaciente.
- Djabo mêrmo, esse povo a invéis de vim simbora depois da missa, não! Vai batê
perna pur aí! – Resmunga ele.
- Tem calma, Mané! Eles tão vin’ali! – Diz Marluce, esposa dele.
E assim eles sobem às pressas a ladeira que dá aceso à igreja. O caminhão já estava de
motor ligado.
- Bora, meu povo! – Berra ele.
- Oxi, pere! – Rebate Alcinda.
- Bora, minha fia, que num tem só vocêis pa dexá im casa não!
- Mais agora lascô o cu do guarda mermo! Você quem dexô nóis isperano lá im seu
Odilom! Num disse que ia pegá nóis lá, num foi purquê?
- Num tinha com’eu dá ré não, oxi!
- Intão veja antes de dizê, purquê nóis tava tud’aqui aí fumo pra lá só le isperá!
- Pois bora, suba logo!
Nisso, Alcinda e Severina sobem no caminhão e logo tem seus assentos cedidos por
dois jovens, já que as duas já eram senhoras de meia idade. Quando Pajaraca ia subindo com a
mulher e filhos:
- Opa, opa opa! Num tô dano carona não, Pajaraca. – Repreende Mané Biriba.

121
- Pod’ dexá, seu Mané. Lá nóis se acerta, dêxe. – Diz Severina.
- Não, dona Sivirina, muito ‘brigado, mais nóis tem cum quê pagá, ói! – Diz Pajaraca,
mostrando o dinheiro das passagens, sentindo – se bastante ofendido.
- Pois é pagamento adiantado!
- Vô pagá puquê tá tarde, mais de ôta vêiz eu prifiro vim de quato pé do que vim no
seu caminhão de novo!
Nisso, a familia de Zé Pajaraca entra e se espreme no já apertado pau de arara.
- Máir nunca! Mair nunca eu ando no caminhão dessis safado! Ninhum vale merda!
- Eu tô uvino, viu Pajaraca? – Replica Mané Biriba, da boleia, já dando partida no
caminhão.
- Oxente, e é pa uvi mêrmo! Tá pensano que só purque nóis é pobe você vai ficá
isculhambano ca gente?
Mané Biriba encerra a pequena discussão, mas comenta com os que estão na boleia, ou
seja, na cabine:
- Mais matuto é uma merda mêrmo! Num pode infiá uma nota de mil cruzêro nos
bôrso que já se sente o majó... Vai te lascá, fresco! Só vô levá porque a muié cum ur minino
tão lá e num tem cupa de tê um pé redond’ desse como pai!
- Tá bom, paim... Dirija... – Diz uma filha mocinha dele, que estava na cabine.
A viagem prossegue tranquila. Uma a uma, as familias eram deixadas nas suas casas.
Quando é a hora da familia de Zé Pajaraca desembarcar, Mané Biriba se desconcentra e passa
um pouco da porteira de entrada da casa deles, estopim para o berreiro de Abigail começar:
- Oxi, Mané! Tem gente que qué descê!!!!
Nisso, Mané freia bruscamente, desequilibrando os que estão dentro do caminhão!
- Unra, quer matá nóis, é, Mané? – Exclama o velho Lucena.
- Não, é que por eu tê passado mêi parmo da purtêra desse povo, essa doida já qué
mi’ingulí!
- Inguli nada, nóis num paguemo? Doida é sua vó! – Replica Abigail, descendo toda
desajeitada do caminhão junto com o marido e os meninos.
- Tá bom, muié, dêxa de muído, abra esse punxincói aí...
- Oxi, num foi você mêrmo que achô ruim ele tê mandado a gente descê do caminhão,
não?
- Foi, mair num pricisa tá ripitino não. Cum pôco nem cum passage vai tê quem quêra
levá nós...
- Dig’ é nada... – Finaliza Abigail.

122
Alcinda

CAPÍTULO XIX
E haja converseiro besta

Em casa, todos exaustos, mal armam as redes e já desabam no sono. Pois o dia
seguinte de Zé Pajaraca prometia. Tinha que colher algodão nas meninas durante a manhã, de
tarde, teria que fazer o mesmo serviço em Mané Roldão. Finalizados esses dois serviços, lá
pelas três da tarde, Zé vai ver como está sua rocinha de milho e Feijão. Dá aquela vistoria,
arranca um tronquinho de mato ali e acolá que insistem em querer crescer no roçado. De lá,
atravessa o riacho e vai no fojo ver se tem algum preá, vai no açude com uma velha lazarina
doada por Zé Alves. De uns tempos para cá, Pajaraca ficou muito bom de mira. Quando não
beBigaí, conseguia sempre derrubar arribaçãs, marrecos, tetéus e muitos patos putriões.
Nunca mais faltou mistura na casa de Zé. Foi um período onde ele diminuiu muito as suas
bebidas, tendo elas se resumindo às segundas feiras, quando ia para o mercado em Patos.
Nisso, ele aproveitava bastante o dia. Fazia o serviço para os proprietários da
vizinhança, cuidava de sua rocinha, caçava e pescava. Aquele dia de maio, apesar de ter
chovido ultimamente, se findava bem quente como tantos outros. O sol insistente bronzeia a
pele daquele sertanejo de rudes feições, deixando uma marca nos braços de Pajaraca, logo
abaixo das mangas da blusa.
Era mês de maio de 1956. As referidas Santas Missões cujo pregador era Frei Damião
de Bozzano foram um sucesso, pois os boatos voavam longe dizendo que ele fazia muitas
proezas por aquelas bandas dignas de virar notícia. Com isso, é rápido que algumas promessas
bem inusitadas começassem a ser feitas por causa de uma moçoila chamada Ana Bagocha que
foi bulida por alguém e que esse alguém trancou o bico sem querer assumir a traquinagem.
- Se fô fíi de meu marido eu vô sabê! Eu boto ele pa fora de casa no cacête, porque eu
sou muíe macha, sim sinhora! – Diz uma.
- E eu também faço o mêrmo com o de lá de casa, cumade - Dizia outra.
- Eu vô fazê uma promessa pa frei Damião!
- Vai sê como?

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- Vô pidi pa Frei Damião pa quando o minino naiscê, que ele tenha arguma coisa do
pai, pa pessoa pudê sabê de quem é. Se ele atendê, eu vô lá na Cruiz da Minina* Santuário
Religioso da Cidade de Patos – PB. dexá um bebê de madêra de ex-voto e um dinhêro na mão do pade!
- Pronto, e eu le ajudo, cumade!
Assim, quando as santas missões terminaram e logo que o referido menino nasceu, o
milagre atribuído a frei Damião foi comprovado: A criança tinha dois dedos de cada mão
grudados um no outro, igual o pai, João Pio, filho do velho Zé Pio. E foi aquela confusão! Em
todo caso, não era só Ana Bagocha que
gostava de contrabandear amor por aquelas bandas, pois nessa mesma época, uma mulher
casada e mãe de vários filhos, que não vem ao caso dizer que seu nome, para eu não levar
processo, também acabou por escorregar por causa de uma topada na trilha da fidelidade
conjugal, e nesse escorrego ela foi parar dentro de uma cacimba, onde foi pega agarrada com
um cunhado, e isso fez chover picareta, penico, foice e machado, porque o marido da mulher
era brabo, feroz que só um siri dentro da lata! Este, quando batia a mão na peixeira, todo
mundo corria, mas os "apagadores de fogo", sempre conseguiram, com muito trabalho
amansar o homem, que tinha se transformado em Lampião, e ficou provado o seguinte:
O problema todo ocorreu porque que na hora do flagra, a mulher estava com a saia na
altura do pescoço, mas se concluiu que, quando ela foi levantar a cabaça, para levá - la até a
os ombros, um buraco que tinha na ponta da saia se enganchou no dedo da mão dela e subiu
junto. ela estava sem a ceroula, porque tinha tirado ela para fazer uma rodilha para forrar a
cabeça e pôr a cabaça em cima. Com esse argumento o marido se conformou, mas tinha outro
problema grave para ser explicado. E ele se enfezou de novo:
Qual o porquê de um homem ter que estar com ela dentro da cacimba, ainda por cima,
ele com a calça arriada até nos pés? Bem, essa história de saia para cima e calça para baixo
deixou o marido mais nervoso ainda. Daí mais uma vez os "bombeiros" mostraram suas
habilidades, e que ficou provado o seguinte:
O homem tinha entrado na cacimba, para ajudar a mulher a erguer a cabaça na cabeça.
Por essa razão, fez muita força e o couro do bucho esticou tanto que afrouxou a fivela do
cinturão e os botões da braguilha, e por isso, como o defunto era maior, a calça tinha descido
pro chão. O motivo dele estar sem a zorba naquele momento, era porque ia fazer dela uma
rodilha, pois também como a mulher, tinha vindo pegar água na cacimba, que na época, era de
propriedade dele.
Apesar de todas essas provas “irrefutáveis” e de tudo ter ficado provado e aprovado, o
Lampião queria sempre reprovar, e o fogo não ficou bem apagado, pois se via pequenos focos
de fumaça aqui e acolá. Foi quando apareceu um bombeiro velho, veterano, que sabia apagar
fogo como ninguém, chamado Zé Alves. Esse Juntou o Lampião, a Maria bonita e os meninos
deles e os dispachou para morar lá pras bandas do rio São Francisco, e a mulher nunca mais
pegou água em cacimba.
As outras cabrochas irmãs de Bagocha já estavam ficando mocinhas. Expedito, já
rapazote, traquinava muito com elas dentro das capoeiras, e quando saia de lá, estava todo
empestado de mucuím, carrapato e mijo de potó.
Naquele tempo, os amigos mais chegados de Expedito eram o velho Antonio Gino,
que tinha um filho chamado Chico Querreta que também era seu amigo. Ele tinha as canelas
finas, parecendo um socó. Os outros eram os filhos de Sá Maria de Antonio Gino, que
roubavam os côcos de Zé Alves mas botavam sempre a culpa em Expedito.
- Se tu dissé a Zé Aivo eu dô – le um murro!
Belos amigos...

124
Alcinda e Severina eram muito briguentas com Expedito e botavam tudo de culpa
nele. Dona Vicênciamijava em pé no oitão da casa dela, enxugava o entre - pernas com a saia,
depois ia lá pra janela alta, pra ver se Chico Bucho – de - Cachorro passava para os coqueiros.
Já Mané Roldão, vivia sentado numa pedra por baixo da janela alta, para ver quem passava no
corredor. Expedito via tudo lá da casa dele. O molecote já sabia pescar de anzol no açude de
Vicênciae na volta, passava nos canteiros dela pra pegar coentro, folhas de cebola e tomate,
para temperar as traíras. Pegava tudo e ia torrar escondido no mesmo lajeiro onde as vezes o
pai gostava de ir para beber. Nesse tempo Expedito já estava também aprendendo a fumar
boró, embora ainda se engasgasse muito. Ia no bisaco do pai, que ficava pendurado dentro de
casa, e pegava os utensílios necessários. Depois corria para o mato.
- ...
- Rapaz, eu tem pra mim que alguém tá bulino no meu fumo e no meu papé… -
Queixava – se Pajaraca pra sua esposa. - Foi tu, Bigaí?
- Eu merma não. Eu só fumo do meu cachimbo.

Severina

CAPÍTULO XX
1957 – Pajaraca se tornando um pai exemplar

Apesar das dificuldades enfrentadas, Zé Pajaraca continuou trabalhando na sua


pequena propriedade cedida por Zé Alves, que com o prenúncio da seca de 1957, já estava
quase sem pasto e cheia de pedras.
Expedito buscava a água muito longe e na cacimba de outros, que muitas vezes o
reclamavam por fazer uso delas. Mesmo assim, com todas essas dificuldades, Zé Pajaraca foi
plantando seus pés de algodão mocó, que eram muito resistentes às seca e tinham uma vida
longa, quase perene...
No fim do dia, esse Sol malvado se esconde no poente deixando para trás rastro rubro
que deixava encarnado todo horizonte a oeste. Uma brisa morna, levemente úmida soprava do
leste arrastando folhas secas em sua esteira. A noite lentamente estendia seu manto escuro

125
sobre aquele borralho cinzento de sertão, mas era impedida pelo clarão da Lua cheia que
despontava no nascente. Um grande olho amarelo, com uma grande cabeça esticando o
pescoço, olhando por cima do barrado de nuvens gordas que tentam impedir a passagem da
sua luz amarelada. Aquele momento ainda não era dia e nem era noite, era lusco - fusco.
Para a meninada de Pajaraca que brincava no terreiro em frente à casa nem era seca
nem era chuva, era só brincadeira o tempo todo. Tudo era motivo de alegria, de paz,
harmonia. Aurora da vida.
A criançada brincava, mas não tirava o olhar do caminho de acesso à casa. sabiam que
o primeiro a avistar alguém especial chegando seria ganhador de um premio. De repente, um
contorno indistinto apareceu na estrada.
- Lái vem paim! Gritou a molecada em uníssono.
Nisso, todos correm ao encontro daquele senhor, pois já sabiam quem era aquele que
chegava da roça. Ao se aproximarem, todos são afagados pela sua mão direita, já livre para tal
finalidade. Cada criança se pendurava em sua mão e assim entravam em casa. Zé, tentando se
acostumar a essa vida de trabalho, chegou muito cansado. Chapéu de palha na cabeça,
espingardinha no ombro direito, com bisaco a tira–colo. No ombro esquerdo, uma cabaça de
pescoço pendurada numa correia. Da mão esquerda pendia uma imbiricica com umas piabas,
uma siricoia, alguns preás e umas oito pombas de arribação. Dia cheio.
Depois que Zé Alves lhe cedeu aquele ladrilho de chão, todos os dias na hora da sua
chegada, um elo especial era formado quando ele se aproximava dos seus filhos, pois devido
ao seu trabalho este laço ficava desatado o dia inteiro. Ele não era muito dado a
demonstrações de carinho o tempo todo, mas queria muito bem aos seus meninos.
Ao ver - se livre daquela tranqueira, mandou Abigail colocar um tamborete na frente
da porta, onde sentou - se, colocando os pés no batente.
- Ô Bigaí, traiz aqui pra eu uma bacia cum água!
Zé lavou os pés e ficou olhando para a Lua deixando o vento secar seus pés. Em seus
olhos ao invés de fadiga havia um ar de entusiasmo, pois foi logo contando os acontecimentos
do seu duro dia de trabalho.
- Bigaí, minha fía, tá veno como foi bom nóis tê ido vê Frei Damião? Já tá dano tudo
certo pra nóis!
- Eu sei, e se lembre de hoje nóis se ajueiá pa pagá a pinitença, sinão discamba
tud’errado de novo!
- Eu sei. Mai mêrmo sem tê nem pagado a pinitença, já tá dano certo as coisa pa nóis.
- E o qué que tá dano certo?
- Eu vô le contá.
- Apois conte, homi.
- Eu tem uma nuvidade.
- Que nuvidade é essa?
- Amenhã vai tê um armoço im casa dos grande. Você lave logo a panela grande, e pise
bem muito tempero pra mode de temperá a pexaiada da festa.
- E cadê essa bendita pexaiada?
- Agora pronto! Homi, cumpade Juzé dexô eu butá uma tarrafa de maia* tela fixa para
capturar peixes dele hoje de manhã e quando eu fui ispiá agora à boca da noite a maia já tava chêa
de piau!* espécie de peixe
- Oxente, onde foi isso?
- Lá no Botabáxo!
- Sim, mais cadê us piau que eu num tô veno, meu fíi?

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- Ficaro lá.
- Oxente, e num trouxe pur causo de quê?
- Pur quê num truce? O canto que eu passei a maia bem no mêi do purão do açude, lá é
fundo dimais!
- Mais tu num sabe nadá não? Purque num foi buscá eles?
- Oxi muié, já tava quase iscuro, eu fiquei cum medo de ir lá e se inganchá na tarrafa*
malha da rede de pesca
- Ah, eles vão é se sortá tudim se tu num fô logo, você amanhã num acha mais é nada!
- Bigaí, quem já viu pêxe fugino da tarrafa, criatura?.
- Tu que pensa!
- Pois tu vai vê só uma coisa!
- Vê o quê?
- Amanhã cedo eu chegá aqui cum esses piau tudim.
- Homi, eu vô é cuidá de tratá esses preá, que aqui sim eu tô veno. Me dê pra cá eles.
- Pegue, mais cadê minha janta?
- Tá lá na mesa lá dento, cuberta cum um panim...
- E ur minino? Já jantaro?
- Ur minino jantaro cedo, o jeito que tem é você cumê no iscuro.
- Pur quê?
- Pruque só tem um rextim de gáis nesse candiêro e eu tô cum ele ocupado aqui tratano
us preá e dispenano essa siricoia.
- Mais cuma é que eu vou achá as cuié num iscuro desse, muié?
- Pegue um tição no fugão vá alumiano até você incontrá as cuié. E tu, Ixpedito,
chegue sigurá essa lamparina aqui inquanto eu vô saigano a carne desses preá.
- Ô, mãe eu tô com sono, eu quero é ir durmí.
- Nam, tá cedo ainda! Venha logo pra cá, chegue.
Como a banqueta que Abigail limpava a carne das caçadas ficava em cima de um
pedaço de mourão estreito e comprido fincado no chão. Expedito, na sua magreza, passa por
baixo dela, ficando em pé do outro lado, bocejando.
Expedito abre boca, se coça, espirra, tosse, cansado de ficar segurando o candeeiro, e
Abigail, por sua vez, habilmente vai cortando a carne dos preás com a mão direita, tirando o
couro, a pele, salgando e pendurando tudo num caritó pontudo já criado para este fim. Com a
mão esquerda, endireita o cachimbo, limpa o suor do rosto, espanta os mosquitos noturnos,
coça ali e acolá...
Expedito, que também ajuda seu pai no que é possível durante o dia, já estava com
muito sono, pois não tinha dormido nada no dia seguinte por causa da visita de Frei Damião à
Cabaças. Nisso, ele já estava começando a cochilar. E haja fazer careta, faz o quatro com as
pernas, mas nada do bendito querosene acabar, pois este era seu maior desejo. Finalmente,
aquela tênue luz começou a diminuir de intensidade, sinal que o gás estava no fim, e ele pedia
a Deus que não lhe dessem dinheiro para comprá-lo no dia seguinte, pois sempre sobrava para
ele esta nada agradável tarefa, já que ele tinha que ir a pé até a barraca de Mané Teófilo, bem
longe dali.
No outro dia bem antes de amanhecer, Zé Pajaraca e Abigail já falavam em piau.
- Levanta ‘Bigaí! O dia já clariô, vá fazê o café, aqui que eu vô buscá os piau.
- Num vai tê café não, ur minino cumêro o açúca e o sá todim! O milhó é você ir lá im
dona Vicênça vê se tem café aí você apruveitava e comprava a ela um lito de leite. Faça esse
sirviço premêro que é mió do que entrá naquela água fria véa uma hora dessa...

127
- Tud’ no mundo tu só pega garapa, cum eu, né? Isso de leite num tem suxtança de
nada não.
- Sei. O que tem suxtança é Cipuada e Jardinêra, né?
- Homi!
- Mais você tem que tê arguma coisa no bucho pa entrá dento d’água, sinão dá uma
coisa ruim!
- Oxe, mais eu num vô entrá na água não.
- Intão quem é que vai entrá pa pegá os piau lá no mêi do açude? Eu que num vô!
- Oxe, Bigaí, você não viu a Lua chêa não? Ventô a noite todinha, o vento impurrô os
piau pa maia, você sabe aonde eu vou pegá eles? Lá dibaxo das gaia dos pé de jurema da
ponta do bardo! Eu sorto dum lado do açude a maia e depois eu sorto do ôto.
- É bom que você coma algo e vá buscá o leite, rapaiz, tô le avisano, antes que ur
minino acorde se isguelano quereno cumê. Se nóis tivesse u’meno uma vaquinha ô duas, eu
mêrma ia tirá.
- Homi, tu num sabe com’é cumade Vicênça? Se eu fô lá atráis de leite, ela disconta no
meu denhêro e ainda manda eu tirá leite das vaca tudinha pra eu ficá só cum um lito!
- Também né assim não, né Zé? Diga que a priguiça num dêxa, que fica mais bunito!
- Homi, ói, acorde Ana Júia aí pra olhá o fogo e vá lá você atráis de leite, que eu vô
logo é buscá us pêxe!
- Oxente, e o leite dur minino?
- Na vorta eu passo lá, tá bom ansim?
- É, fazê o quê, né? Intão quando você passá na casa grande tome imprextada duas
cuié de açúca a cumade Arcinda pra mode d’eu fazê seu café.
- Duas cuié só? E o leite dur minino, vai adoçá cum o que?
- Eles vão bebê sem açúca pra dêxare de sê traquino!
A pequena Ana Júlia, que nesse momento estava acordando, se levantando da rede,
gritou lá de dentro:
- Mãe, quem cumeu o açúca foi Ixpedito, e ainda lambeu a boca da lata! Ele tombém
tava chupano uma peda de sá dento da rede dele!
Expedito, que já tinha ido dormir na expectativa de ajudar na busca dos peixes,
acordou por causa da discussão: “Tira leite, pega piau, come sal, come açúcar". Temendo
levar umas boas chineladas, levantou – se às pressas da rede, passou pelos caniços unidos que
serviam de porta dos fundos e seguiu o pai que já ia a caminho do açude Bota - Abaixo na
busca dos tais peixes, mesmo sabendo que na volta teria que explicar a história do açúcar e do
sal comido e ainda ter lambido a boca da lata.
Expedito já estava preocupado, pois dias antes, tinha acontecido um caso idêntico a
este, ou seja, a açúcar da lata tinha sumido misteriosamente e Abigail, sua mãe, para não
deixar passar em branco, tinha distribuído dois muxicão no pé do ouvido e no quengo de cada
menino, e em Ana Julia, a mais tagarela da casa, deixou de lembrança quatro cocorotes na
moleira, para aprender a cuidar das coisas, e ainda tinha sentenciado, se aquilo voltasse a
acontecer, ele iria pegar um por um, para esfregar a bunda no pé de tamiarana lá da beira da
cerca, portanto cada menino já sabia o preço da grama da açúcar e do sal naquela casinha
pequenina.
Ainda mais por que seu pai ficava com dor de cabeça quando não tomava café pela
manhã, principalmente pela falta da açúcar, desviada de sua finalidade e era por esse motivo
que Abigail sempre cumpria as promessas de penalizar os responsáveis.

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Na caminhada até o açude, Zé Pajaraca, do topo de sua displicência, não viu que
Expedito ia atrás dele, pois se notasse a sua presença, com não iria deixar que ele o
acompanhasse.
Passaram pelo baixote, subiram a ladeira, chegaram aos pés de turco, daí ele se dirigiu à
porteira do pé de mulungu, e ao abri-la, olhou para trás, mas Expedito já estava muito bem
escondido atrás da ponta da grande calçada lá da casa grande, que antigamente era a casa que
seu avô trabalhou. Na frente desta casa ficava a cancela. Que dividia a os sítios Lameirão e
Jardim.
Zé Pajaraca abriu-a, passou para o outro lado. Instantes depois, Expedito também fez o
mesmo, embora mantendo a distância, para não ser notado. Chegaram na cacimba do pé de
jatobá, atravessaram o riacho, passaram pelos pés de pinha, entraram debaixo do pé de manga
espada, seguiram em frente deixando o riacho para trás, entraram no baixio, chegaram ao
cajueiro velho, onde o velho Quincas Ferreira fazia telhas, passaram pelo batedor de arroz,
transpuseram a cerca da baixa das carnaubeiras, seguiram para a direita, chegaram aos pés de
goiabas vermelhas e passaram por baixo delas, mas Expedito mantinha sempre uma distância
do pai, que parou debaixo do velho pé de côco, que ficava no pé do baldo do açude Bota -
Abaixo.
Após descansar uns instantes da caminhada, Zé tirou os carrapichos da barra da calça,
em seguida subiu o baldo seguindo para esquerda, desceu para o outro lado, chegando aos pés
de jurema, cuja ramagem chegava a tocar na água do açude. Apressou o passo, contornou os
galhos, indo direto à beira d’água.
Aproveitando aquele momento, Expedito se escondeu debaixo da jurema, de onde
podia contemplar a alegria estampada no rosto do pai ao ver tanto pato morto na beira do
açude. O dia já estava iluminado pelos primeiros clarões daquela manhã de maio de 1954, e
os raios do Sol, que pareciam longos espetos luminosos, vinham perfurando a ramagem verde
dos pés de jurema - preta misturada com marmeleiros.
Não mais podendo suportar a curiosidade, Expedito correu para perto do seu herói,
que se espantou ao vê-lo ali àquela hora.
- Oxi, minino! Tá fazeno o quê aqui? Vai t’imbora pra casa!
- Nam, paim, vim ajudá o sinhô!
E Expedito não perdeu tempo, começou logo a ajudá-lo juntar a "peixarada" presa na
rede de arrasto, pois tinha peixe para todo canto que se olhava da malha, e ali estava a prova,
que Zé Pajaraca estava ficando bom de pescaria, pois aonde ele botasse aquela longa e fina
malha, o estrago estava feito, era pouco peixe que sobrava no açude ou no riacho.
O vento da noite de Lua cheia tinha feito a sua parte, empurrando mais e mais peixes
para a rede. Ao chegar em casa, ninguém falou mais em açúcar e nessa manhã Abigail não
teve tempo nem pra pitar seu cachimbo, pois dessa vez tinha outra ocupação. Já agilizando
tudo, botou água na panela grande, pôs para ferver, jogou milho para a porca, pois esta a
muito tempo chiava no pé da porta, disputando com as galinhas algum grão que viesse
humildemente a ter boa vontade de passar por ali.
Ana Júlia, que depois que Firmina casou ficou sendo a filha mais velha da casa, já
estava no veio do moinho, terminando de moer a cuia de milho que tinha dormido de molho e
Expedito passava na peneira para separar a massa do xerém. Da massa, iria sair o cuscuz e a
farinha torrada em um caco, que na verdade era a velha banda de pote quebrado que tinha
diversas utilidades: Torrar a massa para fazer farinha, botar água para as galinhas, torrar café,
torrar milho pra fazer fubá além de ainda servir para juntar a lavagem da porca. Este caco,

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tinha se aposentado de um de seus serviços: Ser o prato coletivo de seus meninos. Hoje, cada
um tem seu pratinho feito de barro, bem bonitinho.
Do xerém fazia-se ração para os pintos ou o famoso angu de xerém pra comer com
leite.
Mesmo não muito habituada a esses tempos melhores, Abigail cantarolava as mesmas
canções tristes de outrora, pois sempre levou uma vida muito difícil, ou seja, não se via em
seu rosto tanta alegria, faltava – lhe algo.
Zé chegou com o leite que logo foi fervido, o cuscuz já estava pronto e a grande prole
também já estava pronta pra devorar os dois juntos. Zé Pajaraca foi ajudar no parto de um
bezerro no curral de Zé Alves, e isso lhe tomou boa parte da manhã. Na hora do almoço, os
peixes já estavam descamados e tratados, o moinho já estava rodando outra vez, pois tinha
que fazer mais massa para o angu do almoço. A panela grande já estava desocupada porque
era com ela que seria feita a “peixaiada”.
Por causa de toda essa luta matinal, Abigail só ia ter tempo para fumar seu cachimbo
durante a tarde, o que já estava fazendo com que ela ficasse com dor de cabeça e irritadiça.
E assim a vida rastejava por ali, pois mesmo sem ânimo, ela conseguia alimentar seus
filhos, e seu marido, todo dia tinha que travar uma batalha contra o álcool, e seus vizinhos
sempre o ajudavam como podiam, pois ninguém ali era rico. Acabavam sendo patrões fiéis de
Pajaraca, e não muito exigentes, e com esse dinheirinho ganho, ele comprava alguns objetos
simples de uso doméstico, que de tão simples, nem chamavam atenção, mas para quem nada
tinha, esses quase imperceptíveis objetos eram preciosidades inigualáveis, pois tudo naquela
casa era muito simples e resumido alguns poucos, porém singelos e inestimáveis utensílios do
lar:
Na sala de jantar da casa de Zé Pajaraca já existia:
• Uma mesa;
• Seis tamboretes;
• Um banco com dois potes, sendo um grande e um pequeno;
• Um caritó para pendurar copos feito de madeira,
• Dois copos de alumino, sendo que o maior era um copo com o cabo comprido, que
servia para tirar água dos potes e dele passar para o outro.
• Outro caritó maior na parede onde era guardado o fumo, papel para cigarro, caixa
de fósforos, tábua pra cortar o fumo e uma faquinha.
• Um armário feito de tábuas onde eram guardadas preciosidades como um bule de
ágate azul, um açucareiro, seis pratos de louça que nunca foram usados, uma dúzia de facas
e de garfos, quatro xícaras para café, quatro para chá e umas doze colheres. Vale
ressaltar que esses objetos nunca eram usados, pois eram como um tesouro para a família.
No quarto único tinha:
• Uma cama com um barulhento colchão de palha cheio de juncos, e que quando
entrava em serviço, os filhos mais velhos comentavam que mais irmãozinhos estavam a
caminho.
• Uma mala grande feita de madeira de umburana,
• Outro caritó na parede, com um espelhinho, um pente grosso e um pente fino para
tirar piolho graúdo na meninada;
• Um vaso de brilhantina para alisar os cabelos nos dias de festa, coisa que Zé
Pajaraca precisava muito, pois seu cabelo tinha o aspecto de uma juba de leão, e quase
nunca ia ao cabeleireiro aparar.
Na sala de visita:

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• Uma máquina de costura desmantelada em cima da mesinha, que Firmina havia
trazido lá de Zé Alves;
• Aqueles seis tamboretes que eram os mesmos da mesa de jantar, pois iam da sala
para mesa e vice-versa.
• As redes da meninada enroladas ou penduradas nos tornos das paredes, das quais
emanava um forte cheiro de mijo.
• A espingarda Lazarina ficava atrás da porta de entrada, pendurada em um torno
juntamente com o bisaco, onde era guardada a munição. Tinha também um polvarinho feito
de chifre de boi tampado no fundo com um disco de caco de cuia, um saquinho de couro com
chumbo, e uma caixa de espoleta da marca Tupã.
Num canto da mesma sala existia um paiol onde era armazenado o cereal em casca,
ou seja, milho com Feijão de corda, arroz, entre outros (quando tinha).
Na cozinha, ficava:
• Um grande pote de barro dentro de um grande gancho de pereiro em forma de tripé
de pernas pra cima;
• Um pilão;
• Um moinho para moer o milho que era preso a um cêpo* pedaço de madeira fincado no
chão.
• Ainda tinha algumas panelas amassadas, doadas pelos vizinhos;
• Alguidás, vários pratos e tigelas, tudo isso feito de barro;
• A grande banda de pote já citada, que servia para torrar farinha, milho, café e
outras coisas.
• Tinha a chaleira de boca estreita feita de flandres, várias cuias e cabaças para
carregar água, usadas pela meninada para vários fins.
Às vezes apareciam duas latas de vinte litros, ambas com um pau atravessado na boca,
onde era amarrada uma corda. Esta era laçada na extremidade de uma barra de madeira,
ficando assim, uma lata de um lado da travessa, e a outra, no lado oposto, formando o galão,
sendo a travessa o pau do galão. Estes últimos, todos em cima de um grande caixote que
servia para guardar cereais. Por último, um cambito de cinco pernas pendurado num caibro do
canto do telhado onde se estendia o toucinho, juntamente com a carne dos abatidos pela
lazarina, tais como preá, punaré, marreca, pato, galinha - d’água, jaçanã, juriti, arribação,
paturi entre outros. Todas as caças eram provenientes do açude Bota - Abaixo e da vizinhança.
Em janeiro de 1957, toda água que restava do açude Bota - Abaixo ficava resumida a
um círculo no porão. Os rebanhos de gado e as revoadas das aves aquáticas já haviam ido
embora, pois a alimentação de ambos dependia das frutas da baronesa e da vitória – regia, e
essas não proliferavam no porão por ser um ponto muito fundo pelo fato da água já estar
turva, com mau-cheiro, ou seja, estava "pesada".

131
Inácio Ganga

CAPÍTULO XXI
Será que a chuva chega?

1957. A chuva deveria chegar em janeiro, no mais tardar em fevereiro, porque o carão
já começava a cantar, e o canto do carão vem acompanhado de trovão, que por sua vez vem
acompanhado de chuva e a esta enchia o açude o açude Bota - Abaixo, o qual, quando cheio
produz muito aruá na sua revença que é comida do carão. Tinha rã rapando embaixo do pote e
tinha mariposa no oitão da casa. Isso é chuva na certa. O besouro rola – bosta começava a
empestar os poucos postes da vila de Santa Teresinha junto com a borboleta – traça, e com
isso, os cururus ficam embaixo aguardando o banquete. Isso tudo é prenúncio de chuva no
sertão! É a chuva tocar o chão e logo também a vitória - régia e as baronesas brotam das suas
batatas que tinham ficado enterradas na lama seca, e que por felicidade, estas são resistentes
às longas estiagens.
Poucos dias depois vem a florada acompanhada dos frutos, por isso o passaredo que
tinha ido embora começava a chegar, pois lá da casa de Zé Pajaraca já se ouvia o canto do
putrião, da jaçanã e das marrecas. A água lamacenta que tinha descido lá dos terrenos mais
altos, espraiava-se para em seguida começar o processo de decantação das partículas terrosas
suspensas no meio liquido, criando com esse efeito uma camada de argila fértil, onde o Zé
Alves vai plantar iria plantar seu arroz de muda e ter Zé Pajaraca como braço direito na
colheita. As sementes que foram plantadas no canteiro já tinham germinando, e Zé Pajaraca
pegava a meninada para carregar as mudinhas de lá, para plantá-las nas praias rasas daquele
grande açude que separa o sítio Jardim do sítio Lameirão.
Com a permissão de Zé Alves de ter parte da colheita para si, Zé Pajaraca
devagarzinho ia plantando as mesmas mudinhas na revença que saia por trás do baldro, que é
a baixa das carnaubeiras. Lá ele planta milho nos altos, misturado com um bom Feijão de
corda na mesma cova. Em cima dos formigueiros planta fava, jerimum de leite, jerimum
caboclo, semente de cabaça, de melancia, de gergelim, melão caetano entre outras.
Com as chuvas de 1957, as traíras que tinham entrado pela sangria se juntavam às que
tinham ficado no porão onde recomeçavam um novo circulo de reprodução. Zé Pajaraca já
preparava a imbiricica, a malha do landuá e a vara de anzol. O fojo de pegar preá era o mesmo

132
do ano passado, pois era feito numa caixa de madeira resistente. O pente da sangría de pegar
arribação também era o mesmo do ano anterior, mas ia ser guardado porque a chuva tinha
chegado, e arribação, como não gosta de terra molhada, já tinha ido embora. A lazarina ia ser
reativada porque as marrecas tinham voltado, e Zé Pajaraca ainda achava tempo para usá-la e
armar o anzol com isca de rã e caçote, pois de uns tempos para cá, todo dia no almoço tinha
pato ou traíra na mesa, até porque quem tinha aprendido bem como pegá - los era Zé Pajaraca,
caçador de pato e pescador de traíra.
Agora seguimos para junho de 1957. Abigail se encontra grávida pela enésima vez.
Devido aos problemas que teve na barriga a tempos atrás, imaginava até que nem pudesse
mais ter filhos. Por coincidência, Marina, uma das filhas de Zé Alves também estava
esperando seu primeiro menino, e assim, Abigail acabou tendo a sorte de ganhar muitas
coisinhas para seu enxoval. No entanto, nesta última gravidez, Abigail já estava com mais de
40 anos e não tinha mais a saúde nem a disposição de antes. Precisava ficar o dia todo parada,
sem fazer nenhum movimento que exigisse maior esforço. Nisso, o trabalho mais difícil ia
sempre ficando por conta de Expedito e Ana Júlia.
A bagunça em casa e as coisas por fazer chegaram ao ponto de incomodar o próprio Zé
Pajaraca, que entre outras coisas, já era conhecido pelo seu desleixo.
- ‘Bigaí, eu acho que vô mandá chamá meu primo Migué lá de Campina de novo.
- Ah, era bom, viu, Zé? – Concorda Abigail.
- Pois é, você tá aí de bucho e nóis num vamo dá conta de fazê tanta coisa que tem pa
sê feita aqui não. Logo logo vai tê roço do agudão, aí complica. O que é que tu acha?
- Rapaiz, eu acho bom que você mande dizê a ele que traga mais uns dois ou trêis
trabaiadô, purquê tem muito o que fazê mêrmo, e seu Zé Aivo tá le pagano por um o sirviço
que é de trêis trabalhador.

Nêgo Germano

133
CAPÍTULO XXII
A ajuda providencial de um amigo

Na segunda feira seguinte, Zé Pajaraca foi até Patos e ditou no correio uma carta
endereçada a Seu Miguel, que morava no município de Sapé, e que atendeu prontamente ao
chamado, chegando acompanhado de Zé Brejeiro, mas a saúde de ambos não era boa, pois a
região dos brejos onde eles moravam era infestada de doenças como sezão, empaludismo,
amarelão, e bicho de porco. Seu Miguel tinha perdido as unhas dos pés, Zé Brejeiro tinha o
bucho muito grande, estava amarelinho de dar dó, só ficava em pé, porque seus pés eram
muito chatos e os dedos finos ficavam bem longe um do outro e apoiavam bem.
Mesmo meio abatidos, a alegria da meninada foi muito grande na hora da chegada
deles, pois os dois gostavam muito de menino. No entanto, o motivo de toda a alegria da
meninada não era só por isto. O fato é que durante a temporada que Seu Miguel passava
naquele sítio, ninguém mais pegava água na cacimba e nem lenha lá nos matos, e sim ele.
Nas noites de Lua cheia, depois de já terminadas as ocupações diárias, Seu Miguel
pegava um tamborete e levava lá para o terreiro. Todos os meninos corriam para cima dele,
onde sentavam dois em cada perna para ouvir dele as historias de Curupira e Mãe D’Água que
segundo ele, lá no brejo existiam sempre aos montes e viviam a assombrar moleque traquino.
Muitos dos meninos lá pelas bandas dos brejos onde ele morava eram castigados assim. A
molequeira ficava só de mão nos queixos, ouvindo aquelas incríveis narrações que saiam da
boca dele. Quando a criançada começava a brigar por um espaço no colo dele, este ameaçava
não contar mais historias, e com medo que fizesse isso, logo todos ficavam calados, cada um
no seu canto. Quando a arenga entre eles era por outros motivos, Seu Miguel tinha sempre
uma boa maneira de acabar com aquilo: Ameaçava entregar o briguento a Abigail, que não
alisava couro de menino carecido de peia. E ainda lembrava a cada um que Zé Pajarava
gostava de distribuir tabefe e cocorote a torto e a direito em menino ruim.
O amor que a meninada sentia por ele aumentava mais a cada dia, pois dele irradiava
uma bondade tão cativante, que ninguém queria sair de perto, implorando para ele não mais ir
embora para sua terra. Portanto, Seu Miguel ali era o astro rei. Os meninos, eram os satélites,
e estes giravam em torno da órbita de sua tão cativante e paciente pessoa.
Mas o astro um dia tinha que ir embora, afinal, ele era casado e tinha que levar
dinheiro para sua mulher e rever os seus meninos também, que segundo ele, eram muitos. Era
nessa despedida que o bicho pegava, pois o chororô da menineira era ouvido de longe. Seu
Miguel acalmava todos com a promessa de voltar logo que possível, como de fato sempre
voltava mesmo, trazendo na sua bagagem toda a boa vontade e alegria de viver existente
nesse mundo.
Numa dessas suas voltas, a algazarra dos meninos foi grande, pois logo no dia seguinte
à sua chegada, ele pegou a cabaça grande, e desceu no rumo da cacimba, acompanhado de
Expedito. Chegando lá, a encheu com quase vinte litros de água, ajeitou o forro na cabeça e
suspendeu-a bem acima da rodilha. No entanto, as forças não estavam mais com ele.
Aconteceu que cabaça velha escorregou de suas mãos e desceu com o peso da água quebrando
o fundo da mesma. Com isso, a cabeça dele entrou com pescoço e tudo chegando até aos
ombros. Sufocado pela água e sem poder suspender a cabaça, pois a rodilha tinha descido e
estava entre o seu queixo e a beira do fundo da cabaça, dificultando assim a sua urgente
retirada. Desorientado e desesperado, com muito medo de morrer, Seu Miguel esmurrava a
cabaça com as duas mãos, mas não conseguia quebrá-la e quando finalmente saiu a ultima
gota de água, sua voz pôde ser ouvida de muito, muito longe mesmo gritando por Expedito:

134
- Ixpedito, pegue ligêro um pedaço de pau e sapéque nessa cabaça pa quebrá!
- Vai machucá o sinhô, tí Migué!
- Tem nada não, mêta o aço aí!
Uma paulada, duas, três, quatro e nada da cabaça quebrar. Tonto e andando sem rumo,
ele passou na barreira da cacimba, escorregou, a barreira de areia cedeu, e ele despencou lá de
cima, indo parar lá no fundo da cacimba, onde ficou deitado com a cabeça apoiada no
primeiro degrau da subida, agora, por sorte, pois a cabaça lhe serviu de capacete, protegendo-
a de uma forte pancada na pedra que servia de degrau.
Nesse momento de desespero ele gritou:
- Ixpedito, desça aqui e bata o pau na cabaça cum toda força que tu tivé!
Expedito obedeceu à ordem, levantou-se na ponta dos pés, enfiou a língua no buraco
do nariz, levantou o pau com as duas mãos, e desceu o porrete também com as duas mãos. Foi
caco de cabaça para todo lado! O estrago foi horrível, pois o pau era um toco de anjico com
raízes. A pancada quebrou a cabaça, atingiu a orelha direita e o ombro do Seu Miguel, pois
ambos estavam na mesma linha da paulada, e o cacete resvalou. Como estava deitado, ali
mesmo permaneceu quieto, e Expedito correu apavorado pensando no pior. Gritou, gritou,
gritou, até que Mané Roldão percebeu a gritaria de longe, chegou e o tirou de lá, mas levou
mais de um mês para sarar as perebas criadas pelas raízes do toco, tanto na orelha como no
ombro, pois ele ainda estava com o corpo muito “reimoso” *debilitado porém daquele dia para
frente ele só ia buscar água numa ancoreta, que não era besta.
O tempo foi passando e o bucho de Zé Brejeiro já havia diminuído, pois Abigail, que
era muito amiga de Mãe Rosa, de Benvinda e do velho Zé Pio, e estes lhe conseguiam muitos
chás, os quais ela ministrava a Zé Brejeiro e seu Miguel todos os dias um grande copo com
leite misturado com mastruz, pois lombriga não se dá bem com isto. A esta altura, seu Miguel
já tinha ficado bom da orelha. as novas unhas vinham apontando bem rosadinhas, pois o bicho
de porco não prolifera no sertão árido. Ele juntamente com seu companheiro estava roçando o
mato do algodão da beira do açude Bota Abaixo todo dia ele levava uma vaca de Zé Alves
chamada Cabecinha para ser amarrada na beira da água para comer o capim ali existente e ela
era mudada de lugar de hora em hora.
À tardinha, era levada para casa onde era recolhida ao curral e tanto na ida como na
volta, ele a conduzia puxada por uma corda, que era laçada nos chifres dela, sendo a outra
ponta amarrada bem firme na cintura dele, pois suas mãos eram ocupadas, uma com um feixe
de lenha e a outra, com a lata d’água com a qual ele tomaria banho. Precisava fazer outra
viagem além dessa, para trazer também um grande carneiro, para ser amarrado perto das
carnaubeiras, pois ali tinha um capim rasteiro ideal para um animal de raça como ele, que
também era mudado de lugar ao meio dia quando ele e Seu Miguel voltavam para almoçar.
A carnaúba daquela região tem uma folha composta por uma palma em forma de
leque, sustentada por um grande braço cheio de espinhos também grandes, curvos e cujas
pontas eram viradas para o caule da palmeira, portanto aquele que por acaso entrasse na sua
copa ia ter muito do trabalho para sair dela sem a ajuda de outra pessoa.
Expedito todo dia ia levar o café para Seu Miguel lá pelas três horas da tarde, e
esperava para só voltar junto com ele, pois essa era a rígida ordem de Zé Alves: Nada de
menino trelando* vadiando pelos munturos do sítio sem ter o que fazer.
Certo dia, à tardinha, Seu Miguel encheu o cachimbo de fumo, colocou uma brasa
dentro, amarrou a corda da vaca na cintura, e pegou o caminho de volta pra casa, dessa vez,
acompanhado de Expedito e Zé Brejeiro. Passaram debaixo do pé de angico do sangradouro
onde o martim-pescador cochilava num galho seco, e um socó-boi no outro, e com certeza

135
estavam com o papo cheio de piabas, por isso dormiam que era uma beleza. Dali, os três
seguiram pelo sangradouro do açude, de onde desceram rumo às carnaubeiras, pois o caminho
da casa que eles dormiam, ou seja, a de Pajaraca, era por ali. Zé Brejeiro ia à frente, por isso,
Seu Miguel o mandou desamarrar o carneiro, porém ao desatar o nó, o bicharoco se espantou
por causa da aproximação de seu Miguel que vinha puxando a vaca Cabecinha e saiu numa
carreira louca arrastando Zé Brejeiro, que tinha se desequilibrado e caído, tentando segurar o
carneiro endiabrado.
O carneirão, na sua carreira disparada, passou por baixo da barriga da vaca saindo do
outro lado, arrastando Zé Brejeiro em velocidade de bala, que por sinal, era bem magriço. Ao
sair do outro lado, fez uma volta em torno da vaca. A corda deu uma rasteira em Seu Miguel
que não pôde se sustentar em pé. Meteu o lombo no chão. A vaca Pretinha também se
espantou com o carneiro arrastando aquela rabeira humana e acabou disparando numa carreira
sem rumo. Pulou uma grande moita de carnaúbas novas, arrastando e é claro, obrigando Seu
Miguel a passar por debaixo dela, se arranhando todo.
Puxa lá, puxa cá, mas a vaca não se acalmava, pois a ponta da corda estava amarrada
na cintura de seu Miguel, e esse estava enganchado no tronco das carnaúbas. Nisso, um
bezerro berrou lá na frente e a vaca pulou de volta na mesma moita, a corda esticou
novamente, mas nem assim conseguiu arrancar o pobre do Seu Miguel de lá, pois agora eram
os espinhos que o prendiam.
Quanto mais a vaca puxava, mais os espinhos entravam no seu couro, sendo esse um
tremendo sofrimento para seu Miguel, coitado. Depois de finalmente ter dominado o carneiro,
Expedito voltou ao lugar do incidente, ainda não sabendo que seu companheiro estava
debaixo daquela jaibara, então ele tentou tocar a vaca pra frente, esta fez finca-pé, cravou os
cascos no chão e isso fez com que o espinhaço dela ficasse parecendo um bodoque, mas ela
não saiu do lugar.
Assim, Expedito viu aparecer um pé se mexendo, e pelas unhas (ou ausência delas),
ele reconheceu o proprietário. Por sorte, a gritaria de Zé Brejeiro sendo arrastado chamou a
atenção de Zé Pajaraca; mesmo assim, este só apareceu momentos depois, e ainda assim, ele
foi o salvador da pátria, e com o uso de uma foice de cabo comprido conseguisse chegar até
onde ele estava, e tirá-lo de lá. Ufa!
Seu Miguel estava quase desmaiado e sem conseguir respirar direito. Arrasta lá e arrasta
cá, aí foi que Pajaraca descobriu que o cachimbo cheio de fumo estava lá dentro da boca dele,
e o canudo tinha se fincado goela adentro. Houve por ali muitos casos de gente morrer se
engasgando com espinha de peixe na goela. Naquele dia, quase houve um caso de morte por
engasgamento de canudo de cachimbo.

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Finada Lurde

CAPÍTULO XXIII
Sítio Lameirão – Casa-Sede

Zé Pajaraca, depois que retomou contato com Zé Alves, como todos sabem, voltou a
morar no sitio onde seu pai trabalhava desde menino, que era o Sítio Lameirão, da
propriedade do velho Nicolau Gomes, que depois foi herdado por sua filha Mariquinha, e,
após sua morte, em 1º de janeiro de 1949, teve repartido cada quinhão entre seus filhos
herdeiros. A maior parte ficou com Zé Alves, que comprou parte do sitio de alguns dos outros
irmãos, bem como comprou outras propriedades e acrescentou ao sítio Lameirão.
Sob pulso de ferro ele tocava o sítio, que era muito tranquilo e bucólico. Ele era
magriço, quase não tinha cabelo. O pouco que lhe restava era grisalho e ralo. Era sempre
muito vaidoso. Andava sempre muito perfumoso e bem vestido. Tinha seus 55 anos. Era
casado a 30 com Regina, e ainda moravam na casa: Nita, Marina e Quinha. A segunda, era
noiva e tinha acabado de se casar, faltava apenas o noivo Zé Serafim terminar de construir a
casa deles, nas proximidades. Eram 4 mulheres filhas de Zé Alves, mas uma delas, Lurdes,
morreu em 1953, por ter sofrido um ataque cardíaco e ter caído do caminhão de Zé Lino. Os
demais filhos de Zé Alves tinham se casado a pouco tempo e cada um foi morar no seu canto;
alguns deles, até em sítios diferentes e mais distantes.
Apesar da certa idade, Zé Alves morava nesse casarão que ficava no meio de um
grande planalto, cercado de roçados e jardins nos baixios ao norte e ao sul, pastos e currais, de
frente para uma mata fechada de caatinga. Nesse sítio tem um açude grande que represa água,
o Bota Abaixo, e ele ainda sonha em fazer outro do mesmo tamanho do lado norte. A revença
desse açude tem um riacho espraiado, criando assim uma condição ideal para o plantio de
arroz no período chuvoso; e na vazante, bom para plantar batata, milho, feijão ligeiro,
jerimum, melancia capim de corte e outros. Atrás do baldo tinha uma grande área, plantada de

137
bananeiras, côco e cana, dessa ultima fazia-se rapadura em um engenho muito bem instalado,
cuja manutenção sempre ficava a cargo do velho Zé Pio.
Tudo produzia bem lá, porque essa área era irrigada pela revença natural do já dito
açude, que era constante. Nas terras já limítrofes da propriedade e que seguiam o serpenteio
do riacho, plantava-se o algodão seridó, o milho, feijão de corda e outras culturas. Naquele
mundão de terra, onde segundo o próprio Zé Alves dizia: “O Sol é nascente e poente aqui no
Lameirão”, lá criava-se ovelhas, boi, cabra, muitos porcos, galinha, pato e peru. O sitio tinha
três trabalhadores fixos, que era o Alfredo Putruco, que só vivia coçando os comichões das
virilhas, provavelmente por portar alguma DST; Mané Cacunda, um rapazote sem eira nem
beira e por último a temerosa Minervina, filha de Mãe Rosa, e que era o terror dos meninos
das redondezas e dos moradores de Zé Alves. Com frequência Zé Pajaraca com Abigail e
alguns dos filhos faziam visitas na casa de Zé Alves, na intenção provável de serem
convidados para alguma refeição. Coisa que de fato, sempre acontecia.
Certa vez, Zé Alves pediu ao distinto casal para seu afilhado Expedito morar com ele
uns tempos no casarão, para ajudar na luta da casa – sede do sítio e ainda ganhar um
dinheirinho. Some – se ao fato que Zé Alves já criava outro afilhado, primo de Expedito, filho
de Carrôla, de nome Miguel Bento e cujo apelido era piôi; sendo esse pedido aceito com
muita felicidade, porque para Abigail e Zé, aquilo era como um alivio, pois eles tinham
muitos filhos e a despesa, como todos sabem, era grande.
Quem não gostou de jeito nenhum foi Minervina, que talvez até tivesse seus justos
motivos, pois Miguel Bento já lhe dava muito trabalho e pouco ajudava no sítio; só fazia
raiva. Esse bonzinho tinha sido criado lá em Patos, onde sempre vivera bem perto da
molequeira da rua, com quem tinha aprendido a botar rabeira em jumento, só pra ver o
desmantelo, enfim, só sabia fazer ruindade! Miguel tinha 14 anos. Era um ano mais velho do
que Expedito, e gostava de ensinar a este mais novo seus conhecimentos de traquinagem,
porque Expedito sim era bobinho, e ao contrario dele, tinha sido criado na roça, fazendo
mandando pra lá e pra cá.
Minervina permaneceu amuada durante o resto da tarde em que o nobre casal esteve
sentado cada um numa espreguiçadeira da sala, e cada um agarrado numa xícara de café, ela
principalmente temendo Zé Alves os convidar para jantar ou tomar café e ser mais louça suja
p’ra ela lavar. Quando o casal voltou pra sua casa, deixando o menino, ela disse:
- Eita gota! Daqui im vante, é professô e o aluno junto morano no merma casa! Alegou
também que nunca ia esquecer o que tinha acontecido com ela, naquele dia terrível, que ela
nem gostava de falar, pra não lembrar daquilo. Esse tal caso, tinha acontecido uma outra vez
que Expedito tinha passado uns dias naquela casa, (tá certo que ele era pequeno, Zé Pajaraca
tinha acabado de voltar de Patos com a penca de filhos). O fato é que Expedito estava vindo
do engenho com uma cabaça cheia de mel quente de rapadura, mas quando essa ia sendo
passada da mão dele pra dela, a danada da cabaça escapuliu, e espatifou-se em cima dos pés
de Minervina! A queimadura foi horrível, e até aquela data não tinha nascido direito as unhas.
Dali pra frente foi uma guerra declarada, pois ela tinha carta branca, assinada por Zé
Alves e Regina para atuar com rigidez nos moradores e nos moleques afilhados. Os outros
trabalhadores até achavam que no fundo eles chamavam esses moleques p’ra lá só para
atentar a pobre Minervina, e assim darem risada com os esporros dela. (Fato que também
ocorria com frequência). No fim das contas, ela tinha carta branca para ela agir da maneira
que achasse certo, inclusive usar um cipó de boi que vivia pendurado num torno ao alcance de
sua mão. Miguel, para descontar chegava perto dela e dizia:
- Toma Mineivina, ó o que eu truce pa tu.

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E quando ela abria a mão, Miguel soltava bosta de galinha dentro da mão dela, e saia
correndo. Certo dia Expedito estava arrancando os matos ao redor das ruínas onde na
antiguidade alguém tinha morado lá, e de súbito correu para casa gritando: Toma Mineivina, ó
o que eu truce pra tu...
Na certeza de ser titica de galinha, igual ao que Miguel fez, Minervina saltou em seu
braço, e o conduziu à presença de Zé Alves. Minervina já foi até seu patrão com um cipó, e
gritando:
- Abra a mão, minino ruim! Ói o que ele tem na mão, seu Zé, ói ói ói!
E quando Expedito abriu, Zé Alves ficou pasmo, pois ali estava uma peça de ouro de
valor incalculável, de propriedade de sua falecida mãe Mariquinha, que há muito tempo ele
pensava que alguém tinha roubado de seus pertences; mas assim que Zé Alves agradeceu a
Expedito, o presenteou com um borrego e o dispensou aos seus afazeres, Minervina ameaçou:
- Você vai me pagar caro por essa, viu, esse minino?
Minervina era uma “moça véa”, ou seja, nunca casou. Ninguém nunca a cortejou de
verdade; no máximo queriam tirar algum proveito dela, pois embora fisionomicamente não
sendo muito bonita, era bem voluptosa, então os homens que aceravam por ali vez ou outra
iam aperrear ela, principalmente quando ela bebia. Tinha lá seus trinta anos, mas ainda tinha
um jeitão de menina. Alguns dias depois, Zé Alves foi fazer suas compras em Patos, e
Expedito, Miguel Bento e Mané Cacunda aproveitaram a pequena folga e foram logo até um
sitio vizinho, quase abandonado, chamado Sítio Porcos, mas com medo que se Minervina lhe
pegasse iria trancá-lo lá no galpão onde só tinha morcego e teia de aranha. Expedito foi bater
nesse sítio, às escondidas junto com os outros dois, na promessa de encontrar lá um cacho de
banana madura que Mané Cacunda garantia ter avistado. Expedito foi direto pra lá, onde
comeu algumas, chupou cana, bebeu água de côco e deitou-se na sombra dessas bananeiras.
Pouco depois, ouviu um chiado nas folhas secas e notou logo que era MInervina, que tinha
sentido falta deles e já saiu à procura deles no destino certo e já previsível. Foi bater lá atrás
deles por que queria que a ajudassem a dar comida aos porcos. De súbito ela deu um pulo:
- Peguei vocês, mói de muleque traquino!
Mané Cacunda tinha se esquecido de desarmar a arataca de pegar preá chupador de
cana, e por falta de sorte, quem caiu nela foi Minervina, enfiando toda a perna direita. Vale
ressaltar que Mané Cacunda era doido por ela, mas viviam arengando e a coisa nunca virava
um namoro sério. Enfim.
Para tirar ela desse buraco, deu um trabalho danado. Porém quando Minervina se viu
livre da arataca, ela ficou valente, pegou Mané Cacunda pelo braço, e deu-lhe meia dúzia de
sopapos nas ventas dele.
- Comé que você faz uma coisa dessa cum eu, caba senvergõe?!
Tempos depois, Zé Alves foi até o sítio casa de Simeão Gentil, e mandou Minervina
cozinhar dois tachos de jirimum para dar aos porcos.
- Tá bem seu Zé, mas Ixpedito vai ajudá eu. - sentenciou ela.
E assim foi feito, depois de tudo cozinhado, ela chamou Expedito para ajudar a tirar os
dois tachos de cima do grande fogão e como Expedito era miúdo, teve que ficar em cima
deste, e com muito sobe e desce da parte dele, finalmente conseguiram botar um tacho no
chão. Sobe novamente e segura na asa do outro e lá se vem pela beira daquele fogo terrível,
mas de nada podia reclamar, pois Minervina não admitia moleza e com muito sacrifício o
outro tacho chegou ao chão sem problema. Agora era só deixar esfriar e distribuir entre a
porcaiada que há muito tempo grunhiam no pé da porta por causa do cheiro. Nisso, Alfredo
Putruco chega com os braços carregados de lenha e joga perto do fogão. Uma lasca levantou a

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ponta que veio no rumo de Minervina que, para se livrar dessa lasca de pau, pulou de costas e
pisou bem no meio de um dos tachos de jerimum quente. Pronto! Lá se vai mais descontos de
pecado da pobre Minervina. Foi bater em Patos e tudo para enfaixar a queimadura.

CAPÍTULO XXIV
Que diabo de tanto cachorro é esse?

- Bom dia cumpade Jusé....


- Opa, bom dia cumade Marvina, imburaque pra cá e pux’uma cadêra!
- Nam, cumpade Jusé, eu tô avexada.
- Aguma coisa ruim?
- Mais umeno, viu...
- Como assim?
- Eu só vim sabê do sinhô quantos dos seus cachorro dorme dento de casa toda noite.
- É o quê, homi?
- É, é isso mermo!
- Mais Dona Marvina, quem já viu cachorro durmi dento de casa? E eu lá sei se os
cachorro daqui dorme no sitio? Cachorro é cachorro! Véve no mundo. Eu nem se qué sei
quantos é ao todo. A maiuria é lá de Santa Teresinha, vem pra cá só cumê, mais né meu não.
Por que essa pergunta?
- É porque eu tem uma quêxa braba pa fazê desses seus cachorro que tão robano lá im
casa, e pa num fazê jugamento pricipitado, eu tumei o cuidado de siguir os rasto deles saino
de sua casa, ino pa minha e vortano da minha pa sua, pra lá e pra ca, e vortando travez, e
visse verso, e ao contraro.
- Ta bom, chega de conversa fiada Dona Marvina, eles robaro o que lá?
- Homi, cumpade Jusé, o prijuízo é grande!
- Como assim muié?
- Homi, cumpade, Todo dia Joca, meu ispôso rebola a tarrafa no açude pa pegá umas
suvela, bota no cambito pa secá, e quando Chiquinha, a minha moça vai pegá pa butá na
panela só acha os cotôco, só acha as cabeça! Joca pega preá, pega punaré, pega téjo, aí
pindura pa secá lá na vara e eles carrega é tudo! Onte mermo, ele pegô um camalião grande
que paricia um cocodrilo! Quand’ele trouxe pa casa eu tirei o côro, sarguei, e butei lá pa secá
e quando Chiquinha foi pegá ele pra fazer a janta, só achô o cascão. Carregaro cum cordão e
tudo! Rebãe de cachorro ladrão do djabo!
- Ah, dona Marvina, aí a sinhora tomém tá quereno dimais...
- E Por causo de quê, seu Zé?
- Ora por causo de quê? Se teu marido pega as suvela é no meu açude, se pega preá é
na minha roça, se pega punaré é lá nas minhas capuêra, se pega camalião é lá nur meus pé de
oiticica, intão o certo era que, quando ele quando pegasse um bicho desse, vinhesse me trazê
uma banda aqui, nera não? E não mandá a sinhora vim dá quêxa dos cachorro aqui do sítio! E
ói, me faça um favô, num me fale mais nisso nisso não!
- ...
E como podemos ver, reclamações era o que não faltava naquele lugar, mas Zé Alves
era um homem de temperamento muito forte, por isso mesmo, conseguia administrar o
Lameirão todinho e boa parte do sítio Queimadas com pulso firme, mas de forma recorrente, o
aborrecimento dele era com os tais cachorros.

140
- Mineivina, chame Cacunda aqui, mais num vá ficá dano corda pra ele não, tá uvino?
- Aqui eu, seu Zé, agora eu num pudê nem mais dá bom dia pa Manézim, que o sinhô
já fica brabo...
- Num dá certo isso aqui não. Vá logo chamá ele, vá...
- Já vô.
Logo Mané Cacunda se apresenta, todo desconfiando.
- Oi, seu Zé...
- Já deu de cumê pus bicho?
- Já, seu Zé.
-Tá certo. Eu quero que você vá na rua. Vá lá na casa de cumpade Ciço e peça pa ele
le acompanhá até a casa de um veterináro pa vim aqui mais você capá esses bicho tudim.
- Onde é que fica a casa desse Ciço?
- Ele tem um armazém de agudão na linha do trem. Chegue por lá perguntano por seu
Ciço do armazém e peça pa ele ir mais você atrás de um veterináro e diga pa ele vim aqui
amanhã cedo pa capá um mói de bicho aqui.
- Mais seu Zé, num tem bicho ninhum fartano capá não...
- Eu num vô capá bicho de curral não, Mané, eu vô é mandá capá esses cachorro
mamanaégua, que num sai do pé do pé da porta daqui de casa, principalmente no dia que
Mineivina trata cumatã.
Como de fato, pois, para todos os lados que se olhava, só se via cachorro sarnento
espalhando carrapato, engatado numa cachorra, latindo suplicantemente, e dando carreira na
pobre de Minervina e em tudo que era passante. Era uma coisa de dar dor de cabeça, até em
cabeça de prego e dor de dente em serrote. E tem mais uma coisa! - Continuou Zé Alves:
- Eu nunca vi um djabo pa rendê tanto. As cabra num rende, as uvêlha num rende. As
vaca, nem se fala, mas as cachorra, é parino direto, é de oito duma vêiz e eu acho que até os
cachorro macho tão dano cria também, por que toda hora aparece uma ninhada nova, e essas
djaba quando tão parida fica braba, fica ladrona e róba tudo que é coisa nessa casa, vão na
tigela dos porco, lambe a nata no chincho, come o indez do nim das galinha, cumero o indez
do nim das pirua, daqui a pouco eles vão cumê até o galo, qué vê?
- O sinhô tá reclamano que as galinha num rende, seu Zé? - Replica ele.
- Rende o quê? Nessa seca toda semana eu tem que vendê uma pa pudê comprá de
xerém pas ôta que sobrô. Cum pôco fica só o galo.
- Pió que é verdade, seu Zé…
- Ora se num é! E ainda vem cumpade Inaço perguntano quedê minhas galinha. Tão
tudo saino pelo fiofó desse galo!
- Pois é, seu Zé.
- É luta, minha fia...
- Intão eu faço o quê, seu Zé?
- Vá logo e diga pra ele trazê a navaia de capá gato, cachorro, galo, pôico e tudo mais,
traiz também o de capá cavalo. E mande ele trazê tomém a de capá minino.
- Oxe, e pra quê seu Zé?
- Pra capá tu, pra tu num bulí mais com Mineivina.
- Oxente, eu mermo não! Vôte!
- Eu sei de tudo! Ixpedito e Piôi é quem dá a nutiça. Vá logo, Mané. E dêxe de
cunvessa fiada, que eu num sou cego nem môco não. Eu sei de tudo, tá uvino?

141
Posteriormente, eis que chega no sítio o velho veterinário Pedro Torres no seu jipe.
Chegou logo cedo, e mais cedo ainda tinha se levantado Mané Cacunda, pois já tinha gasto
vários metros de corda amarrando cachorro no tronco de um pé de pau.
Quando Mané Cacunda viu Pedro descendo do jipe com tudo que era qualidade de
faca de dentro de um bisaco e amolar numa pedra, ele começou a tremer, suar frio, ficar
branco, pois se lembrou do que Zé Alves tinha prometido de fazer com ele o mesmo que ia
fazer com os cachorros, e então Mané alegou que não ia poder ajudar a segurar os cachorros
por que estava com muita dor de barriga, e Minervina fazia sinais pra ele sair dali, já que a
situação não estava boa. Chamaram então Alfredo Putruco pra ajudar e esse pegou o primeiro
cachorro pelo rabo, enfiou debaixo do sovaco e apertou o braço, apertou mais, gritou:
- Chega logo seu Pêdo, eu num aguento mair não, o cachorro tá mordeno minhas urêa!
Chega logo!
Vale ressaltar que esse esperneio dos cachorros era apenas para aplicar a anestesia.
Depois o resto era fácil.
Como de fato. Não podia mesmo aguentar, pois o cachorro tinha rasgado a camisa dele
com as mordidas, mordido ele todo e feito um estrago terrível nos braços e costelas e na
orelha dele, apesar de muito prático esse jeito de segurar cachorro para castrar, bastando antes
de aplicar a injeção colocar uma focinheira improvisada (nos mais mansos, que deixavam
colocar).
Desse último cachorro, parece que a anestesia não pegou direito, sei lá, pois Pedro
conseguiu tirar só umas das bolas, e ao puxar a outra, Putruco não aguentou mais, afrouxou o
braço, e o cachorro escapuliu. Pedro ficou com a faca em uma mão e uma bola do cachorro na
outra. O bicho correu pro mato arrastando o outro ovo, ganindo alto e o pobre do Alfredo por
nada mais deste mundo queria segurar cachorro. Como Mané repentinamente havia ficado
sem “condições” de ajudar, o Pedro veterinário teve que usar da sabedoria, então com as mãos
enroladas num saco de estopa, pegava cada cachorro pela corda, o espremia a porta, isto é,
ficava cabeça e mãos para um lado, pernas e rabo pro outro lado. Aplicava a injeção e cinco
minutos depois o resto do serviço se concluia. Foi o dia inteiro assim. Putruco forçava a porta,
Minervina segurava as pernas e levantava o rabo, e Pedro executava a operação com
habilidade, e ao terminar o trabalho com os cachorros, Zé Alves resolveu capar também o
jumento. Porém Minervina logo se opôs, argumentando que ele não podia fazer isso com o
bichinho, pelo contrário devia era pegar a jumenta de Malvina, e botar junta com ele pra fazer
pelo menos uns dois ou mais jumentinhos, pois a quinta perna do coitado só vivia daquele
jeito.
- Ah não, Mineivina, esse aí num faz fíi não. Tá véi… - assegurou Zé Alves.
- Por quê num faz filho, seu José? - Perguntou Pedro Torres.
- Por causo que ele num sai de cima da jumenta de seu Dodô, e eu nunca vi nascê
ninhum jumento dela.
- Quanto tempo faz isso, seu Zé? - Perguntou Pedro.
- Já faz é dois ano, e Mineivina fica só olhano esse siviço nojento... - Responde ele,
enciumado.
- Eu merma não, vôte!
- Ah! Seu Zé Aivo, jumento passa de dois a três ano no bucho da mãe, e só nasce no
dia que quer… - Brinca Pedro.
- Ah e é ansim, é? Eu num sabia dessa não, seu Pêdo.

142
- Pois é, eu já vi isso muitas vezes. Ele bota a cabeça pra fora, olha o tempo, se tá
chovendo e recua, aí depois só na outra Lua, e assim vai levando. Espere mais um ano, Seu
Zé...
- Eu vô isperá intão. Possa sê que naisça um jumentim, intão uma banda é minha e a
ôta é do véi Dodô. Mais se nesse tempo num naiscê nada, aí minha fia, eu mando cortá pelo
tronco aquela sacaria dele, aí ele vai deixá de mordê o povo, purque por causa dele ser intêro,
é que quase matou o pobe de Putruco naquele dia que a corda do cabrêcho dele inrolô no pé
do coitado e saiu puxano ele a tarde todinha lá pelo roçado, e é por isso que até hoje ele puxa
daquela perna.
- É mermo, seu Zé. O pobe de Putruco é sem sorte, viu o que o cachorro fêiz hoje cum
ele?
- Vi, Mineivina, mais era bom que fosse Mané Cacunda no lugá dele… Aquele cagão.
Mesmo assim com esse controle rigoroso na natalidade dos cachorros, não faltava
ninhada de cachorro para aborrecimento do Zé Alves, e toda hora aparecia outros cachorros
machos que vinham da vizinhança, ou vinham de longe, até de Patos, para substituir os que
tinham sido capados, pois as cachorras fêmeas não ficavam sem um namorado e dias depois,
mais reclamações:
- Seu Zééé. Ô seu Zéééé, os cachorro tão na cuzinha cumeno as batata!
- Corre lá, Mineivina, pra ajudá Ixpedito a butá os cachorro pa fora, depois, feche bem
aquela porta, foi você merma que dexô aberta!
- Não foi eu não, Seu Zé, foi Ixpedito!
- Oxe, foi ela, padim Zé! - Rebate Expedito.
….
- Ixpedito, amanhã seu Zé vai pa rua e você vai me pagá caro o mí que a cabra cumeu,
viu? Cuxtava dizê que tinha sido tu, fresco? - Reclama Minervina.
- Oxe, num foi eu não, minha fia! Agora deu mermo!
- Ó, seu Zé, chegue vê o buraco que os cachorro fizero do fundo, onde fica o paió de
míi, e Mineivina tá dizeno que eu dexei a porta aberta pra eles entrare.
- Ô Mineivina, você num tinha dado fé disso não?
- Não, seu Zé, eu num tinha reparado isso não! Foi mermo na hora que eu disci cum
dona Regina, Marina e Quinha lá pa casa dar minina levano as coisa na charrete mais Mané.
- Oxe, e logo cedo todo mundo dessa casa já iscapuliu? É só eu sair?
- Foi, aí quando eu cheguei na charrete mais Mané tava aí o dirmantelo...
- Você num tem tempo pra vê os cachorro furare um buraco na parede tão perto da
cunzinha, onde você fica o dia todo, mais tem tempo pra tá pra lá e pra cá mais Mané
Cacunda nessas bêra de camím* caminho, agora você me diga que é mintira, diga!
- Eu merma não oxente, é Putruco que tá inventano isso, seu Zé, por causo que eu num
quero ele! Bicho véi fêi do bigodão de arame!
- Inventano não, que eu já vi você lá no armazém de noite com ele!
- Eu fui lá levá fumo pra ele, seu Zé…
- Eu sei que fumo você foi foi levá… - Sussura Miguel Bento, que estava perto.
- Você cale a boca que num le dei cabimento não, muleque semvergôim!
- E por quê ele num vem buscá aqui? Você vai pra lá é pra se agarrá mais ele. - Rebate
Zé Alves.
- Eu merma não, ôxente!

143
- É sim, Ixpedito já viu tombém, e já deu! O jeito que tem é pegá o pilão e apoiá na
parede pra tampá o buraco, inquanto eu vorto da rua, pra mandá ajeitá; passá uma mão de
barro!
Esse problema dos buracos na cozinha era constante na casa de Zé Alves. A casa era
grande e robusta. Cada tijolo era grosso e largo, pesava uns quarenta quilos, cada. Mas, por
alguma razão, a cozinha das casas naquelas redondezas, mesmo a das casas mais abastadas,
não tinha as paredes de tijolo, e sim, de taipa, então qualquer força era capaz de derrubar o
barro, abrir um buraco e adentrar a cozinha. Essa seria uma questão e tanto para o sociólogo
Gilberto Freire discutir.
- Mas o sinhô sabe que só um caba parrudo pa levá o pilão até lá, né?
- Você só fala im caba forte, né Mineivina? Intão Ixpedito fica na boca do buraco pra
vigiá os cachorro até Mané Cacunda e Alfredo Putruco chegare da roça, mermo assim eu não
sei se aqueles dois cagão vão dá conta de levare o pilão ate lá não.
- Dá, seu Zé.
- Ainda bem que tu já cunhece a força de Mané Cacunda, né, Mineivina?
- Num cunheço nada não, Seu Zé… - É uma implicância de Zé Alves, não é mermo?
- Ói, Mané Cacunda já vem chegano, Mineivina… - Aponta Expedito.
- Já vi. mais eu quero que você fique ai até de noite.
O pior é que quando Zé Alves sai, todo povo da casa de Zé Alves sai também. Nita
pega um cavalo e se dana para casa de Detu, nora do doutor Baracuhy, Regina, Marina e
Quinha descem para a casa das meninas, vão comer lá, passar o dia lá, jogando carta e dominó
e falando de política. Nisso, fica a casa sozinha. Ninguém para dar uma ajuda ou orientação
aos que lá ficaram. Por sorte, na hora do acontecimento foi bem quando os dois trabalhadores
vinham chegando, no fim da tarde, com Zé Alves.
- Graças a Deus! - Diz Expedito – Putruco e Cacunda chegaro, mande logo eles butar
o pilão aqui!
Zé Alves já chega botando ordem no poleiro:
- Mineivina, minha fia, mande eles tapá esse buraco ligêro, hômi. E você vá butá logo
a janta na mesa, antes que fique iscuro. E você, Migué Bento, num vá ficá atentano Mineivina
amenhã na minha ausênça, você já sabe que ela me conta tudo.
- A janta tá pronta, padim Zé Aivo?
- Minino, tem uma coisa, tu só pensa im cumê, é seu Ixpedito? Eu num sei não.
Cheguei agora.
- Foi Mineivina que mandô perguntá...
- Se ela que faz o cumê pergunta uma coisa dessa, é por que hoje o cumê sai tarde!
- E até lá eu fico fazeno o quê?
- Vá vê se ela tá nos iscuro mais Cacunda.
- Tô aqui seu Zé, ôxente.
- Intão, inxombre* prepare uma massa de cuscuiz aí pra nois, e mais tarde num é pra ir
levá fumo pra seu ninguém.
- Tá certo, seu Zé.
- Quedê o povo daqui?
- Fôro lá pa casa de dona Arcinda mais Sivirina. Nita foi lá pra dona Detu mais
Quinha.
- E o buraco?
- O buraco tá tampado, seu Zé…
Instantes depois:

144
- É, tá tudo muito bom, todo mundo já jantô, intão vamo durmir que amenhã tem que
levantá cedo pra pegá o jumento e levá a carga de banana pro barracão de Pedro Gentil, que
eu vô im Patos logo cedo de novo.
- Tá bom seu Zé, boa noite. - Dizem os empregados
- Até amenhã, vocêis…
- Boa noite. Fuu!! - Apagando o candeeiro.
E de madrugada o jumento Capricho Louco relinchou, Cacunda acordou e foi buscá –
lo. Colocou a cangalha e teve que se abaixar pra pegar a ponta da cia por baixo da barriga
dele, e o jegue não gostava nem um pouco disso, mas mesmo assim ele conseguiu apertar a
primeira cia*, cinta afivelada e essa repuxou os cabelos da barriga e o jegue ficou mais aborrecido
ainda, e quando o rapaz se abaixou pra pegar a ponta da outra cia, o jegue que já estava
danado da vida, murchou as orelhas e cravou os dentes numa banda da bunda do pobre, e esse
deu um grito que acordou todo o Lameirão.
A cia que já estava apertada e afivelada puxava os cabelos da barriga do jumento e ele
continuava fisgado na bunda do Mané Cacunda, que não parava de gritar pedindo ajuda a tudo
que é de santo lá do céu e quando o grupo de socorro chegou no local do sinistro, ficaram sem
saber o que fazer, por que o Cacunda estava de quatro pés e o jegue de dente fincado numa
banda da bunda dele sacudindo de cima a baixo; foi preciso usar o cabo de uma foice e um de
machado pra abrir a queixada do jumento, livrando assim aquele trabalhador daquele
sofrimento terrível. Com isso, por um bom tempo, ele ficou sem poder andar direito nem fazer
os serviços.
Tempos depois, quando ele retornou às suas atividades, Zé Alves mandou Mané
Cacunda levar as bananas, mas recomendou:
- Ói, Mané Cacunda, num ande na frente desse jumento mais não. E você, Minervina,
vá lavá a trôxa de rôpa lá no barde do açude, feche a casa e leve a chave se não ur minino vão
cumê as batida e os afinim que Regina fêiz e que tão guardado nos pote de farinha na
dispensa, ta uvino?
- Tô sim, Seu Zé, e o sinhô mande também ur minino butare água pa inchê o tacho do
batedô de rôpa. Sozinha eu num aguento não!
- Tão ouvindo Migué mais Ixpedito?
- Tamo sim, padim Zé Aivo.
- Então tá certo.
- E agora eu vô ino que o caminhão pela zuada já tá vino perto.
Nisto, Minervina ordena a Expedito e Miguel Bento:
- Vão pra fora, que eu vou fechá a casa pra ispaná.* espanar, limpar as telhas das teias de aranha.
- Mineivina , bem que tu podia apruveitá o fugarêro aceso e cunzinha uns ôvo de
capuêra pa nois...
- Não sinhô! Hoje aqui niguém vai comê nada! São* saiam logo daqui, são! Xô!
- Intão nóis num vai. Pronto! - Retruca Miguel Bento.
- É milhó vocês fazêre o que eu falei, sinão...
- Sinão o que? Intão nois dois num vamo butá água pra você lavar a rôpa, nóis vamos
é cumê juá o dia todim. Pronto!
- Intão eu num vou lavá a rôpa de vocês; principalmente aquelas cirôla cum catinga de
mijo e freada de biscreta, e quando seu Zé chegá vocêis vão vê!
Distante dali, avistando Mané Cacunda já tendo chegado do barracão, Zé Alves
ordena:

145
- Cacunda, você já descarregô as banana, vá logo simbora, e diga a Mineivina pa dá o
armoço dur mininos na hora certa.
- Tá certo, seu Zé.
Nisso, se despedem e Mané Cacunda toma o rumo da casa sede do Lameirão: -
Agora, jumento danado, eu vô é se vingá de você! Eu vô muntado im você e ainda vô butá os
pé dento dos caçuá.* caçoá, espécie de cesto de carregar mantimentos, que se prende no corpo do jumento.
Potoc, potoc, potoc; passou na casa de Inacio, pela de Mané Roldão, pela estradinha
que dá acesso a de Zé Pajaraca, dobrou pra esquerda depois virou pra direita e seguiu em
frente.
- Djabo! vô tê que descê pa abrí aquela purtêra! Eu passei e dexei aberta e já fecharo!
Iaahhh, pare ai jegue danado, eita pau!, lá tá Mineivina lavano rôpa e eu vou gritá pra ela vim
abrá a purtêra!
- Mineiviiina!!
- Wuuuuw!
- Abra aqui pra mim a purtêra, chegue!
- Já vô... Mais agora se você vai vim butá água aqui pra min lavá a rôpa...
- Tranquilo...
- Num pricisa você vim abrí não, eu vô butá água pra você lavá a rôpa, e depois você...
- Epa… Você... Eu o que?
- Hum assim não, Manézim... ur minino vão ver… Tira a mão daí, rapaiz!
- Oxe, vê o que?
- Você me pegano. Sai...
- Ah, intão eu já vô.
- Venha logo butá a água, chegue!
- Vô, tô ino. Arre!
- Vem logo, chega pra cá.
- Pronto cheguei, sai do mêi... Agora eu vô inchê tudo de água pra você. Depois...
- Tá bom... Ai aiii me sorta Manézim semvergõe, agora vá que eu termino já, e vô fazê
o armoço pa nóis dois. Arre Maria!
- Ah, eu só vô armunçá lá pra mais tarde, por que eu vou lá nas Queimada tapá uns
buracos de ceica.
- Ta bom, aiiii tá booomm, eu chamo ur minino pa me ajudá a levá a trôxa de rôpa
moiada!
- Intão xau. Me dê um xêro...
- Ave, Mané pelo qu’eu tô veno só qué apertá eu… Casá qué bom, nada! Só qué
aparpá eu... Opa. ‘inda bem qu’eu terminei. Agora eu vô gritá pa chamá ur minino pa me
ajudá…
Minervina sobe em uma pedra de cerca de metro e meio, que amplia sua visão para o
grande planalto que é o Lameirão e brada:
- Ixpediiiito! Migué Beeento!
Que prontamente de longe respondem:
- O que, éééé???
- Venham cá me ajudaaaá a levá as rôooopa!!!
- Nóis ganha o quêêêê?
- Quando eu chegá em caaaaasa dou a cada uuuum de vocêêêis... um taco de rapadura
beeeeem grande!
- Intão nóis vai, bora Migué, bora!

146
Nisso, chegando no local, recebem as instruções:
- Agora vocêis pegue d’um lado da bacia qu’eu pego do ôto, e vamo andano ligêro,
ligêro, mais ligêro… Bora… Sol quente da mulexta!
- Tá pesano muito, Mineivina, peraí… Xeu mudá de mão...
- Tá chegano, já já a gente chega!
- Tá pesado, tá pesado. Aiaiai...
- Pronto, cheguemo! Bote aqui na carçada, que agora eu vou abrí a porta... Oxe, cadê a
chave? Vocês viro?
- Vimo nada não…
- Onde danado eu butei? Vala - me Deus, será que eu pirdi? Vô lá no açude vê se ficô
lá na táuba!
- Oxe e nóis fica aqui trancado do lado de fora, Mineivina?
- Peraí qu’eu já vem!
E assim, Minervina faz o percurso de volta, tentando achar a bendita chave.
- E agora meu pai do céu? Aqui tombém num tá não. Será que quando eu sacudi a rôpa
ela caiu dento d’água, ou da trôxa de roupa? Tô veno que tombém num tá. Minha nossa
sinhora, o que é que eu faço meu Deus? Já sei! Lá no pitisqueiro tem ôta chave e eu vou entrá
pelo buraco que os cachorro furaro na parede e aí eu passo pa cunzinha e de lá eu entro im
casa e pego a chave... Ah, mais tem o pilão e quem vai tirá de lá? Putruco num pode nem andá
direito por causa da mordida daquele djabo daquele jumento... Mané num tá aqui.
- Ô Ixpedito mais Migué, vamo vê se nois tira o pilão lá da boca do buraco que os
cachorro fizero na parede do fundo...
- Ah, Mineivina , nóis trêis num vamo tirá ele de lá é nunca!
- Eu dou um taco de alfinim, pa cada um de vocêis...
- Apois intão me de logo.
- Como, meu fíi? Se a casa tá fechada? Ô inteligênça! Me ajude a tirá a lajota de péda
que eu entro pelo buraco, aí pego o alfinim pra vocêis. Intão vamo, pegue desse lado, bote
força. Boraaa!!!
- Ixpedito, cuidado se não a lajota ela cai no seu pé aí tu apruma! Impurra, Migué, vá
girano, vá... Tá quase bom, ai já dá pra entrá. Pronto.
- Tá penso*, torto , Mineivina, vai caí...
- Cai não, vocês fica sigurano que eu já vô entrá mais muito cuidado, sinão...
- Ah não, Mineivina, aqui tem furmiga preta, e tá ferruano nos meus péis!
- Sigura que eu já enfiei a cabeça!
- Intão entre logo toda, Mineivina do djabo!
- Perainda... Ai, num vai passá meus ombro não... passô, passô... Agora é a cintura...
Pronto… Passô tombém... Agora é a bunda que num passa... Ai meu Deus... Num vai dá pra
passá não…
- Ixpedito, deixe Migué sigurano o pilão, e você tente tirá esse tijolo, que ta impidino
que minha bunda passe.
- Eu num siguro só não, Mineivina, ele tá penso*. torto
- Ai, as furmiga tão mordendo meu bucho, eu bem que falei, eu vou voltá, ai meu
braço tá preso aqui, ai as furmiga, ai meu Deus ai, puxe aí a minha saia, e cubra minha bunda
aqui. Vala me Deus!
Mas a tal saia tava lá perto do pescoço dela.
- Sigura MIgué, sigura Ixpedito, o pilão vai caí por cima de Mineivina... Caiu, ai, ai,
ai.

147
- Corre Ixpedito, vai chamá Putruco.
- Ai, ai, eu já tô aqui mais num posso andá não, vão buscar Mané Cacunda.
- Não, não, eu num quero que ele me veja assim não, com a saia no espinhaço, e sem a
rôpa de baixo, vão chamá a mulher de Manoel Féle e a mulher de Chico-tripa. Vão!
- Mais elas num vão levantá esse pilão não.
- Levanta. Putruco ajuda!
- Vão simbora que eu tô me acabano de dô aqui meu Deus!.
- Vão correndo, ai meu Deus aiaiai, as furmiga vão me comer viva, e essa dô horrível
nos quarto, eu acho que o pilão quebrou meu espinhaço.
- Quebrô não, Mineivina.
- Vá simbora daqui, Putruco e não olhe pra cá não! Aiaiai ur minino já tão vino? Ah já
vem com Chiquinha de Mané Fele, e a muié de Chico-tripa, ai ai ai aiiiiii me tire dessas
furmiga do djabo!
- Cheguemo, Mineivina. Ave Maria, como foi isso?
- Depois eu digo! Pegue aqui na minha mão e puxe, cumade!
- Num dá pa levantá não, cumade Chiquinha.
- Bote força cumade, que dá!
- Já butííí cumade, lá vem Mané Cacunda, chame ele aqui...
- Não, não, chame não, dona Chiquinha, ai as furmiga, cubra minha bunda!
- Num tem cum que, a saia ta lá pra dentro, e a casa tá fechada, ai meu Deus ajude aqui
Mané! Mané Fele também chegô, junta todo mundo! vamo, vamo, vamo, levanta, levanta!!!
- Tiramo o pilão, agora puxe ela pelas perna, Cacunda, impurre o braço dela, assim,
pronto, saiu, saiu! Graças a Deus!
- Agora Ixpedito que é miudo entra. Onde tá a chave, Mineivina?
- Tá na gaveta do pitisquêro… Ai...
- Sente aqui Mineivina , que eu vou fazer um chá de capim santo pra você tumá. tá
dueno?
- Tá dueno tudo e ardeno os murdido das furmiga...
Ainda bem que a bunda de Minervina serviu de almofada natural e ajudaram a
amortecer a pancada do pilão.

CAPÍTULO XXV
A Ajudante de Minervina
Regina, esposa de Zé Alves se compadeceu da situação em que Minervina estava
vindo trabalhar. Devido aos machucões que tinha sofrido recentemente, até para subir o alto
para vir trabalhar era um suplício.
- Ô Mineivina, tu num qué uma pessoa pa le ajudá aqui não, inquanto tu termina de
miorá?
- Ô, dona Regina. Ia sê tão bom. Eu tô toda banida ainda... - Diz Minervina, meio que
encenando também.
- Intão apois chame arguém pa le ajudá, que nessa semana a gente paga e assim você
discansa.

148
- Nam, dona Regina, ansim, não! Eu vem trabaiá, arre Maria! Priciso do dinhêro
dimais!
- Não, criatura de Deus! Você vem, até pa ir dizeno o siviço que tem que fazê. Só num
vai pegá no pesado, é isso qu’eu tô le dizeno.
- Ah, bom. Intão tá certo…
Minervina tratou de pensar logo, pois a ideia de uma ajudante para os afazeres ali no
sítio era muito atraente. Com isso, podia até ir para casa mais vezes, fazer companhia à sua
velha mãe rezadeira. Pensou, pensou e não lhe veio na lembrança ninguém nas proximidades.
Exceto uma: Dasdores.
Essa criatura em questão, morava sem marido e com uma penca de filhos para criar.
Dizia para os compadecidos que o pai das crianças estava trabalhando em São Paulo e em
breve iria buscá – los. O interessante era que aparentemente o marido vinha de São Paulo na
surdina, fazia mais um filho nela e pistava de volta para São Paulo sem ter dado um bom dia a
ninguém. Outro fato é que nessa história, já existiam 6 crianças pequenas naquele casebre,
uma verdadeira escadinha. No seu documento tinha lá: Maria das Dores de Jesus. Entretanto,
a única dor que realmente ela entendia era a dor do parto. O fato é que cada menino dela era
bem diferente um do outro; e meio que parecido com os cabras dali.
Todos no Lameirão que sabiam qual era a finalidade daquela mulher morar por ali e
como ela se mantinha, já que não tinha nada plantado ao redor da casa dela. Quando uma
mulher perguntava sobre ela, rapidamente os maridos botavam p’ra tossir e desconversar. A
um ou outro que perguntasse, Dasdores dizia ter tinha vivido muitos anos entre um bando de
ciganos e outro. Foi aí onde ela aprendeu a fazer tudo que não presta, pois ela sabia roubar
uma galinha na frente do dono e este não via. Não sabia entrar na casa de uma pessoa e não
levar uma “lembrancinha” qualquer sem o anfitrião saber. sabia como tirar o cascão das patas
de uma galinha velha, escovar a penugem, pintar as penas brancas e o vender como se fosse
nova.
Olha só quem Minervina convidou para ajudá – la nas lutas da casa de Zé Alves! No
primeiro dia que trabalhou lá (até bem, varreu tudo, lavou, espanou), na hora de ir embora,
Expedito flagrou ela arrodeando o terreiro da casa em ponta de pé, dirigiu – se até o pé de
pereiro que servia de poleiro das galinhas e agarrou - se com uma. Quando Expedito
correu para pegá – la no flagra, ela se defende:
- Oxe, minino! Tá me ispiano, é? Saia daí, saia!
- Tá fazeno o quê aí com essa galinha?
- Oxe, eu vim mijá aqui! Será pussive que nem isso uma mulé direita pode fazê
sussegada que vem logo muleque véi inxirido ispiá?
- Oxe, oxe, oxe! Eu vi direitim a sinhora bulino aí nas galinha de Padim Juzé!
- Oxe, você tá veno arguma galinha na minha mão, tá? - Retruca ela, mostrando a
palma das mãos. Eu só vim mijá. Pirdi até a vontade. Vô mimbora!
- E tá andano assim toda dura por quê? Tá cum morroia, é?
- Não! Eu ia mijá mais você num dexô. Eu vô fazê im casa. Xau!
Expedito, no alto de sua inocência, foi enrolado na conversa e não percebeu que ela
tinha enfiado a galinha embaixo do vestido. Deste dia pra frente as galinhas dos moradores da
redondeza, sumiam misteriosamente. Uma a uma.
Mas as pessoas sabiam que, o destino final delas era a panela daquela distinta senhora,
Ela, que era na verdade é uma ladrona fina, daquelas bem ruins, no fundo, sabia dar lição em
raposa, para esta aprender como é que rouba galinha. Agora verdade seja dita: Dasdores a
danada era atraente. muito mesmo, Pescoço fino e comprido e o rosto esguio, sempre coberto

149
por uma boa pá de pó de arroz, o bucho era pra dentro, que nem bucho de cachorro, cintura
fina, quadrilzão largo, mas muito largo mesmo. Só em porta muito larga Dasdores passava de
frente. Nas portinhas das casas dos sítios por aí, era só de lado, e ainda a bunda enganchava
no ferrolho. As pernas, as coxas então? Meu pai do céu. Eram graúdas demais. Por isso que os
cabras ficavam tudo doido. P’ra fazer um vestido pra ela, era preciso todo o pano vendido de
uma loja; uns cinco carreteis de linha p’ra costurar. Não era uma grande mulher, mas sem
dúvida, era uma mulher grande.
Mesmo afirmando ter esse marido em São Paulo, ela tinha uma fama terrível de ser é
mulher de vida fácil por ali e que sua residência na verdade era uma casa de recurso, e que
esse tal marido só existia na cabeça dela e nas desculpas que dava às senhoras que lhe
cobriam de perguntas no caminhão da feira, porque o comentário que rolava solto no
Lameirão era que Dasdores só vivia trancada dentro de casa se esfregando com os cabras e
para tanto deixava seus filhos soltos por aí, e Alfredo Putruco, que era freguês a apaixonado
por ela ao mesmo tempo, se comia de ciúmes quando ia atrás dela e encontrava portas e
janelas trancadas. Dasdores chegou no Lameirão em 54. O mato estava alto e do nada ela
ocupou uma casinha abandonada próxima à casa do velho Zé Pio, de propriedade do doutor
Baracuí. A princípio, até pensaram em expulsá – la dali. Mas dada a sua súplica, e aquela
filharada, o velho magnata permitiu que ficasse. Três anos se passaram e depois de muita
insistência, Alfredo Putruco a convenceu a morar com ele, prometendo que ajudaria a criar
seus três filhos pequenos. Nesse convívio com Putruco ela engravidou outras duas vezes,
abandonando de vez a história do marido que nunca vinha lá de São Paulo. Quanto a esses
dois últimos filhos cuja paternidade em tese deveria ser de Putruco, as más línguas diziam que
cada um tinha outro pai: Do mais velho para o mais novo, de acordo com a semelhança,
temos: O pequeno Chiquinho só podia ser filho do Chico Pirrita, a Marileidinha era filho de
Maurilio do bode, O Pedrinho era filho do Pedro Madaleno, o Zezinho era filho do Zé Brito
de Antônio Gonzaga, o Toím só podia ser filho do Antonio Sapateiro pois até um sinal igual
nos queixos ele tinha, o Biuzinho era filho do Severino da Quixaba, o Mundinho era filho do
Raimundo Torres, Toinha também era filha do velho Antonio Gonzaga, (Ô “véi” danado!) e a
Biuzinha era filha do Severino Capa-tudo lá do juremá. Se o que o povo dizia era verdade, O
pobre Alfredo Putruco não era pai de nenhum só podia ser estéril. E não era pra se duvidar,
porque cada menino era diferente do outro, tanto na cor do couro, do cabelo e do tamanho das
orelhas.
Dasdores também era lavadeira e engomadeira de roupas, e vendia seus serviços às
famílias da vizinhança. Como Vicência, Abigail, Regina de Zé Alves, Rita de Inacio a entre
outros. Aproveitava a noite para engomar as roupas que tinha lavado durante o dia. Quando
pegava no ferro de passar, não parava mais de cantarolar e dançar em volta da mesa de
engomar, e isso deixava Alfredo Putruco mais aborrecido ainda. Era lavando roupa lá na beira
do açude que ela tinha adquirido proximidade com Minervina e lhe tirado muito da inocência.
Daí pra frente, as duas ficaram amigas inseparáveis. Quando andavam juntas nas festas, dava
muito que falar, gostavam de dançar mazurca e o xaxado da terra na ponta dos pés, e não
perdiam uma pandega fosse ela onde fosse. E de preferência longe pra Alfredo Putruco não
poder ir por causa das obrigações de seu trabalho para Zé Alves e também para que ficasse em
casa cuidando dos meninos, e quando Dasdores chegava no outro dia, cheia de ressaca, ai dele
se não ficasse calado, Pois além de grande, ela também era mais valente do uma cachorra
pitibú quando tá parida.
Minervina não ficava atrás, fazia o mesmo com Mané Cacunda, que a essas alturas já
estavam de casamento marcado, pois essa já carregava um menino no bucho que um outro

150
camarada de festa tinha feito e não podia aparecer como pai de jeito nenhum. E o pobre do
Mané que pagasse o milho que a cabra tinha comido. O pai do menino era galêgo galêgo, e
agora? Se o menino saísse igual a ele? Pois esse era noivo de uma moça muito ciumenta e se a
noiva soubesse, o mundo ia ser virado de pernas pra cima. Já Mané Cacunda era um rapazonte
pintado puxando para o vermelho, e o cabelo cor de labareda, portanto, já se sabia que o
menino não ia ser nada parecido com ele. A sorte era que Zé Alves sabia como resolver esse
tipo de problema. Pegou Minervina e Mané, levou os dois juntos para a cidade, chamou o
padre Zacarias e fez logo o casamento, pois Mané era tão bobão não sabia nem distinguir uma
mulher grávida de uma virgem e muito menos como era que fazia o serviço. Fato é que o
herdeiro nasceu, Minervina não deixou de ir às festas acompanhada de sua amiga Dasdores,
pois ambas sabiam muito bem como manter os seus maridos calados. No entanto, Mané
Cacunda depois de muito sussurro dos amigos em seu ouvido, ficou sabendo da farsa e muito
possesso com todos, inclusive com Zé Alves. Mané pegou o menino, mesmo sem ser filho
dele, avisou que iria embora do Lameirão com ele e assim foi. Nenhuma objeção por parte de
Minervina ocorreu.
Com isso, agora que Minervina e Dasdores ficaram soltas na bagaceira. Muitas vezes
acontecia que a festa que elas iam era cada vez mais longe, mas para isso Dasdores tomava
emprestado o jumento de Pajaraca, mandava Putruco botar a cangalha, uma sentava no meio
e a outra na garupa, e caiam no mundo atrás de dançar forró, fosse ele onde fosse. Certo dia,
as duas foram a uma festa na Quixaba, que há muito tempo se falava nela. Lá pela madrugada,
as duas voltavam da pandega com um pé no mato e o outro no caminho, pois não conseguiam
se segurar em cima da cangalha de tão embriagadas que estavam, e o jegue já estava
assanhado com tanto sobe de um lado e cai do outro.
Finalmente a Minervina conseguiu se segurar no cabeçote da cangalha, e Dasdores foi
na frente, cai aqui, cai acolá, ora no caminho, ora na beira do mato, até que chegaram na
cancela que entrava para o Lameirão. E quando Dasdores puxou a porteira para abri-la, essa
empurrou ela pra cima do jumento que estava parado atrás dela. O jegue que já estava
chateado com tanto sobe desce murchou as orelhas pegou Dasdores pela canela, e levantou-a
até as mãos dela não tocar no chão. Quando o jumento afastou, Minervina saiu pelo pescoço e
o pé dela ficou preso na corda que servia de estribo. Ficaram as duas de pernas pro ar. Como
não estavam muito longe de casa, Putruco acordou pelos gritos da mulher, correu pra lá para
acudir, mas nada pôde fazer, só correu a buscar Zé Pajaraca, e encontrou esse no caminho,
pois também tinha ouvido os gritos de alguém; porém, a coisa não foi tão fácil, porque o jegue
estava brabo de mais. Meu Deus!

151
MARIQUINHA

CAPÍTULO XXVI
Biu Morroia
O nome dele era Severino Rodrigues do Ó, mas mais conhecido como Biu Morroia.
(Ai de que se dirigisse a ele assim!) Esse era um sofredor de Jesus. Podia ser confundido com
um lobisomem tranquilamente, ou seja, um meio termo entre homem e lobo, mas devido a
pelagem, estava mais para um jumento novo. Isso, por que tinha o corpo todo peludo
agalegado misturado com poeira de barro vermelho. Era careca mas tinha na linha das orelhas
para baixo umas teias de cabelo branco ralo e despenteado que esvoaçavam ao sabor das
ventanias doidas que dão no sertão.
Esse ilustre tinha um sério problema em seu caminhar: Hemorroida de botão. Mesmo
com tudo que é qualidade de pomada, de chá, de reza, de talco, nada o aliviava daquele
problema naquele lugar já tão delicado. Sua qualidade de vida já era terrivelmente ruim e tal
mazela ainda deixava sua pele pálida e sua feição esquálida. Suas orelhas eram tão grandes e
largas que pareciam um fusca com as portas abertas; a cacaria na sua boca parecia que um
moleque soltou uma bomba de são João em cada dente. A venta? Cada buracão que parecia a
entrada de um ninho de João de Barro. No entanto, o que era mais notório era a bunda véa do
véi: Ele andava todo empinado e de perna aberta, parecendo uma forquilha. Só de olhar, já se
sentia pena. O pior é que essa pena que sentia era na sola do pé ou embaixo do braço, pois a
vontade era só de rir. Que Deus nos perdoe e tenha seu Biu em sua glória. Amém.
Em 57, esse velho tinha seus sessenta e todos de idade. Era muito solitário. Pouco se
sabia sobre seus parentes, a não ser que era distante de todos devido às suas cachaças. Nunca
casou nem tinha família por perto. Dormia em um barracão da propriedade do velho
Baracuhy. Como tal, sua companhia inseparável era uma moringa de cachaça e suas
hemorróidas, que não o deixavam em paz nem um minuto. Andava todo tronxo, rapaz. Isso
lhe rendia piadas muito infames de todos que lhe acompanhavam.
Algo que agravava a inflamação daqueles botões era o fato de que ele não gostava nem
um pouco de tomar banho. A pelagem branca dos cabelos do sovaco davam pra fazer

152
vassouras pra esfregar cavalo e se misturavam com os das costas que certamente faziam
trança com os do… Enfim. Sei que o fedor do véi era grande! A coisa era tão braba que até o
mangangá fugia quando ele vinha chegando.
57 foi um ano bom de milho. Zé Alves encheu os dois roçados inteiros com a
plantação e não faltava trabalhador querendo participar da colheita, que era feita por
produção, ou seja, cada mão de milho, com cinquenta e duas espigas, rendia ao trabalhador
uma quarta de cruzeiros; algo que valia aproximadamente o dinheiro de se comprar um litro
de querosene para o candeeiro. Por ali tinha que ser assim, quase um escambo. O problema
para o velho Biu era justamente esse: Como a colheita do milho era por produção, ou seja, por
mão colhida, todo dia ele amargava uma tristeza de incapaz e vencido só porque Expedito e
Alfredo Putruco juntavam muitas mãos de milho a mais do que ele. E isso fazia que ele
vivesse um implacável lamento, um desespero lancinante.
- Mais issé uma gota serena da mulexta dos cachorro, rapaz! Issé uma disgraça de
vida, rapaiz! Por quê noss’inhô num me leva logo? - Resmunga o velho.
- Qué isso, Biu? Tá doido, é? - Pergunta Putruco, provocando.
- Doido é corno que comeu a rapariga que le pariu, fresco! Mim dexe im paiz!
- Dexa, Putruco, sinão ele vai reclamá cum pai e o muxicão é na minha urêa… -
Adverte Expedito.
E essa vociferante tristeza o mantinha contra tudo e contra todos. Às vezes ficava
possesso e blasfemava frases mais terríveis ainda para a direita e para a esquerda, para cima e
para baixo, pegasse em quem pegasse, como quem dispara tiros com uma garrucha sem fazer
pontaria; amaldiçoando todos aqueles que colhiam mais espigas do que ele, e quando dava
seus gritos, pisoteando de raiva a palha e a taboca do milho ao chão, da sua trombeta traseira,
cheia de botão inflamado saía uma descarga sonora. Cada palavrão gritado, um peido; alto e
fedorento. A catinga era agravada por curtir dentro dele a raiva daqueles que faziam o que ele
não conseguia mais fazer, principalmente por causa do mal que lhe afligia e lhe impedia até
de sentar como uma pessoa normal. Tinha que sentar sempre como uma banda dos quartos,
como se a qualquer momento fosse soltar uma bufa.
Pior era a sua implicância com Expedito e Putruco, e o motivo de tudo isso era só as
espigas a mais que eles quebravam do pé. O velho os fulminava com olhar de rancor e
vingança.
- Tudo ladrão! - Murmurava ele.
Todo dia quando Biu se levantava pela madrugada, para ir pra roça catar o milho na
espiga, antes pedia a Pajaraca para impedir a aproximação de pessoas enquanto ele se
escondia por trás de uma moita para arriar as calças e passar um pó medicinal em seu orifício,
que cedo do dia estava sempre todo grudado o inflamado, precisando antes amolecer tudo
com água e só depois passar o dito medicamento. Na verdade ele passava tudo que era
pomada, remédio e talco, mas a cura jamais chegava. Pajaraca, que tinha se tornado o capataz
do Lameirão, agora vivia sempre imponente com a espingarda a tiracolo e dentro de seu
bisaco, ele guardava a pólvora justamente em um frasquinho metálico desse pó que tinha sido
abandonado por Biu depois de esvaziá – lo. Devido aos buraquinhos que tinha, o frasco
ajudava muito a Pajaraca preparar vários cartuchos de uma vez só, pois bastava ir polvilhando
a pólvora nos montinhos de chumbo, fechar o papelote e voilá: Estava pronta a munição,
bastando enfiar nos cartuchos.
Certa manhã o material de fazer a munição acabou e Pajaraca foi até seu patrão Zé
Alves, lhe solicitando mais matéria-prima. Prontamente Zé Alves permitiu que ele se
reabastecesse de tudo que precisava. Em casa, Pajaraca prepara toda a munição que a

153
quantidade de seus cartuchos permitia, guardando a quantidade restante no frasquinho de
talco, dentro de seu bisaco.
Pajaraca cumpre mais um dia de trabalho, dá uma olhada nos roçados, toma o rumo
dos matos, enchiqueira os bichos no curral, dá uns tiros espantando uma revoada de carcará
que estava de butuca nos anjicos, toma uma lapada de cana escondido e no fim do dia, retorna
para casa. A primeira coisa que faz é justamente pendurar no caritó a espingarda e o bisaco.
Come, lava os pés na bacia e cai em profundo sono.
No dia seguinte, ao acordar, Abigail lembra Pajaraca de um compromisso em Patos,
que ele deveria ter ido no dia anterior e acabou esquecendo. Com isso, Pajaraca acabou tendo
que ir logo cedo para a beira da estrada esperar o caminhão de Mané Biriba, que por sinal,
nem vai muito com a cara dele, mas como Zé Lino só faz a viagem uma vez por semana, tem
que ser com Mané mesmo. Iria a Patos comprar vacina para o gado e passaria em uma
farmácia para comprar mais um frasco do medicamento de Biu. Ou melhor, levar na farmácia
veterinária o rol do que precisaria trazer, fazendo o mesmo para Biu, obviamente em uma
farmácia comum.
Com isso, ficou a cargo de Expedito fazer a vistoria de toda a colheita de milho das
roças de Zé Alves, sendo que ele nem gostava muito disso, pois segundo afirmava, Expedito
ainda era muito menino e a responsabilidade era grande. Todavia, Zé Alves mal ia no roçado
de milho durante a colheita pois ele falava que, só de olhar, já lhe atacava uma coceira
infernal por causa do pêlo da palha do milho.
Expedito segue para a casa de Zé Alves, sem comunicar que ficará hoje no lugar do
pai. Lá toma o café reforçado e calado, junto com Putruco. Ao terminarem, já por precaução,
Expedito espera o companheiro terminar de comer, juntar suas sacas de milho e descer pr’o
roçado. O lado que Putruco fosse, Expedito iria para o outro.
Assim foi. Putruco acende seu cigarrão e desce rumo ao roçado do sul, e Expedito
desce para o roçado do norte, para não chamar atenção dos patrões. No entanto, sentado de
banda em uma pedra próxima ao roçado do norte, já está a um bom tempo o velho Biu:
⁻ Ô esse minino, cadê teu pai, hein?
- É… paim?
- Sim. Quedê ele?
- Paim?
- É, fi da pexte! Quedê ele?
- Paim acordô muito duente hoje, seu Sivirino… - Tentando despistar, pois se dissesse
aonde o pai tinha ido, certamente o velho iria dar queixa a Zé Alves.
- Marrapaz, e quedê meu pó? Eu vô trabaiá desse jeito?
- Que pó?
- Meu pó! Meu pó, ué?! Que eu mandei ele trazê de Patos onte! Ele nem trouxe e nem
mandô, né? Só pudia sê um cachacêro mêrmo!
- Oxe, fica dizeno as coisa cum paim mais num diz na frente dele…
- Eu digo na frente dele e até do patrão dele que só deu esse trabai pra ele num morrê
de fome cum vocêis! Pensa que eu num sei não?
Já sabendo que o velho Biu era só um amargurado da vida, Expedito preferiu não dar
corda:
- Bom, lá pela tarde paim deve tá mió, aí deve de vim cum seu pó. Inquanto isso, bora
ir tirano o mí, bora? Putruco foi lá no ôto roçado, aí aqui é só nois dois. É mais míi pro sinhô
hoje, bora.

154
- Bora como, rapaiz? Eu priciso do meu pó! Eu tô aqui que num aguento nem me
mexê, quanto mais tirá míi?
- Sim, aí o sinhô vai fica aí nessa peda no mêi do Sol quente?
- Não se tivé meu pó. Vá lá buscá, vá!
- Mais eu num sei que pó é esse não, seu Biu.
- Oxe, peça a ele lá e traga! Tô pricisano aqui!
- É que… - Expedito tenta dar uma resposta para contornar o fato de seu pai não estar
em casa. - É que… paim tumô o reméido aí agarrô no sono, aí eu num quiria acordá ele não,
num sabe?
- Homi, vá lá. Repare nas coisa dele. É um pó desse aqui ói – Mostrando um frasco
metálico de Hemoctila, um fármaco em pó usado no tratamento de hemorroidas.
Expedito não sabia ler, mas tratou de memorizar os trejeitos e cores do frasquinho.
Voltou para casa mas não pela estrada, e sim pelas picadas dos matos para não ser visto nas
proximidades da casa de Zé Alves, onde sempre tem muita gente de olho em qualquer coisa
que sair do conforme, principalmente Minervina. Ao chegar em casa, também não encontra a
mãe. Deve ter ido no cacimbão ou na casa de alguém bater perna*. Andar para passar o tempo.
Expedito roda para um lado e para outro. Estava correndo contra o tempo:
- Ave meu Deus. Será que paim comprô mermo o tá do reméido daquele véi nojento?
Djabo! Se ele abri a boca lá vai dá a gota, por que padrim Juzé pode dispidí paim e eu. E
agora?
- Expedito pensa mais um pouco para lá e para cá e começa a remexer nas coisas do
pai. Mexendo a quinquilharia para cá e para lá, procurando. Eis que ele tem a ideia de, já
desanimado, abrir o bisaco que estava pendurado no mesmo caritó que a espingarda. Feito
isso, a maravilhosa surpresa: O frasquinho do pó estava lá.
- Ufa, graças a Deus paim tinha comprado esse reméido.
E assim, Expedito volta correndo por dentro dos matos ao encontro do velho Biu, feliz
da vida:
- Achô meu pó?
- Achei, seu Biu. Tome.
- Pronto. Agora fique você aqui que eu vô até ali na moita de mufumbo aplicá.
- Sim, nas suas morroia, né?
- Não, nas da sua vó, aquela rapariga! - Esbraveja o velho.
- Calma, eu só fiz perguntá…
- Fique calado. Num dêxe ninguém vim pra cá não!
- Tá certo. Vá.
Nisso, o velho Biu tinha caminhado cerca de quinze metros até atrás da moita, sendo
possível ver somente sua cabeça, até que ele se abaixa e inicia o processo de aplicação do pó.
Os gritos do velho eram ouvidos de longe. Era cada palavrão de estremecer o chão. Expedito
ficou sem entender o porquê daquela gritaria. Só depois de meia hora é que o velho conseguiu
sair de trás da moita. Nisso, Putruco já tinha descido para ver o que foi, junto com Zé Alves,
com Minervina e vários outros trabalhadores avulsos.
- Que gritaria é essa, Biu? Ispantano até as ribaçã? - Pergunta Zé Alves.
- É esse pó do djabo, seu Zé. Eu priciso ponhá todo dia pra aliviá meu pobrema pa
ansim pudê trabaiá. Butei hoje o novo que Pajaraca comprô onte im Patos, quase que morro
com o ardido. Faltô pôco eu morrê de dô! Ói o sinhô me adispense hoje que eu tô cum ardido
dimais. Tô im tempo de acendê uma fuguêra dessa e se sentá im cima pa vê se aliveia*… alivia

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- Tá certo, Biu. Só sigure mais essa boca que eu tem moça lá im casa e eu num quero
elas uvino certas coisa não…
Por fim, os serviços são retomados e no fim da tarde Pajaraca chega em casa com o
bendito isopor das vacinas. Na manhã seguinte, ao juntar seu material de trabalho de capataz,
pergunta a Abigail:
- Ô Bigaí, tu viu meu frasquim de poiva qu’eu dexei aqui dento do bisaco?
- Vi não, Zé...

CAPÍTULO XXVII
Os Irmãos do Juazeiro
Semana Santa de 1958. Sexta Feira da Paixão. Todo mundo vai até a pequena vila de
Santa Teresinha para acompanhar a programação religiosa, sem falar que pela primeira vez
iria estar na localidade a estátua do Senhor Morto. A ideia era a estátua passar cerca de uma
hora na igreja de cá e depois seguir em direção a de São Sebastião, lá em Catingueira.
O problema foi que o povo encarou como se fosse um velório de verdade. Pense em
um chororô grande. Cada um que chegava perto do caixão, soltava dentro um feixe de ramos,
de flor, de tudo! Com pouco não dava mais nem pra ver o Senhor Morto, era só flor de bugari,
rosa prata e folha de avenca por cima. Cada um que pensasse: Quanto mais flor soltasse em
cima, melhor; maior seria a bênção. De instante em instante vinha o sacristão tirar o excesso e
jogar fora por trás da igreja.
Outro destaque era a grande multidão que se aglomerava de frente da igrejinha para
ver o Senhor Morto. O padre Zé Luís até tentou junto com o sacristão organizar uma fila, mas
não teve jeito. Na hora todo mundo se amontoava e o medo que se tinha era de o povo
terminar derrubando o caríssimo caixão envidraçado.
Não poderíamos deixar de ressaltar a grande indignação do povo ali na frente. “Era
p’ra o ‘enterro’ ser só na igreja de cá. Não tinha nada que descer pra Catingueira”. - Indigna –
se um fiel.
Vale se dizer que sempre houve uma rivalidade entre o povo de Cabaças com o povo
de Catingueira; mas naquela época essa rivalidade era bem acalorada e bairrista mesmo.
Quando os ânimos estavam exaltados entre as localidades, o pessoal de Catingueira evitava
até passar por dentro do distrito de Cabaças para evitar confusão; passavam entrecortando os
sítios para não ter nem contato visual.
- Homi, nada a ver o veloro ir pra Catinguêra ainda! - Indigna – se uma beata da
localidade.
- Né não? Povo véi, se brincar, num vai nem na ingrêja, num reza nem o nome do pai...
- Completa outra, debochando.
- Era pra ser só aqui. Num sei por quê essa bestêra de que tudo que tem aqui ter que ter
im Catinguêra tombém! Homi! - Despeita – se mais outra.
Nisso, em um canto mais privilegiado e rezando ajoelhadas, estão Alcinda e Severina.
Mas a reza é daquele jeito: É um olho fechado e outro aberto sondando o movimento; um lado
da boca sussurrando a reza e o outro fofocando com a irmã:
- Sivirina, Sivirina… Num oia agora não, mas pia mermo quem se sentô de frente pa
nóis…
- Quem, Arcinda?
- Os irmão do Juazêro… Repara.

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- Arre Maria, então bora cubri cum o véu as cabeça, sinão eles vão vê nóis!
- Valei – me… Ainda bem que papai num vêi nem mamãe. Sinão eles só se
desapregava agora cum água quente.
- Ô mulhé, e pió que meus juêlho já tão é dueno…
- Não, mais num se alevante agora não por causo que eles tão oiano tudo pra cá…
- Tombém, né, Arcinda. Só tu mermo pa inventá da gente rezá ajueiada nessas cadêra
do pade e do bispo, de lado da mesa do pade! É certeza que todo mundo que entra vai oiá logo
pa image de nosso sinhô na cruiz, pa Santa Teresinha e pa nóis aqui!
- E tu quiria o quê, marmota? Ficá no mêi do Só quente que nem o resto do povo? Eu
pago o carnê do dismo bem direitim, intão eu tem direito de se sentá aqui, de ajuelhá…
- Sim, mas se arguém que a gente num quer que veja nóis, vai vê logo de cara a gente
aqui, né? Eu disse. Bora pra ôto canto!
- Tá bom, homi. Eu vô agora rezá pas minhas almas vaquêra aqui pra fazê esse povo
tumá o rumo deles…
É eu vô fazê isso tombém…
E de fato, fizeram muito. Abaixaram os véus e acunharam na reza, não levantando a
cabeça de jeito nenhum. O trio, havia adentrado a pequena igreja e estava sentado na primeira
fila, apenas esperando as irmãs terminarem suas preces para cumprimentá – las. Enquanto
isso, mais sussurros das irmãs:
- Ave, Arcinda, eu num aguento mais não. Meu juelho tá que eu num tô aguentano
mais, meu pesoço tá dueno, já tô até sem vóiz…
- E eu aqui, já tô de boca seca… Já vô no quinto rusário e nada.
- É o jeito nóis se alevantá…
- É bora. Acuda eu aqui, que minha perna ficou foi durmente, chega…
E quando as irmãs se recompêm:
- Cumade Arcinda mais cumade Sivirina, que sastisfação incontrá ocês! Que
cuincidênça boa! - Diz Valdomiro, sentado em uma carriola no chão ao lado dos outros
companheiros, escorado em um grande baú.
- O-opa, seu...
- É Valdomiro.
- Seu Valdomiro. Nem tinha reparado vocêis aí, nóis aqui de cabeça baxa, concentrada
nas reza nem vimo. Vão se adiscurpano…
- Nada não, cumade. Demorô um poquim mais nóis pensemo: Uma hora elas termina.
Né não, Inaço? Inacio olha para o colega de estrada e calado permaneceu. De cara fechada.
- Oxente, eu num acridito. Ḿais é cumade Arcinda mais cumade Sivirina? Eu num
acridito não. Quedê elas aqui pra eu dá um aperto de mão?
- Tamo aqui, seu… Comé que é o nome do sinhô mermo? - Pergunta Severina,
nitidamente constrangida.
- É... Robério.
- Seu Robério! Eu quase que ia dizer errado, ia dizer Roberto, pia mermo? - Disfarça
ela, sem graça.
Agora apresentando ao querido leitor, este trio diz vir de bem de longe, de uma tal
irmandade de Padre Cícero lá do Juazeiro. Não são irmãos de sangue, mas segundo eles
dizem, desde jovens peregrinam juntos por esses sertões. Se anunciam como que tivessem
sido muito próximos ao padre Cícero, e até apresentam uma foto desbotada junto com ele para
reforçar o que afirmam. Seus nomes são: Valdomiro, que sofre de uma fraqueza nas pernas
que lhe impede de andar, pois algo tirou a força de suas canelas; segundo ele, na tenra

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infância teve pólio. Valdomiro não tem cadeira de rodas, mas se locomove com habilidade em
cima de uma pequena espécie de carriola impulsionada por seus braços que são muito fortes.
É muito comunicativo e conversador. Dizem que sabe reza de acordar até defunto se tiver
morrido a pouco tempo.
O segundo, é Inacio. Esse é o menos comunicativo e mais observador do trio e
também não dá ouvidos às fofocas que o povo fala. E isto tem um motivo: Inacio é surdo -
mudo de nascença, diz ele.
O terceiro, Robério, é cego. Enxergava tudo mas diz ele que cegou depois de um
sarampo forte que teve quando menino. Usa como adereço um grande óculos de aviador,
aliás, só a parte da frente. O resto do óculos não tem. É preso na cabeça amarrado com um
elástico desses de botar em ceroula. Os três possuem uma característica em comum: Possuem
várias cicatrizes pelo corpo. Na cara, nos braços, no pescoço. Segundo eles, foi muita carreira
de boi brabo que já levaram por aí e tiveram que correr pelas matas espinhentas para fugir.
Fica a pergunta: Como esses três estão juntos a tanto tempo, peregrinando por esses sertões se
possuem, cada um, uma séria limitação física? O fato é que um complementa o outro e assim
eles respondem prontamente:
* Se precisam fazer uma longa caminhada, Valdomiro sobe na cacunda de Robério que
é forte e Robério coloca a mão no ombro de Inacio, que tem a vista boa e Inacio bota a
pequena carriola de Valdomiro embaixo do braço enquanto puxam um grande baú com rodas
de madeira, provavelmente com seus pertences;
* Se Robério quer saber o que está em sua volta, pergunta a Valdomiro, que pode falar
e responder;
* Se Inacio tem algo a dizer a Robério, gesticula para Valdomiro, que entende cada
movimento que ele faz com as mãos e traduz em palavras;
* Se Valdomiro e Robério querem saber o que alguém bem longe está falando, é só
pedir a Inacio que ele consegue entender, apenas observando o mexido da boca da pessoa; e
acredite, Inacio viu tudo que as irmãs estavam falando deles e por isso ficou embirrado, mas
como estava com muita fome, teve que ficar mais calado do que já era.
Agora a questão é: Por quê as irmãs Alcinda e Severina teriam algum motivo para
tentar sair de fininho sem ser notadas pelos ilustres viajantes? Vejamos: O trio afirma que
começou a peregrinar pelo interior do Nordeste após 1934, época da morte do Padrinho Padre
Cícero, no entanto, desconversam quando alguém mais curioso e bem entendido lhes faz
perguntas a respeito. Da última vez que se hospedaram na casa de Zé Alves, gaguejaram
bastante nas respostas, sendo que uma delas foi que a peregrinação deles pelas pequenas
cidades do Sertão se deu a partir de 1938… 1939, época da morte de outras grandes
celebridades da região Nordeste. (…)
As irmãs sabem que o trio é meio desconhecido no setor, mas. não é raro alguém
chegar e lhes oferecer alimentos e lembrancinhas em troca de rezas. Oferecem de tudo, menos
estadia. No entanto, sendo esta a segunda vez que aparecem nas Cabaças, já tinham em mente
um destino para pousar: A casa de um senhor cujos moradores possuem em comum um sério
problema: Uma baita dificuldade para dizer a palavra NÃO. Estamos falando da família de Zé
Alves.
- Como eu ia dizeno, cumade Arcinda, foi um prazê se incontrá cum a sinhora justo
aqui na missa – Ressalta Robério, em tom alegre.
- Né, não, seu Robéro? Pense numa sastisfação qu’eu tô aqui. O sinhô tinha que vê… -
Responde Alcinda, tentando disfarçar a ironia.

158
- Cuma eu ia dizeno, cumade, nóis vinhemo vê o sinhô morto aqui pela primêra vêiz
im Santa Teresinha e nóis num pudia vim aqui e fazê uma disfeita dessa de num se hospedá de
novo na casa de vocêis, que nus recebêro tão bem da ôta vêiz… - Comunica Valdomiro.
- Misericórdia, Jesuis! - Pensa Severina, consigo mesma, aflita.
- Tem uma coisa. Agora nóis arrumemo… - Pensa Alcinda, consigo mesma.
- Cumade Arcinda sabe que hora termina esses festejo aqui? Nóis tamo c’uma fome
medonha… - Diz Valdomiro.
- Nem sei, cumpade. Eu acho que quando o furgão levá o caxão do sinhô morto pa
Catinguêra num tem nada mais pra vê por aqui não… - Responde ela.
- Ô cumade Sivirina – Interrompe Robério – As cumade vão pra casa como?
- Ah, do mermo jeito; vinhemo no caminhão de cumpade Juaquim Justino e vamo
vorta no… (nisso, Alcinda pisa forte e disfarçadamente na ponta do sapato de bico fino da
irmã, no intento de interromper sua fala.)
- Oxe Sivirina, tais trevaliano, é? Sisqueceu que daqui vamo pa Patos amenhã bem
cedim?
- Ah é, é. Pia mermo. Eu e minha cabeça… Eu agora vivo trevaliano; já pensô? Por
isso mermo que daqui vamo im Patos, pra eu se consurtá… Eu tô cum uns isquicimento véi
nojento...
- É mermo, cumade? - Pergunta Valdomiro. - Pois eu vô le dizê um reméido bom: A
sinhora pega leite de pinhão e pinga um pingo toda vêiz que fô tumá uma xicra de café. É
tiriqueda!
- Arre Maria, seu Vardomiro. Só de pensá, já arripuna!
- Mais a indeia é essa, cumade. Se a sinhora se alembrá de tomá esse café ardido toda
veiz, é prova que a sinhora tá com o juízo bom…
- Essas medicina de vocês dotô das alma num dá pra mim não, viu? - Retruca Alcinda.
- Vôte!
- Bom, meus cumpade. Foi um prazê revê vocêis mais nóis já vamo ino, né Arcinda?
- Pois é, boa tarde pra vocêis, meus cumpade. Inté a vorta. - E saem querendo apertar o
passo.
(...)
- Ô cumade Arcinda mais cumade Sivirina… - Fala Valdomiro em voz alta.
- Que foi, cumpade Vardomiro? - Perguntam as duas, parando bruscamente.
- E vão simbora sem as sombrinha, é?
- Eita, pia mermo! Ô meu Deus, tai veno, Sivirina? Eu já tô é pegano esse
isquicimento teu. Vamo tê que se consurtá eu e tu amenhã…
- As cumade nus discurpe, mais... Vão durmi adonde hoje aqui? Nóis cunhece? -
Pergunta Valdomiro.
- Vai cada uma durmi num canto diferente, cumpade, bem piquininim. Eu na casa
d’uma parenta nossa e Sivirina na casa de cumade Tudinha.
- Tudinha? - Pergunta Valdomiro.
- É, cumpade. Tu num cunhece não. Tudinha de Cumpade
- Chico de quê? - Insiste Valdomiro.
- Chico da Carne. Mas ele gosta que chame de Chico Rufino mermo.
- Rufino?? - Recebem espantados a resposta; até Inácio, que é surdo, se assustou.
- Esse nome Rufino dá calafrí im nóis, cumade.
- Oxente, sabia não. Pois é, intão vamo ino agora. Até ôto dia...

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- É que se as cumade fosse pa casa no caminhão, nóis ia pidí uma carona pra passar
uns dia de novo na casa de vocêis… - E continua a insistir o Valdomiro.
- Ô rapaz, que pena, seu Vardomiro. Se nóis fosse pa casa, nóis levava vocês na hora...
- Responde Alcinda, tentando se evadir.
Nisso, surge uma distinta figura na esquina chamando pelas irmãs. Quem? Quem
seria?
- Cumade Arcinda, cumade Sivirina!
- Que é, Pajaraca???
- O véi Juaquim da jamanta já tá mueno ali pra ir simbora e qué dinhêro. E eu num tem
uma ruela furada aqui.
- E é, Pajaraca? - Responde Alcinda, totalmente constrangida. - Nóis que foi que
combinemo que ia pagá tudo na hora de ir simbora, né?
- Oxente, cumade? Mais a sinhora num ia pa Patos mais cumade Sivirina? - Pergunta
Valdomiro, matreiro.
- Vê o quê im Patos, cumade? E cumpade Juaquim ia ficar sozim im casa? Bigaí mais
eu num tem condição não….
- Ai meu Deus, Pajaraca tá butano tudo a perdê… - Pensa Alcinda, consigo mesma.
- Tá butano a cria no mato...
- Pia mermo, ó? Se alembrei. O dia nera amenhã não, Sivirina. É só lá pa semana que
vem, criatura! Eu tô isquicida dimais. Nam!
- Intão as cumade vão po sítio? - Pergunta Valdomiro.
- É, vamo…
- Nóis pudemo ir, né?
- Cum nóis pro sítio no caminhão?
- É…
- É, pode né? Papai vai ficá filiz, qué uma beleza!
- E eu tô ansioso pa vê meu cumpade Juzé, quer dizer. Apertá a mão do meu amigo
véi… - Conserta Robério.
- E assim, todos se direcionam para o caminhão, inclusive Valdomiro remando com as
mãos o próprio corpo na carriola. Foi um trabalhão só acomodar mais três no caminhão já
lotado de peregrinos. Durante a viagem de volta para casa, Abigail é uma das mais
emocionadas:
- Ô meu Jesuis, eu fiquei tão triste veno Jesuis daquele jeito morto num caxão…
- Ô Bigaí, mas ali é só uma estáuta. Né de verdade não, criatura! É só pra alembrá que
Jesuis morreu por nóis na crúiz… - Refuta Inacio Lucena, que estava próximo.
- É, mais é como se fosse. Eu fiquei muito emocionada, cumpade…
Findadas as conversas diversas que ocorrem nas viagens de caminhão, a comitiva de
peregrinos desce no terreiro da casa de Zé Alves, novamente com toda aquela dificuldade,
agora para descer Valdomiro e o cego Robério.
Regina sai na porta ainda enxugando as mãos em um pano de prato para recebê – los
mas acha que tem gente demais descendo do caminhão, até que reconhece os visitantes em
excedentes.
- Ô Juzé… Chegue aqui…
Zé Alves está lá do outro lado da casa, sentado em um banquinho diante de um
pequeno espelho, displicentemente fazendo a barba.
- Era o quê?
- O povo que chegô. Venha aqui ver um negóço…

160
- Eu sei. Eu uví a zuada, mas era o quê?
- Chegue, criatura!
Nisso, Zé Alves só com a metade da barba feita vai até onde a esposa está e se depara
com Regina não na porta, mas sim na janela (fechada), espiando por uma greta o povo diante
da casa dela conversando, em especial, com três visitantes:
- Repara aí se são eles…
- É Robério, Inaço e Vardomiro, né?
- De sê, é. Num acridito que Sivirina mais Arcinda vão sortá esses presépe logo pro
lado de cá não, meu Deus!
- Ninhuma delas sabe não, Zé!
- Sabe sim, qu’eu disse!
- E comé qu’elas traz esses presepe pra cá?
- Num sei não. Vamo vê o qu’eu faço aqui…
- Cumpade Juzé! - Grita Alcinda.
- Oi, já ia abrir pra vocês…
- Visita.
- Ô rapaiz… Se num é os irmão véi de guerra Robéro, Inaço e Vardomiro! Bora
entrano, bora! Vão discurpano eu tá assim, é qu’eu tava fazeno a baiba - esclarece Zé Alves,
inseguro. Todos entram. Enquanto se acomodam no grande salão da casa, um cheiro de café
novo invade o ambiente.
- Eita que vim no Lamerão e num vim aqui é milhó nem vim... - Exclama Robério.
- No salão, cada qual se acomodou logo como podia: Um numa rede sem nem
perguntar de quem era, outro numa espreguiçadeira, justamente a preferida de Zé Alves, que
por respeito ninguém senta, e Valdormiro, sai de cima da carriola, puxa uns lençóis que
estavam dentro de outra rede e faz logo uma espécie de ninho no pé da porta pra tomar vento.
- Rapaiz, mais aqui é ventilado, né não? Ventim bom…
- Pois é, Seu Vardomiro… Vão se acomodano aí, que jajá tem café. Eu tô aqui nas luta,
mais a mastarde eu vem pra dá mais atenção a vocêis, tá certo?
- Tá certo, cumpade Juzé. A casa é sua. - Diz Valdomiro.
Nisso, Zé Alves vai até a pequena cozinha de sua casa. E de lá grita:
- Cumade Sivirina mais cumade Arcinda, venham cá vê essa ninhada que a galinha
deu…
Dessa vez entendendo o recado, Alcinda e Severina vão até a cozinha.
- Vocêis dê uma licencinha que nóis já vorta, tá certo? Pajaraca, fique aí mais seus
amigo que nóis já vem.
E regina vai atrás. Enquanto lá fora, os visitantes cada um que tente desfrutar mais e
melhor do conforto daquela casa. Zé Pajaraca, inocente por sua vez, vai tratando logo de ir
fazendo amizade com os mesmos, sobretudo quando prometem uma reza que é tiro e queda
para baixar o bucho de Abigail. Lá dentro, os ânimos são outros:
- Mais será que é eles mermo? - Pergunta Alcinda, sussurrando.
- É, homi. Num tô le dizeno? - Responde Zé Alves, aflito.
- E agora, meu Deus? E se fô eles mermo? Como que tu tem certeza, cumpade Juzé? -
Pergunta Severina, agoniada e também sussurrando.
- Eu peguei a nutiça num jorná qu’eu comprei quando fui em Patos mêis passado.
- E quedê esse jorná? - Pergunta Regina.
- Ah, eu inrolei a coleita de mamão com eles pa butá nas caxa pa vendê. Mais é eles,
eu num tô dizeno? - Responde Zé Alves, inquieto.

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- O que nóis fáiz agora, meu Deus. O povo homi dessa casa foi tudo simbora duma
vêiz. Quedê Zé Sarafim?
- Ah, tá lá nas Queimada ‘tucaiano uma vaca caída lá parino. Só vorta quando o
bizerro naiscê… - Responde Regina.
- Agora vocêis duas, viu? - Repreende Zé Alves. - Que djabo deu na cabeça de vocês
trazê esses presepe pra cá? Ó o abacaxi qu’eu arrumei agora!
- Ah, cumpade, nóis até tentemo sair fora, mais eles fôro mais isperto. Quandefé já
tava tudo dento do caminhão. - Defende – se Severina.
- E ôta. Meu aperrêi era só por quê eles são forgado dimais. Fizero muita raiva da ôta
vêiz que vinhero. Eu sei que você falô da nutiça do jorná mais eu nem dei por mim não.
Pensei que era ôtas pessoa, por que nunca me passô pela cabeça…
- Pois é eles sim: Jararaca, Baiburana e Catiço.
- Cré im Deus Pai… - Apavora – se Severina, ao passo que as outras duas benzem.
Pois bem. A aflição daqueles ali na cozinha se dá pela seguinte razão: Meses atrás, Zé
Alves tinha ido até Patos e comprou um exemplar vindo diretamente da capital do jornal O
Norte para ler em casa. Tinha esse hábito sempre que ia em Patos. Ao passo que depois usava
o papeis para as mais ínfimas finalidades. Ao folhear, se assusta com uma certa foto de
procurados: 3 homens se passando por peregrinos religiosos andavam assaltando fazendas em
todo o sertão de Pernambuco, Paraíba e Ceará.
Ele ficou afilto por que de imediato reconheceu o rosto dos 3. Tinha dado comida e
dormida para eles a alguns meses atrás, movido por forte obrigação de sua convicção
religiosa. No período em que lá estiveram, foram muito inconvenientes: Mataram galinha por
conta própria para assar e comer na frente da casa sem permissão do dono, pegavam toalhas,
faziam tudo sem permissão, sem falar no sumiço de vários objetos da casa, inclusive de uma
espingarda nova.
O nome desses 3, era na verdade:
* José Amancio Rozindo. 49 anos, vulgo Jararaca. Se apresentava nos sertões como
Valdomiro.
* Clementino da Rocha Silva, 46 anos, o Baiburana. Para os desavisados: Inacio.
* Francisco Urquiza dos Santos Alves, 50 anos, o Catiço. Este último, se anuncia
como Robério. Todos nascidos em Quixeramobim, Ceará.
Esses três, eram temerosos cangaceiros desertores, porém covardes, ladinos e fujões
como ratos. Fugiram do bando de Lampião por roubar os próprios companheiros, ao não
querer dividir o que saqueavam, além de surrupiar o que não era de direito deles. Após a
morte de Lampião, passaram a flertar laços com o bando da resistência do Corisco, mas
também quando o cerco apertou, foram os primeiros a fugir. Trocaram muito tiro com a
volante liderada pelo Tenente Zé Rufino e Odilon Flores e isto os trouxe sequelas:
José Amancio perdeu um pouco do movimento da perna esquerda que atrofiou até a
altura da canela devido a um tiro bem dado que levou e infeccionou. Não se sabe se ainda traz
a bala alojada na perna. O que se sabe é que ele pode andar sim, mas nem seus dois outros
companheiros sabem disso e ele muito se aproveita dessa condição.
Clementino não é totalmente cego. Um de seus olhos realmente é furado devido a,
segundo ele em depoimento a polícia, ter tido uma briga de faca com um irmão, que sangrou
seu olho e só assim ganhou dele. O motivo alegado não podia ser outro: Cachaça. Do outro
olho ele tem sim considerável perda de visão, mas por outra razão: A diabete. Mas ainda
consegue enxergar de forma quase normal.

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O último, Chico Urquiza, nem era surdo e tampouco era mudo. Se apresentava assim
não por outro motivo e sim por ser bastante gago. Por ser o mais esquentado dos 3, preferia se
manter calado para não ter sempre que sangrar o pescoço de quem zombasse dele. Dos
ouvidos, ouvia melhor que os outros dois juntos, e havia ainda adquirido a habilidade de fazer
leitura labial. Como, com quem e onde, ninguém sabe.
Com o fim do cangaço, aos poucos os remanescentes ou foram mortos ou foram se
entregando. Esses três decidiram pela segunda opção e se entregaram e tempos depois
obtiveram anistia. Como se sabe, muitos dos cangaceiros remanescentes conseguiram se
reintegrar à sociedade, tais como o Saracura e o Angelo Roque, mas não todos; não eles. Ao
serem libertos, passaram a usar nomes falsos e tocar o terror pelas pequenas cidades,
roubando a todos que os acolhiam sem que percebessem. Pois bem, estas criaturas agora estão
tomando café bem à vontade na casa de Zé Alves. Há também indicios de os três terem sido
os assassinos do cigano Ismael, que até pouco tempo ainda perturbava por ali.
- E agora o que se faz, Zé? - Pergunta Regina.
- Bom, já que Arcinda e Sivirina me trucero essa incumenda, eu vô tê que dispachá.
Vão lá pra sala dá atenção sinão eles vão disconfiá. Chame Pajaraca aqui.
Lá na entrada da casa, as três senhoras cuidam para acomodar bem a incômoda visita e
se despedem, já que o velho Joaquim estava sozinho em casa e já tinha idade avançada.
Enquanto isso, lá na cozinha:
- Pajaraca, venha aqui fora, qu’eu tem que le contá um negóço. - E se distanciam um
pouco da casa em direção ao galinheiro.
- Diga, cumpade.
- Cumpade ói. Primêro mantenha a carma. Esses que tão aqui na sala da minha casa
não são quem a gente pensava não.
- E não, cumpade? E são quem?
- São bandido. Tudo criminoso!
- É cigano?
- É não, cumpade. É cangacêro fugido!
- Vixi Maria, cumpade. Eu pensei que tinham murrido tudo. E nunca tive nutiça de
cangacêro p’as banda de cá. Só do Piancó pra baxo.
- É, eu num sei ixplicá como foi não, Pajaraca, mais o negóço é o siguinte. Acoitá esse
povo aqui é qu’eu num vô. Depois dexá eles sigui adiante vai sê muito pió, por quê im argum
momento a puliça vai sabê qu’eles vinhero pra cá e eu vô é arrumá dô de cabeça s’eu dexá ele
ir simbora. O cumpade tá intendeno?
- Tô intendeno, cumpande. Mais cumpade qué qu’eu faça o quê?
- Quero que você vá im casa, pegue a ispingarda e encha a cartuchêra de bala e vorte
pra cá.
- E se eles disconfiá de arguma coisa, cumpade?
- Nas vista deles não, né, Pajaraca?
- E comé que vai sê isso?
- Intão. Primêro você isfria a cabeça e vai pra casa. Fale pra Bigaí ir com ur minino pra
casa de arguém, de cumade V’cença, seja lá quem fô. Eu vô pricisá que sua casa teja
disocupada pelo meno de hoje pra amenhã.
- Cumpade qué butá eles lá?
- É isso. E conforme eles entra, você vai até Patos chamá a puliça pa prendê eles.
Quando eles entrare na casa eu vô butá ur minino pra ficá de tucaia pra eles num fugire e vê
se a puliça chega a tempo. Se eles atirá, a poiva vai cantá!

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- Arre Maria, cumpade. E se huvé morte na minha casa? E minha casinha?
- Se tivé, eu faço ôta casa pra você.
- Bom, intão tá certo, cumpade. Bigaí num vai achá muito bom não, mais… É o jeito,
né?
- É o jeito, Pajaraca.
Nisso, Pajaraca vai em casa, deixa Abigail ciente dos fatos, que mais que depressa sai
arrastando a penca de filhos em direção a casa de Vicência, que a acolhe prontamente. De lá,
Zé Pajaraca sai em direção às casas dos filhos de Zé Alves, Joaquim, José e Manoel. Também
comunica o fato a Zé Serafim, que trata de azeitar as espingardas e distribuir entre os
cunhados.
Na casa de Zé Alves, apesar da tensão, tudo flui tranquilamente. Nenhum dos ex-
cangaceiros desconfiou de nada. Jantam e novamente se pôem a prosear. Daí que Zé Alves
começa a direcioná – los para a arataca:
- Bom, como os amigo sabe, pra mim é uma sastisfação recebê vocêis aqui no
Lamerão, e vocês é sempre bem vindo. Mais tem um porém; Aqui dorme muita gente, eu tem
duas fia moça ainda, num sabe? Aí eu tem uma casa aqui desceno do roçado que vocêis pode
ficá lá. Era de um moradô meu que foi simbora. Lá vocêis pode ficá o tempo que quisé. Até
morá se quisé.
- Ow, rapaz. Só o sinhô mermo pra fazê uma caridade dessa, por quê, seu Juzé, o povo
até dá de cumê a nóis, num sabe? Mais dá de cumê, se dá até a um bicho, um cachorro, um
osso véi que o dono num tem mais que ruê e dá pa nóis, num sabe?
- Sei bem, seu Vardomiro. É desse jeito.
- E se tivesse uma casinha pra nóis passá uns dia, ow rapaz, era tudo de bom…
- Num ia sobrá uma galinha viva nos terrêro. - Pensa Regina, consigo mesma.
- Cumpade, né por nada não, mais… Tinha como arguém levá nóis lá? Eu tô morreno
de curiosidade de vê logo essa casa, e também pa dexá de abusá de sua boa vontade. - Pede
Valdomiro.
- Tem sim, eu levo vocêis na carroça, bora. Aguarde aí que vô incangaiá o burro.
Andar de carroça nas estradas do sítio à noite nunca foi uma boa ideia, mas como o
percurso era curto e a noite estava enluarada, esse foi o menor dos problemas. Ruim foi
convencer o pobre do burro mulo a dar expediente depois das 7 da noite.
Feito isso, Robério e Inacio colocam na carroça o pesado baú, e colocam Romero
também em cima, ao lado de Zé Alves, que vai guiando. Robério e Inacio decidem ir à pé, já
que a marcha era lenta e não iriam andar muito. Chegando lá, Zé Alves os acomoda na casa
esvaziada de Zé Pajaraca.
- Mora gente nessa casa, seu Juzé? - Pergunta Valdomiro.
- Mora mais não, seu Vardomiro. Fôro simbora pa num sei onde.
- Fôro a pôco tempo, né? Dexaro inté o fogo da trempe aceso…
- É que… eu mandei antes um trabaiadô meu acendê esse fogo pra vocês… Pra mode
de acendê o cachimbo.
- Ah bom. O cumpade é muito gentil. Intão nóis vamo entrá pa durmi que nóis durme
tudo cedo.
- Eu também, seu Robério. Amenhã eu mando arguém dexá o café de vocêis. Tenham
uma boa noite. Até amenhã.
- ‘Té amenhã… Brigado.
Nisso, os filhos e o cunhado de Zé Alves se instalam nos lajeiros que existem ao redor
da casinha de Pajaraca para resguardar a segurança da propriedade. A ordem é clara. Se após

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Zé Alves ir embora algum deles fizer alguma gracinha, é poiva. No entanto, a noite passa
preguiçosa embalada pela luz da Lua que penetra os esqueletos da vegetação ressequida.
O dia amanhece e Regina prepara um café reforçado para os ilustres visitantes,
acompanhado de um panelão de cuscuz com nata e queijo de coalho. O problema é: Quem vai
deixar?
- Vai tu! - Diz Nita.
- Eu vôte! Vai tu! - Diz Quinha.
- Vai, mamãe? - Perguntam as duas.
- Oxe, tão doida?
Puxa p’ra lá, puxa p’ra cá, acabam convencendo a pobre da Minervina p’ra ir deixar a
comida.
- É só o que eu arrumo, Jesuis!
Mas Minervina, sempre muito eficiente, vai e faz o serviço direitinho sem levantar
qualquer suspeita.
Por outro lado, o Sol já estava a 45 graus de inclinação Leste, e nada de aparecer um
vivente que estivesse a caminho de Santa Teresinha, então Zé Alves mesmo monta em um
cavalo e decide ir em Santa Teresinha, confiando a Pajaraca e Expedito o resguardo da
segurança na casa – sede. Lá pela “rua”, Zé Alves entra em contato com seus compadres
Chico Rufino e Zé Gayoso, que prontamente enviam outros cabras de sua confiança para dar
guarida aos filhos de Zé Alves enquanto a polícia chega, sendo que o próprio Zé Gayoso tem
iniciativa de ir a Patos buscar suporte da Polícia Militar. Perto de uma da tarde ele retorna já
acompanhado de vários homens. Doze para ser exato. Dois ficam na vila de Santa Teresinha e
o resto desce para o sítio. Lá por Patos, Zé Gayoso consegue uma cópia do impresso com a
fotografia dos meliantes, que ao chegar aos olhos de Zé Alves, reitera a afirmação de que são
eles que estão no Sítio Lameirão. Também foi feita uma telegrafia para Recife confirmando o
cerco a esses três figurões, que responderam com grande interesse em recolhê – los vivos.
Chegando no sítio Lameirão, Expedito se encarrega de levar os policiais até os filhos
de Zé Alves junto com o cunhado. E isto fazem em ponta de pé, com todo cuidado. Os
próprios policiais se admiraram com a habilidade daquele molequinho em sair caminhando
descalço por aquela mata espinhenta de forma tão esguia e silenciosa. Tal observação rendeu
ao garoto o apelido de “rastejador”, mas que só anos depois é que ele foi entender o
significado.
Conforme a casa fica devidamente cercada, os três dormem um generoso sono da
tarde, potencializado por um também generoso almoço, também trazido minutos antes por
Minervina.
Como o tempo está bastante quente, eles deixaram todas as janelas da casa aberta para
entrar vento, mantendo somente a parte de baixo da porta fechada para não entrar bicho. Isto
facilitou para que os policiais pudessem observar de longe a movimentação dentro da casa.
Perceberam que os três estavam limpando várias armas, que provavelmente estavam
guardadas dentro do baú que levavam.
A pequena, porém brava tropa, estava sob o comando do Tenente Otacílio Souto que,
ao ter recebido as últimas instruções de posicionamento e ação, fica atenta ao comando em
voz alta:
- Senhores José Amâncio, Clementino e José! Saiam de mãos para cima. A casa está
cercada!
Um lapso de silêncio envolve o recinto, ao passo que, uma a uma, as janelas da casa
vão sendo fechadas. Isto não é um bom sinal. Passados mais alguns instantes, a porta de trás

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da casa, que apenas era um feixe de caniços é colocada abaixo com um chute. Os três (sim, os
três) saem em disparada em direção ao burro mulo que estava amarrado em um juazeiro
próximo a casa. Entretanto, ao ver aqueles três se aproximando, dá um relincho, tora a corda e
sai em disparada. O barulho do animal alerta os soldados sobre o caminho percorrido pelos
meliantes. Achavam eles que a casa estava bem cercada, no entanto eles fugiram justamente
por um trecho de mato que é bem próximo a casa, e fugir pelo mato é uma grande habilidade
de um cangaceiro. Nisso, o grupo de policiais corre atrás dos fujões, que ouvem claramente a
ordem do tenente: Se correr, vai morrer! O intento do tenente em capturá – los vivos vinha
pelo fato de ter recompensa pelo meio oferecida pelo governo, já que contra eles pesavam
inúmeros crimes de furtos, assaltos, homicídios e estupros pelas várias localidades que
passaram.
Uma vez alcançados, o trio largou os rifles, deitaram no chão e se entregaram sem
maiores dificuldades. São levados de volta até a casinha de Pajaraca e por lá ficam
custodiados até um jipe da Polícia chegar ao local para efetuar a busca dos bandidos; coisa
que só ocorreu no dia seguinte.
Em Patos, a captura daqueles três rendeu assunto nas rodas de conversa por muito
tempo, bem como nas bocas de difusora que existiam na região. No mais, o trio após ter
ficado algumas semanas na cadeia municipal de Patos, uma guarnição da Polícia de
Pernambuco já munida ordem judicial faz a busca dos mesmos para julgamento naquela
grande metrópole. Ficou também expedido o direito de recompensa, que em parte ficou a
direito do grupamento do tenente, e a outra coube a Zé Alves. Este último, não recebeu essa
recompensa em dinheiro vivo. Preferiu abater uma dívida que tinha com o banco do Brasil
referente a empréstimos que possuía, do qual obteve total quitação.
Depois desse episódio, nenhuma noticia se teve sobre esses visitantes que passaram
por aquelas bandas.

CAPÍTULO XXVIII
Os causos de Joaquim Nunes
Um dos principais passatempos do povo do Lameirão era aos sábados se reunir na
calçada da casa grande, local onde residia Alcinda, Severina e Joaquim Nunes. Este último, na
sua juventude, no final do século XIX, era vaqueiro na fazenda Santo Estevão. Casou – se
muito novo com a finada Mariquinha. Juntos, com muito esforço e espírito empreendedor,
compraram muitas terras, principalmente com seu filho mais velho Zé Alves. Quando
enviuvou, em 1949, Joaquim já tinha mais de 80 anos e não tinha mais a saúde de antes. Sua
memória às vezes lhe pregava peças; esquecia o nome dos filhos, trocava as bolas, repetia a
mesma conversa um monte de vez, calçava a sandália com o pé errado, vestia a calça do
avesso, essas coisas. Nada demais. Nada de espantoso para alguém na idade dele. Entretanto,
algo que estava intacto no velho Joaquim era sua memória para contar histórias,
principalmente aquelas bem antigas. Principalmente as de visagem.
Aos sábados, o povo do Lameirão gostava muito de se sentar ao redor dele na calçada
para ouvir atentamente as suas histórias do passado, fossem elas reais ou fantasiosas, de
milagre ou de malassombro. Era muito evidente a habilidade que ele tinha em cativar a
atenção dos que iam até sua casa visitá – lo.
Várias eram as bandejas de café que Severina servia às visitas. Precisava voltar ao
fogão de lenha duas, três vezes para fazer café de novo para o povo. Severina não se queixava

166
nem um pouco, pois gostava muito dos visitantes e gostava mais ainda de ver o pai alegre, se
divertindo contando suas histórias.
Joaquim não tinha nenhum repertório pronto. Bastava a visita chegar e pedir: - “Seu
Juaquim, conte pra nóis aquela história que aconteceu dia tal, com fulano de tal, no lugar
tal”…
Incrível era a riqueza de detalhes com que Joaquim adornava as narrações. Muitos até
se recordavam de certos fatos abordados por ele, mas não com tantos pormenores.
Certa noite de sábado, a calçada do casarão estava cheia. Vários eram os visitantes, até
Mané Roldão e Vicência apareceram. Com eles estavam Zé Alves, Regina, Pajaraca, Abigail,
Minervina e uma meninada que corria para lá e para cá no terreiro impecavelmente varrido,
iluminado por um luar clarissimo. História vai, história vem, no canto da calçada, Alcinda
lidera em uma mesinha uma rodada de carteado e eis que, entre as crianças, Expedito olha
para a Lua e vê algo diferente:
- Pia, mainha. A Lua tá ficano pôde. - Exclama Expedito.
- É o quê, minino? - Pergunta Abigail, sem entender.
- Ó a Lua, tá ficano com uma banda preta, que nem um tumate se apudreceno…
- Pia!!! É mermo! Vala me Deus! Isso é siná dus tempo! - Conclui Abigail, já com voz
embargada.
- Nóis vai morrê, é mainha? - Pergunta Expedito, assustado.
- Nisso, Pedro Gentil, que de longe era o mais sabido ali, se apressa em tranquilizar os
presentes.
- Calma, meu povo! Isso é só um eclipse da Lua. De tempo em tempo tem aqui. Vocês
não veem por que provavelmente estão durmino ou nem se dão conta.
- Ave Maria, mais é bunito dimais, ó? - Exclama Zé Alves.
Por alguns minutos, todos param o que estão fazendo ou conversando para apreciar
aquele fenômeno natural tão belo e singular. De repente, todo aquele luar que iluminava de
leste a oeste os prados do Lameirão apagou – se. Até mesmo as crianças que brincavam de
“toca” vieram para a calçada. Zé Alves precisou inclusive aumentar a chama do Lampião,
pois de repente ficou tudo muito escuro.
Mais alguns instantes, a mancha preta na Lua vai dando lugar novamente à faixa de
luz que antes existia. Pouco a pouco o luar volta a iluminar tudo que existia ali com tom azul
prateado e todos retornam ao bate papo. E dado o fato ocorrido, a conversa seguinte não podia
ser outra:
- Pai, o sinhô lembra quando foi mermo que o Sol se apagô? - Pergunta Zé Alves.
- Se eu lembro? Lembr’até dimais… Foi im 40. Dia primêro de oitubro.
- Tá danado. Pai lembra inté o dia! Eu lembro mais umeno só… - Completa Zé Alves,
incentivando o pai a detalhar mais e mais.
- Ah, caba véi... Foi uma luta! O medo foi por que ninguém tinha ráido pa pegá as
nutiça, por que os povo das ciênça sabe tudo isso. Sabe dizê o dia e inté a hora, num sabe?
- Hum.
- E a gente aqui num tinha como sabê. Nesse tempo, nem caminhão tinha. Ir pa Patos
era a coisa mais difice. Só se fosse de cavalo ô de burro. Se alguém tivesse ido uns dia antes,
cum certeza trazia a nutiça pa nóis e ninguém se assombrava daquele jeito...
- Sei, sei… Ficô de noite mermo, que nem agora, só que sem a claridade da Lua… -
Acrescenta Mané Roldão.
- Nesse dia, todo mundo se achegô aqui. Tumaro café, amolaro as ferramenta e
descêro tudo pro roçado de agudão. Ingraçado que como tinha chegado oitubro, tava todo

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mundo intuano a ladainha de Nossa Sinhora de Aparicida. E tava todo mundo intirtido fazeno
suas coisa. O céu tava bem azulado nesse dia…
- Aí depois teve o quê, pai? Diz! - Pergunta a pequena Quinha, curiosa em relembrar o
fato.
- Aí, eu sei que… - Joaquim dá umas pausas, pigarreia… - Eu sei que do nada cumeçô
a se iscuricê… Eu se apoiei logo na inxada, por que eu pensei que tava me dano uma coisa
ruim, num sabe? Um iscuricimento de vista...
- Hum.
- Aí eu sei que… O povo foi tudo correno pra o terrêro lá de casa, chorano, um
gritadêro medôe… Quando eu aprumo pra casa junto cum o povo, tá as galinha tudo no
pulêro, tá as muié pidino perdão pro marido, o marido perduano, o povo tudo achano que era
o fim do mundo…
Quando fala da traição, Mané Roldão engole seco, olhando todo desconfiado para um
lado e para o outro, seguido de Zé Alves e Inacio que fazem o mesmo.
- Sei que depois de um tempim, depois do povo chorá muito e de rogá por Pade Ciço o
Sol acendeu – se de novo. Minino, pense num muído.
- Eita, cumpade Juaquim. O povo ficô tudo cum cara de têca, por quê contaro os
segredo tudim e nem morrêro. - Diz Zé Pajaraca.
- Foi mermo, Pajara. E pió. Na rua tu pensa que o povo sabia que ia tê isso? Era
pingado quem sabia. E quem dizia que ia tê isso, ninguém acriditava, que era negóço de
doido. Aí quando depois eu fui na rua, o assunto tomém era só esse, que o Sol se apagôsse. Na
rua é que o dirmantêlo foi grande: Lá o que num faltô foi ladrão dizeno que robô fulano e
pidia perdão pa num ir pro inferno, era pade que mixia cum mulé casada, dizendo quem é,
pidino perdão a Deus, era pulítico dizeno que robô e onde tinha intocado o dinhêro…
- Minino, tem uma coisa. Tá bom de tê um desse de novo toda semana, pa vê se esse
povo toma jeito. - Finaliza Alcinda.
- Teve ôtos desse depois, num foi, pai? - Pergunta Zé Alves.
- Teve. Teve um dia primeiro de janêro de quarenta e quato e ôto dia 20 de maio de
quarenta e sete. Mais aí o povo já sabia o que era aí num se assombrô mais não. Ôta que num
fôro tão forte quanto esse que deu em 40 não.
- Isso é que sê uma cabeça boa pra se alembrá de data, rapaz! Nam! - Admiram – se
todos ali.
E finalizada uma história, entra logo outra:
- Ô cumpade Juaquim. E aquela históra do vuto preto, o sinhô ainda alembra?
- Não, cumpade Mané. Essas história assim não.
- Oxe, por quê, Bigaí?
- Eu tem medo…
- Não, Bigaí… fáiz medo não. Conte cumpade, conte.
- Ah, mais aí é históra cabiluda mermo…
- Pia, eu já tô me arripiano… - Avisa Abigail.
- Bom, o tempo que tinha mais foi bem no tempo que eu comprei mais Mariquinha
esse lote aqui todo.
- Oxente, e tinha o quê por aqui?
- Rapaiz, aqui era rota de muito vaquêro de antigamente. Muito vaquêro morreu por
aqui de fome, de tiro e interrô – se por aqui mermo, a mêi parmo de fundura.
- Rapaiz, essa eu num sabia não… - Diz Mané Roldão.
- Pois foi. Zé quando fez a casa dele… Foi quando mermo, Zé?

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- Foi em vinte e oito, pai.
- Em vinte oito. Zé e eu achemo ainda três caveira de gente, só a cabeça e os dente no
canto que a gente ia cavá a sapata da casa.
- Oxente, e tinha difunto no terreno da casa de cumpade Juzé? - Pergunta Abigail.
- Onde nóis ia construí de primêra, tinha. Nóis ia construí bem mais lá pra cima do
arto. Mais depois dicidimo cavá a sapata onde é agora mermo…
- Aí lá num tinha difunto não?! - Pergunta Pajaraca.
- Lá não.
- Hum, sei… Pia mermo.
- Aí eu sei que… - (Joaquim agarra o dedão do pé; faz isso como se facilitasse as
lembranças de irem saindo). - Sei que butemo as cabeça numa caxa de madêra e levemo po
pade rezá nelas e dá uma seputura de verdade. Depois ele vêi e rezô onde achemo as cabeça.
Depois disso nunca mais achemo cabeça de ninguém.
- Era Pade Zé Luis, papai? - Pergunta Severina.
- Era.
- E cumpade Juaquim num tinha medo não de pegá as cabeça e butá na caxa?
- Eu? Eu tinha medo se a cabeça tivesse viva com o resto do dono. Aí sim.
- É isso aí num fáiz medo não… - Completa Regina.
- O que faz medo…
Abigail se arrepia toda novamente.
- É os vuto preto!* vulto preto
- Arre Maria. Eu me arripêi todinha… Tais veno?
- Lá no Grotão é o pau que mais tem… - Completa Joaquim
- Deus que mim live e guarde d’uma hora dessa, d’eu passá naquele isquisito.
- Pois eu já passei muito… - Afirma Joaquim.
- E cumpade viu o vuto preto?
- Vi não por causo que tava iscuro e era de noite e o bicho é preto, aí num vi não…
Mais que tava lá, tava. E toda vez qu’eu passei, tinha.
- Minha nossa Sinhora. Nunca mais eu passo ali. - Completa Abigail.
- Esse tipo de história também atraía a criançada, que ficava à beira da calçada, de
olhão vidrado, ouvido e guardando no íntimo cada palavra do velho Joaquim.
- Foi como que papai viu? - Pergunta Alcinda.
- Rapaiz, uma das veiz qu’eu lembro foi assim: Eu vinha no burro passano mermo por
aquela istrada. Aí pricisei pará o burro pa fazê um negócio atrais daquela peda grande de lado
do riachim, num sabe?
- Foi cagá, né, véi? - Completa Alcinda, espirituosa.
Todos riem, inclusive o velho Joaquim, que também era muito espirituoso, embora
contido.
- É, eu pricisei… Tava longe, né? Aí eu sei que, assim qu’eu se abaxei pa obrá… puf!
Uma pedinha bem ne nesse ossim aqui do pé… Aí eu: Arra gota serena!
(…)
Eu nem dei por mim, num sabe? Continuei o sirviço e de novo: Puf! Ôta pedinha bem
na minha canela. Aí num contei cunvessa. Subi as carça assim bem ligero e gritei: -Quem tá
aí, djabo?
(…)
Aí foi que piorô mermo! As pedinha vinha vino de todo canto. Bateno nas minhas
canela, nas costa, no bucho, na cara, aí eu saí correno! Nem se arreparei que o jumento tava

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rilinchano com toda mulesta e inquieto; eu quase num consiguia subi cum o bicho doido dano
pulo e coice e quereno mordê eu… Aí quando eu se subo no jumento e ele cumeça a acunhá,
eu vejo assim passano pelas jurema uma sombra preta pra lá e pra cá…
Nisso, Abigail está quase passando mal…
Aí eu só uvi uma voiz dizeno: Vá simbora daqui…
Eu num contei cunverssa...
E essa era apenas uma das tantas narrativas que saiam da boca de Joaquim Nunes, sob
um tom de voz mansa, melancólica, espaçadas por um lapso de tosse seguido de uma cuspida
no chão.

CAPÍTULO XXIX
A arenga dos moleques
Mais uma daquelas chuvas esparsas caiu nas roças de Zé Alves, o algodão brotou
floriu e ficou carregado de casulos, o que prometia pelo menos meia safra, que nem era mais
esperada, agora era só esperar pra colher, e Zé Alves, que tinha ficado em casa pra cuidar dos
negócios do sítio, mandou dizer a Pajaraca que trouxesse Expedito p’ra se juntar com Miguel
Bento, e mais uns dois companheiros, para agora catar algodão, que ele pagava por arroba.
Todos estavam bem animados, e Expedito, livre da emergência juntamente com
Miguel, estavam acompanhados de Alfredo Putruco e Biu Morroia. Miguel Bento e os seus
dois companheiros que tinham vindo, para ajudar na colheita do algodão, levantavam pela
madrugada faziam café, tomavam, e quando o dia clareava, já estavam dentro da roça, cada
um levava uma cabaça com água, pois essa ficava muito longe do trabalho, assim como
também a casa. Expedito ia mais tarde e levava o almoço, que ele mesmo fazia, e esse era
sempre rubacão, porque não tinha panelas pra fazer o arroz separado do Feijão, e quando isso
tinha que ser feito, o Feijão era cozinhado primeiro, depois disso colocado numa cuia e a
panela estava desocupada pra fazer o arroz, depois do almoço.
Expedito aproveitava um pouco da tarde pra catar uns quilos de algodão, e às quatro
horas da tarde ele voltava para casa, onde ia fazer a janta dos trabalhadores. O algodão que ele
catava naquele pequeno intervalo, ia sendo junto e guardado num monte lá mesmo na roça, e
só no fim de semana ele era levado pra casa, apesar de ser colocado alguns quilos todos dias
no mesmo monte, Expedito notava que o volume não crescia, pelo contrario as vezes
diminuía. Com isso, contou o caso a Zé Pajaraca, mas esse achava que os trabalhadores eram
honestos; tanto que ressaltou:
- Só se for Aifredo Putruco. - Mas voltou atrás. - Não, Aifredo eu conheço há muitos
ano, num pode sê ele não. Migué Bento tomém é só traquino mais já tá ficano taludim e é um
cabra direito. Seu Biu, coitado; só tem morroia, e eu só tem esses três pra se suspeitá...
- É paim, mais Migué Bento é quem cata o maió tanto de quilo por dia, mais nóis num
pode afirmá que é ele, né?
- Pois é. Tem que vê se num tem argum bicho pegano.
- Que bicho, paím?
- Sei lá. Bicho de dois pé...
Mas Expedito, que já estava de orelha em pé, ao invés de ir pra casa às quatro horas
ficou escondido perto de seu monte de algodão pra ver quem era o sabidinho, e pegá-lo com a
mão na cumbuca, e na hora de ir pra casa, Miguel Bento foi lá no monte de algodão de
Expedito e pegou uma boa parcela. Quando Expedito surgiu de supetão e reclamou, ele ficou

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muito brabo e disse que tinha ido pegar uma parte que ele tinha por engano botado ali, por
tanto tava pegando o que era dele, e esbravejou:
- Se você fô pegá agudão no meu monte, eu dô – le um murro e vou contá pa seu pai le
dá uma pisa, seu fresco!
Com a afronta, Expedito não ficou satisfeito. Ficou dias remoendo sobre aquilo, catar
algodão com os pés descalços, dentro de um carrapicho empestado dos diabos e o malandro
levar, não era mole não, tinha que recuperar aquele prejuízo, mais como tirar do monte dele
era impossível, porque daquele dia pra frente ele ficou desconfiado, não virava as costas pra lá
nem a pau e quando ia beber água lá onde estava a cabaça, andava de costa pra não tirar o
olho do monte de algodão. Só que Expedito estava decidido não deixar barato.
- Aqui é bateu, levô!.
À tardinha quando voltavam da roça para casa, todos passavam pelo açude de Mané
Roldão para tomar ali o banho do fim da tarde, em seguida iam pra casa de Zé Alves pra pesar
o algodão colhido naquele dia. Dormiam cedo pra acordarem cedo no dia seguinte. No
sábado, Expedito não levava o almoço, pois todos paravam o serviço ao meio dia, e vinham
almoçar em casa. Expedito fazia o almoço logo cedo, e ia buscar o algodão colhido por ele
durante a semana, e voltava junto com os trabalhadores na passagem pelo açude todos iam
tomar seu demorado banho, e neste sábado não foi diferente dos outros.
Seu Biu foi o primeiro a ir embora, por que mais uma vez estava sem seu bendito pó,
Alfredo Putruco tomou banho esfregou com força às ventas e a barbas, fungou nas palmas das
mãos, saiu pegou sua trouxa e foi andando. Miguel Bento, com seus olhos de boi ruminando
permanecia dentro d’ água, Expedito também saiu depois deles levando seu saco de algodão
como também as roupas de Miguel Bento, inclusive os currulepos, e esse ato provocou um
distanciamento entre os dois por muito tempo. Pegaram briga no terreiro e tudo.
Seu Biu almoçou e espichou sua rede debaixo do pé de pereiro das galinhas e pediu a
Expedito para trazer seu pó milagroso, que naquele momento estava relativamente, deitou-se
de papo pro ar e dormiu um sono pesado. Alfredo Putruco também almoçou, fez um cigarrão
grosso de fumo deitou na rede e ficou soltando baforada de fumaça pelos buracos da venta,
parecendo uma fornalha de engenho de fazer rapadura.
Sei que no dia da traquinagem de Expedito, o Sol descia rumo ao poente e nem noticia
de Pedro Sergio, Putruco levantou-se escovou os dentões, mas não mudou em nada pois sua
dentadura era espichada pra fora dos beiços e tinha pouca diferença da boca de um cavalo,
tinha um pescoço de touro e o nariz era maior de que o bico de um tucano olhando-se para o
bigode dele, tinha-se a impressão de que ele tinha engolido um anum preto pela metade, e
esse tinha ficado com as asas pelo lado de fora, e ainda tudo isso distribuído numa cara muito
feia. Pedro Piecuca com toda certeza estava dentro do açude com água até pescoço, por que
ali passava muita gente e as mulheres da redondeza iam lavar roupas no açude nas tardes de
sábado, e ele só podia sair dali com segurança lá pela meia noite, pois o caminho dali até o
seu destino era muito movimentado, passava na frente da casa de Mané Roldão.
Dona Vicência não saía da janela alta, botando vigia nos coqueiros pra menino não
bolir, outra coisa o campo ali em volta era muito limpo, se alguém o visse nu pelo caminho ia
querer explicação, outro problema era o frio naquela época do ano, pois a água fica gelada nos
açudes devido ela ser turva, os raios do sol não penetram nas profundezas para aquecê-la.
Piecuca só tinha aquela roupa e ele cuidava dela com muito cuidado, para não estragá-la, ele
ficava o dia todo na roça só de cueca e sem camisa e mais, quando ele chegasse em casa
naquela noite quem iria entrega-las pra ele? Por que Onave tinha ido pra casa da irmã mais

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velha, que era muito longe dali de onde só voltava na segunda, Seu Antonio Alves e Putruco
não sabiam onde encontra-las.
Mas Pedro Cuecão não era nada burro, pegou um saco cortou o fundo e entrou pra
dentro dele, fez uma costura entre uma perna e a outra formando assim um cuecão, pegou
outro saco furou o meio do fundo enfiou o pescoço deixando a cabeça pra fora, cortou os
cantos e enfiou e os braços formando assim uma camisa, e ficou aguardando a chegada de
Onave lá pela segunda feira, mas esse só apareceu depois que ele tinha ido pra roça, cortando
muitos caminhos para não ser visto daquele jeito, pois ele não queria mostrar aquela roupa pra
ninguém e João Nunes não estava em casa naqueles dias.

CAPÍTULO XXX
O ladrão de fumo dos outros
Pajaraca fumava um cigarro de fumo da grossura de um dedo, parecia um charuto
cubano daqueles bem grossos; a tralha deste vicio era uma faca, uma caixa de fósforos, um
pacote de papel Colomy, uma tabua pra cortar fumo e por fim um pedaço de fumo da marca
Arapiraca, e nunca boró tudo isso bem arrumado em cima da tabúa e guardado no caritó que
ficava perto dos potes, e além dessas coisas tinha sempre um cigarro feito junto com elas
esperando ser queimado; mas aqui, acolá esse cigarro sumia misteriosamente, e seu legitímo
dono ficava furioso.
- Quem foi que pegou o cigarro, Ixpedito?
- Nem sei, pai... - Era sempre a resposta.
- Mais vancê num vê quem é? Do preço que ta o fumo principalmente o meu, que vem
lá das bandas das Alagoas, e eu só compro dele na banca de Dedé Fumeiro, ou é você que tá
aprendendo a fumá, esse minino?
Se eu lhe pegar com um cigarro na boca eu faço vancê inguli ele, era só o que faltava
se num for Ixpedito que tá aprendeno a fumá só pode ser aquele Putruco da ventona, pois os
oto num fuma. Arra, é o djabo mermo home toda vez que eu tomo o café, e vou pegá o cigarro
já num tá lá, e lá vai o bexta fazer outro e o prejuízo do fumo do papé do fósco, eu não gosto
nem de pensá tudo isso é dó de gastá o fumo dele, e vai sê ele mermo; porque lá onde ele tá
trabaiano hoje, na casa de Zé dos Côco ninguém fuma e ele todo dia passa aqui tocando as
vaca de Zé e entra aqui pra bebê água; por isso é que ele quando trabaiava aqui passava duas
semana com um dedo de fumo, desse jeito eu vou quebrá!.
- Venha cá Ixpedito; quando Putruco passá amanhã tangeno o gado de Zé dos Côco, e
entrá aqui em casa pra beber água vancê preste bem atenção no meu pedaço de fumo por que
se não eu vou ficá doido, diabo homem primeiro foi Pedro Cuecão aquele peste ficou dois
dias nu aqui em casa por que não tinha roupa pra vestir, estragou os sacos de butar algodão
pra fazer roupas pra ele, depois vem seu Biu Morroia com aquelas veruga, da cor de olho de
xorró passou três dias sem trabalhar só comendo sem fazer nada inventando que a morroia
tava ardendo por causa do reméido vencido, ainda bem que ficou bom.
Agora eu quero saber o que irá acontecer, eu já sei o que é por que se eu pegar
Putruco robano meu cigarro ai ai, já tô com a língua toda inrrolada o que foi mesmo que eu
falei? Que eu falei? Ele vai aprender com quantos pau se faz uma aparuca; a por falar em
aparuca já tá na hora de armá as ataraca, só que eu não vou mais arma elas lá no riacho do

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meio por que aquele cachorro de Antôe Lucena vai lá robá a isca e cai na arataca e me morde
todo na hora de tirar ele dela, ainda bem que Antôe Lucena nem sabe que ele quebrou a mão
na minha arataca; já pensou se ele sonhasse que zuada danada ele ia fazer? Mermo ansim eu
vou armá elas com coro de gato de casa mermo, maracajá tá caro e eu vou vê se pego umeno
uns dois, o diabo é a raposa ela vem na frente cai na armadilha e fica cagando e mijano, e no
outro dia o gato nem passa perto por causa da catinga, eu me lembro do ano passado só peguei
gato maracajá. Agora eu vou ali na casa grande, mas primeiro eu vou escondê a tauba de fumo
debaixo da cantareira, e eu quero vê Putruco achá ela e eu vou é logo, se não quando eu chegá
lá cumade Arcinda, mas cumade Sivirina, elas já tão deitada.
- Ixpedito, preste bem atenção em Putruco, quando ele passá aqui se não quando eu
chegá e achá o fumo mixido vai dá coisa, eu acho que tá na hora de falar com Zé dos Côcos
pra mandar Putruco ir simbora embora, por que Piacueca e Biu morroia num fuma, purtanto
só pode sê camarada Aifredo que tá me robano; eu vou isperá Putruco passá aqui e mandá ele
ir morar lá nas Arapiraca, só assim ele mata a vontade de fumá e eu já sei o que eu vou fazê
sigunda-feira.
Eu vô comprá um pedaço de fumo pacaia, e botar lá no lugar de sempre e ele se quiser
que fume boró. Pedo Sérjo é ota praga! passa o dia todo vistido naquela cuecona feita de saco,
divia tê vergonha. Seu Biu Morroia é ôto que num tem nem corage de tumá bãe; ainda bem
que ele tá ficano bom das morroia, mas num corta as unha, agora o que me aburrece mermo, é
o tá do Putruco com aquele bigode todo melado de sarro de fumo; aquela ventona de bico de
tucano, por isso é que aquele bicho não arruma uma muié. - Tem dia que Pajaraca quando fica
bravo e resmungão, ninguém segura.
E no domingo Pajaraca pergunta.
- Seu Biu, o sinhô qué arguma coisa da fêra?
- Quero.
- O que é?
- Um canivete.
- Já sei, vai cortar as unha…
- Vô mermo.
- E vancê Pedo?
- Eu quero um ispêi, um pote de briantina, uma carça, uma zorba e uma camisa de
abutuá...
Na segunda-feira à noite, Pedro recebeu a calça, a camisa, a cueca, o espelho e o vaso
de brilhantina; e seu Antônio o canivete e quando o dia clareou na terça feira, Pedro estava na
frente do espelho e Biu depois pediu o espelho emprestado e foi lá pr’os matos ver se seu
problema estava sarando; em seguida Pedro Piacueca vestiu sua roupa nova e foi passear na
casa do povo o dia todo, e Zé Pajaraca todo dia ia lá ver se alguém tinha mexido no cigarro,
mas Alfredo tinha ouvido algum zunzunzun e andava de orelha em pé.
Pedro Piacueca não saía da frente do espelho, aparou as unhas, cortou os cabelos dos
buracos da venta e a empurrava pra um lado e pra outro, media o tamanho dos dedos. Seu Biu
olhava pros pés com as unhas já cortadas, sentado de banda, pegava o espelho de Pedro e
olhava pr’as suas próprias caretas e ria; depois Pedro pego ia buscar o espelho e olhava p’ras
pernas, certamente pra se ver com a cueca nova, e trabalhava com cuidado p’ra não rasgá-la.
E terminada a cata das espigas de milho, Biu e Pedro Cuecão foram cortar lenha pra
fazer carvão, e Alfredo Putruco há dias que trabalhava pra Zé dos Côcos, mas todo dia ele

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passava na frente da casa de Zé Pajaraca tangendo o gado de seu novo patrão, pra ir beber na
cacimba dos bodes, pois quem vinha do Arapuá pra dar de beber a animais neste bebedouro
tinha que passar por ali, os animais seguiam pro cacimbão e ele fazia uma parada para beber
água e ver se surgia uma oportunidade pra surrupiar um cigarro do fumo de Pajaraca, que
botava a culpa em Expedito por se descuidar da casa na hora da passagem dele por ali.
Abigail, sempre atarefada com meninos e comida lá pra dentro, não podia largar disso e ver
quem passa pela frente da casa.
Expedito reclamava, mas Putruco dizia que um cigarro de fumo não valia nada, mas
Pajaraca não queria saber disso e Expedito pagava o pato, e para afastar Putruco deste vicio
tinha que fazer alguma coisa concreta por que ele não recuava com as palavras e pra fazer
isso, Expedito foi lá no bisaco que ficava atrás da porta da frente, tirou de dentro deste um
polvarinho cheio de pólvora Elefante, foi ao caritó onde estava a tábua com o fumo, picou
uma porção deste e em seguida pegou o papel Colomy, colocou o fumo picado nas duas
pontas; encheu o meio com a pólvora e enrolou formando um cigarro bem grosso, colocou em
cima da tábua junto com as outras coisas inclusive uma caixa de fósforo, e devolveu tudo ao
lugar de costume, (isto é no caritó).
E no dia seguinte no horário de sempre, o barulho da chocalheira das vacas já se ouvia
de longe, o gado sentia o cheiro da água nova e começava a correr na direção dela e Putruco
vinha na rabeira, aboiando. Quando a última vaca passou na frente da casa e a poeira
assentou; Alfredo apareceu na porta sem dar um bom dia e foi direto ao pote, enfiou o copo lá
dentro encheu-o de água e o levou direto à boca, repetiu a operação e ao terminar de beber,
olhou p’ro caritó, e a cobiça apareceu em seu rosto. Não se contendo, pegou o cigarro botou-o
na boca, pegou também a caixa de fósforos, riscou um palito e o acendeu, chupou uma
baforada e botou pra fora pelos buracos da venta um tufo de fumaça que parecia uma
locomotiva, deu outra chupada e naquele momento ouve uma explosão, e tudo sumiu no meio
da fumaceira e Putruco saiu do meio daquilo, deixando para trás o seu bigodão, pestanas e
sobrancelhas e p’ra acertar com o caminho de volta, ele teve que ir segurando no rabo de uma
vaca que ia atrás do rebanho pois não conseguia abrir os olhos para enxergar o caminho.
O estrondo foi tão grande que assustou todo mundo. Naquele instante até se comentou:
Teve tiro lá em Pajaraca!

CAPÍTULO XXXI
Nasce mais um herdeiro de Zé Pajaraca

2 de novembro de 1957; dia de finados. Enquanto os vizinhos choram a morte de seus


entes queridos, o sítio Lameirão está num corre – corre da gota. De um lado, o primeiro neto
de Zé Alves está prestes a nascer, filho de Zé Serafim com sua filha Marina; Do outro lado,
quase que no mesmo instante, Abigail começava a sentir dor de menino de novo. Pajaraca já

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tinha até perdido a conta de quantas vezes Abigail já engravidou, mas com certeza ia p’ra
mais de dez. Mais uma vez os serviços da lida no campo tiveram que ser paralisados para que
as parturientes pudessem ter a devida assistência. Pajaraca, como dito, já tinha vivido essa
cena por mais de uma dezena de vezes ao todo, mas sempre que acontecia de novo, seu
aperreio era notório:
- Migué! Ô Miguéééé!
- O que foi, Pajaraca?
- Venha cá logo, ô meu Deus que aperrêi danado, tanto minino que já tem lá im casa, e
ainda vem mais esse.
- Pronto, cheguei, Pajaraca, o que era?
- O que era já passô, Migué! Vá ali logo correno bem ligêro buscá mãe Rosa, ligêro,
vuano! Que ‘Bigaí já tá daquele jeito, sintino agora a dô de minino, bora!
- Mais eu num sei nem adonde ela mora não...
- Ora mais essa agora, cumade Rosa mora lá desceno da casa de cumpade Juzé Aivo,
no pé do roçado, numa casa véa de taipa, forrada de pucumã, têa de aranha, e chêa de uns
buraco que os caburé passa vuano por dento sem nem tocá as asa nos pau! Quando você chegá
lá vai vê uma véa bem pretona, bem fêa véa, ds beiço de gamela, da venta chata espragatada e
arregaçada, que os buraco da venta parece uma fornáia de ingêim de fazê rapadura. Ah, e tem
ais unha bem grande igual a d’uma caipora, cum um cachimbo véi bem grande e fedorento,
cum o canudo infiado na boca véa banguela, e um rusáro pindurado no pescoço, que tem
umas mêa braça de tamâim, ixticado infiado por baxo do cabeção do vixtido, no mêi das
pelanca dos peito véi.
- Sei, sei... – Diz Seu Miguel, prestando atenção a tudo. - Quê mais?
- Ela vive sentada numa péda bem grande, e do lado dela, sempre tá Minéivina, que é a
fia dela, a que trabaia lá em cumpade Juzé e fica sentada numa péda mêa menó. Intendêsse
agora Migué?
- Intendi sim, Pajaraca, é naquele lugá que tem bem muito pé de jurema, né mêrmo?.
- É lá mêrmo, seu caba. Vá logo cus’djabo, home!
Quando já tomava certa distância, Seu Miguel volta:
- Ô Pajaraca, me dig’uma coisa..
- Diga, homi...
- O que é pucumã?
- Ô, Migué! Pucumã, é têa de aranha mixturada cum fumaça de fugão de queimá
lenha, que só tem na casa de gente priguiçosa. Vá simbora logo home, é que eu já tô é
aperriado aqui, pense! Já já quem vai parí é eu!
Ao ouvir a conversa entre Pajaraca e Miguel; Abigail apareceu vagarosamente na
porta, já com certa dificuldade para caminhar, mas ainda protestou:
- Num vá chamá cumade Rosa não, seu Migué. Vá lá im cumpade Sarafim buscá
cumade Maria de Juaquim Profiro, que pegô o minino dele que naisceu hoje e diga a ela, seu
Migué, pa trazê uma garrafa de azeite de carrapatêra, que num deu tempo pra eu fazê aqui
não. E você Zé, num é pra mandá mais chamá cumade Rosa pra pegá minino aqui nessa casa
mais de jeito ninhum!
- Oxi, e pur quê não ‘Bigaí?
- Pur que ela é uma véa muito é da cebosa, ôto dia eu fui lá pa banda da casa dela e vi
quando ela se abaxô pa pegá uma panela que tava cunzinhano cumê numa trempe no chão, aí
o rusáro* rosário, o terço dela saiu de dento do cabeção da brusa dela e caiu dento da panela, cum
cruiz e tudo!

175
- Sim, e o qué que tem? – Pergunta Pajaraca.
- Oxi, ela só fez tirá. Depois ela infiô o rusáro de vorta no mêi dos peito, pu baxo do
cabeção, todo melado de fejão!
- Eita fêjão goxtôso medõe! – Brinca Seu Miguel.
- Ôta coisa, ela só corta os imbigo dur minino que ela pega com aquelas unha véa dela,
toda incardida de fumo que ela corta com elas pa butá naquele cachimbo véi fedorento. É
tanto que eu acho que aqueles minino que morrêro com imbigão inchado e vermêi, e até os da
gente que morrêro tomém, foi tudo pur causo daquelas unha suja que ela vai e tóra os imbigo
dur minino novim...
- Que nada ‘Bigaí. As pessoa num trata imbigo de menino é com péa de fumo de boró
e banha de cágado? Num ofende não.
- Mais eu sei que o que é bom mêrmo é arnica mixturada cum beladona e cibazol. foi
cum isso que eu sarei o imbigo de Januáro, e tá ele lá sadíi todo.
E Zé Pajaraca, sem querer encompridar a conversa:
- Ta bom homi, tamo perdeno tempo. Vá lá pra dento se deitá, vá.
- Vô, mais cadê seu Migué?
- Migué foi lá im cumpad’ Sarafim vê se o minino lá já naisceu im paz e de lá cumade
Maria já deve tá se arrumano pra vim mais Seu Migué pra cá.
- Aff, Zé, e eu vô tê o minino assim no sêco, é?
- Nam, tá doida, é? Eu guardei aquela garrafa de mé de jandaíra.
- Ainda bem. – Diz Abigail, mais sossegada. Intão tá bom...
- Agora, quando Migué chegá eu vô já mandá ele comprá uma garrafa de cana pra
fazer o licô.
- Eita que tu só qué o pé pra tumá cana, né Zé?
- É pra fazê licô, muié!
- Apois intão ande também trazer uma lata de gáis, e trazê também um quilo de sá* sal,
que o úrtimo que tinha na cumbuca eu sáiguei aquele piau que você trouxe.
- Eita que você é gaxtadêrinha das coisa, viu minha fía? – Reclamam Zé Pajaraca.
Num tem sá que chegue nessa casa!
- Num gaxto não! É porque eu pidi imprextado um punhado a cumade dona Vicênça,
aí tive que pagá de vorta, intão é pur isso que acabô - se tão ligeiro assim desse jeito.
O tempo passa e nada de Seu Miguel chegar:
- Eita, que Seu Migué tá demorano, rapaiz. Deve de tá contano as passada! – Reclama
Pajaraca.
- Oxi, te aquéta, Zé! Quem divia tá aperriada era eu. - Diz Abigail, se abanando.
- Inquanto ele num chega, eu vô lascá esses pau de lenha, e eu vô logo é amolá esse
machado que tá é danado de cego.
- Traga uma cuia d’ água aí, Ixpedito.
Expedito, meio perdido em meio àquela correria, demora um pouco com a água.
- Venha ligêro home, bote isso aqui!
Expedito se assusta com o grito e acelera a execução do serviço:
- Pronto, agora esse machado vai cortá até mosca que sentá no gume dele, por que essa
peda aqui é da boa, amola cum a muléxta mêrmo! Eita pau!
Expedito chega e aguarda as novas ordens do pai:
- Tá bom, bote aqui a água. Eita peda boa danada, rapaiz. Agora ficô bom todo!
Zé Pajaraca, depois de tomar uma, tinha um hábito muito comum ao homem sertanejo:
Conversava com os objetos ao seu redor.

176
Anteriormente ele estava bem chateado pela trabalheira que teve com um toco de
madeira, cujo machado cego mal tinha feito – lhe cócegas:
- E tome - le machado, seu toco danado! Tome - le, tome - le, tome - le! E agora seu
péxte, diga por que você num rachava, diga! Agora é esse ôto danado aqui, tome - le machado
também, seu fresco!
O breve serviço surtiu efeito. Distraiu Pajaraca pelo tempo suficiente até a chegada de
seu Migué.
- Epa, cumpade Migué tá chegano mais cumade Maria, e eu já vô ataiá ele, pra mandá
ele ir comprá as coisa.
Ao ter ouvido o chiado da carroça de burro nos seixos, Zé Pajaraca vai de encontro aos
dois no puxa - encolhe e recomenda:
- O sinhô, cumpade Migué, antes que iscureça, vá lá im Teófe Batixta, e diga a ele que
me mande um lito de sá, uma lata de gáis e também um lito de cana.
- Dois, porque eu quero um também, cumpade Zé!
- Tá certo, Migué, mas num vá bebê pur lá não, por que tá sem gáis na lamparina aqui,
e cumade Maria num pega minino com alumiado de tição não, e inquanto tu vem, eu vô lá na
cacimba buscá um galão d'água.
- Tá inhordi, cumpade Zé!
- Zéééé, manda trazê também arnica e cibazol, purque aqui só tem beladona! - Diz
Abigail, aos berros, da janela.
- Tá certo, tá bom, tá uvino também, cumpade Migué? Prextô atenção né?
- Hunrum, prextei sim, Cumpade Pajaraca!
- Então vá simbora logo, ligêro!
Nisso, dona Maria desce de sua carroça, retirando dela suas coisas: Alguns chás,
garrafas, unguentos e coisas pequenas.
- Cumade Maria, inquanto a sinhora se ajeita aí, eu vô lá na cacimba pa pegá um galão
d'água e vorto já já.
- Tá certo, cumpade. – Responde Maria, entrando na casa.
- Ainda bem que cumpade Mané Rordão já tá comprano agudão na fôia. Por que se
não Teofe num ia recebê dinhêro agora.
Nisso, Maria grita lá dentro:
- Cumpade Pajaraca, traga aqui um tição, pra mode eu procurá os cuêro!
- Peraí cumade! Eita djabo que Seu Migué parece que não vai mais chegá cum o
danado desse gáis não!
Pajaraca corre para o fogão de lenha e começa a procurar uma boa pedra
incandescente de carvão para tentar iluminar o recinto onde sua mulher se preparava mais
uma vez para dar a luz, pois as dores do parto só faziam aumentar.
- Tome cumade, ó o seu tição aqui, que eu já num vô mais buscá o galão d'água não,
agora eu vô é lá no tanque grande, oiá o forno que seu Quinca tava queimano lôiça.
- E que loiça é essa, cumpade? – Pergunta Maria.
Zé Pajaraca, já cansado de tanta pergunta, responde:
- É loiça de barro que ele faiz, cumade! Eu pidi pra ele fazê um pote e uns prato
pr’aqui pra casa!
- Ah! tá certo, cumpade.
Faltou assunto entre os dois. Silêncio...
- Bem, já tô ino lá, cumade, e eu vô é aqui pur dento porque eu passo logo no pé de
batata de puiga pra levá umas simente pa fazê um chá pa ‘Bigaí.

177
- Ah, traga mêrmo, cumpade. É bom pra afroxá o ovêro* placenta...
Nisto, Zé Pajaraca pega a picada e embrenha - se na caatinga, conversando sozinho:
- Arra djabo, qué tanta favela pra me queimá é essa! E agora? eu vô tê que passá por
cima dessa cêica de garrancho de mamelêro, mais num é o djabo mêrmo? Eu pudia tê vindo
era pelo camím de fora. Ai meu Deus, cum tanta coisa pa fazê, e agora mais um minino;
minino ou minina já vai sê bem unj déiz, déiz ou é nove? Eu nem sei mais quantos é, meu
Deus! Ainda bem que as vaca de Mané Rordão tão dano leite, purque sinão eu num ia dá
conta pa dá de cumê a tanto minino não. Rapaiz, amanhã cedo eu vô é mandá Seu Migué vim
pur’aqui pegá essa lenha seca. Eu vô levá nada!
No meio da caminhada, Zé Pajaraca acende um boró e fica em uma pedra a pitá – lo,
continuando seu monólogo:
- Ah já tô veno onde seu Quinca fez a caêra, mais parece que a queima tá apagada. É
até milhó, purque ar lôiça já tão fria...
Pajaraca vai até lá, arrastando os currulepos, e fica tocando os utensílios com a ponta
do dedão do pé, checando a temperatura.
- É, tão fríi mêrmo, parece que tão tudo intêra, pelo meno o arguidá tá. Os pratim dur
minino tombém, ó?. Ah, pia mêrmo, rapaiz. Tem um trincado... Um não, dois. Mais tá bom, o
pote tano intêro, tá bom. Eita ‘Bigaí vai fica bem saxtifeita quando eu dizê a ela!
Era visivel a alegria no olhar de Zé Pajaraca ao ver que o pote prestou, pois em muitas
outras tentativas de seu Quincas fazê - lo, sempre eles trincavam. Dessa vez foi diferente. O
negócio era usar barro de fundo de cacimba.
- Bem, quando ele dé pur farta dus prato e do pote, ele vai lá im casa atráis do denhêro,
aí eu dô. Graças a Deus hoje eu tem meu trocadim...
Assim, Pajaraca rapidamente recolhe os pratinhos um a um e coloca dentro do pote,
acolchoando tudo com muito capim seco para não trincarem no caminho.
- É e eu já vô m’imbora, mais agora eu vô é pru fora, levano logo é o pote, porque vai
pricisá muito dele pra butá água pra dá bâim no minino, minino ou minina, seja lá o que fô.
Quando tenta levantar o pote na altura da cabeça, seu corpo reclama do excesso de
peso:
- Hunra, que esse danado desse pote tá pesado e tá mêi quente ainda na parte de báxo,
mais num tem nada não, eu forro o ombro cum fôia de carrapatêra. Vô já é andano, mais num
posso iscurregá não, sinão, lá se vai o pote e ‘Bigaí fica cum raiva. Eita que tá pesano, mais lá
vô eu...
A subida para a casa vai ficando cada vez mais íngreme, aumentando a dificuldade em
Zé Pajaraca carregar o pote com os pratinhos dentro:
- Já tá chegano Zé, você aguenta. cumpade Migué também já deve de tá chegano. Tá
perto, já tô veno a casa, graças a Deus, ufa! Daqui a pôco eu já tô lá. Homi, eu vô é discansá
um pôco o ispinhaço aqui. Vala-me Deus, onde é que tá o fósco? Ah, eu vô dexá pa acendê o
cigarro é im casa. Bora andano, seu pote, que nóis chega já já. Tá veno? Já pisei no terreiro.
Pronto, bixiga! Cheguei.
Sentando na calçada e livrando – se do enorme peso do pote, Pajaraca avista seu
Miguel:
- Você chegô tombém na mêrma hora, né cumpade Migué? Agora o sinhô vá jantá lá
no pé do fugão, por que a lamparina tá ocupada, sabe com o quê, né?
- Sei não, cumpade. – Diz Miguel, já entrando na casa.
- Ô, Migué, peraí, meu fíi. ‘Bigai tá lá dento de perna pra cima, oxi! Homi num pode
vê essas coisa não!

178
- Eita, discupa, cumpade. Tava se lembrano não. Num qué tumá uma bicada da minha
garrafa mais eu não, Zé?
- Rapaiz... Quero sim, Migué, mais é Chica Boa ou Jardinêra, pelo meno?
- É não, viu, Zé? Essa é Cipuada. – Diz ele contente, salivando de vontade de tomar
toda a garrafa de uma vez só.
- Rapaiz, mim dê essa danada aí mêrmo, homi.
- Oxente, Zé, num goxta mais de Cipuada não?
- É que éss’aí me dá dô de cabeça demais...
- I’neu dá tomém, mais eu nem ligo mais!
- Pois pronto Quando o cumpade acabá de cumê o angu, vá vê se a cabra vêi po
chiquêro sozinha.
- Qual cabra? – Pergunta Miguel.
- Canindé, a branquinha.
- Essa é de quem, de seu Zé Aivo?
- É não, cumpade Zé Aivo num cria bode não. É de cumpade Juão!
- Ah, tá certo, aí é pra eu ir dexá lá, né?
- Faça isso, purque agora de tardezinha ela tava berrano lá no pé do serrotim...
Nisso, a conversa dos dois é interrompida por dona Maria:
- Seu Zé Pajaraca, seu minino naisceu... É a sua cara.
- Eita coisa linda, meu Deus! – Alegra – se ele.
- Mais entre degavázim, purquê cumade Bigaí tá discansano. – Alerta dona Maria.
- Tá certo.
Assim, Pajaraca, Miguel e dona Maria vão até o quarto onde Abigail teve a criança:
- ‘Bigaí?
- Oi Zé... – Responde ela, muito cansada.
- Cadê o minino?
- Tá aqui imbaxo desse pano...
- Será que vai vingá? - Pergunta Pajaraca a Maria.
- Vai vingá sim, Zé. É um minino muito sadíi. Parabéns.
- Brigado, dona Maria. Quant’é qu’eu le devo?
- Não, nada não... Só o que o sinhô quisé e pudé dá...
- Vá lá no garajal e peg’aquele frango pedrêiz e dê a dona Maria, Zé... – Diz Abigail.
- Tá certo. Peraí, viu, dona Maria? – Diz Pajaraca.
- Num vai fazê farta não, Pajaraca?
- Vai não, dona Maria... – Diz ele. - (Vai sim, e muito!) – pensa ele.
Então lá vai Zé Pajaraca resmungando em direção ao pequeno garajal onde ele tentava
cevar algumas galinhas:
- Mais é o djabo mêrmo. Fosse mãe Rosa, ela num ia cobrá nada. Mais ‘Bigaí, pa se
amoxtrá, tem que chamá essa muié véa, pa pegá logo o franguim mais gordo que tinha. E ói
que era pro resguardo dela, eu quero mêrmo vê como vai sê esse resguardo, capaiz de sê com
farofa de socó!
Chegando lá, Pajaraca pega o frango, amarra os pés do bicho e vem trazendo,
pendurado.
- T’áqui, dona Maria. Brigado e vá discurpano quarqué coisa aí...
- Brigado você. Inté a próxima.
- Inté...
Nisso, seu Miguel que estava por ali, pergunta:

179
- Já sabe o nome do minino, Zé?
- Nem sei, eu ainda num perguntei... – responde ele, risonho.

Alfredo Putruco

CAPÍTULO XXXII
O mutirão de Zé Alves - 1958

Quase cinco meses após nascer o último herdeiro daquela família, eis que se aproxima
o dia 20 de março de 1958, dia muito festivo e esperado para o povo nordestino, dia do
Glorioso Senhor São José. Data que é muito aguardada e que esta chegue trazendo qualquer
sinal de chuva, indicativo que o período de inverno estará garantido no sertão.
- Pajaraca, tua muié ainda tá dano de mamá a teu minino? – Pergunta Zé Alves.
- Tá mair não, seu Zé. Purquê? Pur acauso o neto do sinhô tava pricisano mamá, é?
- Nada, ele até já dirmamô. É que como ’58 tá siguro de chuva, eu vô fazê um mutirão,
aí eu quiria que tu falasse cum ‘Bigaí pra ela fazê o cumê dos trabaiadô.
- Ah, sim, cumpade. Ela faiz, cum tod’ gôxto!
- Apois vá lá agora avisá pra ela, que o mutirão vai sê depois de amenhã.
- Você veja aí uns cunhicido seu que têje pricisano de sirviço...
- Ah, é o que num farta! Quantos, cumpade Zé qué?
- Chame uns doze.
- Certo. Amenhã eu dô uma vorta por aí chamano esse povo.
- Tá bom intão. Vá lá na sua muié agora avisá, e já leve logo essa saca de míi na
carroça de mão pra ela ir pisano pra fazê uma palangana* grande quantidade de mungunzá.
- Tá certo. Vô lá agora!
Nisso, Zé vai para casa falar da novidade:
- Ô ‘Bigaí, vá se apreparano aí que depois de amenhã cumpade Juzé vai fazê uma
adjunta pra limpá a terra.
- Certo, e eu entro com a chuva, é? – Diz ela, irônica.
- Não, você vai cunzinhá prus trabaiadô...

180
- É, e eu vou fazê o quê pra eles cumê? Me diga.
- Eu truxe essa saca de míi. Vá logo pisano no pilão pra fazô o mangunzá, purquê eu
vô tê que chamá umas doze pessoa po lado de cá na hora do armoço.
- E quem é esses trabaiadô?
- Sei não, vô amanhã passá na casa d’uns cunhicido.
- Ói, eu só quero que você num chame seu Ináço Capim.
- Oxente, e pur que não?
- Nam, purque você já sabe que ele come por uns quinze trabalhadô, é pur’isso! Tem
que todo santo dia matá uma reis pa tirá a fome daquele ‘bençuado!
- Tá bom intão. – Diz Zé Pajaraca, tô de acordo.
No dia do mutirão, logo muito cedo Seu Miguel foi buscar a lenha e Mané Cacunda
seguiu em busca de água, pois o estoque de ambas tinha sido consumido na noite anterior para
cozinhar o panelão de mugunzá, ao passo que Zé Pajaraca, antes de ir para o curral tirar o
leite, ordenou:
- Ô ‘Bigaí, vá logo ajeitá o cumê porque os trabalhador já tão pa chegá e esse povo
num vem cumido não...
Todos esses trabalhadores moravam muito longe dali, mas chegavam muito cedo, na
promessa de bom e pontual pagamento, além de uma refeição reforçada e ainda por cima,
generosamente farta. Ao se encontrarem com o proprietário, tem início o ritual de
cumprimentos:
- Bom dia, Zé Aivo.
- Bom dia, seu Antôim da Cachuêra, bom dia Zé Siliquêra, bom dia Mané Caniço,
bom dia João Cassiano, bom dia Caetano Péda, bom dia Antôim Preto, bom dia Mané Preto,
bom dia Mané Pretim, bom dia Perêra Cassiano, bom dia seu Ináço Capim, bom dia, Gerardo
de Mané Pretim...
Em meio a esses trabalhadores, Zé Pajaraca percebe algo estranho, foi então que ele
reconheceu entre os outros trabalhadores aquele cuja recomendação foi não contratar, mas
como já estava ali e morava muito longe, pouco tinha a fazer. Ele foi o único a cumprimentar
Zé Pajaraca:
- Bom dia, Pajaraca.
- Bom dia, seu Inácio Capim... (Eita rapaiz, trucéro Ináço, ó? E agora? ‘Bigaí vai pega
um á danado) – Pensa consigo mesmo.
Nisso, vendo aquela movimentação, Abigail já vem descendo até o roçado servindo a
bandeja com café para os peões, ao passo que logo reconhece o ilustre Inácio Capim, e não
deixa por menos. Entra na tendinha dos trabalhadores, acena sutilmente para o marido entrar,
mas como este não entendeu o gesto, foi o jeito falar:
- Psiu… Ô Zé, chegue cá...
- O que é ‘Bigaí? Venha você pra mais aqui pra perto, você qué arguma coisa, é?
Abigail, muito contrariada, cochicha no ouvido do marido toda a sua indignação:
- Má rapaiz, tanto qu’eu le pidi pra você num chamá seu Ináço Capim e você o chama.
- Resmunga ela.
- Oxi, eu num chamei ele não, ele é que vêi sem sê chamado, ele deve tê uvido falá
que eu ia tê matutage aqui no Lamerão, e onde tem cumida farta tu num sabe que ele fica lá
pu perto só acerano?
- Mais Zé, ele vai cumê o cumê todim que eu fiz prus trabalhadô e os ôto vão ficá é
sem nada!

181
- Num tem nada não, eu vou matá aquela minha bacurinha grande, só pra ele cumê no
armoço.
- Tinha que sobrá prus bicho daqui de casa, já tem muito, né?
- Posso fazê nada, né?
- Num fácisso não, rapaz. Você num se alembra do dia da eleição não? Que ele cumeu
tanta carne de pôico que passô uma semana na bêra do açude só bebeno água e cagano mole?
Homi, ói, sei não. Você é que sabe. Se ele morrê impanzinado eu num tem cupa não, viu? E
chame logo eles pa quebrá o jijum e o de Seu Ináço eu vô butá na tigela grande. Já você Zé,
quando vê um pano branco na janela, é o siná que o armoço tá inhórdi.
- Pronto, assim tá certo!
Seu Inácio, que ainda se encontrava na mesa, ouviu bem o que Abigail falou sobre o
significado de colocar o tal pano na janela:
- Opa, eu semp’ sube que pano branco era coisa rim no caba, mais agora eu tô veno
que virô coisa boa – comenta ele, querendo descontrair um pouco.
- Bem pessoár... Todo mundo já tá cumido, vamo lá. Seu Migué, vá cum eles, que eu
vou pelá a bacurinha e vô depois...
- Ixpedito, você leve duas cabaça, e vá carregano água pros trabalhadô inquanto eu
chego.
- Tá certo, pai...
Todos, inclusive Inácio, eram bons trabalhadores. O serviço ia muito bem, mas seu
Inácio era quem não tirava os olhos da janela. Zé Pajaraca chegou com três rapaduras que
logo foram tragadas pelos peões num piscar de olhos. Ainda assim, o serviço estava bem
adiantado. Mais tarde, Pajaraca foi ao batedor e trouxe duas cuias grandes repletas de pinhas
bem maduras, que ele tinha colocado para amadurecer no calor da palha de arroz batido
recentemente e essas logo foram devoradas. Só o seu Inácio, comeu mais da metade.
O serviço que estava sendo feito ia tomando o rumo dos pés de banana casca verde.
Seu Inácio era quem puxava o eito. Este, com um olho fitava o tempo todo para a casa, para
ver se o bendito pano aparecia na janela, assim como com o outro, pastoreava os pés de
goiaba, cheios de belos frutos.
Quando o eito chegou nas bananeiras, ele começou a comer todas que via pela frente.
Olhou pra casa e gritou com a boca cheia:
-“Vé Pavaraca, o pamo pá ma vamela, o amofo vá pá pompo”! – Era Inácio falando e
cuspindo.
Nisso, Seu Inácio encheu o chapéu com as bananas e saiu comendo no caminho de casa.
Todas as pessoas almoçaram e foram amolar suas enxadas, exceto ele, Seu Inácio, que
permaneceu na mesa rapando as vasilhas em busca de restos de carne da porquinha.
Quando Abigail foi buscar os pratos da mesa, ele disse uma frase, que por alguma
razão ficou na memória de Abigail por um bom tempo. Provavelmente por estar com a boca
cheia de farinha:
- “Boma Bibaí, bope maiv awa mo feivão ba vampa, e bope máif parme bempo
pambém”! - Traduza se puder.
O Sol abriu forte durante à tarde. Todos beBigaím muita água, principalmente seu
Inácio, que beBigaí direto na boca da cabaça. Expedito, coitado, afinou as canelas de tanto
andar de lá para cá, carregando água para os trabalhadores. Nisso, Zé Pajaraca já estava
preocupado:
- Seu Inacio já tá peidano direto e pôdi, tá só ino cagá lá imbaixo dos pé de bananêro,
e daí a pouco num sai mais de lá...

182
Na volta, bebeu mais uma cabaça de água e começou a vomitar. Foi quando Antônio
de Mané Pretim receitou um chá de casca de pereiro preto misturado com raiz de quebra faca
e rompe - gibão. Seu Miguel correu em casa para agilizar tudo, e seu Inácio bebeu o chá,
fazendo uma careta dos diabos. Mais tarde ele botou o resto da comida para fora, por cima e
por baixo.
- "Ai, meu Deus, cumi tanto, mais tanto que me sinti ruim, depois fiquei se vazano,
uma coisa ruim, que foi o jeito eu virá po lado e lançá"... – Diz seu Inácio.

CAPÍTULO XXXIII
1958 - O regresso de Firmina

Abigail ultimamente andava muito triste, mais do que de costume. Agora, também
estava melancólica. Isto tinha um porquê: A mais de um ano que não via sua filha mais velha,
Firmina, que tinha largado os estudos e ido morar em uma fazenda com um senhor no sítio
Várzea da Jurema, próximo a Patos. Apesar de não ser tão longe, era muito difícil ter contato,
pois os meios de transporte eram precários. Outro meio de comunicação era igualmente
complicado, tipo carta, já que ninguém sabia ler ou escrever; sendo assim, manter um contato
era muito difícil.
N’uma certa segunda feira de abril de 1958, o caminhão de Zé Lino que vinha de
Patos. Como sempre, aporta no terreiro de Zé Alves e Zé Pajaraca vai ajudar a descer as
coisas. Nisso, desce do caminhão uma mocinha magra. Escondia uma gravidez com uma
pequena sacola com roupas na frente da barriga. Era Firmina.
Ela estava com um vestido florido azul e o cabelo estava preso por um prendedor.
Pajaraca desceu o último caixote e os dois se encaram por um instantes. Não podendo mais se
conter, ele parte em direção à filha e a abraça forte. Os dois choram.
- Me perdoa, minha fía!
- Eu que le dei disgôxto, pai! Discupa…
- Discupe esse seu pai véi inguinorante…
- Eu que pido descupa, pai...
- Vamo pra casa!
- Paim dêxa eu vortá?
- Cum certeza, menha fia!
- Mais assim dess’ jeito, pai?
- Você é minha fía, e num tem esse ô aquele jeito não...
- Ô paim... Eu tava cum tanto medo...
Zé Pajaraca pede dispensa daquele dia de serviço a Zé Alves, que vendo a situação,
não nega o pedido. Pai e filha se despedem de Zé Alves, colocam as poucas tralhas em punho
e tomam o rumo de casa. Minutos depois, após seguidos pedidos de desculpas de ambas as
partes, Pajaraca e Firmina apontam no terreiro de casa. Abigail, que pitava seu cachimbo
sentada em uma pedra enquanto o Feijão terminava de cozinhar, de tão distraída, não
percebeu a chegada do esposo junto com a filha:
- Bença, mainha?
Abigail larga o cachimbo e não contém a própria emoção:
- Ô meu pai do céu... Firmina!
E as duas se abraçam e o chororô recomeça:

183
- Ô menha fia... Mãe tava cum tanta sodade...
- Eu tombém, mainha... Disculpa eu tê ido simbora sem pidi pa sinhora...
- Dêxe pra lá, menha fia... dêxe eu guardá essa bôrsa...
Após mais alguns minutos de pedidos de desculpas de ambas as partes, Firmina se
senta um pouco. Estava muito abatida e aparentava ter chorado muito.
- Máir menha fía, tu pur’aqui, que coisa boa!
Firmina fita a mãe sem dizer uma palavra.
- Cadê seu ispôso? Quand’é que tu vai trazê ele aqui pra nóis cuincê?
Com essa pergunta, Firmina não consegue conter a tristeza e enche os olhos de
lágrimas:
- Ele num vai vim nunc’aqui não, mainha...
- Oxente, e purquê? – Pergunta Abigail, surpresa.
- Ai, mãe... É uma hixória tão cumprida...
- Ah, mais eu vô querê sabê!
- Depois, mainha... dêxe u’meno eu tirá um cuchilo, eu tô cum dô de cabeça...
- Apois intão eu vô armá sua rede, mais quando você se alevantá eu vô querê tirá essa
hixtória a limpo!
- Tá certo.
Abigail arma a rede para Firmina nos tornos de pau da sala e esta, deita – se e cai em
profundo sono. Pudera. O dia de Maria Firmina Teófilo Camboim foi muito dificil...
Lá fora, cada um sentado na sua pedra. Abigail e Zé Pajaraca conversam:
- Zé, eu discubri uma coisa...
- Hum? O quê?
- Firmina num vêi só de visita não...
- Cuma ansim?
- Ela vêi trazeno foi tudo.
- Oxe, mais ela num se casô – se?
- É mais... Eu acho que ela se discasô – se.
- É o quê, homi?
- Assim, eu num tem certeza ainda, mais quand’eu perguntei do marido dela, ela ficô
bem trixte e cumeçô a chorá.
- E o quê mais? – Questiona Pajaraca, demonstrando em seu semblante um ar
irritadiço.
- Ela disse que tava cum dô de cabeça e pidiu pa tirá um cuchilo, dizeno que tava
cansada...
- Ah, minha fía, mais num é ansim não... Vai simbora dizeno que vai ixtudá, dispois
arruma macho e se amancéba mais ele e depois vim simbora ansim? Ah, não, eu quero resorvê
iss’é agora!
- Nam, Zé, pode dexá de suas inguinorança, dêx’a bichinha durmi um pedaço, aí
quand’abá eu cunvesso mais ela!
- Pois ói, você resorva iss’é ligêro, purquê do jeito qu’eu tô bom de mira c’a
ispingarda agora, dá mêrmo certo!
- Homi, ói, se aquéte! Vá lá no fojo vê se tem preá inquant’ eu iscôrro o arrôiz pa janta,
vá!
E assim, Zé Pajaraca desce resmungando em direção ao lugarejo onde estão as
armadilhas dos preás. Chegando lá, ele constata que aquele tipo de armadilha já lhe rendera
mais:

184
- Eita que s’eu dependê desses preá eu vô é morrê de fome! Us preá sumiro tudim.
Nêsses dia vô tê que fazê arataca pa pegá lagatixa, é o jeito!
Em casa, Abigail percebe Firmina se mexendo na rede, dando a entender que ela
estava prestes a despertar:
- ‘Mina? Tá ‘cordada?
- Sinhora...
- Tá milhó da dô d’cabeça?
- Tá passano...
- Intão se alevante, chegue. Seu pai foi no fôjo buscá preá. Tom’uma xícra de café
inquant’ele vem, aí eu tórro tripa pa butá no arrôiz...
- Tá certo, mainha. Eu como o que tivé...– responde Firmina, com voz lenta e cansada.
(E faminta).
Nisso, Zé Pajaraca chega, resmungando:
- Rapaiz, tem uma coisa, eu tem pra mim que ô tem arguém robano meus preá ô tão se
acabano tudim.
- Tem mais preá mêrmo não, Zé.
- Apôis tá rim. Vamo tê que cumê briba assada nêssij dia...
Em meio a essa conversa, Abigail responde:
- Ô ‘Mina, e seus irmão, cadê?
- Sim, eles vinhéro tudo mais eu, só que ficaro lá im tia Carrôla.
- Ah, mais eu quer’agora qu’eles venha pra casa! – Diz Abigail.
- Mais do jeito que as coisa aqui é difíce, mainha... Lá im tia Carrôla pelo meno eles
ixtuda no grupo e de tarde trabaia quebrano péda pa seu Mané Péda...
- E tá teno sirviço mêrmo? – Pergunta Pajaraca enquanto come.
- Diz que tem, e tem sempre sirviço pra minino...
- Tem de quê tanto? Seno o caso, eu já mandava Ixpedito!
- Nam pai, nem invente, eles paga ruim dimais! – Diz Expedito, cortando a conversa
ao entrar em casa e indo dar um cheiro na irmã, que não via a um bom tempo. - As vêiz, qué
pagá pessoa né nem cum dinhêro, qué pagá cum picolé, cum broa...
Expedito ao ver a irmã pródiga, meio sem jeito, fala:
- Tud’bom, Firmina?
- Tud’mais ô meno, Ixpedito. E tu?
- Eu tô bonzim...
- ...
- Em meio ao repentino silêncio, Pajaraca retoma a prosa anteior:
- Sim, mais, tem sirviço de quê tanto?
- Ah, sei lá, pai... Tem pa quebrá péda, com’eu já disse, tem pa trabaiá nas caivuêra,
tem pa fazê mandado... Depende.
- Ixpedito pudia ganhá mais se fosse...
- Nam, pai. Góxto mais de trabaiá na rua não.
- Oxe, mais purquê? Tu num achava tão bom?
- Era, mais agora eu num acho mair não.
- Purquê? – Insiste Pajaraca.
- Purque ele fica me aperriano, me apilidano.
- Apilidano de quê? – Pergunta Abigail.
- Eles fica me chamano de ureão.

185
Do alto dos frequentes lapsos de falta de bom senso de Pajaraca e Abigail, ambos
caem na gargalhada com a confissão do filho.
- Até im casa fica o povo gréano da cara da pessoa... – Lamenta Expedito.
- Ô meu fíi, nóis num tamo rino de você não... – Defende – se Abigail.
- Tão não? Tão não? – Rebate ele, quase chorando.
- Minino, a gente tá rin’é da tua bextêra!
- Né bextêra não, eu num góxto que ninguém bula cum eu. Dá vontade de dá um
murro!
- Meu fíi ói, o segredo pa num se pegá apilido é num achá ruim, aí o pov’isquéce... –
Argumenta Pajaraca.
- O sinhô que diga, né, pai? O caba sê cuincido por pé redondo, cu de cana, Pajaraca...
- Você me respeite, viu seu caba? Sinão eu dô – le uma pisa!
- Ta veno, tá veno? Ninguém góxta de sê apilidado não...
Em meio a esta calorosa prosa, o cheiro inconfundível das tripas torrando toma conta
da cozinha...
- Eita que vocêis aí arengano, eu nem vi as tripa, que tão quase preta já! – Diz Abigail,
correndo em direção ao tacho com as tripas.
Firmina, ao inalar aquele cheiro forte, não consegue conter o enjôo. Pôe a mão na boca
e sai correndo em direção à parte de trás da casa. Não pôs nada para fora fora, afinal, não
tinha comido nada.
- Ih, rapaiz... Aí tem coisa... – Pensa consigo Abigail.
Abigail deixa a arrumação das tripas a cargo de Pajaraca e vai até a parte de trás da
casa, onde estava Firmina, muito pálida, escorada n’uma parede.
- Menha fía sintiu – se ruim, foi?
- Foi, mainha...
- Foi por causo das tripa torrano?
- Eu acho que foi...
- Mais tu num gostava tanto de tripa, minina?
- Gosto máir não, mainha… Eca!
- Ói, eu vô le dizê uma coisa...
- O quê, mainha?
- Eu tem pra mim que você tá é buchuda!
Firmina se cala. Olha para o lado, evitando dar prosseguimento àquela conversa:
- Tu tá de bucho, Firmina?
Vendo que aquela situação já a sufocava a bastante tempo, ela não aguentou mais e
falou a verdade, em meio a um grande pranto.
- Tô mãe, de dôir mêis, e aquele infiliz im vêiz de cuidá d’eu, butô eu pra fora!
- Oxe, e é ansim, é?
- Pois foi, mainha, pur’isso qu’eu vim simbora, sabia nem se vocêis ia querê eu aqui.
- Oxe, e purquê eu num havia de querê?
- Ah, mainha. Eu saí daqui pra trabaiá na cas’ de dona Terezinha Gaioso pa ajuntá
dinhêro e ir simbora pu Juazêro pa sê frêra, aí Barnabé vivia muito na casa dela, pa falá cum
seu Zé Gaioso, mais depois que ele viu eu lá, ficô ino direto, me atentano pa ir morá mais ele
aí me amancebei cum Barnabé e larguei meu sõe* sonho. Imaginei que a sinhora num querêsse
mais eu aqui. Qualqué coisa eu vô simbora se a sinhora mandá...
- Assim, minha fia. Num foi nem pur’eu, mais foi mais pur causo de teu pai... aquele
crixtão quaaase que morre de disgôxto.

186
- Eu acridito, mainha... Só vivo pa dá disgôxto a vocêis...
- Num dig’uessas coisa não, menha fia. Eu sô sua mãe, e onde tivé dano pra gente, vai
dá pra você e meu neto também. Agora dêxe eu vê esse bucho, dêxe...
- Num sei nem com’agradicê, mainha. Mais ói, eu quer’ajudá nar luta da roça...
- Nam, mais você é muito nova. Só sirviço leve.
- Eu sei, mais eu num tô duente não. Assim qu’eu tivé meu fíi e dirmamá, eu vô vortá
pa cas’ de dona Terezinha, ela foi muito boa pra eu.
- E foi?
- Foi, ela ficô cum muito disgôxto pur eu tê ido simbora maus aquele home véi. Ela
bem que me avisô que ele num prextava.
- E como danado que tu cuinceu esse presepe?
- Ele é rico, mainha. Com’eu disse, ele ia sempre lá na casa de dona Teresinha
cunvessá mais o marido dela. Aí me viu e ficou me aperriano pra eu ir simbora mais ele.
Aperriô tanto que eu fui. Mim prometeu mêi mund’ de coisa!
- Pois é, a pessoa tem que se apegá nus consêi dur mais véi. Eu tiro pur eu mêrma, que
inventei de me ajuntá nova mai teu pai... Minino, penemo que nem suvaco de alejado!
- É mainha, a diferença é que paim, mêrmo cum os defeito dele, ele nunca abandonô a
sinhora não.
- É, isso é. A gente semp’ viveu iscorado um no ôto...
- Pois é. Já eu, quand’eu notei que num tava vino as regra no temp’ cert’ e juntano cum
aqueles injôi, num teve ôta.
- Você demorô pa falá pra ele, foi?
- Nam. A casa lá é grande, num sabe? Mora um bucado de gente, nos arredó, é que
nem na casa de seu Zé Aivo; aí a mãe dele mora lá também, aí foi pra ela que eu falei primêro.
- Ela le deu apôi?
- Nam! Fêiz foi o maió inferno! Ela que fêiz a cabeça dele.
- Oxe, e com’éc que ela faiz um negóço desse? Eu pensano que tava tud’im páiz...
- Tava nada, mainha...
- Sim, mais... Ela diss’uquê? Ele num quiria tê fíi máir não?
- Ele é separado, máir num tem fíi não.
- Ah, e não?
- Não. A véa mãe dele disse que quando ele era rapaiz ele teve papêra *caxumba, só que
ele fêiz ixtravagânça aí a papêra desceu pus ovo!
- Sei... Mais aí, né, Firmina?
- Oxe, mainha. É dele, uai.
- Seu pai naquele dia que foi lá atrás de le buscá ele reparô que tem um bucado de
trabaiadô que num tirava o ôi de você….
- E eu que mi’mporta?
- Você é nova, Firmina, é bunita... Pur acauso você num se deitô cum um desses caba
não?
- Eu mêrma não, mainha. A véa num tirava o ôi de mim nem pra eu ir no pote bebê
água!
- Nem um deles forçô você não?
- Mainha. Eu mal saía do quarto. Era do banhêro, qué já era dent‘ de casa, pra
cunzinha, pa sala e po quarto. A véa lá num tirava o ôi d’eu um minuto se qué. Com’é qu’eu ia
se sarrabuiá cum ur macho pur’aí?

187
- E eu é que sei? Eu tô só queren’ intendê. Você mêrma falô que o caba num funciona,
aí do nada você aparece de bucho, tu qué o quê?
- Uma muiézinha que é moradora lá da chácra deles, diss’ que quem num pudia tê fíi
era a ôta muié dele, que era bem maga véa, fêa e duente, aí ele mandô ela ir simbora, e que ele
era macho sim.
- Purquê você num falô isso pra ele?
- Eu falei, mais ele num quir nem sabê. Mandô um pião lá incangaiá uma carroça de
jumento, butô ai rôpa da gente im cima e dispachô nóis inté a ixtrada.
- Má rapaiz, iss´é qué sê um caba ruim!
- É mãe, mais depois do qu’eu passei, eu quer´é dixtança daquele infiliz!
- Sim, mais num pode sê ansim não! Pensa que nóis é aqueles bêxtinha de antes, é?
- Dêxe iss’ pra lá, mãe. Quand’ eu tivé meu minino, eu vô morá na rua*. Na cidade.
- Mais iss’ num vai ficá ansim não! Seu pai vai ficá sabeno dessa hixtóra, viu
mocinha?
- Tá bom, mãe. Num isconda nada dele mêrmo não.
Horas depois, já perto de dormir, Abigail deixa Pajaraca a par da novidade. Ele, é
claro, ficou muito desgostoso com a situação da filha, e igualmente possesso com a atitude do
ex – genro. Naquela noite, mesmo muito cansado da labuta, Pajaraca não dormiu.
De manhã, ao se apresentar no serviço, Zé Pajaraca está tremendamente abatido.
- Que foi, Zé? Tá todo coisad’aí... o que foi? – Pergunta o amigo, seu Miguel.
- Nada não, Migué. Bora trabaiá...
Nessa manhã, eles estavam derrubando uns marmeleiros para uma padaria que viria
buscar a encomenda no fim do dia. Pajaraca, seu Miguel e mais dois trabalhadores tocavam o
serviço, no entanto, Pajaraca não conseguia acertar duas vezes com a foice no mesmo canto.
Estava muito atrapalhado, com a cabeça a mil.
- Ô esse minino, chegue cá. – Diz Pajaraca, chamando um dos peões do eito.
- Dig’aí, seu Zé. - Responde Alfredo Putruco, um dos ajudantes.
- Putruco, eu quero que você vá aqui ataiano pur dento da jurema até lá im casa.
- Oxe, e purquê eu não pela ixtrada?
- Eu quero que você traga um negóço lá pra mim sem ‘Bigaí vê.
- Ô, seu Zé. Num arrume esses sirviço sem futuro pra mim não...
- Você vai num pé e vorta n’oto, rapaiz...
- E er’uquê?
- Tem um pé de mufumbo pero lad’ de tráis de casa, e ‘Bigaí fica na parte da frente
fumano cachimbo...
- Sim, e é pr’eu fazê o que?
- Tem uma cabaça grande pindurada nesse pé de mufumbo, cum uma canequinha
amarrada no gogó dela. Traga pra cá.
- E tem o quê nessa cabaça que ninguém pode vê?
- Tem mijo! Traga pra cá, Putruco.
Alfredo Putruco, mesmo sendo muito presepeiro, atende o pedido, afinal, naquele
serviço, estava mesmo sob as ordens de Zé Pajaraca. Chegando lá, Putruco é recebido com
latidos pelo cachorro assim que ele aparece no terreiro. Expedito, que estava por ali, percebe a
visita inesperada:
- Te aquéta, bóxta! – ordena Expedito.
- Ixpedito, abra o punxincói aqui...
- Dig’aí, Aifredo.

188
- Teu pai mandô eu vim caçá um negóço pra ele num pé de mufumbo. Onde é?
- Ah, é ali atráis da casa, pode ir.
Alfredo não tem dificuldade de encontrar a cabaça que servia de cantil. Desconfiado,
pôe ela embaixo do braço e sai. Chegando lá, Alfredo encontra Zé Pajaraca sentado sobre a
lenha arrancada, desolado.
- Cadê o povo, Zé? – Pergunta Putruco, entregando a encomenda.
- Se danaro aí pra dento.
- E tu num foi mais eles não?
- Fui, Putruco, lái vai eu... – Responde Pajaraca, irônico.
- É, eu tô veno que tu num ta num dia bom não...
- Tô mêrmo não. Ói, eu vô m’imbora.
- Tá certo. Eu vô aqui siguino o batido das foice.
- Tá certo. ‘Té amenhã... – despede – se Pajaraca.
No entanto, Pajaraca toma outro rumo. Com a cabaça embaixo do braço, segue em
direção ao grande lajeiro cheio de moitas e sombras, lugar que outrora, por muitas outras
vezes ele se refugiava para beber até adormecer por lá mesmo na vã tentativa de afogar as
mágoas. De uns tempos para cá, nunca mais ele fez isso. Estava feliz, tinha trabalho, enfim,
estava tocando a vida.
Como alegria de quem é pobre dura pouco, parecia mesmo que aquela alegria na vida
de José da Natividade Teófilo não iria perdurar. Por mais ingênuo que ele pudesse ser, era
impossivel que considerasse a gravidade da situação. Todos sabiam que a sua filha tinha ido
embora para estudar e ser freira. Porém, somente uma pequena parcela tomou conhecimento
que nesse meio período ela conheceu um senhor que a fez mudar de ideia e ir morar com ele.
E dessa parcela, somente ele e Abigail sabem que ela não veio a passeio. Por mais que ele
desse crédito aos princípios da filha, não poderia desconsiderar a possibilidade de ela ter
traído o tal senhor, já que ele era estéril.
Chegando nos lajeiros onde ele se refugiava para bebericar, não consegue segurar as
lágrimas. Sentado, começa a tomar toda aquela mistura etílica, preparada por ele mesmo à
base da fermentação de casca de frutas, formando um aguardante de fortíssimo teor alcóolico
conhecido naquelas bandas por embira.
Uma das condições impostas por Zé Alves para Zé Pajaraca ser seu homem de
confiança foi que ele passasse longe da bebida. Tal ordem foi dada inclusive aos bodegueiros
mais próximos, ou seja, não despachar bebida alcóolica para Zé Pajaraca; daí o motivo para
ele mesmo ter improvisado sua própria bebida.
Como já fazia alguns meses que ele não tocara em alcóol, seu organismo já estava se
acostumando com a ausência dos efeitos daquela substância. Quando ele começou a tomar
aquela garrafada, não tardou e logo caiu em sono profundo.
No fim do dia de serviço, os trabalhadores se recolhem até a casa de Zé Alves para
jantar e receber o pagamento das diárias. Terminada a refeição, Alfredo Putruco, meio sem
jeito, pergunta ao empregador.
- Seu Zé... E o pagamento?
- Ué, pagamento é Pajaraca que acerta cum vocêis. – Responde Zé Alves.
- Ô, seu Zé, num dig’um negóço desse não... a gente tê que ir lá na casa dele... Num
acridito não.
- É, essa quextão do dinhêro eu ja dexei cum ele. Pensei que ele já tinha acertado cum vocêis.
- Mais ele num é anafalbeto?

189
- Ele dá cinco note de dinhêro pa cada trabaiadô. Tem o que fazê não. Eu é que tem
mais o que fazê, Putruco!
- Homi, seu Zé, Pajaraca foi simbora log’ cedo. – Afirma seu Miguel.
- Oxente, e o que foi?
- Sei não. Ele chegô mei capiongo hoje.
- Com’assim?
- Sei lá. Tá bem trixte.
- Intão é bom vocêis ire lá, só assim na vorta vocêis dá nutiça.
Nisso já era quase seis horas da noite, e os quatro peões seguem caminho rumo a casa
de Pajaraca. Como sempre, assim que aparecem na pequena porteira, o cachorro, que estava
amarrado, acoa. Vale frisar que essa era uma espécie de campainha que anunciava aos que
estavam em casa que tinha visita lá fora. Abigail percebe os latidos e vai até a porteira,
arrastando os chinelos para receber os trabalhadores:
- Pôir não?
- Boa tarde, dona ‘Bigaí... – Cumprimenta seu Miguel.
- Já é boa noite, seu Migué. Bora entrano...
- Pricisa não, dona Bigaí, nói tamo só de passage. Cadê Zé?
- Ué, eu que pergunto. Ele num tava mái vocêis?
- Ele disse que vinha pra casa. – Informa Putruco.
- Nam, pr’aqui mêrmo não.
- Oxente? – Diz Alfredo. – E ele foi pra onde?
- Ah, e eu num sei não. Ele num tava mái vocêis?
- Ele tinha me dito que vinha simbora de manhãnzinha ainda. – Diz Alfredo.
- Ixpedito falô pra mim de tarde que você vêi aqui de manhã a mando dele. Você vêi
buscá o quê?
- Ói, eu num quiria nem vim. Mais ele insixtiu pra eu vim buscá uma cabaça tampada
cum um sabugo naquele pé de mufumb’ ali.
- Ah... Já tô intendeno... – Conclui Abigail.
- Intendeno o quê? – Pergunta Alfredo.
- Zé é fogo, viu? Ô meu pai. Aquilo é uma cabaça de imbira, Aifredo!
- Oxi, e eu lá sabia?
- Você num sintiu o chêro não? – (Imbira tem um cheiro muito forte).
- Nam. Butei imbaxo do braço e vortei...
- Pelo mêno eu acho que já sei ond’ que ele tá.
- Ele num dexô ninhum dinhêro cum a sinhora não? – Pergunta Alfredo, já meio
impaciente.
- Nam, deve de tá cum ele. Bora ali mais eu lá nur lajêro, eu tem pra mim que ele têja
lá.
- Ave Maria, dona ‘Bigaí, nóix tamo tão cansado.
- Intão vão ino de vorta lá pa seu Zé Aivo que se ele tivé lá eu pego o dinhêro e dô a
vocêis.
- Tá certo. Fazê o quê né? – Diz Alfredo Putruco, chateado.
Nisso, os peões voltam ainda sem o pagamento das diárias.
- Ixpedito, carce o chinelo e bor’ali mais eu,
- Adonde, mainha?
- Lá no lajêro caçá teu pai...
- Oxe, de novo? Pensei que paím tinha parado de bebê.

190
- E a cupa foi sua pur tê dito aquele Putruco da ventona ond’era que tava a cabaça de
imbira, e por você nunca tê me dito, pra eu pegá e avuá no mato.
- Eu num sabia o que era não, mainha...
Nisso, saem mãe e filho cortando as picadas na caatinga. Por sorte, naquele começo de
noite a Lua se fez presente, iluminando a caminhada até os lajeiros.
Como já conhecia os hábitos do marido há bastante tempo, Abigail foi certeira na sua
suposição e encontra o marido caído, com aquele cantil ao seu lado.
- Zé? – chama Abigail, mexendo nos ombros do marido.
- ...
- Zé, sô eu, bora pra casa...
- ...
- Zé, acorda!
- Mmm... oi... – Responde ele.
- Bora pra casa, Zé. Tu bebeu de novo, num foi? Bora pra casa.
- Vô não, vô durmi aqui hoje...
- Não, Zé, bora pra casa, que os caba tão quereno o dinhêro da diára e eles disséro que
tá cum você.
- Sssim... Tá aqui no meu borso da carça... Cadê eles?
- Eles fôro atráis de você lá im casa e tão fumano num tolête por causo de você, sabia?
- Tava nem se alembrano... Mais eu tô morreno de dô de cabeça, num tô consiguino
andá não...
- Ô, Zé, faç’uma forcinha aí, eles qué o dinhêro...
Pajaraca tenta se levantar, mas ainda muito tonto, não consegue trocar dois passos,
desequilibrando – se em seguida.
- Se tivesse istrada, dava pa eu e Ixpedito levá você iscorado nus ombro.
- Qué qu’eu vá im casa buscá o jumento, mãe?
- Nam... Num préxta não... Num góxto de andá im jumento não...
- Intão tá ruim, Zé. Os caba lá qué o dinhêro.
- Cace aqui nur meus bôrso o dinhêro. Peça pa seu Zé Aivo pagá.
- Nam, eu num vô dexá você sozim aqui nada. É arriscado você levá um murdido de
cobra, ô de lacraia. Ixpedito, vá aqui pur dento e leve o dinhêro pa seu Zé Aivo pagá o povo
lá. Diga pra ele ir discurpano aí, que depois eu vô implicá pra ele o que tá se assucedeno.
Muito obediente, Expedito faz exatamente o que a mãe pediu, indo para casa em
seguida. Abigail, por sua vez, passou a noite em claro velando o sono do marido no lajeiro.

191
Benvinda

CAPÍTULO XXXIV
A amiga de Abigail vai casar

No outro dia, mais recuperado do efeito daquela bebida, Pajaraca consegue voltar para
casa, mas passou mais um dia sem poder trabalhar, devido à forte ressaca. Foi preciso Abigail
ir até a casa de Mãe Rosa pegadeira de menino atrás de algum chá que pudesse diminuir a dor
de cabeça. Mãe Rosa, também moradora de Zé Alves, era conhecida em toda região por fazer
muitas presepadas. Uma das mais conhecidas era feita com suas unhas, que ela usava para
cortar fumo para botar no cachimbo, cortava desde umbigo de menino que ela pegava, até a
carne para botar na panela, sendo que a unha do polegar era o facão.
Mãe Rosa curava com suas rezas brabas toda sorte de mazelas, tais como espinhela
caída, vento caído, espinhaço torto, mau-olhado, dor na cruz, arrancava catimbó das porteiras
dos currais, botava cobra pra fora das roças na base da reza, curava bicheiras no rastro com
dois paus cruzados, rezava nas gambarras das vacas velhas, enfim. Só não sabia tirar os
cravos e verrugas dos seus próprios pés.
Tal dificuldade talvez se deva ao fato de serem muito grandes e chatos, e que
raramente apareciam por baixo da barra da saia que mais parecia uma tarrafa, de tão grande
que era. Durante o dia o vestido servia como roupa e à noite como lençol para se enrolar na
sua velha cama de vara de taboca.
Junto com a filha única, vivia lá na sua casinha e uma das únicas e verdadeiras
amizades que tinha era a de Abigail. Mãe Rosa não se preocupava com nada nesse mundo. Já
galgava quase o cimo de um século, mas irradiava tanta bondade e tanto calor humano, mas
nem assim atraía as pessoas ao seu redor. Isto, por uma única razão: Era pobre. Seu pixaím era
suspenso para o alto do casco, olhava para as pucumãs do teto, afastava as teias de aranha
com as próprias mãos, enchia as bochechas de vento para soprar o fogo dentro das trempes
que ficavam no chão. E de tais quais uma nuvem de cinzas voava dos tições e cobria-lhe a
cara, mas ela não se importava. A fumaça fazia-lhe arder os olhos inundando-os com lagrimas
que escoria pelo nariz pingando pela ponta da venta e caindo dentro da sua panelinha de lata
de Mucilon cheia de Feijão que chiava em cima daquilo que ela chamava de fogão.

192
No sopra-sopra, a lenha da jurema preta pipocava soltando faíscas que pareciam
estrelas. Essas suBigaím e na descida caiam em cima dos seus pés, dali ela se esticava
sacudindo os chinelos e batendo os pés no chão tão freneticamente que a poeira levantava.
Mãe Rosa tinha uma estranha habilidade: Pegava brasa com ponta das unhas, usando - as
como pinças e botava na boca do cachimbo. Aprumava o espinhaço e ia lá para fora, onde
ficava sentada na pedra grande, soltando baforadas de fumaça. Ali a velha ficava esperando
Minervina, sua filha, que ajudava na casa de Zé Alves.
Minervina, por sua vez, quando ia na bodega, tinha raiva de Teófilo Batista, vendeiro,
que botava álcool com água no querosene. Quando as pessoas reclamavam, ele dizia que
estava ruim das ouças, enfiava os dedos nos ouvidos e dizia que não ouvia nada.
Minervina era a filha única de Mãe Rosa, que enviuvou muito nova e nunca mais quis
casar. Minervina já era uma “balzaquiana”. Não tinha arranjado casamento talvez pelo fato de
ser muito feia. Olhando-se para seu rosto, nariz e olhos, constatava - se o que era mesmo que
ver uma coruja em cima do tôco. Ela chegava e se sentava na pedra menor; que ficava ao lado
de sua mãe. Sua saia comprida estava toda tisnada, tinha cortado os cabelos dos dois sovacos
que já saiam pelas mangas do vestido. Também costumava usar como cosmético no cabelo o
sebo das tripas de carneiro capado, e com um garfo tentava desembaraça-lo na tentativa de
fazer um cocó.
Nessa luta, Minervina já tinha quebrado dois pentes feitos de casco de tracajá, mas ela
teimava que tinha de haver um jeito de arrumar aquele fuá, pois iria haver uma festa de
casamento pros lados da Santana e ela tinha sido convocada que ajudar a fazer as comidas
para os convidados. Nesse embalo, poderia aparecer alguém que se interessasse nela, diferente
de Mané Cacunda, que só queria ela pra sarrabuiar nos munturos; e foi pensando nisso que ela
passou mais de três dias aperreando Abigail para desembaraçar seu cabelo, como sempre.
Desta vez, tinha uma receita o velho Zé Pio tinha lhe ensinado, cujo segredo era que sebo de
tripa do carneiro capado espichava qualquer tipo de pixaim, e ainda atraía os homens por
causa do cheiro bom que exalava.
Ana Bagocha, uma sobrinha de Minervina, veio para lhe ajudar Abigail a repuxar
aquela saroba* ninhada que nunca tinha visto um pente. Mandou ela segurar bem firme com as
duas mãos num pé de flobuã* flamboyant que tinha na frente da casa e com um garfo de militar
começou a desembaraçar aquele ninho de cajaca – de – couro. *Espécie de ave sertaneja Abigail
empurrava a cabeça de Minervina forçando o pescoço pra frente e a Bagocha puxava o pixaim
pra trás, e lá se vai naquela luta contra a sua natureza cabeluda, pois ela, a mãe - natureza, não
gosta que alguém desfaça o que ela fez.
O problema é que aquele espicha - espicha puxou muito o cabelo dela para trás, e com
ele veio o couro da testa, assim como também junto com este vieram as sombrancelhas e as
pestanas. Ficou lindo!
Ana Bagocha amarrou tudo bem firme com um arame e com o auxílio de um alicate
deu um nó e recomendou que ela só desfizesse o apetrecho depois da festa.
Na hora de dormir, os olhos de Minervina, de tão esticados, não se fechavam, mas
como a festa era no dia seguinte, ela resolveu passar a noite em claro mesmo para não mexer
no cocó que tinha lhe custado um trabalhão da peste para fazê-lo, e que segundo Mãe Rosa
tinha ficado muito bonito, parecendo ela quando era mocinha.
- Quem sabe lá naquele bendito rega-bofe* festejo num pinta um namorado pra tu e le
tira de veiz do teu caritó? - argumentava Mãe Rosa.
A festa aconteceu e Minervina passou mais uma noite acordada e no dia seguinte o
trabalho foi dobrado, lavando pratos, panelas, tachos, limpando a casa, carregando água e

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outras coisas mais foram feitas. Entretanto, o sacrifício tinha valido a pena, pois ela foi
cortejada a noite toda por Zé Caburé, um magarefe lá de Santa Teresinha e esse tinha
prometido a ela que no sábado aparecia na casa dela atrás de café e também para conversar
miolo de pote.
Terminada a arrumação das coisas, voltou para a sua casa. Mãe Rosa, que já sabia que
ela tinha arranjado um noivo, a esperava sentada na pedra grande, e quando avistou a filha
com aqueles beiços envernizados de tanta gordura que tinha comido, foi logo dizendo:
- Eita, que teu cocó tá mais bunito ainda minha fia! E esses teus zói ripuxadim
compreta o que antes fartava im tu. Ói, pra continuar ansim, eu te dou um consêi: É bom tu
aprendê a durmi de ôi aberto mermo já, que nem pêxe, pra num bulí mais nesse pentiado.
Faciço pelo meno até o dia que Jusé Caburé vinher le fazê a visita...
Mais um sacrificio feito por Minervina que valeu a pena: Zé Caburé apareceu como
combinado. No entanto, as duas noites sem sono, somadas com o trabalho cansativo do dia a
derrubou em cima da cama de varas, e só se levantou no outro dia à tardinha, e Mãe Rosa
espantou-se ao ve-la aparecer na porta, e perguntou:
- O que foi isso no teu cocó, Minéivina?
- Oxi, e eu lá sei?
Mivervina correu para um canto de seu quarto onde tinha um pedaço de espelho
quebrado na parede, onde ela viu o estrago e ficou muito triste.
- Ah já sei, minha fía, ói os gato que saíro de teu quarto se lambuzano todim. Eles
mastigaro teu cabelo todim por causo do sebo do carneiro!
- Ah, eu mato eles tudim! - Grita Minervina, inconsolável.
- Pricisa não, minha fia. Num pricisa mais nem tu ficá assim mais. Zé vai querê tu é de
quarqué jeito, tu vai vê só. Amarre um pano na cabeça, chegue.
Mais um fato verídico. Zé Caburê, solteirão, não contou conversa e pediu Minervina
em casamento.
- Vixi que nêgona bunita, rapaiz! - Palavras apaixonadas de Zé Caburé.
E foram mesmo felizes para sempre!

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Mané Cacunda

CAPÍTULO XXXV
1958 - Inácio Lucena e sua ideias

Semanas se passaram, os ânimos de Zé Pajaraca foram se acalmando ao passo que a


barriga da filha cada vez mais ia ficando saliente. De toda forma, como não faltava trabalho
para Zé Pajaraca ultimamente, mais serviço ia aparecendo, e na medida do possível, Zé Alves
o liberava para esses bicos.
Dessa vez, o solicitante de seus serviços foi Inácio Lucena, irmão de Zé Alves, Alcinda
e companhia. Este distinto senhor, vira e mexe se encontrava envolvido com ideias de um dia
fazer grandes plantações de algodão do tipo P-46 e Cruzeta. Enfiava o dedo grande do pé no
chão para ver como estava a umidade da terra, mais na frente levantava os galhas dos
algodoeiros para ver como estava o floração, passava pela oiticiquinha, ficava um pouco na
sombra, tentava descobrir que tipo de borboleta passava por ali.
Falastrão como todos os filhos de Joaquim Nunes, Inácio vem pela estrada
caminhando e pensando alto:
- Será que é as que bota os z’óvo nas fôia do argudão? Se fô eu já tem o veneno
guardado. Eu vô logo é lá na roça do Pau de Leite, por que se lá também tivé brabulêta eu já
cumeço a puverizá amenhã logo cedo. Quando eu chegá im casa eu vô mandá logo ur minino
arrumá os puverizadô, e as vasía de carregá água. O djabo dessas brabulêta num me dêxa
sussegado, rapaiz? Tanto trabái, tanta dispesa? Sei que Rita, que já é preta, tá ficano mais
preta ainda de tanto vivê naquele pé de fugão cunzinhando pra aquele horrô de fíi qu´nóis
tem. E agora ainda pió, por que as minina vão casano e trazendo ur marido e os fíi lá pa
dentro de casa, é um dirmantêlo só. Tem hora que me dá vontade de fazê que nem Zé
Pajaraca, que num liga é pra nada, dêxa as roça dele virá capuêra, se num fosse...
- Se num fosse o que Ináço?
- Ah é você, Pajaraca? Pra onde é que tu vai uma hora dessa?

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- Eu vô pra casa...
- Mais uma hora dessa?
- É por que eu vô lá no Loreto visitá Cumpade Geimano mair cumade Benvinda.
- É o quê, homi? Visita a gente faiz é no domingo, Pajaraca, e não no mêi da semana.
Tu divia tá agora era limpano tua roça de fejão, que já tá virando capuêra, e eu acho que lá tá
chêi de camalião e de potó. Ah, veja também se você apura e me tráiz aquele Feijão que eu le
imprextei... Eu tô pricisano...
- Ora essa agora, Ináço, oxi! tu só fala im fejão... fejão!
- Ué, falo mêrmo! Você acerta o camím pa tumá imprextado ao caba e num acerta pra
vim trazê de vorta...
- Oxe Inaço, venha vê minha roça de fejão, a situação, chegue! Num cuí* colhi nada
ainda não!
- Vô nada, rapaiz... Eu já cunheço suas capuêira chêa de tamiarana e capim rabo de
raposa... Sim, cadê Ixpedito?
- Eu mandei ele butá a cabra no chiqueiro, porquê?
- É que eu quero que você me mande ele amanhã cedo aqui.
- E pra quê é?
- Pa mode de carregá água pra mêur minino puverizá argudão.
- Ué, e cadê ar lagata, Ináço?
- Oxi, tu num viu como tá a catinga de brabuleta por aí a fora não, foi?
- Vi nada. Sinto mái chêro de nada não. Mais tá bom, eu mando ele vim...
- Mais mande ele cedo. E você venha também, que é pra tirá aquele inchú lá do toco
de imburana lá da bêra da cêica, porque toda vêiz que eu passo lá as abêa me bota pra corrê
cum tanta da ferruada!
- Eu só vem se tivé mé, será que tem?
- Homi, Zé! Comé qu’eu vô sabê se tem mé? Se ninguém pode nem chegá perto! Issé
porque Ixpedito joga péda na boca do inchú todo santo dia, e as abêa só vive assanhada por
causa das pedrada. Sei que pela brecha do oco dá pra vê a casa das bicha lá.
- Tá bom intão... Amanhã eu vem mais Ixpedito até por cá.
- Mais venha cedo.
- Eu vem!
Sempre assim. Inácio tinha esse jeito turrão de lidar com as pessoas, mas era muito
querido por todos ali. Sempre queria incluir todos em suas empreitadas assim como o irmão
mais velho, Zé Alves. Tinha um apreço todo especial por Expedito, que ficou mais e mais
especial conforme o tempo foi passado. Inácio foi o último de seus irmãos. O último a nascer,
o último a partir, bem velhinho, nos fins da década de 1990 em Santa Teresinha, na
companhia dos filhos.

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Expedito (Já rapazote)

CAPÍTULO XXVI
Tirando sustento do barro

O ano de 1958 não foi chuvoso naquela região. Para piorar, as tais safras do principal
produto cultivado ali, ou seja, o algodão, vinham constantemente sendo castigadas por uma
praga de besouro chamada Bicudo, que arrasou com os algodoais do sertão e menos de uma
década. Restou ao sertanejo tentar tirar o sustento da própria terra, como se barro fosse
alimento comestível. Mesmo o ano tendo chuvas bem menos regulares em relação aos
anteriores, o sertanejo já estava tão frustrado em arriscar plantio, que poucos o fizeram. Outro
impedimento era o banco que financiava as sementes, pois muitos agricultores ainda estavam
endividados da seca do ano anterior. Zé Pajaraca era um deles, mas tinha a necessidade de
sobreviver a alimentar a prole que herdou. Tratou de se lembrar da frase que um companheiro
de feira, bêbado, falou no caminhão que os trazia de Patos para casa:
- “O negóço, caba véi, é o caba cumê barro”!
Aquelas palavras ficaram ecoando na cabeça de Zé Pajaraca por vários dias:
- Será que eu mair mêur minino vamo tê que cumê barro depôi de véi?
Entretanto, como o homem que pensa vive melhor do que aquele que não pensa, ele
tratou de refletir sobre o que Dedé de Elias, mais melado que espinhaço de pão doce estava
querendo dizer:
- Rapaiz, eu já pelei esse munturo da propriedade todinha, prantei agudão só pro
bicudo cumê. Tá só esse barro marrom aí que num tem adubo que dê vincimento. Só se... Êpa,
só se eu fizé tijolo e têa! Fora que eu já vi Juaquim Capuxu asilano por aqui, chutano o chão...
Ele já tava é de ôi em fazê tijolo e têa com aquele barro. Apois eu vou prucurá ele amanhã
mermo na Santana!
E assim foi feito. No dia seguinte, Zé Pajaraca foi até a Santana e lá o encontrou em
casa, com a mão na cabeça sem serviço, e um monte de menino chorando atrás do que comer.
Ofereceu o serviço e uma partilha justa pela produção que ele tivesse. Zé Pajaraca já sabia a
que poderia vender a produção a Estevam Martins, empresário do ramo Patos. Quanto tivesse,
a firma comprava, desde que fosse de qualidade.

197
Para completar a empreitada, Pajaraca procurou por este senhor em Patos. Um dos
maiores comerciantes da região e que naquela época, praticamente detinha o monopolio da
venda deste valioso item da construção civil.
Acertada a compra em Patos, faltava somente se acertar com Quinca. Ele trabalhava
muito bem, mas era sem dúvidas um homem muito difícil de lidar: Nisso, conforme os dias de
produção a todo vapor de tijolo e telha vão passando:
- Pajaraca, ói, eu quero que você fale aí cum esse seu minino pra ele dexá de bulí nar
minhas coisa!
- Mais que coisa é essas que o sinhô tá falano, seu Quinca?
- Homi, Pajaraca, todo dia eu boto meu fumo junto com o papé, a caxa de fósco e a
faquinha, tudo junto, bem ali no tronco do pé de cajuêro, mas quando eu vô fazê meu cigarro,
só acho a faquinha!
- Mais seu Quinca, Ixpedito nem fumá ele sabe, será que é ele mêrmo que tá mexeno
nais suas coisa?
- Só pode, Pajaraca, porque aqui ôto minino num anda, né?
- Tá certo, seu Quinca, eu vô falá cum ele...
Dias depois, a queixa se repete:
- Pajaraca, seu minino continua mexeno nar minhas coisa!
- E que dia foi isso, seu Quinca?
- Foi onte, Pajaraca! Bem no dia que eu quiria compretá cinco mil telha!
- Mais seu Quinca, o que tem a vê uma coisa c’a ôta?
- Ora o quê, Pajaraca, quando eu vô fazê a contage de telha, eu tem que acendê meu
boró, sinão eu me atrapái todim.
- Intão qué dizê que o sinhô num consiguiu contá telha onte não, foi?
- Foi, Pajaraca. E se você num dé um jeito no seu minino, eu vou pará de fazê telha pra
você!
- Aqui, seu Quinca, eu tô achano isso muinto estrãe...
- Porque, Pajaraca?
- Porque onte Ixpedito nem aqui tava...
- Oxe, apôis quem foi que pegô meu fumo e minhas ôtas coisa?
- Sei não, seu Quinca, o sinhô préxte atenção aí pra vê quem é que tá bulino nas suas
coisa, puquê eu sei que Ixpedito num é disso não.
- Mais Pajaraca, só teu minino é quem anda por aqui caçano castanha e caju. E é nesse
imbalo que minhas coisa se evapora!
- Mais seu Quinca, o sinhô já fragô ele pegano suas coisa?
- Fraguei ainda não, Pajaraca, mais que é ele, é!
- Tá certo, seu Quinca, mais o sinhô prexte bem atenção na hora que ele chegá por
aqui, porque se o sinhô pegá ele bulino nais suas coisa, pode avisá que eu vô dá déiz muxicão
no quengo dele!
E dias depois a mesma historia se repete:
- Pajaraca, eu vô pará de fazê telha e tijolo aqui!
- Oxi, Seu Quinca, me diga uma coisa, qual é o mutivo?
- É o mêrmo de sempe, Pajaraca, o sinhô sabe que fumo é dinhêro, e eu todo dia trago
um pedacim de casa, mais na hora que eu vô fazê meu cigarro, só acho a faquinha.
- Seu Quinca, vamo fazê assim, amanhã o sinhô vai ficá o dia todim só sentado e
atucaiano pra vê quem é que vai bulí im tuas coisa.
- Intão tá certo.

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No dia seguinte, seu Quincas não fez nada. De fato, Expedito chegou, subiu no
cajueiro, tirou caju, catou castanhas no chão, atirou pedra num galo de campina com a
baleeira só para espantar, pois era ruim de mira que só vendo, bebeu água no pote de Quinca e
foi embora. Assim, vendo que o menino realmente tinha ido embora e não tinha nem se
aproximado de seus pertences, Quincas resolveu agilizar algum serviço e amassar barro para
deixar para o outro dia, mas quando foi procurar o fumo, este já não estava lá. Foi daí que seu
Quincas ficou ainda mais encabulado:
- Esse minino tem o djabo no côro, só pode! Viu que eu tava vigiano, mais é só eu virá
as minhas cóxta e ele vem raxtêro e pega minhas coisa!
No outro dia, logo cedo, Expedito aparece. Mexe ali, mexe lá, caçando castanhas
dentro das folhas secas do chão, levanta um pé, tira um espinho de algaroba que tinha lhe
furado, levanta outro, tira um espinho de morta-fome, torna a levantar um pé, tira outro
espinho, olha pra cima, e diz:
- Seu Quinca, vamo dirmanchá esse ním de cajaca de côro?
- Pra quê?
- Só os que já tão abandonado. Dá um vento e os pedaço cai no chão e só tem ispim...
- Ah bom. É verdade. Mais dirmanchá como?
- Eu subo, sórto no chão, quando abá o sinhô taca fogo e queima!
- Rapaiz, do jeito que eu já vivo de pé furado com esses ispím que cai dur ním das
cajaca, eu vô é le ajudá a dirmanchá essas côivara de ispím!
- É, seu Quinca, mái já tá quase de noitinha, e eu num inxéigo mair nada, bora dexá
pr'amanhã?
- Bora.
Na manhã seguinte, seu Quincas chegou cedo e Expedito também. Quando se
aproximaram do pé de caju, notaram que estava havendo algo estranho do cotidiano. Se
aproximaram na ponta dos pés, e viram a coitada da cajaca, se lamentando no maior piado em
forma de chororô, pousada num galho, de onde assistia impassível a invasão de seu ninho,
pois um concriz, vulgarmente conhecido como sem teto entre os pássaros, havia chegado ali
muito cedo juntamente com sua companheira. Como esta se encontrava em vésperas de botar
seus ovos, mas não tinha onde, resolveu então despejar a coitada da cajaca, e utilizar o ninho
dela para isso. Expedito que ia atrás de seu Quinca, notou que ele estava sorrindo meio sem
jeito.
A curiosidade o fez olhar para o ninho da cajaca, assim Expedito entendeu o porquê
daquele sorriso: O sem teto que já tinha jogado no chão os ovos da cajaca entrava e saía do
ninho, que se parecia com uma gruta. Em seguida, saia com um pedaço de fumo no bico,
repetindo a operação. Assim fazia com os palitos de fósforos, entrava novamente e saia com
um pacote de papel de fazer cigarro, tudo isto estava dentro daquele grande ninho que as
cajacas fazem. Elas que levavam para lá.
Nisso, seu Quincas foi lá, pegou um dos pedaços de fumo no chão, puxou a faquinha
do bolso, picou uma porção do Arapiraca, enrolou no papel, meteu a língua pra cima fez um
cigarro bem grosso. Sentou num monte de telhas, pegou a caixa de fósforo, riscou o palito e
acendeu o borozão. E assim ficou soltando baforadas de fumaça pelos buracos da venta:
- Mais esse fumo tá com um chêrim lá longe de bóxta de passarim...
No mesmo instante, Zé Pajaraca apareceu para checar o andamento do serviço, e
prontamente seu Quinca foi pedir desculpas:
- Cumpade Pajaraca, o amigo me adiscurpe pur eu tá disconfiano de teu minino, eu
discubri tudo, era as cajaca de côro...

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- Tá veno? Eu disse que Ixpedito num é disso.
- Eu vô pidí discupa a ele também.
- Pricisa não, seu Quinca. Ele num ficô sabeno de nada não. Vorte lá pra’is sua têa...
Que sirviço num farta. Vô até vê se Inaço Ganga tá pricisano de sirviço...

CAPÍTULO XXXVII
E Pajaraca vai bater em Campina Grande.

Nessa narrativa, não poderia passar em branco a existência de um primo de Zé


Pajaraca. Seu nome era Inácio Nunes de Lucena. Esse era conhecido como Ináço Ganga, e
pela maneira como se comportava, logo se notava que lhe faltavam muitos parafusos na
cabeça. Inácio tinha os dentes espichados para frente, finos e pontudos, igual a dente de
cachorro. Estatura mediana, corpo grosso e arredondado. As mãos eram como pranchas. Os
pés, pareciam muito com uma tartaruga marinha, ou seja, achatados, cujos dedos pareciam a
cabeça daquela cobra, a jibóia. Pois estes tinham uma anatomia característica da família
Nunes de Lucena, que para se identificar um membro deste clã, bastava o cidadão olhar o pé e
a orelha grande e logo já se sabia de que família era esse exemplar.
Outra característica marcante era a ignorância e a maneira de falar com as pessoas.
Aparentava ter muita força, mas a preguiça do mundo todo também estava com ele. Era muito
enxerido em se tratando de mulher, e quando via uma moça bonita, ficava todo entronxado
para ela. Muitas vezes elas eram obrigadas a ser grosseiras com ele. E certa vez, no caminhão,
ele estava incomodando uma moça e esta chegou pra ele e disse assim:
- Ináço, tu pra eu é que nem o má!
Com isso, ele ficou lisonjeado, e perguntou:
- É por causo que eu navego sem pará?
- Não! É porque você me dá injôi. - respondeu a moça, e o povo caiu na risada.
Outra vez, num forró de Zé Lôro, na festa da Santana, em julho de 1958, lá estava
Inácio aperreando as moças para dançar, até que finalmente ele consegue convencer uma
coroa que tinha vindo de Patos só para conhecer a festa. A mulher aceitou, mas nos primeiros
passos da dança com Inácio, esta já estava tentando se desvencilhar do parceiro, que estava
com um suor muito fedido. Terminada a dança, quando a madame finalmente se solta dele, ela
por infelicidade acaba dizendo para Inácio:
- Você sua, hein?
Nisso, Inácio sem perder mais tempo, abraça a mulher com toda força e lhe tasca o
maior beiZé já visto em público por aquelas bandas, e responde:
- Também vô sê seu, meu amô! – (Inácio entendeu tudo errado).
A mulher, não engolindo o desaforo, mete o tapa pra cima de Inácio, e estava feita a
briga: Foi tamanco, tamburete voando, penico, califom, caneca de cerveja, faca riscando no
chão...
Nisso, Chico zambumbeiro, que era conhecido por ali por ser um cabra muito mole,
quando viu que a briga tinha se instalado no setor, saltou por uma janelinha com zabumba e
tudo. O interessante após a briga é que nunca ninguém conseguiu desvendar o mistério de
como Chico tinha passado com a zabumba por aquela janelinha tão estreita, já que a zabumba
não passava de jeito nenhum.
Ganga era quem treinava os cachorros do Lameirão para caçar, sabe – se lá como e
isso incluia o Bosta, de Zé Pajaraca. E em troca, de vez em quando ele ia na casa de Pajaraca

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buscá – lo para caçar. De fato, nunca alguém tinha visto um igual naquelas redondezas. Se
sumia uma cabra de alguém, mandavam logo trazer Bosta e logo o cachorro encontrava a tal
cabra. Se o jegue de fulano saia da roça para ir atrás das jegas de cicrano, bastava botar Bosta
pra cheirar o rastro dele, e logo o jumento fuZé estava no cabresto.
Dizia o povo que um homem tinha morrido afogado no açude grande, e Bosta que
tinha ido buscar o corpo lá na lama e assim a fama do cachorro achador corria mundo.
Quando Ganga ia fazer suas caçadas, já se sabia o que ia acontecer, pois Bosta passava o
pente fino em tudo que era bicho do mato e só escapava os que voavam alto, pois os que
vivem no chão, tais como coruja, caburé de buraco, bacurau, cordoniz, nhambu, seriema e
outros, ele pegava tudo.
Isso já gerava uma preocupação muito grande entre os caçadores daquela região,
porque até o calango bico doce já era dificil ser encontrado ali. Até as lagartixas de parede só
escapavam aquelas que ficavam lá na cumeeira das casas, pois o tal cachorro pegava todas
aquelas que se atreviam a andar nas paredes mais baixas.
A fama de Bosta era conhecida até em outros municípios e já se comentava que se
botasse ele no rastro de um peba que tivesse passado por ali no ano anterior, poderia contar
com ele na panela em breve, pois mesmo que o bicho já estivesse morando em Pernambuco, o
cachorro só voltava pra casa com ele na boca.
Esta façanha permitia que Inácio Ganga levasse a vida que tinha pedido a Deus, pois
quando a coisa apertava, ele ia na casa de Pajaraca pegar Bosta e este fazia tudo por ele. Em
troca da permissão, Pajaraca e Abigail queriam sempre parte da caçada. No acerto de conta, o
coitado do cachorro só ganhava os ossos das caças que pegava.
Mas o tempo passa e já não se tinha mais tanta caça disponível lá pelas bandas do
Lameirão, pois o cachorro já tinha capturado tudo e Inácio foi obrigado a mudar de cidade e
nunca mais foi na casa de Pajaraca buscar o cachorro para caçar.
Nos final dos anos 50 a cidade de Campina Grande era o eldorado daquela época.
Inacio ele resolveu ir embora de mala e cuia para lá. Obviamente não poderia levar o
cachorro, já que nem o dono ele era. Outra que ele iria procurar serviço assim que lá chegasse.
Mas em sua atual condição, teria que ir até lá a pé, já que não tinha dinheiro para pagar a
passagem do pau-de-arara.
Para levantar uns trocados para comprar comida pelo caminho, vendeu uma banda do
jumento a Nêgo Germano de Benvinda, e confiou a outra parte de seu jumento a seu pai, o
velho Lucena, que morava em um ranchinho chamado Filipe. Nesta época, seu pai ainda era
um homem muito forte, porém muito parecido com o filho no que diz respeito a ser "torado
no grosso" e preguiçoso.
O velho Lucena não calçava sapatos, pois não havia no mundo uma forma que desse
naquele pé. Os dedos daquele pezão eram arregaçados uns para o lado direito e os outros para
o lado esquerdo, atingindo uma distancia de vinte e três centímetros entre o dedo grande e o
pequeno de cada pé. Portanto, era o jeito ele mesmo fabricar suas "precata" de couro cru, e
para isso gastava quase um couro de um garrote.
Inácio Ganga ao chegar lá na cidade grande arranjou um emprego de vendedor de
picolé de saco, mas como era mês de julho, por lá estava muito frio, e não estava nada bom
de vender tal produto, mas Inácio precisava ganhar alguma coisa, pois os trocados que tinha
levado já tinham acabado.
O dono da picolezeira, Seu Assad, era um turco daqueles que gostam mesmo é de
dinheiro. Ele queria sempre todos os seus picolés vendidos até o fim do dia. Assim, ele
mandou Inácio se afastar para outros bairros mais distantes, para ver se vendia algum picolé

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pelas áreas mais residenciais, pois ali pelo Açude Velho tinha muitos concorrentes,
principalmente uns que vendiam o tal do Ice-cream da Sorvane, uma novidade lá dos "States".
No outro dia, bem cedo, Inácio Ganga encheu o isopor de picolé até a tampa, e pegou
o caminho de não sei de onde, mas ao invés de oferecer picolé, ele só olhava para as mulheres
bonitas que encontrava pelo caminho e esse descuido quase o levou à breca.
Andou, andou, andou, até que a noite chegou e quando deu por si, já estava perdido no
meio daquela cidade grande cheia de buzinas e letreiros luminosos. Na caixa de isopor que ele
trazia os picolés não tinha se quer um nome que indicasse o endereço ou telefone do dono e
por isso ficou ainda mais difícil de voltar para o local de onde ele tinha saído de manhã.
Como também não tinha memorizado nenhuma referência, tais como, placas, lojas, e
etc, já que não sabia ler, optou por perguntar a um e a outro, mas ninguém dava
resposta às suas perguntas dele, pois também não sabia perguntar direito.
Passado o primeiro dia, segundo, terceiro e quarto; nada de Inácio saber onde estava,
pois a cada dia ficava mais distante do ponto de onde ele tinha saído naquele dia com o isopor
entupido de picolé, que a essa altura já tinham derretido e virado suco.
Como para quem não tem o que comer, tudo serve para botar na boca. Lá pelo quinto
dia de andanças, ele caiu das pernas de tanta fraqueza, pois não comia e nem dormia quase
nada por causa de tanto frio. Um frio de fazer cair o cabelo! Frio daqueles que botavam
qualquer sertanejo nordestino dos fortes para correr, veja lá um capiau do calibre dele.
Logo alguém de bom coração se prontificou a ajudá - lo, pois viu que ele ia morrer ali
e fedido como já estava, ninguém iria suportar a catinga quando ele estivesse podre.
Apareceram mais outras pessoas, que logo queriam saber de onde ele era e este ia tentando
responder às perguntas que lhe faziam, porém ninguém entendia ao certo o que ele dizia, até
que por sorte apareceu um morador das bandas das Cabaças, ou seja, que também tinha vindo
das mesmas bandas que Inácio tinha vindo, mas esse, já acostumado com o linguajar da
cidade grande, também não entendeu nada. Nisso, Inácio batia o pé no chão repetindo sempre
a mesma coisa:
- Homi, ói, eu sou fí do véi Lucena, o que mora lá no Filipe!
- Não o conheço, meu senhor... – Diz uma mulher, dando de ombros.
- Má rapaiz, a sinhora num cunhecê papai?
- Não, meu senhor. Dê mais detalhes...
- Homi! É o véi Lucena, lá do Filipe, aquele do pezão grande e do dedo grandão longe
um do ôto, ele mora no Filipe!
- Mas nos diga onde é que fica isso, meu senhor? - Alguém perguntou.
- Lá no Filipe! - respondeu ele.
- O senhor é batizado, seu moço? - perguntou outro.
- Sô, né? - Respondeu ele.
- Em que igreja?
- Na ingreja do páde.
- E em que cidade?
- Lá nos Pato de majó Migué.
- Em que Estado fica isso?
- Sei lá o que djabo é isso, homi, sei que é no Filipe que eu moro!
- Quer comer alguma coisa?
- Nam, eu quero é ir simbora lá po Filipe!
- Mas por que não quer comer? Por acaso o senhor não tem apetite?
- Eu mêrmo não! Quem tem isso aí é só muié!

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- O jeito que tem é levá - lo ao IBGE, para vermos se localizamos essa tal cidade de
Major não sei o quê, e esse lugarejo chamado Felipe para em seguida levar o perdido no
correio, na tentativa dele se comunicar com a família através de carta. - Sugeriu um
transeunte.
Chegando lá, depois de muitas perguntas e muita confusão, o funcionário conseguiu
localizar no mapa duas cidades de Patos, uma em Minas e outra na Paraiba e não “dos Pato”.
Levando em conta os modos daquele indigente vivo, o atendente do correio concluiu que ele
era de Patos da Paraiba, lá do interior e que lá é onde se localiza o tal rancho Filipe, no distrito
de Cabaças, tão falado por Inácio Ganga.
No correio ficou acertado que Inácio ditaria uma carta para seu pai e este que
encontrasse jeito de mandar buscar o filho, que estava perdido naquele lugar de doido.
Também ficou acordado que só seria escrito no papel o que Inácio falasse, e na mesma
pronúncia, caso contrário o povo de lá do Filipe não iria entender nada.
A carta seria enviada para a diocese de Patos, e ela pediria ao padre Chico Sitônio para
localizar o velho Lucena através do batistério, e em seguida seria entregue ao seu legítimo
destinatário. Olha a dificuldade!
Quando finalmente a carta foi entregue lá no Filipe, a casa do velho Lucena ficou
pequena para tanta gente que foi saber se Inácio já estava bem de vida lá na cidade grande.
Entre os visitantes estava Joaquim Porfírio para ler a carta, pois este era o único sabido que
tinha por aquelas bandas.
Assim que as primeiras letras foram traduzidas em palavras conforme saíam da boca
do Joaquim, o chororô se fez ouvir de longe e dona Chiquinha, mãe dele, foi a primeira a
chorar e se lamentar:
- Ô meu Padim Ciço Frei Damião, meu fíi tá passano aperrêi im Campina, e eu aqui
sem pudê fazê nada...
Joaquim fez uma pausa olhando para todos com ar de reprovação, e pediu atenção para
ouvirem o que ele mandava pedir ao pai. Era mesmo de cortar coração em pedaços e dizia
bem assim!
- "Bença pai? Bença mãe? Eu tô pirdido aqui nas rua desse canto que só tem doido.
Ói, eu tô pidino que o sinhô mande meu amigo Zé Pajaraca trazê Bóxta pra vim me prucurá,
pois só esse cachorro é que é capaiz de mim achá por aqui. Vou ficá isperano sentado aqui
no batente do corrêi. Mande esfregare a carta nas venta do cachorro, que é pra ele achá o
corrêi pelo chêro da tinta que foi iscrita a carta e do papé. Eu tomém isfreguei o invelope no
meu suvaco, que é pra ajudá a Bóxta sintí o meu chêrim bom de longe. Eu num vô tumá bãe
enquanto eles num me achare. Ói, pai, eu peço que num demore não sinão eu morro de fríi
aqui, pois aqui nesse canto de doido, ninguém dá um pingo d'água pum pinto. O véi dono dos
picolé que eu tarra vendeno é um véi muito do miserave, daqueles que óia por cima do zócro
só pra num gastá os vrido! Pai, aí no Filipe a gente usa sabugo pra limpá o fiofó tranquilo,
aqui po caba se limpá, a gente tem que usá papé porque sabugo é difice de achá. Nunca vi
isso na minha vida, o caba se limpá cum papé, num limpa direito não...
- Ei, peraí, tem minino aqui na sala, ele só fala im fiofó nessa carta, é? - Interrompe o
velho Lucena.
- Não sei, só se o senhor me permitir ler o resto. - Responde Joaquim Porfirio, se
sentindo contrariado ao ser interrompido. Nisso, ele dá aquela pigarrada para retornar a
declamação da leitura:
-...Po sinhô tê uma idéa, o véi dus picolé além de tudo mandava que eu usasse o papé
de jorná pa limpá o fóba, e dava só um pedacim, dizeno qu'era pr'eu usá dum lado e do ôto.

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Aí eu ficava era cum ar mão tudo melada quando ia usá ele pela ôta banda. Pu certo ele
dava jornal pa vê se meu foba aprendia a lê.
Todos se entreolham, constrangidos...
Pai, ói, diga a mainha que derne de quando eu cheguei aqui ainda não tumei um bãe.
Po caba tumá um bãe aqui tem que pagá, num é como ai no Filipe, que quando a lagoa do
Loreto tá chêa, a gente toma bãe e bebe água até injiá o côro do bucho. Os picolé que eu tava
vendeno, já tão tudo mole e ficaro quente, mas eu tô iscapano bebeno eles, ainda tem muinto.
Dá p’eu ir iscapano.
Ói, pai, lembe de dizê a Pajaraca que istrume o cachorro pa ele vim im linha reta, que
fica mais perto pa quando ele me achá. Na vorta, num tem muído não, nóis vem vendeno o
suquim dos saco de picolé pela ixtrada, pra levantaá dinhêro pa nóis cumê direito no camím.
Vai sê o jeito nóis vortá de péis, pois eu num ganhei nem uma ruela furada aqui.

Assinado: Inácio Lucena da Silva.


Terminada a leitura da carta, o velho Lucena entrou em ação. Mandou Doca, seu outro
filho, ir urgente buscar Zé Pajaraca. E como sempre, precisavam falar com Zé Alves para
liberar seu trabalhador de confiança. Nisso, Doca foi em pessoa arrumar o matulão, ou seja, a
bolsa onde o Zé levaria a tralha que ele usaria na longa viagem. E esta era composta de uma
caixa chamada costal de rapaduras, farinha de milho, carne de quatro bodes bem seca, café,
sal, oito jerimuns dos grandes, duas cabaças grandes, uma cuia grande para botar comida para
o cachorro, uma panela de barro pra cozinhar o rubacão, um copo de barro para café e água,
uma colher, duas coleiras, dois palmos de fumo Arapiraca, dois grandes pacotes de palha de
milho pra fazer cigarro, um corrimboque feito de chifre de boi, com a tampa feita de caco de
cuia presa numa correia de sola, quatro pares de alpercatas feitas de couro cru, quatro chapéus
de palha bem grandes de aparar sol e chuva na estrada, e mais outras coisas úteis para uma
viagem daquela.
- Zé Pajaraca!
- Wuw!
- Tem como nóis tê um dêdim de prosa? - Pergunta Doca, no roçado.
- Digaí, meu quirido…
- Zé, eu tem uma missão pra você…
- Oxe, é agora.
- Já falei com seu Juzé Aivo. Ele liberô o amigo…
- Oxente, mió ainda. Diga aí…
- Zé, só tem você pa ir buscar meu irmão lá im Campina!
- Inaço?
- Sim, ele tá perdido lá.
- Oxente, mais por quê eu? Seu Lucena tem pa mais de vinte fí vivo e não tem um que
vá buscá?
- É que a gente num sabe onde ele tá, intão num adianta ir pa Patos, pegá o trem até
Campina e num sabê onde ele tá.
- Sim, mais pra mim ele tombém num disse onde é que tá. Intão tá ruim.
- Sim, Pajaraca, mais mêrmo que a gente subesse onde ele tá, num ia tê como pagá o
trem, por que é caro. Inaço viajô pra lá mais os mascate.
- E eu vô bateno asa, é?
- Você vai de jumento.

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- Nam, esse meu jumento aqui é só pra carregá ancureta, ninguém amonta nele não que
ele é brabo. E ôta, eu num ando de jumento não. Ando só puxano…
- Intão você vai puxano…
- Ô rapaz, meu siviço é pelá roçado, catá fejão… Essas coisa. Ir batê lá im Campina, e
de jumento? Dá pra mim não, seu Doca. Eu tô é com quase cinquenta ano. Num aguento mais
roZé não.
- Intão pode ir seu minino, Ixpedito...
- Nam, prexta não. Ixpedito é novo. Até pra ir im Patos ele só vai mais eu, que dirá ir
batê im Campina?
- O problema, seu Pajaraca, é que a gente num tem opição, ô é tu ô meu irmão Inaço,
seu primo véi, vai morrê de fome lá im Campina.
- Eu sei! Agora tombém fiquei preocupado. Mais eu num sei lê, num cunheço
Campina, num cunheço ninguém que more lá, como danado eu vô achá Inaço, criatura? -
Rebate Pajaraca, batendo uma palma forte e cruzando os braços.
- Você tem um trunfo: Boxta.
- Tá e ninguém caga aqui no Lamerão. Só eu!
- Tô falano do seu cachorro, home de Deus!
- Agora pronto. Sobrô até pro meu cachorro?
- A gente tá com uma carta com o chêro de Inaço. Se Boxta cherá o papé e farejá, ele
acha Inaço!
- Oxente, pronto. Tá resovido: Pode levá Boxta! Tá amarrado ali naquele pé de pau.
Leve e bote ôto pa ír atráis dele. Se eu fô, vocêis depois tem que ir buscá nóis dois lá…
- Ô Zé, tudo isso a gente sabe! Mais esse teu cachorro é brabo que só o cão. Ele só é
manso com quem?
- Com o povo lá de casa…
- E mais quem?
- E Inaço…
- E quem mais?
- Eu, né? Eu sô o dono.
- Intão. Tá veno? Só tem você, primo.
- Ô rapaiz, ói. O problema né nem o cachorro ou eu ir não…
- É o quê intão?
- É jumento. Eu tem pavô de subi im cima de jumento!
- Oxe, Zé. Por causo de quê?
- Ora o quê? Que grande que já levei e foi muita! Sô todo disconjuntado assim por
quê?
- Não, rapaz… Mais lá a gente arruma um jumento mansim pra você. O que a gente
tem é manso dimais…
- Ô rapaiz… Não viu? Eu vô passá um tempão fora. Vai tê quem pague minha diária
aqui?
- A gente paga! E Paga até mais que cumpade Juzé Aivo!
E assim, depois de muita conversa, Pajaraca acaba convencido de fazer a tal viagem.
Quando Doca voltou já acompanhado de Zé Pajaraca, tudo já estava pronto para que
fosse iniciada a grande viagem. Bosta foi trazido e amarrado no pé de pereiro da frente da
casa. Ele dava grandes pulos e mordia a corda. Brabo todo! Zé Pajaraca já estava acostumado
a ser pau pra toda obra, mas dessa vez era diferente, pois nunca viajou para além de Patos e
Juazeiro do Norte, e quando o fazia, era de trem ou pau de arara; ou seja, conhecia poucos

205
lugares, menos ainda a cidade de Campina Grande, por isso não concordou em fazer uma
viagem daquela a pé, e ainda por cima puxando um cachorro no cascalho quente das estradas
daqueles sertões áridos.
Ainda assim, ele pediu para que lhe lessem a carta mais uma vez em busca de detalhes.
No envelope da mesma, estava escrito o endereço do remetente e ele tratou de repetir o nome
diversas vezes na intenção de memorizar os pontos importantes um em cada dedo. Concluiu
portanto que não precisava levar Bosta para localizar o amigo, pois este dizia na carta que
estava esperando ele na porta de uma agencia do correio, Sendo assim, ele estava decidido a
fazer a viagem num pau de arara. Porém, o velho Lucena não queria concordar nem a pau,
pois segundo ele, se Bosta não fosse, seu filho jámais seria encontrado naquele lugar de
doido, pois nada garantia que depois de todo esse tempo Inácio ainda estivesse lá no Correio.
Somente após muito puxa lá e puxa cá é que o velho Lucena se rendeu.
Agora a dúvida era: Quem arranjaria o dinheiro para pagar a passagem? Pois de ida era
um e de volta seriam dois. Inácio nada tinha faturado de dinheiro por lá, daí o porquê de
Pajaraca ter que levar dinheiro para pagar as passagens de ida e de volta dos dois. No entanto,
a única coisa que tinha para ser vendida era a outra banda do tal jumento de Inácio, que
segundo Doca, era muito manso, mas ele já tinha penhorado a primeira parte a Nêgo Germano
de Benvinda para completar o dinheiro das despesas quando da sua ida para a cidade grande.
Se eles penhorassem a outra parte, todo o dinheiro levantado com isso não daria
sequer para comer rapadura com farinha e cocorote pela estrada, veja lá pagar passagem para
dois na volta.
Contudo, Pedro Lucena, que estava por perto e a todos escutava, sugeriu que seu
amigo Pajaraca fizesse a viagem montado no burro – mulo* filhote de jumento com égua dele, que era
mais manso e forte ainda. Parecia um cavalo, arreado com uma cangalha e um par de caçuás
que iriam servir para botar as caças que o cachorro pegasse pelo caminho. Inclusive os couros
dos gatos e até das onças pintadas, que segundo ele, essas peles lá nessa cidade grande valiam
ouro.
- E quem sabe, né? Se eles não vorta de lá chêi de dinhêro da venda de tanta carne das
caça, e de tanto côro de onça pintada pa fazê munfada de madame e de gato maracajá que
Bóxta ia pegano durante a viage!
- Minino, tem uma coisa, é da vêiz que nóis compra o Lamerão todim e passa chama
só de Filipe! – Se anima o velho Lucena.
Conversa vai, conversa vem mas não chegam ao consenso a respeito do que fazer com
o fato de Nêgo Germano ser dono da outra parcela do jerico, já que este não concordava em
ficar sem o animal ou sem o dinheiro que ele valia.
- Nam, alugué de jumento é dinhêro, moço! E eu priciso dur meus jumento. Só se eu
tivé direito a recebê parte do alugué! - Argumentou Nêgo Germano.
- Então num tem condição não, Pêdo - lastimou o velho Lucena.
- Oxi, e pru mode de quê num vai dá, pai? Me diga mêrmo!
- Porque quando chegá lá o jumento já vai tá todo istrupiado e num vai aguentá dois
caba amuntado nele e arrastá um cachorro pur uma corda na viage de vorta, né?
Nisto, Joaquim Porfírio, que tinha sido chamado para ler a carta, entrou na conversa
aconselhando que a viagem fosse feita no jegue sim, pois segundo ele, jumento lá nessas
cidades grandes valiam uma fortuna. O bicho poderia ser vendido por um preço muito alto, e
olhe lá se o dinheirão apurado com a venda dele não desse pra comprar dez cavalos manga
larga*… Raça nobre de cavalos

206
- Será mêrmo, Juaquim? - perguntou Nêgo Germano, já imaginando apurar um bom
dinheiro com a banda do jegue de sua propriedade.
- Rapaiz, será que dá mêrmo? Perguntou Doca.
- Ora se num dá - Responde Joaquim. E completa:
- Meu amigo, o povo desse lugá que Ináço tá qué tanto bem a jumento, principalmente
os do Lamerão, que eles se cria sozim lá, num pricisa nem puxá carroça, e vive cumeno do
bom e do milhó, só sabugo e papelão no munturo.
- Mais esse povo lá desse lugá tem tanta paxão assim pu jumento purquê? É só pra
andá montado nele, é? - Perguntou Doca.
- Nada... - Respondeu Joaquim. - É só pra uví ele rinchá de madrugada pa se acordá
cedo e ir trabaiá.
- É mêrmo, né? Pelo meno o povo lá sabe dá valô aos bichim - Concorda Doca.
Finalmente ficou tudo acertado que a viagem seria feita no jumento de um e os
mantimentos seriam pagos com a venda do jumento de outro e ponto final. Combinaram com
Nêgo Germano que se o jegue fosse vendido lá ele receberia a parte dele, sendo que se não
houvesse negócio ele receberia um bom aluguel pela sua parte. Puseram as coisas dentro dos
caçuás e amarraram a corda da coleira de Bosta no cabresto do jumento.
Zé Pajaraca, mesmo nem sendo dado a andar de jumento, se encaixou no meio da
cangalha entre um cabeçote e o outro e saiu antes da barra do dia clarear. Abigail não gostou
nem um pouco dessa conversa, nem seus filhos, mas… Era trabalho, trabalho estava difícil e
ele não poderia recusar. Por sorte os juazeiros estavam com seus frutos maduros e o lanche
das manhãs era garantido, pois não era preciso nem acender fogo para fazer comida enquanto
tivesse juá maduro pela beira do caminho.
O primeiro dia de viagem assim como o segundo foram sem problemas, mas no
terceiro dia lá pela tarde, Bosta por ser puxado pelo cabresto do jumento não conseguiu se
desviar e pisou com a borrachinha da pata nos cacos de vidro de várias garrafas quebradas que
estavam à beira da estrada. Isto causou um corte muito profundo numa das patas traseiras, e
por isso ele não pôde mais andar direito. Ficou mancando.
Zé Pajaraca só achou uma saída para resolver este problema: Pegou o cachorro e o
colocou dentro de um dos caçuás, mas Bosta era muito pesado e inquieto. Na tentativa de
aquietar o cachorro em cima do jumento acabou virando a cangalha, deixando cair vários
objetos. Dentre eles, caiu o valioso saco de farinha bem em cima de uma rocha meio pontuda
à beira da estrada. Com o impacto o saco rasgou e foi farinha pra todo lado. A pedra ficou
bem branquinha, parecia uma noiva.
Pajaraca era decidido e não se deixou abalar. Cortou uma forquilha, escorou o caçuá
com ela, calculou que seu próprio peso era igual a soma do peso do cachorro e o das coisas
que levava, botou tudo que tinha dentro do caçuá que estava escorado, rebolou o cachorro em
cima, e ele pinotou dentro do outro caçuá e tocou o jegue adiante.
Na tarde do quarto dia chegaram num tronco da serra da Viração, onde hoje é o
município de Areia de Baraúnas. Ali Zé Pajaraca fez uma parada. A estrada dobrava para
esquerda acompanhando a cordilheira até um ponto mais baixo, onde contornava a ponta da
serra e dali tomava o rumo da direita seguindo para o leste.
Zé Pajaraca escorou com a forquilha o caçuá que ia com as coisas e o cachorro, e saiu
só depois de soltar tudo que ia dentro. Tirou a cangalha do jegue e resolveu descansar aquele
resto de tarde. Enquanto isso, o jumento ia encher a barriga de capim, que tinha muito ali por
perto.

207
A vegetação e a paisagem já era um pouco diferente. Ainda existiam cactos, mas estes
estavam ao meio de outras árvores de maior porte e de folhagem de um verde muito bonito,
pois era região serrana. Não foi dificil encontrar um córrego ali por perto. Tomou banho,
encheu as cabaças com água, fez uma janta rápida para ele e o cachorro, e se preparou para
dormir aquela noite por ali mesmo.
Armou a rede debaixo de um pé de umburana e ficou ali se balançando enquanto a o
resto da noite chegava. Poderia dormir a sono solto, pois se o cachorro latisse ou o jegue
soprasse pelas ventas, era sinal de que tinha algo estranho ali por perto, mas muito improvável
pois se tratava de um local bastante ermo e bucólico.
Esta noite, porém, não foi como as anteriores. Bosta levantava a cabeça, torcia as
ventas para um lado e outro, procurando captar no ar um a procedência de um cheiro que para
ele era estranho. Na mesma toada o jegue murchava as orelhas, arregaçava as ventas e dava
sopros, assim como outras vezes apontava as orelhas pra frente, como se estivesse vendo ou
sentindo algo muito estranho ali perto.
Enquanto isso, Zé displicentemente traçava o plano para seguir a viagem pela estrada
cavaleira que serpenteava por dentro do boqueirão, atravessando a serra em linha reta e que
saía na estrada que continuaria pelo outro lado da cordilheira. Com isto, ele ia ganhar quase
dois dias de viagem, em relação ao que iria gastar se fosse contornar a ponta da serra, fora o
esforço demasiado para o jegue. Zé podia simplesmente acompanhar a ferrovia que em algum
momento, iria chegar em Campina Grande sem maiores problemas, mas decidiu, sabe – se lá
por quê, ir por outro caminho.
O dia clareou, e ele logo encagalhou o jumento, botando as tralhas dentro de um dos
caçuás, botando por fim o cachorro em cima e ele entrou no outro, e tocou o jegue pra dentro
da garganta da serra. Percebeu na passada que o jumento estava meio inquieto, levemente
debilitado, assim como o cachorro que continuava dormindo no caçuá. Não imaginava que
ambos tinham passado a noite em claro.
O inconveniente era o caminho que já estava muito estreito. Tinha muitas pedras e
vegetação que muitas vezes enroscavam nos caçuás ou faziam o jumento ter que forçar a
passada. A estrada era tão ruim que só jumento mesmo, e nem qualquer jumento que passaria.
- Meu amigo, tem uma coisa. Cum tanta ponta de péda no chão assim, po caba revelá o
pé é daqui pr'ali - conclui Pajaraca, falando sozinho.
Zé Pajaraca também não era muito cuidadoso com as coisas, mas mesmo assim ele foi
tocando a viagem. Quando finalmente se aproximou do espinhaço da serra o jumento
empacou. Apontou as orelhas para frente, arregaçou as ventas e deu um sopro que chega
levantou poeira e folha seca do chão. Bosta, que ia cochilando, levantou a cabeça, ficou em pé
na beira do caçuá, torceu as ventas procurando um cheiro no ar e soltou aquele latido gasguito
que cachorro dá quando sente medo. O jegue deu mais dois sopros pelas ventas, deu dois
passos atrás, rodando e tentando pegar o caminho de volta.
Nisso, um rugido ensurdecedor e parecido com o de uma sussuarana fez toda a
montanha tremer! Foi revoada de passarinho pr'a todo lado! Nisso, Bosta pulou no chão e
entrou debaixo do jumento. O peso desequilibrou a carga e a cangalha virou derrubando
Pajaraca embaixo do bucho do jegue, que nessas alturas já fazia carreira serra abaixo! No
desespero de se livrar da cangalha, dos caçuás, de Zé e do cachorro que estavam enroscados
embaixo da barriga dele, o jegue dava coice grande com as duas pernas, dava uma descarga
sonora com a boca traseira, e assim ia largando um bocado das coisas no meio daquela
pedreira terrível.

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Zé Pajaraca, que ainda estava dentro do caçuá, segurou firme a corda que estava
amarrada ao pescoço do jumento e este desceu a serra arrastando tudo de ladeira abaixo. Ora
Zé estava de papo pra cima, ora de barriga no chão, e as cordas que amarrava os caçuás nos
cabeçotes da cangalha foram se rompendo quando enroscavam num galho ou numa pedra. Por
fim, só restava Zé Pajaraca na rabeira do jegue, que por nada deste mundo queria parar de
correr. Já o cachorro, que tinha tomado a dianteira, nem parecia mais que tinha uma perna
desmantelada, pois corria com as três patas boas que era uma beleza, assim como também não
era besta para enfrentar uma fera daquelas que nem se deu ao trabalho de descer atrás deles,
que pelo contrario, deve é ter corrido para o outro lado, com medo da barulheira daquelas
tranqueiras arrastando pelo chão.
Quando finalmente Zé conseguiu ficar em pé, mas sem tentar fazer o jegue parar, até
porque ele iria parar mesmo, chegou exatamente no lugar que tinha dormido, todo arranhado,
com um galo na testa, roupa rasgada, o chamboque do joelho arrancado e a unha do dedão do
pé levantada.
Após algumas horas, o jumento fuZé que tinha se embrenhado por outras picadas da
mata reapareceu ainda correndo, e chegando onde Zé estava, ele desembestou de vez, mas Zé
passou o laço por ele igual a uma bala. A corda esticou e somente assim o jegue parou. Foi
assim que ele notou que o estado daquele currú era lastimável.
De todos os seus pertences, a Zé só lhe restava a ceroula, assim mesmo bastante
rasgada. Olhou para o Sol e se abismou com o tempão que tinha gasto para subir aquela
montanha e tão pouco para descer. Pois a uns vinte minutos atrás ele estava quase lá no cume
da serra. Como que ele teria levado quatro horas para subir, se para descer foi tão rápido?
Voltar lá para pegar as coisas no caminho, nem em sonho. O certo era sair daquele
lugar o mais rápido possível, e voltar para casa, e quem quisesse, que fosse atrás de Inácio
Ganga de jumento. Ele não iria mais. Era loucura!
Para não ser visto naquele estado de lástima em que se encontrava, Zé Pajaraca foi se
desviando das aglomerações de pessoas e das áreas mais povoadas que encontrava pelo
caminho. Mesmo assim a volta foi muito rápida, porque se um jumento gasta quatro horas
para ir a um certo lugar, na volta para casa também não há de demorar muito.
Ao chegar em casa, o velho Lucena pediu a ele encarecidamente que fosse procurar
seu filho naquele lugar de doido, pois entre todos ali, só tinha ele que era amigo de verdade, e
só o cachorro acharia ele lá, mas o Zé Pajaraca estava irredutível.
- Com’é qu’eu vô? Se nem mái minhas rôpa eu tem?
- A gente vende a ôta banda do jumento e compra umas!
- E o dinheiro pra pagá minha passage de ida e mai duas na vorta?
- Eu võ vendê umas arroba de agudão na fôia a Sivirino Canuto e levanto esse
dinheiro, bêxta!
- Tá bem, seu Lucena, apôis eu vô. Só porque o sinhô tá me pidino, sinão eu nunca
mais ia pensá im saí de casa. Só eu sei o medo que eu passei lá naquela serra, vôti!
Finalmente tudo foi refeito às pressas e Zé Pajaraca viajou num pau de arara até onde
estava Inácio Ganga, e lá chegando, no centro da cidade, foi perguntando a um e a outro onde
era o canto certo e assim logo localizou o amigo, que de fato não tinha arredado o pé da porta
do correio. Isso já estava com mais de mês. Porém, Inácio já estava magro de fazer dó, e com
barba já grande e com muita confusão mental; mais do que de costume. Como Zé Pajaraca,
conforme o tempo passava, ficava cada vez mais desenrolado, levou logo o amigo a um
hospital para fazer-lhe uma ascepsia antes de retornarem lá para o sertão.

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Enquanto esperavam na fila a sua vez, Inácio Ganga, já mais esperto depois de ter
tomado uma sopa reforçada, não parava de olhar para uma moça muito jovem e bonita que
estava atendendo as pessoas à sua frente. Não mais suportando a curiosidade Inácio se
aproxima da mulher e pergunta, na maior cara de pau:
- Você é da família Lu da Silva Cena, lá do Filipe?
- Não, não. Mas diga - me por quê o senhor está a me perguntar isto?
Ao que Inácio responde:
- É porque um pezão grande que nem os seu só tem nessa famílha mêrmo!
A mulher não gostou nem um pouco da brincadeira, que na cultura dela tinha algo a
ver com homossexualidade. Na raiva, ela tirou o sapatão do pé e sapecou com toda força na
cabeça de dele. Meu amigo, foi sangue pra todo lado! Quem riu - se muito disso foi Zé
Pajaraca, pois Inácio acabou furando a fila e foi levado na mesma hora para o atendimento de
urgência e assim foi medicado de vez.
Três dias depois Inácio Ganga estava de alta, apenas com um esparadrapo no pé
d'ouvido. Os dois viajaram de volta no mesmo pau de arara que tinha trazido Zé Pajaraca.
Quando chegaram em casa a festa já estava pronta, e Inácio Ganga depois de descansar
alguns dias, retomou sua antiga atividade de caçador com cachorro dos outros:
- Tem coisa mió não, meu véi.

CAPÍTULO XXXVIII
A peleja da onça e o catimbozeiro

Outro bom vizinho de Zé Pajaraca era aquele dono da banda do jumento de Inácio
Ganga. Seu nome é Nêgo Germano. Esse negão era alto, magro, e um pouco curvado para
frente, só tinha dois dentes amarelos na parte superior da boca e outros dois na inferior.
Ambos eram bem separados um do outro e espichados para frente. Tinha a venta chata e bem
espragatada, e no lugar das narinas tinha dois buracos grandes que era por onde o vento
entrava e saia. Testa de touro cretense, olhos pretos e grandes com as beiradas amareladas,
mãos grandes, pés chatos e grandes, calcanhar tipo casco de burro virado pra trás, alguns dos
dedos dos pés eram grudados uns nos outros, com membranas entre eles tipo pé de pato.
Tinha a pele escura bem retinta. Era só chamá – lo de Germano que ele vinha, e ainda
tinha o apelido de Nêgo.
Sua companheira também era alta, galêga sarará, magra, muito magra mesmo, pernas
tipo palito, cabelo pixaím, olho de macaca, unha de carcará, venta do tipo bico de gavião, E se
chamava Benvinda.
Esta, assim como seu marido tinha um apelido, Dona Sibita. Mas que ela não gostava
nem pouco. Se alguém pronunciasse este nome, ela mandava todo mundo pra aquele canto.
Esse distinto casal era conhecido em toda região como os melhores dançadores de
mazurca. Onde houvesse uma pandega eles estavam presentes, nem que para isso eles
andassem léguas e léguas montados no lombo de um jumento. Nêgo Germano era zabumbeiro
bom e dona Benvinda era pífaneira, pois assim eles se intitulavam.
Nêgo Germano montava no meio da cangalha com a zabumba pendurada de um lado.
Já dona benvinda ia montada na garupa com o seu pífano pendurado no pescoço.
A zabumba era feita de um grosso tronco ôco de carnaubeira que depois de bem limpo
o seu interior, lhe foi colocado numa das bocas uma carapuça do couro de guaxinim e este,

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quando esticado por várias correias de couro cru gerava o seu som característico. Esse
instrumento quando era tocado perto de uma fogueira de são João, liberava um estrondo tão
forte que fazia balançar as latadas, onde debaixo das quais acontecia as pandegas e os dali
dançavam sempre numa boa carraspana, muito da arrochada.
O pífano que dona Benvinda tocava era feito de uma grossa vara de taboca com vários
furos ao longo da sua extensão. Quando ela soprava numa ponta e dedilhava aqueles furos,
saía um sibilo parecido com aquele que faz um carro de boi quando está com o cocão bem
lubrificado com sebo misturado no pilão com carvão.
Aquele casal de instrumentos tocava rumba, balada, e principalmente a mazurca do
trapiá que é aquela que tira o pé daqui e bota acolá. O som do arrasta - pé misturado com o
dos instrumentos parecia com o de uma serraria quando está funcionando.
Eles levavam uma vida sem preocupação, pois para levantar um dinheirinho, eles
inventavam de tudo. Os dois usavam um só cachimbo que dentro dele caBigaí palmo e meio
de fumo boró. Quando os dois estavam pitando, o fumaceiro era avistado de longe, parecia
uma queimada de cana-de-açúcar. Nêgo Germano andava com um patuá pendurado debaixo
dos queixos, e sabia fazer todo tipo de mandinga. Fazia catimbó, adivinhação, fazia burro
sumido aparecer, desmanchava casamento, juntava casais separados, e quando ia fazer suas
caçadas, as supostas caiporas passavam sebo nas canelas e sumiam dos matos com medo dele.
Assim ele dizia, orgulhoso.
Dona Benvinda sabia tudo que era reza braba. Rezava pra fazer cair pulga de gato, de
cachorro, pixilinga de galinha poedeira e fazia até cair piolho de cabeça de menino. Fazia
também cair carrapato de cachorro, cair tapurú das bicheiras dos cascos das vacas e jegues,
fazia percevejo sair das camas de varas e dos tôrnos das redes. Tudo era na base da reza, além
de rezar espinhela caída, olho gordo, mau-olhado, curava mordido de cobra, rezava pra arca
caída, dor de dente, dor de espinhaço torto, dor nas “cruz”, botava cascavel e jararaca pra
fugir das roças, entre tantas outras versatilidades.
Às vezes, quando suas rezas não estavam dando certo, Nêgo Germano ajudava com o
catimbó dele, e aí tudo dava certo.
Quando alguém ia queimar broca, eles eram chamados para rezar e evitar que o fogo
passasse para as roças dos vizinhos, e quando esse ameaçava passar, eles colocavam um santo
Antonio na cabeça de um tôco e logo a labareda amansava.
Às vezes o fogo ficava brabo demais, e o santo Antonio por ser muito corajoso não
saia da frente, terminava morrendo queimado, mas logo logo eles mandavam Mané Santeiro
do Boi Raposo fazer outro santo substituto, de pau de cumarú verde, que é um pau cheiroso e
ruim de fogo.
Assim o povo daquela redondeza se servia das habilidades do nobre casal, mas tinha
um porém. Tudo isso tinha um preço. Esse casal gostava muito de cachaça, e em
contrapartida, não gostava nem um pouco de trabalhar. Andavam sempre acompanhados de
duas cachorras, Baleia e Teresa e traziam com eles uma espingarda lazarina, um bisaco a
tiracolo, onde era guardado o chumbeiro, o polvarinho, a caixa de espoleta Tupã, um rolo de
bucha e o inseparável currimboque, um aparato que seria o avô do que chamamos hoje de
isqueiro. Este era feito de um chifre de boi crioulo, cheio de lã de algodão, tampado com uma
rodela feita de caco cuia. Tinha um furo no meio onde era enfiada uma correia de sola com
um nó na ponta, e a outra ponta desta era enfiada num furo existente na ponta do chifre, de
onde também saia uma outra correia, e na ponta desta era amarrado um pedaço lima, e uma
pedra preta, chamada pedra de fogo. Na hora de botar fogo no currimboque pra acender o
cachimbo Nêgo Germano não pedia explicação a ninguém:

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Retirava a tampa de caco de cuia, que ficava pendurada na correia, segurava a pedra
com uma das mãos junto à lã de algodão, e com a outra, ele esfregava com muita velocidade a
lima na pedra, e esse atrito gerava faíscas que caiam dentro do algodão e o foguinho estava
feito.
Além das duas cachorras, estas os seguiam, ele no jumento de Inácio Capim, e ela
numa jumenta velha, Negona. O jegue antes citado, calculava - se que já era tataraneto dela. E
as duas cachorras, estas garantiam com folga a sobrevivência do casal, que vivia num rancho
no meio do mato, num lugar deserto chamado Loreto onde o tempo se recusava a passar.
Ao redor desse rancho, eles tinham de tudo que era erva milagrosa:
Tinha pimenta xodó, rabo de carimbó, trança de mamãe sacode, alecrim capeta,
alecrim anjo, pé de mão-de-minhoca, de vento-doido, de pé de pixaím do suvaco da mãe de
Pantanha, catuaba da vermelha, rama de maracacã, pó de mico, quebra feitiço e comigo-
ninguém-pode. Tinham uma horta só de pixaím de mãe Joana, trombeta de papai xangô, um
pé de espanta tudo além de muitas e tantas outras plantas que serviam para curar até dor de
cabeça em prego.
O dinheiro apurado com tal expediente serivia para comprar cachaça, farinha,
rapadura, sal, café, fumo, entre outros gêneros de extrema necessidade de um matuto. Este
dinheiro também vinha da venda dos couros dos serelepes e dos caxinguelês além e dos
bicharocos que as cachorras pegavam nas tocas dos pés de saroba. Alguns dos bichos
capturados eles comiam... E os outros também, ou seja, só os ossos roídos era o que restava
para as cachorras.
As coitadas das cachorras tinham que se contentar com os ossos, os rabos e os
focinhos dos bichos. Benvinda e Nêgo Germano eram quem passava o dente na carne. Assim
a vida seguia do jeito que eles gostavam, pois não tinham filhos, mas eram muito felizes.
No entanto, nada que é bom dura para sempre. Era época de chuva, verão de 1958
quando costumeiramente, Nêgo Germano deixava a jumenta solta no pasto para engordar, na
tentativa de deixá - la forte pra ficar amojada mais uma vez. Ao ver que seu estoque de fumo
não chegaria ao dia seguinte, pegou o "cabrêcho" e saiu no destino do mata – pasto para buscá
e ir pedir um pouco na casa do amigo Zé Pajaraca:
- Negona, chegue, chegue, chegue...
Nada da jumenta aparecer.
- Negona, chegue, chegue, chegue... – (fazendo o som de beijinho).
Nem sinal do animal.
- Negona, chegue, chegue, chegue...
Germano fez uma varredura em toda sua propriedade, e nada do seu bem valioso.
Decidiu adentrar a parte da propriedade ainda com vegetação de caatinga original. Era
improvável ela estar lá, mas que certamente o animal não teria ido longe, pois sua propriedade
era bem cercada. Cruza uma picada, passa outra, nada de sinal da burrinha, até que num dado
momento, ao passar por cima de um lajeiro, ele vê gotas de sangue ressecadas na rocha, e
decide segui-las. alguns metros adiante, ele percebe que as gotas estão ficando maiores, se
tornando manchas. Quando ele revolve um arbusto para continuar seguindo aquele estranho
rastro de sangue, se depara com a lamentável cena: Somente a cabeça, as patas, costelas e uns
pedaços de couro da jumenta espalhados ao solo. O pobre do Nêgo Germano aproxima - se
em silêncio, perplexo, tentando entender o que tinha acontecido. Seu olhar refletia muita
tristeza e resignação.
- Isso é coisa de onça!

212
Uma onda de ódio dominou Germano, que saiu daquele local rapidamente, com os
olhos marejados. E já vai jurando no caminho:
- Vô li pegá sua infitéte! Você vai vê só!
Nêgo Germano chegou em casa tão transtornado que simplesmente esqueceu de dizer
o ocorrido a Benvinda. Passou logo no caminho de um pequeno depósito de tralhas, onde ele
guardava alguns pertences e utensílios variados. Sentou no tamburete e carregou o bacamarte
até a boca com chumbo, em seguida, com certa habilidade, fez uma espécie de pedestal
improvisado com forquilhas e arame, e pegou um carretel de linha de pesca. Botou a arma
num ombro, o pedestal embaixo do braço e o carretel no bolso. Danou - se novamente para a
cena do "crime". No caminho, passou no garajal e pegou uma galinha bem gorda. Chegando
lá, ele amarrou a galinha pelo pé no tronco de uma jurema e enlaçou ao redor o fio esticado da
linha de pesca. Este fio terminaria no gatilho do bacamarte, que deveria ficar preso ao
pedestal. A ideia seria colocar a galinha como armadilha pr'aquele bicharoco. Quando este se
aproximasse, durante a noite, a galinha já estaria adormecida e ela a abocanharia, mas tocaria
nos fios e dispararia o bacamarte, que soltaria chumbo grosso pra todo lado.
Infortunadamente, quando já tinha deixado tudo pronto, colocado uns grãozinhos de
milho e água para a galinha, e estava cuidadosamente saindo do recinto da armadilha, ele
acabou tocando sem querer com o beiço da sandália no fio, que no fim do dia já estava
praticamente invísível. Não deu outra, o trabuco disparou e realmente foi chumbo p’ra todo
lado! O fumaceiro encobriu tudo e o pipôco ecoou num raio de meia légua dali.
Benvinda se assustou com o estrondo, deduzindo que pela proximidade, ele teria sido
em sua propriedade. Enxugou as mãos, calçou as sandálias e saiu em direção ao matagal
munida apenas de um facão, o qual sabia manusear com maestria. Sua intuição feminina lhe
deu um aperto no coração. Algo ruim certamente teria acontecido.
- Cadê tu, Nêguim? - Desesperava - se ela.
Já era mais de seis horas da noite quando entra na parte fechada e escura da mata, mas
ela ainda consegue perceber cepos de jurema, favela e marmeleiro recém - cortados,
significando que seu esposo havia passado por ali a pouco. Conforme vai se aproximando do
local do suposto estrondo, sente também o vento trazendo o cheiro de pólvora queimada,
vindo do disparo da arma sobrecarregada de Germano. Sem ter o que fazer, ela começa a
gritar pelo apelido carinhoso de seu esposo:
- Nêguim... Cadê tu, Neguim?
Passados mais alguns momentos, ela ouve uma voz murmurante:
- Aqui eu... Benvida... Acuda aqui!
- Aonde, criatura de Deus? Eu num tô inxéigano é nada! O que foi, hein?
- Ajude aqui... Depôi eu le digo... Chegue pa cá...
- Tu tá adonde?
- Nes... Nessa lóca de jurema... Perto... Da ossada de Muringa.
- Eu tô ariada aqui nesse iscuro, Neguim! Alumêi aí cum o currimboque, tu tá cum ele
não?
- Tô... Tá aqui...
- Apois acenda, homi, pra mode d'eu le vê!
Finalmente Benvinda encontra o esposo. Tinha perdido muito sangue pois foi
atingindo por muitos dos chumbos do disparo. Estava vivo porque quando percebeu que tinha
tropeçado no fio, tratou de proteger a cabeça, ficando de lado, mas estava quase surdo por
causa do pipôco. Sorte também ele não estar diretamente na mira do cravinote naquele
momento, senão ele tinha virado carne de pastel. Germano tinha carregado o bacamarte com

213
uma quantidade muito maior de chumbo e pólvora do que deveria. Mesmo sem estar diante da
arma, foi gravemente atingido. A galinha, por sua vez, foi estourada pelo balaço. No lugar, só
restaram algumas penas e vísceras.
Germano estava muito ferido. Muito pálido e sem condições de andar, pois onde ele
não sentia dor, sentia o ardor da pólvora e do chumbo encravados na sua carne. Benvinda não
teve outra solução: Voltou para casa às pressas para armar a tralha do jumento e pensando
inicialmente em trazer o marido para casa arrastado por uma padiola. Lá com auxílio de suas
ervas milagrosas, com certeza ele ficaria melhor. Ainda assim, antes mesmo de chegar em
casa, encontrou – se por sorte com Expedito, e gritou pelos seus auxílios para ajudá - la a
colocar o marido na padiola, sendo que a casa dele não era perto. Nenhum problema naquele
silêncio absoluto da noite sertaneja, onde um grito, dependendo do gogó de quem grite, pode
ser ouvido a várias centenas de metros de distância.
Enquanto ela ainda arrumava a tralha, Expedito, que vinha para casa de dona Alcinda,
já vinha chegando acompanhado de Bosta. Curioso como ninguém, ele já chega com sua
metralhadora de perguntas:
- Que foi, dona Benvina? Sucedeu - se arguma coisa? Tá vendeno ur lajêro pa pedrêra
é? Que pipôco foi um a mêa hora atráis?
- Tamo vendeno nada não, Minino. Bora mais eu ali atrais do lajêro! Os caba baliaro
Nêguim! Bora suba aí logo sinão os caba vem vê se o siviço foi bem feito!
- Hã?? Mataro Nêgo Géimano? Vala minha Nossa Sinhora!!!
- Morreu não, doido! Bora, pixte e leve esse jumento véi lá po lajêro!
- Rapaiz, esse camím tá ruim dimais. Ói, tá parado de vento. Num tinha como a
sinhora acendê uma dessas tocha que a sinhora usa aí nus teus negóço de catimbó pa alumiá o
camím não?
- Boa indéa! Sinão nóis vai roçano tudo que é mato!
- Tá veno, dona Benvina, a sinhora me descurpe, mais ó, eu e todo mundo já isperava
que isso acontecesse, num sabe? Ele que bóle cum êssir negóço de catimbó aí... Tem gente
que tinha raiva dele.
- Sei não, Ixpedito. Lá eu vejo isso, ele num vai morrê não, se Deus quisé. Ele tá muito
ruinzim lá, todo mole, mais tá falano, o póbi. - Diz ela, com a voz embargada.
- Chore não, dona Si... Benvina... – (Corrige – se Expedito).
- Agora tem uma coisa, quem é que faz imbuscada no mêi do nada ansim? Imbuscada
é em cuiva da ixtrada ou no terrêro de casa. Nunca vi isso na minha vida! – Revolta – se
Benvinda.
Chegando lá, Nêgo Germano já estava com a roupa lavada de sangue. Estava
delirando devido aos ferimentos. Com muito cuidado, Expedito e Benvinda colocaram ele
deitado na padiola, e foram os dois caminhando, guiando o jumento de volta no cabresto.
Nisso, Germano ia vociferando algumas frases incompreensíveis:
- Aon'táonça?
- Quibe... xiga... foéssa?
- Fale não, neguim, já tamo chegano - Tranquiliza Benvinda.
Já em casa, Benvinda senta nêgo Germano num tamborete pra tirar aquela roupa
ensanguentada dele e limpá - lo pois estava sujo de terra, sangue e folha seca. Foi somente
então que ela viu o tamanho do estrago. Acendeu o lampião de querosene e foi contando as
perfurações. Ao todo, recenseou mais de uma centena de perfurações, cada uma com
aproximadamente meio centímetro pele a dentro. Como o couro de Germano era grosso como
a pele da zabumba dele, não foi um ferimento letal afinal de contas.

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Para tratar os ferimentos, Benvinda botou o dedo nos beiços e olhou pro alto, tentando
recordar os ingredientes da receita apropriada para tal feito.
- Pronto, lembrei. Espero que tenha tudo aqui!
Nisso, ela vai até os fundos da casa para fazer a pajelança:
Pegou dois pintos, jogou dentro do pilão, machucou tudo bem machucado com pena,
bico, olho, bofe e coração, misturado com tripas e tudo mais. Depois foi no bisaco onde Nêgo
Germano guarda suas mandingas, pegou dois olhos de caboré, um rabo de calango cego, dois
bofes de lagartixa, uma mão cheia de bosta de gato preto, meia garrafa de mijo de macaco,
meia lata de azeite de carrapateira, jogou tudo dentro do pilão e meteu a mão de pilão pra
dentro até que tudo virou um mingau.
Chegou em Nêgo Germano, que a essa altura já estava revirando os olhos, tapou - lhe o
nariz, abriu a boca do negão puxando o beiço de baixo pra frente e derramou toda a cuia numa
habilidade tão tremenda que ele engoliu tudo de uma vez só, dando engulho de todo tamanho
depois.
- Pronto, agora se deite aí, que é pa fazê efeito!
De fato, após uns trinta minutos Nêgo Germano começou a suar, mas em seguida se
sentiu muito relaxado. A dor e o ardido no espinhaço tinham passado. Aquela pajelança tinha
surtido um efeito anestésico e tanto. No outro dia, levaram Nêgo Germano até Patos para que
lá ele se tratasse. Aquele pobre ainda sofreu muito, pois lá a anestesia não fazia efeito algum
naquele corpanzil dele. Os médicos iam tirando os carocinhos de chumbo um a um com uma
pinça.
O tempo foi passando mas aí foi que Nêgo Germano ficou com raiva da onça:
- Além de ter cumido minha jumenta véa, ainda acontece isso cum eu - Lamentou-se
ele.
Benvinda, ao contrário de Germano, se tivesse lá no meio do pipôco, talvez não
tivesse levado nenhuma chumbada, de tão magra que era. A mulher tinha as pernas muito
finas, mas isso lhe dava a vantagem de poder correr léguas e léguas sem se cansar.
Visitas vinham de longe para saber se Nêgo Germano estava melhorando com as
garrafadas que Benvinda lhe ministrava.
- Arre Maria, arre Maria, arre Maria! E se Nêgo Géimano morrê? - Temia seu amigo
Chico Pacatôim.
Mané Pretim, lá da Cachoeira, era outro que não parava de se lastimar, pois Nêgo
Germano tinha tirado dele um catimbó dos brabos que o velho Zé Pio tinha lhe botado.
Severino-sem-cueca também não arredava o pé da rede do seu amigo doente.
Maria Cobra-de-Cipó, que era amigona de Benvinda, cuidava de pegar água na
cacimba; Maria Calanga pelava os preás que as cachorras iam pegando, moía o milho para
fazer angu, torrava a massa no caco para fazer farinha, pilava milho e fazer mungunzá, entre
outros serviços mais.
Zé Pajaraca e sua mulher, "Bigaí do Buchão" vinham pela manhã e à tarde para saber q
quantas andavam as melhoras do amigo.
Severino Capa-Tudo também aparecia regularmente, e Inácio Ganga vez ou outra
aparecia para cuidar do jumento do doente.
Assim o tempo foi passando, Nêgo Germano foi melhorando, no espaço de poucos
meses ele tinha sarado completamente, trazendo de lembrança apenas algumas poucas
cicatrizes. Isto devido à distancia que ele estava na hora disparo e meio fora do alcance do
alcance da trombeta da arma. Isto fez com que o chumbo não penetrasse fatalmente em seu
corpo.

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No entanto, ele só falava em se vingar da onça que tinha comido sua burra velha, que a
essa altura, de certo já tinha virado cocô de onça faz tempo.
Segundo ele, a jumenta herdada de seu avô já tinha pra lá de sessenta anos, e tinha
parido cinqüenta e seis vezes, e cada vez sempre nasciam dois machos. Portanto ela já tinha
parido cento e doze jumentos machos, é tanto que ninguém sabia ao certo quantos parentes,
entre filhos, netos bisnetos, tataranetos, e escanxanetos, ela tinha deixado para trás.
Como se viu anteriormente, o casal era muito querido e tinha muitos amigos, mas não
sei de cór de todos por nome, logo não pude listá – los aqui.
O único conhecido de Nêgo Germano que nunca lhe fez uma visita foi o velho Zé Pio,
pois ele também era catimbozeiro, e não via com bons olhos a concorrência que Nêgo
Germano e dona Benvinda lhe faziam. Era dois contra a um, e a coisa não andava bem para
mestre Zé Pio, que queria saber de tudo um pouco. Como ele sabia a arte do ferreiro e do
carpinteiro, foi arrastando o bucho pelo chão do jeito que dava. Amolava um picareta pra um,
apontava uma chibanca pra outro, talhava uma colher de pau aqui, fazia uma mão de pilão
acolá, e assim ia levando a vida, escapando.
Já Nêgo Germano, nem dava para conferir quanto ao que Zé Pio fazia. Estava mais
preocupado com a onça. Esbravejava todo santo dia.
- Aquela bicha ruim também vai sabê quá o gôxto do chumbo do meu bacamarte! Ah,
se vai.
A onça continuava fazendo seus estragos, comia uma vaca lá na serra da Borborema,
comia um boi do outro lado, na serra do Teixeira, na serra Preta comia outro tanto de bicho, e
assim nunca se sabia o lugar certo que ela estava. Interessante frisar que ninguém ali
ponderava a ideia de existir mais de uma onça no Brasil. Todas essas reinações supunham ser
de autoria de uma única onça.
Mesmo tendo passado o que passou, Nêgo Germano não abandonou seu trabalho de
caçador antigo e não ia desistir. Ele conhecia como ninguém a maneira certa e o dia certo de
encontrar com ela.
Tal dia ele estava sentado num tronco serrado de coqueiro, baforando seu cachimbo e
fazendo seus planos de vingança quando ele ouviu o latido das cachorras. Da porta de seu
casebre ele avistou alguém se aproximando muito apressado em sua direção. Logo notou que
era João Brabo, que vinha às carreiras lá das bandas da lagoa do Loreto. Esse camarada foi
logo dizendo:
- Seu Germano, ói, eu vi uma onça e um onço, lambeno a lama la na bêra da lagoa. E
foi naquele mêrmo cantim que o sinhô disse que matô aquele jacaré e aquela jacarôa!
Com a noticia, Dona Benvinda correu lá fora, trouxe o jumento, e o trancou dentro do
rancho. Nesta noite eles não dormiram com medo daquelas feras que rondavam aquelas
bandas. A única coisa que tinha por aquela redondeza que serviria de comida à onça era o
jegue, e Nêgo Germano sabia disso muito bem, pois ficara no prejuízo.
O dia clareou, mas quem teve coragem de abrir os caniços que fechavam as duas
entradas do rancho? João brabo, que tinha dormido debaixo da rede de Nêgo Germano junto
às cachorras, ainda estava agarrado no sono. Benvinda acendeu o fogareiro botou água pra
ferver. Só quando já estava raspando a rapadura para adoçar o café foi que ele acordou.
Benvina foi a primeira a falar nos perigos que estavam expostos naquele lugar:
- Minino, tem uma coisa, eu acho que a noite todinha eu fiquei uvino us rugido da
bichona lá. Tá pirigoso nóis ficá aqui.
João brabo olhava para o teto do ranchinho, e Nêgo Germano olhava pelas brechas da
parede de taipa, tentando ver alguma coisa. De instante em instante as cachorras latiam sem

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parar e o jegue arregaçava as ventas, dando sopros que a poeira levantava do chão. Assim se
passou o primeiro dia após a noticia trazida por João Brabo.
O bacamarte estava sempre carregado e bem azeitado, a espingarda também, e as
cachorras sempre dando sinal que tinha alguma coisa estranha ali por perto, assim como o
jegue continuava nervoso, soprando pelas ventas e peidando.
A noite chegou e a lenha que tinha dentro de casa estava pouca, pois durante o dia
ninguém teve coragem de ir lá fora catar um graveto se quer. A água já estava sendo
racionada. A catinga dentro do casebre era horrível, pois pra todo lado que se olhava só se via
mijo e bosta das cachorras, do jegue e de gente também, sem falar que a praga de mosca do
Egito tinha reencarnado lá.
Finalmente chegado o terceiro dia e nada de onça mostrar cara, Nêgo Germano não
soltava o bacamarte nem a pau. Lá pelo meio dia, João brabo aponta o dedo pelo o buraco das
varas entrelaçadas da parede, e diz:
- Pia mêrmo! Uma onça fême passano no terrêro da casa aqui!
Quando já estava escurecendo, Benvinda de outra brecha dá um pulo de susto, afirmando ter
visto o onço.
- Eu vi tomém, esse era o onço, deu pra vê inté o saco! Tá passano no oitão da casa,
Nêguim. Tá arrudiano a casa de nóis!
Nisso, ela corre para perto do marido, que está com o bacamarte mais carregado de
chumbo do que quando ele usou para fazer aquela armadilha desastrada.
O jegue continuava a soprar pelas ventas, batia com os cascos no chão, torcia o rabo,
murchava as orelhas, rinchava, e o máximo que estava ao alcance de Benvinda era tentar
acalma-lo naquelas horas que se arrastavam.
Nêgo Germano, como bom caçador que era, já sabia que onça quando tem com fome,
tenta comer tudo que estiver na sua frente. Dona Benvinda apenas rezava e rezava. Cruzava
dois paus na entrada da casa como sinal de invocação de suas deidades do candomblé. João
brabo, morria de medo daquelas estátuas de carranca que eles tinham em casa, assim como
também temia aquelas palavras que ela falava quando rezava. Mas ele estava muito do manso,
não tinha nada de brabo quando a história era onça. Nêgo Germano beijava o patuá toda hora.
Pois a situação já era desesperadora, não tinha mais lenha nem água dentro da casa. A sede e a
fome se juntaram ao medo e o trio dominava a situação.
- Tem que tê um jeito! Tá danado não! - Pensou Nêgo Germano.
Mesmo meio entrevado e desajeitado, conseguiu subir no teto por dentro da casa e
abriu uma brecha no meio daquelas pesadas telhas e ficou ali entrincheirado observando se
aparecia alguma das onças. Como nada avistou, ele resolveu tomar coragem ir pegar água na
cisterna, que ficava lá no baixio do Filipe e não era muito perto dali. Mandou João brabo catar
lenha seca, que também já não se achava tão pertinho daquele rancho.
- Ô, seu Géimano, num faciço cumigo não, eu tô fraco, caíno das perna, sem fôiça! -
Argumentou João Brabo, mas Benvinda alertou:
- É, meu fíi, uma coisa é tá fraco por tá sem cumê, e ôta é morrê de fome teno o que
cumê! Vá lá buscá a lenha, vá, qu'eu faço uma cabeça de galo pra você.
João Brabo viu, portanto, que não tinha outra saída a não ser correr o risco de ser
passado pra dentro pelas onças, ou seria comido pela fome.
Assim, com muito cuidado, Nêgo Germano pegou o bacamarte, o atravessou nas
costas, pendurou o bisaco no ombro, botou a peixeira na cintura, calçou as pracatas de
currulepo e tomou o caminho da cisterna. Olhava para frente, para trás e pros lados. Na outra
ponta, João brabo também pegava sua lenha com os mesmos cuidados.

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Quando Nêgo Germano se aproximava da cisterna, percebeu algo estranho por perto.
Olhou para trás e viu que as duas onças lhe seguiam, pois com certeza também estavam com
sede e com fome e estavam sentindo o cheiro da água e da comida, (que era ele).
O lugar ali era pelado de qualquer vegetação, pois já tinha sido roça de plantação.
Quando viu as bichas, Nêgo Germano, amolengou – se e disparou numa gritaria e correria que
só vendo. Passou pela cisterna igual a uma bala!
- E agora, eu vô subí im quê, hein, meu Deus? – Nessa hora, o cabra lembra de Deus.
Enquanto ainda corria, olhou por cima do ombro e viu que as onças vinham a mil, mas
calculou que ainda dava tempo de dar meia volta e chegar na cisterna para pular dentro antes
que elas chegassem. Agarrou - se num mourão sem arame e fez um gancho com a mão,
catapultando o corpo no caminho de volta. No entanto, ao chegar na boca da cisterna as onças
também chegaram ao mesmo tempo, sendo que uma delas saltou pra agarrar Germano no
exato momento em que este pulava dentro do cacimbão e os dois desceram se relando buraco
abaixo. Foram no fundo do poço e a o vir à tona, cada qual procurou salvar a sua pele.
A onça, porém, tinha uma vantagem em relação a Nêgo Germano, ali ela tinha comida
e água, e seu adversário só tinha água. Mas não estava disposto a se deixar comer tão
facilmente. Cada um permanecia de um lado do poço.
João brabo, quando ouviu a gritaria de Germano, subiu num pé de angico, e ficou nas
pontas das galhas mais altas, não quis nem saber de se relar todo ao subir. Enquanto isso,
Nêgo Germano gritava, pensando ser ouvido por alguém que por acaso passasse por ali. A
onça, por sua vez se agitava e turrava, como se fosse uma ordem que mandava alguém calar a
boca. Quando ela olhava para cara dele, ele virava a cara, pois não aguentava fitar aquela
coisa tão feia. Mas virar as costas totalmente, nem pensar.
Para não ficar encarando aquela quimera, ele mergulhava, mas não aguentava muito
tempo. Quando vinha à tona, a onça se espantava, e assim passou um bom tempo.
Inácio Ganga, que há dias estava caçando lá pras bandas do serrote Branco, foi pegar
água na lagoa do Loreto, mas ao chegar lá viu que esta já havia secado a ponto de trincar o
porão.
- E agora? - Pensou ele - É o jeito buscá água lá no cacimbão do Filipe, se não eu e
Bóxta morre de sede!.
Assim ele se encaminhou para lá. Antes passou na casa do seu pai que morava ali por
perto pra ver se ainda tinha café, e só depois tomou o rumo do cacimbão. Mesmo estando
muito longe o cachorro sentiu o cheiro da água de poço e seguiu na frente. E ao se aproximar
da cisterna, topou de cara com a onça que tinha ficado na beira da cacimba, só à espreita. Esta
não contou conversa quando viu e reconheceu que cachorro era aquele. Fugiu pela capoeira e
pegou o rumo da casa de Nêgo Germano, pois por ali não tinha pau pra ela subir e se proteger
do cachorro mais temido do sertão.
Bosta ganiu, ganiu, ganiu e latiu longe, muito longe, e acoou, acoou. Inácio Ganga já
conhecia pelo latido que caça era aquela. A onça já estava em cima do pau e o cachorro
demonstrava certo medo no seu latido. Ele correu até lá, correu, correu, correu com a
espingarda lazarina em punho, e já em ponto de disparar, logo que visse que bicho que estava
sendo acoado.
Quando se aproximou do lugar que o cachorro acoava, ele viu dois vultos trepados
num pé de angico muito alto, sendo o maior em um galho e o menor em um outro galho mais
afastado.
Observando com cuidado, ele pôde distinguir uma onça num galho, e logo o medo se
apoderou dele, a o ponto de enxergar um macaco no outro galho. Como couro de onça

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naquele tempo valia ouro e de macaco, nem tanto, e como Inácio Ganga vivia de caçadas,
mesmo tremendo de medo, fez pontaria só na onça e disparou a lazarina que estava carregada
com chumbo grosso. O tiro foi certeiro e a onça despencou de lá de cima se enganchando nos
galhos. E enquanto ela fazia sua descida para a morte, Inácio Ganga fazia sua subida num
outro pé de angico que tinha ali perto, e quando ela chegou lá embaixo, ele já tinha chegado lá
encima, nas pontas das galhas do pé de pau, mas Bosta já estava agarrado no gogó dela, pois
não era cachorro que deixava onça comer Ninguém. Mordeu até para se proteger, no caso de
ela ainda estar viva.
Quando viu que a onça já estava morta, Inácio desceu de lá ainda tremendo, carregou a
lazarina e resolveu matar também o macaco para fazer dele comida pro cachorro, mas quando
estava com ele na mira, descobriu que era uma pessoa, ouviu o grito de pavor:
- Inaço, num mat'eu não! É eu, João Brabo!
- Oxi, desce daí, Zé!
- Tá bom, pére. Mais vire essa bixiga pra lá!
João Brabo vem descendo da árvore com muito cuidado. Tinha seus braços e pernas
tremendo e o rosto muito pálido. Quando desce e dá graças por estar no chão, vivo, Inácio
percebe:
- Oxi, e melasse a carça de merda, foi?
- Homi, eu tô sem obrá faiz é dia. No medo da onça, escapuliu. Nunca se obrô não,
foi?
- Eu mêrmo não! Eu sou homi, rapaiz!
- Sei... Umas cunvéssa sua qu'êu sube lá de São Palo dizia ôta coisa...
- Homi, ói. Já sarvei sua vida, vá simbora, vá. Tá me deveno uma galinha. E vô atráis
da onça, que é negóço que dá dinhêro!
E a onça era valente. Inácio Ganga tinha já enfrentado ela anteriormente. A onça que
caiu, Bosta estava de dente enfiado no pescoço dela. Por causa de tanta valentia, João Brabo
estava bem mansinho, morrendo de fome, morrendo de sede, e morrendo de medo, tinha
perdido a fala, todo obrado e ficou parado, encolhido, sem poder acreditar no que tinha visto
durante aqueles dias terríveis.
Inácio Ganga mandou que ele se aguentasse por ali só enquanto iria à cacimba buscar
água, pois ele próprio já estava para morrer de sede também. Pegou a lazarina e desceu no
rumo da cisterna. Ao chegar lá não contou conversa, soltou a corda com a lata na ponta, e essa
desceu os dez metros de profundidade rumo à água, mas antes que a lata chegasse na água, ele
ouviu um grito que não pode atinar de onde vinha. A lata tinha caído bem na cabeça de Nêgo
Germano, e de quina. Subiu logo um galo na cabeça do pobre!
Sem poder imaginar que tinha alguém dentro da cisterna, ele ficou confuso, mas como
a gritaria era ensurdecedora, foi aí que ele percebeu que aquilo vinha lá do fundo do poço.
- Quem taí?
- É eu, tir'eu daqui que depois eu conto a hixtória!
- Então você se segure na ponta da corda e eu le puxo pelo saríi.
- É, mais tem que sê logo! - veio a resposta lá debaixo.
- Vamo, vaamo... Vaaamo!
Só assim Inácio Ganga descobriu que era Nêgo Germano quem estava subindo
pendurado na ponta daquela corda.
- Inácio, me dê um taco de rapadura cum farinha aí ligêro qu'êu tô morreno de fome!
- Tá aqui, pegue.

219
- Brigado. Eu sabia que tem sempre essas coisa aí no teu bisaco. Rapáiz, tem uma fia
duma égua duma onça lá imbaxo! Sei nem quanto tempo eu fiquei lá.
Como a onça estava bem guardada lá no fundo do cacimbão, eles resolveram ir logo
acudir Benvinda e João brabo que estavam na lástima da fome e da sede.
Nêgo Germano era mesmo um negão de aço. Escapou de mais uma apenas com um
galo na testa. Assim que chegou no rancho, deu água a Benvinda e foi ajudar a Inácio trazer
João brabo do pé de pau pra casa, pois ele estava muito fraco e sem força de caminhar.
Mais tarde, depois do café, todos estavam cheios de coragem. Matar a onça que estava
dentro da cisterna foi moleza para Inácio Ganga, pois Germano não queria mais voltar lá de
jeito nenhum.
Para não furar o couro dela com chumbo nem sujar a água com sangue, Inácio Ganga
laçou-a pelo pescoço, pois a cabeça dela era o que estava fora d'água. Enquanto ele a içava
pelo sarilho, esta ia morrendo enforcada, e quando saiu do poço já estava morta.
Tirar os couros nem se fala, foi outra moleza. Agora bastava vendê - los bem vendidos
e apurar um bom trocado.
Mas logo houve um desentendimento entre Nêgo Germano e Inácio Ganga. Nêgo
Germano queria metade do dinheiro que fosse apurado na venda dos couros, mas Inácio
Ganga queria ficar com tudo, pois alegava ter feito todo o serviço e ter salvo a vida de todo
mundo.
João brabo ainda estava em estado de choque, e dizia que ficava engasturado quando
eles falavam em onça perto dele.
Benvinda entrou pelo meio da conversa, mas Inácio Ganga não queria acordo.
- Minha sinhóra, se num fosse eu, seu marido tinha murrido afogado no cacimbão ou
tinha sido cumido vivo pela onça, viu?
- É, mais se num fosse eu, num ia tê côro ninhum de onça! - Rebateu Nêgo Germano
de outro lado. - E tem mais, as onça tinha currido atrais d'eu, só que eu tinha pirdido as
pracata, a inspingarda e o bisaco com as coisa dento, ô seja, o chumbêro, o póvarim, o pacote
de bucha, uma caxa de ispoleta e principalmente meu currimbóque, que eu num vendia por
dinhêro ninhum, pois é uma coisa qu'êu uso pa muita coisa!
- Homi, vai cagá, nêgo mole! Apois eu num le ajudo máir não!
- Me chamô de nego mole, foi?
- Chamei sim! Achô ruim? Vá sozim percurá suas pracata, a ispingarda, ispoleta,
chumbo, póiva, bucha, bisaco e o djabo a quato lá no fundo do cacimbão! Quem matou hoje
duas onça foi eu e num tô nem ligano po que dé e vinhé!
- Peraí que eu vô dá o cumê desse bicho véi fêi é agora! - Berrou Benvinda entrando
na casa e trazendo de volta uma foice na mão. valente toda, queria partir pra cima de Inacio.
- Ripita o que você falô do meu marido, ripita, caba safado!
Nêgo Germano acalmou a mulher, tomando para si o desaforo:
- Ói, Inaço, você num me cunhece pa dizê s'eu sô mole ô não. Eu tinha currido porque
era duas onça, né? Mais se fosse uma só eu tinha pegado ela de unha!
- Sim, mais lá dento da cacimba só tinha uma cum você - Disse Inácio.
- Tinha, mais se eu tivesse pelo menos com um quicé na mão eu tinha abrecado ela
pelo gogó assim, ó. - Gesticulando como faria. - E saiba você, Inaço, qu'eu sô primo ligít’mo
de Lampião, e de macho eu num tem medo não. Pode vim se quisé, venha!
- E eu sô subrinha de Maria Bunita, e aí? - Emendou Benvinda. - Quem bulí cum eu ô
cum meu marido eu chamo – le na foice!
Perante esses novos argumentos, Inácio Ganga ficou bem mais manso:

220
- Bora fazê o siguinte. Eu sei a quem vendê esses côro a um preço bom lá im Patos.
Dêxe eu vendê aí nóis racha aqui, tá certo assim?
Como a intenção de Germano e Benvinda era unicamente esta, o acordo foi firmado.
Inácio ao ser visto chegando em casa com dois couros de onça nas costas, ao explicar como
foi a matança, foi logo agraciado como um exímio caçador, assim como Nêgo Germano
também foi. A fama de matadores de onça dos dois se espalhou do sertão ao cariri velho e foi
até a o cariri novo, subiu pro cariri de cima e depois desceu até a o cariri de baixo.
No entanto, quando algum fazendeiro procurava Nêgo Germano para matar alguma
onça que estivesse comendo seus bezerros, ele dizia que estava muito ocupado e não poderia
ir, e não adiantava oferecer dinheiro, porque ele não ia mesmo por dinheiro nenhum, e logo
sugeria que solicitasse esses serviços a Inácio Ganga.
Outro que pegou um pouco de fama foi João Brabo, mas este agora vivia escondido e
ninguém dava conta de seu paradeiro. Já Inácio Ganga ninguém sabia por onde ele andava,
pois tinha vendido os dois couros por um dinheirão. O problema é que ele meteu a grana
dentro da algibeira e ninguém via mais ele caçando nem se quer uma ticaca ou tejo lá para as
bandas daqueles cafundós de Judas.
Quando Nêgo Germano soube que Inácio Ganga andava rasgando dinheiro a torto e a
direito e não tinha dado para ele nenhuma nica, ficou furioso. Mandou alguém que sabia
entender porque a soma de dois mais dois não dá cinco fazer um cálculo, para saber quantas
cabras boas de leite dava para se comprar com aquele dinheirão das onças, que o povo tanto
falava.
- Teofim, faça essa conta pra mim, pu caridade!
E ele calculou que esse dinheiro dava para comprar, escrevendo a seguinte lista de
compras possíveis, itens de primeira necessidade:
• Num sei quantos coxtal de rapadura do cariri de baxo
• Num sei quantas bruaca de farinha do cariri de cima;
• Num sei quantas cuia de Feijão gurutuba sem gurgúi;
• Num sei quantos fardo de jabá graúdo do sertão;
• Num sei quantos caçuá chêi de espiga de míi seco;
• Num sei quantos jegue arriado cum cangaia e tudo;
• Num sei quantas cabra Canindé das que é boa qué daná
de leite;
• Cinco bode Mererê,
Ele ainda conclui que sobrava num sei quanto de dinheiro. Para deixar o pobre do
Nêgo Germano ainda mais confuso, ainda falou assim:
- Caba véi, vô le dizê uma coisa, eu num sei quem foi que disse que num sei aonde,
um côro de onça pintada tá seno vendido num sei por quanto.
- É mêrmo, cumpade? Vixi Maria!
- Pois é, caba. Pa tu vê né?
Nêgo Germano especulava aqui, especulava ali, especulava acolá, até que teve uma
vaga noticia de que Inácio Ganga estava lá pelas bandas do outro lado da Serra dos Doidos,
em Malta.
Chamou João brabo, mandou que ele ficasse ali na propriedade dele tirando resina de
angico para dar como ração para as cachorras comerem enquanto ele fazia uma viagem.
Sem dar muita satisfação à Benvinda aonde iriam, botou a cangalha no jegue, montou
no cabeçote, botou Benvinda atravessada na garupa e tocou pra lá. Atravessou a serra para o
outro lado e revirou tudo ali de pernas para cima e para baixo, mas nada de Inácio Ganga.

221
Entretanto, nosso fugitivo sabia que era melhor dormir num colchão velho de palha,
cheio de percevejos famintos, e ainda ter a cueca cheia de pulgas de cachorro do que dever
um tostão ao casal Germano e Benvinda.
O casal andou pela caiçara, passou por Cocorobó, ficaram muitos dias hospedados em
São José do Pau Furado, e de lá voltaram para o Sítio Loreto. Lá eles tiveram noticias que
Inácio Ganga tinha gastado todo dinheiro no jogo e nas farras com Chiquita Bacana lá da
Maquinita e se acabado na cachaça. Só não casou o cachorro Bosta numa aposta de jogo,
porque Zé Pajaraca, o legítimo dono ja o havia advertido que não fizesse isso. Como estava
sem dinheiro, tinha voltado para os tabuleiros lá da "Véa Ana", onde continuava caçando.
Para não ser encontrado ele tinha que fazer tocaia la no fim da represa do açude dos
Cegos, onde ele ia buscar água nas altas horas da noite.
Nêgo Germano prometia vinganças terríveis, dizendo que ia mandar as caiporas botar
ele pra correr do mato, e passadas algumas semanas do sumiço de Inácio e do dinheiro, o
ilustre casal vai retomando a vida na casinha deles, afinal, não havia muito a ser feito.
E passa o tempo, sendo o jeito o pobre do Nêgo Germano esquecer um pouco aquela
rasteira de Inácio Ganga. Certo dia, sentados em frente de casa, ele observa uma visita se
aproximando:
- Quem é que vem ali, Benvina?
- Parece que é cumpade Zé Pajaraca e cumade Bigaí do Buchão!
- Oxi, mande eles entra, muié.
- Bom dia, meu cumpade Géimano mais minha boa cumade Benvinda, cuma vai
vomicês?
- Bom dia, cumpade Pajara mais cumade Bigaí, nois tamo máir mió.
- Me falaro que o sinhô passô um aperrêi danado la dento do cacimbão, num foi?
- Foi cumpade! Eu tava muito aperriado cariceno de gente pá me tirá de lá...
- Pois é cumpade, onça é bicho artêro...
- É cumpade, eu já tava pa indoidá, eu ficava ingaxturado quando oiava pa onça,
aqueles dentão grandão, cada uinhona gradona medonha, arre Maria! Tinha hora que eu
pensava que não ia vê a quarerma chegá máir não, cumpade. Ruim é qu'eu num tinha nem um
trinchete na mão cumpade, sinão eu tinha sangrado ela ali mêrmo. E o pió num foi nada, foi
quando ela caiu por riba deu, nói fumo pará lá no fundo do poço, cumpade, e ela abrecada
cum eu, e só me sortô proque ja tava bebenno água pela venta, se não seu cumpade aqui tinha
virado bóxta de onça!
- Arre Maria cumpade, qui aperrêi esse que o sinhô passô, nam!
- Pois é cumpade. Inda hoje eu tô todo chei de rasgo nos côro. Num góxto nem de falá
im côro. sabia que teu irmão Ináço Ganga gaxtô todo meu dinheiro dos côro das bicha?
- Foi mêrmo, cumpade? Num acridito não...
- Pôi foi, cumpade.
- Era um onço ô uma onça?
- Era onço macho cumpade. E quando ele rornava, me dava uma gaxtura de tripa,
cumpade. Quando ela arrudiava o poço eu disarrudiava po ôto lado cumpade, e a pió hora era
quando tava cum os zói fuscano cumpade, ele ficava com aquela mixturação de turrado cum
miado de gatão grandão. Diz os sabido cumpade, que esses bicho brabo só anda de parêa,
sabia?
- Cuma ansim cumpade? – Pergunta Pajaraca, curioso.

222
- É assim cumpade, a onça anda junta com o onço dela, o jacaré anda junto c’a jacarôa
dele, a cobra anda junta c’o côbro dela, o ganso c’a gansa dele, o tubarão anda junto com a
tubarona dele, e assim pru diante.
- Intindi cumpade Géimano, vomicê é muito sabido mêrmo.
- Pois é cumpade, eu só num aprindi leitura pru causo do djabo da suletração, mais eu
já curei até soluço em cavalo do jeito que us dotô veterinaro lá de Patos faiz, mais agora tá
tudo dimudado cumpade.
- Vomecê rezava lá no poço, cumpade?
- Cuma cumpade? Pois se eu não pudia fazer nem o pêdo siná? Eu falava os dizê da
reza, mais num pudia espaiá as crúiz na cara, pruquê ar mão tava tudo ucupada sigurano no
barranco pa num afundá, e de ôi na onça, pois eu num pudia dimudá us zói dela...
- Pois é, cumpade... a cunvéssa tá boa, mais nóis vamo ino pra casa que ur minino tão
só.
- É cedo, cumpade. Bora pegá a papa?
- É cedo nada, cumpade, brigado. ‘Té mais.
- Até, cumpade.
- Eita Pajaraca véi danado...
O tempo ia passando e Inácio Ganga sempre sumido. Nêgo Germano não caçava mais
como medo de encontrar onça lá pelos matos. Inácio Ganga era quem achava bom, pois não
tinha concorrente.
Certa feita ele tinha ido às escondidas vender uns couros de bichos lá em Patos, e lá
ele foi informado que o velho Zé Pio, estava à procura dele para comprar-lhe um couro de
lobisomem para fazer dele uma bata de catimbozeiro, pois tinha sido informado que naquela
redondeza só tinha um cachorro que pegava lobisomem, e este era o tal Bosta de Pajaraca,
treinado por Inácio Ganga.
Quando Inácio Ganga soube que a sua fama de caçador corajoso e matador de onça já
tinha se espalhado até por outros estados, ficou muito orgulhoso, a ponto de mandar recados
atrevidos pra Nêgo Germano e Dona Benvina, nos quais ele dizia que não tinha medo dos
feitiços que eles faziam. Portanto quando lhe falaram que o velho Zé Pio estava à sua procura
para comprar - lhe um couro de lobisomem, viu logo que ia levantar um dinheirão para fazer
outra farra daquela que ele tinha feito junto com Chiquita Bacana lá na Maquinita.
Depois de tantos infortúnios, Nêgo Germano quase não saia mais de casa, e o povão
passou a contratar os serviços do velho Zé Pio. Este, logo comprou um jumento para fazer
suas muitas viagens montado nele, pois todos os dias receBigaí novos chamados, ora para
botar cobra para fora de roça, outras vezes era rezar para desviar as queimadas que
ameaçavam passar para a roça do vizinho, outras vezes era pra chamar a chuva que não queria
vir, outras tantas vezes era para rezar para mandar os carrapichos pra roça do vizinho, outras
vezes era para mandar um hóspede indesejado ir embora, o por aí vai.
Ele era matreiro e dos bons, já sabia de muitas maracutaias, aproveitou essas
oportunidades para cobrar mais caro da clientela. Logo as pessoas comentavam que o homem
mais sabido, e que ganhava mais dinheiro naquela redondeza era o velho Z´r Pio. E isso
deixava Nêgo Germano se comendo de inveja.
Como um bom macumbeiro engana até a si mesmo, o velho Zé Pio vivia com a
agenda lotada de tanta consulta marcada. E como dinheiro também sobe à cabeça de gente
besta, o velho Zé Pio estava decidido a fazer uma batina de couro de lobisomem, para usá-la
nos seus rituais de feitiçaria. Isto porque o meste Chico Belzebu Barba de Bode tinha dito que
os poderes aumentavam quando ele vestisse a tal roupa.

223
Inácio Ganga sabendo disso, aproveitou para cobrar um preço bem alto e pediu logo
metade adiantada. O velho Zé Pio argumentou que tinha aprendido umas maracutaias com
Chico Belzebu Barba de Bode, marido de Jezebel Barba de Cabra, mas esses tinham lhe
comido um dinheirão, para lhe ensinar umas mandingas, portanto estava com pouco dinheiro.
Mas Inácio Ganga não cedeu nem se quer por um tostão, argumentando que tinha de pagar
dois companheiros para lhe ajudar a laçar o lobisomem pela gola, e não poderia deixar Bosta
morder, para não rasgar o couro. E ainda tinha que ir lá longe, na casa do caçador que sabia
onde moravam os lobisomens, portanto o preço que estava cobrando não era axagerado.
Como estava precisando do tal couro, o velho Chico Pio não tinha outra saída a não
ser ceder, pois só o cachorro Bosta era capaz de capturar um lobisomem legítimo. Portanto,
mandou que Inácio voltasse na semana seguinte que o dinheiro estaria pronto. E Inácio dali
foi direto lá pra Maquinita, onde Chiquita Bacana morava.
Como já era conhecido ali, as portas eram sempre abertas para ele jogar, comer e beber
até se empanturrar, pois ele só aparecia por ali quando estava estribado.
No dia combinado, ele passou na casa do velho Zé Pio, pegou o dinheiro, pagou as
contas lá na Maquinita. Depois comprou um jumento encangalhado, e foi procurar uma
maneira de ir enrolando o velho Zé Pio na conversa até ele desistir do couro do Lobisomem, o
qual na verdade, ele não fazia a menor ideia de onde encontrar.
- Se deu pra eu dispixtá Nêgo Géimano, que é muito máir nojento, dá um cansaço
nesse véi vai sê moleza. Quem sabe ele até num morre de véi daqui pra lá? - Pensou ele.
De fato, o tempo foi passando. Certo dia Nêgo Germano recebeu uma visita de quem
ele nem imaginava. Manoel Gaúcho, um amigo seu que tinha vindo lá dos Sul do país para
passar uma temporada com familiares do lado de cá. Há muitos anos ele não o via. Foi uma
alegria e tanto. Ele imaginava que esse seu amigo tinha ficado de vez no seu velho Rio
Grande. E a conversa começou e quase não termina mais.
- Cuma vai vosmicê, cumpade Mané?
- Eu tô bom, e o sinhô mais a cumadrê Benvina, cuma vai?
- Nóis tamo máir miózim, cumpade Mané. Mais e cadê cumpade Migué?
- Cumpadrê Miguéle anda muito ocupado, todo dia ele tem que bôtá as vacas no
currale e...
- E o que é currale, cumpade? - Indaga Benvinda, sem entender direito aquele sotaque
arrastado.
- É o lugare de prendere as vacas, cumadrê.
- Ah, Benvina. O que ele chama de currale é o currá. Ele cria poico também cumpade?
- Cria, cumpadrê, cria.
- Ele cria os poico é sorto ou é cêicado?
- É cercado cumpadrê...
- E ele ta morano adonde cumpade?
- É bem no arraiale, cumpadrê.
- Ah, é no arraiá que ele mora, cumpade Mané?
- Cumpadrê Géimano, o sinhô me tá me chamando de Mané, mas meu nome é
Manéle...
- Discuipe, cumpade eu só sei chamá assim...
- Tem nada não, cumpadrê.
Benvina contou ao compadre Gaúcho sobre o incidente com o bacamarte. Falou
também das onças que tinham jogado Nêgo Germano dentro da cisterna, falou que Inácio

224
Ganga, que ele também conhecia, tinha dado uma rasteira neles no negocio da venda dos
couros daquelas onças, assim como Nêgo Germano emendou:
- Depôij dessa, cumpade, meu negóço é só armá quixó, tirá mé de bodôco e tirá arapuá
pra vendê o mé e a cêra.
- Oxente, e as suas caçada, cumpadrê?
- Ah, cumpade. Aqui pas banda dessa redondeza num tem máir nada de caça não.
Ináço Ganga e o tá do cachorro Bóxta já acabaro cum tudo que era bicho por aqui, cumpade.
- E as pescaria, cumpadrê?
- Ixi, cumpade. puraqui num tem mais nem piaba e nem suvela pra gente butá na
imbiricica. E a maia do landuá já acabôsse fáix tempo. E pu falá im tempo, bom naquelas era
de nóir moço era quando a gente jogava um anzó dento do açude e no puxavante vinha trêis,
quato traira incangada duma vêiz só, néra, cumpade?
- E o que é anzó, cumpade? Ah, já sei. É o anzole de pegáre pêxe, lembrei. Era mesmo
cumpadrê. Tempo bom. Hoje tem mais disso não...
- Isso mesmo cumpade.
- Cumpadrê, o sinhôr ainda arma quixó?
- Do mêrmo jeito, cumpade. Hoje mêrmo eu aimei um mais sua cumade pa pegá o
timbú que tá cumeno as galinha daqui.
- E o sinhô ainda come timbú?
- Como máir não, cumpade.
- E purquê?
- Má órash tá. Pro causo qui Inaço Ganga e o cachorro Javali ta acabano cum tudo qui
é bicho que tem pur’aqui.
- Má rapaiz... E essas suas cachorra? Ainda pega bicho?
- Quase mair não cumpade, num tem mais bicho aqui nesses cafundó de Juda não,
cumpade. Essas duas póbe véa num qué pegá máir nem pixilinga!
Mais alguns minutos de boa prosa no pequeno alpendre do casebre, eis que eles
avistam uma silhueta humana se aproximando pelo alto da estrada que dá acesso à casa.
- Quem é aquele cabra qui vem vindo ali, cumpadrê?
- Valêi-me, é o véi Zé Píi, cumpade!
- E ele perdeu o quê aqui, cumpadrê?
- Rapaiz, eu num sei não, cumpade, eu num me dou bem cum ele não, faiz muitos ano,
já.
- E é? Pro causo de que cumpadrê?
- Pro causa dár macumba que ele fêiz pa matá eu e sua cumada Benvina.
- Vixi, cuma ansim, cumpadrê? – Coçando a cabeça por cima do chapéu.
- Ele já vem no pé do terrêro... Depois eu le conto.
- Boa tarde, Géimano.
- Boa, seu Zé Píi. Cuma vai o sinhô?
- Eu, por exemplo, tô máir mió. E o sinhô, cuma tem passado?
- Eu tambem, tô máir miózim, veno sua pessoa...
- Seu Geimano, por exemplo, o sinhô tem vixto Inaço Ganga pur’aqui?
- Nãm, seu Zé. Ele anda sumido lá pras banda dur mato lá do Véa Ana, é o qu’eu sei.
- Por exemplo, Isso fica longe daqui?
- Fica. É pra lá da lagoa do Loreto, bem muito longe mêrmo.
- Por exemplo, pra que lado fica isso? Véa Ana é um sitio, né?
- É, e fica no rumo aí do Sol da tarde.

225
Benvinda ficou calada lá num canto, só brechando. Nêgo Germano já estava
desconfiado por causa da presença inesperada do seu temível inimigo. Decidiu mudar de
assunto, e para intimidar o velho Zé Pio, passou a contar casos de onças que ele tinha matado
durante suas últimas caçadas. Na narrativa, logo as onças tomaram formas grandiosas na
imaginação dos que ali estavam presentes...
- Pense numa bichona do dentão grandão, das uinhona cumprida, do rabão grossão
assim ói, e tinha cada mãozona medonha...
O velho Zé Pio perguntou:
- Sim, mas e aquela cunvessa da onça que tinha caído dentro da cacimba?
- Nam, num caiu onça ninhuma im cacimba não, issaí foi hixtória de Inaço pa se passá
por valente - Rebateu Nêgo Germano, desconfiado.
- E como ela foi, por exemplo, pará lá no fundo do poço? Indagou o velho Zé Pio.
- Ah, foi uma luta terríve. - Respondeu Nêgo Germano. - Eu fui só pegá água na
cixterna, e quando cheguei lá topei de cara cum duas onça, que já fôro pulano pra cima de
mim pra me agarrá na cabeça. Derrubei uma na base duma raxtêra, dei um murro no pau da
venta da ôta, que foi a que caiu lá no fundo da... da cacimba.
- E... Por exemplo, com’é que foi que o sinhô também tava dentro da cisterna?
- Com’é que foi? - Nêgo Germano dá uma breve pausa, antes de prosseguir. - Ah,
primêro eu curri atráis da que tava fora, e matei ela de murro só, aí eu vortei pa tráis e disci na
cisterna e fui acertá as conta cum a ôta lá embaxo. Minino, eu tive raiva, visse?
- E comé que, por exemplo, Ináço Ganga andô falano por aí que ele é que tinha sido o
matadô das onça?
- É mintira daquele caba safado, seu Zé. E ôta coisa, ele não paga a ninguém, eu
mandei ele vendê os côro e ele gaxtô meu dinhêro todim cum cachaça e rapariga, qu'eu tô
sabeno. Tô bem bonzim cum ele...
- Ih, rapaiz, intão por exemplo, ele num vai me intregá minha incumenda que eu pidi
não - Lastimou – se o velho Zé Pio.
- Que incumenda é essa? Perguntou Germano.
- Homi, por exemplo, eu paguei pra ele pegá um lubisome e tirá o côro pra eu fazê
uma bata de catimbózêro pra mim.
Nego Germano, que também a tempos procurava um couro destes, já ficou logo de
orelha em pé com a possibilidade de dar o troco em Zé Pio.
- Caba véi, o último lubisome que apareceu aqui no Loreto foi o que eu peguei e fáiz
tempo que só. Purtanto, só eu é que tem o côro desse bicharôco.
De fato, na hora que ele falou assim o velho Zé Pio ficou tenso.
- E pur exemplo, o sinhô num qué me vendê ele não?
- De jeito ninhum - respondeu rispidamente Nêgo Germano.
- Oxente, e por exemplo, porquê?
- Se eu le vendê eu perdo ur meus podê! - Alegou Nêgo Germano.
- E agora? - pensou o velho Zé Pio - Eu vou fazê o que? Nêgo Géimano cum esse côro
de lubisome tem mais pudê do que eu, como intão eu vô recebê meu dinhêro que Ináço Ganga
surrupiô de mim? Sei que Ináço Ganga certamente não tinha medo de catimbozeiro, já que
também deixado Nêgo Géimano de tôca e chupano o dedo. Mas vai tê uma saída. Eu quero
recebê o meu, e Géimano qué recebê o dele, e vai sê assim. Eu tô cum um plano aqui,
Géimano. Eu vou atucaiá Ináço lá na rua e quando ele for vendê côro de bicho pur lá eu pego
ele, já o sinhô procura ele só lá pelur mato, tá certo?
- Tá inhordi intão.

226
- Apois inté mais.
- Inté, seu Zé...
Zé Pio Chico Pio se encobre por trás da caatinga ao ir embora, Nêgo Germano contra-
ataca:
- Vai timbora, véi sem - vergôim...
Benvinda, que tinha brechado a prosa o tempo todo já tinha pensado com seus botões e
falou assim pro marido:
- Homi, nóis vai procurá Ináço, e se ele tivé pegado o lubisome, nóis pega o côro como
pagamento do dinhêro que ele deve a nóis e o véi Zé Píi que se lasque pra lá.
- É mêrmo isso qu’eu vô fazê!
No entanto, Inácio Ganga já não mais vendia os couros de suas caças em Patos, como
antes. Mal vinha em casa e sempre cortava caminho para não ser visto. Final da história.
Passou mais um tempo, Zé Pio começou a caducar, Nêgo Germano foi recuperando a
freguesia e deixou essa conversa pra lá. Eita Inácio véi de sorte!

CAPÍTULO FINAL
E Firmina vai embora

Cinco meses se passaram desde o regresso de Firmina, que pelas contas da mãe, já
deveria estar com seus sete meses de gravidez. As coisas iam sempre tomando o rumo
adequado na medida do possível, mas a seca já tinha dado as caras e estava castigando as
plantações e prejudicando bastante aos serviços de Zé Pajaraca nas redondezas, e em
consequência disto, mais uma vez não estava conseguindo saldar seus débitos junto ao banco.
Entretanto, algo pior vinha tirando o sono da jovem Firmina assim como o de sua mãe,
Abigail.
O sítio Lameirão, aquele lá onde se localiza o açude velho, era em sua grande parte
propriedade de Zé Alves e este, cedeu uma pequena parcela do seu quinhão ao seu morador de
maior confiança, Zé Pajaraca. Com isto, outros moradores também pleitearam o direito a uma
parte dessas terras alegando usucapião e queriam exatamente as terras do açude velho e
adjacências, e para concretizar seus intentos, teriam de colocar Zé Pajaraca em outro lugar,
pois alegavam que este, assim que passou a mão na escritura, tratou de se endividar até o
pescoço com empréstimos e gastos desnecessários.
De acordo com a conveniência destes pleiteantes, foi escolhido um lugar sem água,
sem estrutura ou qualquer beneficio. Nisso, forçaram Zé Pajaraca junto com Abigail e para
conhecerem sua nova propriedade, no comecinho do sítio Arapuá, que não tinha nada de
atrativo. Apenas tabuleiro, pedregulho e capoeira.
Pajaraca se viu obrigado a aceitar devolver o lugar onde ele vinha criando sua família
em troca da compra da dívida junto ao banco por parte dos outros moradores em uma
manobra fiscal corrupta. Esta pequena propriedade foi novamente comprada por Zé Alves,
que ficou muito chateado com esse inesperado manifesto de ingratidão e ganância por parte
de seus outros moradores, os quais, com causa perdida, foram mandados embora do
Lameirão, coisa que levou certo tempo para se concretizar.
Zé Pajaraca só não queria confusão nem credores à sua porta confiscando seus poucos
pertences. No fim das contas, tudo isso se deu por que o mal cuja alcunha é ambição nunca
lhe atingira. Não viu maldade na permuta das terras, não se desagradou do lugar, muito menos

227
do negocio. Queria apenas o sossego de não ter cobradores em sua porta carregando seus
bodes.
Abigail, Expedito e Firmina, no entanto, não se agradaram nem um pouco. Foram
embora de lá bastante pesarosos, pois eles sim viram que aquele negocio só beneficiava a
outra banda, pois não iriam mais ter a vazante do velho açude para plantio de arroz de muda,
nem batata doce, milho, melancia, jerimum e capim de muda. E pior, perderiam
principalmente o acesso à preciosa água fresquinha da revença do Açude Velho.
Na caminhada lenta e silenciosa, um filme passa no cabeça de Expedito, um pesaroso
tom de despedida. Toda a mudança foi feita em uma única viagem de carroça de burro. Um
adeus mudo a cada dádiva que aquele pequeno pedaço de chão lhe oferecia:
- Adeus goiabeiras, adeus carnaúbas, adeus, velho pé de côco, adeus marrecas. Vira
para o outro lado e adeus aos patos putriões, adeus galinhas d’água, adeus jaçanãs, adeus
carão cantador, adeus pés de pinha, adeus grande cajueiro onde o velho Quinca Capuxú fazia
telhas na sua sombra, onde também a cajaca de couro fazia seus ninhos cheios de espinhos.
Adeus batedor, adeus pé de açafrão do sangrador, adeus paturis, adeus baronesas e vitórias -
regias de flores perfumadas, adeus socó - boi, adeus socó - mirim, adeus meu amiguinho
martim - pescador que vive no galho do angico do sangrador. Adeus, pé de Jucá trançado,
adeus pé de oiticica lá da represa e finalmente, adeus, grandes traíras que Zé Pajaraca
chamava de "pimba doida"; adeus também preás e punarés lá da capoeira... Adeus... Adeus...
Apesar de já ter sofrido muito nessa vida, mais uma vez Abigail se viu em uma
situação difícil, pois tinha agora sua filha mais velha grávida sob seus cuidados e esta seria
mãe solteira. E não se tratava de uma gravidez comum, pois Firmina queixava – se de muitas
dores no pé da barriga e tinha muita dificuldade para se alimentar. Poderia se supôr que isto
fosse algo comum já que ela era muito nova, tinha só quinze anos mas mesmo outras mães
que vez ou outra apareciam para visitá – la percebiam que algo não estava certo, pois Firmina
sentia dores terríveis e que só Deus e ela saberiam descrever.
No entanto, diziam os não entendidos que aquilo passava após o parto e era melhor
mesmo acreditar nisso, pois José da Natividade Teófilo não tinha condições financeiras de
levá-la a um médico especialista, nem se quer tinha como pagar a consulta ou algo como um
eventual tratamento pré – natal como os que existem hoje de graça. Depois que foram para o
Arapuá, nem como chamar uma benzedeira eles tinham mais, pois tinham que dar qualquer
agrado a quem dá o recado e a benzedeira. Tudo ficou muito difícil.
Os dias passavam, mas as dores que Firmina sentia, não. E pior, elas aumentavam.
Assim, o tributo que ela estava pagando pelos seus poucos anos de vida era muito caros.
Contudo, somente a razão e compaixão sabem que preço cobrar de cada um. A alegria que
antes fazia morada em seu rostinho de menina foi embora e no seu lugar veio a tristeza.
Notava-se que um fantasma perverso e cruel rondava aquela casa.
Seus paninhos de bordados há tempos estavam abandonados no cesto, os paninhos de
prato pintados à mão também, pois aquela mãozinha hábil que manuseava as agulhas e pinceis
para cima e para baixo tinham perdido seu tato e estavam a tempos esquecidos dentro do
cestinho, além de todo seu interesse por bordados ter desaparecido.
Firmina durante o dia olhava com tristeza para seus irmãozinhos e para seus pais e
nada dizia. Será que ela sabia a gravidade de seu problema? Talvez sim, pois era ela que
sentia. Notava-se que ela não queria causar tumulto que chegasse a afetar aqueles que viviam
já com tanta dificuldade naquele casebre que tiveram que ficar. Via-se que ela olhava para
todos com os olhos tristes. Conclui - se então que a felicidade que antes habitava aquela

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família já tinha batido em retirada há muito tempo. Talvez tivesse ficado na casa que
moravam antes.
Quando alguém dava as costas, notava - se que ela estava em sempre imersa n’um
pranto silencioso, certamente se lamentando e já se preparando para a sua partida.
Firmina rezava o tempo todo. Tinha o tempo todo em mãos uma carta que ela
escreveu, mas não deixava ninguém abrir. “Na hora certa, vocês vão saber o que escrevi” -
dizia ela. Vez ou outra Abigail a via lendo e após terminar, isto sempre a confortava e
comovia. Firmina tinha aprendido a ler e escrever sozinha, e tinha uma linda caligrafia. Todos
naquela casa tinham muita vontade de saber o que ali estava escrito, mas Firmina dizia
sempre que só levassem essa carta para alguém ler se ela não pudesse impedir. Enquanto ela
impedisse, por favor, não insistissem em lê – la. Quando ela não pôde mais impedir, alguém
pegou o envelope, abriu e lá estava escrito apenas assim:
“Meus queridos irmãozinhos, painho e mainha e meu querido filho que trago no
ventre. Quero dizer que os amo muito, mas devo confortá – los. Saibam que minha hora está
chegando e eu tenho que ir, pois isto não sou eu quem decide, e sim Aquele que me criou. Ele
é quem está me dando forças para suportar tamanho sofrimento para eu não me desesperar
nem entrar em tentação de cometer uma loucura.
Quem determina esta hora é Aquele que está no céu e me chama para lá. Gostaria de
ficar para criar esta criança que trago no ventre e acompanhar a vida de todos vocês. Mas
devo entender que é Deus quem está me chamando, então certamente ele se encarregará
disto, de zelar pelo caminho dos que ficam aqui. Eu vou, mas pedirei a Deus, meu Pai para
guiá-los pelos tortuosos caminhos da vida. Deixo a recomendação de que tenham muito
cuidado, meus amados irmãos, meu pai e minha mãe, pois este mundo é cheio de armadilhas.
Meus maninhos, quando as coisas estiverem muito difíceis, não entrem em desespero para
não caírem na tentação da loucura. Lembrem que tudo passa, tudo é para um melhor.
Meu paizinho e minha mãezinha, peço perdão pelo desgosto que dei a vocês. Queria
ter tempo para reparar meu erro, mas não terei. Peço que não fiquem tristes por causa da
minha ausência. Saibam que estou indo para um lugar muito bom. Não levarei mágoas de
ninguém, e peço perdão àqueles que tenham se sentido ofendidos por mim de alguma forma.
Estou pronta para ir embora, levando comigo as saudades dos bons momentos que vivi com
todos vocês, as lembranças daqueles que eu sempre amei, mas não poderei testemunhar a
vitória de cada um deles, que certamente virá.
Antes de terem lido essa carta, dias antes, tudo já ia ficando cada vez mais difícil.
Certamente, aquele bom coração, de onde sempre emanou bons pensamentos dizia mais ou
menos assim naqueles momentos finais:
- “Minha amada família, é chegada a minha hora, mas estarei sempre com vocês”...
A desordem reinava naquela família antes tão feliz. Durante muito tempo ela não
dormiu nem se alimentou. Porém, ela não se lamentava, apesar do sofrimento.
No meio daquele terror doloroso a criança nasceu sob os cuidados de Mãe Rosa
mesmo, a qual, rezou na mãe e no bebê. Entretanto, a melhora esperada não veio. (Firmina
sabia que não viria). Pelo contrário, piorou mais e mais. A família conseguiu, com ajuda de
todos, procurar recursos médicos. Pajaraca vendeu a troco de nada suas poucas galinhas
poedeiras, a espingarda, o jumento, algumas ovelhas e cabras, todas foram vendidas às pressas
para levantar algum dinheiro para pagar ao menos uma consulta médica e ver se ele passava
algum remédio. Os vizinhos da propriedade, mesmo com suas dificuldades, também
contribuíram com pequenas quantias, de acordo com suas possibilidades.

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Levada até Patos, após ter sido examinada com detalhe, o frio médico deu o terrível
diagnóstico:
- “Seu José, sua filha já está em fase terminal de vida. Leve-a de volta, prepare seus
filhos e a família, e é prudente já encomendar um enterro, pois ela está acometida por um
câncer no estômago. Com a chapa da fluoroscopia que fiz nela eu constatei metástase”.
José Pajaraca não compreendia bem aquele palavreado técnico, só fazia menear a
cabeça, mas entendia que algo muito ruim estava consumindo o sopro de vida de sua filha
mais velha.
Na volta, Zé Pajaraca e Abigail não mais a trouxe para casa, pois não tinha quem
cuidasse dela direito. Felizmente a irmã de Abigail, Doroteia, mais conhecida por Carrôla, se
prontificou a acompanhá-la até seu último dia de vida e pediu que Firmina ficasse na casa
dela, na vila de Santa Teresinha mesmo, pois de fato, desde seu regresso de Patos, ela viveu
somente mais três dias. Também vale ressaltar que nesse período, foram apenas três as
pessoas que a visitaram, e quando isto faziam, ficavam de longe, com medo da quimera que a
devorava por dentro também os atacasse.
O povo, imerso na mais profunda ignorância, comentava que era uma maldição à
pessoa atacada por aquele monstro por causa de seus pecados.
- Ela traiu Jesuis, ia sê frêra e virô foi quenga! – insinuava de longe uma papa - hóstia
sem coração.
De fato, em seus olhos existia uma expressão de pavor, mesmo nunca tendo proferido
um lamento. A cada hora que se passava, maior o sofrimento por não conseguir se alimentar
nem dormir por causa das dores lancinantes que sentia. Notava-se no ar a aproximação de
uma coisa sinistra. Expedito era muito moço para entender bem tudo isso, mas ouvia do padre
Zé Luís o consolo, que dizia mais ou menos assim:
- “Sua irmã vai fazer uma viagem, porque tinha sido convidada por uma mulher
chamada Maria, mãe de Deus e essa mulher que a convidou já tinha sofrido muito também,
mas hoje ela vive num lugar onde mora muita felicidade, muita alegria e muita paz, e quando
ela chegasse lá ia pedir a essa mulher para cuidar de sua família”.
Já prostrada dentro de uma rede, a barriga de Firmina não parava de inchar. Abria a
boca, revirava os olhos, fazia gestos, indicando que queria deixar mais recomendações para
seus irmãozinhos, mas aquele monstro tenebroso que ela trazia dentro de sua barriga cada vez
mais apertava seus tentáculos em torno da sua garganta, impedindo-a de falar.
Outra monstra, a senhora Morte, rondava a casa onde Firmina estava. Os seus passos
já eram ouvidos e a mocinha que antes habitava os lindos bosques da vida e que tanto estava
sofrendo nas mãos do primeiro monstro, por fim deu seu último suspiro e ficou quieta e com
um ar tranquilo, se entregando à imobilidade física. Assim, os dois demônios juntos
brindaram a aquela sinistra vitória.
Agora, a flor mais bela que tinha enfeitado os lindos caminhos da vida havia
murchado, secado e caído da rama que a sustentava. A boa alma que tinha morado durante
quinze anos dentro daquela bela flor se volatizou dentro da sua dimensão, que nós em nada a
conhecemos e certamente esta flor está hoje enfeitando outros belos jardins e bosques, os
celestiais, aqueles que ornamentam a morada do Eterno.
Pajaraca ficou muito triste, porém resignado. Naquele momento de tristeza, a criança
que tinha nascido de Firmina estampava toda alegria do mundo no seu sonolento rostinho
angelical. No entanto, ela também estava convidada para a festa de acolhida para Firmina lá
no céu que ainda estava acontecendo ou que estava ainda sendo preparada no Santuário
Divino, para que quando sua mãe chegasse lá, fosse recebida com muita alegria pelos

230
anjinhos celestiais. Certamente aquela criança estaria lá, tocando harpa para a chegada
triunfante da própria mãe.
Embora a tristeza reinasse, entre os que tanto a amava, notava-se que o tempo não
havia parado, e enquanto o Sol rompia as trevas daquele dia vinte e seis de janeiro de 1960 se
contradiziam, pois via-se que ele amanhecera lindo. O céu estava risonho e azulado, com
nuvens branco-acinzentadas iluminadas por raios rosa e violeta.
A atmosfera como um todo estava sorrindo, afinal, o céu estava em festa. Isto se
refletia através da brisa matutina que estava bastante calma e assim certamente estava para
não perturbar o sono dela, e a parte mais alta do horizonte leste permanecia anil, enquanto o
seu oposto se dissolvia em tons claros de azul e marfim.
Naquele silêncio, Expedito experimentava uma sensação de reverência à sua irmã, pois
nesse momento, era como se ele visualizasse uma luz, seguindo em direção a um clarão ainda
mais forte, e depois mergulhar numa claridade infinita que ia se elevando, cada vez mais
adentrando o céu adentro. Seria a irmã batendo asas? Para definir isso com palavras, a mais
adequada, seria “eterno mistério”. Haveria definição melhor?
O enterro de Firmina foi muito simples. Enrolada em velhos lençóis, foi transportada
em uma padiola. O pequeno féretro caminhou a pé até o cemitério da vila, percorrendo toda a
avenida principal entoando os cânticos funebres. Os poucos que acompanhavam o cortejo se
revezavam no transporte até o cemitério além de outras quatro pessoas que iam entoando
orações e ladainhas.
Expedito foi proibido de acompanhar o féretro por que sua calça, além de já estar
curta, estava muito encardida e rasgada no fundo, além de também não ter mais alpercatas
para calçar, sem contar o fato de que a terra do cemitério ser contaminada por bactérias, e as
perebas das pernas dele estavam muito inflamadas.
Mesmo assim, ele foi acompanhando de longe para ver o que aquelas pessoas iam
fazer com a sua irmanzinha. Os outros acompanhantes também seguiam de longe, pois ela já
cheirava mal. Ao chegar no cemitério, abriram o túmulo do pai de Zé Pajaraca. Colocaram -
na lá dentro, e Expedito permanecia inerte, encolhido dentro daqueles trajes rotos que o fazia
ficar miúdo. Fez de tudo para vê-la pela última vez, acenar-lhe um último adeus e para isso,
quando o féretro se desfez, teve que pular o cercado, pois os portões foram fechados para ele.
Se aproximou da boca da cova e ficou olhando impassível para aquele embrulho que o
coveiro iria enterrar quando bem entendesse. Lá estava sua mana, enrolada para nunca mais
dali se libertar, até que chegue o grande dia da ressurreição dos mortos.
Quando percebeu a aproximação do coveiro, Expedito correu e ficou espiando
furtivamente o que iria acontecer com sua irmã. Testemunhou os dois coveiros jogarem cal e
terra em cima dela, assim como não viu nenhuma flor adornar seu túmulo e enfeitar sua nova
residência, como nos outros túmulos. Por fim, viu um deles jogar no túmulo o boró que
fumava. Limpou a poeira das mãos batendo uma na outra, deu as costas e foi embora junto
com o outro.
Ao voltar para casa, no Arapuá, Expedito passa pela frente da outra casa que morou e
se dá conta que a sua antiga morada tinha ficado enfeitada de meninos que não mais iam ter o
exemplo da irmã mais velha que tanto tinha cuidado em todos eles. Expedito nunca mais viu
sua mana, não tinha se quer um retrato dentro de um monóculo, mas sabia certamente que ela
estava com sua amiga Maria, mãe de Jesus.
"O tronco mais grosso caiu" - Essa era uma expressão da época que se usava quando
uma situação chegava ao limite de sua gravidade. O estrondo da "queda do tronco" abalou
aquele pequeno mundo habitado por crianças desprotegidas. Aquela casinha que Expedito

231
passou em frente, onde antes tinha morado a alegria, se transformara numa espécie de porto
solidão. Tudo estava escuro. A luz que antes ali brilhava, tinha se extinguido. O anjinho que
tinha nascido do parto de Firmina, veio a morrer poucos dias depois, pois não mamava e já
nascera doentinho. Abigail ainda tentou dar – lhe uma mínima sobrevida improvisando um
mingau feito com água e farinha. Um veneno para uma criança recém nascida.
Firmina foi à frente, e seu anjinho, foi logo depois. Certamente Firmina será sempre
jovem, pois lá onde ela está, a juventude é eterna. A criança, também deve estar com aquele
mesmo rostinho preguiçoso, sorridente e angelical de sempre, o mesmo que ela tinha no dia
da partida da sua mãe.
Firmina foi embora depois de ter sofrido muito nas mãos de dois monstros perversos,
um feito de carne e que lhe tirou a inocência e a desviou dos caminhos de Deus e outro, que
lhe tirou a vida, chamado Câncer. Na verdade, existia um terceiro monstro, e este se chamava
pobreza. Monstro tão odioso quanto os dois primeiros. E esta quimera se encarregou de
assolar os que ficaram. Ela insistia em permanecer naquela casa e fazer muitos estragos por lá.
Firmina já estava calada perante a eternidade, mas agora um uivo do vento noturno passou a
ser ouvido todas as noites pontualmente, trazendo a sua mensagem. Chegava, dava uma volta
em torno daquela casinha de taipa, contava uma historia de fantasmas de meninos que tinham
sido abandonados, batia asas e se afastava...
Mesmo com a tristeza tendo fincado raiz naquela casinha onde tinham ficado a família
de Firmina, Expedito sempre a via em sonhos, sempre muito alegre e em meio a muita paz.
Ele tem viva em sua memória a voz de sua irmã cantarolando para os irmãos menores dormir
enquanto os balançava na rede:
- Xô, xô pavão… De cima do telhado, Januário quer dormir um soninho sossegado…
Ah, ah, ah… Januário vá dormir… Januário vá dormir… Que eu tenho o que fazer… Vou
lavar, vou engomar uma roupinha pra você...
Só que ele sabia que a voz dela nunca mais seria ouvida novamente, mas aquele timbre
único jamais seria esquecido, pois ela está agora por trás da faixa nebulosa que separa a vida
concreta da vida abstrata, que jaz em outra dimensão. Somente assim, e não tão rapidamente
que ele entendeu o porquê de não mais se ouvir a voz da irmanzinha cantando "Estrada do
Sol," enquanto estava bordando sentada no batente.
Sua breve vida foi sempre uma luta para expulsar de sua casa a pobreza, que por nada
deste mundo desistia de rondar a família. Nada a fazia ir embora, mesmo antes, com ela ainda
saudável, imagine agora? Inerte e de boca fechada para a eternidade, sob que égide ficariam
seus pais e seus irmãos?
Daquele dia em diante, Expedito dava os seus primeiros passos que iniciava a sua
longa caminhada pela estrada da penúria, como também se interrogava sobre o ilogismo da
morte e o sobre o porquê dessas tão complexas questões nunca saírem da sua mente.
Por que levar os bons, os úteis, e deixar tanto joio? E se interrogava, será que existe o
mal absoluto? Dizem que a morte é um determinismo sob o controle das forças renovadoras
da natureza, ou seja, ela não é um fim, e sim um recomeço. Ninguém sabe.
Talvez seja, só sei que ela pratica atos agressivos, covardes, e desrespeitosos à vida, à
beleza e ao que é útil. Pois ela atinge profundamente os pequenos dependentes, daquela ou
daquele que ela levou consigo.
Com a perda da sua irmã, Expedito ficou relegado a tudo, refém de uma pobreza
perversa, perseguido pelo fantasma que refletia em um menino abandonado, à deriva em um
barco sem capitão, que navegava num oceano de incertezas e sem rumo a um porto seguro.
Concluiu precocemente que os caminhos invisíveis do destino são tortuosos e que ele era

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submisso. Viu o quanto ele era vulnerável a essas coisas deformadoras, que machucam e
criam calos que podem até ser fechados por fora, mas por dentro, as marcas estarão gravadas
no intimo por todo o sempre.
Quem presencia o ataque do lobo ao cordeiro indefeso não admira a sua valentia e sim
a sua covardia, mesmo que ele alegue sua defesa dizendo que era para matar a fome. E então?
É assim que vemos a situação. Quando o remorso e a consciência se manifestarem, será pelo
que foi feito? Não, não foi! E sim, pelo que deixou de ser feito! Daí que surge o nosso
remorso, o quanto deveríamos ter expressado nosso amor por nossa família e não fazemos,
deixamos apenas subentendido.
Olhando para esses horizontes acanhados e estando despojado de um ato de clemência,
Expedito foi sobrevivendo a uma infância cruel, como um reles camundongo nas garras de um
gato tirano e faminto, fazendo suas peregrinações nos estéreis desertos da sua adolescência,
pois no lugar de carinhos, só recebia maus-tratos.
Nunca comemorou um aniversario, como também nunca teve a alegria de receber um
simples presente de natal, que com isso ele se sentisse lembrado por alguém, pois muitas
vezes a alegria não está em ter a posse do objeto presenteado, e sim pelo ato de ser lembrado
por coração de outrem. Isto para ele não era mais problema, pois ele nem sabia que Papai
Noel existia e por isso ele foi sendo moldado e transformado numa figura seca, dura e agreste
como o próprio chão em que nasceu e o meio em que viveu.
A razão nessas horas anula a si própria. Sim, isso mesmo, pois as pessoas são
moldadas pelo meio em que vivem, ou seja, suas atitudes são reflexos deste meio em que
estão inseridas, uma vez que foram fundidas no mesmo cadinho. Isto, salvo raras exceções.
Sem saber o que vinha depois da curva da longa estrada da vida, muito cedo teve que
declarar uma guerra silenciosa e odienta contra a própria pobreza. Expedito, no torvelinho de
uma vida assim, tem seus dias sombrios, e se tem vontade de sorrir, é apenas com a metade da
boca, pois quem passa por tal provação desaprende a sorrir com a boca toda. Portanto, é bom
observar que para estas expressões aqui citadas, não existe um rótulo apropriado para se
distinguir uma da outra. No entanto, ali em meio àquela espessa névoa de tribulações,
Expedito era a figura central, já que o pai, devido a tanta tribulação, não sabia suportar a dor e
tentava mais uma vez suprimi – la a todo custo com a bebida novamente. Triste destino, pois
foi ele mesmo o parteiro que assistiu impassível, ao nascimento de tudo isso.
Expedito já estava matriculado na escola do sofrimento e era aluno assíduo. Note - se
que todas as pessoas que passaram por isso acham que a terminologia "religião" não
demonstra originalidade alguma. A razão que leva essas pessoas a pensar assim é muito
simples: Basta lembrar que se alguém está com fome, seu único pensamento será um prato de
comida, e não em santos, deuses, cultos, fuás ou missas.
Nada é mais divino do que um prato de comida na mão daquele que tem fome,
concorda? Eis que surgem muitas perguntas: Porque pagar pecados se ainda não os cometeu?
Será que o pecado é um legado hereditário? Será que o pecado passa dos pais para filhos?
Será que o pecado está no gene? Ou será que as crianças que sofrem estão pagando seus
pecados antecipadamente, na intenção de não viver o tempo suficiente de cometê - los? Mais
uma vez questiono, será que existe o mal absoluto? Será que o mal vem do divino? Vem do
Gênesis bíblico? Onde está o divino agora, nessas horas tão difíceis? Será que ninguém é
dono de ninguém? Porquê? Porque tudo surge do nada desse grande, vasto e admirável
futuro desconhecido por cada um de nós.
Como encontrar uma saída que dê em um ponto que se situe algures? Para isso,
também repito, temos que abrir o buraco no centro da nossa ignorância, entrar por ele, passar

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pela loucura, para ver o que tem do outro lado. Pajaraca fez isto, e lá não tinha o que ele
procurava.

EPÍLOGO
1961. Eis que o Lameirão já não é mais como antes. Muitas mortes, muitas secas,
muito sofrimento, desilusão e desgosto. Muitos dos ainda vivos tomam rumos longínquos. É
São Paulo, é Campina, é João Pessoa, É a nova capital Brasília... Muitas partilhas de terra
ocorreram, muitas brigas... As antes intermináveis terras daquele lugar, agora eram pequenos
quinhões. Os que ficaram, o tempo foi se encarregando de envelhecer, tirar a saúde e levar
embora. Seu Joaquim Nunes, morreu em 1960. Severina, do nada, morreu em 1978 de infarto,
nos braços de seu irmão Zé Alves. Em 1985, Zé Alves nos deixa. 1986, João Nunes e Alcinda.
Em 1988 é a vez de Regina nos deixar. Em 1992 foi dona Vicência. Em 1994, Mané Roldão.
Em 1999 se vai o último dos irmãos: Inacio. No caso de Zé Alves, seus filhos fizeram nova
partilha de terra. Cada um ficou com boa parte de terra ainda, mas nada que se comparasse à
vastidão de terras que era originalmente.
Em 1963 Expedito, já com 23 anos, aceita convite de trabalho de Nelson, filho caçula
de Zé Alves e se muda para a recém – inaugurada Brasília. Lá pela primeira vez, teve acesso
ao que é um lápis e um caderno, e alternando com seus trabalhos braçais, pôde iniciar e
concluir seus estudos. Com isso, ou seja, com o relativo conhecimento adquirido, arrumou
serviço de ajudante de pedreiro e depois virou pedreiro. (e dos bons). Começou a juntar um
dinheirinho, mandava parte para ajudar seus pais que ficaram no sertão e com o restante, fora
seu sustento, foi comprando terrenos em Brasília, construindo casa e vendendo. 10 anos
depois, Expedito, um dos pioneiros na construção civil na capital federal, (não um candango
legítimo), mas ainda assim um dos pioneiros da iniciativa privada. Dez anos depois já tinha
para mais de 50 imóveis entre galpões de loja, terrenos e casas para vender, sendo que só sua
casa, erguida em uma granja às margens da DF – 004, até hoje é uma das mais imponentes do
lugar, com tudo do bom e do melhor.
Expedito casou por lá e teve muitos filhos. Sempre que dava, ele viajava até Santa
Teresinha, agora município, para ver seus pais. Seus velhos não moravam mais no sítio.
Expedito pagava o aluguel de uma casa até confortável para seus pais que, na ociosidade,
viviam sempre às turras, terminando de criar Januário, o filho com deficiência mental. Os
irmãos restantes também foram tratando de se casar e ganharam o mundo.
Sem mais a saudosa ocupação de capataz do sítio Lameirão, Pajaraca agora bebia todo
santo dia. Ficava de bar em bar jogando dominó, baralho e esperando o tempo passar,
enquanto Abigail ficava em casa, se ocupando em prestar atenção na panela no fogo e em
quem passava de frente de sua casa. Devido a essa situação de marasmo, Expedito os
convidou a ir morar em Brasília, junto com o irmão.
- Bora mãe. Lá minha casa é grande, tem canto pra vocês. E pra papai eu posso até
arrumá um serviço me ajudando.
- Sei não… Sei não… - Brazilha é cidadona de doido. Eu num se acustumo não… -
Rebate Pajaraca, dobrando os beiços.
- Eu tomém num se acuxtumo não, Ixpedito. É mermo qu’eu tá veno… Uvi dizê que lá
faiz fríí medõe. Num vô se acuxtumá nunca não...
- Acostuma. Até pra eu poder dar mais assistência pra vocês…
Nisso, depois de muita insistência, Expedito consegue convencê – los a ir para
Brasília. Lá, rapidamente no terreno da granja é construída uma casinha com dois quartos para
o nobre casal. Expedito também consegue convencer o pai a frequentar a mesma igreja que

234
ele, evangélica. Abigail resistiu. Não quis se separar de seus santos católicos. Já Zé Pajaraca,
além de acompanhar o filho junto com a nora e os netos, também passou a frequentar o
Alcóolicos Anônimos daquela cidade. Depois de algum tempo, tinha abandonado não somente
o álcool como também o tabagismo. Por incrível que pareça, Zé Pajaraca se adaptou muito
bem à vida na cidade grande, ajudando muito seu filho. Aprendeu inclusive a dirigir uma
caminhoneta. Aprendeu até a ler enquanto frequentava o AA.
Por outro lado, Abigail durante dois anos, de 1973 a 1975, amargurou calada a sua
incapacidade de se adaptar àquele lugar de maluco. Ela não ia para a igreja que o filho
frequentava, mas ele a deixava em uma católica que ficava no caminho, junto com o filho. Na
volta, Expedito gostava de levar todo mundo para passear, iam nos parques, no Shopping
Conjunto Nacional, iam em bons restaurantes, sempre iam ao cinema ver filme do Mazzaropi,
Oscarito, Dio Como Te Amo, mas… O coração de “Bigaí” permanecia lá no sertão. Mesmo
tendo ido morar na cidade depois da morte de Joaquim Nunes, ela mantinha muito contato
com o povo do Lameirão através de cartas, que Expedito pacientemente lia e escrevia
conforme a mãe ia ditando. Sentia muita saudade de todos. Sentia saudade dos filhos que
ficaram lá, dos netos que não conhecia, sentia saudade de poder visitar o túmulo dos entes
queridos, principalmente o de Firmina.
Certa manhã de segunda feira, não aguentando mais, Abigail suplica a seu filho:
- Ixpedito, meu fíi… Eu num aguento mais ficá aqui não… Deixe sua mainha vortá
pra casa, dêxe...
- Oxente, mainha. Aqui é sua casa. Nós somos sua família – Rebate Expedito.
- Eu sei!!! Mais eu sô uma véa injuada e chêa de mania… Eu num me acuxtumei aqui
não, Ixpedito. A verdade é essa. E eu le disse isso derne do cumeço. Vim só mais por causo do
seu pai...
- Então, mainha? Painho está bem aqui. Parou de beber, de fumar, melhorou a saúde,
me ajuda no trabalho, não é justo ele ir embora. Ele não vai mais querer ir; tenho certeza!
- Não, e num pricisa ele ir não. Eu vô mais seu irmão só nois dois mermo, e fica como
era. Sempre que dé, vocêis vão lá visitá eu ô intão eu vem. Seno pa visitá eu posso até vim.
Mais pa morá eu num aguento não... Num faça isso cum sua mãe véa não, meu fíi. Dêxe eu ir
mimbora, dêxe?
- Puxa vida, mainha. E lá a senhora vai ficar com quem?
- Cum meu povo, meu fíi. Uma véa que nem eu tem que vivê no mêi de gente pobe,
fêa e véa que nem eu. Chega esses seus amigo rico aí nesses carro bunito, eu tem até vergonha
de tá do lad’ifora. Quero não…
Também depois de muita súplica da mãe e de muita resistência de Zé Pajaraca, Abigail
os convence que o melhor a se fazer, caso eles a quisessem viva por mais alguns anos, era
deixar ela voltar para Santa Teresinha. E assim foi. Expedito se recordava que a viagem de
vinda deles até Brasília foi muito cansativa, pois a fizeram em três etapas: A primeira de pau -
de – arara, de Patos até Petrolina, depois de barco, de Petrolina até Barreiras, e de ônibus, de
Barreiras até Brasília. Quase dez dias de viagem. Com isso, Expedito preferiu pagar a
passagem da mãe e do irmão de avião. Voaram pela empresa Taba. Um vôo direto de Brasília
a Campina Grande. Expedito também tratou de procurar via telefone e depósito bancário uma
agencia de turismo que conduzisse Abigail do campo de aviação de Campina Grande até um
ônibus para Patos, cuja estrada agora até lá estava inteiramente asfaltada.
A cada seis meses, todos viajavam para visitar a mãe, que de fato, estava melhor que
antes, em Brasília. Entretanto, o tempo continuou passando para todos. Em 1982, aos 72 anos,
Abigail adoece em definitivo do mesmo mal que acometeu sua filha primogênita, décadas

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atrás. Fato agravado por seu filho Januário ter falecido em 1981, o que a deixou muito
deprimida e contribuiu para piorar ainda mais os sintomas do mal que lhe afligia. Para tratar
da doença, sem ter querer, Expedito a traz de volta para Brasília, acompanhada da sua irmã
Carrôla. Lá ela inicia o tratamento de radioterapia e quimioterapia, mas sem sucesso. Dia 21
de fevereiro de 1983, Abigail se vai, descansando daquele mal que a importunou durante toda
a vida.
Nunca teve luxo. Quando finalmente teve ao seu alcance um pouco de conforto, não
foi capaz de reconhecer, ou simplesmente recusou. Abigail se enterrou em Brasília mesmo.
Seus outros filhos, nenhum deles veio acompanhar a mãe nos seus dias finais, nem para o
velório. Aliás, pouco se sabe sobre eles hoje em dia. Já Zé Pajaraca, em 1985 casou de novo
com uma senhora muito nova, mesmo ele já tendo a idade avançada, ou seja 75 anos
incompletos. Não teve mais filhos, mas pelo menos teve alguém para lhe fazer companhia até
o fim de seus dias, que por sinal, ainda foram muitos. No entanto, como tudo que chega um
dia ter que partir, Pajaraca também o fez. Pajaraca viveu muito. Muito mesmo! Viveu 99 anos.
Se foi em 2009, de causas naturais, na grata companhia de seu filho, esposa e netos. Era muito
querido.
Quanto a Expedito, este nascido em 1940, já é um senhor. Já tem bisnetos inclusive.
Penou muito na infância mas agora desfruta um pouco, do que a vida pode dar de bom. Desde
1982, nunca mais Expedito veio à sua terra natal.

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